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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
FACULDADE DE LETRAS
DOUTORADO EM LETRAS NEOLATINAS
UMA HISTÓRIA DE POLITIZAÇÃO
DO ENSINO DE ESPANHOL:
Associação de Professores de Espanhol do
Estado do Rio de Janeiro
Dayala Paiva de Medeiros Vargens
RIO DE JANEIRO
2012
Dayala Paiva de Medeiros Vargens
UMA HISTÓRIA DE POLITIZAÇÃO DO ENSINO DE
ESPANHOL:
Associação de Professores de Espanhol do Estado do Rio de
Janeiro
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras Neolatinas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como
quesito para a obtenção do Título de Doutor em
Letras Neolatinas (Estudos Linguísticos
Neolatinos – Opção Língua Espanhola)
Orientadora: Profa. Dra. Consuelo Alfaro
Co-orientadora: Profa. Dra. Del Carmen Daher
RIO DE JANEIRO
2012
VARGENS, Dayala Paiva de Medeiros Vargens.
UMA HISTÓRIA DE POLITIZAÇÃO DO ENSINO DE
ESPANHOL: Associação de Professores de Espanhol do Estado do
Rio de Janeiro / Dayala Paiva de Medeiros vargens – Rio de Janeiro:
UFRJ / Faculdade de Letras, 2012.
xv, 270 f.: il.; 29,7cm
Orientadores: Maria Aurora Consuelo Alfaro Lagorio e Maria del
Carmen Fátima González Daher.
Tese (Doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Faculdade de Letras, Programa de Pós-graduação em Letras
Neolatinas, 2012.
1. Espanhol. 2. Associacionismo. 3. Estudos Linguísticos
Neolatinos - Teses. I. Alfaro Lagorio, Maria Aurora Consuelo. II.
Daher, Maria del Carmen Fátima González. III. Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Letras Neolatinas. IV. Título.
Dayala Paiva de Medeiros Vargens
UMA HISTÓRIA DE POLITIZAÇÃO DO ENSINO DE ESPANHOL:
Associação de Professores de Espanhol do Estado do Rio de Janeiro
Tese apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras Neolatinas da
Universidade Federal do Rio de Janeiro como
quesito para a obtenção do Título de Doutor em
Letras Neolatinas (Estudos Linguísticos
Neolatinos – Opção Língua Espanhola)
Aprovada em:
______________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Aurora Consuelo Alfaro Lagorio
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
_______________________________________________________________
Profa. Dra. Maria Mercedes Riveiro Quintans Sebold
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
_______________________________________________________________
Prof. Dr. Antonio Francisco de Andrade Junior
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
________________________________________________________________
Prof.a Dra. Vera Lúcia de Albuquerque Sant´Anna
Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ
________________________________________________________________
Profa. Dra. Luciana Maria Almeida de Freitas
Universidade Federal Fluminense - UFF
______________________________________________________________
Profa. Dra. Leticia Rebollo Couto- Suplente
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
______________________________________________________________
Prof. Dr. Xoán Carlos Lagares Diez- Suplente
Universidade Federal Fluminense - UFF
Dedico este trabalho
à Maricota, na esperança de
tempos mais justos e
aos professores de espanhol do
Estado do Rio de Janeiro que, em
condições adversas, persistem para
que tenhamos uma educação
linguística criativa e emancipatória.
AGRADECIMENTOS
Uma tese de doutoramento é uma longa viagem, com muitos percalços pelo caminho. Este
trabalho não teria sido possível sem a ajuda de muitas pessoas às quais agradeço
profundamente:
Em primeiro lugar, aos professores de espanhol que trabalharam em prol dos interesses da
APEERJ ao longo das últimas décadas. Sem eles esta pesquisa não existiria. Agradeço
especialmente a Professora Maria de Lourdes Cavalcanti Martini, fundadora e primeira
presidenta da APEERJ, que me recebeu gentilmente em sua casa, dando-me inspiração
para o desenvolvimento deste trabalho.
A Consuelo Alfaro, pela atenção dispensada, orientação provocadora de novas reflexões.
A Del Carmen Daher, que me deu a oportunidade do primeiro contato com a pesquisa
acadêmica em uma iniciação científica. Orientadora sempre presente, amiga, interlocutora
neste e em muitos outros trabalhos, agradeço profundamente pelo tempo e paciência
dedicados a esta tese e a outras etapas de minha formação.
A Vera Sant‟Anna e Luciana Freitas, pelos valiosos subsídios que me deram durante o
Exame de Qualificação desta pesquisa e em outros momentos de troca que felizmente
vivenciamos ao longo dos últimos anos.
Aos professores Antonio Andrade e Mercedes Sebold por também aceitarem compor a
Banca Examinadora desta tese.
A Luciana Freitas, amiga incansável, registro aqui o meu muito obrigado pela amizade e
encorajamento para assumir as tarefas de mãe, trabalhadora e doutoranda a um só tempo.
Ao nosso trabalho em parceria na Prática de Ensino e as nossas longas conversas, devo
muitas das reflexões que aqui se apresentam.
Aos colegas de área de Pesquisa e Prática de Ensino de Letras da UFF, em especial,
Ricardo Almeida e, novamente, Luciana Freitas, pelas doses de companheirismo e
compreensão diárias. A Ricardo, agradeço imensamente pelo abstract.
A Viviane Antunes, Elda Firmo Braga e Talita Barreto pelo incentivo constante nesta
trajetória.
Não posso deixar de destacar a participação de Maria de Lourdes Martini,Viviane Antunes,
Cristina Vergnano e, mais uma vez, Luciana Freitas por fornecerem generosamente
informações importantes e parte do material necessário a esse trabalho.
Meu muito obrigada à aluna de Letras da UFF, Patrícia Reis, que digitalizou parte dos
documentos da APEERJ.
A Maria Goretti, Áurea Paiva, Tania Martins, Andrea Ribeiro, Ademir Ribeiro e Carmem
Nascimento, Angela Ferraz que, na minha ausência, ajudaram a cuidar de minha filha
sempre com amor e muita alegria. Meu muito obrigada especial a Áurea e a Tania.
Maricotinha tem as melhores “bobós” do mundo!
Aos “Ferraz”, agradeço por fazerem parte deste e de todos os momentos importantes da
minha vida. À tia Angela, agradeço por me ouvir a qualquer hora do dia e da noite.
A meu irmão, Tárik, e a Carla Nascimento, pela amizade que não conhece distância.
A meu pai, João Baptista, que, desde menina, me apresentou o gosto por histórias. À
Renata Mansour, pela doçura e amizade.
Agradeço, especialmente, a minha mãe, que sempre dispensou enorme carinho e atenção
comigo. Sem o seu apoio incondicional, eu não conseguiria embarcar nesta e em muitas
histórias importantes para mim.
A “Didi”, que compartilhou momentos alegres e tristes desta caminhada, deixo
carinhosamente, o meu muito obrigada.
RESUMO
VARGENS, Dayala Paiva de Medeiros Vargens. Uma história de politização do ensino de
espanhol: Associação de Professores de Espanhol do Estado do Rio de Janeiro. 2012. 270f. Tese
(Doutorado em Letras Neolatinas) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.
Este trabalho tem como objetivo analisar materialidades discursivas produzidas pela
Associação de Professores de Espanhol do Estado do Rio de Janeiro (APEERJ) ao longo
da sua trajetória com o propósito de identificar o embate entre diferentes posicionamentos
concernentes às políticas de implantação do ensino de espanhol no sistema escolar. Ditos
posicionamentos apontam para a constituição de traços identitários da APEERJ, que
estiveram sujeitos à transformação ao longo do tempo. Com embasamento teórico oriundo
da Análise do Discurso de linha francesa (MAINGUENEAU, 1997, 2002) e da concepção
dialógica da linguagem (BAKHTIN, 2000), a investigação pautou-se, mais
particularmente, para a operacionalização da análise, nos conceitos de heterogeneidade
mostrada/ constitutiva (AUTHIER REVUZ, 1998) e nas formulações de Ducrot (1987)
para identificar o mecanismo polêmico. A delimitação do material de pesquisa privilegiou
atas de reunião e cartas públicas produzidas por essa associação durante os seus anos
fundacionais (1981 a 1989) e os seus mandatos mais recentes (2006-2011). As conclusões
da análise apontam para a identificação de diversos posicionamentos enunciativos que se
configuram nas textualidades da APEERJ: o enunciador condescendente, o enunciador
pesquisador, o enunciador especialista, o enunciador educador e o enunciador engajado.
Palavras-chave: ensino de espanhol; ensino de línguas estrangeiras; arquivo, Análise do
discurso; associacionismo docente
RESUMEN
El reto de este trabajo es analizar materialidades discursivas producidas por la Associação
de Professores do Estado do Rio de Janeiro (APEERJ) a lo largo de su trayectoria,
buscándose identificar el confronto entre diferentes posiciones de enunciación relativas a
las políticas de implantación de la enseñanza de español en el sistema escolar. Esas
posiciones señalan la constitución de rasgos identitarios de APEERJ, que se transformaron
a lo largo del tiempo. Con el aporte teórico del Análisis del Discurso de vertiente francesa
(MAINGUENEAU, 1997, 2002) y de la concepción dialógica del lenguaje (BAKHTIN,
2000), esta investigación se basó, más particularmente, para a operacionalización del
análisis en los conceptos de heterogeneidad mostrada/ constitutiva (AUTHIER REVUZ,
1998) y en las formulaciones de Ducrot (1987) para identificar el mecanismo polémico. La
delimitación del material de pesquisa privilegió atas de reunión y cartas públicas
producidas por esa asociación durante sus años fundacionales (1981 a 1989) y sus más
recientes mandatos (2006-2011). Las conclusiones del análisis posibilitan la identificación
de diversos enunciadores que se configuran en las textualidades de APEERJ: el enunciador
condescendiente, el enunciador pesquisador, el enunciador especialista, el enunciador
educador y el enunciador politizado.
Palabras clave: enseñanza de español; enseñanza de lenguas extranjeras; archivo,
Análisis del discurso; asociacionismo docente
ABSTRACT
The goal of this thesis is to analyze discursive materials produced by APEERJ (the
Association of Teachers of Spanish in Rio de Janeiro) throughout its history, with the
purpose of identifying the dispute between different points of view concerning the policies
for the implementation of the teaching of Spanish in the school system. Those positions
point to the constitution of APEERJ‟s identity features, which have been subjected to
change through time. With its theoretical basis provided by the French tradition of
Discourse Analysis (MAINGUENEAU, 1997, 2002) and by the dialogical view of
language (BAKHTIN, 2000), the investigation focused, more specifically, in order to get
the analysis done, in the concepts of shown/constitutive heterogeneity (AUTHIER
REVUZ, 1998) and in the formulations by Ducrot (1987) to identify the polemic
mechanism. The delimitation of the research material has privileged the minutes of the
meetings and the public letters produced by the association during its early years (1981-
1989) and in more recent times (2006-2011). The conclusions of the analysis point to the
identification of several different enunciative positions that configure the textualities of
APEERJ: the subservient utterer, the researcher utterer, the specialist utterer, the educator
utterer, and the protester utterer.
Key-words: Spanish teaching; foreign language teaching; Discourse Analysis; teachers‟
associations
LISTA DE FIGURAS
Figura no 1: Pasta arquivo da APEERJ................................................................... 23
Figura no 2: Slide apresentado na cerimônia de abertura do XIV Congresso
Brasileiro de Professores de Espanhol. UFF/ 2011.............................
25
Figura no 3: Foto de professoras fundadoras e de ex-diretoras no evento Jubileu de
Prata da APEERJ- UERJ/2006.......................................................
26
Figura no 4: Programação da I Jornadas Didáctico-Pedagógicas APEERJ,
realizada em 2004, na UERJ...............................................................
44
Figura no 5: Fragmento do segundo Estatuto da APEERJ...................................... 49
Figura no 6: Fragmento do primeiro Estatuto da APEERJ .................................... 63
Figura no 7: Fragmento da Ata de fundação da APEERJ ...................................... 65
Figura no 8: Lista de sócios fundadores da APEERJ.............................................. 74
Figura no 9: Programa do I Seminário de Estudos Hispânicos............................... 101
Figura no 10: Ficha de inscrição do I CONBRAPE.................................................. 105
Figura no 11: Conteúdo programático de curso preparatório para concurso de
professor de espanhol promovido pela APEERJ na década de 1980..
107
Figura no 12: Material de divulgação de curso preparatório para concurso de
ingresso no Magistério Estadual.........................................................
108
Figura no 13: Instruções para execução do Decreto 20.833 de 21 de dezembro de
1931........................................................................................................
111
Figura no 14: Gráfico de Oscar Berdugo sobre o Español como Recurso Económico 119
Figura no 15: Folha de abertura do segundo livro de presenças da APEERJ ............. 138
Figura no 16: Primeira ata do biênio 2002-2004. Substituição da forma manuscrita
pela digitalizada.....................................................................................
146
Figura no17: Primeira edição do Boletim Hispânico em tamanho reduzido............... 156
Figura no 18 Ata XVII do dia 24 de novembro de 1984 (reunião diretoria).............. 157
Figura no 19: Ata XXII, 12 de novembro de 1983 (assembleia geral)........................ 159
Figura no 20: Ata XXII, de 31 de agosto de 1985 (reunião específica da diretoria)....
162
Figura no 21: Ata I, do dia 15 de outubro de 1981(assembleia geral)......................... 163
Figura no 22: Ata XXIV, do dia 17 de março de 1984 (assembleia geral).................. 166
Figura no 23: Ata XVI, do dia 31 de julho de 1984 (assembleia geral)....................... 167
Figura no 24: Ata XVII, do dia 19 de novembro de 1982............................................ 167
Figura no 25: Folheto do I Congresso Brasileiro de Professores de Espanhol em
tamanho reduzido...................................................................................
169
Figura no 26: Ata XXI, do dia 15 de outubro de 1986 (assembleia geral)................... 171
Figura no 27: Ata fundacional da APEERJ, dia 15 de outubro de 1981...................... 172
Figura no 28: Ata XXV, do dia 10 de dezembro de 1988 (assembleia geral).............. 173
Figura no 29: Ata de 24 de setembro de 1994.............................................................. 173
Figura no 30: Ata XI, do dia 18 de outubro de 1983 (assembleia geral).................... 175
Figura no 31: Cartaz em tamanho reduzido do 1
o Grupo de Trabalho: Experiências
Exitosas, 2002........................................................................................
179
Figura no 32: Ata de 15 de outubro de 1981 (ata fundacional da APEERJ)................ 180
Figura no 33: Ata XV, do dia 26 de maio de 1984 (assembleia geral)........................ 182
Figura no 34: Ata XVIII, do dia 20 de abril de 1985 (assembleia geral)..................... 183
Figura no 35: Ata do dia 10 de dezembro 1988........................................................... 183
Figura no 36: Ata XXXVII, do dia 16 de dezembro de 1987 (reunião específica da
diretoria).................................................................................................
184
Figura no 37: Ata XVIII do dia 20 de abril de 1985 (assembléia geral)...................... 187
Figura no 38: Ata XXI, do dia 15 de outubro de 1986 (assembléia geral)................... 188
Figura no 39: Ata XXXIV, do dia 03 de julho de 1987 (reunião específica da
diretoria)................................................................................................. 189
Figura no 40: Ata III, 02 de abril de 1982 (assembléia geral)...................................... 189
Figura no 41: Ata XXI, 15 de outubro de 1986............................................................ 191
Figura no 42: Ata XXIII, 15 de agosto de 1987.......................................................... 192
LISTA DE TABELAS
Tabela no 1: Lista dos gêneros mobilizados pela APEERJ........................................ 41
Tabela no 2: O ensino de línguas de 1890 a 1931 em horas de estudo...................... 68
Tabela no 3: Títulos de trabalhos apresentados no I Seminário de Estudos
Hispânicos................................................................................................
102
Tabela no 4: Títulos de trabalhos apresentados no II Seminário de Estudos
Hispânicos................................................................................................
