uma factura detalhada para angela merkel - observador

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  • 7/24/2019 Uma Factura Detalhada Para Angela Merkel - Observador

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    Uma factura detalhada para Angela Merkel

    11 Julho 2015

    ESPECIAIS

    Ao insistir ser indemnizada pela Alemanha pelo que sofreu

    JosCarlos

    Fernandes

    http://observador.pt/especiais/http://observador.pt/perfil/jcfernandes/http://observador.pt/
  • 7/24/2019 Uma Factura Detalhada Para Angela Merkel - Observador

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    na II Guerra Mundial, a Grcia quebra um pacto tcito queesteve na base de 70 anos de paz na Europa.

    Foi amplamente publicitado que o primeiro acto oficial de Alexis

    Tsipras, a 26 de Janeiro deste ano, imediatamente depois de ter

    tomado posse como primeiro-ministro da Grcia, foi depositar

    rosas vermelhas em Kaisariani, um antiga carreira de tiro nos

    subrbios de Atenas onde, a 1 de Maio de 1944, 200 comunistas

    gregos foram fuzilados pelas tropas de ocupao alems, como

    represlia pela morte do general alemo Franz Krech numa

    emboscada montada por guerrilheiros do ELAS, a faco de

    esquerda da resistncia grega.

    As vtimas do fuzilamento no tinham sido capturadas pelos

    alemes, eram prisioneiros polticos do regime do general

    Metaxas, que, aps a invaso da Grcia, em 1941, tinham

    passado para custdia alem. A represlia pela morte de Krech

    incluiu tambm a execuo de todo e qualquer homem gregoapanhado fora das respectivas aldeias na regio em que o

    general fora emboscado.

    No se tratou de um caso isolado: os alemes sempre foram

    implacveis na resposta s aces da guerrilha grega. Mas a

    partir de 1943, para cobrir o vazio criado pela rendio italiana,

    comearam a surgir na Grcia unidades vindas da Frente Leste,onde tinham combatido o Exrcito Vermelho e a guerrilha e que

    no hesitavam em recorrer a mtodos de brutalidade extrema,

    uma vez que a ideologia nazi considerava russos e ucranianos

    como seres inferiores. Em consequncia, a ferocidade da

    represso alem contra os gregos intensificou-se.

    http://www.theguardian.com/world/2015/jan/26/alexis-tsipras-greece-syriza-kaisariani-nazi-german
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    Acrpole de Atenas, Maio de 1941. A bandeira alem seria arrancada na noite de 30

    de Maio por dois estudantes gregos

    Embora a ocupao nazi da Grcia tenha sido tragicamente

    assinalada por muitos outros massacres, alguns deles com mais

    vtimas do que o de Kaisariani, este tornou-se, sobretudo para a

    esquerda grega, num smbolo dos agravos entre gregos e

    alemes e o memorial l construdo at foi alvo de uma visita de

    um presidente alemo, em 1987. Muitos estadistas gregos j

    foram depor flores em Kaisariani, por isso, se Tsipras tivesse lido a 1 de Maio, teria passado desapercebido tendo escolhido

    faz-lo a 26 de Janeiro, como primeiro acto oficial, quis deixar

    uma mensagem muito clara: a Grcia no se esqueceu do que a

    Alemanha fez e as contas do passado esto por saldar.

    A ida a Kaisariani est indissoluvelmente ligada ao

    desenterramento da questo das indemnizaes de guerra entrea Alemanha e a Grcia, um assunto que os alemes entendem ter

    http://observador.pt/wp-content/uploads/2015/07/nazi-flag-on-the-acropolis.jpg
  • 7/24/2019 Uma Factura Detalhada Para Angela Merkel - Observador

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    ficado saldado em 1960, com o pagamento de 150 milhes de

    marcos (e definitivamente encerrado com um acordo assinado

    em 1990 com as quatro principais potncias Aliadas, a quem a

    Alemanha se rendera em 1945), mas que os gregos entendem

    estar por resolver, elevando-se hoje a 278.700 milhes de euros(para efeitos de comparao, os emprstimos concedidos

    Grcia no mbito do programa de assistncia financeira somam

    240.000 milhes).

