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1 UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO CAMPUS XIV COLEGIADO DE LETRAS DAISE GUIMARÃES ABREU UM SER (TÃO) FILOSOFICAMENTE JAGUNÇO: UMA LEITURA DE GRANDE SERTÃO: VEREDAS SOB O OLHAR DA IDENTIDADE Conceição do Coité 2009

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Page 1: Um sertão(tão) filosoficamente jagunço   uma leitura de grande sertão veredas sob o olhar da iden

1

UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV

COLEGIADO DE LETRAS

DAISE GUIMARÃES ABREU

UM SER (TÃO) FILOSOFICAMENTE JAGUNÇO: UMA LEITURA DE

GRANDE SERTÃO: VEREDAS SOB O OLHAR DA IDENTIDADE

Conceição do Coité

2009

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DAISE GUIMARÃES ABREU

UM SER (TÃO) FILOSOFICAMENTE JAGUNÇO: UMA LEITURA DE

GRANDE SERTÃO: VEREDAS SOB O OLHAR DA IDENTIDADE

Orientadora: Prof. Ms. Eugênia Mateus de Souza

Conceição do Coité

2009

Trabalho de conclusão de curso ao Departamento de

Educação da UNEB, Campus XIV, Conceição do

Coité, como requisito parcial para obtenção do grau

de Graduação em Licenciatura em Letras

Vernáculas.

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POEMA COM ABSORVÊNCIAS NO TOTALMENTE

PERPLEXAS DE GUIMARÃES ROSA

Ah, pois, no conforme miro e vejo, o por dentro de mim,

segundo o consentir dos desarrazoados meus pensares, é o

brabo cavalo em as ventas arfando se querendo ir.

Permanecido apenas no ajuste das leis do bem viver

comum, por causa de uma total garantia se faltando em

quem m‟as dê. Ad‟formas que em tréguas assisto e assino

e o todo exterior desta minha pessoa recomponho. Porém

chega o só sinal mais leve de que aquilo ou isso é

verdadeiro pra a reta eu alimpar com o meu brabo cavalo.

Ara! que eu não nasci pra permanência desta duvidação,

mas só pra o ser eu mesmo, o de todo mundo desigual,

afirmador e conseqüente, Riobaldo, o Tatarana. Ixi!

Adélia Prado

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AGRADECIMENTOS

Para nós, seres humanos, viver implica produzir a existência. Isso significa que

precisamos realizar inúmeras ações para atender às nossas necessidades, aspirações e

conveniências. Nesse sentido, qualquer ação é um trabalho. Como não vivemos sozinhos, a

produção da existência é feita por um conjunto de ações coletivas e interligadas.

Ao me dedicar neste trabalho científico, muitas pessoas contribuíram para que se

concretizasse esta monografia. Meus sinceros agradecimentos a todos aqueles que, de alguma

forma, doaram um pouco de si para que a conclusão deste trabalho se tornasse possível:

A Deus que me iluminou com o seu Espírito Santo e me deu força para continuar.

A minha orientadora professora mestra Eugênia Mateus que me orientou, auxiliou na

produção do texto, na organização das idéias, com a disponibilidade de tempo, materiais e

referências que utilizei, com o apoio e simpatia com que me tratava, mesmo com a

freqüências com que a solicitava.

A meus pais, Domingos e Nailza que me incentivaram sempre a estudar, a sonhar, a

acreditar em mim mesma, a nunca desistir; Agradeço a eles que me ensinou a ser o que sou

hoje e me educou para tornar-me uma pessoa de bem e esforçada, pela paciência comigo, pelo

seu carinho e apoio e, principalmente, pelo seu amor incondicional.

A meus amigos, que compreenderam a minha ausência nos últimos momentos da

produção da monografia, pela atenção, ajuda e paciência. Agradeço também por eles

existirem em minha vida, por estarem presentes nos momentos felizes e nos momentos

difíceis, por eles me aceitarem como sou e permitirem que eu os mantenha em meu coração

com carinho e amor.

Aos colegas da Universidade que, com minhas dúvidas na construção do trabalho, me

auxiliavam também na construção deste trabalho científico. Não agradeço apenas a eles, por

estarem nesse momento da minha vida, mas também por eles, aos poucos, ocuparem um

grande espaço em meu coração, por conquistarem meu respeito, meu carinho e por

representarem pessoas especiais que jamais esquecerei.

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TERMO DE APROVAÇÃO

DAISE GUIMARÃES ABREU

UM SER (TÃO) FILOSOFICAMENTE JAGUNÇO: UMA LEITURA DE

GRANDE SERTÃO: VEREDAS SOB O OLHAR DA IDENTIDADE

Monografia aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Licenciatura em Letras

Vernáculas, Departamento de Educação (DEDC), campus XIV, Conceição do Coité,

Universidade do Estado da Bahia (UNEB), pela seguinte Banca Examinadora:

Orientadora: Eugênia Mateus ________________________________

Professora da UNEB – campus XIV

Deijair Ferreira da Silva ____________________________________

Professor da UNEB – campus XIV

Jussimara Lopes ___________________________________________

Professora da UNEB – campus XIV

Conceição do Coité, 03 de abril de 2009.

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RESUMO

O presente trabalho propôs-se ao mapeamento da identidade cultural do jagunço, em Grande

Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Um ser jagunço – nacional por subtração –, construído e

representado nas fronteiras identitárias do sertão. Esta investigação visualiza a transcendência

da identidade individual à coletiva, da regional ao nacional e da nacional a universal, no

espaço não apenas o geográfico, mas interior: o eu e o outro, uno e filosófico, questionador de

sua existência. As linhas teóricas referentes à identidade na pós-modernidade, o sertão e da

identidade sertaneja deram o suporte aos estudos, com o intuito de realizar uma comparação

e/ou compreensão destes conceitos, sob o ponto de vista de Guimarães Rosa. O resultado

possibilita afirmar a inauguração de uma imagem jagunça na literatura brasileira: um jagunço

lírico, poeta do sertão, a partir de desconstruções, reconfigurando identidades pré-

estabelecidas desta identidade cultural no mosaico que forma e constitui, à revelia, a

identidade cultural brasileira.

PALAVRAS-CHAVES: Identidade cultural. Jagunço. Sertão

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ABSTRACT

The presente work, has proposed the map out of the cultural identity of “jagunço”, in Grande

Sertão: Veredas by Guimarães Rosa. A “jagunço” being – nacional for subtraction -, built and

represented in the frontier identities of “sertão”. This investigation visualizes exceeding from

individual to collective, from regional to national and from national to universal identity, in a

space not by merely geographic, but deep: myself and the other, sole and philosophic,

questioning their existence. The theoretical lines concerning on the identity in pos-modernity,

the “sertão” and from the “sertaneja” identity they gave the support to studies, with the sense

of achieving a comparison and/or understanding of these conceptions under the point of view

of Guimarães Rosa. The sequel allows to affirm the inauguration of “jagunça” image in

Brazilian literature: a lyric “jagunço”, poet of “sertão”, from desconstructions, reconfiguring

identities pre-established in this cultural identity into the mosaic that form and constitutes a

Brazilian cultural identity.

KEY- WORDS: Cultural Identity. Jagunço. Sertão.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ......................................................................................................

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1

CONSTRUÇÃO À REVELIA: A CRIAÇÃO DAS IDENTIDADES EM

GRANDE SERTÃO: VEREDAS ...........................................................................

12

1.1 O ser(tão) no jagunço: nacional por subtração ........................................................ 12

1.2 Cultura e sertão: fronteiras identitárias .................................................................... 16

1.3 Nas veredas identitárias dos jagunços: ser cultural por construção .........................

23

2

O EU E O OUTRO: RIOBALDO, UM JAGUNÇO FILOSÓFICO ................

29

2.1 O viver perigoso: a travessia de Rio (Baldo) ou a travessia de si mesmo ............... 30

2.2 “Mire e Veja”: Riobaldo, a identidade dialética ..................................................... 33

2.3 Riobaldo: interrogando identidade ......................................................................... 36

3

LIRISMO VS ROSA: UMA DIALÉTICA REVISÃO DO SER(TÃO) ............

39

3.1 Literatura e cultura: interstícios inaugurais da imagem jagunça ............................. 39

3.2 A lírica e o anti-herói rosiano: a desconstrução do popular ....................................

42

CONCLUSÃO ........................................................................................................

50

REFERÊNCIAS ....................................................................................................

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INTRODUÇÃO

A literatura tem-se utilizado de diversas abordagens para pensar e afirmar a nacionalidade

– tentativa de definir um retrato para o Brasil. Todas estas abordagens do Brasil, feitas pela

literatura, podem ser consideradas como leituras de uma questão complexa a que se tem

chamado “identidade cultural/nacional”. Os escritores de momentos e escolas literárias

tentaram estabelecer um conceito de identidade nacional/cultural1, a partir de visões múltiplas

em relação ao mundo. Guimarães Rosa foi um desses escritores que construiu,

intencionalmente ou não, a identidade cultural brasileira.

Um dos temas centrais das produções de Guimarães foi o sertão, o (ser)tão múltiplo,

diverso e o grande sertão interior e suas veredas. Em Grande Sertão: Veredas, Rosa narra

esses dois sertões: o físico e o abstrato: “[...] Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande

sertão! Não sei” (ROSA, 2001, p. 116). Neste sertão é criada uma identidade cultural: o

jagunço brasileiro. A temática desta monografia é justamente compreender a formação da

identidade cultural do jagunço, criada no sertão rosiano.

Entre outros motivos, a escolha dessa temática está vinculada, principalmente, ao fato de

se acreditar que, ao construir a identidade cultural do jagunço, ele [Guimarães Rosa] cria um

retrato de Brasil e sua grande multiplicidade cultural. Importa compreender a real

possibilidade de realizar este processo de formação de identidade cultural. A análise de como

Guimarães transcende do individual ao coletivo, do regional ao nacional, do nacional ao

universal pelo viés do jagunço no sertão (não só no espaço físico), contribuiu, de forma

significativa, na realização do projeto de identidade cultural do Brasil. Essa identidade

cultural tem a possibilidade de analisar o universal? Não somente o particular específico?

Este trabalho científico teve como objetivo principal, mapear a construção da identidade

cultural brasileira, através do sertão narrado e descrito por Guimarães em Grande Sertão:

Veredas, por meio, da análise da caracterização do sujeito sertanejo enquanto ser

nacional/cultural, marca da representação regional/nacional, individual/coletivo.

A realização deste trabalho, iniciou-se com a leitura e a análise do romance Grande

Sertão: Veredas, bem como o estudo aprofundado de textos teóricos sobre identidade e sujeito

pós-moderno.

1 O uso do termo identidade nacional/cultural tenta representar o mesmo caos estabelecido mediante a

indefinição para uma afirmação de nacionalidade. Desde os românticos, houve uma busca pela cor local. O

termo identidade se define apenas no final do século XIX. Nesse momento, uma busca pela identidade nacional;

com os estudos multiculturalistas, na segunda metade do século XX, amplia-se o olhar, e a identidade constrói

sob a perspectiva cultural.

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O desenvolvimento do trabalho foi destrinçado em três capítulos. O primeiro, Construção

à revelia: a criação das identidades em Grande Sertão: Veredas, analisa o processo de

construção das identidades dos jagunços no romance; como ela é visualizada na nação

brasileira e: uma construção à revelia, marginalizada e estigmatizada. A identidade nacional

jagunça, parte que representa o todo do mosaico brasileiro, assume sua participação, neste

estudo, reconhecida como parte da nacionalidade brasileira.

No primeiro tópico deste capítulo O ser(tão) no jagunço: nacional por subtração faz-se

um questionamento sobre o motivo pelo qual a identidade cultural do jagunço é considerada

uma identidade por subtração, já que parte, como as outras identidades, da multiplicidade da

identidade cultural brasileira. É possível eleger apenas um grupo cultural para representar o

nacional, já que somos múltiplos? E para dar suporte a esta análise foram utilizadas teorias de

Hall (2003), Pesavento (1998) e Vasconcellos (2007).

Em Cultura e sertão: fronteiras identitárias discuti-se a formação identitária do jagunço,

a partir de dois pontos centrais que se (inter)relacionam: a cultura e o sertão. São

mencionados nesta análise os autores que tratam do conceito de cultura como Laraia (2002) e

Santos (1983); como também o que é, e o que foi considerado o sertão sob o ponto de vista de

Bolle (2004) e Amado (1995). Compara-se ainda a identidade do jagunço construída por

Euclides da Cunha em Os Sertões com a de Guimarães em Grande sertão: Veredas. É

construído nesta secção a conceito de sertão e de Guimarães através de contrapontos

realizados com outros conceitos de sertão, como o de Euclides da Cunha.

Retoma-se a esta comparação em: Nas veredas identitárias dos jagunços: ser cultural por

construção, para visualizar o perfil traçado de um mesmo grupo cultural, de formas e olhares

diferentes; neste momento do trabalho, delineiam-se perfis de algumas identidades culturais

de jagunços presentes no romance, além de mostrar que embora haja exclusão e a estigma do

perfil jagunços, estes são seres culturais por construção à revelia das condições e/ou

convenções sociais.

O Eu e o Outro: Riobaldo, um sujeito filosófico analisa o narrador-personagem Riobaldo.

O jagunço letrado, questionador, introspectivo e filosófico e a sua travessia do/pelo sertão: a

grande travessia do ser humano, a descoberta de si mesmo. Na secção O viver perigoso: a

travessia de Rio(baldo) ou a travessia de si mesmo, revigora-se a identidade deste sujeito: sua

insegurança, suas fragilidades e sua busca para afirmar-se e reconhecer-se como uma

identidade cultural segura e autônoma. Alguns teóricos como Roncari (2004), Castells (2006)

e Figueiredo e Noronha (2005) fundamentaram as idéias discutida acerca dessa travessia do

sujeito jagunça para a sua afirmação identitária presentes nestes tópicos.

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Na segunda, “Mire e Veja”: Riobaldo, a identidade dialética, a influência do “outro” na

formação da identidade cultural de Riobaldo configura-se como elemento construtor de sua

identidade. Este “outro”, um novo olhar, participa, ativamente, da construção do “eu” do

narrador-personagem de Grande Sertão: Veredas, um sujeito de discurso questionador, sagaz,

senão ilusório. Os estudos teóricos fundamentaram-se em Jacoby e Carlos (2005) para

descrever como o “outro” participa da formação do “eu”; Hoisel (2006) para citar quais

“outros” do romance atuaram sobre a identidade de Riobaldo; Giles (1979) para

complementar a idéia de identidade dialética; e Figueiredo/Noronha (2005) para auxiliar no

reconhecimento de qual à concepção de identidade cultural/nacional se aplicaria à identidade

estudada. Fecha-se o capítulo com Riobaldo: interrogando identidade, aqui destaca o

Riobaldo enquanto sujeito filosófico e introspectivo em busca de si mesmo em meio ao caos

em que se encontra a sua vida pós perda de sua amada.

Lirismo x Rosa: uma dialética revisão do (ser)tão retrata-se como Guimarães Rosa

“quebra” a concepção pré-estabelecida do que é o jagunço e reconfigura uma identidade

cultural deste grupo brasileiro, estabelecendo assim, uma nova imagem, na literatura, para

este sujeito. São duas secções que analisam os subsídios do autor para esta construção lírico-

dialética do ser(tão): Literatura e cultura: interstícios inaugurais da imagem jagunço e A

lírica e o anti-herói rosiano: a desconstrução do popular. Na primeira, apresenta como

Guimarães inaugura uma identidade cultural do jagunço, na literatura brasileira. Na segunda,

analisa-se a prática rosiana de desconstrução do pensamento popular, a respeito desta

identidade cultural, com a criação da imagem de um jagunço lírico e que, poetiza o sertão e as

questões filosóficas sobre a vida. São teóricos como Rosenfeld (2002) – relevante quanto à

questão lírica –; Coutinho (2004) – na ênfase à idéia do herói rosiano –; bem como Backhtin

(2003) – com seu conceito de herói –, que confirmam e credibilizam as idéias discutidas neste

capítulo.