103
Tabela no 5: Temas do campo administrativo organizacional..................................... 152
Tabela no 6: Temas do campo acadêmico pedagógico................................................ 164
Tabela no 7: Temas do campo político educacional..................................................... 179
Tabela no 8: Categorização dos documentos públicos da APEERJ 2006-2011........... 203
Tabela no 9: Destinatários atestados nos documentos da APEERJ.............................. 205
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO...................................................................................................... 16
CAPÍTULO I
ENSINO DE ESPANHOL: MEMÓRIA, IDENTIDADE E ARQUIVO............... 22
1.1 MEMÓRIA DO ENSINO DE ESPANHOL.................................................... 25
1.2 IDENTIDADE COMO PROJETO.................................................................. 32
1.3 ABERTURA DO ARQUIVO DA APEERJ.................................................... 35
1.3.1 Do conceito de arquivo............................................................................ 36
1.3.2 Do arquivo ao corpus............................................................................... 39
1.4 SÍNTESE DO PRIMEIRO CAPÍTULO.......................................................... 46
CAPÍTULO II
SURGIMENTO DA APEERJ: CONDIÇÕES HISTÓRICAS............................... 47
2.1 CENÁRIO POLÍTICO: EMERGÊNCIA DE MODELOS ASSOCIATIVOS. 48
2.1.1 A gênese do associacionismo................................................................. 51
2.1.2 O processo de abertura política............................................................... 54
2.1.3 A organização do movimento docente................................................... 57
2.2 CENÁRIO EDUCACIONAL: GÊNESE DA PROFISSIONALIZAÇÃO
DO PROFESSOR DE ESPANHOL.................................................................
62
2.2.1 O ensino de espanhol no 1º e 2º graus.................................................... 66
2.2.2 O ensino de espanhol na formação universitária.................................... 70
2.3 ENSINO DE ESPANHOL: UMA LEITURA DO TEMPO............................. 75
2.4 SÍNTESE DO SEGUNDO CAPÍTULO........................................................... 81
CAPÍTULO III
POLITICIDADE NO ENSINO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS: DA
INSTRUMENTALIZAÇÃO À EDUCACIONALIDADE.....................................
83
3.1 EDUCAÇÃO E POLÍTICAS DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS................... 85
3.2 ENSINO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS COMO INSTRUMENTO......... 94
3.2.1 Sentidos Belletristas no ensino de línguas............................................... 94
3.2.2 Ensino de espanhol como instrumento da “boa cultura”......................... 98
3.2.3 Sentidos mercadológicos no ensino de línguas....................................... 109
3.2.4 Ensino de espanhol como instrumento do mercado................................ 116
3.3 ENSINO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS COMO ESPAÇO DE
EDUCACIONALIDADE.................................................................................
122
3.3.1 O conceito de libertação no ensino de línguas........................................ 124
3.3.2 A educacionalidade no ensino de espanhol............................................ 128
3.4 SÍNTESE DO QUARTO CAPÍTULO............................................................. 131
CAPÍTULO IV
ATAS DA APEERJ: POR UMA CARTOGRAFIA DE TEMAS.......................... 133
4.1 O PONTO DE VISTA DISCURSIVO............................................................. 134
4.2 CARACTERIZAÇÃO DAS ATAS DA APEERJ............................................ 144
4.3 MAPEAMENTO DE TEMAS......................................................................... 148
4.3.1 Campo administrativo organizacional.................................................... 151
4.3.2 Campo acadêmico pedagógico............................................................... 163
4.3.3 Campo político educacional................................................................... 179
4.4 SÍNTESE DO QUARTO CAPÍTULO............................................................. 198
CAPÍTULO V
CARTAS PÚBLICAS: POR UMA CARTOGRADIA DE ENUNCIADORES.... 200
5.1 DEBATES PÚBLICOS DA APEERJ: UMA CATEGORIZAÇÃO
GENÉRICA......................................................................................................
202
5.2 DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS: OS CONFRONTOS ENTRE
ENUNCIADORES...........................................................................................
209
5.3 MAPEAMENTO DE ENUNCIADORES: AS CARTAS PÚBLICAS........... 216
5.3.1 O enunciador condescendente................................................................ 217
5.3.2 O enunciador educador........................................................................... 225
5.3.3 O enunciador especialista....................................................................... 235
5.3.4 O enunciador pesquisador....................................................................... 239
5.3.5 O enunciador engajado........................................................................... 241
5.4 SÍNTESE DO QUINTO CAPÍTULO............................................................... 247
CONSIDERAÇOES FINAIS..................................................................................... 249
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS...................................................................... 256
ORGANIZAÇÃO DOS ANEXOS NO CD............................................................... 268
Para que serve o sistema educacional- mais ainda
quando público-, se não for para lutar contra a
alienação? Para ajudar a decifrar enigmas do
I Da historicidade no ensino de espanhol
É hoje consensual nas ciências sociais que o interesse pelo estudo do passado se
situa no presente. São as necessidades do tempo presente que constituem a mola propulsora
e o ponto de partida da produção do saber histórico. Antes vista como a interpretação
unívoca do passado, a escrita histórica passou a ser concebida como uma operação que
constrói objetos, já que o passado não é mais tido como algo pronto a ser descoberto ou
revelado.
História e memória, ainda que mantenham relações estreitas, não são identificáveis.
Segundo Chartier (2009), a memória é conduzida pelas necessidades existenciais das
comunidades para as quais a presença do passado é um elemento essencial da construção
de seu ser coletivo. A história, por sua vez, baseada no processamento de vestígios do
passado, propõe uma leitura do tempo.
Optou-se, portanto, iniciar a apresentação deste trabalho, esclarecendo as
motivações que justificam o interesse pela história do ensino de espanhol a partir da
revisitação da memória da Associação de Professores de Espanhol do Estado do Rio de
Janeiro (APEERJ) em pesquisa vinculada à área de Letras Neolatinas / Língua Espanhola.
Preliminarmente, é preciso levar em consideração a abrangência dessa área, que
reúne diferentes vertentes de estudo com abordagens teóricas e encaminhamentos
metodológicos igualmente diversificados. Dentre as múltiplas possibilidades de se
conceber o funcionamento da língua e da linguagem, esta tese se vincula à Análise do
Discurso (AD) de linha francesa1.
A filiação a essa disciplina, que toma como objeto de estudo os enunciados de uma
sociedade produzidos sob determinações de seus gêneros e de suas condições históricas,
1
Maingueneau (1998, p.13-14) define a Análise do Discurso como “a disciplina que, em vez de proceder a
uma análise lingüística do texto em si ou a uma análise sociológica ou psicológica de seu “contexto”, visa
articular sua enunciação sobre um certo lugar social. Ela está, portanto, em relação com os gêneros de
discurso trabalhados nos setores do espaço social (um café, uma escola, uma loja...) ou nos campos
discursivos (político, científico ...).” Quanto à linha francesa (1998, p.70-71) afirma: “podemos falar de
Escola francesa, num sentido amplo, como um conjunto de pesquisas em análise do discurso que, sem
pertencer a uma mesma escola, compartilham de algumas características: estudam, preferentemente, corpus
“escritos”, formações discursivas que apresentam um interesse histórico; refletem sobre a inscrição do
Sujeito no seu discurso; fazem uso das teorias da enunciação lingüística (em particular através dos autores
como Benveniste ou Culioli); atribuem um papel privilegiado ao interdiscurso”.
propicia-nos dialogar com estudos oriundos de outras áreas como a História, a Sociologia e
a Educação. Nossa reflexão também tem um ponto de interseção com o campo da Política
de Línguas2, já que compreendemos as práticas discursivas produzidas pela APEERJ como
lugar exemplar de embates entre políticas concernentes ao ensino de espanhol no Brasil.
Tornar conhecida elementos da memória da APEERJ - e, portanto, de uma
dimensão da memória do ensino de espanhol - por meio da abertura do arquivo
(FOUCAULT, 2004a) dessa entidade, implica também dar maior visibilidade à
complexidade do trabalho do professor que, além da prática pedagógica, abarca outras
frentes de atuação indispensáveis no processo de profissionalização do professorado.
Concebe-se nesta pesquisa o associacionismo docente como uma parte da memória
dessa categoria profissional que não pode ser silenciada em tempos em que a implantação
da língua espanhola no Brasil passou a ser alvo do interesse de forças políticas, por vezes,
antagônicas. Referimo-nos, mais precisamente, ao confronto entre os discursos difusores
da política pan-hispânica e os seus contradiscursos, que procuram combater as tentativas
de intervenção dos primeiros no sistema educacional brasileiro.
O percurso pela materialidade discursiva da APEERJ produzida em diferentes
conjunturas oferece pistas de que o poder da governamentalidade espanhola3
no Brasil não
é recente, mas acompanha os primórdios da organização coletiva dos professores de
espanhol. Seus vestígios estão emaranhados nas redes discursivas que tecem a trajetória
dessa associação e mostram que dita governamentalidade se institui em diferentes campos
de atuação da APEERJ: o campo administrativo, o campo acadêmico e o político em
sentido estrito.
Nessa mesma materialidade discursiva - cujo objeto específico de análise são as
atas de reuniões e as cartas públicas da APEERJ- também foram identificados sentidos
contrários ao que denominamos governamentalidade espanhola. Portanto, pode-se afirmar
que, em relação a esse jogo de forças políticas, rotinas e rupturas constituem a memória da
2
Orlandi (2007, p.7) considera que a denominação “Política Linguística” corre “o risco de sucumbir ao jogo
ideológico que marca essa noção tal como ela é praticada tradicionalmente pela sociolinguística”. Nela, “já se
dão como pressupostas as teorias e também a existência da língua como tal [...] fica implícito que podemos
`manipular´ como queremos a política linguística. A opção pela denominação “Política de Línguas”, segundo
a autora (2007, p.8) dá “à língua o sentido político necessário. Ou seja, não há possibilidade de se ter língua
que não esteja já afetada desde sempre pelo político. Uma língua é um corpo simbólico-político que faz parte
das relações entre sujeitos na sua vida social e histórica”.
3 Propomos essa noção, a partir do conceito de governamentalidade de Foucault (2003; 2008a; 2008b), para
designar o poder da política de promoção da língua espanhola sustentada pelo Estado Espanhol no Brasil em
parceria com o capital transnacional. No terceiro capítulo, desenvolve-se mais amplamente essa noção.
APEERJ. Sentidos de subserviência e de contestação fazem parte da história do ensino de
espanhol
II Da fundamentação teórica
Como antecipamos, esta pesquisa segue a vertente de estudos da Análise do
Discurso de linha francesa. A partir do primado do interdiscurso (MAINGUENEAU,
1997), considera-se a existência de uma relação de interdependência entre as formações
discursivas que se instituem no arquivo da APEERJ.
A fim de contemplar as formas mobilizadas pelos discursos para marcar a sua
relação com outros discursos, lançou-se mão da distinção proposta por Authier-Revuz
(1998) entre heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva. No que tange a
heterogeneidade enunciativa e as relações de filiação ou contraposição que as palavras
assumem nas situações concretas de enunciação, também foram produtivas as formulações
de Maingueneau (1997; 2002) e Ducrot (1987) e, em especial, as categorias apresentadas
por este para identificar o mecanismo polêmico.
Pautada na concepção da linguagem bakhtiniana (BAKHTIN, 2000; 2004), a noção
de gênero discursivo ocupa lugar central nesta reflexão. Concebe-se que as condições de
emergência de determinados enunciados estão atreladas aos gêneros de certo domínio de
produção discursiva. Mapear os gêneros mobilizados pela APEERJ, levando em conta sua
temporalidade, é um dos objetivos desta pesquisa.
Deve-se sublinhar desde já que, no que tange aos conceitos teóricos que
fundamentam este trabalho, julgou-se pertinente desenvolvê-los a partir das necessidades
apresentadas ao longo desta reflexão, evitando-se, assim, a distinção rígida entre capítulos
estritamente teóricos ou analíticos.
III Da organização dada aos capítulos
O primeiro capítulo deste trabalho apresenta considerações sobre as noções de memória
(LE GOFF, 1996; NORA, 1993; ORLANDI, 2006) identidade (HALL, 2002, 2012) e
arquivo (FOUCAULT, 2004a). Essas três categorias teóricas são fundamentais para a
explicação a respeito das balizas que orientaram a seleção e o tratamento do material de
análise. Procura-se nesse capítulo justificar a importância da recuperação de traços da
memória da APEERJ e, por tanto, do passado do ensino de espanhol em uma conjuntura
notavelmente marcada pelo embate entre diferentes posicionamentos políticos e
ideológicos referentes à implantação do ensino de espanhol no Brasil, que contribuem no
processo de construção identitária dessa associação docente.
No capítulo seguinte, são trazidas à discussão as condições históricas do surgimento
da APEERJ. Para tanto, propõe-se a sua divisão em duas partes principais: o cenário
político e o cenário educacional, que antecedem a fundação dessa entidade, no ano de
1981, no Estado do Rio de Janeiro.
O terceiro capítulo tem como objetivo refletir sobre a dimensão política do ensino
de línguas estrangeiras, com foco no ensino de espanhol. Para tanto, em etapa inicial,
apresenta-se discussão sobre os fundamentos políticos da escola moderna e a posterior
disseminação dos valores mercadológicos no âmbito educacional à luz dos estudos de
Foucault (2004a; 2004b; 2008a; 2008b; 2012) e de Bauman (2010). À continuação, volta-
se especificamente para trajetória do ensino de idiomas no contexto escolar, ressaltando-se
as relações entre as abordagens consolidadas no ensino de línguas estrangeiras e os valores
político educacionais que lhes são subjacentes. No final do capítulo, defende-se o ponto de
vista acerca da instauração de uma nova visão sobre o papel do ensino de espanhol na
escola brasileira, que resulta da articulação entre o desenvolvimento acadêmico científico
no campo dos estudos linguísticos e educacionais e o fortalecimento de contracondutas do
professorado brasileiro frente à governamentalidade espanhola neste país.
Nos capítulos 4 e 5, propõe-se análise do material de pesquisa, que se agrupam em
dois conjuntos diferentes. Inicialmente, são analisadas atas de reuniões da APEERJ com o
objetivo de mapear os temas que se nelas se inscrevem em diferentes contextos históricos
vividos pela associação. Esse primeiro movimento de aproximação à materialidade
discursiva da APEERJ oferece pistas ao analista acerca dos tipos de relação dessa entidade
com a governamentalidade espanhola. A busca de sentidos que escapam aos limites
impostos pelo gênero ata, levam o pesquisador à análise, sob o enfoque discursivo, de
cartas públicas da APEERJ no quinto capítulo.
Por fim, no último capítulo, serão retomadas questões centrais desta tese e
apresentadas as suas principais conclusões.
IV Da organização dos anexos
Devido à extensão da documentação da APEERJ contemplada nesta tese, optou-se
por digitalizá-la e organizá-la em um CD. Além das atas e das cartas públicas da APEERJ,
principal material de análise da presente pesquisa, foram acrescidos outros documentos que
constituem o arquivo dessa associação. O CD será doado à APEERJ, esperando que esse
material futuramente venha a constituir-se como fonte de informações para outros
pesquisadores. Como forma de não desmembrar o trabalho de organização do arquivo do
estudo aqui realizado, incluímos no mesmo CD cópia desta pesquisa. A descrição dos
documentos do CD consta na página final do presente volume.
O Prof. Julio A. Dalloz propôs a realização, no referido
Congresso, de uma mesa- redonda de membros da APEERJ sobre
as suas realizações e conquistas (Ata da APEERJ, 15 de outubro
de 1986).
Os documentos da APEERJ, hoje com aspecto amarelado e alguns preservados na
forma manuscrita, direcionam o analista a uma importante dimensão da memória do ensino
de espanhol. Na revisitação dessas textualidades, cuja fundação se dá em 1981, constata-se
o protagonismo da APEERJ na produção de práticas discursivas que constituíram, ao longo
das últimas décadas, parte da história do ensino de espanhol e do seu professorado.
