uma espiritualidade sem igreja

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espiritualidade

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  • Protestantismo em Revista | So Leopoldo | v. 32 | p. 122-135 | set./dez. 2013

    Disponvel em:

    Uma espiritualidade sem igreja: a emancipao institucional e o surgimento de novas experincias religiosas

    An unchurched spirituality: institutional emancipation and the emergence of new religious experiences

    Alonso S. Gonalves

    Mestrando em Cincias da Religio (UMESP); Pariquera-Au/SP, Brasil: [email protected]

    Resumo O tema da espiritualidade est sendo objeto de intensa discusso em diversos meios como empresas, mdia, congressos, igrejas e inmeros eventos so realizados sobre o assunto. uma temtica que chama ateno pela sua diversidade semntica e polissmica. Diante disso, o presente trabalho visa compreender as possibilidades do tema, espiritualidade, bem como observar algumas experincias religiosas tendo como foco a concepo de emancipao institucional presente em certos segmentos do universo evanglico. Para esse intento, uma anlise bibliogrfica servir como aporte para fundamentar a discusso sobre o tema. Palavras-chave Religio. Espiritualidade. Institucionalizao. Igreja. Abstract The theme of spirituality is the subject of intense discussion in various media such as companies, media, conferences, churches and numerous events are held on the subject. It is a theme that draws attention by its semantic diversity and polysemic. Therefore, this study aims to understand the possibilities of the theme, spirituality, and observe some religious experiences focusing on the design of institutional emancipation present in certain segments of the evangelical universe. For this purpose, an analysis of literature will serve as input to base the discussion on the topic. Keywords Religion. Spirituality. Institutionalization. Church.

    Consideraes Iniciais A igreja justamente aquilo que Jesus pregou contra ensinou os seus discpulos a lutar

    F. Nietzsche

    O Jornal Folha de S. Paulo, em reportagem no dia 15 de Agosto de 2011, traz uma

    matria com o ttulo: Cresce o nmero de evanglicos sem ligao com igrejas.1 Nesta

    reportagem, a Folha divulgou uma pesquisa feita pela POF/IBGE Pesquisa de

    1 Reportagem disponvel em: . Acesso

    em: 19.05.2013.

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    Protestantismo em Revista | So Leopoldo | v. 32 | p. 122-135| set./dez. 2013

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    Oramento Familiar mostrando que entre 2003 e 2009 a fatia de fiis que dizem no ter

    vnculo institucional saltou de 4% para 14%, ou seja, em seis anos quase cinco milhes de

    evanglicos deixaram de ter vnculo com igrejas. Comentando os nmeros, a antroploga

    Regina Novaes analisa que esses evanglicos genricos assemelham-se aos catlicos no

    praticantes. Para Novaes, essa categoria de evanglicos usufruem de rituais de servios

    religiosos, mas se sentem livres para ir e vir (de uma igreja para outra). Os "genricos" so

    crentes que no se sentem presos a nenhuma igreja e podem frequentar ao mesmo

    tempo duas ou mais denominaes ou, at mesmo, nenhuma e mesmo assim se

    denominarem de evanglico.

    A pesquisa da POF demonstra que a maioria das pessoas, com algumas excees,

    adere a uma religio, ou igreja, no pela sua doutrina, primeiramente, mas pela sua

    capacidade de gerar experincias religiosas. Se outrora a capacidade de adeso a uma

    denominao fosse pelo seu conjunto de doutrinas e liturgia, parece que a pesquisa da

    POF vem mostrar que uma grande parcela do universo evanglico est se desvinculando

    de suas igrejas, ou denominaes, por alguns motivos.

    Recorrendo a uma metodologia bibliogrfica, pretendo analisar livros que falem

    sobre o assunto, alguns deles de origem estadunidense e outros brasileiros, a fim de tentar

    entender, ou constatar, o porqu desse crescente movimento de desvinculao

    institucional no quesito espiritualidade. Quando a igreja, como instituio, deixou de ser

    importante como instituio? Esse um problema da igreja institucional ou um

    fenmeno corrente da nossa cultura? Em que momento a igreja deixou de atender os

    anseios espirituais de pessoas como as entrevistadas pela POF? Ser que novas

    experincias religiosas tem substitudo gradativamente a mediao espiritual de uma

    igreja institucional?

    O assunto complexo e corro um grande risco de generalizar em apontamentos.

    Para evitar, irei fazer alguns caminhos. O primeiro ser de procurar entender o sentido de

    espiritualidade em que o vnculo com uma religio, no seu sentido institucional, deixa de

    ser importante. Autores como Leonardo Boff e Dalai Lama, exercem uma evidente

    influncia nesse tema espiritualidade versus religio com publicaes que ganham

    notoriedade no pas, por exemplo. O segundo caminho ser entender como a igreja vem

    perdendo sua capacidade simblica em termos de espiritualidade. As observaes de

    pastores e autores como, por exemplo, Paulo Brabo e Ricardo Gondim, sinalizam uma

    espiritualidade sem um vnculo institucional, mesmo, no caso de Gondim, liderar uma

    comunidade religiosa. O vnculo institucional tem sido cada vez mais escasso em centros

    urbanos e, por outro lado, h o surgimento de novas experincias espirituais sem a

    mediao eclesistica. Um terceiro e ltimo caminho consistir na tentativa de constatar a

    anterioridade da espiritualidade e a experincia religiosa. O surgimento de novas

    experincias religiosas para alm da instituio, no somente no universo evanglico, tem

    sido recorrente. A igreja perdeu, ou est perdendo, a capacidade de ler os novos tempos,

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    com uma incrvel ineficincia em compreender novas demandas de uma sociedade

    marcada por uma cultura dinmica e mutante. Minha leitura ser a partir desse vis e

    espero poder contribuir com alguns apontamentos sobre o tema.