Cogita-se, através do que foi discutido neste trabalho científico, a possibilidade de

visualizar a identidade cultural brasileira na identidade cultural do jagunço criado no sertão

ideal (irreal) de Guimarães em Grande Sertão: Veredas. Uma identidade que, após ser

desconstruída é reconfigurada, representa o mosaico que é o Brasil, a parte de um todo

múltiplo e diverso.

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1 CONSTRUÇÃO À REVELIA: A CRIAÇÃO DAS IDENTIDADES EM GRANDE

SERTÃO: VEREDAS.

A criação de identidades em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, é um alvo de

análise que merece atenção, pois delineia principalmente a identidade do sertanejo. Grupo

este, que carrega em si, elementos que representam o nacional. Possibilitam a visualização do

retrato do Brasil. Estas identidades representam o sertão brasileiro, sua cultura, sua história,

valores e costumes de um povo rico em contos e causos, e Guimarães Rosa consegue captar a

essência dessas identidades e transmiti-la na escrita. Entretanto, um aspecto importante que

merece ser destacado é como se dá o processo de formação identitária, uma construção à

revelia, porque é uma identidade, muitas vezes marginalizada e estigmatizada por uma

sociedade dita “civilizada”.

Um dos motivos pelo qual foi feita a escolha de se fazer o estudo da formação da

identidade do jagunço, de Guimarães Rosa, em Grande Sertão: Veredas, foi justamente por

acreditar que é possível vislumbrar uma parte da identidade nacional neste grupo sertanejo.

Diante disso, faz-se necessário o estudo mais aprofundado, do como Guimarães Rosa, ao

narrar de modo único, singular e inovador o sertão de Minas Gerais e seus jagunços, constrói

também uma representação de nação. Importa compreender se realmente é possível realizar

esse processo de formação identitária e quais os recursos e estratégias de que Rosa utilizou

nesse projeto e a maneira como contempla o jagunço.

1.1 O ser(tão) no jagunço: nacional por subtração

Atualmente a questão da identidade é bastante discutida pelos vários teóricos

multiculturalistas1, bem como por pensadores de diversas áreas do conhecimento, inclusive a

literatura. Ela tem-se utilizado de diversas abordagens para pensar a identidade cultural do

1 De acordo com Hall: “Multicultural é um termo qualificativo. Descreve as características sociais e os

problemas de governabilidade apresentados por qualquer sociedade na qual diferentes comunidades culturais

convivem e tentam construir uma vida em comum, ao mesmo tempo em que retêm algo de sua identidade

„original‟. Em contrapartida, o termo „multiculturalismo‟ é substantivo. Refere-se às estratégias e políticas

adotadas para governar ou administrar problemas de diversidade e multiplicidade gerados pelas sociedades

multiculturais (HALL, 2003, p.52)”. Para saber mais sobre o multiculturalismo ver “Da Diáspora identidades e

mediações culturais”.

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Brasil. Nos momentos cruciais da trajetória do país, as abordagens feitas nas produções

literárias em busca dessa identidade resultaram obras paradigmáticas que souberam tocar nos

lugares–chaves da trajetória de uma tradição.

A literatura ao longo de anos procurou construir a idéia de nação, através de suas

produções desde, principalmente, o Romantismo até a atualidade. Os escritores brasileiros em

vários momentos da história e da literatura tentaram estabelecer um conceito de identidade

nacional a partir de visões múltiplas em relação ao mundo e de acordo com as necessidades de

cada época e sociedade.

Mas o que seria identidade? Este trabalho não tem a intenção de dar respostas mas refletir

sobre as certezas e as dúvidas, de ser, por exemplo, um ser único e de acordo com Hall: “O

sujeito previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando

fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes

contraditórias e não resolvidas” (2003, p.12). Pode-se visualizar este tipo de identidade,

mencionada por Hall, na identidade nacional brasileira. O todo “Brasil” é formado por uma

grande diversidade de grupos sociais com identidades específicas e diferentes entre si. Então

surge a questão, como visualizar uma unidade? É possível? Quais grupos identitários

constituem a identidade nacional brasileira? É viável eleger apenas um pequeno grupo para

representar e construir o retrato do Brasil, pertencendo a uma nação múltipla e diversa?

O que muitas vezes foi absorvido tanto das produções literárias quanto de teorias

preconceituosas ligadas à raça e ao meio, a partir do século XIX, é que havia grupos étnico-

culturais superiores a outros e que estes grupos que se encontravam na elite brasileira eram os

únicos que mereciam representar a identidade nacional:

Aceitar a multiplicidade e a diversidade de vozes e presenças no Brasil nunca foi

fácil para as elites do país. Os sentimentos ambivalentes de fascínio e repulsa,

preconceito e aceitação, envolvimento e distanciamento do “outro” em si mesmo

compõem a história da construção da identidade nacional (VASCONCELOS, 2007,

p. 38).

Durante o fim do século XIX é que, ao pensar em identidade nacional brasileira tem-se o

cuidado de identificar o Brasil-nação com uma identidade específica em detrimento de outra.

Não se pensa em aceitação de uma diversidade cultural, o que acontece é a supremacia de um

discurso dominador; neste momento surgem algumas questões:

Quais as estratégias utilizadas pelas elites brasileiras no processo de construção de

sua unidade nacional, visando concretizar um Brasil ideal, moderno e

independente? Como conviver com os migrantes nortistas maltrapilhos que foram

parar justamente na capital do Brasil, o Rio de Janeiro e num dos maiores centros

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urbanos do país, São Paulo, denunciando que a febre de modernização do país não

passava de uma aspiração?

Provavelmente, o caminho possível para alguns intelectuais e políticos da época

resolverem esse conflito tenha sido o de inventar uma divisão regional que

viabilizasse uma distinção entre um Brasil “ideal” – moderno, rico, industrial,

formado por uma grande parcela de imigrantes europeus – e um Brasil “real” –

atrasado, pobre, rural, escurecido por uma população mestiça de índios e negros.

Neste momento, é a ênfase na diferença entre esses Brasis, ou melhor, é a escolha

de uma região para representar o nacional que indicará a resolução para o grande

drama da unidade nacional (VASCONCELOS, 2007, p. 41).

Essa diferenciação entre o Brasil “ideal” e o Brasil “real” mencionada por Vasconcelos

(2007) é equivalente respectivamente à região do Sul e à região do norte/nordeste. E neste

momento, ao optar por um representante da identidade nacional, a região do Sul,

automaticamente exclui e marginaliza outra considerada “atrasada”, a região norte/nordeste.

Este processo, embora tenha acontecido há muito tempo, ainda hoje, apesar das mudanças

ocorridas na sociedade e a maneira de se pensar a nação e sua identidade, é possível perceber

o distanciamento da região nordestina da identidade nacional, dita oficialmente, brasileira.

E onde se encontra o sertanejo? Encontra-se muitas vezes, nesses grupos excluídos do

chamado processo de formação da identidade nacional brasileira. O sertanejo do ser(tão)

jagunço, às vezes esquecido na história e na origem do retrato do Brasil.

O sertanejo é uma parte do todo que forma o Brasil este múltiplo e cultural e, de acordo

com Hall:

[...] se sentirmos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a

morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma

confortadora „narrativa do eu‟. A identidade plenamente unificada, completa, segura

e coerente é uma fantasia (2003, p. 13).

É necessário compreender que uma identidade nacional não se dá apenas pela formação de

uma única identidade – a detentora do poder -, mas que os diversos grupos sociais e culturais

formam a nação. E a identidade sertaneja é uma dessas identidades que, apesar de ser

diferente ao olhar de um “outro” elitizado e preconceituoso, possui uma essência

culturalmente rica. Formular uma identidade nacional, desenhar o perfil de um povo, envolve

práticas de reconhecimento da diversidade cultural e é esta diversidade que compõe a nação-

Brasil:

Se a construção imaginária de uma identidade implica uma atribuição de sentido,

este encadeamento de sentido, no caso brasileiro, seria dado não apenas na

articulação espaço e tempo, que resgataria as dimensões da natureza/meio e da

história, mas pela possibilidade de compatibilização da diversidade na unidade.

Nação-continente, a identidade brasileira seria dada pela integração do múltiplo,

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pela capacidade ou não da absorção dos elementos díspares e aparentemente

caóticos numa nova totalidade de referência (PESAVENTO, 1998, p. 23).

Fala-se sempre que a literatura, em alguns momentos de sua história e formação de

identidade nacional, copiou e seguiu um modelo europeu, entretanto Schwarz (2001) enfatiza

que o problema não se concentra só na cópia, mas também no fato de que há a exclusão de um

grupo que não se assemelha ou se parece com o modelo europeu de civilização e/ou nação,

como é o que acontece com o jagunço sertanejo que, por não se “enquadrar” nos princípios

europeizados, é marginalizado no processo de formação de identidade nacional, todavia são

capazes, como os demais, de representar o Brasil enquanto país e um ser(tão) nação, apesar de

ser o jagunço um ser nacional por subtração.

Entretanto, já que o jagunço também forma e caracteriza o Brasil, porque ele é excluído

muitas vezes do que se chama identidade nacional? É uma questão que traz inquietações

várias, despertando o interesse de análise. A representação de jagunço que será analisado

neste trabalho será aquele traçado pelo narrador de Guimarães Rosa em Grande Sertão:

Veredas.

Guimarães em suas produções abre espaço à épica, combinando aspectos como o mítico, o

misterioso, as dúvidas, os mitos que circundam principalmente o sertão e o sertanejo. O autor

constrói várias identidades daqueles sertanejos do romance, mas embora haja multiplicidade,

cada um possui as suas particularidades: “porque jagunço não é muito de conversa continuada

nem de amizades estreitas: a bem eles se misturam e desmisturam, de acaso, mas cada um é

um jeito por si” (ROSA, 2001, p. 44).

O autor vem construindo a imagem do jagunço, ao longo do romance, com várias

afirmações sobre o que seria o jagunço, desmistificando concepções, criando outras:

E os outros, companheiros, que é que os outros pensavam? Sei? De certo nadas e

noves – iam como o costume – sertanejos tão sofridos. Jagunço é homem já meio

desistido de si... a calamidade de quente! E o esbraseado, o estufo, a dor do calor de

todos os corpos a gente tem (ROSA, 2001, p. 67).

Jagunços, homens sofredores, que possuem um destino imprevisto e até eles mesmos

duvidam de si, talvez pela influência do olhar do “outro” sobre a formação de sua própria

identidade; influência esta, excludente e preconceituosa. Entretanto as dúvidas dos seus

destinos não os abalavam; para o narrador de Grande Sertão: Veredas, o que importava era a

“travessia”, a vida, boa ou ruim, sem certezas:

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Digo que fui, digo que gostei. À passeata forte, pronta comida, bons repousos,

companheiragem. O teor da gente se distraía bem. Eu avistava as novas estradas,

diversidade de terras. Se amanhecia num lugar, se ia à norte noutro, tudo o que

podia ser ranço ou discórdia consigo restava para trás (ROSA, 2001, p. 148).

E Rosa prossegue com as características dos jagunços sertanejos. Homens valentes e

corajosos que sobrevivem e superam as dificuldades que o grande sertão apresenta, sem

reclamar, sem se lamentar, como se percebe no trecho seguinte:

Esbandalhados nós estávamos, escatimados naquela esfregada. Esmorecidos é que

não. Nenhum se lastimava, filhos do dia, acho mesmo que ninguém se dizia de dar

por assim. Jagunço é isso. Jagunço não se escabreia com perda nem derrota – quase

que tudo para ele é o igual. Nunca vi. Pra ele a vida já está assentada: comer, beber,

apreciar mulher, brigar, e o fim final (ROSA, 2001, p. 72).

Como é possível perceber, Guimarães vem construindo, aos poucos a identidade do

jagunço no romance e ao longo deste trabalho será feita uma tentativa de mapear como se dá

essa formação e o que ela significa para a identidade nacional brasileira, porque a identidade

do jagunço, embora sendo e representando o Brasil, possa ser excluída da identidade cultural

e nacional brasileira. Por toda essa marginalização para com a identidade sertaneja pode-se

pensar que esta seja uma identidade subtraída do projeto de nacionalidade, chamado nacional.

Um fator que será também um suporte importante para se alcançar o objetivo deste

trabalho será as fronteiras existentes na construção da identidade do jagunço, a cultura e o

sertão. Ambos os conceitos e concepções solidificam e participam desta construção identitária

e, conseqüentemente, de uma identidade maior, a nacional. Este ponto será um dos focos

analisados no próximo item detalhadamente.

1.2 Cultura e sertão: fronteiras identitárias

A identidade do jagunço é formada a partir de dois pontos centrais e significativos que

(inter)relacionam e são intrínsecos: cultura e sertão.

A representação cultural no sertão é evidente em Grande Sertão: Veredas e; cultura é um

aspecto discutido por vários teóricos durante momentos diversos na história da humanidade.

Por muito tempo o conceito de cultura foi motivo de inquietação, e o que se pensava a

respeito de uma pessoa dita com cultura, “culta”, era aquela que possuía apenas um

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conhecimento específico dito intelectual ou acadêmico. Entretanto o conceito de cultura nesta

sociedade moderna extrapola este campo da sapiência e se direciona ao que um determinado

povo produz em termos de histórias, tradições, costumes, crenças como também os seus

valores étnicos e morais. Acredita-se que cultura também sejam características humanas de

um determinado grupo, o qual preserva ou aprimora-se por meio da comunicação entre

indivíduos em uma dada sociedade e suas manifestações próprias. No entanto, existem ainda

concepções preconceituosas no que diz respeito a certos grupos culturais, como os sertanejos

brasileiros e como diz Laraia:

São velhas e persistentes as teorias que atribuem capacidades específicas inatas a

“raças” ou a outros grupos humanos. Muita gente ainda acredita que os nórdicos

são mais inteligentes do que os negros; que os alemães têm mais habilidade para a

mecânica; que os judeus são avarentos e negociantes; que os norte-americanos são

empreendedores e interesseiros; que os portugueses são muito trabalhadores e

pouco inteligentes; que os japoneses são trabalhadores, traiçoeiros e cruéis; que os

ciganos são nômades por instinto, e, finalmente, que os brasileiros herdaram a

preguiça dos negros, a imprevidência dos índios e a luxúria dos portugueses.

Os antropólogos estão totalmente convencidos de que as diferenças genéticas não

são determinantes das diferenças culturais (2002, p. 17).

Todavia as teorias modernas vêm tentando mudar essas concepções (pré)formadas que as

pessoas têm da cultura do “outro”. As discussões intensificam-se cada vez mais na medida

que aumentam também os contatos entre as nações e povos diversos. Conceituar cultura é

uma tarefa difícil por sua complexidade:

As várias maneiras de entender o que é cultura derivam de um conjunto comum de

preocupações que podemos localizar em duas concepções básicas.