    O valor apresentado pelos gregos est apoiado em

    documentao detalhada (761 volumes) e inclui compensaes

    pelos massacres, pela destruio de edifcios e infra-estruturas

    (108 mil milhes), pela requisio de matrias-primas e

    alimentos, por um emprstimo (sem juros) de 476 milhes de

    marcos concedido (ou melhor, extorquido) Grcia pela

    Alemanha em 1942 (que valer agora 54 mil milhes de euros), e

    pela pilhagem de valores artsticos.

    Um ateniense citado em The Third Reich at War, de Richard J.

    Evans, exprimia o seu espanto e indignao por, tendo vivido 13

    anos na Alemanha, antes da guerra, ter construdo uma elevada

    imagem do sentido de honra dos alemes e agora ver os

    invasores entregues a um frenesim de pilhagem que no deixava

    escapar cobertores, lenis, fronhas e maanetas de porta. Ser

    que os 278.700 milhes de euros pedidos tambm cobrem estes

    itens?

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    Soldados alemes pilham loja grega, 1941

    Se no h dvida de que o comportamento alemo foi infame,

    paradoxal que a Grcia apresente uma conta to longa e

    detalhada Alemanha e no reivindique um cntimo a Itlia.

    Afinal de contas, Hitler no tinha planos para a Grcia no

    curto prazo, j que no longo prazo Hitler tinha planos at para

    Madagscar , e quem invadiu a Grcia, a 28 de Outubro de

    1940, foi a Itlia. No havia nenhum pretexto vlido que Itlia

    pudesse invocar para esta agresso, apenas uma vaga pulso

    imperialista na zona dos Balcs, umas descabeladas

    reivindicaes territoriais (algumas ilhas gregas tinham, em

    tempos remotos, sido possesses venezianas) e alguns cimes de

    Mussolini perante a sucesso de retumbantes vitrias de Hitler.

    Itlia lanou o ataque a partir da Albnia (que ocupara sem

    resistncia em 1939), mas os gregos no s repeliram o exrcito

    italiano um dos mais ineptos e desmotivados dos que lutaramna II Guerra Mundial como irromperam pelo territrio

    http://observador.pt/wp-content/uploads/2015/07/bundesarchiv_bild_101i-163-0318-31_griechenland_deutsche_soldaten_in_geschaft1.jpg
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    albans. O que era para ter sido um passeio das foras italianas,

    acabou com gregos e italianos engalfinhados em interminveis

    escaramuas na Albnia, os britnicos a intrometerem-se no

    assunto e a enviarem avies para a Grcia, de onde poderiam

    bombardear as zonas petrolferas da Romnia (indispensveis Alemanha), a que se somou, a 27 de Maro de 1941, um golpe de

    estado em Belgrado que deps o regente, o prncipe Paulo, que

    acabara de assinar um pacto com a Alemanha.

    Hitler, que estava a ultimar os preparativos para invadir a

    URSS, precisava de tudo menos de confuses na sua retaguarda,

    pelo que, agastado com Mussolini (que tomara a iniciativa de

    invadir a Grcia sem avisar o seu aliado), se viu forado a pr

    termo instabilidade criada pelo Duce nos Balcs. F-lo com a

    rapidez e impiedosa eficcia de que j dera provas: a 1 de Junho

    toda a regio estava sob controlo.

    Um Panzer atravessa as ruas de Atenas, 1943

    Como escreve Mark Mazower emDark Continent(editado em

    http://observador.pt/wp-content/uploads/2015/07/bundesarchiv_bild_101i-175-1270-36_athen_kolonne_von_panzer_iv.jpg
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    Portugal como O Continente das Trevas, pelas Edies 70), a

    Grcia teria provavelmente, conseguido manter-se neutra se a

    desastrada invaso italiana no tivesse desencadeado a

    interveno britnica e a consequente resposta alem. Em vez

    disso, acabou destroada e dividida em trs zonas de ocupao:alem, italiana e blgara.