Ainda que se trate, do ponto de vista histórico, de fontes recentes, para esta
pesquisa, a amplitude dessa produção discursiva se configura nas mudanças e na
instauração de novos matizes de sentido materializados nos variados documentos da
APEERJ. Parte-se do pressuposto dos estudos discursivos, segundo o qual as
transformações, as rupturas e as continuidades entre o passado e o presente vão muito além
de um cálculo cronológico.
O presente capítulo traz à tona o processo de construção do corpus desta
investigação. Antes, porém, de esclarecer as balizas que orientaram a seleção e o
tratamento do material de análise, propõe-se discussão sobre a noção de memória. Em
seguida, expõe-se o conceito de identidade à luz dos estudos de Hall (2002, 2012).
Posteriormente, a noção de arquivo é revista a partir da perspectiva de Foucault (2004a).
Finaliza-se o capítulo descrevendo os critérios utilizados na composição dos textos
constituem o corpus do presente estudo4.
1.5 MEMÓRIA DO ENSINO DE ESPANHOL
Na cerimônia de abertura do XIV Congresso Brasileiro de Professores de Espanhol,
realizado na Universidade Federal Fluminense, em 2011, sob a organização da APEERJ,
4 No verbete corpus, do Dicionário de Análise do Discurso (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004,
p.138), explica-se que, nessa disciplina, assim como em outras ciências sociais, “geralmente é o corpus que
define o objeto de pesquisa, pois ele não lhe preexiste. Mais precisamente, é o ponto de vista que constrói um
corpus, que não é um conjunto pronto a ser descrito”.
além dos procedimentos protocolares exigidos por esse tipo de evento, apresentou-se ao
público uma série de slides com imagens e textos que recuperavam a trajetória da APEERJ
nos últimos trinta anos. Também fez parte da cerimônia uma homenagem aos sócios
fundadores da APEERJ, representados pela Professora Maria de Lourdes Cavalcanti
Martini, idealizadora e primeira presidenta da associação5.
Figura no 2: Um dos slides apresentado na cerimônia de abertura do
XIV Congresso Brasileiro de Professores de Espanhol. UFF/ 2011
Homenagem semelhante, dirigida ao grupo de professores fundadores da
associação, foi realizada no Jubileu de Prata da APEERJ, que aconteceu em 2006 na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, com a finalidade de comemorar o aniversário
de 25 anos da APEERJ. Na ocasião, compareceram diversos associados, fundadores e ex-
diretores da associação.
5 A professora Maria de Lourdes Cavalcanti Martini, na ocasião, não pode participar da homenagem por
razões de saúde, tendo sido então representada por uma de suas filhas. Também se rendeu homenagem à
Professa Bella Josef, fundadora e presidente de honra da APEERJ, que havia falecido naquele mesmo ano.
Figura no 3: Foto conjunta de professoras fundadoras e de ex-diretoras do Jubileu
de Prata da APEERJ- UERJ/2006
Rememorar o passado, tanto pela organização de celebrações como pela
conservação de suas textualidades, é uma prática que acompanha a trajetória da APEERJ.
Seus escritos foram cuidados e organizados desde 1981 pelos seus integrantes, viabilizando
a revisitação dessa materialidade no tempo presente. Entre os pertences mais remotos da
entidade, encontra-se inclusive uma pasta etiquetada como “pasta de memória” reservada
apenas para arquivar materiais que correspondessem a esse fim.
Orlandi (2006) distingue a memória discursiva - o saber discursivo que torna
possível todo o dizer e que afeta o modo como significamos uma situação discursiva - da
memória institucional. Esta consistiria na que não se esquece, que está no arquivo das
escolas, nos museus, etc. Trata-se da memória que as instituições “praticam, alimentam,
normatizando o processo de significação, sustentando-o em uma textualidade documental”
(ORLANDI, 2006).
Para Nora (1993), os “lugares de memória” surgem a partir do sentimento de que
não há mais memória espontânea, justificando, então, a conservação de documentos e a
organização de celebrações. Segundo o autor (1993), o principal atributo da memória seria
garantir a continuidade do tempo. Ao passo que o papel da história seria problematizar,
deslegitimar, à luz da teoria, o passado que a memória construiu.
Os exemplos anteriores mostram que o cuidado com a sua memória constituiu-se
como rotina na APEERJ. A seleção do “rememorável” foi preservada ao longo do tempo
pelos seus integrantes, seja por meio de eventos comemorativos, em suas atas de reuniões
ou em textos diversos cuidadosamente guardados entre os seus pertences. É preciso ter
mente, contudo, que a seleção do dizível implica o apagamento do não-dizível. Nessa
perspectiva, Pollack (1992) propõe a noção de “memórias subterrâneas” em oposição à
“Memória oficial”. Para ele, existem “batalhas da memória” e é, precisamente, nesse
espaço de conflito entre memórias concorrentes, que se instituem objetos de pesquisa.
No caso específico da APEERJ, supomos que o excessivo cuidado com a
preservação de determinados textos implica o descuido e o silenciamento6 de outros
escritos. Exige-se, então, do analista do discurso, mover-se por essas textualidades em
busca de vestígios do dito e do não dito.
Partindo do pressuposto de que a história se produz sempre a partir de necessidades
do tempo presente, identifica-se uma relação entre a ampliação do interesse por aspectos da
história e da vida política do ensino de espanhol no Brasil, manifestado recentemente em
diversos trabalhos (BARRETO; FREITAS, 2007; BARRETO; FREITAS; VARGENS,
2009; DAHER, 1998, 2006, 2011; DAHER; SANT´ANNA, 2009; CELADA;
GONZÁLEZ, 2005; FREITAS, 2010; FANJUL, 2010, 2011; GONZÁLEZ, 2008, 2011;
LAGARES, 2009; PARAQUETT, 2009a; 2009b; PICANÇO, 2003; RODRIGUES, 2010),
com acontecimentos recentes instituídos na memória do ensino de espanhol.
Considera-se nesta pesquisa a Lei 11.161/ 2005 (BRASIL, 2005), que estabelece a
oferta obrigatória do ensino de espanhol no ensino médio7
como um dispositivo discursivo
que propiciou, nos últimos anos, a produção de múltiplas textualidades sobre o ensino de
espanhol. Em comparação ao quase silenciamento que marca o período precedente a esse
acontecimento, surge, após dita ruptura do arquivo jurídico brasileiro, uma explosão
discursiva em torno da temática da implantação do ensino de espanhol na qual também são
recuperados elementos da memória da APEERJ.
6 Orlandi (2007a, p.24) distingue diferentes formas de silêncio, que se dividem basicamente em: silêncio
fundador e a política do silêncio. O primeiro deles é “aquele que existe nas palavras, que significa o não-
dito”, o segundo se subdivide no silêncio constitutivo, que indica que uma palavra apaga outras e o silêncio
local, que se refere ao que é propriamente censurado em uma determinada conjuntura. 7 Segundo RODRIGUES (2011, p.301), a Lei 11.161 é “muito mais do que “a Lei do Espanhol”, por
especificar a oferta mínima de duas línguas estrangeiras no ensino médio (instituída pela LDB), sendo uma
delas obrigatoriamente o espanhol. Ainda que a autora reconheça a diversificação da oferta do ensino de
línguas, considera a instituição da “matrícula facultativa para o aluno”, assim como a determinação de
criação de “Centros de Estudos de Línguas Modernas”, ambos previstos pela referida lei, como elementos
comprovadores da aderência da prática governamental à memória de desoficialização do ensino línguas
estrangeiras no Brasil (RODRIGUES, 2011, p.299).
Configura-se nesse cenário de produções discursivas sobre a expansão do ensino de
espanhol uma tensão entre textualidades carregadas de sentidos de entusiasmo- que, a
partir de uma ótica econométrica8
(DEL VALLE, 2007), descrevem o Brasil como terreno
fértil para o ensino de espanhol- e os seus respectivos contradiscursos. Estes,
majoritariamente produzidos por um segmento do professorado brasileiro, buscam
problematizar os enunciados que, em geral, deslocam o papel dos professores de espanhol,
as suas reais condições de trabalho e as necessidades da escola brasileira.
A título de exemplo da categoria de discursos triunfalistas sobre a expansão do
espanhol, observa-se, no relatório informativo elaborado por Moreno Fernández (2005), a
construção da ideia de que o Brasil seria uma espécie de pedra bruta ainda a ser lapidada:
La situación del español al inicio del siglo XXI en Brasil es de bonanza,
de auge y de prestigio. En este momento se vive un crecimiento
espectacular de la demanda de cursos de español, con todo lo que implica
el proceso de enseñanza-aprendizaje de un idioma extranjero: necesidad
de material impreso y sonoro, necesidad de profesorado y de
organización de cursos, por citar sólo algunas de las principales áreas
implicadas (MORENO FERNÁNDEZ, 2005, p.18-19)
Em reflexão sobre a expansão da política pan-hispânica9
no Brasil, Fanjul (2011)
menciona o apoio prestado por segmentos do poder político local e por setores da mídia,
que estabelecem espaços propícios para a interferência de determinados órgãos. Segue
ponto de vista similar González (2011, p.137) que, após observar as manchetes de jornais
publicadas durante os anos de 2000 a 2004, considera o poder que elas possuem de
sintetizar o percurso de uma “política linguística marcada por interesses econômicos e,
obviamente, de poder”. Segundo González (2011, p.136), o discurso midiático, quando
dirigido aos espanhóis, associa a língua a um recurso econômico, predominando, nessa
construção discursiva, um tom triunfalista que atribui ao espanhol o papel de mercadoria.
Na mesma linha, segue o artigo de Barreto, Freitas e Vargens (2009), que identifica
nas práticas da imprensa hispânica durante esse período a construção de um mito: o Brasil
como paraíso para ensinar espanhol. As autoras destacam o apagamento das vozes dos
professores, dos formadores de professores e das suas entidades representativas nessas
8 Expressão usada por Del Valle (2007) para denominar as pesquisas que se pautam no espanhol como
recurso econômico (ERE). A perspectiva crítica desse autor será contemplada no terceiro capítulo desta tese. 9 Considerações mais extensas sobre o panhispanismo são feitas no terceiro capítulo desta tese.
noticias. Mostram que tampouco são trazidas à tona pela mídia a precarização do salário e
das condições de trabalho do professor neste país.
Compreende-se a necessidade relativamente recente de produzir enunciados sobre a
implantação do ensino de espanhol no sistema escolar brasileiro como um índice de uma
disputa político ideológica entre diferentes segmentos da sociedade, nacionais e
internacionais. Subjazem a esse enfrentamento, diferentes visões de ensino de línguas e,
sobretudo, diferentes formas de conceber o papel da educação escolar neste país.
No que tange especificamente às práticas do âmbito acadêmico no Brasil e, mais
especificamente, às que se voltam para o ensino de espanhol no Estado do Rio de Janeiro,
tornou-se frequente a menção ao pioneirismo da APEERJ e ao protagonismo dos
professores de espanhol nessa trajetória. Elementos esses que, em geral, sãos silenciados
pela mídia sensacionalista e pelos estudos econométricos. Dentre os textos que buscam
historicizar dimensões do ensino de espanhol no Brasil (BARRETO; FREITAS, 2007;
BARRETO; FREITAS; VARGENS, 2009; DAHER, 2006; FREITAS, 2004, 2010;
PARAQUETT, 2009a, 2009b), encontram-se, portanto, referências constantes à APEERJ
como agente no processo de revitalização do ensino de espanhol no sistema escolar na
década de 1980. Seguem alguns fragmentos que fazem menção à APEERJ:
Em 1981, fomentando uma política em acordo com o processo
democrático que reiniciava, funda-se a primeira associação de
professores de Espanhol no Brasil. Trata-se da Associação de
Professores de Espanhol do Estado do Rio de Janeiro- APEERJ,
dirigida nos seus três primeiros mandados pela Professora Maria de
Lourdes Cavalcanti Martini, atuando naquele momento como
professora e pesquisadora da Universidade Federal Fluminense
(UFF) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
(PARAQUETT, 2009a, p.7)
A comienzo de los años 80, surge en Río de Janeiro un movimiento
de profesores que funda la Asociación de Profesores de Español del
Estado de Río de Janeiro – APEERJ. El grupo tiene como principal
objetivo luchar por el regreso de la enseñanza del español a las
escuelas fluminenses. En poco tiempo, el español pasa a integrar
las pruebas de selectividad de la Fundação Cesgranrio y se aprueba
y homologa ley estadual (21/05/84), publicada en 1985 (D.O. de
17/01/85)12 que incluye la asignatura en el currículo escolar. En
1988, la Constitución del Estado de Rio de Janeiro establece la
obligatoriedad de oferta de la enseñanza del español (Art. 317,
parágrafo 3º) (DAHER, 2006, p. 8)
Foi exatamente nessa época, em 1984, que ocorre a primeira
importante vitória do movimento dos professores organizados. Dois
anos antes, a Apeerj havia apresentado uma solicitação arrazoada à
Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro para a volta do
espanhol às escolas de Segundo Grau, ao lado do francês e do
inglês. (FREITAS, 2010, p. 40)
Além das práticas acadêmicas, a memória da APEERJ tem sido recuperada nas
textualidades da própria associação. Soma-se, então, aos exemplos a sua homepage,
reinaugurada em 2006, que apresentava um panorama de toda a trajetória da APEERJ,
incluindo fotos, a identificação de seus ex-diretores, assim como as suas principais
conquistas junto ao governo nos diferentes mandatos da associação desde 1981.
Revisitar as textualidades da APEERJ como lugar de memória do ensino de
espanhol é um dos objetivos desta investigação. No entanto, o seu foco não se limita a
redescoberta desses materiais para a extração de dados factuais necessários à construção de
um relato sobre o ensino de espanhol. O arquivo da APEERJ é aqui concebido como uma
materialidade discursiva, cuja análise propicia a identificação do professor de espanhol
como agente no processo de implantação dessa língua no sistema escolar.
A politicidade inerente as suas ações – sejam essas pertencentes aos âmbitos
acadêmico, pedagógico ou político em estrito senso- confirma que as escolhas do
professorado ao longo da história não foram neutras. Ao contrário, criaram sentidos
significativos nas políticas de línguas em plano micro ou macro, preservando rotinas ou
instaurando rupturas na memória do ensino de espanhol.
Esta investigação vai ao encontro das pesquisas que consideram a importância de
dar visibilidade à ação dos professores na história do ensino de espanhol no Brasil e,
portanto, à memória da APEERJ. Para os vestígios materializados nos documentos /
monumentos (FOUCAULT, 2004a) da APEERJ, voltam-se os gestos de interpretação
desta pesquisa, levando sempre em conta a historicidade dos sentidos instituídos no
arquivo dessa entidade docente.
1.2 IDENTIDADE COMO PROJETO
No embate discursivo em torno no conceito de identidade, emergem diferentes
perspectivas, que, basicamente, se concentram na oposição entre essencialistas e a não
essencialistas. Segundo Woodward (2012), tanto os saberes da história (tratada como
verdade) como os da biologia servem como fundamentos para o essencialismo, que se
pauta numa concepção de identidade estável, fixa, imutável e unificada.
A abordagem não essencialista, por sua vez, considera que, as identidades não
resultam de um processo natural, mas são socialmente produzidas em determinadas
conjunturas. Admitir a invenção10
da identidade, contudo, não é o mesmo que dizer que ela
não tenha origem histórica, mas reconhecer que existem diferentes maneiras de resgatar a
história de uma dada comunidade. Afirma Hall (2012):
Essa concepção aceita que as identidades não são nunca unificadas; que
elas são, na modernidade tardia, cada vez mais fragmentada e fraturadas;
que elas não são, nunca, singulares, mas multiplamente construídas ao
longo dos discursos, práticas e posições que podem se cruzar ou ser
antagônicos. As identidades estão sujeitas a uma historização radical,
estando constantemente em processo de mudança e transformação
(HALL, 2012, p. 108).