    Espiritualidade para alm da religio

    Tendo conscincia de que o termo ps-modernidade no um conceito unnime2

    entre os intelectuais que pensam sobre o assunto, assumo o termo para pensar em algumas

    mudanas que a ps-modernidade delineou no campo religioso, ou seja, novas formas, ou

    maneiras, de viver e pensar religio. Uma das principais definies da ps-modernidade,

    diferente da modernidade que tem na razo (cientfica) e o progresso ilimitado como

    eixos fundamentais , que, seguindo um dos autores mais lidos sobre este tema, Jean-

    Franois Lyotard, considera-se ps-modernidade a incredulidade em relao aos meta-

    relatos.3 Segundo Lyotard, a ps-modernidade no um perodo histrico como foi o

    marxismo, por exemplo, a ps-modernidade se caracteriza principalmente como uma

    atitude, uma concepo da realidade. Sendo assim, uma das marcas dessa realidade ps-

    moderna a incredulidade em relao s metanarrativas e suas consequncias.

    A incredulidade ps-moderna rejeita a metafsica tradicional juntamente com suas

    metanarrativas, entrando aqui a concepo de religio. Snteses tericas no do conta na

    tentativa de responder aos anseios do ser humano. O colapso, portanto, das

    metanarrativas, ainda de acordo com Lyotard, favorece o surgimento de uma nova

    mentalidade, a ps-modernidade.

    Com a ps-modernidade h um processo de desconstruo de um Deus metafsico.

    Se os grandes tratados teolgicos, desde a Idade Mdia com Santo Agostinho e So Toms

    de Aquino, foram concebidos a partir da mentalidade racionalista no sentido de provar a

    veracidade da verdade, na ps-modernidade alguns edifcios tericos racionais so

    abalados e, alguns de fato, ruem. O edifcio que abrigava a religio e o seu Deus metafsico

    abalado quando Friedrich Nietzsche emite o seu famoso enunciado Deus est morto. Com

    isso se d o processo de questionar, rever, reformular questes religiosas.

    Um autor que procurou reler Nietzsche e Martin Heidegger a partir dessa

    concepo ps-metafsica foi Gianni Vattimo. O filsofo italiano procura desconstruir o

    Deus metafsico que norteou a cultura ocidental e apresentar novos rumos para o discurso

    sobre Deus. Entendendo que o Deus entendido pelo Ocidente o resultado da juno

    entre a filosofia grega e a escolstica (Santo Agostinho e Toms de Aquino), Vattimo

    concebe o retorno da religio uma vez que a cincia e a tcnica no anularam o

    2 A quem prefira falar em hipermodernidade (Gilles LIPOVETSKY), hiper-realidade (Jean BAUDRILLARD) e,

    mais em uso pelos socilogos, o termo cunhado pelo socilogo polons, Zygmunt BAUMAN, modernidade lquida.

    3 LYOTARD, Jean-Franois. A condio ps-moderna. So Paulo: Jos Olympio, 2004. p. 15.

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    sentimento religioso do homem ps-moderno , mas no da mesma maneira que foi

    compreendida pela modernidade. Para Vattimo esse retorno se d pelo esvaziamento de

    sentido, ou seja, o Deus metafsico concebido a partir da Idade Mdia proporcionava

    segurana, estabilidade; o ser era identificado com Deus. Vattimo, tendo as leituras de

    Nietzsche e Heidegger como referencial, pontua a instabilidade de um solo que sempre se

    acreditou ser firme; Deus passa a ser no um fundamento imvel, mas sim um vestgio,

    um trao. Para o filsofo italiano, Deus deixa de ser estrutura para se tornar evento. O

    discurso metafsico sobre Deus passa a no existir como um fato factvel e torna-se evento.

    (s) porque as metanarraes metafsicas se dissolveram que a filosofia redescobriu a plausibilidade da religio e pode, por conseguinte, olhar para a necessidade religiosa da conscincia comum fora dos esquemas da crtica iluminista. A tarefa crtica do pensamento para com a conscincia comum consiste, aqui e agora, em evidenciar que tambm para esta conscincia o reencontro da religio positivamente qualificado pelo fato de se apresentar no mundo da cincia e da tcnica da modernidade tardia.4

    A dissoluo das metanarrativas se do no que Vattimo chama de modernidade

    tardia, pode ser um outro conceito para ps-modernidade. A cincia e a tcnica no

    fecharam a questo religiosa, embora houvesse uma inteno para que isso ocorresse. Se

    religio deixou de ser importante como construtora unvoca de sentido para o ser humano

    com o advento da modernidade, na ps-modernidade religio toma novos rumos. O

    conceito de Deus metafsico, desconstrudo pela ps-modernidade, d lugar agora a um

    pensamento que descobre os fragmentos do sagrado por meio do vestgio. No mais um

    Deus visto como absoluto, eterno, imvel (conforme Aristteles), sem princpio e nem fim.