    Zonas de ocupao da Grcia durante a II Guerra Mundial: alem a vermelho, italiana

    a azul, blgara a verde

    A vida da Grcia sob a ocupao foi dura: no Inverno de 1941-42

    morreram cerca de 40.000 pessoas de fome, a maioria em

    Atenas, em resultado da combinao da destruio das redes de

    comunicaes, das pilhagens e requisies de alimentos feitas

    pelos alemes, da elevada taxa de desemprego, da inflaogalopante, da desarticulao geral da economia e do

    http://observador.pt/wp-content/uploads/2015/07/triple_occupation_of_greece.jpg
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    aambarcamento pelos gregos.

    Como escreve Mark Mazower, emHitlers Empire(editado em

    Portugal como O Imprio de Hitler, pelas Edies 70), ningum

    tinha desejado ou planeado a fome, mas os alemes tambm nose deram ao trabalho de fazer algo para a aliviar. Continuaram a

    requisitar alimentos e no providenciaram assistncia. A fome

    tambm chegou Grcia sob controlo italiano, mas quando o

    nmero de vtimas comeou a crescer os italianos enviaram

    vveres porm, o caos administrativo instaurado no sector

    italiano levou a que ocorressem episdios trgicos nalgumas

    ilhas gregas, nomeadamente em Syros, onde tero morrido de

    fome 8000 dos seus 17.000 habitantes.

    No sector alemo nada foi feito ou melhor, em Atenas havia

    oficiais alemes (o relato encontra-se em The Third Reich

    at War, de Richard J. Evans) que se divertiam a atirar restos de

    comida, a partir das varandas, aos bandos de midos

    esfomeados na rua e a v-los lutar por uma cdea. Gring

    justificou-se assim: No podemos preocupar-nos demasiado

    com os gregos. So vtimas de um infortnio que tambm afecta

    outros povos.

    Recorrendo a esteretipos que ainda continuam a ter aceitao

    na Europa setentrional, um jornal alemo escreveu: Ser que a

    populao das cidades gregas, que actualmente parece ser

    constituda apenas por traficantes, agentes do mercado negro,

    receptadores de bens furtados, ladres e gente que no quer

    trabalhar, merece ser mantida viva atravs dos mantimentos do

    Eixo? Veremos durante quanto tempo podero os pases do

    Eixo, na sua rdua luta, continuar a sustentar uma populao de

    milhes de ociosos.

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    Toda a Europa sob o jugo alemo passou fome e outras

    privaes, mas o tratamento foi desigual: os alemes foram mais

    brandos com os povos com que sentiam algumas afinidades,

    como os dinamarqueses, os holandeses, os belgas, os

    noruegueses e at os franceses, foram mais brutais e insensveiscom os povos balcnicos e piores ainda com os polacos e

    soviticos de acordo com Mazower, foi na URSS, Jugoslvia e

    Grcia que a morte pela fome atingiu grandes propores.

    Guerrilheiros do ELAS

    Entretanto, a resistncia grega, tirando partido da natureza

    montanhosa e da m rede de comunicaes do pas e da tradio

    de guerrilha contra o jugo otomano, foi mostrando-se

    particularmente activa, o que explica (no justifica) a ferocidade

    das represlias, que reduziram a cinzas centenas de aldeias edeixaram um milho de gregos sem tecto. Mas se verdade que

    http://observador.pt/wp-content/uploads/2015/07/elas.jpg
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    os alemes executaram 21.000 gregos durante a ocupao, os

    italianos executaram 9.000 e os blgaros, 40.000.