A primeira dessas concepções preocupa-se com todos os aspectos de uma realidade

social. Assim, cultura diz respeito a tudo aquilo que caracteriza a existência social

de um povo ou nação, ou então de grupos no interior de uma sociedade. [...] vamos

à segunda. Neste caso, quando falamos em cultura estamos nos referindo mais

especificamente ao conhecimento, às idéias e crenças, assim às maneiras como eles

existem na vida social. [...] O que ocorre é que há uma ênfase especial no

conhecimento e dimensões associadas. Entendemos neste caso que a cultura diz

respeito a uma esfera, a um domínio, da vida social (SANTOS, 1983, p. 22 e 24).

Desta concepção de cultura precisa-se pensar a idéia de sertão, o seu significado cultural

para a identidade do jagunço e, conseqüentemente, para a identidade plural Brasil.

A identidade do jagunço liga-se diretamente a sertão. Esta identidade é formada a partir do

que a cultura sertaneja representa e o seu espaço cultural, obviamente, entrelaçado ao grande

sertão. Entretanto, é importante notar que o olhar de Guimarães Rosa sobre o sertão, é um

olhar diferencial do que já se tinha visto na história e na literatura, um olhar que traz a

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representação da nação no sertão, um ponto de vista renovador, uma nação múltipla e

culturalmente diversificada, e Bolle (2004) afirma que no romance Grande Sertão: Veredas,

quando o narrador Riobaldo mantém uma conversa com um doutor, ele traz à tona esta

discussão, do nacional no sertão, a união das diferenças:

Ao estruturar o seu retrato do Brasil como uma conversa, diferentemente de todos

os demais livros do gênero, Guimarães Rosa coloca no centro do seu romance o

problema da heterogeneidade da chamada “cultura Brasileira”. Na conversa entre o

narrador sertanejo, o velho fazendeiro e ex-jagunço Riobaldo, e seu visitante, um

jovem doutor da cidade, são tematizados as diferenças, os conflitos e os choques

culturais, mas também as interações, os diálogos e o trabalho de mediação. O

narrador rosiano se mantém disponível num estado de transição entre as diferentes

mentalidades e linguagens: a sertaneja e a urbana, a coloquial e a erudita, a oral e a

escrita (BOLLE, 2004, p. 39-40).

Embora atualmente se possa pensar o sertão também como representação de nação, o

sertão não foi visto sempre assim na história e na literatura. É importante partir da etimologia

da palavra e as implicações do seu significado:

A palavra já era usada na África e até mesmo em Portugal [...] nada tinha a ver com

a noção de deserto (aridez, secura, esterilidade) mas sim com a de “interior”, de

distante da costa: por isso, o sertão pode até ser formado por florestas, contando

que sejam afastados do mar [...] O vocábulo se escrevia mais freqüentemente com c

(certam e certão) [...] do que com s [G. Barroso] vai encontrar a etimologia correta

no Dicionário da língua Bunda de Angola, de frei Bernardo Maria de Carnecatim

(1804), onde o verbete muceltão, bem como sua corruptela certão, é dado como

lócus mediterraneus, isto é, um lugar que fica no centro ou no meio das terras.

Ainda mais, na língua original era sinônimo de “mato”, sentido corretamente usado

na África Portuguesa, só depois ampliando-se para “mato longe da costa”. Os

portugueses levaram-na para sua pátria e logo trouxeram-na para o Brasil, onde

teve longa vida, aplicação e destino literário (W. Galvão, 2001, p. 16 apud BOLLE,

Wille, 2004, p. 48).

Este significado da palavra foi carregando em si e criando uma imagem preconceituosa e

pejorativa do que seria o sertão e as pessoas que vivem nesse espaço. Como o sertão se

encontrava distante, principalmente do litoral, foi havendo comparações entre o litoral e o

sertão. O segundo por estar longe do primeiro; eram regiões afastadas também da

“civilização”, pois o litoral por estar em maior contato com a influência da cultura européia,

sua religião, seus costumes acabava por ser considerada uma região de pessoas “civilizadas”

em detrimento às pessoas do sertão, vistas como selvagens. Esta visão se intensificou no

Brasil colonial:

Nesse sentido, “sertão” foi uma categoria construída primeiramente pelos

colonizadores portugueses, ao longo do processo de colonização. Uma categoria

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carregada de sentidos negativos, que absorveu o significado original, conhecido dos

lusitanos desde antes de sua chegada ao Brasil – espaços vastos, desconhecidos,

longínquos e pouco habitados -, acrescentando-lhe outros, semelhantes aos

primeiros e derivados destes, porém específicos, adequados a uma situação

histórica particular e única: a da conquista e consolidação da colônia brasileira [...]

(...) desde os primeiros anos da colônia, acentuando-se com o passar do tempo,

“litoral” e “sertão” representaram categorias ao mesmo tempo opostas e

complementares. Opostas, porque uma expressava o reverso da outra: litoral (ou

“costa”, palavra usada no século XVI) referia-se não somente á existência física da

faixa de terra junto ao mar, mas também a um espaço conhecido, delimitado,

colonizado ou em processo de colonização, habitado por outros povos (índios,

negros) mas dominado pelos brancos, um espaço da cristandade, da cultura e da

civilização (Freire, 1977; 1984). “Sertão” já se viu, designava não apenas os

espaços interiores da colônia, mas também aqueles espaços desconhecidos,

inacessíveis, isolados, perigosos, dominados pela natureza bruta, e habitados por

bárbaros, hereges, infiéis, onde não haviam chegado as benesses da religião, da

civilização e da cultura (AMADO, 1995, p. 6-7).

Como é possível perceber, a diferenciação de locais e culturas era preconceituosamente

visível e injusta. O sertão em sua totalidade não significava nada que pudesse representar a

nação brasileira. Sua cultura não era “digna” de ser representada como parte de brasilidade. E

por muito tempo este conceito de sertão foi petrificado como verdadeiro.

Nas produções literárias brasileiras o sertão foi apresentado de maneiras diversas, às vezes

apenas como paisagem ou cenário de enredos, às vezes como causador de sofrimentos e dor,

mas que no período em que foram escritas tiveram sua importância e foco específico. Todavia

vale ressaltar, que além de Grande Sertão: Veredas há outro que será utilizado de maneira

breve, como ponto específico para estabelecer algumas comparações sucintas, Os Sertões, de

Euclides da Cunha. Nesses dois romances são visualizados sertões distintos; um sertão criado

por um escritor influenciado por teorias científicas de raça e meio e outro sertão criado através

de um olhar mais moderno e menos preconceituoso. Os Sertões foi uma obra de grande

destaque na literatura nacional. Embora Euclides da Cunha tivesse narrado a guerra de

Canudos ele não deixa de apresentar uma visão panorâmica do sertão e da sertanidade. Mas

importa ressaltar que por conta das idéias científicas européias da época em que foi escrito o

romance, 1902, o autor não tinha como fugir de escrever sob tais influências, dificultando a

Euclides aceitar as peculiaridades do mundo caboclo.

Os Sertões apresentam o Sertão e o sertanejo para as cenas urbanas. Embora o romance

aparente certa contradição a respeito da identidade do povo do sertão, pois apresenta o

positivo do povo, “o sertanejo é antes de tudo um forte” (CUNHA, 1998, p. 112), aquele ser

que suporta a dureza do sertão; ele deixa prevalecer em sua produção, com mais nitidez o seu

olhar de desprezo e vergonha para com aquele povo, enaltecendo a suposta inferioridade do

sertão/sertanejo que a sociedade e a ciência daquela época afirmavam como verdadeira.

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Com um olhar diferente do de Euclides da Cunha que traça o perfil do sertanejo a partir de

visões de “fora” e um fora que concebe o indivíduo do sertão como pessoas deslocadas da

“civilização”, bárbaros que não poderiam formar o mosaico - Brasil, Guimarães traz à

literatura, um sertão diferenciador, um sertão que proporciona identidades múltiplas em que o

suposto “arcaico” e “atrasado” invade o espaço urbano e letrado representado pelo ouvinte de

Riobaldo em Grande Sertão: Veredas, o doutor que ouve as sagas desse ex-jagunço que

procura se conhecer nas memórias de uma vida e jagunçagem e produz uma interação entre

esses dois mundos diversos, mas que fazem parte de um só:

Por isso o escritor mineiro deveu escolher essa forma híbrida do falso diálogo para

contar a sua história: porque nela havia que se refletir, num tempo único, tempos

diferentes – para ser mais claro, o tempo acelerado da cidade e o tempo parado do

sertão, o avanço da civilização e o atraso de uma dimensão primitiva, a projeção da

cultura e a regressão da ignorância. Somente nessa solução que não (se) resolve, de

fato, a estrutura do livro podia refletir a estrutura da terra nele representada; só

assim a história partida, desarmônica e ao mesmo tempo “bem temperada”, do

Brasil podia encontrar a sua grande metáfora geográfica: num Grande Sertão em

que com efeito, convivem e se misturam o moderno e o arcaico, a exatidão da

ciência e a superstição da magia, o amor pela precisão e a paixão pelo indistinto.

Dimensão aérea e telúrica, habitada pela leveza e pela gravidade, pela rapidez e

pela lentidão [...] afinal, a narrativa urbana se junta à epópeia rural, o lógos da

cidade ao mythos do interior, gerando um epos romanesco em que a dicotomia,

tanto espacial quanto ideológica e social, finalmente se dá a ler, e se dá a ler nos

modos e nos ritmos do drama poético (mais uma definição que não se define!)

(FINAZZI-ÀGRO, 2001, p. 79).

O romance vem apontando que o sertão é grande e nele caberia o mundo, o nacional e

vice-versa. O nacional é essa mistura da cultura suposta “civilizada”, a cidade e uma cultura

“atrasada”, primitiva do campo, do sertão. Este sertão que é conceituado em vários trechos do

romance, e já no início de Grande sertão: Veredas, Guimarães diz para o “doutor”:

O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja [grifo meu]: que situado

sertão é por os campos – gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras

altas, demais do Urucúia. Toleima. Para os e Corinto e do Curvelo, então, o aqui

não é dito sertão? Ah que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos

carecem de fechos; que um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de

morador; [...] culturas que vão de mata em mata, madeiras de grossura, até ainda

virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim

cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O

sertão está em toda a parte (ROSA, 2001, p. 23-4).

O narrador do romance já no início vem fazendo um contraponto com as “opiniães”

(ROSA, 2001, p. 24) alheias do que é o sertão: “uns querem que não seja” (ROSA, 2001, p.

23), que o sertão seja apenas uma pequena porção insignificante distante de tudo, mas

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Riobaldo afirma: “esses gerais são sem tamanho” (ROSA, 2001, p. 24), não dá para delimitar

o sertão, sua cultura, crenças, valores e histórias, pois “o sertão esta em toda parte” (ROSA,

2001, p. 24) o sertão é universal e as identidades – produtos deste sertão podem e devem ser o

nacional e esse nacional pode ser o sertão, não há limites.

Guimarães tenta desconstruir a concepção dada ao sertão até então, mostrando que embora

seja tradicional é também moderno e isto é percebido, principalmente quando Guimarães

coloca um jagunço – Riobaldo – que representa toda a tradição sertaneja, crenças, valores

étnicos e idéias com características de um ser dito “civilizado”, o qual sabe ler, escrever e

conversar com maestria com um doutor. Guimarães mostra que sertão também é civilização;

mesmo possuindo uma cultura diferente, é nacional. O autor de Grande Sertão: Veredas traz

para o romance, a metáfora do Brasil - nação, esta multiplicidade e integração de diferenças.

Mas antes de construir essa idéia de ser(tão) nação por meio dos jagunços, Guimarães

prepara o leitor do seu romance para a construção desta concepção, definindo o sertão e o que

ele pode representar: “aqui não se tem convívio que instruir. Sertão. Sabe o senhor: sertão é

onde o pensamento da gente se forma mais forte do que o poder do lugar. Viver é muito

perigoso...” (ROSA, p. 2001, p. 41).

Nesta concepção, o sertão está voltado para o poder do pensar, do questionar; tudo se

constrói a partir do pensamento inclusive as identidades sertanejas e “sertão [são] estes

vazios” (ROSA, 2001, p. 47); vazios que existem nos seres humanos, o sertão ora provoca

estes vazios, quando o pensamento faz o homem se questionar, ora preenche estes vazios, pois

“no sertão tudo é festa” (ROSA, 2001, p. 74), embora o sofrimento e a perda que aquela

região pode trazer representem um “atraso”; é um povo lutando para sobreviver e viver feliz

com suas comemorações religiosas, suas canções, nas suas reuniões em volta das fogueiras

contando seus contos e causos e, segundo Guimarães, sertão é um mundo que parece distante

mas está muito próximo a todos os “outros mundos” isto porque “o sertão é do tamanho do

mundo” (ROSA, 2001, p. 89), possui diferenças, as misturas, é o Grande Sertão – que

consegue transcender ao universal.

Só que não é apenas o positivo mostrado por Guimarães em Grande sertão: Veredas, ele

afirma que há também a violência: “Bolas, ora. Senhor vê, o senhor sabe. Sertão é o penal,

criminal” (ROSA, 2001, p. 126). Esta imagem criada e as pessoas que vivem essa

criminalidade, ora praticada ora sofrida, é o reflexo de uma sociedade com desigualdades

sociais, mal organizada. As pessoas que detém o poder são as que estimulam essa

criminalidade. É visível a hierarquia social, os fracos obedecem aos mais fortes e, por sua vez,

esses mais fortes obedecem outros mais ainda mais fortes, isto é o retrato do sertão, este não

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difere do Brasil e “sertão é onde homem tem de ter a dura nuca e mão quebrada” (ROSA,

2001, p. 126). É preciso aceitar que existe a violência, é preciso adaptar-se a ela; é o que

Guimarães diz em tenha “a dura nuca”, resista, seja forte e se defenda; esta é a

realidade/ficcional.

O narrador Riobaldo prossegue reconstruindo o que é o sertão. Guimarães não dá certezas,

lança idéias que fazem o leitor refletir e questionar as supostas certezas sobre o ser, sobre o

sertão, sobre a existência do demônio ou de Deus, entre outros aspectos isto porque “sertão é

isto, o senhor sabe, tudo incerto, tudo certo” (ROSA, 2001, p. 172).

E é logo após ser apresentada a idéia de que não há certezas, o narrador afirma que, o que

é julgado como “errado” pelas convenções sociais, no sertão pode ser o “certo”, as leis que

tentam estabelecer o equilíbrio são questionadas para dar lugar a outras, a dos jagunços: “ah,

mas no centro do sertão, o que é doideira às vezes pode ser razão mais certa e de mais juízo”

(ROSA, 2001, p. 301).

Outro aspecto destacado pelo autor de Grande Sertão: Veredas é que, embora haja

pessoas que duvidem, o sertão está aí, perto de todos, dentro de todos. O sertão é o Brasil todo

e quando se pensa que não há semelhanças com o sertão: “... e muitas idas marchas; sertão

sempre. Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor

dos lados. Sertão é quando menos se espera; digo” (ROSA, 2001, p. 302).

É possível perceber uma cronologia das definições dadas ao sertão por Riobaldo a partir

das suas experiências narradas. Todas as etapas e/ou concepções do sertão são para projetar

uma idéia maior que todos são “sertão” – “sertão-Brasil”. Sertão faz parte do “eu” e do “nós”,

é o pensamento e o vazio, é a alegria e a tristeza, é a violência, é o bem e o mal, é Deus e o

Diabo, é o errado e o certo e também o incerto, esta dentro de cada ser brasileiro: “Estive

nessas vilas, velhas, altas cidades... sertão é o sozinho. Compadre meu Quelemém diz: que eu

sou muito do sertão? Sertão: é dentro da gente” (ROSA, 2001, p. 325).