    Com a expresso pensamento fraco Vattimo faz uma leitura da condio ps-

    moderna onde a inexistncia de um fundamento ltimo, nico e categoricamente

    normativo5 pressuposto sine qua non para se pensar em religio. Tratando da

    eventualidade do ser, Vattimo recorre ao conceito bblico de encarnao para dizer que foi o

    cristianismo quem superou o Deus metafsico. O Verbo encarnado assume a

    eventualidade do ser quando Deus se torna um ser humano, e, por este prisma, ocorre o

    enfraquecimento do Deus metafsico. Deixa de ser o Deus dos raios e troves, o

    totalmente outro. O Deus que se torna ser humano come e bebe com malfeitores; assume

    as debilidades e fraquezas da vida; chama as pessoas de amigos. A encarnao torna-se

    elemento hermenutico para um novo discurso sobre Deus, assumindo, portanto, a

    eventualidade do ser; algo em construo, em movimento, nunca fechado e inconcebvel.

    Assim como Nietzsche que decretou a morte do Deus moral e metafsico, Vattimo

    segue o mesmo caminho quanto ao desaparecimento do Deus metafsico. Mas diferente de

    4 VATTIMO, Gianni. O vestgio do vestgio. In. DERRIDA, Jacques & VATTIMO, Gianni (Orgs.). A religio:

    o seminrio de Capri. So Paulo: Estao Liberdade, 2000. p. 96-97. Itlico do autor. 5 ALMEIDA, Rogrio M. de. A fragmentao da cultura e o fim do sujeito. So Paulo: Loyola, 2012. p. 282.

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    Nietzsche, Vattimo apresenta alternativa para pensar religio alm da dogmatizao

    eclesistica com o seu conceito de encarnao. Vattimo, no meu entender, favorece, com

    suas reflexes filosficas, a construo de uma espiritualidade dentro dos moldes da ps-

    modernidade. Se antes religio era sinnimo de cdigos definidos, ritos enrijecidos,

    normas morais e discurso institucional, agora pode ser a busca pela transcendncia; a

    busca pelo bem-estar espiritual. Uma vez que a religio institucionalizada no exera

    atrao em boa parte das pessoas, no significa, com isso, dizer que ela deixa de ter outras

    manifestaes e continuar atraindo. Novas formas so concebveis: o mstico substitui o

    doutrinrio, o afetivo supera o ritual e o experiencial suplanta o institucional.

    Um autor que se dedica a essa passagem da religio para a espiritualidade sem

    vnculo institucional, o catalo Mari Corb telogo e filsofo. Um dos seus principais

    textos Religin sin religin6 Corb expe a crise que passa as religies, crise essa advinda

    por conta do processo de globalizao, e aponta projees para as vivncias religiosas,

    entre elas o que ele chama de espiritualidade secularizada.

    A lgica de Corb parte da seguinte premissa. Tendo a religio se desenvolvida em

    uma poca pr-industrial, e que, portanto, as crenas e a maneira de ver o mundo eram

    pr-cientfica e rudimentar, Corb acredita que esta maneira de ver o mundo foi superada

    quando houve a primeira secularizao, ou seja, quando a opo religiosa foi direcionada

    ao indivduo e no mais ao Estado. No entender de Corb, este processo foi impulsionado

    pelo Iluminismo. Se na primeira secularizao, conforme Corb, dado ao indivduo

    escolher, ainda se trata de uma religio institucional. J a segunda secularizao passa pela

    espiritualidade, ou seja, quando o indivduo entende que no precisa da mediao

    institucional ou ortodoxa para vivenciar a sua espiritualidade. Desse modo religio e

    espiritualidade no so mais inseparveis, so dicotmicas de fato. Diz ele:

    nosso modo religioso de falar de Outra Dimenso, de Deus, nossos ritos e organizaes religiosas so construes nossas, filhas dos pequenos e pragmticos projetos que fizemos desta imensidade para poder nos mover nela7

    Se toda a construo ou mediao religiosa fruto de projetos que o ser humano

    elaborou para dar conta daquilo que Corb chama de Outra Dimenso, possvel construir

    outras maneiras de se relacionar com Deus que no necessite, prioritariamente, das

    organizaes religiosas. Corb chama de espiritualidade leiga,8 ou seja, uma espiritualidade

    que no necessita ter um vnculo institucional para poder ser o que .

    6 Cf. CORB, Mari. Religin sin religin. Madri: PPC, 1996. 7 CORB, 1996, p. 87. 8 H um texto de Corb traduzido no Brasil com este ttulo: Por uma espiritualidade leiga: sem crenas, sem

    religies, sem deuses. So Paulo: Paulus, 2010.

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    Para chegar a esse estgio, Corb aponta quatro estgios: (1) o desaparecimento

    das sociedades pr-industriais e o surgimento do sistema econmico; onde h economia de

    mercado o sentimento religioso adormecido; (2) a constante mudana no mundo como

    globalizao, inovaes, maneiras de organizar-se e pensar, desconsiderando os costumes

    e as tradies religiosas; (3) a compreenso de que a histria esta nas mos das pessoas e

    no em divindades; (4) e por ltimo, e o mais importante, as diferentes religies alegando

    o exclusivismo e a verdade absoluta levando ao raciocnio de que quando todas as

    religies promovem o exclusivismo significa que todas no tm exclusividade, portanto

    so todas bem vindas. Segundo Corb, esse cenrio favoreceu o surgimento de uma nova

    maneira de entender a espiritualidade. Uma espiritualidade que no est subjulgada

    tutela da igreja, enquanto instituio religiosa que detm os cdigos de acesso Deus.