Hall (2012) considera as contradições e os conflitos como elementos constitutivos
da identidade que vive um constante processo de (re) construção sempre relacionado a
demandas concretas de um momento histórico particular. Em outros termos, para o autor, a
construção de identidade emerge sempre de um momento histórico específico e está
relacionada com o delineamento de um projeto político mais amplo. A identidade é,
portanto, concebida como resultado - sempre instável - de um processo de construção
vinculado às necessidades do tempo presente, rejeitando-se veementemente, segundo essa
perspectiva, a concepção de identidade integral e originária.
É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora
do discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em
10
Remete-se aqui ao conceito de “invenção” que Foucault recupera de Nietzsche como oposição da idéia de
“origem” (FOUCAULT, 2003, p. 14-16).
locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e
práticas discursivas específicas, por estratégias e iniciativas específicas.
Além disso, elas emergem no interior do jogo de modalidades específicas
de poder e são, assim, mais produto da marcação da diferença e da
exclusão do que o signo de uma unidade idêntica, naturalmente
constituída, de uma identidade em seu significado tradicional- isto é, uma
mesmidade que tudo inclui, uma identidade sem costuras, inteiriça, sem
diferenciação interna (HALL, 2012, p.110).
Para Hall (2012, p.109), as identidades estão relacionadas com a recuperação de recursos
da história, da linguagem e da cultura para a produção não propriamente do que “nós somos” ou
“de onde nós viemos”, mas sim do que “quem nós podemos nos tornar”. Levando, portanto, em
consideração o papel norteador que o passado e o futuro exercem nas ações empreendidas no
tempo presente, é possível estabelecer uma relação entre a concepção de identidade
apresentada por Hall (2002, 2012) e com um dos pilares do pensamento bakhtiniano
(2000): o dialogismo, pelo qual se qualifica a relação entre os enunciados e entre o eu e o
outro.
Para Bakhtin (2000), a linguagem é duplamente dialógica. A primeira dimensão do
diálogo se dá entre os interlocutores. Afirma o teórico:
Logo de início, o locutor espera deles uma resposta, uma
compreensão responsiva ativa. Todo enunciado se elabora como
que para ir ao encontro dessa resposta. O índice substancial
(constitutivo) do enunciado é o fato de dirigir-se a alguém, de estar
voltado para o destinatário [...] (BAKHTIN, 2000, p.320)
Além da relação entre os interlocutores (eu/tu) da enunciação, porém, há uma
dimensão mais ampla do diálogo, segundo Bakhtin (2000). Trata-se do diálogo existente
entre um enunciado com outros enunciados já proferidos. Segundo o autor:
O enunciado está repleto dos ecos e lembranças de outros
enunciados, aos quais está vinculado no interior de uma esfera
comum da comunicação verbal. O enunciado deve ser considerado
acima de tudo como uma resposta a enunciados anteriores dentro
de uma dada esfera (a palavra “resposta” é aqui empregada no
sentido lato): refuta-os, confirma-os, completa-os, baseia-se neles,
supõe-nos conhecidos e, de um modo ou de outro, conta com eles.
(BAKHTIN, 2000, p. 316).
Segundo a perspectiva dialógica, o enunciado não está apenas ligado aos que o
precedem, mas também com enunciados futuros sobre o mesmo objeto que lhe sucedem na
cadeia verbal. Embora os elos ainda não existam durante a enunciação, “o enunciado,
desde o início, elabora-se em função da eventual reação-resposta, a qual é o objetivo
preciso de sua elaboração” (BAKHTIN, 2000, p.320). Ao estabelecer no futuro o centro de
gravidade da ação presente, o sujeito se desloca no tempo, criando uma “memória do
futuro” (BAKHTIN, 2000, p. 139) a partir de condições dadas tanto pelo aqui e o agora.
Aliando o conceito de identidade proposto por Hall (2012) e o principio dialógico
bakhtiniano (2000), conclui-se que, com base na memória do futuro, portanto, se
constituem as identidades sempre com acabamentos provisórios.
Com o foco voltado para a construção de sentidos de politicidade relacionados ao
ensino de espanhol nas práticas discursivas da APEERJ, esta pesquisa considera que as
rupturas e as continuidades de sentido que se instituem nos enunciados dessa entidade ao
longo do tempo estão relacionadas ao que se espera do ensino do espanhol na escola
brasileira. Em outras palavras, concebem-se as expectativas estabelecidas em relação à
implantação do ensino de espanhol compartilhadas pelos professores como elemento que
interfere no processo de definição identitária dessa categoria profissional e, ao mesmo
tempo, nos traços identitários desse campo disciplinar11
.
Sem ter uma forma acabada ou unificada, defende-se, nesta tese, que, nas
textualidades da APEERJ, se institui um macro projeto “do que deveria ser ensino de
espanhol” no sistema escolar, que dialoga com um micro projeto “do que deveria ser uma
associação de professores de espanhol”. A concepção da identidade como projeto é
igualmente compartilhada por Azevedo (2003, p.43-44):
Assim, um mesmo grupo pode passar por diversas configurações de
identidade nos diferentes momentos de sua história, de acordo com
os recursos que lhe são oferecidos pelas situações concretas por que
passam. Uma crise, um rearranjo de seu ambiente natural ou
técnico podem colocar em questão, momentânea ou
duradouramente, esta configuração. Em momentos de crise, muitas
11
Esse ponto de vista nos remete à reflexão de Orlandi (2007b, p.7), segundo o qual a “descolonização
linguística e a descolonização do linguista vão juntas”.
vezes identidades que permaneceram reprimidas, reduzidas ao
silêncio, submersas, invisíveis, num grupo coeso, emergem,
provocando contestações e remanejamentos substanciais, atingindo
em profundidade a representação que um grupo pode fazer de si
mesmo e de suas ações (AZEVEDO, 2003, p.43-44).
As considerações feitas pela autora citada anteriormente reforçam a ideia de que o
estabelecimento de mudanças nos traços identitários atribuídos ao ensino de espanhol estão
atreladas a adesão a um determinado projeto político educacional, mas também a
condições trazidas pelo passado e pelo presente, que viabilizam esse processo. Ditas
condições vão ao encontro do princípio de dizibilidade proposto por Foucault (2004a),
segundo o qual a produção de enunciados está submetida a um regime do que pode ou não
pode ser dito em um dado espaço/tempo por uma sociedade.
Sendo assim, faz-se imprescindível refletir sobre as formações discursivas
historicamente instituídas sobre o ensino de línguas, que criaram as condições necessárias
para o recente surgimento de novos enunciados e sentidos sobre o ensino de espanhol nas
textualidades da APEERJ.
1.3 A ABERTURA DO ARQUIVO DA APEERJ
Para Hobsbawn (1998, p.243), toda história é história contemporânea disfarçada,
considerando o fato de que o historiador sempre será filho do seu tempo. Considerando que
é a partir do presente da enunciação, de um espaço (aqui) e de um tempo (agora)
específicos, que o pesquisador se volta ao passado, visando à construção de novas
textualidades e novos sentidos sobre os acontecimentos, esta investigação se propõe a
abertura do arquivo da APEERJ em busca de sentidos sobre o processo de politização
dessa entidade e, de modo geral, do ensino de espanhol no sistema escolar. Para tanto, é
imprescindível apresentar a concepção de arquivo privilegiada na atual pesquisa, assim
como os caminhos metodológicos escolhidos para percorrer os materiais acumulados pela
APEERJ da sua fundação ao tempo presente.
1.3.1 Do conceito de arquivo
[Do gr. archêion, pelo lat. archiu ou archivu.] 1. Conjunto de
documentos manuscritos, gráficos, fotográficos, etc., recebidos ou
produzidos oficialmente por uma entidade ou por seus
funcionários, e destinados a permanecer sob a custódia dessa
entidade ou de seus funcionários (FERREIRA, 2010).
A definição supracitada, encontrada no dicionário de uso geral, vai ao encontro do
que comumente os arquivistas designam por arquivo: um conjunto orgânico de
documentos que, independentemente de sua forma, de sua produção e de sua recepção, são
conservados a título de prova ou informação (SILVA, 1999). Outras possíveis acepções
são registradas no dicionário. Atribui-se o nome de arquivo ao “lugar onde se recolhem e
guardam esses documentos” e, de um ponto de vista mais contemporâneo, arquivo também
é o “conjunto de dados ou de instruções, armazenado em meio digital e identificado por
nome” (FERREIRA, 2010). Associada a outras palavras e sentidos, a significação de
arquivo pode ainda ser ampliada. É o que ocorre, por exemplo, em: arquivo morto, arquivo
vivo, queima de arquivo, dentre outros.
Ainda que arquivo mantenha a sua natureza polissêmica e possa ser usado em
diferentes contextos, de modo geral, prevalecem os sentidos associados ao seu aspecto
físico, material, técnico e estático. Reforça-se, assim, a ideia de que o arquivo resultaria de
um processo natural de acumulação, justificado pelas características inerentes aos
elementos que o constituem.
O arquivo pode, no entanto, ser concebido por outro viés, o da Análise do Discurso.
Na contramão dos princípios anteriores, Foucault (2004a, p. 146- 147) se opõe claramente
à noção de que o arquivo consistiria na “soma de todos os textos que uma cultura guardou
em seu poder, como documentos de seu próprio passado”. Trata-se, para o autor, da “lei do
que pode ser dito”, não no sentido de interdição, mas no sentido de ser possível aparecerem
certos enunciados que se configuram como acontecimentos singulares. Afirma:
Ao invés de vermos alinharem-se, no grande livro mítico da
história, palavras que traduzem, em caracteres visíveis,
pensamentos constituídos antes em outro lugar, temos na densidade
das práticas discursivas sistemas que instauram os enunciados
como acontecimentos (tendo suas condições e seu domínio de
aparecimento) e coisas (compreendendo sua possibilidade e seu
campo de utilização). São todos esses sistemas de enunciados
(acontecimentos de um lado, coisas de outro) que proponho chamar
de arquivo (FOUCAULT, 2004a, p. 146)
Segundo Foucault (2004a, p.147), o arquivo não deve ser concebido como o que
protege o acontecimento do enunciado ou como o que preserva e unifica os enunciados que
se tornaram inertes. Para ele, o arquivo é o que define o “sistema de enunciabilidade” e o
“sistema de funcionamento” do enunciado-acontecimento. Nas palavras de Foucault
(2004a, p.147-148), “ele faz aparecerem as regras de uma prática que permite aos
enunciados subsistirem e, ao mesmo tempo, se modificarem regularmente. É o sistema
geral da formação e da transformação dos enunciados”. Em suma, o arquivo, à luz de
Foucault, determina o que pode ser dito. O arquivo rege o surgimento dos enunciados.
A perspectiva foucaultiana (2004a) traz à tona duas questões importantes. A
primeira delas é que o processo de construção do arquivo não é neutro ou um reflexo
passivo de uma realidade institucional. A segunda delas, diz respeito ao fato de o arquivo
permitir gestos de leituras no lugar de uma única interpretação. É, portanto, a partir dos
questionamentos e objetivos elaborados pelo analista que se definirá uma forma de abordar
o arquivo, possibilitando, assim, a transformação dos “documentos” em “monumentos”
(FOUCAULT, 2004a, p.8).
Em crítica à vertente tradicional da história que preserva o ato de memorizar os
monumentos a fim de transformá-los em documentos, textos, narrações, registros, afirma
Foucault:
[...] a história, em sua forma tradicional, se dispunha a
“memorizar” os monumentos do passado, transformá-los em
documentos e fazer falarem estes rastros que, por si mesmos,
raramente são verbais, ou que dizem em silêncio coisa diversa do
que dizem; em nossos dias, a história é o que transforma os
documentos em monumentos e que desdobra, onde se decifravam
rastos deixados pelos homens, onde se tentava reconhecer em
profundidade o que tinham sido, uma massa de elementos que
devem ser isolados, agrupados, tornados pertinentes, inter-
relacionados, organizados em conjuntos. Havia um tempo em que a
arqueologia, como disciplina dos monumentos mudos, dos rastros
inertes, dos objetos sem contexto e das coisas deixadas pelo
passado, se voltava para a história e só tomava sentido pelo
restabelecimento de um discurso histórico; poderíamos dizer,
jogando um pouco com as palavras, que a história, em nossos dias,
se volta para a arqueologia- para a descrição intrínseca do
monumento (FOUCAULT, 2004a, p.8).
Ao fazer, dos “documentos”, “monumentos”, muda-se de posição e se passa a
trabalhar o documento, a elaborá-lo. Nas palavras de Foucault (2004a, p.7), “ela (a
história) o organiza, recorta, distribui, ordena e reparte em níveis, estabelece séries,
distingue o que pertinente do que não é, identifica elementos, define unidades, descreve
relações.” Nessa perspectiva, o documento não é mais concebido como material bruto ou
neutro que sobrevive do passado, mas resulta de uma construção discursiva.
Le Goff (1996), voltando-se para a discussão inaugurada por Foucault (2004),
considera que os materiais de memória podem apresentar-se sob a forma de
“monumentos”, que constituiriam herança do passado, ou como “documentos”, estes
resultantes da escolha do historiador. O autor (LE GOFF, 1996) recorre à historiografia
para mostrar que, embora o triunfo do documento se dê com a escola positivista, é somente
a partir de 1960 que se concretiza uma verdadeira revolução documental.
Esta revolução é, ao mesmo tempo, quantitativa e qualitativa. O
interesse da memória coletiva e da história já não se cristaliza
exclusivamente sobre os grandes homens, os acontecimentos, a
história avança depressa, a história política, diplomática, militar.
Interessa-se por todos os homens, suscita uma nova hierarquia mais
ou menos implícita dos documentos; por exemplo, coloca em
primeiro plano, para a história moderna, o registro paroquial que
conserva para a memória todos os homens [...]. O registro
paroquial, em que são assinalados, por paróquia, os nascimentos, os
matrimônios e as mortes, marca a entrada na história das “massas
dormentes” e inaugura a época da documentação de massa (LE
GOFF, 1996, p. 54)
Além de constatar a crescente ampliação da concepção de documento,
exemplificada pela a inclusão de registros orais, e da transformação do próprio processo de
arquivar os documentos, propiciada pelo advento do computador, Le Goff (1996) vai ao
encontro de Foucault quando ressalta a necessidade de que os documentos sejam tratados
criticamente, isto é, como monumentos. Para o autor, “é preciso começar por desmontar,
demolir esta montagem, desestruturar esta construção e analisar as condições de produção
dos documentos- monumentos” (LE GOFF, 1996 p. 538).
Segundo a perspectiva foucaultiana (2004a), “o arquivo não é descritível em sua
totalidade; e é incontornável em sua atualidade” (FOUCAULT, 2004a, p. 148). Caberá, ao
analista, portanto, encontrar caminhos possíveis para efetuar a prática de sua leitura.
1.3.2 Do arquivo ao corpus
A análise dos enunciados obedece, sob o ponto de vista de Foucault (2004a), às
mesmas leis que regem o arquivo. São elas: a lei da raridade, a lei da exterioridade e a lei
do acúmulo. A lei da raridade se pauta no principio de vacuidade no campo da linguagem,
isto é, o principio de que nem tudo pode ser dito. Segundo Foucault, a formação discursiva
se constitui “de uma distribuição de lacunas, de vazios, de ausências, de limites, de
recortes.” Assim, estudam-se os enunciados no limite que os separa do não dito
(FOUCAULT, 2004a, p.135).
A lei da exterioridade, por sua vez, supõe que os enunciados sejam aceitos como
acontecimentos. Segundo Foucault (2004a, p. 138-139), não se deve tomar como
referência “um sujeito individual, nem alguma coisa semelhante a uma consciência
coletiva, nem uma subjetividade transcendental”. O enunciado deve ser “descrito como um
campo anônimo cuja configuração defina o lugar possível dos sujeitos falantes”.