    Um cartaz identifica o local onde existiu uma aldeia grega, arrasada como represlia

    por uma emboscada a tropas alems pela guerrilha grega. Creta, 1943

    No incio, o sector italiano da Grcia manteve-se relativamente

    calmo, embora ao lado, na Jugoslvia, as foras de ocupao

    italianas estivessem j a aplicar os mtodos anti-guerrilha que

    http://observador.pt/wp-content/uploads/2015/07/bundesarchiv.jpg
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    aplicaram nas campanhas da Lbia e da Etipia: campos de

    concentrao, fuzilamento de refns, aldeias arrasadas e poltica

    de terra queimada. Como comenta Mazower em

    Hitlers Empire, s no recorreram a gs venenoso, uma

    deferncia para com os povos de tez mais clara. Quando, noOutono de 1942, a guerrilha grega comeou a causar estragos, os

    italianos rapidamente adoptaram as prticas j aplicadas na

    Jugoslvia. No consta, porm, que o primeiro-ministro italiano

    Matteo Renzi tenha recebido de Tsipras uma conta de milhares

    de milhes de euros para pagar.

    A Itlia pode alegar uma pequena atenuante: quando, em 1943,

    Mussolini foi deposto e um novo governo negociou um

    armistcio com os Aliados, as tropa alems no s assumiram o

    controlo da zona italiana da Grcia como submeteram as tropas

    que dias antes eram suas aliadas ao mesmo tratamento que

    ambos dispensavam aos insurrectos gregos: execues em

    massa. S em Cefalnia foram executados 5300 soldados

    italianos por traio (isto , por obedecerem ao seu novo

    governo). Nas ilhas de Corfu e Kos os alemes limitaram-se a

    executar todos os oficiais italianos.

    Prudentemente, a Bulgria s fizera entrar as suas tropas na

    Jugoslvia e na Grcia depois de as tropas alems terem feito o

    trabalho perigoso e sujo, mas reclamou para si uma rea de

    16.000 km no norte da Grcia (boa parte da Trcia e da

    Macednia). Enquanto alemes e italianos se afirmaram como

    ocupantes, a Bulgria anexou esta rea ao seu territrio e

    confrontou a populao com esta opo: expulso ou

    bulgarizao.

    No final de 1941, 100.000 gregos tinham sido expulsos (muitos

    foram enviados como trabalhadores-escravos para a Alemanha)

  • 7/24/2019 Uma Factura Detalhada Para Angela Merkel - Observador

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    e os que ficaram viram-se proibidos de usar a lngua grega,

    foram expropriados de terrenos e casas em favor das dezenas de

    milhar de colonos blgaros que se instalaram na regio e

    ficaram sujeitos a um regime de trabalhos forados. Quando, em

    Setembro de 1941, os gregos se revoltaram contra estas polticasinquas, foram selvaticamente esmagados: s na cidade de

    Drama foram executados 3000 gregos e mais 15.000 morreram

    nas operaes de contra-insurgncia em torno da cidade.

    Evans (The Third Reich at War) estima que a represso pelos

    blgaros das revoltas gregas de Setembro de 1941 ter causado

    45.000 a 60.000 mortos. As condies no territrio anexado

    pela Bulgria eram tais que muitos gregos procuraram refgio

    no sector alemo. Porm, Alexis Tsipras no se apressou a

    visitar o memorial s vtimas do levantamento de Drama e

    Boyko Borissov, primeiro-ministro blgaro, no foi confrontado

    pelo governo grego com pedidos de reparaes.

    Memorial evocativo do massacre de Distomo, levado a cabo por alemes, em 1944

    http://observador.pt/wp-content/uploads/2015/07/800px-20090802_distomo05.jpg
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    Se se quiser levar a contabilidade deste perodo negro da

    histria dos Balcs, o prprio governo grego poderia ser

    confrontado com uma factura incmoda: as relaes entre os

    gregos e os cham, albaneses muulmanos que viviam em

    territrio grego, nunca tinham sido boas e agravaram-se quandovrios bandos chamcolaboraram entusiasticamente com o Eixo

    na pilhagem e represso do povo grego. Tal serviu de pretexto

    para que, em Setembro de 1944, a guerrilha nacionalista grega

    (EDES) desencadeasse (nas palavras de oficiais britnicos

    presentes na regio) uma orgia de vingana: s em Paramithia

    os gregos tero morto 600 homens, mulheres e crianas cham.

    Os que escaparam aos massacres foram expulsos para o

    territrio albans.