    Alberto da Silva Moreira, cientista da religio, estudando o pensamento de Corb,

    constata um outro vis que est formando a noo de espiritualidade.

    preciso perceber que a satisfao de grande parte das necessidades espirituais das pessoas no depende da compreenso ou da insero em grandes sistemas religiosos, como uma opo consciente e clara, que implicaria numa fidelidade duradoura. Grande parte das pessoas se contenta com fragmentos que fazem sentido para elas naquele momento, com partes desconexas, com imagens e rituais desacoplados, sem longas fundamentaes teolgicas e com memria histrica bastante curta. O que orienta a deciso s vezes a lgica do custo-benefcio, a satisfao subjetiva, a confirmao da instncia interior9

    Se antes o pertencimento a uma religio especfica significava certo controle sobre

    a espiritualidade do indivduo, de acordo com Moreira isso no mais possvel. O simples

    fato de pertencer a uma religio no significa que outras formas religiosas no sejam

    atraentes e, at mesmo, praticveis. Se as observaes de Corb esto corretas, ou seja, suas

    anlises feitas para chegar neste ponto do desvinculo da religio institucionalizada com a

    espiritualidade, temos, portanto, um quadro a nossa frente, a tendncia, assim como

    pontua Moreira, ser cada vez mais indivduos se emancipando da religio institucional e

    configurando novas experincias e vivncias espirituais.

    Eclesiocentrismo e emancipao institucional

    O cristianismo, no decorrer de sua trajetria, sempre experimentou um processo

    de institucionalizao. Ainda nas pginas do Novo Testamento possvel perceber no

    incio da igreja que, num primeiro momento, os carismas direcionavam o ajuntamento

    9 MOREIRA, Alberto da Silva. Religiosidade laica: uma introduo ao pensamento de Mari Corb.

    Horizonte, Belo Horizonte: PUC-Minas, v. 8, n. 19, out./dez., 2010. p. 40. Disponvel em: . Acesso em: 17 dez. 2011.

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    comunitrio e, com as ameaas externas, identificadas como heresias geralmente, e

    internas, levou, gradativamente, a uma institucionalizao da liderana espiritual e pastoral

    das comunidades.10

    O fechamento em si mesmo um processo que tanto o catolicismo quanto o

    protestantismo absorveu ao longo da sua histria quando alguns problemas, ou solues,

    surgiram. No caso da igreja Catlica, com sua doutrina enrijecida pelo Magistrio e

    assegurada pela Hierarquia, qualquer tentativa de repensar, reformular, refletir mais

    criticamente sobre algum ponto do dogma, motivo para sanses e punies. Foi o que

    aconteceu com telogos como Hans Kng, Jon Sobrino, Roger Haight e Leonardo Boff,

    apenas para citar alguns, que receberam certas punies e advertncias por proporem

    reflexes que, de alguma maneira, contrariava o ideal de eclesialidade da cpula da igreja.

    No caso das igrejas protestantes histricas, o exclusivismo doutrinrio e salvacionista

    ainda um tema que provoca divises internas. O eclesiocentrismo protestante ainda l a

    realidade pelas lentes do fundamentalismo bblico e sua hermenutica literalista ainda

    alimenta uma mentalidade que julga ser detentora da verdade absoluta.

    Devido natureza do protestantismo, fragmentado em inmeras denominaes e

    com uma diversidade teolgica e litrgica gigantesca, ele sofre, constantemente, um

    processo de emancipao institucional, ou seja, cada vez mais pessoas, e at mesmo

    comunidades inteiras, buscam alternativas para superar o eclesiocentrismo em que as

    igrejas absorveram ao longo do tempo. Alguns cansados de ver o pragmatismo

    doutrinrio superar a vivncia comunitria , esto buscando alternativas para vivenciar

    uma espiritualidade que, de alguma maneira, seja vivel fora dos padres institucionais.

    Um exemplo desse comportamento vem dos EUA. Autores esto propondo novos

    paradigmas para se pensar e vivenciar a f, fora das paredes de um templo.

    Alguns autores estadunidenses tem logrado xito com publicaes que desafiam e

    provocam a maneira de ser cristo. O movimento de fiis sem igrejas um fato corrente

    por l. A fim de tornar palpvel esse fenmeno, passo a analisar, ainda que

    superficialmente, alguns textos que tratam do tema nos EUA e depois alguns autores

    brasileiros que esto trilhando no mesmo caminho.

    Um livro de expressivo sucesso nos EUA Por que voc no quer mais ir igreja?11

    um texto que procura encontrar a dimenso originaria do cristianismo e questiona a

    estrutura eclesistica como forma de ensinar a espiritualidade. Escrito de forma ficcional, o

    livro trata de encontros que Jake tem com o suposto apstolo Joo. Os dois tm dilogos

    profcuos em diferentes situaes e sempre tratam de revisarem os postulados espirituais e

    doutrinrios da igreja. As conversas giram em torno da estrutura da igreja, das suas

    10 Cf. BONNEAU, Guy. Profetismo e instituio no cristianismo primitivo. So Paulo: Paulinas, 2003. 11 Cf. JACOBSEN, Wayne & COLEMAN, Dave. Por que voc no quer mais ir igreja? Uma histria sobre o

    verdadeiro sentido do amor de Deus. Rio de Janeiro: Sextante, 2009.