Por fim, o terceiro traço característico da análise dos enunciados consiste na lei do
acúmulo. Segundo essa lei, os enunciados devem ser considerados na remanência que lhes
é própria devido a suportes, técnicas e instituições capazes de conservá-los. Sem pretender
alcançar a origem, a intencionalidade ou o esgotamento do arquivo- inapreensível em sua
totalidade- a análise discursiva exige o levantamento de marcas e formas específicas de um
determinado acúmulo (RIBEIRO; SÁ; SARGENTINI; 2012, p. 41).
Partindo da concepção de que o arquivo não é dado, mas resulta sempre de uma
construção, que responde a um sistema de produção e transformação dos enunciados que,
por sua vez, está submetido às relações de poder de uma dada época, optou-se, como
primeira etapa metodológica desta investigação, o mapeamento dos principais gêneros
discursivos que constituíram as textualidades da APEERJ ao longo da sua trajetória.
A partir da ótica bakhtiniana (2000), os gêneros discursivos são “tipos
relativamente estáveis de enunciados” (2000, p. 279) cujas existências, transformação ou
desaparecimento estão vinculados historicamente às esferas das múltiplas atividades
humanas. Portanto, a identificação dos tipos de gêneros produzidos pela APEERJ é, em
primeiro lugar, um caminho para mapear as frentes de atuação dessa entidade, isto é, os
espaços discursivos por ela ocupados nos últimos trinta anos.
Identificar os gêneros instituídos na memória discursiva da APEERJ é também uma
forma de aproximação das condições de emergência de determinados discursos, visto que
os gêneros impõem coerções aos enunciados e determinam os tipos de produção e a
circulação de sentidos. Isto é, o principio foucaultiano da enunciabilidade (FOUCAULT,
2004) - segundo o qual a forma e o limite do que pode ser dito dependem das relações de
poder que se instalam da sociedade- está relacionado às categorias de gêneros discursivos
que são mobilizados no processo de interação verbal.
Reconhecida a impossibilidade de recuperar em sua totalidade as textualidades, que
constituíram a memória da APEERJ, foram levantados, nesta pesquisa, apenas os
documentos escritos que foram devidamente preservados pela associação. Segue a lista da
sua classificação genérica12
:
Artigo acadêmico13
Ata de reunião
Boletim
Carta
Cartaz
Certificado
Diploma
Estatuto
Lista de presença
Manifesto
Ofício
Programa de curso para professores
Programa de eventos
Proposta de emenda constitucional
Relatório técnico-científico
Tabela no 1: Lista de gêneros discursivos mobilizados pela APEERJ
Pela tipologia dos gêneros discursivos anteriormente apresentados, é possível
identificar que a APEERJ atuou historicamente em diferentes campos, abarcando
especialmente as esferas acadêmica e política. Também se identificaram práticas
pertencentes ao gerenciamento interno da associação.
Dentre os gêneros identificados, as atas de reuniões manteve maior periodicidade
ao longo da trajetória da APEERJ, acarretando a existência de um total de 150 atas que
12
Pese a impossibilidade de recuperar todos os escritos da APEERJ, a maior parte desses documentos oficiais
foi digitalizada e anexada ao presente trabalho. Cabe mencionar que houve uma perda de materiais da
associação na enchente que atingiu as instalações do Instituto Cervantes que na época abrigava uma parte do
acervo da APEERJ. 13
Os artigos foram publicados em diferentes veículos como a Revista da APEERJ, anais de eventos e livros
produzidos pela associação.
abrangem o período de 1981 a 201014
. A possibilidade de empreender um percurso
cronológico por uma parte importante da memória da APEERJ incentivou a escolha desse
material como uma espécie de porta de entrada à abertura arquivo dessa associação
docente.
A partir de uma leitura inicial das atas da APEERJ, observou-se que, por meio da
inscrição do enunciado: “se fazia extremamente necessário que a comunidade acadêmica
voltasse a reconhecer a relevância da APEERJ, no que respeita ao fortalecimento político e
aperfeiçoamento do corpo docente centrado nos estudos hispânicos” em ata referente à
reunião do dia 10 de agosto de 2006, pela primeira, se explicitava nas atas da associação a
referência ao seu papel político.
A partir da concepção abrangente da ação política privilegiada nesta pesquisa
(FOUCAULT, 2008a; 2008b), que abarca amplamente as relações sociais, seria incoerente
qualificar algumas das fases da associação como desprovida de ações de natureza política.
Considera-se que, desde a sua fundação, o fazer político esteve presente na trajetória da
APEERJ. Fundar a primeira associação de professores de espanhol do Brasil foi
inegavelmente um ato político empreendido por essa coletividade docente, assim como
outros atos que o sucederam.
Contudo, o reconhecimento dos afazeres da APEERJ como ação política nos seus
escritos é um acontecimento relativamente recente. Cabe ressaltar que, no estatuto
fundacional da associação, atribui-se à associação o caráter de entidade “cultural”.
Entende-se, então, a instituição no plano discursivo de sentidos que atribuem à APEERJ
um papel político, a partir da ata 2006, como uma ruptura importante na memória dessa
entidade docente.
Ainda que se compreenda a referência ao político nas atas como um acontecimento
significativo, levando em consideração a natureza do gênero em questão, deve-se sublinhar
que, em textualidades produzidas nas gestões que antecedem esse período, especialmente
os biênios de 2002/2004 e o de 2004/2006, encontram-se vestígios nítidos de práticas
discursivas nas quais a escola e o professor do ensino básico ganham maior visibilidade.
Ditos vestígios se fazem notar, por exemplo, nos títulos dos eventos realizados pela
APEERJ nesse período: “Experiencias Exitosas” em 2002, “Aprendendo com as
dificuldades” em 2003 e “I Jornadas Didáctico – pedagógicas”, em 2004. Alguns dos
14
As atas posteriores a esse período, referentes ao biênio 2010-2012, não puderam ser incluídas nesta
pesquisa por se encontrarem em fase de confecção durante a etapa de organização do material de pesquisa.
As especificações a respeito desse gênero discursivo são feitas no quarto capítulo.
eventos foram inclusive realizados fora do espaço universitário, ocupando as instalações do
Colégio Pedro II e do Instituto de Educação. Vale lembrar também, que, nesses dois
biênios, a diretoria da APEERJ estava composta majoritariamente de professores da
Educação Básica.
Segue, à continuação, a programação da I Jornadas Didáctico-Pedagógicas da
APEERJ:
ASSOCIAÇÃO DE PROFESSORES DE ESPANHOL
DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CNPJ 30.114.920/0001-00
e-mail: [email protected]
I Jornadas Didáctico-pedagógicas APEERJ
Fechas: 22 y 23 de noviembre de 2004.
Horario: 14:00 a las 18:00 h.
Lugar: RAV 114 (auditorio del Centro de Recursos Didácticos de Español – CRDE-Río),
Instituto de Letras/ UERJ, bloque F, 11a planta.
Objetivos:
Desarrollar actividades teórico-prácticas en el área de la enseñanza de E/LE.
Discutir aspectos de la gramática y de la comprensión lectora en clases de E/LE.
Vivenciar el empleo de vídeo en clase de comprensión oral y producción en E/LE.
Programación:
22/11 – 14 a 16:00: Taller – Gramática desde y para la comunicación: el
tratamiento de la gramática en el aula de ELE; profa Ana Lucia Esteves dos Santos
(UFMG).
22/11 – 16:00 a 16:15: Intervalo.
22/11 – 16:15 a 17:30: Experiencia con vídeo – Amor Índio; cómo aprovechar un
dibujo animado en clase de E/LE; profa Flávia Augusto Severino (CRDE-Río)
23/11 – 14 a 15:15: Taller – El texto literario en las clases de E/LE; profa
Ana Cristina dos Santos (UERJ; UVA).
23/11 – 15:15 a 16:15: Asamblea Extraordinaria de APEERJ – ajustes en el
estatuto, debido a nueva legislación; noticias sobre nueva cuenta bancaria,
programación para 2005 y propuesta de movimiento a favor de plazas de español
en el estado (Profa Maria Thereza Venancio).
23/11 – 16:30 a 17:45: Taller – Prácticas lectoras en E/LE: contribuciones de los
estudios enunciativos; profa Cristina Vergnano Junger
23/11 – 17:50 – Conclusión de los trabajos y distribución de los certificados.
Realización: Asociación de Profesores de Español del Estado de Río de Janeiro y
Centro de Recursos Didácticos de Español – Río.
Apoyo: Centro de Recursos Didácticos de Español; Editorial Moderna/ Santillana; Difusión.
Figura no 4: Programação da I Jornadas Didáctico-Pedagógicas APEERJ, realizada
em 2004, na UERJ
A leitura ininterrupta das atas da APEERJ permite identificar algumas pistas (ainda
que pelo silêncio) do processo de politização que se dá ao longo da sua trajetória.
Compreende-se como politização o processo de reconhecimento da APEERJ como agente
político na história do ensino de Espanhol. Faz parte desse processo a aceitação da
politicidade como elemento inerente ao campo educativo e, portanto, ao ensino de línguas
estrangeiras e ao trabalho do professor.
A politização da APEERJ – e, portanto, de um segmento representativo dos
professores de espanhol - é aqui concebida como o tomar para si o papel de agente nas
políticas concernentes ao ensino de espanhol, aceitar e declarar a sua condição de ser
político, cujas ações interferem historicamente não apenas no ensino de línguas, mas no
âmbito educacional em geral.
Tomando como base a noção de politização, os movimentos de ruptura nas práticas
discursivas da APEERJ intensificados a partir de 2006 possibilitaram a classificação do
período que se inicia nesse ano como fase contemporânea (2006-2011)15
.A fim de analisar
discursivamente a construção de sentidos instaurados nessa fase da APEERJ, tomaram-se
como parâmetro as práticas da APEERJ produzidas nos primeiros anos de sua fundação. A
esse período designou-se fase fundacional (1981- 1989).
15
Conforme mencionado anteriormente, não dispomos de atas referentes ao ano de 2011. Como será
especificado mais adiante, lançamos mão de outras textualidades da APEERJ produzidas nesse período, cuja
análise confirma as considerações feitas a partir da leitura das atas.
A impossibilidade de analisar o período que intercala essas duas fases (1989-2005),
em função dos limites desta pesquisa e do seu interesse pelos acontecimentos mais recentes
da história do ensino de espanhol, não poderia desconsiderar a relevância desses anos na
história da APEERJ. A partir de uma concepção dialógica da linguagem (BAKHTIN,
2000), os enunciados vinculam-se aos anteriores, os recuperam, os rejeitam, em um
movimento contínuo. Portanto, os acontecimentos que se instituem a partir do ano de 2006
não estão desvinculados do passado recente dessa associação. Essas considerações
explicam o fato de em alguns momentos de nossa análise sermos levados a recuperar
textualidades desse período, embora o foco desta pesquisa se volte para as fases
anteriormente mencionadas.
Adotando uma concepção dinâmica de corpus, que o considera em constante
construção inseparável ao desenvolvimento da análise, percebeu-se, após mapeamento
inicial das atas, a necessidade de incorporar à pesquisa novas textualidades produzidas pela
APEERJ. Segundo Zoppi-Fontanna (2005, p. 96-97):
O corpus responde, assim, aos objetivos de análise e às perguntas
formuladas em relação a uma questão, acompanhando, na sua
constituição, os diversos momentos de pesquisa, razão pela qual
podemos afirmar que a organização e recorte dos materiais a serem
analisados reflete o estado atual do processo de análise e não um
momento prévio a qualquer manipulação. Consequentemente,
consideramos que o fechamento do corpus é necessariamente
provisório e se dá juntamente com a finalização das análises
(ZOPPI-FONTANNA, 2005, p.96-97).
A busca de traços da identidade política da APEERJ em outras textualidades para
além das atas, aliada à constatação da intensa produção de textos dirigidos às esferas
públicas nos últimos mandatos da APEERJ, determinou a ampliação do corpus de
pesquisa, que passou a incluir as cartas públicas da APEERJ de natureza estritamente
política produzidas na fase contemporânea e na fase fundacional dessa entidade.
Segundo a perspectiva de Bakhtin (2000), os gêneros discursivos são capazes de
controlar apenas determinados aspectos da realidade. Em busca do não dizível nas atas e
dos sentidos que não se registraram nessa materialidade discursiva, em um segundo
movimento analítico, o foco desta pesquisa se volta para os documentos que recuperam
uma dimensão do debate público do qual a APEERJ foi um dos protagonistas.
1.4 SÍNTESE DO PRIMEIRO CAPÍTULO
Dar visibilidade à atuação dos professores na história do ensino de espanhol é uma
forma de resistência aos discursos triunfalistas sobre essa temática que, movidos por
interesses mercadológicos, ganharam novo fôlego no Brasil com a sanção da Lei
11.161/2005. A recuperação da memória APEERJ, a partir da abertura de seu arquivo, visa
pôr em cena atores que participaram dessa história, mas que, por vezes, são apagados.
Como caminho para abrir o arquivo da APEERJ e ter acesso as suas textualidades,
se propõe, neste estudo, dois movimentos complementares: em uma primeira etapa, se dá a
análise dos temas instituídos nas atas de reuniões da entidade. Posteriormente, propõe-se a
análise das cartas públicas produzidas pela APEERJ. Ambos mostram-se necessários para
dar conta dos diferentes de sentidos que se instituem em gêneros de natureza igualmente
diversa.
Revisitar a memória da APEERJ, fazer monumentos dos seus documentos
(FOUCAULT, 2004a), assim como pôr em evidência os seus mais recentes escritos
propicia a compreensão de que a construção dos traços de identidade dessa categoria
profissional está relacionada com o delineamento de projetos político educacionais mais
amplos que, por sua vez, se submetem a contextos históricos e a determinadas condições
de enunciabilidade.
CAPÍTULO 2
Condições históricas de
surgimento da Associação de
Professores de Espanhol do Estado
do Rio de Janeiro
O objetivo do presente capítulo é tratar das condições históricas que viabilizaram a
fundação da primeira associação de professores de espanhol do Brasil. Buscou-se, então,
considerar o surgimento da APEERJ dentro do panorama político e educacional que se
constitui nos anos 1980.
Divide-se o capítulo em duas partes principais. Na primeira delas, contemplam-se
as origens do associacionismo no Brasil. Também se abordam as características gerais do
processo de abertura política no país e, depois, trata-se da trajetória da organização do
movimento docente. Na segunda parte do capítulo, é vista a situação do ensino de
espanhol, com foco no Rio de Janeiro, tanto no âmbito do então chamado ensino de 1o e 2
o
graus como na formação universitária.
Espera-se, a partir de uma revisitação ao passado, oferecer subsídios para a
compreensão do contexto de fundação da APEERJ, consequentemente, dos sentidos
instituídos em suas práticas discursivas ao longo da trajetória.
2.1 CENÁRIO POLÍTICO: EMERGÊNCIA DE MODELOS ASSOCIATIVOS
Iniciamos este capítulo rememorando um tema recorrente nas atas da APEERJ: a
busca de uma sede oficial para essa associação.
Do ponto de vista jurídico, o estabelecimento de uma sede – ainda que provisória-
está atrelado à própria condição de existência de uma associação. A inexistência de um
lugar para a sua instalação inviabiliza a oficialização desse tipo de organização como
pessoa jurídica. Do ponto de vista político, considera-se a conquista de uma sede como um
elemento significativo no processo de constituição e fortalecimento de uma entidade. A
oferta de lugar fixo, em geral, é concebida como um fator estimulador da integração do
grupo e também um elemento de legitimação da instituição perante a sociedade.
O primeiro registro da preocupação de conseguir uma sede aparece na ata da
segunda reunião da APEERJ, realizada em 12 de novembro de 1981, no Salão Nobre da
Biblioteca Estadual Celso Kelly. A trajetória da associação mostra que, ao longo dos seus
mais de trinta anos de existência, foram empreendidas várias tentativas malogradas com
instituições diversas, que não puderam disponibilizar, por diferentes razões, de espaço
adequado para abrigar permanentemente a associação.