E é este sertão que forma a identidade do jagunço, do sertanejo e o Brasil. O ser(tão)

jagunço é construído aos poucos, não é de uma hora para outra, são com as histórias vividas

neste grande sertão, as vitórias, as perdas, as descobertas, as ilusões amorosas, as guerras, os

abandonos, a falta de família e a existência da família – jagunçagem, é o sertão que produz

estas identidades:

Rebulir com o sertão como dono? Mas o sertão era para, aos poucos e poucos, se ir

obedecendo a ele; não era à força se compor. Todos que malmontam no sertão só

alcançam de reger em rédea por uns trechos; que sorrateiro o sertão vai virando tigre

debaixo da sela. Eu saia, eu via (ROSA, 2001, p. 391).

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Destaca-se ainda o momento em que Riobaldo deseja que as diferenças sejam separadas,

uma visão maniqueísta da sociedade brasileira, mas o que se percebe é uma crítica de

Guimarães a esta atitude dos brasileiros, e do ser humano em geral, pois ao fim do trecho o

autor reconhece a impossibilidade de segregação, as diferenças existem, inclusive as

diferenças culturais, mas devem estar integradas, “misturadas”, isto é o sertão, isto é o Brasil:

Que isso foi o que sempre me invocou, o senhor sabe: eu careço de que o bom seja

o bom e o rúim ruím, que dum lado esteja o preto e do outro o branco, que o feio

fique bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero os todos os pastos

demarcados... como é que posso com este mundo? A vida é ingrata no macio de si;

mas transtraz a esperança mesmo do meio do fez do desespero. Ao que, este mundo

é muito misturado [grifo meu] (ROSA, 2001, p. 237).

E estas misturas promovem identidades também misturadas, múltiplas em uma unidade. A

partir dessas concepções de sertão de Guimarães Rosa, percebe-se que os jagunços podem ser

seres nacionais por construção. Esta idéia será discutida no próximo item.

1.3 Nas veredas identitárias dos jagunços: ser cultural por construção

O sertão é um lugar sem fim, “do tamanho do mundo” (ROSA, 2001, p. 89) na concepção

de Guimarães. Um local sem fronteiras, onde extrapolam os limites geográficos e representa-

se o retrato do Brasil. Neste “locus” os jagunços são seres culturais por construção.

Guimarães repensa a idéia de nação no sertão e são os jagunços, narrados no romance Grande

Sertão: Veredas, que possibilitam também, entre os demais grupos culturais do país, a

formação do nacional no Brasil:

[...] se a construção imaginária de uma identidade implica uma atribuição de

sentido, este encadeamento e sentido, no caso brasileiro, seria dado não apenas na

articulação espaço e tempo, que regataria as dimensões da natureza/meio e da

história, mas pela possibilidade e compatibilização a diversidade na unidade.

Nação-continente, a identidade brasileira seria dada pela integração do múltiplo,

pela capacidade ou não de absorção dos elementos díspares e aparentemente

caóticos numa nova totalidade de referência (PESAVENTO, 1998, p. 23).

Esta “possibilidade de compatibilização da diversidade na unidade” (PESAVENTO, 1998,

p. 23), promoverá a exemplificação do nacional do Brasil no sertão. Guimarães Rosa constrói

identidades de jagunços com características diferentes e marcantes, trazendo o Brasil para o

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sertão, nos personagens do romance de Grande Sertão: Veredas. O bem e o mal, os fortes, os

corajosos, os traiçoeiros, os religiosos, os incrédulos entre outros, personalidades

contraditórias, mas, todavia dividem o mesmo espaço e a mesma representação de sertanejo.

E para fixar melhor a representação do sertanejo, interessa retomar a comparação da visão

de Euclides da Cunha em Os Sertões sobre os povos do nordeste (antigo norte), com a visão

de Guimarães e através desta comparação, visualizar o perfil traçado do mesmo grupo de

formas e olhares diferentes. Em Os Sertões explicita-se a inferioridade dos sertanejos. A

identidade destes povos é formada por aspectos negativos provindos de uma raça vista como

“indigna” e “incivilizada”:

Qualquer, porém, que tenha sido o ramo africano para aqui transplantado trouxe

certo os atributos preponderantes do homo afer, filho das paragens adustas e

bárbaras, onde a seleção natural, mais que em qualquer outros, se faz pelo exercício

intensivo da ferocidade e da força (CUNHA, 1998, p 73).

Para Euclides (1998), as “raças” que vivem no sertão são “subformações” (CUNHA,

1998, p. 74) e estas “subcategorias” dificultam a formação nacional brasileira, representa o

atraso. E como conviver e viver em uma sociedade civilizada com esta multiplicidade de raças

dita inferiores? O autor de Os Sertões mostra que mesmo que “desça sobre eles a sobrecarga

intelectual e moral e uma civilização o desequilíbrio é inevitável (CUNHA, 1998, p. 110)”.

Ou seja, o fato de o Brasil possuir em sua nação a mistura de raças e mesmo que essas raças

possuíssem um conhecimento e uma possível civilização, a situação não mudaria, pois estas

“raças” possuíam uma completa inferioridade imutável, para as teorias racistas do período em

que foi escrito o romance:

Aqui, distinguiam-se aqueles que acreditavam que a mistura de raças operada no

Brasil levaria à degeneração crescente e à impossibilidade de constituição de um

povo brasileiro habilitado à civilização e outros que eram mais „otimistas‟. Para

estes últimos, a „hibridação‟ no Brasil correspondia a um tipo de paragênese que

levaria ao desaparecimento progressivo dos negros e mestiços de pele escura,

considerados como inferiores, e ao embraquecimento paulatino do conjunto da

população (COSTA, 2006, p. 166).

Neste prisma, o sertanejo é definido como incivilizado, selvagem, rude, incapaz de tornar-

se um representante da identidade nacional e cultural do Brasil:

É que neste caso a raça forte não destrói a fraca pelas armas, esmaga-a pela

civilização.

Ora os nossos rudes patrícios dos sertões do Norte forraram-se a esta última. O

abandono em que jazeram teve fundação benéfica. Libertou-os da adaptação

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penosíssima a um estádio social superior, e, simultaneamente, evitou que

descambassem para as aberrações e vícios dos meios adiantados.

[...] Este fato destaca fundamentalmente a mestiçagem dos sertões da do litoral. São

formações distintas, senão pelos elementos, pelas condições do meio. O contraste

entre ambas ressalta ao paralelo mais simples. O sertanejo tomando em larga escala,

do selvagem, a intimidade com o meio físico, que ao invés de deprimir enrija o seu

organismo potente, reflete, na índole e nos costumes, das outras raças formadoras

apenas aqueles atributos mais ajustáveis à sua fase social incipiente.

É um retrógrado; não é um degenerado. Por isto mesmo que as vicissitudes

históricas o libertam, na fase delicadíssima da sua formação, das exigências

desproporcionadas de uma cultura de empréstimo, prepararam-no para a conquistar

um dia (CUNHA, 1998, p. 110).

Percebe-se que este sertanejo é um ser que não é, nem faz parte da nação brasileira,

porque como são grupos atrasados e “retrógrados”, levariam um tempo para alcançar a

civilização.

Diferentemente do olhar de Euclides, Guimarães Rosa apresenta o sertanejo, com suas

características, boas ou más, justas ou injustas, certas ou erradas, constituintes da identidade

nacional brasileira.

Ao longo do romance, constroem-se diferentes perfis de jagunços, revelando a existência

da diversidade identitária cultural, tanto no sertão como no Brasil-nação e que mesmo

possuidor de tal diversidade, convive ora em harmonia ora em conflitos.

Um dos perfis expostos no romance: Medeiro Vaz - chefes da jagunçagem –, transmite

confiança e representa justiça “com mão leal, não variava nunca, não fraquejava” (ROSA,

2001, p. 52). Ele possuía propriedades de terras, gados e heranças de fazendas, entretanto

deixou tudo isso para trás para se tornar jagunço, ter a sua própria lei e “impor justiça”

(ROSA, 2001, p. 60), porque presenciava no sertão atos que o incomodavam e o afligiam: “foi

impossível qualquer sossego, dede em quando aquele imundo de loucura subiu as serras e se

espraiou nos gerais” (ROSA, 2001, p. 60). Estas “loucuras” são mais um dos retratos do

Brasil: as desigualdades, os conflitos; e Guimarães Rosa mostra um dos motivos de um

homem que possui riquezas deixar tudo e transformar-se em jagunço – fazer a justiça que falta

ao Brasil, mesmo que para isso se utilize de violência:

A palavra “jagunço” e a instituição da jagunçagem revestem-se, assim, de

importância estratégica para se compreender o fenômeno da violência e do crime no

Brasil. Ao retratar o país sob o ângulo da jagunçagem, Guimarães Rosa traz à tona

o componente da violência que está na origem de todo poder constituído. No

enfoque de considerar Grande Sertão: Veredas uma reescrita crítica d‟Os Sertões,

pode-se dizer, com uma formulação extrema, que esse romance, narrado por um

jagunço letrado, coloca em debate a maneira tendenciosa e arbitrária com que o

letrado Euclides da Cunha apresenta o jagunço (BOLLE, 2004, p. 91-2).

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Outro líder dos jagunços louvado no romance é Joca Ramiro, outra representação de

justiça e bondade:

Quando conheceu Joca Ramiro, então achou outra esperança maior: para ele

[Medeiro Vaz] Joca Ramiro era único homem, par-de-frança, capaz e tomar conta

deste sertão nosso, mandando por lei, de sobregovêrno. Também igualmente saía

por justiça e alta política, mas só em favor e amigos perseguidos; e sempre

conservava seus bons haveres (ROSA, 2001, p. 60).

Joca Ramiro é a possibilidade de melhorias no sertão, um homem que é tão justo que cria

um julgamento no sertão, onde todos têm voz e vez, onde independente de sua classe, o seu

lugar na hierarquia social dos jagunços, todos têm a possibilidade de expressar seu pensar. É o

que acontece no julgamento de Zé Bebelo (ROSA, 2001, p. 270). Os líderes falam o que

pensam e os subalternos também, todos possuem direitos iguais: “Que por aí, no meio de

meus cabras valentes, se terá algum que queira falar por acusação ou para defesa de Zé

Bebelo, dar alguma palavra favor dele? Que pode abrir a boca sem vexame nenhum...”

(ROSA, 2001, p. 287).

Infelizmente a esperança que Joca Ramiro representa para o sertão é tirada por

Hermógenes, um dos líderes do grupo dos jagunços, pois este o assassina e é esta traição

estimula o ódio e a vingança nos membros do grupo.

Outra faceta de identidade mostrada no romance é o Zé Bebelo, homem sonhador que

embora jagunço, deseja acabar com a jagunçagem no sertão, ser deputado. Ele representa a

política:

Ah, cujo vou, siô Baldo, vou. Só eu que sou capaz de fazer e acontecer. Sendo

porque fui eu só que nasci para tanto! Dizendo que, depois, estável que abolisse o

jaguncismo, e deputado fosse, então reluzia perfeito o Norte, botando pontes,

baseando fábricas, remediando a saúde de todos, preenchendo a pobreza, estreando

mil escolas (ROSA, 2001, p. 147).

É possível perceber como Guimarães apresenta através deste personagem, as tentativas

dos povos que vivem uma cultura diferente dos jagunços, (por exemplo, os políticos)

reconfigurar e modelar a vida dos sertanejos, possibilitando uma “civilização” àquele povo.

Entretanto como ele queria acabar com os jagunços, com a mesma prática de jagunçagem?

Acabar com o sistema jagunço com o sistema jagunço? Essa situação assemelha-se com a

guerra de Canudos. Os republicanos diziam que os moradores de Canudos eram seres

bárbaros, violentos e cruéis e que deveriam ser “exterminados” para que não atrapalhassem o

progresso na nação, entretanto para isso eles utilizaram as mesmas atitudes, ou ainda mais

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27

violentas, ou seja, tentaram “consertar” aquele povo “bárbaro” com barbaridades. É uma

grande contradição visível no Brasil. Líderes e governantes falam mas agem de forma

diferente, são os paradoxos dos brasileiros, presentes também no projeto de construção da

identidade nacional brasileira. Procura-se uma representação própria para o Brasil, entretanto

negam as identidades marcadamente nacionais como os sertanejos, por exemplo, e se

inspiram em culturas fortemente influenciadas por uma civilização européia.

Zé Bebelo transforma-se também em um dos lideres dos jagunços. E esta identidade

apresenta o desejo de obter conhecimento, jagunço também pensa, também quer aprender,

também é capaz de transformar:

Zé Bebelo – ah. Se o senhor não conheceu esse homem, deixou e certificar que

qualidade e cabeça e gente a natureza dá, raro de vez em quando. Aquele queria

saber tudo, dispor de tudo poder tudo, tudo alterar. [...] Senhor ouve e sabe? Zé

Bebelo era inteligente e valente (ROSA, 2001, p. 92).

Há também em Grande Sertão: Veredas, a representação do mal, no jagunço Hermógenes,

já citado anteriormente. Homem que inspira desconfiança, maldade, “era positivo pactário”

(ROSA, 2001, p. 424), “era fel dormido” (ROSA, 2001, p. 186). Esta identidade representa o

mal pelo mal, sem uma “causa justa” para viver, “tem gente neste aborrecido mundo que

matam só pra ver alguém fazer careta” (ROSA, 2001, p. 28). É a injustiça, a maldade, a

vingança, a traição e é o causador das guerras e mortes no sertão: “Só o Hermógenes

arrenegado, senhoraço, destemido. Rúim, mas inteirado, legítimo, para toda certeza, a

maldade pura. Ele, de tudo tinha sido capaz, até de acabar com Joca Ramiro, em tantas

alturas” (ROSA, 2001, p. 425).

Todas estas identidades marcadas e destacadas são exemplos de uma cultura sertaneja. E

esta representa uma história de tradição, poder, crenças, valores, honra, justiça, manifestações

folclóricas e míticas, envolve o imaginário, o sagrado, o mistério, o real e o ireal, identidade

que revela o oculto e o “indizível”, mas de uma maneira de ser mágica e envolvente que

cativa desde a criança ao adulto que já se acha cheio de certezas, desde o ignorante ao homem

da ciência que se pergunta: “Será”? Como esta identidade não se extingue e ainda sobrevive

no mundo moderno como o que é hoje? Não se extingue por que caracterizam a cultura de um

grupo forte, os jagunços, que “apesar de...” (sobre)vivem. E todas estas características fazem

parte também da identidade cultural do Brasil, pois não se deve chamar identidade cultural de

uma nação apenas um grupo ou comunidade cultural única, mas sim identidade multicultural,

aceitando as diversidades e promovendo o envolvimento dos vários grupos culturais que

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retratam o Brasil. Como foi possível visualizar, a identidade dos jagunços, embora a exclusão

e a o perfil estigmatizado, conseguem ser seres culturais por construção mesmo que para isso

seja de maneira rebelde, “jagunçada” e à revelia.

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2 O EU E O OUTRO: RIOBALDO, UM JAGUNÇO FILOSÓFICO.

Guimarães Rosa ao construir a identidade cultural do jagunço em Grande Sertão:

Veredas, quebra a concepção pré-formada do jagunço brasileiro. É possível visualizar essa

quebra no jagunço Riobaldo. Um jagunço inteligente, letrado, apaixonado e, principalmente,

questionador e filosófico.