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    reunies, das doutrinas, do legalismo e do tradicionalismo. O que chama ateno no livro

    a crtica que Joo faz ao sistema de ensino da igreja conhecido como EBD Escola

    Bblica Dominical: sabia que mais de 90% das crianas que se criam na escola dominical

    abandonam a congregao quando saem da casa dos pais?12 O suposto apstolo Joo

    est questionando o doutrinarismo das EBDs e a falta de uma espiritualidade encarnada.

    Jake, at ento, no havia parado para refletir o porqu de uma escola que premia os

    assduos e condena os faltosos, por entender que estes esto aprendendo menos de Deus.

    Outro autor que procura refletir dentro deste tema o jornalista estadunidense

    Philip Yancey. O escritor, em diversos livros, trabalha uma espcie de humanizao do

    cristianismo, contrariando uma vertente norte-americana muito forte, o fundamentalismo

    e outra, pela experincia do prprio Yancey, o racismo nas igrejas. Sobre seus textos ele diz:

    eu escrevo livros para mim mesmo. [...] Escrevo livros para resolver questes que me incomodam, questes para as quais no tenho resposta. Meus livros so um processo de explorao e investigao. Ento, eu tento resolver diferentes problemas relacionados a f, coisas relativa a mim, que quero aprender ou que me preocupam.13

    Ao todo, o autor escreveu mais de dezesseis livros, a maioria deles traduzidos no

    Brasil. Yancey ficou conhecido por aqui com o texto Decepcionado com Deus.14 Com esta

    obra, que o autor trabalha o personagem de J, o escritor norte-americano trata sobre o

    sofrimento e o relacionamento com Deus. Por aqui o livro vendeu milhes de cpias e a

    editora continua fazendo inmeras reedies.

    Yancey sempre perseguiu o tema da espiritualidade e a dificuldades da igreja. Em

    um de seus livros Igreja, por que me importar? ele trata do racismo em que conviveu boa

    parte de sua vida nas igrejas do Sul dos EUA. Essa e outras experincias levaram nosso

    autor a refletir se realmente as pessoas precisavam da igreja para ter uma experincia

    religiosa com Jesus. O autor elenca os motivos que o levaram a ter distncia da igreja

    institucional e, alm do racismo e do fundamentalismo, ele coloca a hipocrisia.15

    Em outro livro Alma sobrevivente , Yancey trabalha os principais problemas da

    igreja institucional destacando autores nada convencionais em ambientes evanglicos

    como Dostoievski, Gandhi e Nouwen. Com esses autores e muitos outros, Yancey quer

    dizer que continua sendo cristo, apesar da igreja.16

    12 JACOBSEN, COLEMAN, 2009, p. 45. 13 Depoimento do autor. Disponvel em: .

    Acesso em: 25 maio 2013. 14 Cf. YANCEY, Philip. Decepcionado com Deus: trs perguntas que ningum ousa fazer. So Paulo: Mundo

    Cristo, 1997. 15 Cf. YANCEY, Philip. Igreja, por que me importar? Redescobrir o prazer da vida em comunidade. 2 ed. So

    Paulo: SEPAL, 2001. p. 19. 16 Cf. YANCEY, Philip. Alma sobrevivente: sou cristo, apesar da igreja. So Paulo: Mundo Cristo, 2004.

    http://www.mundocristao.com.br/autordet.asp?cod_autor=30
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    Protestantismo em Revista | So Leopoldo | v. 32 | p. 122-135| set./dez. 2013

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    Ainda com autores norte-americanos que procuram desvencilhar a espiritualidade

    da igreja institucional, vale mencionar David N. Elkins. O autor um decepcionado com o

    sistema religioso herdado dos pais. Como pastor, experimentou algumas frustraes

    existenciais e alguns desapontamentos espirituais e teolgicos. Elkins escreveu Para alm

    da religio. Um livro que trata da separao entre espiritualidade e religio.17 Para Elkins, o

    desenvolvimento espiritual no tem qualquer relao com prticas, ritos e costumes de

    uma religio, mas com o milagre da vida. Um erro que o autor aponta, e que to comum

    nas igrejas, associar a vida espiritual, ou a espiritualidade, com o ir igreja, ou seja, o

    templo. Para Elkins, a espiritualidade emancipada da religio organizada.

    Creio que j tempo de nossa sociedade reconhecer que espiritualidade e religiosidade no so a mesma coisa e que a autntica espiritualidade merece respeito, esteja ela fora ou dentro das paredes da religio organizada. [...] At hoje, no houve organizao religiosa que capturasse Deus e aprisionasse o sagrado dentro das paredes de uma igreja.18

    No Brasil reflexes como as que ocorrem nos EUA sobre a distino entre

    espiritualidade e religio, um dado concreto tambm. Pessoas que foram membros de uma

    igreja h muito tempo, esto desvendando um outro caminho para a espiritualidade sem o

    direcionamento de uma igreja institucional. Um autor que vem ganhando destaque pela

    maneira despojada e, at mesmo s vezes, debochada de escrever Paulo Brabo com o seu

    blog19 que virou livro A bacia das almas.20 Com textos provocantes e contextualizados,

    Brabo questiona a maneira equivocada da igreja (instituio) entender a mensagem de

    Jesus. Ele pontua de que possvel separar Jesus da Bblia e da Igreja. Um cristianismo

    sem nenhum contato com as regras e a batuta da igreja institucional mais do que bem

    vindo. A obsesso pela doutrina levou a um distanciamento da figura mais importante do

    cristianismo, Jesus. Brabo chama isso de ortodoxolatria. a postura de defender pontos

    doutrinrios e ortodoxos ao ponto de pessoas e comunidades religiosas se dividirem por

    isso.