    Porm, se Edi Rama, o primeiro-ministro albans, apresentasse

    hoje aos gregos a conta do que fizeram em Paramithia em 1944,

    estes poderiam alegar que apenas estavam a fazer justia pelo

    que os chamfizeram em Paramithia em 1943: numa aco

    conjunta com os alemes, os chamtinham executado 200 civis

    gregos e destrudo 19 aldeias. O relatrio do coronel Chris

    Woodhouse, chefe da Misso Militar Aliada na Grcia, conclua

    assim o relato desta pavorosa srie de represlias: Os cham

    tiveram o que mereciam, mas os mtodos de Zervas [o lder do

    EDES] foram pssimos []. O resultado foi uma deslocao de

    populaes, removendo uma minoria indesejada do solo grego.

    Talvez seja melhor deixar as coisas como esto.

    Mas seria de esperar que os gregos tratassem estrangeiros de

    outra etnia e religio com maior humanidade se eles prprios

    comearam a envolver-se em ferozes lutas intestinas? As

    primeiras escaramuas tinham surgido em 1942, ecoando o que

    j acontecera na guerra de libertao contra os turcos, em 1824-25, mas foi a partir de finais de 1944, no vcuo de poder criado

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    pela retirada alem, que o conflito se agudizou houve uma

    pausa em 1945-46, mas, na prtica a Grcia esteve em guerra

    civil, opondo faces de direita (EDES) e esquerda (ELAS) at

    1949.

    No incio, alguns dos dios entre faces de guerrilha foram

    promovidos pelos alemes, que j tinham vindo a aplicar a

    tcnica de dividir para reinar na Jugoslvia. Aps um estmulo

    inicial, mediante a constituio pelos alemes de batalhes de

    segurana e esquadres de morte, recrutados entre criminosos

    e arruaceiros e a quem foi dada carta branca na guerra contra

    comunistas e bandidos (Mazower, emHitlers Empire), os

    gregos rapidamente se engalfinharam num conflito sangrento

    sem necessidade de mais incitamento.

  • 7/24/2019 Uma Factura Detalhada Para Angela Merkel - Observador

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    Homem acusado de ajudar a resistncia, executado pelos batalhes de segurana

    armados pelos alemes para reprimir a guerrilha comunista, em 1943

    Seja como for, na Europa a questo das reparaes da II Guerra

    Mundial parece ser um assunto estritamente alemo, que no

    diz respeito s outras potncias do Eixo: Itlia, Bulgria,

    Hungria e Romnia. A Itlia parece ter sido absolvida de tudo

    pela rendio em 1943 e sobre os parceiros menores desceu um

    vu de olvido.

    http://observador.pt/wp-content/uploads/2015/07/bundesarchiv_bild_101i-179-1552-13_griechenland_erhangter_mann_in_ortschaft.jpg
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    Tome-se o caso da Romnia e bastar recordar a perseguio e

    extermnio dos judeus da Bessarbia, Bukovina e Transnstria

    promovida pelo marechal Ion Antonescu, o ditador

    (conducatore) romeno. Os judeus no foram as nicas vtimas

    da ferocidade romena: na Transnstria (que pouco tem a vercom a Transnstria de hoje), habitada maioritariamente por

    ucranianos, a palavra de ordem era pilhar e romenizar e

    Antonescu deu instrues aos seus ministros para tirar tudo

    quanto for possvel da Transnstria, mas sem deixar registos

    escritos.

    Mas foi sobre os judeus que a fria e o desnorte dos romenos se

    abateu mais implacavelmente: num ano, a combinao de

    pogroms, execues em massa e deportaes em condies

    desumanas causou 280.000 a 380.000 vtimas e revestiu-se de

    tal selvajaria que levou um elemento das SS a comentar que as

    execues sdicas levadas a cabo inadequadamente pelos

    romenos deveriam ser implementadas segundo procedimentos

    mais planeados, uma apreciao que est em consonncia com

    a de outro observador alemo: Os romenos actuam contra os

    judeus sem a mais vaga ideia de um plano. Ningum objectaria

    eliminao macia de judeus, no fosse os aspectos tcnicos da

    sua concepo e execuo serem to deficientes.