O reconhecimento da dificuldade de conseguir uma sede para a APEERJ justifica a
reformulação do estatuto da APEERJ, em 1984, que passa definir a residência do Diretor-
presidente como sede provisória da associação:
Figura no 5: Fragmento do segundo estatuto da APEERJ, 1984
No âmbito informal, deve-se salientar que a APEERJ ocupou o espaço de
instituições nacionais e estrangeiras que promoviam o ensino regular ou livre de língua
espanhola no Brasil16
. Dentre os lugares em que se deram os encontros da APEERJ -
considerando-se não apenas as assembléias de professores, mas também os eventos
promovidos pela associação - a Casa de España obteve, quantitativamente, lugar de
destaque.
Na ausência de uma sede oficial da associação, e como resultado do infrutífero
projeto da Casa do Professor de Espanhol17
, a Casa de España, inaugurada em 1983,
desempenhou importante papel na história da APEERJ ao ceder, durante muitos anos, as
suas instalações às atividades propostas pelos professores de espanhol.
Segundo Freitas (2010), nos anos 90, o curso da Casa de Espanha foi a principal
referência do ensino não regular de espanhol no Rio de Janeiro. Três anos após a sua
fundação, em 1986, criou-se então chamado Instituto Cervantes da Casa de Espanha
16
Encontra-se registro em ata de solicitações feitas pela associação ao Instituto de Cultura Hispânica (ICH),
ao Instituto Cultural Brasil-Argentina (ICBA), à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), à Casa de
Espanha e ao Instituto Cervantes (IC) para a instalação de sua sede. Sobre a história de cada uma dessas
instituições ver Freitas (2010). Atualmente a documentação da APEERJ encontra-se arquivada na sala André
Trouche, situada nas dependências da Faculdade de Letras da Universidade Federal Fluminense. Tem-se
registro em ata sobre a preocupação dos diretores da APEERJ em preservar dito acervo em local seguro,
levando em consideração a suspeita de frequente desaparecimento de parte desse material.
17 A criação da Casa do Professor de Espanhol foi uma das propostas da APEERJ registrada pela primeira
vez em 12 de agosto de 1986. O projeto não foi levado a cabo pela associação.
(FREITAS, 2010, p. 44). Segundo a autora, fundado em um clube de imigrantes espanhóis,
o curso da Casa de Espanha, apoiado pelo Instituto de Cooperación Iberoamericana (ICI),
organismo dependente do Ministerio de Asuntos Exteriores, nasceu com o objetivo de
ensinar a língua espanhola aos filhos dos emigrantes espanhóis do Rio de Janeiro. Freitas
(2010) adverte, contudo, que o primeiro responsável pela nova atividade, Juan Bové
Cuevas, não era professor de espanhol. Somente a partir de 1991, a coordenação dos cursos
foi atribuída à Asesoría Linguística vinculada à Consejería de Educación.
Em texto assinado pela então Diretora-Presidente da APEERJ, em 1993, expõe-se a
estreita parceria entre essa entidade e a Casa de España:
Entretanto, cabe-me dizer, ainda, que a simples criação de uma
entidade de classe não era suficiente para viabilizar seus mais
antigos anseios, nem tampouco a grande e generosa receptividade
da direção da Casa de España (RJ) ao colocar a respectiva sede à
disposição da APEERJ[...](FERREIRA, 1993, p.45)
A menção a essa instituição e a sua presença constante na história da APEERJ é
mais um elemento motivador para a recuperação de um aspecto importante da história
remota do associacionismo no Brasil: o papel da imigração na criação de formas de
convivência e de solidariedade entre os trabalhadores.
2.1.1. A gênese do associacionismo no Brasil
Antes de abordar especificamente o contexto de surgimento da APEERJ, é
importante levar em consideração as condições históricas mais remotas que viabilizaram
esse acontecimento. É necessário, antes de tudo, refletir sobre a gênese do associacionismo
no Brasil. Nesse processo ganha destaque o papel dos colonos europeus. Para tanto, toma-
se aqui a inauguração da Casa de España, em 1983, apenas como exemplo que atualiza
uma prática dos imigrantes de fundar entidades capazes de congregar essa coletividade e
estabelecer relações de solidariedade entre os seus integrantes.
A iniciativa de criar diferentes tipos de clubes, sociedades, associações, fundações e
outras categorias de organizações constitui um elemento marcante da história da imigração
no Brasil. No caso específico da Casa de España, sua existência resultou da fusão do Club
Espanol de Rio de Janeiro, do Clube Iberia e da Casa de Galicia, cujos patrimônios foram
incorporados ao da Casa de Espanha. Segundo Maceiras Cela (1993), ex-presidente do
clube, sua criação resultou de antigo sonho da colônia espanhola.
La Casa de España es un sueño antiguo de la colonia, los españoles
no nos sentíamos bien, viendo como otras colonias de emigrantes
disponían de instituciones organizadas y prestigiosas, con buenas
instalaciones, que divulgaban sus culturas y su folklore,
manteniendo una presencia viva y permanente de su país
(MACEIRAS CELA, 1993, p.15)
Em pesquisa que apresenta um panorama geral da migração espanhola para o
Brasil, González Martínez (2000) ressalta que os galegos residentes no Rio de Janeiro
fundaram várias associações como o Centro Español, a Casa de Galícia, a Sociedad Hijos
del distrito de Arbo, etc. Na obra publicada pelo Consulado da España, em 1993, intitulada
“El Español en Rio de Janeiro”, é citada uma variedade de entidades como o Hospital
Español- Sociedad Española de Beneficencia, a Comunidad Hispánica de Asistencia
Social, a Sociedad Recreo de los Ancianos para Asilo de la Vejez Desamparada, o Club
Español de Niteroi, etc. Insere-se ainda nesse vasto conjunto a associação de mulheres
denominada La Colmena.
As microssociedades18
, citadas no parágrafo anterior, foram criadas pelos colonos
espanhóis em diferentes períodos e com distintas finalidades. A composição social entre
essas sociedades era igualmente diferenciada, sendo algumas delas congregadoras de
setores mais populares e outras de grupos mais elitizados. Sobre as formas de organização
dos imigrantes europeus no Brasil, afirma Fausto (1998, p.28):
A referência aos laços de grupo diz respeito à organização de
microssociedades, situadas a meio caminho entre as esferas pública e
privada, como é o caso dos clubes comunitários, teatros, associações de
socorros mútuos formadas por pessoas de uma determinada etnia ou de
uma determinada região do país de origem, sindicatos, templos religiosos,
etc. (FAUSTO, 1998, p.28)
Num país carente de assistência social pública, é compreensível que a mobilização
social e o estabelecimento vínculos de solidariedade entre determinadas coletividades haja
desempenhado um papel importante. Ao longo dos anos, a maior parte dessas sociedades
18 O termo microssociedades é originalmente empregado por M. Perrot (apud FAUSTO, 1998, p.28).
transcendeu as fronteiras das comunidades de imigrantes ampliando e diversificando o
quadro composicional dos seus membros e dos seus beneficiários.
Nesta investigação, interessa sublinhar que as organizações cívicas geridas pelos
imigrantes – não apenas pelos espanhóis, é claro – desempenharam papel decisivo na
configuração das origens do associacionismo no Brasil e, consequentemente, de uma nova
dimensão da institucionalidade social. Não se pode perder de vista igualmente que as
sociedades de socorro e ajuda mútua constituem, juntamente com a união operária
resultante do desenvolvimento industrial, a gênese da formação sindical no Brasil.
Em estudo que sintetiza a história da classe trabalhadora urbana no Brasil e os seus
instrumentos de organização sindical, Mattos (2002) ressalta a força das associações de
cunho mutualista, destacando as corporações de ofício (que congregavam artesãos) e as
irmandades leigas (entidades para-religiosas que acumulavam funções sociais).
A força desta tradição das associações de auxílio mútuo pode ser
explicada também pelas condições de vida e de trabalho dos
primeiros operários. Na ausência de legislação social, momentos de
afastamento do trabalho por acidente, viuvez, funerais, etc, eram
dramáticos para as famílias de trabalhadores, e a participação numa
dessas associações poderia ser a única possibilidade de amenizar
tais sofrimentos (MATTOS, 2002, p. 22-23).
O mesmo autor adverte que o caminho das associações para os sindicatos não era
obrigatório ou necessariamente direto. O surgimento de um número cada vez maior de
sindicatos, Ligas e Associações de Resistência não impediu a preservação das associações
mutuais, cuja diferença básica estava no fato de que, apenas ao sindicato, cabia representar
coletivamente os interesses trabalhistas, enfrentando diretamente a oposição patronal e o
governo se necessário (MATTOS, 2002, p.23). No que diz respeito ao processo de
mobilização dos trabalhadores no início do século XX, as práticas do movimento
anarquista trazidas na bagagem por muitos imigrantes também precisam ser consideradas
como elementos determinantes.
A compreensão da história do associacionismo no Brasil deve levar em conta a
existência de diversas categorias de entidades e atentar para o fato de que cada uma dessas
microssociedades possui uma composição social particular, podendo ser de caráter mais
popular ou elitista, revolucionário ou conservador. Posicionamentos políticos distintos são
assumidos pelas diferentes associações, cujo traço em comum é o interesse de agir
coletivamente em prol de determinados interesses do grupo.
O reconhecimento da atuação dos imigrantes europeus no berço do processo de
mobilização da sociedade civil não pode ser desvinculado de outros fatores contextuais,
igualmente indispensáveis na tecedura da história do associacionismo brasileiro. Nessa
trajetória, o processo de abertura política no país e a participação popular nos anos 70 e 80
são elementos indispensáveis para a compreensão das condições de surgimento da
APEERJ no ano de 1981.
2.1.2 O processo de abertura política e mobilização da sociedade civil
Durante as décadas de 1970 e 1980, vive-se, na maior parte dos países da América
do Sul, um movimento de redemocratização com a substituição do poder militar, que
durante décadas dominara o panorama político continental. No caso específico do Brasil,
atribui-se ao recorte temporal que estende de 1974 a 1985 como o período de reabertura
política, tomando-se como início desse processo o governo do general Ernesto Geisel e a
sua conclusão o fim da ditadura, a partir da eleição de Tancredo Neves. Alguns
historiadores, porém, ampliam o período de transição democrática ao ano de 1989, data em
que, pela primeira vez na história nacional, pelo voto popular direto, elegeu-se o presidente
da república (ABREU, 2006).
Em estudo sobre a crise da ditadura e o processo de abertura política, Silva (2010)
apresenta os principais atores e os seus projetos na reconstrução do cenário da
redemocratização do Brasil. Um desses elementos, de caráter externo, consiste no término
do apoio norte-americano ao regime militar, que se havia perdurado ao longo das ditaduras
latino-americanas. Segundo Silva (2010), os Estados Unidos, fundamentados na retórica
sobre os direitos humanos, passaram então a sinalizar aos governos sul americanos que
deveriam empenhar-se em direção à redemocratização. As críticas às ditaduras eram
explícitas, no entanto, esse autor (SILVA, 2010) discorda do ponto de vista defendido por
historiadores que valorizam amplamente a pressão externa como um elemento estrutural
das aberturas no continente. Para ele, a política americana não pode explicar isoladamente
esse processo. É necessário levar em conta o que Silva (2010) designa como os
condicionantes externos: a crise e a recessão da economia mundial que abatem o Brasil e o
continente em geral (2010, p. 252).
O fim da ditadura deve ser relacionado com o estrangulamento do crescimento
econômico do país que marcou a década de 1970. Vivia-se então o endividamento externo
e o progressivo aumento dos juros americanos. O anuncio, em 1982, do general-presidente
João Figueiredo sobre a incapacidade do Brasil de pagar a dívida externa já evidenciava o
colapso enfrentado pelo país (SILVA, 2010). Segundo o ponto de vista de Silva (2010),
não foi a crise econômica que impulsionou o projeto de abertura política na sua origem.
Seu papel foi condicionar o ritmo desse processo, influenciando um vertiginoso
crescimento de oposição à ditadura. Na realidade, deve-se atentar para o fato de que, em
1973, a crise não estava consolidada. Foi, justamente, a eficiência do governo Medici e o
cenário econômico otimista que favoreceram a sucessão de Geisel e o seu projeto de
abertura do regime. Na análise de Silva (2010), esse é terceiro elemento determinante da
volta do Estado de Direito: o plano político, proposto por Geisel, de promover a
reconstitucionalização do Brasil, por meio de um processo “lento, gradual e seguro”, de
modo que, sob a tutela militar, fosse possível comportar a ordem e as garantias básicas
para o regime.
A articulação entre os três atores mencionados explicam especialmente a primeira
fase da abertura do país. Na determinação do ritmo da fase final desse processo, contudo, é
preciso admitir a participação de um terceiro ator indispensável: o crescimento do
movimento popular de oposição, que culminou nas mobilizações de massa. É justamente
nesse quadro de mobilização popular dos anos 80, marcado pelo desejo de mudanças, que
se situa o elemento propulsor do fortalecimento do movimento associativista.
Desde 1978, com a revogação do Ato Institucional no
5, haviam sido abertas novas
possibilidades legais para a organização de bases. Com a ampliação da margem de
manobra dos movimentos populares, que contou com a contribuição significativa da elite
de oposição, emergiram organizações ligadas à Igreja, grupos associativos seculares e uma
nova organização sindical.
Em pesquisa voltada para a relação entre o Estado e a oposição no período
ditatorial, Alves (1984) considera a importância dos movimentos de base, destacando a
expressividade da política informal nessa época. Ressalta, dentre outros grupos, no
período de liberalização de Geisel e Figueiredo, a expansão das associações de moradores
e favelados, que desempenharam o papel de mobilizar a população para as atividades
políticas que pressionavam autoridades locais por melhorias específicas de suas
comunidades.
A partir ponto de vista da organização do campo educacional, Saviani (2008, p.402)
considera a década de 1980 como uma das mais fecundas da história. Nesse período, com o
restabelecimento do sistema democrático no país, observa-se clara mudança em relação ao
sentido da democracia no debate sobre a educação, cuja materialização se dá no texto da
Constituição de 1988. Explicita-se, no artigo 206 do referido documento, que o ensino será
ministrado com base, dentre outros princípios, na “gestão democrática do ensino público,
na forma da lei” (BRASIL, 1988). Uma das marcas dessa mudança se configura na
realização de eleição para diretores de unidades escolares que, embora tenha encontrado
fortes resistências para se instalar.
Com o intuito de expandir esta reflexão para a trajetória da organização do
movimento docente, inicia-se a próxima seção.
2.1.3 A organização do movimento docente
Como gênese da ação coletiva entre docentes, tem-se registro da primeira reunião
de professores convocada pelo governo, no ano de 1873, no Rio de Janeiro, então capital
do Brasil, com o propósito de focalizar a situação educacional. Ainda no período imperial,
em 1883, realizou-se a Conferência Pedagógica que reuniu professores das escolas
públicas e particulares. Também se tem registro sobre a existência de um Grêmio de
Professores Primários em Pernambuco, no final do século XIX, que buscava ampliar a
instrução e o bem-estar entre os seus associados (RESES, 2008, p.141)
Os anos 1920 constituem um marco na trajetória da organização docente. Sob a
perspectiva da Educação Nova, educadores como Anísio Teixeira, Fernando Azevedo,
Lourenço Filho e Carneiro Leão passaram a defender a necessidade de implementar
mudanças nos rumos da educação (RESES, 2008, p.142). Nesse contexto reformista, é
fundada, especificamente no ano de 1924, a Associação Brasileira de Educação (ABE)19
,
que desempenhou importante papel nas lutas educacionais e, embora não tivesse caráter
19
Fundada no de 1924, por Heitor Lira, Antonio Carneiro Leão, Venâncio Filho, Everardo Backeuser,
Edgard Süssekind de Mendonça, Delgado de Carvalho, entre outros, a ABE é concebida como entidade
pedagógica e cultural, os seus membros abarcam uma pluralidade de profissionais e pessoas interessadas na
educação e na cultura. Inicialmente, predominavam engenheiros vinculados à Escola Politécnica e ao então
existente Instituto Politécnico de Engenharia. Em 1932, a ABE lançou o célebre MANIFESTO DOS
PIONEIROS DA EDUCAÇÃO NOVA, redigido por Fernando de Azevedo que, pela repercussão alcançada
em nossos meios educacionais e culturais, constituiu-se num acontecimento marcante na história da educação
brasileira. Disponível em:
<http://www.abe1924.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=63&Itemid=
27>. Acesso em 28 de jan de 2012.
restrito de associativismo docente, inaugurou a representação do pensamento dos
professores (RESES, 2008; SAVIANI, 2008). Dois anos mais tarde, em 1926, criou-se a
Confederação do Professorado Brasileiro, que reunia professores do ensino secundário.