Ao longo do romance, o anti-herói2 rosiano tece um monólogo com um suposto doutor

3,

sobre a vida no sertão, suas leis, sua cultura; entretanto, esses questionamentos e “conselhos”

sobre a vida não se restringem apenas ao ambiente sertanejo, são questionamentos universais

que transcendem ao espaço geográfico e não-geográfico do sertão.

Riobaldo, ao narrar suas épicas da jagunçagem, retorna a um passado que vem delineando

sua origem, sua personalidade, sua identidade: é a grande travessia do ser humano, a

descoberta de si mesmo. E ao fazer esse movimento constante de transitar entre o passado, o

presente e o futuro, Riobaldo vai destrinchando as veredas do seu “eu” - formadas a partir,

principalmente, do olhar de um “outro” –, apresentando-se com uma identidade não fixa e, a

todo instante, questionando-se e em contínuo estado de metamorfose. Esta identidade

transforma-se, porque ela se questiona, interpela-se, é uma identidade introspectiva e

filosófica. Este capítulo analisa o itinerário escolhido pelo narrador do romance para se definir

enquanto identidade cultural, que viaja nas veredas do sertão exterior e interior do ser humano

e tal como o local influencia-se, na maioria das vezes, pelo olhar do outro na busca constante

do homem em descobrir-se enquanto ser individual e coletivo, ao mesmo tempo.

2 Anti-herói é o termo que se emprega para alguém que protagoniza atitudes referentes às do herói clássico, mas

que não possuem vocação heróica ou que realizam as façanhas por motivos egoístas, de vaidade ou de quaisquer

gêneros que não sejam altruístas. São personagens não inerentemente maus e que, às vezes, até praticam atos

moralmente aprováveis. Contudo, algumas vezes é difícil traçar a linha que separa o anti-herói do vilão; no

entanto, note-se que o anti-herói, diferente do vilão, sempre obtém aprovação, seja através de seu carisma, seja

por meio de seus objetivos muitas vezes justos ou ao menos compreensíveis, o que jamais os torna lícitos.

Além dos que buscam satisfazer seus próprios interesses, há também os que sofrem desapontamentos em suas

vidas, mas persistem até alcançar o ato heróico. Ainda há o tipo de anti-herói que é bem próximo do herói, mas

segue a filosofia de que “o fim justifica os meios”. 3 É relevante dizer que, embora haja duas pessoas envolvidas em um possível diálogo entre Riobaldo e o seu

interlocutor, o que de verdade realiza-se é um monólogo, no qual apenas o jagunço fala e julga-se inferior a seu

ouvinte, que é doutor da cidade: “Sou só um sertanejo, nessas altas idéias navego mal. Sou muito pobre coitado.

Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração” (ROSA, 2001, p. 30). O que

se percebe é que Guimarães inverte os papéis definidos na sociedade, e como afirma Bolle (2004) é o sertanejo

que é o dono absoluto da fala, e o doutor da cidade é reduzido a um simples ouvinte “a inversão dos papéis

costumeiros é uma estratagema de Guimarães Rosa para chamar atenção sobre o desequilíbrio de falas entre as

forças sociais” (BOLLE, 2004, p. 40).

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2.1 O viver perigoso: a travessia de Rio (Baldo) ou a travessia de si mesmo.

Riobaldo, personagem central de Grande Sertão: Veredas, um ser que procura encontrar-

se com uma identidade estável e formada; entretanto, em todo o enredo, percebe-se um sujeito

fragmentado, desorientado, em busca do reconhecimento de sua identidade.

De acordo com Hall, “[...] as velhas identidades que, por tanto tempo estabilizaram o

mundo social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmentando o

indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado” (2006, p. 7). Uma identidade

não estável diante do caos do mundo pós-moderno: Riobaldo é um personagem que, ao

questionar e procurar respostas sobre a vida, envereda-se em um processo de formação

identitária, tanto para si mesmo como para o “outro” que participa, direta ou indiretamente,

deste processo.

O romance de Rosa, Grande Sertão: Veredas, tem a travessia do rio São Francisco feita

por Riobaldo, ainda criança, com o “menino mocinho”, Diadorim como uma das primeiras

cenas marcantes:

Aí pois, de repente, vi um menino, encostado numa árvore, pitando cigarro.

[...]

Mas eu olhava esse menino, com um prazer de companhia, como nunca por

ninguém eu tinha sentido. Achava que ele era muito diferente, gostei daquelas finas

feições, a voz mesma, muito leve, muito aprazível.

[...]

Ele se sentou. Mas, sério naquela sua formosa simpatia, deu ordem ao canoeiro,

com uma palavra só, firme mas sem vexame: - Atravessa!

[...] Eu tinha o medo imediato.

[...]

Quieto, composto, confronte, o menino me via – “carece do ter coragem...” -ele me

disse.

[...]

O menino está molhando as mãos na água vermelha, esteve tempo pensando.

Dando fim, sem em encarar, declarou assim: “Sou diferente de todo o mundo. Meu

pai disse que careço de ser diferente, muito diferente...”. E eu não tenho medo mais.

Eu? O sério pontual é isto, o senhor escute, me escute mais do que estou dizendo; e

escuta desarmado. O sério é isto, da estória toda – por isto foi que a estória eu lhe

contei -; Eu não senti nada. Só uma transformação, pesável [grifo meu]. Muita

coisa importante falta nome (ROSA, 2001, p. 118-125).

Essa travessia realizada por Diadorim e Riobaldo foi uma de suas primeiras. Principia

com a mudança que representará o início de uma travessia maior que a física para o narrador

de Grande Sertão: Veredas: a travessia que transcende o espaço do sertão, adentrando as

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veredas interiores de Rio(Baldo), o rio que é baldo4, que falta, que carece, um ser que sente a

necessidade de algo que o complete e que o preencha para a grande travessia do homem, a

descoberta de si mesmo, atravessar os mares da dúvida, da insegurança, do medo de ser um

“eu” real e, como afirma Márcia Morais, “através das „más devassas no contar‟ de Riobaldo,

se pôde perscrutar (ainda que por breve amostragem friso) um sujeito, buscando encontrar-se

como um eu perdido e marcando-se como individualidade, ao atravessar seus fantasmas

míticos e primitivos” (2001, p. 170).

Neste primeiro encontro de Riobaldo e Diadorim, o narrador do romance de Rosa percebe

a sua necessidade de fazer a travessia, evoluir de uma identidade ainda vazia e estéril a uma

identidade que se estabeleça enquanto um ser autônomo e mais “eu”, seguro e corajoso. Essa

evolução representa uma transição do estágio de uma identidade insegura, medrosa, instável e

que não reconhece seus desejos e objetivos de vida, como é o caso de Riobaldo; ele

desconhece a razão e o sentido para viver e se encontra no meio da jagunçagem

involuntariamente despercebido quanto ao significado da travessia do sertão interior e

exterior; esta travessia talvez o conduza ao estágio de uma identidade forte, determinada,

segura, apta ao delineamento de metas, firme quanto aos desejos próprios, resistente aos

moldes contínuos de outros; uma identidade cultural múltipla, mas que precisa ter suas

individualidades definidas, já que Riobaldo possui uma identidade fortemente influenciada

por esses “outros”.

Em Diadorim, o menino moço, Riobaldo visualiza um ser, um molde a seguir de uma

identidade completa e formada:

Em todo o episódio Diadorim já era Diadorim, estava pronto, e a atração que

Riobaldo sentiu por ele não era tanto devida a sua ambigüidade, uma menina

vestida de menino, do que ele nem desconfiava, mas devido ao seu acabamento, por

ele ser tudo aquilo que ele não era e, talvez invejasse e gostasse de ser. Foi aí que

Riobaldo o elegeu como modelo a ser alcançado e Diadorim o adotou como alguém

carente, que precisava de cuidados e proteção (RONCARI, 2004, p. 68).

Riobaldo ao narrar a sua saga de jagunço desde a sua primeira travessia até a vitória

contra os “hermógenes5”, vai tecendo o encontro e a descoberta de si mesmo. A sua travessia

por todo o sertão com a finalidade de vingar a morte de Joca Ramiro, pai de Diadorim;

representa também, um viagem de auto-conhecimento, esse “viver perigoso” mencionado

4 Segundo Aurélio, baldo apresenta duas acepções: “barragem ou parede para represar as águas de um açude”;

“falso, falho, carecido, carente. Que, no carteado, não tem determinado naipe” (FERREIRA, Aurélio Buarque de

Holanda. Novo dicionário da Língua Portuguesa. 2. ed. rev. e amp. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p.

224. 5 Palavra, aqui, escrita em minúsculas para seguir a estrutura do livro em análise.

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pelo personagem de Grande Sertão: Veredas, diversas vezes no romance. O perigo de se

descobrir enquanto ser individual e, ao mesmo tempo, coletivo, ainda não formado, que

precisa de uma grande travessia do sertão interior, que há dentro de cada coração, cada

essência e identidade para se auto-firmar. Atravessar o sertão que há dentro de si e todas as

veredas da alma humana: seus medos, seus fantasmas, suas fragilidades. Riobaldo fala da

travessia do sertão, do rio, de Rio(baldo); ele é o próprio rio que atravessa as veredas do

sertão interior, o rio que transmite medo e ao mesmo tempo é guia, rio com águas baldias ora

escuras ora vermelhas, e só no fim, claras como os olhos de Diadorim, no momento de sua

morte, quando ele descobre a mulher em seu jagunço-amor. Este Rio(baldo) tenta desbravar

tanto um sertão indomável como o seu interior, investigado, analisado, questionado e

atravessado; um sertão em que poucos conhecem, a que poucos têm acesso e ao analisar

questões filosóficas sobre a vida, o medo, o amor, o crer/não crer, o homem, a vingança, de

forma introspectiva tentando descobrir o sertão que povoa sua alma, esse ser ainda em

formação. E o próprio Riobaldo reconhece diante do seu interlocutor, o doutor, que não está

apenas narrando um sertão visível a todos, ele reconhece em seu monólogo, que narra um

sertão visualizado por poucos que se arriscam a entrar ou enveredar-se pelos seus diversos

caminhos sem se perder ou perder de vista o ponto de chegada; é um sertão que transcende o

espaço físico e geográfico e concentra-se no interior de cada ser humano, este é o grande

desafio:

Eu queria decifrar as coisas que são importantes. Estou contando não é uma vida de

sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente. Queria entender do medo e da

coragem, e da gã que empurra a gente para más ações estranhas, é que a gente está

pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe, não sabe! [...]

Assim é como conto. Antes conto as coisas que formaram passado para mim com

mais pertença. Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Do que não sei. Um grande

sertão! Não sei [grifo meu]. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas –

e só essas poucas veredas, veredazinhas (ROSA, 2001, p. 116).

Nestes dois sertões, interior e exterior, constrói-se a identidade de Riobaldo, em seus

questionamentos, em suas teorias, em sua filosofia de vida. Identidade que se forma em

relação a um “outro” e a um meio que estimula um ser social que é produzido:

Não é fácil concordar com o fato de que, do ponto de vista sociológico, toda e

qualquer identidade é construída. A principal questão, na verdade, diz respeito a

como, a partir de quê, por quem, e para quê isso acontece. A construção de

identidades vale-se da matéria-prima fornecida pela história, geografia, biologia,

instituições produtivas, pela memória coletiva e por fantasias pessoais, pelos

aparatos de poder e revelações de cunho religioso (CASTELLS, 2006, p. 23).

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A identidade cultural deste jagunço é reflexo de tudo que ele narra, o seu passado,

presente e futuro no sertão, formando e modelando este ser cultural e o aspecto importante

destacado no romance por Guimarães Rosa, através de seu personagem, é a possibilidade

desta construção e/ou transformação identitária, tanto de “formar” ou “desformar” o “eu”: “O

senhor ... Mire e veja: o mais importante e bonito do mundo, é isto: que as pessoas não estão

sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou

desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou” (ROSA, 2001, p. 39), como ele, que

ainda não está completo. Isto porque, entre outros motivos, a identidade cultural do sujeito

pós-moderno está em mutação constante, influenciado principalmente por elementos diversos

que constituem a multiplicidade do sujeito:

Como há em nós identidades contraditórias, nossas identificações estão sendo

continuamente deslocadas, em função de elementos nacionais, culturais, de gênero,

de classe social, de posição política e religiosa, enfim, das várias identificações que

formam o sujeito mosaico de nossa era (FIGUEIREDO; NORONHA, 2005, p. 191).

E nesta travessia Riobaldo se (re)descobre e tenta formar uma identidade que o faça se

reconhecer. Entretanto, esta não é uma tarefa única do “eu” de Riobaldo. Para que consiga

realizar a travessia, ele sofre a influência de um fator decisivo nesta construção identitária: o

olhar do “outro”, e a essência desse “outro” participa diretamente da formação do “eu” do

jagunço rosiano.

2.2 “Mire e Veja”: Riobaldo, a identidade dialética.

O jagunço Riobaldo narra toda a sua história a um interlocutor que não participa

diretamente do memorial de vida deste contador de sagas. É um “outro” que apenas ouve este

contar. Todavia, há “outros” narrados neste “prosear” que dialogam com a identidade de

Riobaldo, significando mais que ouvintes passivos ou meros indivíduos que passaram na

travessia de Riobaldo, são “outros” que marcaram e fizeram parte da formação identitária

deste jagunço.

O olhar do “outro” em toda a história da humanidade representou e representa um fator

importantíssimo na formação do “eu” do ser humano. É um olhar que penetra intimidando-o a

não ser livre e autônomo em relação à própria identidade. É a presença do “outro” que muitas

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vezes, determina e/ou atrapalha a ação do “eu” como um juiz e um revelador da formação do

“eu”:

No humanismo existencialista sartreano, a transcendência é a superação do Homem

dada por este movimento de projetar-se no Outro e de retorno a si mesmo. É

superação enquanto que constante construção do Eu, um constante vir a ser. Com

isto, o conceito de transcendência transcendida corresponde à própria existência do

Outro que confere à minha transcendência um atributo de estar fora de, externa ao

Eu. O Outro transcende a minha transcendência (JACOBY; CARLOS, 2005, p. 50).

Riobaldo é um “eu” em formação que estabelece uma relação constante com o “outro”

para constituir-se enquanto identidade cultural no sertão brasileiro. “Riobaldo não é um

sujeito pronto” (RONCARI, 2004, p. 60), é uma identidade em construção que “[...] seguia

um modelo materno, feminino, guiados pelos afetos e vivia o vazio da falta do pai, o que o

obrigava a buscá-lo fora, entre os outros homens que cruzavam o seu caminho e que ele

admirava, respeitava ou odiava” [grifo meu] (RONCARI, 2004, p. 61). E a partir destes

“outros”, que apareciam em sua travessia pelos dois sertões, o interno e o externo, esta

identidade se projetava e se estabelecia, ora assimilando a sua identidade características que

ele percebia neste “outro”, ora as rejeitava, tentando assim, definir sua personalidade, o seu

próprio “eu”.

Riobaldo demonstra no romance insegurança diante do que ele era e o que não era: “Antes

o que me atanazava, a mor – disso crio razoável lembrança – era o significado que eu não

achava lá, no meio onde eu estava obrigado, naquele grau de gente” (ROSA, 2001, p. 196).

Era um ser que por não saber quem era, frustrava-se por não se reconhecer em lugar nenhum,

não se encontrava, não sentia prazer em suas ações como os outros tinham:

[...] conheci que estava chocho, dado no mundo, vazio de cada banda que eu fosse, e

eram pessoas matando e morrendo, vivendo numa fúria firme, numa certeza, eu não

pertencia a razão nenhuma, não guardava fé e nem fazia parte (ROSA, 2001, p. 158).