    Em 1944, quando o Exrcito Vermelho se aproximava j das

    fronteiras romenas, relata Mazower (Hitlers Empire) que o

    Ministro da Defesa romeno sugeriu que se limpassem os locais

    dos massacres de forma a encobrir as atrocidades, ao que o

    marechal Antonescu, que emitira ordens directas e explcitas

    para os massacres, retorquiu: Do que est voc a falar?. A

    amnsia que atacou Antonescu parece ter-se estendido,

    entretanto, a quase todo o mundo.

  • 7/24/2019 Uma Factura Detalhada Para Angela Merkel - Observador

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    Na Europa, a questo das reparaes da II Guerra

    Mundial parece ser um assunto estritamente

    alemo, que no diz respeito s outras potnciasdo Eixo: Itlia, Bulgria, Hungria e Romnia. A

    Itlia parece ter sido absolvida de tudo pela

    rendio em 1943 e sobre os parceiros menores

    desceu um vu de olvido.

    Mas o pas que se evade mais airosamente de responsabilidades

    na II Guerra Mundial a ustria: o facto de ter sido anexada

    pela Alemanha em 1938 tornou-a quase completamente

    invisvel. A ustria chegou mesmo a apresentar-se como a

    primeira vtima da Alemanha nazi, quando na verdade a

    sociedade austraca acolheu genericamente de bom grado aunio com a Alemanha (um plebiscito realizado em

    condies duvidosas, certo deu 99.7% de aprovao

    anexao) e forneceu s altas esferas nazis vrias figures e

    criminosos de guerra notrios, como Otto Skorzeny, Odilo

    Globocnik ou Adolf Eichmann.

    No seria descabido remeter para o governo austraco parte dafactura de 278.000 milhes de euros exigida Alemanha:

    atendendo proporo das suas populaes, caberia aos

    austracos uma quota de 1/10 da soma total, acrescida de uma

    sobretaxa por o responsvel ltimo da guerra Hitler ser

    austraco.

    Tambm o melhor aliado que a Alemanha teve entre 1939 e 1941foi automaticamente ilibado em Junho de 1941, quando Hitler

  • 7/24/2019 Uma Factura Detalhada Para Angela Merkel - Observador

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    invadiu o seu territrio. No entanto, at essa data, a URSS tivera

    um comportamento to reprovvel aos olhos da comunidade

    internacional como a Alemanha: invaso da Polnia (Setembro

    de 1939) e da Finlndia (Novembro de 1939), fornecimento de

    alimentos e matrias-primas (incluindo petrleo) indispensveisao esforo de guerra nazi, cedncia (discreta) de uma base de

    apoio a submarinos alemes no Mar de Barents. Em Junho e

    Julho de 1940, ao ver que Hitler levava de vencida a Frana e a

    Gr-Bretanha, a URSS sentiu-se vontade para ocupar a

    Litunia, Letnia e Estnia, e roubar um substancial naco da

    Romnia (Bukovina e Bessarbia) afinal de contas j tinha

    sido expulsa da Sociedade das Naes pela invaso da Finlndia,

    que mais tinha a perder?

    No seria descabido remeter para o governo

    austraco parte da factura de 278.000 milhes de

    euros exigida pela Grcia Alemanha: atendendo

    proporo das suas populaes, caberia aos

    austracos uma quota de 1/10 da soma total,

    acrescida de uma sobretaxa por o responsvel

    ltimo da guerra Hitler ser austraco.

    A Frana e a Gr-Bretanha, que tinham entrado na guerra em

    resposta agresso alem Polnia, nunca se sentiram tentadas

    a declarar guerra URSS por ter feito a mesma coisa. Pior do

    que isso, como assinala Laurence Rees em World War II:

    Behind Closed Doors(editado em Portugal comoA II GuerraMundial: Porta Fechada, pela Bertrand), no s o governo

  • 7/24/2019 Uma Factura Detalhada Para Angela Merkel - Observador

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    britnico sabia das atrocidades que os soviticos estavam a

    perpetrar na Polnia Oriental, como tambm estava ansioso por

    se calar acerca delas embora, como evidente, condenasse

    abertamente os nazis na Polnia Ocidental por cometerem

    crimes semelhantes. O desencadear da Operao Barbarossalimpou o pesado cadastro da URSS e f-la passar,

    automaticamente, de carrasco a vtima.