Apesar de ter bases anarquistas, a entidade se vinculou apenas ao mutualismo, sem investir
em um sindicalismo mais combativo20
.
Na Era Vargas foi notório o crescimento do professorado da Educação Básica21,
que se centralizava nas grandes cidades. O aumento da densidade de professores, a sua
concentração espacial e o clima intenso de mobilizações que o período de 1945-1964
anunciava são fatores impulsionadores do associativismo segundo Reses (2008, p.143).
Quanto à organização dos professores da iniciativa provada, em 1931, como
resultado de precárias condições de trabalho dessa categoria, foi criado o primeiro
sindicato de professores no Rio de Janeiro: o Sindicato dos Professores do Ensino
Secundário e Comercial do Distrito Federal (COELHO apud RESES, 2008). Por oposição
a essa entidade, que se vinculava ao sindicalismo oficial22, no mesmo ano, foi fundado um
sindicato paralelo, o Sindicato dos Trabalhadores do Ensino do Rio de Janeiro, de
inspiração anarquista. Alguns meses depois de sua criação, no entanto, o Sindicato dos
Trabalhadores do Ensino do Rio de Janeiro foi fechado.
Em análise sobre a dificuldade de fortalecimento de uma oposição a política
coercitiva do governo, afirma Reses (2008, p.162):
A tentativa de criação de um sindicato “paralelo” pelos anarquistas,
após o surgimento do Sindicato dos Professores do Ensino
Secundário e Comercial do Distrito Federal da iniciativa privada, e
sua efêmera atuação demonstrou a dificuldade de inserção de um
tipo de sindicalismo mais combativo, pois aquele se beneficiou dos
preceitos do enquadramento sindical do governo de Getúlio
Vargas, o que favoreceu o crescimento do número de filiados.
20
Dentre as experiências educativas do passado que exerceram certa influência sobre os docentes no Brasil
contemporâneo, Reses (2008) aponta as atividades educativas, à margem do sistema oficial de ensino,
promovidas pelos anarquistas no movimento operário. Segundo o autor, “apesar das dificuldades de
organização dos professores, por conta basicamente do grau de elitismo nas escolas normais, as experiências
anarquistas do início do século XX registrou uma certa relação entre sindicalismo e educação” (RESES,
2008, p.141). 21
Estima-se um número aproximado de 120.000 profissionais de educação no Brasil em 1940 (RESES, 2008,
p.143) 22
No governo Vargas, criou-se o Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio (MTIC), que implementou a
regulação sindical, gerando maior controle sobre o movimento operário.
Apesar de sua origem aliada ao governo, ao ver suas expectativas frustradas, o
Sindicato dos professores aproximou-se das forças de oposição. Como consequência, em
1937, perdeu a sua carta sindical. No ano seguinte, ao apresentar diretoria alinhada ao
governo, obteve nova carta sindical e, em 1940, através de decreto governamental, tiveram
suas reivindicações atendidas (RESES, 2008). Durante a ditadura militar, em 1976, o
sindicato passou a denominar-se Sindicato dos Professores do Rio de Janeiro (SINPRO-
Rio).23
Com o processo de abertura política e o inicio do novo sindicalismo, o final dos
anos 1970 e a década de 1980 constituíram o auge do sindicalismo docente. Destaca-se a
fundação da Sociedade Estadual dos Professores (Sep) em 1977 que, dois anos depois, se
fundiu com a União dos Professores do Rio de Janeiro (Uperj) e com a Associação dos
Professores do Estado do Rio de Janeiro (Aperj), criando o Cep - Centro de Professores
do Rio de Janeiro. A partir de 1987, a entidade passou a se chamar Cepe – Centro Estadual
dos Profissionais de Educação e a integrar outros profissionais da área de educação além
dos professores. Em 1988, o centro converte-se em Sepe – sindicato Estadual dos
Profissionais de Educação24
.
Além da notória articulação entre diferentes profissionais da área de educação25
,
acentua-se, nos anos 80, a formação de associações de professores de diferentes níveis de
ensino. Em 1986, constavam 29 associações estaduais de professores de escolas públicas
filiadas à Confederação de Professores do Brasil (CPB), originária da Confederação dos
Professores Primários do Brasil26
, que, em 1979, teve uma mudança substancial em seu
estatuto, incorporando os professores secundários dos antigos ginásios. A CPB,
posteriormente, transformou-se em Confederação Nacional dos Trabalhadores da
Educação e passou a congregar outros profissionais da área (SAVIANI, 2008, p.403).
No âmbito do ensino superior, o cenário não era muito diferente. No final da década
de 1970, foram sendo criadas associações docentes, viabilizando, assim, a criação, em
23
Em 2000, recebeu o nome de Sindicato dos Professores do Município do Rio de Janeiro. 24
Informações disponíveis em: <http://www.seperj.org.br/historia.php>. Acesso em 01 de fev de 2012. 25
No início dos anos 1980, já haviam sido recentemente fundadas a Associação Nacional de Educação
(ANDE) em 1979, a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) em 1977 e o
Centro de Estudos Educação e Sociedades (CEDES) em 1978. 26
No ano de 1960, em Recife, foi fundada a Confederação dos Professores Primários do Brasil (CPPB).
Disponível em: http://www.cnte.org.br/index.php/institucional/a-cnte. Em 1959, já somavam 11 estados
brasileiros com seus professores primários organizados em associações. Acesso em 01 de fev de 2012.
1981, da Associação Nacional de Docentes do Ensino Superior (ANDES)27
, constituída de
67 associações de professores de instituições de nível superior28
.
O processo de transformação das associações profissionais em sindicatos foi uma
tendência somente a partir da nova Constituição de 1988. Antes da sua promulgação, a
criação do sindicato ficava a critério do Ministro do Trabalho. Outro aspecto a ser levado
em consideração é que, antes da abertura política, estava proibida a sindicalização de
funcionários públicos. Portanto, é somente do final da década de 1980 em diante que
muitas associações docentes obtiveram o reconhecimento de seu caráter sindical
(SAVIANI, 2008, p. 404). Essa tendência foi seguida pelas associações dos professores das
universidades públicas do Rio de Janeiro, que, em sua maior parte, se transformam em
seções sindicais do ANDES- SN.
Ao contrário das entidades de caráter sindical, tomando-se como parâmetro a área
de Letras, observa-se que a gênese das associações de cunho acadêmico-científico não está
necessariamente atrelada à onda de mobilização dos trabalhadores no período de
redemocratização ou a qualquer outro cenário político específico do país. Embora tenham
sido fundadas, nos anos 1980, a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Letras (ANPOLL), em 1984, e a Associação Brasileira de Literatura Comparada
(ABRALIC) em 1986, em épocas diferentes identifica-se a criação de outras entidades
docentes. O surgimento da Associação Brasileira de Linguística (ABRALIN), por
exemplo, é bem anterior a esse período. Sua fundação aconteceu em 1969, em plena
ditadura militar. A Associação Brasileira de Linguística Aplicada do Brasil (ALAB), por
sua vez, funda-se apenas em 1990.
Cabe ainda mencionar que, no que diz respeito às associações de professores de
línguas estrangeiras no Rio de Janeiro, trata-se igualmente de um movimento pulverizado,
que não apresenta uma concentração em uma época específica. Em 1963, foi o ano de
fundação da Associação de Professores de Língua Francesa do Estado do Rio de Janeiro
(APFERJ). A Associação de Professores de Alemão do Estado do Rio de Janeiro (APA
Rio) é de 1988 e a Associação de Professores de Língua Inglesa do Estado do Rio de
Janeiro, por sua vez, só foi criada em 1993. Quanto à Associação Brasileira de Hispanistas
27
Desde 1988, a ANDES passou a ser Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior.
Atualmente, conta com mais de 72 mil sindicalizados de instituições de ensino superior federais, estaduais,
municipais e particulares. Está representado em todo o Território Nacional pelas suas 110 seções sindicais.
Antes dos professores, em 1978, os funcionários das universidades haviam criado a Federação das
Associações de Servidores das Universidades Públicas (FASUBRA). Disponível em:
<http://antigo.andes.org.br/historia.htm>. Acesso em 01 de fev. de 2012.
(ABH), foi fundada em 2000, visando, fundamentalmente, a congregação “pesquisadores
brasileiros do Hispanismo”, exigindo-se que seus membros fossem, como mínimo, alunos
de programas de pós-graduação stricto sensu. A palavra “professor” não consta em
nenhum artigo de seu estatuto.
Diferentemente do que acontece com a trajetória de surgimento das entidades de
perfil acadêmico-científico, o contexto da reabertura política foi propicio e decisivo para a
fundação de coletividades que apresentavam naquele contexto uma pauta de reivindicações
específicas e o interesse imediato de intervir nas políticas públicas através da interação
como governo (GOHN, 2005, p.72).
A década de 1980 configura-se, portanto, como um momento de efervescência do
associacionismo reivindicativo de caráter sindical e não sindical. É precisamente nesse
contexto que surge a APEERJ neste estado. No caso específico do Rio de Janeiro, a
eleição, em 1982, do candidato do Partido Democrático Trabalhista (PDT), Leonel Brizola
e do vice-governador Anísio Teixeira contribuiu para a criação de um terreno favorável às
primeiras ações políticas dos professores de espanhol29
. Tal como afirma Freitas:
Líder populista que representava o grupo político derrotado pelo
Golpe de 64, o discurso de Brizola defendia uma união Latino-
Americana contra o Imperialismo Americano. Assim, explica-se o
eco encontrado em seu governo aos pleitos da Apeerj a respeito da
inclusão do espanhol na escola de ensino básico (FREITAS, 2010,
p.40)
Nas seções à continuação, vislumbram-se as principais características que definem
o cenário educacional desse período, que propicia as condições de fundação da APEERJ.
2.2 CENÁRIO EDUCACIONAL: A GÊNESE DA PROFISSIONALIZAÇÃO DO
PROFESSOR DE ESPANHOL
Apesar da denominação “Associação de Professores de Espanhol Estado do Rio de
Janeiro” instituir o sentido profissional a essa organização, a APEERJ nunca pleiteou o
29 É importante sublinhar que o âmbito democrático concretizou-se em diversas ações nas escolas públicas
como eleiçãos para diretores, direções de escola colegiadas, compra de merenda pelas próprias escolas,
participação dos professores em questões pedagógicas, etc.
status de sindicato e, sequer, alguma vez se apresentou juridicamente como uma
“associação profissional”. Tal como especificado em seu estatuto fundacional, apresentado
em seguida, foi criada no inicio da década de 1980 como uma associação de “caráter
exclusivamente cultural” (Estatuto da APEERJ, 1982, Art.1) e assim foi mantida ao longo
dos seus mais de trinta anos de existência. À continuação, a reprodução do primeiro
estatuto da APEERJ:
Figura no 6:
Fragmento do primeiro Estatuto da APEERJ (1982)
Apesar da apresentação da APEERJ como uma entidade meramente cultural,
identificam-se, dentre os fins almejados pela Associação, objetivos que não se enquadram
propriamente no âmbito das atividades culturais. O propósito de trabalhar para a expansão
do ensino de espanhol no sistema educacional brasileiro e de viabilizar a integração dos
professores para o intercâmbio pedagógico não são interesses específicos da área cultural,
mas fazem parte de uma ação do âmbito político-educacional. Supõe-se que estreita
relação entre educação e cultura, nesse caso, não deva anular as especificidades de cada
uma dessas esferas que dispõem de práticas políticas diferenciadas.
Considera-se que as marcas de apartidarismo e de isenção ideológica instituídas
pela qualificação “de caráter exclusivamente cultural” dada à APEERJ não são coerentes
com o grau de especialidade dos fins apresentados no seu estatuto, que estão diretamente
relacionados à implantação do ensino de espanhol e à formação docente. Insiste-se, nesta
tese, que o reducionismo estabelecido pela atribuição de papel meramente cultural à
APEERJ desconsidera, de maneira contraditória, completamente os interesses profissionais
– corporativos e políticos – da entidade, cuja materialização se dá inclusive nos seus textos
fundacionais. Trata-se, portanto, de forma sileciamento da atuação politica dessa entidade
e, consequentemente, uma forma de apagamento da politicidade que é inerente à
implantação do ensino de espanhol no sistema escolar.
A seguir um fragmento da ata de sua primeira assembleia:
Figura no 7: Fragmento da Ata de fundação da APEERJ (1981)
30
A iniciativa de formar, desde a sua assembleia inaugural, uma comissão para atuar
em prol do ensino de espanhol no Estado do Rio de Janeiro, assim como a de mapear a
situação vigente do ensino de espanhol nas escolas são interesses da APEERJ que se
manifestam constantemente em seus escritos ao longo dos últimos 30 anos. A expansão do
ensino da língua espanhola é um tema recorrente não apenas nas atas de reuniões, mas
igualmente nos documentos dirigidos a autoridades e, inclusive, em algumas produções
acadêmicas da associação. Não se corre riscos afirmar, portanto, que a implantação do
ensino de espanhol constitui um dos principais eixos temáticos que norteia as práticas
discursivas da APEERJ ao longo de sua história.
30
Transcrição do fragmento manuscrito: “Bella K. Jozef alertou a Assembléia para a necessidade de
sensibilizar as autoridades para conveniência e utilidade da implantação do Espanhol no ensino de segundo
grau, como língua estrangeira obrigatória. Para tal foi imediatamente formada uma comissão para atuar junto
à Secretaria Estadual de Educação, coordenada pela própria Diretora Cultural e integrada pelas professoras
Marcia Paraquett Fernandez, Maria Josefa P. Rivas e Maria Leny H. S. de Almeida. Em seguida a professora
Annita Alvarez Xavier comunicou a existência, em Pendotiba (Niterói) de um colégio particular onde estuda-
se o espanhol como língua estrangeira obrigatória (Ata de fundação da APEERJ, 1981).
Com o propósito de recuperar elementos do passado necessários à compreensão das
condições do ensino de espanhol nesse período, que, de alguma maneira, viabilizaram e
impulsionaram o surgimento de uma associação de professores de espanhol no ano de
1981, o diálogo com outros textos sobre a história do ensino de espanhol torna-se
indispensável.
Nas seções à continuação, recorrem-se, como referências principais, aos estudos de
Daher (2006), Freitas (2010) e Paraquett (2009a; 2009b), que se aproximam pelo fato de
articularem em seus trabalhos uma manifestação da memória herdada (POLLAK,1992)
sobre a história do ensino de espanhol com acontecimentos efetivamente vivenciados por
elas. Outro aspecto comum entre as autoras é o interesse especial pela trajetória do ensino
de espanhol no Estado do Rio de Janeiro e pela formação de professores.
2.2.1 O ensino de espanhol no 1o e 2
o graus
A fim de compreender as condições em que se encontrava o ensino de espanhol na
época de fundação da APEERJ, é imprescindível levar em consideração os fatos que
antecedem esse período no âmbito educacional. Ao tratar da trajetória da presença do
espanhol no Rio de Janeiro, Freitas (2010, p.29) reconhece a sua “origem opaca” e o seu
“quase esvanecimento”. Os acontecimentos recuperados à continuação corroboram com a
perspectiva da autora.