    Alm de Brabo, o pastor Ricardo Gondim vem popularizando alguns temas em

    ambientes evanglicos causando intensas discusses principalmente na internet. Gondim

    declarou recentemente de que no gostaria de ser associado mais com o movimento

    evanglico. Por movimento evanglico pode ser entendido uma srie de questes, mas no

    entraremos nisso aqui. O fato que Gondim vem, cada vez mais, configurando sua

    comunidade, a Igreja Betesda, sem ater a regras e corpo doutrinrio estabelecido. Apesar

    17 Cf. ELKINS, David N. Alm da religio: um programa personalizado para o desenvolvimento de uma vida

    espiritualizada fora dos quadros da religio tradicional. So Paulo: Pensamento, 2000. 18 ELKINS, 2000, p. 16. 19 Disponvel em: . 20 BRABO, Paulo. A bacia das almas: confisses de um ex-dependente de igreja. So Paulo: Mundo Cristo,

    2009.

  • GONALVES, A. S. Uma espiritualidade sem igreja. 131

    Protestantismo em Revista | So Leopoldo | v. 32 | p. 122-135| set./dez. 2013

    Disponvel em:

    de liderar uma igreja com um nome, Gondim se sente livre no seu discurso que pregoa o

    amor vida por meio de uma espiritualidade no religiosa.21

    Outro autor, amigo de Gondim, que trabalha essa temtica na comunidade de f,

    Ed Ren Kivitz. Com inmeros textos produzidos na internet e alguns escritos, Kivitz

    alerta para o processo de institucionalizao da igreja e os males que esse processo provoca

    nas pessoas.22 A igreja, no seu entender, prejudica uma autntica experincia de

    espiritualidade quando fecha a comunidade com dogmas, ritos, doutrinas, regras e

    moralidades desencarnadas do cotidiano.

    Embora Gondim como Kivitz tenham um discurso a partir dos pressupostos da

    ps-modernidade, ou seja, uma leitura do mundo que atenda aos desafios e anseios do ser

    humano colocando a comunidade de f como um dos meios para esse intento, crescente

    a noo de que a igreja, com seus aspectos rituais, doutrinrios e morais, continua

    perdendo espao lentamente para outras experincias religiosas cada vez mais

    diversificadas. Para um grande nmero de pessoas no mais possvel conviver com

    ditames e posicionamentos, que julgam ultrapassados, de igrejas que consideram

    detentoras da mediao do sagrado. Se outrora a igreja, tanto catlica quanto protestante,

    ocupava um lugar intocvel na mentalidade do Brasil rural como mediadora absoluta da

    f, no Brasil urbano essa concepo est cada vez mais esvaecendo. Com um caminho

    aberto pela secularizao e a democratizao religiosa, cada vez mais comum encontrar

    grupos, pessoas, que procuram outras mediaes para a sua espiritualidade.

    Espiritualidade e experincia religiosa

    O termo espiritualidade no unvoco no mbito das igrejas. Ele nem mesmo

    muito usado no cotidiano das igrejas. A palavra mais comum doutrina. Quando se usa a

    palavra espiritualidade no significa que esteja falando de doutrina precisamente. Parece que

    doutrinas so para os iniciados na f e espiritualidade est no campo das generalizaes

    ainda. Enquanto o estudo e o conhecimento das doutrinas funcionam como sinnimo de

    conhecer e estudar a Deus (quando se l a Bblia, principalmente), espiritualidade

    tratada como uma categoria comum a todos os seres humanos, pelo menos em alguns

    crculos evanglicos. A frase mais comum : todos so criaturas de Deus, mas ainda no

    so filhos de dele.

    De fato espiritualidade um patrimnio do ser humano. Ela ocorre

    independentemente da religio ou crenas. Espiritualidade est para alm da pertena

    religiosa, alis, a religio que faz uso da espiritualidade e no ao contrrio. Enquanto

    21 Cf. GONDIM, Ricardo. Espiritualidade no religiosa. Disponvel em:

    . Acesso em: 29 maio 2013. 22 Cf. KIVITZ, Ed Ren. As marcas da institucionalizao da igreja. In: KIVITZ, Ed Ren. Outra

    espiritualidade: f, graa e resistncia. So Paulo: Mundo Cristo, 2006. p. 85.

  • 132 GONALVES, A. S. Uma espiritualidade sem igreja.

    Protestantismo em Revista | So Leopoldo | v. 32 | p. 122-135| set./dez. 2013

    Disponvel em:

    espiritualidade assistemtica; religio sistematizadora da f; enquanto espiritualidade

    no d nomes; religio oferece o contedo. Leonardo Boff sugere uma distino entre

    espiritualidade e religio.23 Religio elabora edifcios tericos, ritos e smbolos e, por outro

    lado, sem religio no seria possvel o processo palpvel da espiritualidade. Mas como

    bem lembra Boff, religio no somente aponta e direciona a espiritualidade intrnseca do

    ser humano, mas tambm pode esquecer-se da espiritualidade que forma a sua matriz de

    sentido quando se alia a outros poderes a partir de interesses escusos tendo como

    resultado a violncia religiosa em nome de Deus,24 por exemplo. Dalai Lama advoga

    que as religies, por conta de suas doutrinas e verdades excludentes, so a principal causa