    Cartaz sovitico representa a invaso da Polnia pela URSS como a libertao dos

    irmos ucranianos que viviam sob o ltego polaco h sculos

    E que juzo pode fazer-se dos pases ditos neutrais? Quantos

    http://observador.pt/wp-content/uploads/2015/07/409px-tsarstvo_kanchukiv.jpg
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    milhares de vidas teriam sido poupadas se Portugal tivesse

    interrompido o fornecimento Alemanha de tungstnio, um

    metal crucial para o fabrico de armamento? E em que posio

    fica a Sucia, que foi um dos principais fornecedores de minrio

    de ferro indispensvel ao esforo de guerra germnico e que, em1941, permitiu o trnsito por territrio sueco de tropas alems

    entre a Noruega e a Finlndia, onde se juntaram s unidades

    que invadiram a URSS? A Sua, que aceitou converter em

    francos suos o ouro pilhado pelos alemes aos bancos centrais

    dos pases ocupados, no deveria ser chamada a prestar contas?

    No s estes delitos menores no foram punidos como at a

    Alemanha conseguiu sair do imbrglio das reparaes de guerra

    com poucas despesas quando se considera a devastao e

    sofrimento que causou e limitou-se a fazer alguns pagamentos

    a Israel, Polnia, Jugoslvia e URSS (nestes dois ltimos casos

    sob a forma da entrega de equipamento fabril), alm do j

    mencionado pagamento Grcia de 150 milhes de marcos, em

    1960.

    instrutivo confrontar este desfecho com o da I Guerra

    Mundial, em que os Aliados impuseram pesadssimas

    reparaes Alemanha a ustria, a Hungria e a Turquia

    escaparam-se porque estavam financeiramente arruinadas. As

    quantias exigidas Alemanha primeiro de 269 mil milhes de

    marcos, ajustados em 1921 para 132 mil milhes eram

    colossais. Na prtica, acabaram por ser acordados montantes

    mais realistas e mesmo estes pagamentos sofreram adiamentos

    sucessivos, pois a economia alem dos anos 20 e 30 passou por

    vrias crises srias.

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    A hiper-inflao de 1923 na Alemanha tornou o valor do marco to irrisrio que as

    notas foram usadas para fazer a vez de papel de parede

    Do lado aliado nem todos concordaram com estas reparaes

    e um deles foi o economista John Maynard Keynes, que fora

    delegado do Tesouro Britnico na conferncia que resultou no

    Tratado de Versailles e que considerava as reparaes impostas

    Alemanha excessivamente pesadas, tese que exps no livro

    The Economic Consequences of Peace, de 1919, em que

    lamentava que os ideais do presidente americano WoodrowWilson tivessem sido suplantados pela viso vingativa e

    http://observador.pt/wp-content/uploads/2015/07/bundesarchiv_bild_102-00104_inflation_tapezieren_mit_geldscheinen.jpg
  • 7/24/2019 Uma Factura Detalhada Para Angela Merkel - Observador

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    mesquinha do primeiro-ministro francs Georges Clemenceau,

    secundado pelo primeiro-ministro britnico David Lloyd

    George.

    Ainda hoje os economistas discutem se as reparaes impostas Alemanha seriam excessivas e se o seu pagamento integral

    conduziria inevitavelmente ao colapso da economia alem. Mas,

    o que indesmentvel que o povo alemo as sentia como

    excessivas e injustas e isso contribuiu decisivamente para que

    dirigissem as suas simpatias e o seu voto para um lder que fez

    campanha com osloganNo pagamos!. Chamava-se Adolf

    Hitler e, efectivamente, cancelou os pagamentos das reparaes

    assim que se tornou chanceler. Os pagamentos s seriam

    reatados muito mais tarde o derradeiro foi realizado a 3 de

    Outubro de 2010, 92 anos aps o trmino das hostilidades.