A sua insatisfação com a vida era devido, entre outros motivos, a sua identidade não

formada, em construção. E neste processo, a identidade do “outro” que o circundava,

dialogava com sua identidade, a qual influenciava sua formação. Identidades boas ou más,

frágeis ou fortes, corajosas ou sensíveis, todas elas faziam parte da formação desse “eu” em

sua travessia.

Entre esses “outros” que participaram da formação identitária do jagunço Riobaldo, Joca

Ramiro e Medeiro Vaz foram dois chefes justos e corajosos que cruzaram o caminho do

narrador de Grande Sertão: Veredas:

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Contracenando com a figura de Hermógenes, estão Joca Ramiro e Medeiro Vaz,

através dos quais se exibem os signos da justiça, da ordem, da autoridade, da

obediência, da glória, da amizade, da prudência, da bondade, da honra, do poder

benéfico (HOISEL, 2006, p. 150).

Esses chefes influenciaram a formação identitária de Riobaldo, com seus códigos de honra

e justiça, jagunços que estimularam a admiração deste, respeito e obediência:

[...] Joca Ramiro era único homem, par-de-frança, capaz de tomar conta deste

sertão nosso [...]. Fato que Joca Ramiro também igualmente saia por justiça e alta

política, mas só em favor de amigos perseguidos; e sempre conservava seus bons

haveres. Mas Medeiro Vaz era duma raça de homem que o senhor mais não vê; eu

ainda vi (ROSA, 2001, p. 60-1).

Havia também um “outro” que dialogava e fazia parte da constituição da identidade de

Riobaldo, um terceiro chefe: Zé Bebelo. Um jagunço sonhador que se interessava em questões

políticas. Entretanto Riobaldo tinha um “outro” que apesar de representar o mal, a crueldade e

a injustiça, também fazia parte da constituição da identidade do narrador, de Grande Sertão:

Veredas: “Em diversas passagens da fala de Riobaldo, ele pontua sua identidade com

Hermógenes, portanto, com as forças maléficas, com o mundo desgovernado dos jagunços”

(HOISEL, 2006, p. 152).

Com esse mal, essa traição, esse crime e esse poder maléfico, representados por

Hermógenes, a identidade de Riobaldo também dialoga. Esta identidade cultural de Riobaldo,

destacado por Rosa em Grande Sertão: Veredas é uma identidade fragmentada e constituída

por diversos “outros” e “eus” que fizeram a travessia com Riobaldo, não só esses personagens

citados, mas todos aqueles que estabeleceram um diálogo e uma relação de troca com esse

“eu” que faz uma viagem ao narrar a sua própria história de vida de jagunço no sertão

inventado por Guimarães Rosa, como defende Evelina Hoisel:

No meio do turbilhão, das ondas, Riobaldo foi um Hermógenes, um Joca Ramiro, o

que atesta ainda essa ambivalência constitutiva do jagunço Riobaldo. [...] Como

chefe jagunço, Zé Bebelo não tem a dimensão que caracteriza os dois grandes

chefes Joca Ramiro e Medeiro Vaz. Entretanto, é através dele que Riobaldo

compreende o significado da guerra sem fim e perversa do sertão, pois Zé Bebelo

não tem interesses definidos, a não ser a própria guerra (2006, p. 153-4).

Estes tipos de identidade, identidades dialéticas, que o personagem Riobaldo tenta

concluir a sua travessia. Dialéticas porque são contraditórias, mas que constitui o “eu” de

Riobaldo, são identidades diferentes e opostas que formam a unidade imaginada do narrador-

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Riobaldo, oposições que se unem, se entrelaçam, se enveredam por um Rio(baldo) que

assimila as identidades outras que o circundam e o rodeiam, embora a diferença e oposições:

bem/mal, forte/fraco, Deus/Diabo, mulher/homem; “Pode-se afirmar que as identidades,

complexas e múltiplas, nascem de uma oposição a outras identidades, baseando-se em

formações discursivas imaginárias e não na razão” (FIGUEIREDO; NORONHA, 2005, p.

202). Riobaldo é o resultado das suas vivências com essas identidades dialéticas, oposições

que se resolvem em unidades provisórias:

A dialética é o princípio de todo o movimento e de toda a atividade que

encontramos na realidade. Tudo o que nos rodeia pode ser considerado como uma

instância da dialética. Sabemos que tudo o que existe como finito, em vez de ser

estável e último, é antes mutável e transitório. Essa dialética é manifesta no

movimento dos corpos celestes, nas revoluções políticas, desde a anarquia até o

despotismo, como também nas oscilações emocionais. Tudo o que existe envolve

aspectos opostos e contraditórios, pois a contradição é a força propulsora do

mundo.

[...]

Os termos comuns no método da dialética são: identidade, distinção, oposição,

contradição [grifo do autor]. O princípio de identidade é dinâmico, é uma força

ativa de identificação no Espírito. A atividade identificadora se realiza

progressivamente, superando a desigualdade que se manifesta no decorrer do

processo dialético; ela é a autoconsciência que se realiza e reconhece através das

suas próprias determinações. A identidade contém dentro de si a diversidade e a

distinção: só o diverso e o distinto se verificam e identificam (GILES, 1979, p. 20-

1).

São estas identidades dialéticas que o narrador-Riobaldo procura estabelecer em si

enquanto ser cultural autônomo. Todavia, para alcançar seu objetivo de descobrir a si mesmo,

pelas veredas do sertão, ao mesmo tempo em seu sentido restrito e amplo, Riobaldo questiona

e interroga a si mesmo a respeito desta identidade que se forma, questionadora, mas que o

impulsiona ao mundo tão dialético quanto ele mesmo.

2.3 Riobaldo: interrogando identidade

Mas afinal quem é esse que questiona a identidade? Quem é esse ser filosófico que

discorre opiniões e conselhos sobre a vida do homem? Uma identidade que interroga sobre si

mesmo, sobre seus medos, suas angústias, o seu “eu”, seu amor, sua força e sua fé: “o jagunço

Riobaldo. Fui eu? Fui e não fui. Não fui! – por quê? Não sou eu, não quero ser” (ROSA,

2001, p. 232). Riobaldo é aquele que se encontra no “outro” e foge dessas descobertas. Ele

convive em todos os tempos do romance, passado, presente e futuro, em uma constante

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interrogação: o que é bom e o que é mal? Deus existe? O diabo existe? É uma personagem

que persiste em questionar e não encontrar respostas concretas, só aprendeu que é preciso

completar a travessia, viver não. Riobaldo pergunta: “Quem sabe direito o que uma pessoa

é?” (ROSA, 2001, p. 285), esta é a interrogação que ele lança e o que ele sabia era que a sua

identidade não era formada ainda: “Então, eu não era jagunço completo” (ROSA, 2001, p.

374). Riobaldo reconhecia sua falta e o que o preocupava bastante, era a ausência das

respostas para as suas inquietações, seus questionamentos diante desta sociedade a qual, traça

uma linha tênue separando os lados opostos, como o bem e o mal, o certo e o errado, Deus e o

diabo, o belo e o feio e, nessa sociedade, o ser humano encontra-se em uma grande

encruzilhada para decidir por qual vereda seguir, qual postura assumir em sua totalidade, isto

porque, no mundo maniqueísta que se vive atualmente, uma alternativa exclui a outra

totalmente:

Que isso foi o que sempre me invocou, senhor sabe: eu careço de que o bom seja

bom e o rúim ruím, que dum lado esteja o preto e do outro o branco que o feio fique

bem apartado do bonito e a alegria longe da tristeza! Quero todos os pastos

demarcados... como é que posso com este mundo?[grifo meu]. A vida é ingrata no

macio de si; mas transtraz a esperança mesmo do meio do fel do desespero. Ao que,

este mundo é muito misturado... [grifo meu] (ROSA, 2001, p. 237).

Ele relata a realidade da sociedade maniqueísta, mas no final do trecho, pergunta: “Como

é que posso com este mundo?” (ROSA, 2001, p. 237). O que fazer diante dessa exigência de

separações sendo que “este mundo é muito misturado...”? (ROSA, 2001, p. 237). Rosa, ao

expor essa situação através das dúvidas e interrogações do jagunço Riobaldo, expõe

simultaneamente as dificuldades a que o sujeito pós-moderno está exposto na busca e

definição de sua própria identidade, uma travessia difícil e repleta de incertezas.

Riobaldo persiste com a idéia de que existe a separação das coisas, que há a

predominância da visão maniqueísta da sociedade:

O que mais digo: convém nunca a gente entrar no meio de pessoas muito diferentes

da gente [...] O que assenta justo é cada um fugir do que bem não se pertence. Parar

o bom longe do ruim, o são longe do doente, o vivo longe do morto, o frio longe do

quente, o rico longe do pobre (ROSA, 2001, p. 405).

É uma crítica feita com veemência à divisão do pensamento, pois “[...] ao que, este mundo

é muito misturado” (ROSA, 2001, p. 237). É a diversidade na unidade. Riobaldo aponta a

segregação, entretanto, ele reconhece que é impossível manter uma linha divisória. O próprio

Riobaldo vive se questionando entre pontos opostos, todavia não se decide apenas por uma

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alternativa, ele transita entre as oposições, ora sendo uma ora sendo outra, retratando

justamente o sujeito pós-moderno, fragmentado e não estável, citado por Hall (2006).

Sujeito pós-moderno, este, que mesmo fragmentado, faz parte de um todo que constitui a

identidade cultural de uma nação; neste caso, o jagunço do sertão, é uma parte que forma o

mosaico-Brasil, com sua grande diversidade cultural. Embora o povo do sertão tenha sido

marginalizado naquilo que foi considerado na história como nacional, ele é um grupo que

possui uma riqueza cultural digna para fazer parte deste Brasil múltiplo, é a parte do todo,

expondo a diversidade na unidade. Mais uma identidade cultural que busca o seu

reconhecimento:

Fala-se em identidade cultural quando se quer referir a grupos que não se apóiam em

um Estado-Nação, mas que reivindicam a pertença a uma cultura comum. Nesse

caso, não se mobiliza a referência geográfica, e a tendência desses movimentos é ser

transnacional, baseando-se em categorias tão diversas como raça, etnia, gênero,

religião. Todavia, também nesse caso, trata-se de determinar um patrimônio comum

e difundi-lo. Isso implica na revisão da história e no questionamento da cultura

hegemônica, que não os incluiu na busca de antepassados, na criação de uma

linhagem, na escolha de símbolos e até mesmo, por vezes, no estabelecimento, senão

de uma língua, ao menos de uma linguagem.

Os processos de construção de identidade coletiva, nacional ou cultural, são,

todavia, similares no que tange ao estabelecimento de um modelo com o mesmo

fim, ou seja, o reconhecimento. O que os distingue, como explica Taylor, é o fato de

que, quando se trata de grupos minoritários, ser reconhecido não é uma

“necessidade”, mas uma “exigência” junto aos interlocutores com os quais esses

grupos, cada vez mais específicos e numerosos nas sociedades democráticas,

dialogam (FIGUEIREDO; NORONHA, 2005, p. 200).

Percebe-se, portanto, que este sujeito confuso, dividido e que procura o seu auto-

reconhecimento, prossegue a sua travessia, em descobrir o sertão interior e o exterior,

questionando-se e interrogando as razões de ser do mundo, do sertão e do “eu” em sua épica

filosófica, marcando a sua diferença perante o estereotipo criado a cerca do jagunço brasileiro.

Guimarães Rosa, ao criar o personagem Riobaldo, um novo jagunço, estabelece uma

identidade cultural que tenta desconstruir a concepção popular de jagunço, o qual,

compreende em sua trajetória pelas veredas identitárias, o lirismo rosiano em sua revisão do

ser(tão), que será analisado no próximo capítulo.

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3 LIRISMO X ROSA: UMA DIALÉTICA REVISÃO DO SER(TÃO).

Guimarães Rosa traça a travessia do sertão através de Riobaldo, em Grande Sertão:

Veredas, vinculada à travessia existencial. A descoberta dos sertões e suas veredas. São

construções e maneiras diferentes de visualizar o sertão, o Grande Sertão e o jagunço o Brasil.

A história brasileira e também a literatura construíram definições sobre o sertão e os seus

jagunços de maneira, muitas vezes, excludentes ou pejorativas. A imagem do jagunço foi

vinculada, até mesmo pela imaginação do popular, ao insensível, à violência, ao vazio de

sentimentos e emoções dentre outras construções e conceitos a respeito dos jagunços e seu

modo de vida.

Rosa, entretanto, ao criar o sertão em Grande Sertão: Veredas, desconstrói conceitos,

reinventa e/ou recria um sertão diferente, e um jagunço que quebra com os preconceitos

estabelecidos pela sociedade; é uma revisão dialética do ser(tão), no qual, o escritor mineiro,

deixa transparecer a lírica em um jagunço, uma identidade cultural, que, para muitos, seria

incapaz de carregar, em sua essência, esta característica enquanto sujeito individual/coletivo.

Neste capitulo, investiga-se a maneira como Rosa cria um jagunço que transborda lirismo

e emoções em um sertão que transcende ao espaço físico e geográfico; um sertão que é

poetizado através da lírica de um jagunço filosófico e tem o dom da dialética.

3.1 Literatura e cultura: interstícios inaugurais da imagem jagunça.

Guimarães Rosa foi um escritor que soube representar o sertão brasileiro, na literatura,

com grande maestria e inteligência. Rosa transformou a tradição literária não apenas por sua

revolução e “reativação6” da palavra e sua linguagem, mas também pela sua leitura de mundo

através de seus personagens e suas histórias. Rosa apresenta o primitivo universo do sertão

6 Guimarães pode ser considerado um reativador da palavra, justamente por ir à essência da palavra, exaltando o

seu significado, indo à sua origem e seus reflexos, para reativar o poder das palavras que, muitas vezes, já foi

desgastado pelo dia-a-dia, perdendo assim, sua beleza e encanto; a maneira como Guimarães utiliza e reelabora a

palavra, reescrevendo-a em um elaborado jogo da linguagem em suas produções, promove um impacto intenso

no leitor a partir da reflexão provocada pelo seu texto, através do modo particular de uso e significado da palavra

na sua comunicação e linguagem.

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em um contexto de uma sociedade moderna que desconhece e nega a formação de valores do

sertão arcaico brasileiro:

A revolução rosiana que, de início, deixara em perplexidade grandes parcelas da

inteligência brasileira, precisamente aquela em que predomina o ranço conservador,

lentamente começou a criar uma crítica e um auditório predispostos não só à sua

avaliação estilística como ainda em erigir em padrões (os inefáveis epígonos) os

valores que nele se inscrevem [...]

A grande revolução guimarosiana consistiu em romper, dialeticamente (conservá-la,

ultrapassando, no conceito hegeliano), essa forte tradição da inteligência brasileira

(COUTINHO, 2004, p. 479-480).

A partir desta revolução na tradição literária, Rosa traz à tona a questão da cultura

sertaneja no espaço da literatura nacional. Até onde a literatura chegou, até o momento em

que Guimarães não tinha produzido sobre o sertão e suas veredas, para definir e captar a

essência desse espaço físico e existencial? Como foi representada a imagem jagunça como

identidade cultural na nação brasileira?