    dos conflitos da humanidade. Da a sua concepo de espiritualidade como anterior

    religio. na espiritualidade que se d o amor, a compaixo, a solidariedade e a

    tolerncia.25

    Parece que espiritualidade anterior religio. Na verdade a religio, com efeito,

    no outra coisa seno a tentativa de construo terica, tica e ritual.26 A ideia de que o

    ser humano possui a centelha de Deus um tema que sempre despertou interesse,

    inclusive de neurocientistas.27 A predisposio religiosa do ser humano sempre foi alvo de

    reflexes tanto na filosofia quanto na teologia. Aqui no entrarei na discusso se a

    conscincia moral a voz de Deus ou se o prprio Deus implantou no ser humano o ato

    de crer.28 Essa anterioridade do fenmeno em si no ser o foco. A questo ser a

    espiritualidade que se d na experincia religiosa. Antes preciso conceituar o que seja

    experincia religiosa.

    A experincia religiosa analisada por diferentes saberes: sociologia, filosofia,

    cincias da religio, teologia e psicologia. Aqui farei uso da psicologia para entender o que

    seja experincia religiosa. Um texto que traz uma contribuio sobre o tema psicologia da

    religio do telogo catlico Ednio Valle. Com o livro Psicologia e experincia religiosa,29

    Valle procura discutir as recentes pesquisas e direes no campo da psicologia da religio.

    Sobre a experincia religiosa Valle acentua que qualquer experincia, fato, fenmeno ou

    objeto pode ser hierofnico, isto , revelador do divino, para seres humanos em busca de

    transcendncia, seja qual for essa.30 Sendo assim, a explicao da anterioridade da

    experincia religiosa, a possvel causa da transcendncia, e seja ela qual for essa

    23 Cf. BOFF, Leonardo. Espiritualidade: um caminho de transformao. Rio de Janeiro: Sextante, 2001. 24 BOFF, 2000. p. 28. 25 Cf. LAMA, Dalai. Uma tica para o novo milnio: sabedoria milenar para o mundo de hoje. Rio de Janeiro:

    Sextante, 2006. p. 162ss. 26 GIUSSANI, Luigi. A conscincia religiosa no homem moderno. So Paulo: Companhia Ilimitada, 1988. p. 16. 27 Um exemplo o neurocientista canadense Dr. Mario Beauregard. Um dos seus livros traz o seguinte

    ttulo: The spiritual brain (O crebro espiritual). 28 Cf. FRAAS, Hans-Jrgen. A religiosidade humana: compndio de psicologia da religio. So Leopoldo:

    Sinodal, 1997. p. 38ss. 29 Cf. VALLE, Ednio. Psicologia e experincia religiosa: estudos introdutrios. So Paulo: Loyola, 1998. 30 VALLE, 1998, p. 17.

  • GONALVES, A. S. Uma espiritualidade sem igreja. 133

    Protestantismo em Revista | So Leopoldo | v. 32 | p. 122-135| set./dez. 2013

    Disponvel em:

    experincia, no chega a ser to fundamental, embora seja importante, porque so nos

    smbolos religiosos, nos ritos e nas manifestaes que se d a mediao do sagrado.

    A palavra experincia quer denotar algo emprico, ou seja, visvel e palpvel. A

    experincia religiosa uma consequncia da espiritualidade enquanto subjetividade, ou

    seja, a espiritualidade, que para Valle religiosidade, uma abertura para o

    comportamento religioso do qual a religio, com seus cdigos, regras, prdicas, ritos e

    moralidades, depende.

    Tornou-se recorrente a ideia de que experincia religiosa pode ser hbrida,

    amalgamada e diversificada, pelo menos no contexto religioso brasileiro. Assim, a religio

    como instituio perde cada vez mais a sua centralidade enquanto mediadora da

    espiritualidade e experincia religiosa e outras formas, maneiras de se experimentar

    dimenses do sagrado vo ganhando novas configuraes.

    A era da religio como estrutura est terminada, embora no como cultura. A religio perdeu sua funo social, embora talvez no sua funo subjetiva. [...] A sociedade moderna talvez no seja uma sociedade sem religio, mas uma sociedade que se constitui em suas articulaes principais pela metabolizao da funo religiosa.31

    Essa metabolizao, ou seja, a capacidade de transformar algo que, por alguma

    razo foi rejeitado, em outra coisa uma caracterstica evidente de uma sociedade que

    soube lidar, ou assimilou, a oferta de bens religiosos. Essa caracterstica que Bingemer

    coloca, que permite certa independncia do sistema religioso organizado e a

    possibilidade de bricolagem na construo da experincia religiosa, ou seja, algum que

    configura sua experincia religiosa em diferentes segmentos seja ele catlico, esprita, afro-

    brasileiro, neopentecostal ou protestante.

    Embora, como bem articula Bingemer, a religio como estrutura organizadora est

    cada vez mais perdendo o seu espao, o mesmo no pode ser dito sobre o sagrado que

    continua seduzindo. Bingemer observa que h uma ressacralizao, ou seja, o

    reaparecimento, o reemergir mais do que volta do religioso, do sagrado, a sede pelo

    mistrio e pela mstica em distintivas formas [esto] aparecendo.32

    Consideraes finais

    A espiritualidade no depende, necessariamente, da religio. a religio que se

    utiliza da espiritualidade para, a partir dela, formular crenas, doutrinas, ritos e

    31 BINGEMER, Maria Clara L. Alteridade & vulnerabilidade: experincia de Deus e pluralismo religioso no

    moderno em crise. So Paulo: Loyola, 1993. p. 29. 32 BINGEMER, Maria Clara L. A seduo do sagrado. In: CALIMAN, Cleto (Org.). A seduo do sagrado: o

    fenmeno religioso na virada do milnio. Petrpolis: Vozes, 1998. p. 80.