    A II Guerra Mundial foi um momento tomonstruoso, e o seu novelo de crimes, represlias

    e contra-represlias to emaranhado, que

    qualquer tentativa de ajuste de contas redundar

    necessariamente em fracasso e despertar um

    enxame maligno de dios e recriminaes.

    Independentemente das discusses em torno dos montantes das

    reparaes, a verdade que a I Guerra Mundial foi mal

    concluda e deixou latentes as tenses que haveriam de estoirar

    em 1939. Ao reconhecer que a lgica vingativa que presidira aoTratado de Versailles tinha sido contraproducente, os

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    vencedores da II Guerra Mundial foram mais benvolos para

    com os derrotados e no se empenharam em extrair da

    Alemanha (e do Japo) as compensaes pelos estragos e

    sofrimento causados e isto apesar de a culpa da Alemanha na

    II Guerra ser bem mais pesada e inequvoca do que na I Guerra.

    A II Guerra Mundial foi um momento to monstruoso, infame e

    vergonhoso da histria da humanidade (e em particular da

    histria da Alemanha), o novelo de crimes, represlias e contra-

    represlias to emaranhado, que qualquer tentativa de ajuste

    de contas redundar necessariamente em fracasso e despertar

    um enxame maligno de dios e recriminaes.

    Os alemes tinham-se comportado como bestas, mas a Europa

    iria ter de continuar a viver com eles. Assim, o caminho tomado

    pelos vencedores seguiu, em linhas gerais, a posio do chefe da

    Misso Militar Aliada na Grcia a propsito do antagonismo

    greco-albans: Talvez seja melhor deixar as coisas como esto.

    A nica forma de os europeus continuarem a viver juntos em

    paz passa no por esquecer o passado, mas por aceitar no

    guardar rancores e ressabiamentos sobre o momento mais negro

    e desvairado da sua histria.

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    26 de Janeiro de 2015: Alexis Tsipras homenageia as vtimas da represso alem em

    Kaisariani

    Tsipras poderia ter escolhido como gesto simblico de incio de

    mandato algo que desse a entender que estava decidido a acabar

    com a natureza clientelar do Estado grego, a combater a

    economia informal ou a montar uma mquina fiscal equitativa

    e eficaz um pas que tem um PIB per capita da ordem dos

    19.000-20.000 euros e atravessa uma grave crise humanitria

    tem, necessariamente, graves assimetrias na distribuio dos

    rendimentos.

    Em vez disso, escolheu visitar Kaisariani, o que representa uma

    quebra de um entendimento tcito de deixar as coisas como

    esto entre as naes europeias e, ao mesmo tempo, sugere que

    a crise grega resulta sobretudo de causas exteriores, do dedo

    estrangeiro. Mark Mazower, citado num artigo recente no

    http://observador.pt/wp-content/uploads/2015/07/alexis_tsipras_at_the_national_resistance_memorial_kaisariani.jpg
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    jornalEkathimerini, aponta Grcia uma tendncia para

    atribuir os seus infortnios escassa liberdade de manobra e

    sujeio a pases poderosos. Agora os alemes, antes os turcos,

    antes ainda os romanos desde 146 a.C., quando as legies

    romanas derrotaram as falanges gregas em Corinto, que hestrangeiros a impor Grcia o seu diktate a impedi-la de ser

    livre, feliz e prspera.

    Tsipras tem o pleno direito de entender injustas e inadequadas

    as condies impostas, no mbito do resgate financeiro, pela

    troikae pela Alemanha e de lutar para as tornar mais favorveis

    com todas as suas energias, mas escusava de voltar a abrir a

    caixa de horrores que foi a II Guerra Mundial. Parafraseando

    uma personagem de Ulisses, de James Joyce, a histria um

    pesadelo de que a Europa tem estado a tentar despertar mas

    aps 70 anos de relativa tranquilidade, h quem queira pux-la

    novamente para dentro do pesadelo.