Vários escritores ao longo da literatura brasileira empenharam-se, intencionalmente ou

não, na tentativa de construir uma identidade cultural sertaneja. Em “A Bagaceira” de José de

Américo publicado em 1928, há, como foco, a identidade do sertanejo retirante. Ao longo do

romance ele aponta e caracteriza aspectos de uma identidade múltipla e rica culturalmente – o

sertanejo. Uma identidade diversa e também fragmentada por uma realidade cruel, a seca,

causadora de tanto sofrimento a um povo tão alegre e forte como o autor expõe neste

romance. A narração do romance inicia-se com a chegada de um grupo de retirantes, pessoas

que vêm fugindo da miséria que alastrava a sua terra, eles vinham “expulsos do seu paraíso

por espadas de fogo, fugiam do sol e o sol guiava-os” (ALMEIDA, 2004, p. 08). A construção

da identidade começa a se estabelecer principalmente neste momento: indivíduos que

pareciam “mais mortos que vivos” (ALMEIDA, 2004, p. 08). A identidade formava-se a

partir do vazio da alma, da essência de vida desses retirantes que migravam sem rumo e como

o narrador afirma: “Não tinham sexo, nem idade, nem condição nenhuma. Eram retirantes,

nada mais”. (ALMEIDA, 2004, p. 08). Suas identidades pareciam ter sido extraídas no

momento em que foram forçados a saírem de sua terra. No final do romance, o narrador de “A

bagaceira” mostra uma outra face da identidade do sertanejo: a esperança renascida com a

“ressurreição” da terra pela chuva. Neste momento, renascem também os sonhos, a fé, as

almas que encontravam-se vazias, “mortas”, no início do romance. Mas infelizmente o ciclo

recomeça; as últimas páginas terminam com a mesma cena dos primeiros capítulos: a seca

novamente. O ciclo da chuva define a identidade sertaneja neste romance.

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Graciliano Ramos, em seu romance Vidas Secas, publicado em 1938, descreve também o

sertanejo com uma formação identitária constituída a partir do ciclo da chuva. A escassez de

água, a seca, forma o sujeito com identidades vazias, por conta, principalmente, da miséria

que os personagens vivenciavam, o homem igualando-se a condição de animal, provocada

pelo meio retratado.

Na produção literária de João Cabral de Melo Neto: Morte e Vida Severina, a identidade

sertaneja construída é a de um sujeito que sofre também a seca do nordeste e tem a

necessidade de exilar-se de sua própria terra em busca de melhores condições de vida. Neste

percurso, Severino, vai traçando “morte e vida severina”, onde nordestinos são iguais:

“Somos muitos severinos iguais em tudo na vida” (MELO NETO, 1994, p. 46), no

sofrimento, na dor e na angústia; todavia procura definir as peculiaridades e as

individualidades do sujeito, ainda que neste espaço de sofrimento e morte: “Como então dizer

quem fala ora a vossa Senhorias?” (MELO NETO, 1994, p. 45). São homens do sertão,

buscando construir a identidade apesar das influências do meio sertanejo.

Em Os Sertões, de Euclides da Cunha, é possível fazer uma comparação entre a identidade

sertaneja criada neste romance com a de Grande Sertão: Veredas. Na obra do jornalista

Euclides da Cunha, apresentam-se dois tipos de sertanejos, um fortemente influenciado por

teorias científicas e preconceituosas; outro presente em “uma narrativa épica, em que os

„jagunços‟ são estilizados em heróis tragicamente extintos” (BOLLE, 2004, p. 38).

Euclides vê o sertanejo totalmente adaptado à vida na caatinga. Ela “reflete” sua

natureza selvagem, é “talhado à sua imagem”, “incostante” como ela, em seus

momentos de exuberância (no “verde”) e penúria extrema (na “seca”). Para

Euclides, a terra condiciona o homem e o homem condiciona a luta, num esquema

determinista, que vinha dos pensadores naturalistas e positivistas do século XIX. Em

“pé-duro” se há uma relação entre ambos, ela é horizontal: homem e natureza

“compertecem”. Em Grande Sertão: Veredas, se a terra, o homem e a luta também

estão presentes, no entanto, não há nenhuma relação causal: “Os três estão mais ou

menos no mesmo plano, todos embaralhados, e não se pode dizer que o homem é

fruto daquele meio. De certa maneira, o homem faz o meio, mas a luta também faz o

homem”7 (FANTINI, 2008, p. 321).

Guimarães cria um jagunço diferente do visto até então. O jagunço Riobaldo é um

diferencial. Apesar de apresentar um jagunço forjado no calor da cultura sertaneja em seu

estado primitivo, arcaico e enraizado em tradições sertanejas, com valores éticos e modos de

7 Ana Luiza citou um trecho da entrevista de Antônio Cândido realizada por ela e Raul Soares gravada para o

documentário: os nomes do Rosa: CANDIDO, Antonio. SP, dez. 1996. Entrevista gravada para o documentário.

Os nomes do Rosa, exibido na GET/NET, em dez de 1997. Roteiro e pesquisa de Ana Luiza Martins Costa e

Raul Soares.

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vidas peculiares ao sertanejo, suas crenças, suas manifestações culturais, é um jagunço

letrado, apaixonado, medroso, com inquietações existenciais e questionamentos. Rosa

consegue reunir, na identidade cultural deste jagunço, oposições que estão em estado de

comunhão, que se cruzam, misturam e se confortam, formando um todo fragmentado e em

constante mutação e reflexão.

Neste jogo identitário, Rosa inaugura, na literatura, uma imagem de um novo jagunço, um

novo constituído também de um antigo, uma identidade cultural que, embora inventado no

sertão geográfico, transcende a esse espaço cultural, universalizando-se, comprovando a sua

grande literariedade. “Detrás da pele áspera do jagunço, há um coração para sempre ferido,

um surpreendente filósofo do amor no sertão do Brasil, sem Henri Byle e sem Denis de

Rougemont: solitário, meditabando, imenso” (FANTINI, 2008, p. 241).

Guimarães estimula a ruptura com o estereotipo criado da imagem jagunça e inaugura

uma nova imagem, uma identidade cultural diferente da pré-formada na imaginação do

popular, é a desconstrução da identidade jagunça no personagem Riobaldo. Um jagunço que

transborda sentimentalismo, emoção, poesia, enfim, que possui a lírica à flor da pele em sua

travessia da vida e do sertão. É a maneira como Rosa expõe a lírica no anti-herói de Grande

Sertão: veredas e a desconstrução do popular que ressignifica uma tessitura de texto singular

em essência e imaginação.

3.2 A lírica e o anti-herói rosiano: a desconstrução do popular.

Rosa abre caminho na literatura brasileira na inauguração da imagem jagunça em Grande

Sertão: Veredas. Ele cria um jagunço que transpira emoção, poesia, sensibilidade e

sentimentos jamais imaginados nesta identidade cultural sertaneja. Um sujeito lírico em suas

narrativas épicas e em sua travessia pelo sertão e suas veredas; nesta viagem introspectiva, o

leitor desta obra reconfigura o que até então visualizava-se neste personagem do sertão, tão

focalizado e discutido: o jagunço brasileiro.

O jagunço estereotipado no pensamento popular foi vinculado sempre à violência, ao

crime, à desordem, à injustiça, à crueldade, à falta de sentimentos e à coragem. Um sujeito

visto como mal encarado, áspero, barroco, “mal polido” e sem habilidade com a linguagem

e/ou expressão oral. Todavia, ao confrontar esta imagem jagunça fixada até então ao jagunço

Riobaldo de Guimarães Rosa é possível visualizar uma ruptura e/ou quebra da construção do

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popular. Isto porque, embora a jagunçagem descrita no romance Grande Sertão: Veredas

apresente aspectos em comum com os já estabelecidos como a violência, o crime, a crueldade,

dentre os fatores citados, é um novo olhar sobre esses mesmos aspectos, e sobre a identidade

cultural deste jagunço:

Os Sertões e Grande Sertão: Veredas, cuja matéria histórica comum a guerra no

sertão, são retratos do Brasil sob o signo da violência e do crime. Os protagonistas

são em ambos os casos os “jagunços”, mas o sentido deste termo nos dois livros é

muito diferente. O nome “jagunços” é atribuído por Euclides da Cunha de forma

bastante arbitrária aos rebeldes religiosos de Canudos, que foram aniquilados pelo

Exercito brasileiro na campanha de 1897, conforme relata o próprio ensaísta. Já em

Guimarães Rosa – que apresenta uma história ficcional (aproximadamente da

mesma época) de lutas de potentados locais, como aliados ou opositores do

Governo, mas sobretudo entre si - , os “jagunços”, de acordo com a acepção mais

comum da palavra, são os capangas ou pistoleiros que constituem aqueles exércitos

participantes.

A palavra “jagunço” e a instituição da jagunçagem revestem-se, assim, de

importância estratégica para se compreender o fenômeno da violência e do crime no

Brasil. Ao retratar o país sob o ângulo da jagunçagem, Guimarães Rosa traz à tona o

componente de violência que está na origem de todo poder constituído. No enfoque

de considerar Grande Sertão: Veredas uma reescrita crítica d‟Os Sertões, pode

dizer, com uma formulação extrema, que esse romance, narrado por um jagunço

letrado, coloca em debate a maneira tendenciosa e arbitrária com que o letrado

Euclides da Cunha apresenta o jagunço. O romancista move, por assim dizer, um

processo contra o ensaísta-historiógrafo, em nome da autenticidade da língua e da

verdade dos fatos. A história é narrada de forma que o leitor compartilhe com o

protagonista a iniciação ao mundo jagunço, que é como a aprendizagem de uma

língua, em que se trata de aprender e reaprender o significado da palavra “jagunço”

no contexto político, social e econômico do Brasil (BOLLE, 2004, p. 91-2).

Analisando o primeiro ponto citado, a jagunçagem e sua violência no Brasil, Rosa, através

de seu personagem Riobaldo, mostra estas violências como formas de defesa de um sistema

excludente que marginaliza o povo do sertão, são atos violentos, mas reflexos de outras

violências, mas talvez até justificáveis pelas leis do sertão:

Medeiro Vaz não era carrancista. Somente de mais sisudez, a praxe, homem baseado

[...] O que tinha sido antanha a história mesma dele, o senhor sabe? Quando moço,

de antepassados de posses, ele recebera grande fazenda. Podia gerir e ficar

estadonho. Mas vieram as guerras e os desmandos de jagunços – tudo era morte e

roubo, e desrespeito carnal das mulheres casadas e donzelas, foi impossível qualquer

sossego, desde em que quando aquele imundo de loucura subia as serras e se

espraiou nos gerais. Então Medeiro Vaz, ao fim e forte pensar, reconheceu o dever

dele: largou tudo, se desfez do que abarcava, em terras e gados, se livrou leve como

se quisesse voltar a seu só nascimento. [...] Daí, relimpo de tudo, escorrido dono de

si, ele montou ginete, com cachos d‟armas, reuniu chusma de gente corajada,

rapaziagem dos campos, e saiu por esse rumo em roda, para impor a justiça. [...]

Quando conheceu Joca Ramiro, único homem, par-de-frança, capaz de tomar conta

deste sertão nosso, mandando por lei, de sobregovêrno. Fato que Joca Ramiro

também igualmente saía por justiça e alta política, mas só em favor de amigos

perseguidos; e sempre conservava seus bons haveres (ROSA, 2001, p. 59-60).

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No sertão existe a jagunçagem violenta que aterroriza este espaço, “Sertão é o penal, o

criminal” (ROSA, 2001, p. 126), no entanto, a própria jagunçagem cria meios de defesa,

como é perceptível no trecho acima; Medeiro Vaz e Joca Ramiro, dois chefes jagunços que

saem pelo sertão justiçando e protegendo o sertão, a jagunçagem justa protegendo contra a

própria jagunçagem sem sentido, é o sistema-jagunço narrado em Grande Sertão: Veredas.

São as leis criadas no/pelo sertão, já que, muitas vezes, este espaço é excluído e

marginalizado da chamada sociedade brasileira, o espaço nacional/cultural. Nesse sentido, o

sertão é forçado e tem a necessidade de criar suas próprias leis, seu próprio sistema de

(sobre)vivência e (com)vivência:

O julgamento? Digo: aquilo para mim foi coisa séria de importante. Por isso mesmo

é que fiz questão de relatar tudo ao senhor, com tanta despesa de tempo e miúcias de

palavras – “O que nem foi julgamento legítimo nenhum: só uma extração estúrdia e

destrambelhada, doideira acontecida sem senso, neste meio do sertão...” – o senhor

dirá. Pois: por isso mesmo. Zé Bebelo não será réu no real! Ah, mas, no centro do

sertão, o que é doideira às vezes pode ser a razão mais certa e de mais juízo! (ROSA,

2001, p. 301).

O considerado “errado” ou “doideira” para a sociedade e suas regras é decisão e lei mais

correta no sertão. Neste espaço a imagem jagunça rosiana desenvolve-se: é um jagunço

diferencial. Riobaldo está no meio da jagunçagem sem compreender qual a razão para isso:

“Tudo, naquele tempo, e de cada banda que eu fosse, eram pessoas matando e morrendo,

vivendo numa fúria firme, numa certeza, e eu não pertencia a razão nenhuma, não guardava fé

e nem fazia parte” (ROSA, 2001, p. 157-8). Todavia, a razão pela qual ele estava no meio da

jagunçagem é o seu amor por Diadorim, está nesta luta, por causa da luta da sua amada, a

vingança da morte de Joca Ramiro e mesmo antes dessa morte, Riobaldo estava realizando a

grande travessia por Diadorim: “[...] Coração – isto é, estes pormenores todos. Foi um esclaro.

O amor, já de si, é algum arrependimento. Abracei Diadorim, como as asas de todos os

pássaros. Pelo nome de seu pai, Joca Ramiro, eu agora matava e morria, se bem” (ROSA,

2001, p. 57).

Riobaldo envereda-se pelos sertões (interior e exterior) tentando responder a suas

inquietações filosóficas e existenciais, todavia, para isso, é possível visualizar neste jagunço,

de narrativas épicas, um sujeito lírico e introspectivo. Com esta nova imagem jagunça,

Guimarães realiza o processo de (des)construção e (re)configuração desta identidade cultural.

Em Grande Sertão: Veredas podem ser visualizados três gêneros literários levando em

consideração a classificação base de Platão em A República. É possível perceber a

coexistência do épico, do dramático e do lírico. A épica é representada principalmente nas

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batalhas, nas histórias narradas ao longo do romance; o dramático é caracterizado

principalmente na última batalha entre os jagunços de Riobaldo e os “Hermógenes”, quando

Diadorim guerreia contra Hermógenes e acaba morrendo. Percebe-se também o gênero

dramático com o próprio drama de Riobaldo de não conhecer a si mesmo, o drama de

construir sua identidade e até mesmo o drama das suas dúvidas e inquietações sobre a vida,

sobre a existência do diabo e/ou de Deus. Todos esses fatores, dentre outros, confirmam o

gênero dramático presente. O próprio Riobaldo compara a vida a um teatro: “Vida devia de

ser como na sala de teatro, cada um inteiro fazendo com forte gosto seu papel, desempenho”

(ROSA, 2001, p. 261). Revela com isso, o drama de existir e a formação identitária.

Entretanto esses gêneros estão misturados, envolvidos e entrelaçados no romance.

Em Grande Sertão: Veredas pode ser visualizado um poema extenso onde um sujeito,

neste caso, Riobaldo, expressa as suas impressões, emoção e sensibilidade diante do sertão e a

vida do ser humano. O lírico é presenciado a todo momento no discurso do narrador-

personagem, principalmente com o fato de ter um “eu” que transmite a subjetividade de um

homem apaixonado e confuso em relação a sua identidade: “Pertencerá à Lírica todo poema

de extensão menor, na medida em que nele não se cristalizarem personagens nítidos e em que,

ao contrário, uma voz central – quase sempre um „eu‟ – nele exprimir seu próprio estado de

alma” (ROSENFELD, 2002, p. 17).