  • 134 GONALVES, A. S. Uma espiritualidade sem igreja.

    Protestantismo em Revista | So Leopoldo | v. 32 | p. 122-135| set./dez. 2013

    Disponvel em:

    moralidades. Parece que muitas pessoas esto percebendo isso porque est se tornando

    comum, apesar do crescimento neopentecostal, frase como essas: no vou igreja

    nenhuma; minha religio e ajudar os outros.

    fato que religio est se tornando cada vez mais intimista e nem todas esto

    correspondendo aos critrios adotados por pessoas que procuram uma experincia

    religiosa sem vnculo institucional. Moreira pinta um quadro interessante sobre isso. Diz

    ele que todas as pesquisam mostram a perda da autoridade vinculante das instituies

    religiosas e a maior autonomia dos indivduos na montagem dos seus prprios sistemas

    religiosos. Isso implica crise das instncias estabelecidas de intermediao religiosa....33

    Em 2010 a Revista poca publicou uma reportagem intitulada A nova reforma

    protestante: um movimento de fiis critica o consumismo, a corrupo e os dogmas das

    igrejas e prope uma nova reforma protestante.34 Alm de ouvir alguns pastores e

    telogos sobre o tema, a revista trouxe uma reportagem sobre o senhor Irani Rosique. Um

    cirurgio geral de 49 anos em Ariquemes, cidade de 80 mil habitantes do interior de

    Rondnia. Este homem rene-se periodicamente com vizinhos, conhecidos e amigos,

    umas quinze pessoas ao todo, para falar sobre a Bblia, orar e cantar na rea de uma casa.

    Depois a confraternizao: ch com bolachas. Rosique diz que pratica sua f assim, em

    pequenos grupos de orao, comunho e estudo da Bblia. O cirurgio de Rondnia

    mobiliza 2.500 pessoas no interior do estado. Para a Revista poca, Irani pode ser visto

    como um smbolo do perodo de transio que a igreja evanglica brasileira vem

    atravessando, ou seja, o crescente nmero de pessoas que, por algum motivo, esto

    deixando as igrejas e vivenciando uma experincia religiosa independentemente. Parece

    que este um tempo em que ritos, doutrinas, tradies, dogmas, jarges e hierarquias

    esto passando por um profundo processo de reviso. A espiritualidade est para alm da

    religio. Ela no depende desta para ser o que . Mesmo assumindo essa distino no

    implica em negao da religio para clarear e dar linguagem espiritualidade por meio de

    experincia religiosa.

    O que procurei demonstrar aqui, por meio de pesquisa bibliogrfica, que

    autores, pessoas e comunidades religiosas esto atualizando suas experincias com a

    espiritualidade a partir de diferentes concepes. Essa tendncia, a meu ver, est sendo

    mais evidente no ambiente evanglico. A capacidade de leitura simblica de diferentes

    ramificaes religiosas notria. Diversas pessoas esto configurando seu mapa religioso

    tendo como referncia no mais doutrinas, ritos ou estruturas estabelecidas e organizadas.

    H um trnsito entre pertenas religiosas que possibilita uma impermanncia em

    determinada moldura institucional. Essa caracterstica no significa, portanto, em

    33 MOREIRA, Alberto da Silva. O futuro da religio no mundo globalizado: painel de um debate. In:

    MOREIRA, Alberto da Silva & OLIVEIRA, Irene Dias de (Orgs.). O futuro da religio na sociedade global: uma perspectiva multicultural. So Paulo: Paulinas, 2008. p. 29.

    34 Cf. Revista poca, 09 de Agosto de 2010, edio 638.

  • GONALVES, A. S. Uma espiritualidade sem igreja. 135

    Protestantismo em Revista | So Leopoldo | v. 32 | p. 122-135| set./dez. 2013

    Disponvel em:

    afastamento da religio, pelo contrrio, favorece o pluralismo religioso e a dupla pertena.

    Se por um lado

    as instituies tradicionais produtoras de sentido tm se deparado com a precariedade do engajamento das pessoas com o seu sistema de crenas... [por outro lado] o sujeito de f tem feito suas prprias combinatrias simblicas, transitando em diversas expresses religiosas e apropriando-se de significantes especficos de acordo com a especificidade de suas necessidades.35

    A impresso que d de que este cenrio, apontado por Souza, no ir mudar,

    pelo contrrio, ele ir se concretiza ainda mais. A emancipao de igrejas institucionais

    tem aumentado e a tendncia o surgimento de novas experincias religiosas. Se as igrejas

    querem continuar sendo mediadora de experincias religiosas a partir da espiritualidade

    das pessoas, ela ter que procurar outros caminhos que no seja o dogmtico enrijecido

    pelo tempo e pela tradio.

    [Recebido em: novembro de 2013;

    Aceito em: dezembro de 2013]

    35 SOUZA, Sandra Duarte de. Trnsito religioso e construes simblicas temporrias: uma bricolagem

    contnua. Estudos de religio, So Bernardo do Campo: UMESP, ano 15, n. 20, Jun., 2001. p. 159.