Guimarães utiliza-se da lírica para quebrar a concepção pré-estabelecida do jagunço

brasileiro. Riobaldo é um jagunço diferente do que é concebido pelo pensamento popular. Ele

narra um sertão poetizado e subjetivo:

O elemento lírico no Grande Sertão: Veredas está em grande parte associado ao uso

de um narrador em primeira pessoa, e pode ser facilmente detectado nas sublinhas

narrativas predominantemente marcadas por alta dose de subjetivismo – aquelas que

podemos designar de modalidade subjetiva da linha do passado, composta dos

conflitos internos de Riobaldo como jagunço, e modalidade especulativa da linha do

presente, em que o protagonista realiza sua travessia existencial pelo sertão

(COUTINHO, 1993, p. 76-7).

Riobaldo descreve de maneira poética o sertão e sempre introduzindo esta forma de narrar

as suas histórias, como também suas narrações amorosas. Como no momento em que ele

encontra-se, pela primeira vez, com Otacília, a sua futura esposa. É marcante o tom lírico que

ele descreve esse encontro. São inseridos os detalhes da paisagem sertaneja como um

ambiente propício para paixões, sua beleza, seu clima inspirador, para aflorar sentimentos;

como se este espaço fosse um local que estimulassem amores:

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Conforme contei ao senhor, quando Otacília comecei a conhecer, nas serras dos

gerais, Buritís Altos, nascente de vereda, fazenda Santa Catarina. [...] O que lembro,

tenho. Venho vindo, de velhas alegrias. A Fazenda Santa Catarina era perto do céu –

um céu azul no repintado, com as nuvens que não se removem. A gente estava em

maio. Quero bem a esses maios, o sol bom, o frio de saúde, as flores no campo, os

finos ventos maiozinhos. A frente da fazenda, num tombado, respeitava para o

espigão, para o céu. Entre os currais e o céu, tinha só um gramado limpo e uma

restinga do cerrado, de donde descem borboletas brancas, que passam entre as

réguas da cerca. Ali, a gente não vê o virar das horas. E a fogo-apagou tem um

cheiro de folhas de assa-peixe. Depois de tantas guerras, eu achava um valor viável

em tudo que era cordato e correntio, na tiração de leite, num papudo que ia

carregando lata de lavagem para o chiqueiro, nas galinhas-d‟angola ciscando as

carreiras no fedegoso-bravo, com florzinhas amarelas, e no vassoural comido baixo,

pelo gado e pelos porcos. [...] Otacília eu revi já foi na sobremanhã. Ela apareceu.

Ela era risonha e descritiva de bonita; [...] Fui eu que primeiro encaminhei a ela os

olhos. Molhei mão em mel, regrei minha língua. Aí falei dos pássaros, que tratavam

de seu voar antes de mormaço. Aquela visão dos pássaros, aquele assunto de deus,

Diadorim quem tinha me ensinado (ROSA, 2001, p. 204-5).

A descrição do sertão e a sua natureza estão envolvidos no encontro de Riobaldo e

Otacília, um teor fortemente lírico: o sertão é sinônimo de emoção.

O lirismo deste jagunço é percebido também, nos momentos em que Riobaldo tece

opiniões e conselhos sobre a vida, um sujeito introspectivo e reflexivo, como nos trechos

seguintes: “Como é que se pode gostar do verdadeiro no falso? Amizade com ilusão de

desilusão. Vida muito esponjosa. [...] O amor? Pássaro que põe ovos de ferro” (ROSA, 2001,

p. 77); como também em: “Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam

a sala. Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da

travessia” (ROSA, 2001, p. 80).

Evidencia-se o fato de que Guimarães apresenta um novo sertanejo, um sujeito com

características contrárias a esperada por um jagunço, é o anti-herói rosiano. Isto porque

Guimarães, através de Riobaldo, desconstrói a imagem formada no pensamento da sociedade

brasileira e reconfigura e/ou reconstrói uma nova identidade cultural do jagunço, um jagunço

romântico, sensível, poético, filosófico, enfim, um sujeito liricamente narrador e narrado.

O herói esperado pelo pensamento popular, em um jagunço, é aquele que exalta

características como a coragem, valentia, o anti-sentimentalismo. Todavia, o herói do

romance é um sujeito fragmentado, medroso, inseguro, introspectivo, filosófico e representa a

lírica em sua essência. Rosa, então decide inserir na literatura, uma produção voltada para o

interior do homem, como afirma Afrânio Coutinho “Nada repugnava mais a João Guimarães

Rosa do que a literatura que despoja o homem do atributo de sua transcendência” (2004, p.

481). Riobaldo representa o anti-herói, o jagunço letrado e apaixonado que descreve, narra e

argumenta as veredas do ser humano, do grande sertão interior e físico, rompendo com os

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estereótipos pré-estabelecidos a respeito do sujeito jagunço. É um herói que não é o herói

esperado, um herói diferente dos vistos até então na literatura brasileira:

Antes de Guimarães Rosa o romance brasileiro era uma sinistra galeria de heróis

frustrados – „galeria pestilenta‟, chamou-a Mário de Andrade. Com Joazinho Bem-

Bem, Riobaldo, Diadorim, Medeiro Vaz, Joca Ramiro surgiram os primeiros heróis

resolutos da literatura brasileira. E não só heroísmo individual (COUTINHO, 2004,

p. 482).

Afrânio Coutinho (2004) usa o termo “resoluto” para descrever os heróis de Guimarães,

entretanto Riobaldo é ainda um sujeito incompleto, o próprio crítico completa a sua idéia:

“Poderia Guimarães Rosa fazer de Riobaldo, que de jagunço acaba proprietário rural, um

personagem integralmente resoluto? Não. Basta pensar que o seu mundo é o latifúndio”

(COUTINHO, 2004, p. 511).

É válido pensar que a idéia de herói poderia acabar recaindo sobre Diadorim, a identidade-

modelo de Riobaldo, o narrador. A mulher guerreira que se caracteriza de homem para ficar

ao lado de seu pai e tornar-se um jagunço, para poder enveredar-se pelo sertão:

A categoria da identidade, à qual se agarra o personagem [Riobaldo], vedaria a Rosa

o caminho à conquista da complexidade. Eis por que o grande herói resoluto do

romance na realidade não é Riobaldo, ex-jagunço frustrado, mas Diadorim – a

mulher que se faz guerreiro, numa inversão dialética da imagem varonil da figura

dos lutadores titânicos, que são sempre homens (COUTINHO, 2001, p. 511).

Mesmo que Diadorim seja considerada a grande heroína do romance, é relevante mostrar,

que mesmo possuindo essa categoria, ela é também uma anti-heroína. Isto porque auncia-se

uma quebra de concepções e valores de uma sociedade patriarcal, justamente pelo fato de

haver uma mulher no meio da jagunçagem, uma donzela que vai guerrear travestida de

homem para ocultar sua identidade feminina. Um sujeito feminino possuindo a coragem e

força, características vinculadas apenas à imagem masculina na sociedade caboclo-sertaneja,

causando um estranhamento e promovendo uma ruptura com as identidades estabelecidas na

sociedade e na literatura até então.

Vale lembrar que o conceito de personagem-herói na literatura estava sempre vinculado

ao sujeito com características definidas desde o início do romance até o fim deste, sem muitas

transformações de caráter. Personalidades definidas, honradas, perfeitas. São identidades que

tinham atitudes previstas por sua coragem, bondade, segurança:

[...] O romance do segundo tipo é construído com uma série de provações das

personagens centrais, de provações de sua fidelidade, de bravura, de coragem, de

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virtude, de nobreza, de santidade, etc. Trata-se da modalidade mais difundida de

romance na literatura européia, que engloba uma maioria considerável de toda a

produção romanesca. O mundo desse romance – arena de luta e provação da

personagem, acontecimentos, aventuras – é a pedra de toque da personagem. Este é

dado sempre como acabado e inalterável. Todas as suas qualidades são dadas desde

o início e ao longo de todo romance apenas são verificadas e experimentadas.

[...]

A primeira modalidade – o romance grego – se constrói como provação da

fidelidade amorosa e da pureza dos heróis e heroínas ideais. Quase todas as

peripécias são organizadas como atentando à virgindade, à pureza e à fidelidade

mútua das personagens. A natureza estática, a imutabilidade dos caracteres das

personagens e a sua idealidade abstrata excluem qualquer processo de formação, o

desenvolvimento, qualquer emprego do que está ocorrendo, do visível, do

vivenciável como experiência vital que muda e forma os heróis (BAKHTIN, 2003,

p. 207-8).

Nas produções literárias, esse tipo de personagem-herói, descrito por Bakhtin (2003),

prevaleceu por muito tempo, principalmente no Romantismo, quando os personagens eram

sujeitos idealizados como seres perfeitos. O narrador personagem de Grande Sertão: Veredas

é considerado um anti-herói, justamente por ele não representar esse herói clássico, é um

herói diferente, por ser um jagunço letrado, covarde, incompleto, filosófico e lírico.

O anti-herói Riobaldo é um sujeito que vive um amor proibido por seu amigo Diadorim.

Ao longo do romance o personagem-narrador narra e expõe todo seu sentimento por um

jagunço. Estas passagens do romance mostram, mais uma vez, o teor lírico na produção

literária de Rosa. Riobaldo em vários trechos deixa explícito seu amor por Diadorim:

[...] Pois minha vida em amizade com Diadorim correu por muito tempo desse jeito.

Foi melhorando, foi. Ele gostava, destinado de mim. E eu – como é que posso

explicar ao senhor o poder de amor que eu criei? Minha vida o diga. Se amor? Era

aquele latifúndio. Eu ia com ele até o rio Jordão... Diadorim tomou conta de mim

(ROSA, 2001, p. 209).

Riobaldo tenta fugir desse sentimento proibido: “E veja: eu vinha tanto tempo me

relutando, contra o querer gostar de Diadorim mais do que, a claro, de um amigo se pertence

gostar;” (ROSA, 2001, p. 52). Entretanto ele reconhece que não conseguia fugir desse amor

impossível:

Aquele lugar, o ar. Primeiro, fiquei sabendo que gostava de Diadorim – de amor

mesmo amor, mal encoberto em amizade. Me a mim, foi de repente, que aquilo se

esclareceu: falei comigo. Não tive assombro, não achei ruim, não me reprovei – na

hora. Melhor alembro” (ROSA, 2001, p. 305).

Os trechos em que Riobaldo “fala” a seu interlocutor sobre seu sentimento por seu amigo

Diadorim são momentos em que ficam evidentes o lirismo deste jagunço, iniciando uma

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ruptura com a imagem de jagunço criada pelo pensamento popular. Esse sentimento torna o

“viver muito perigoso” mencionado inúmeras vezes no romance. Essa frase presente em

Grande Sertão: Veredas pode possuir várias possibilidades de interpretação, entretanto,

direcionando a discussão para o lirismo de Riobaldo, pode-se visualizar a colocação do

narrador em pensar a vida como perigosa: quando o amor está presente, todos correm o risco

de sofrer por um amor proibido, implicando o sujeito, a abdicar de até mesmo de algumas

conquistas na vida por um amor. Como o próprio Riobaldo que se fixou na jagunçagem,

principalmente por amar Diadorim e sentir a necessidade de estar ao lado de sua amada. Esse

amor torna a vida perigosa, nesse sentido, muitas vezes fragmentando e fazendo o sujeito se

interpelar sobre suas próprias certezas de quem é, e se questionando a respeito de sua

identidade.

Riobaldo representa o personagem anti-herói que busca construir sua identidade cultural e

ao fazer a travessia pelos sertões, desconstrói a imagem estabelecida pelo pensamento popular

através da presença marcante do lirismo e inaugura uma imagem diferencial do jagunço na

literatura brasileira. E através deste personagem, Guimarães Rosa faz uma revisão dialética do

ser(tão) brasileiro.

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CONCLUSÃO

Definir a identidade nacional/cultural de um país é uma tarefa difícil e complexa de se

realizar, principalmente pelo fato de haver uma grande diversidade cultural existente no

mundo atualmente. A literatura foi uma das áreas da sapiência que se dedicou pensar

identidades em formação e/ou questionar identidades consideradas já formadas.

Este trabalho científico teve a preocupação de investigar como se dá a formação da

identidade cultural do jagunço criada em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, como

parte da identidade nacional/cultural do Brasil.

Entre as questões que nortearam esta pesquisa, estava a de haver a possibilidade de, ao

realizar este processo de construção da identidade do jagunço, Rosa criaria o retrato do Brasil.

Essa identidade cultural abriria espaço para analisar o universal.

Ao final do mapeamento da identidade cultural do jagunço em Grande Sertão: Veredas,

abstraiu-se a identidade nacional/cultural que forma o mosaico brasileiro, isto porque,

principalmente, ao perceber a formação do “eu” de Riobaldo, composto por vários “outros”,

várias identidades culturais que influenciaram a formação desta identidade cultural, assim

também é a identidade nacional/cultural brasileira: múltipla e diversificada por identidades

culturais diferentes. Através da definição da identidade cultural do jagunço no sertão de

Grande Sertão: Veredas compreende-se a diversidade e como esta identidade transcende ao

espaço físico, além do que é considerado sertão, universalizando conceitos tratados no

romance.

Através das várias identidades que compõem o jagunço Riobaldo (os “outros”) é possível

reconhecê-lo enquanto uma metáfora do retrato do Brasil, onde as várias identidades culturais

presentes, os diversos grupos, fazem parte do que é chamado nação-brasileira.

Riobaldo são todos os brasileiros: o letrado, o lírico, o filosófico, o bom e o mal, o certo e

o incerto, a divindade e sua ausência, o vazio e o todo preenchido, identidades dialéticas, são

todos um só, a diversidade na unidade representada pelo ser Brasil, nação ainda em formação,

incompleta, não acabada como o narrador-personagem: Riobaldo.

Vale ainda ressaltar a constante interrogação que Guimarães faz a sociedade maniqueísta

através do seu personagem. Essa ressalva comprova, mais uma vez, que não se deve pensar a

identidade nacional/cultural do Brasil como identidades agregadas uma nas outras, elas devem

ser visualizadas todas misturadas, envolvidas, entrelaçadas, pois: “[...] este mundo é muito

misturado...” (ROSA, 2001, p. 237).

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E para finalizar esta análise o próprio símbolo matemático, que significa o infinito ao fim

do romance, pode representar que a história da descoberta do homem filosófico não acaba,

que a formação identitária não termina, “O senhor ... Mire e veja: o mais importante e bonito

do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas

que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me

ensinou” (ROSA, 2001, p. 39); essa construção tanto da identidade individual, como da

coletiva e universal é infinita, sempre haverá novas descobertas a fazer, mudanças a serem

realizadas, desafios a serem superados, questionamentos a serem feitos sobre a formação

identitária, a travessia é constante e infinita, como a identidade de Riobaldo, a identidade da

nação brasileira e a identidade do mundo.

As leituras sobre e com Riobaldo ensinaram uma lição: Este trabalho científico não esgota

as possibilidades de interpretação que esta obra literária apresenta, e nem é esta intenção desta

análise, entretanto é possível compreender que a identidade cultural do jagunço mapeada por

Guimarães nessas veredas de um grande sertão, representa uma parte do todo que a identidade

nacional/cultural significa.

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