Convencionalmente, os estudos interessados na genealogia do ensino de espanhol
mencionam, como referência mais antiga, a institucionalização da língua espanhola como
disciplina eletiva no Colégio Pedro II, em 1919. Nesse ano, se deu a aprovação de Antenor
Nascentes à cátedra de espanhol, com a submissão da tese “Um ensaio de phonetica
differencial luso-castelhana”31
. Em 2009, no entanto, por meio de pesquisa aos arquivos
Núcleo de Documentação e Memória do Colégio Pedro II (NUDOM), foi possível
recuperar o registro de tese de concurso anterior para o provimento da cadeira de espanhol,
apresentada no ano de 1885, cujo título era “Litteratura Hespanhola do XVII século.
31
No concurso público de 1919, Antenor Nascentes concorre à cátedra de espanhol com mais três candidatos.
São eles e os títulos das suas respectivas teses: David José Perez (Leis de formação da Língua Castelhana);
A. Morales de los Rios Filho (Um capítulo de psycologia nas Letras hespanholas) Francisco Pereira Novaes
da Cunha (Alguns elementos da grammatica hespanhola). As teses submetidas à banca examinadora foram
reunidas e publicadas em volume único e integram o acervo do Núcleo de Documentação e Memória do
Colégio Pedro II (NUDOM). No referido volume, especifica-se a titulação de três candidatos: David José
Perez era bacharel em Sciencias Jurídicas e Sociaes; Nascentes era bacharel em sciencias jurídicas e sociaes e
bibliotecario do Instituto dos Bachareis em Letras e, por fim, Francisco Pereira Novaes da Cunha era
bacharel em Direito. É preciso levar em consideração que nessa época o bacharelado em Letras ainda não
havia sido fundado no Brasil.
Escriptores Hespanhoes do XVII século: suas produções principaes”, de autoria de Alfredo
Augusto Gomes. Não se sabe ao acerto se o candidato foi aprovado ou quais foram
precisamente os desdobramentos do concurso.
Freitas (2010, p.29) apresenta uma referência ainda mais antiga sobre a presença do
espanhol em uma instituição escolar brasileira. Trata-se de um anúncio, no Jornal do
Commercio, publicado em 1827, a respeito da oferta de “Línguas Latina, portugueza,
Ingleza, Franceza e Hespanhola...” no “Collegio Inglez”. A fonte foi casualmente utilizada
por Gilberto Freyre, no ensaio “Ingleses no Brasil: aspectos da influencia britânica sobre a
vida, a paisagem e a cultura no Brasil” de 1948 (FREIRE apud FREITAS, 2010, p.29). A
própria autora reconhece que informações recuperáveis a partir desse único anuncio
também são restritas: não se tem conhecimento acerca de quais séries o espanhol era
ensinado, o conteúdo da disciplina, o regime de trabalho ou quem eram os professores.
A cátedra de espanhol no Colégio Pedro II foi mantida até 1925, ano em que
Nascentes transferiu-se para a cadeira de português (CELADA, 2002; DAHER, 2006;
FREITAS, 2010; PARAQUETT, 2006; PICANÇO, 2003). Inaugurou-se, a partir dessa
data, um período de apagamento do espanhol na instituição que se estende até 1942.
Segundo Freitas (2010, p.30), estabeleceu-se “um interregno sobre o qual não há notícias
da presença dessa disciplina em instituições escolares”.
No intuito de mostrar a inexpressividade do ensino de espanhol no âmbito nacional,
ainda que tenham existido casos isolados em que essa língua foi estudada, reproduz-se uma
das tabelas apresentadas por Leffa (1999, p.7) em artigo que aborda o percurso histórico do
ensino de línguas estrangeiras no Brasil.
Ano Latim Grego Francês Inglês Alemão Italiano Espanhol Total
em
horas
1890 12 8 12 11 11 - - 43
1892 15 14 16 16 15 - - 76
1900 10 8 12 10 10 - - 50
1911 10 3 9 10 10 - - 32
1915 10 - 10 10 10 - - 30
1925 12 - 9 8 8 2 - 29
1931 6 - 9 8 6 - 23
Tabela no 2 : O ensino de línguas de 1890 a 1931 em horas de estudo (LEFFA, 1999, p.7)
A primeira legislação que faz referência explícita ao espanhol na grade curricular
obrigatória é de 1942 durante a Reforma Capanema. Trata-se do Decreto- Lei N.4244
(BRASIL, 1942), que incorporava a língua espanhola ao currículo das escolas brasileiras,
passando a fazer parte dos programas oficiais ao lado do francês e inglês. Leffa (1999)
classifica as décadas de 40 e 50, sob a Reforma Capanema, como os anos dourados das
línguas estrangeiras no Brasil. Segundo o autor foi a reforma que deu mais importância ao
ensino das línguas estrangeiras. Afirma: “todos os alunos, desde o ginásio até o científico
ou clássico, estudavam latim, francês, inglês e espanhol” (LEFFA, 1999, p. 11). No caso
específico do espanhol, era estudado no Clássico (nas duas primeiras séries) e no Científico
(na primeira série) (FREITAS, 2010, p.30).
Outro aspecto relacionado ao ensino de espanhol nesse período é o fato de ter sido
incluído no momento em que se retira o alemão da cena educativa brasileira (DAHER,
2006; FREITAS, 2010; PICANÇO, 2003). A substituição da língua alemã se explica em
função da política do governo de Getúlio Vargas de oposição ao Eixo Alemanha, Itália e
Japão durante a Segunda Guerra Mundial. Segundo a análise de Picanço (2003) a inclusão
do espanhol, em 1942, em detrimento do alemão fazia parte de um projeto político
nacionalista, que se opunha radicalmente à recorrência à língua alemã, especialmente no
sul do país naquele período.
Com menos de vinte anos de sua implantação, o espanhol saiu novamente do
espaço educativo a partir do advento da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional no
4024/61 (BRASIL, 1961). Ao deixar a critério dos Conselhos Estaduais de Educação a
definição de quais seriam as disciplinas de caráter optativo, não só o espanhol, mas o
ensino de línguas estrangeiras em geral sofreu grande declínio nesse período. Na década
seguinte, em 1971, entrou em vigor uma nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, no 6692/71 (BRASIL, 1971), mas não se propuseram mudanças efetivas no
ensino de língua estrangeira. Somente a partir de 1976, com a Resolução 58/76 (BRASIL,
1976), a língua estrangeira passou a integrar o currículo do 2o grau e, no 1
o grau, era
apenas sugerida, ficando a critério das instituições de ensino. Salvo algumas exceções
como o Colégio Pedro II e algumas escolas da rede estadual do Rio de Janeiro32
, o
espanhol praticamente desapareceu das escolas e permanecem apenas o inglês e o francês
(FREITAS, 2010, p.31).
32
Daher (2009) menciona a realização de concurso de professor de espanhol para a rede estadual do Rio de
Janeiro em 1967.
O descaso do poder público acerca do ensino de espanhol reconhecido nas
considerações anteriores conviveu, na segunda metade do século XX, com tentativas de
mudança desse panorama. Segundo informação apresentada por Barros (apud
PARAQUETT, 2009a, p.6) existiram de quinze projetos de lei, na Câmara dos Deputados,
no período de 1958 a 199533
, versando sobre a implantação do ensino de espanhol.
Verifica-se, portanto, a construção histórica de projetos políticos voltados para o ensino de
espanhol, majoritariamente fundamentados na ideia de integração dos povos da América
Latinae, em menor escala, na oposição à hegemonia do inglês34.
É importante salientar, portanto, que o discurso acerca da implantação do ensino de
espanhol no sistema educacional antecede a mobilização dos professores. Em resumidas
contas, pode-se afirmar que a ideia de incluir o espanhol no currículo escolar nunca foi
totalmente abandonada ou silenciada na esfera política brasileira, embora, na prática,
tenham sido longos os seus períodos de ausência no espaço escolar.
2.2.2 O ensino de espanhol na formação universitária
A formação de professores de Letras no Brasil inaugurou-se a partir dos anos 1930,
com a criação das Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras. A graduação em Letras
Neolatinas em uma instituição pública surgiu em 1939, na então Universidade do Brasil,
atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (BRASIL, 1939). Nessa época, porém,
tratava-se apenas de uma das três línguas integrantes do curso de Letras Neolatinas, que,
além do espanhol, contava também com o francês e o italiano. Nesse mesmo ano, a
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro também passou a oferecer o referido
curso.
Em 1941, a Faculdade de Filosofia do Instituto La-Fayette, integrada
posteriormente ao curso de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, recebeu
autorização para o funcionamento de seus cursos, entre eles o de Letras Neolatinas. Alguns
nos depois, em 1951, o mesmo curso foi criado na Universidade Federal Fluminense
(DAHER; SANT´ANNA, 2009; FREITAS, 2010).
33
É importante lembrar que no início da década de 1990, assinou-se o Tratado de Assunção dando início ao
MERCOSUL. A revisitação do arquivo jurídico e legislativo brasileiro relativo ao ensino de espanhol é
proposta por Rodrigues (2010). 34
A promoção da integração da América Latina se materializa no texto da Constituição da República
Federativa do Brasil (BRASIL, 1988). No final do primeiro capítulo da Constituição dispõe-se: “Parágrafo
único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos
da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações”. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm>.
Somente a partir da década seguinte, nos anos 1960, a partir do Parecer no 283-62
de Valnir Chagas do Conselho Federal de Educação (DAHER, 2011), inauguraram-se as
habilitações específicas para cada língua nos cursos de Letras, cuja consolidação se dá com
a reforma universitária de 1968 (BRASIL, 1968). A formação de professores com
habilitação em Letras Português/Espanhol surge, na Universidade Federal Fluminense, em
1961, e, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, em 1963.
O advento de uma formação específica para o professor de línguas constituiu uma
etapa fundamental do processo de profissionalização dessa categoria. Segundo Nóvoa
(1999), a formação profissional especializada no seio de instituições expressamente
destinadas para esse fim é uma das etapas indispensáveis da profissionalização do
professorado. Nesse sentido, o desmembramento dos cursos de Letras Neolatinas, na
década de 1960, e a criação das habilitações específicas nas línguas estrangeiras devem ser
considerados como um marco, tanto na trajetória do ensino de idiomas de uma forma
ampla, como no que diz respeito ao status profissional dos professores.
As transformações relativas à formação no curso de Letras e a situação em que se
encontrava o ensino de espanhol na universidade constituem parte do cenário de
surgimento da APEERJ em 1981. Desse contexto, dois aspectos precisam ser destacados: a
perpetuação da tradição belletrista no curso de Letras (DAHER; SANT´ANNA, 2009) e a
escassez de campo de atuação para os professores de espanhol. Daher (2011) adverte que a
reestruturação proposta pela criação das habilitações específicas em nada desestabiliza o
belletrismo, uma vez que as investigações mantêm-se desvinculadas da escola, com o seu
foco especialmente voltado para os estudos literários e para a história da língua.
O distanciamento entre os saberes acadêmicos e os saberes oriundos da prática,
concebido por Nóvoa (1999) como verdadeiro obstáculo do processo de profissionalização
do professorado em geral, é um aspecto importante da trajetória da formação do professor
de espanhol no Brasil. Nos escritos da APEERJ, tal como se expõe no quarto capítulo, é
possível recuperar marcas dessa concepção da formação de professor de língua estrangeira,
que antecede a fundação da APEERJ, mas perdura ao longo de sua existência.
O segundo aspecto a ser destacado diz respeito à escassez de possibilidades de
atuação dos professores no ensino de espanhol. Dar aulas de espanhol na escola era a
atividade de uma minoria, embora se formassem, desde a década de 1960, profissionais
habilitados especificamente para esse fim nas universidades brasileiras. Uma das
inevitáveis consequências da falta de campo para o exercício dessa profissão foi o baixo
número de alunos no curso de graduação em Letras com habilitação em português/
espanhol em comparação com as demais línguas neolatinas, conforme o relato de Martini
(2011) à continuação.
Em entrevista, realizada no ano de 2011, à fundadora e primeira diretora-presidente
da APEERJ, relata a Professora Maria de Lourdes Cavalcante Martini:
[...] Era o francês que mandava no curso de neolatinas, era o
francês. Era dividido, português/ francês, português/ espanhol e
português italiano. Com isso o nosso curso de espanhol ficou
fraquíssimo. Tinha muito poucos alunos. O francês exuberante.
O italiano mais ou menos, mas o espanhol ficou reduzido.
Então, eu pensei em tentar resolver a situação. Foi quando então
eu fundei a associação de professores de espanhol. Aí, começou
o crescimento do espanhol no Brasil todo. Trabalhamos para
incluir o espanhol no ensino [...]
Fragmento de entrevista concedida por Martini em junho de
2011
A fala de Martini explicita a situação do espanhol na universidade nos anos que
antecedem o surgimento da APEERJ. Para tanto, recorre à comparação com as outras
habilitações do curso de Letras Neolatinas mais requisitadas que o espanhol. A idéia de
criar a APEERJ está relacionada, na fala da professora citada, como a necessidade de
ampliar o interesse pelo estudo do espanhol na universidade.
A mobilização dos professores universitários na criação da APEERJ se destaca em
relação a outros segmentos da categoria, cujas condições de organização nesse contexto
eram dificultadas tanto pela escassez de professores atuantes nas redes de ensino como
pela pulverização desses profissionais em diferentes instituições. A seguir, apresenta-se a
lista de sócios fundadores da APEERJ, da qual a maior parte dos docentes pertence a
instituições de ensino superior:
Figura no 8: Lista de sócios fundadores da APEERJ
35
Dentre os professores fundadores, compunha a primeira diretoria da APEERJ
(1981-1983), formalizada também assembléia de 15 de outubro de 1981: Maria de Lourdes
Cavalcanti Martini (presidente), Maria Thereza da Silva Venâncio (vice-presidente); Dayse
35
Atuavam no nível de ensino superior os seguintes professores: José Carlos Lisboa, Emilia Navarro; Maria
de Lourdes Martini; Maria Thereza Venâncio, Helena Ferreira, Bella Jozef, Dayse Löfgren; Maria Leny de
Almeida; Silvia Inés Cárcamo; Maria Josefa Pato Rivas; Magnolia Brasil; Marcia Paraquett; Mario
Camarinha; Monica Rector; Vera Sant´anna; Eliane Zagury; Lea de Souza; Julio Dalloz e Annita Alvarez
Xavier.
Janot Löfgren (secretária), substituída pouco depois por Maria Leny Heiser Souza de
Almeida; Suely Machado Faillace (diretora financeira); Helena Ferreira (diretora social);
Bella Jozef (diretora cultural) Emilia Navarro Morales e José Carlos Lisboa (presidentes de
Honra). Todos os professores citados atuavam no nível superior.
É previsível que, no momento de criação da APEERJ, a escassez de professores de
espanhol nas redes de ensino inviabilizasse articulação dos professores da educação básica.
Deve-se sublinhar, então, que a criação da APEERJ não resultou de uma demanda concreta
de professores da educação básica, mas surgiu de uma luta travada no seio da universidade,
relativamente isolada do espaço escolar, dirigida majoritariamente pelos formadores de
professores de espanhol.
2.3 ENSINO DE ESPANHOL: UMA LEITURA DO TEMPO
Com o propósito de apresentar panoramicamente a trajetória do ensino de espanhol,
propõe-se, à continuação, uma cronologia de acontecimentos que constituem essa história.
Levando em consideração a elaboração desse instrumento sempre exige fazer um recorte
temporal a partir de um determinado ponto de vista, optou-se em reunir aqui apenas
acontecimentos recuperados nas referências bibliográficas desta tese concernentes à
trajetória do ensino de espanhol no Rio de Janeiro e, ainda, os acontecimentos que, mesmo
fora desse Estado, contaram com a participação ativa da APEERJ.
Além de recuperar as datas citadas nesta seção referentes ao ensino de espanhol, a
sequência temporal proposta permite a inclusão de acontecimentos que são posteriores à
fundação da APEERJ e que, portanto, não couberam neste capítulo. Os dados apresentados
também antecipam informações da próxima seção, cujo foco se volta para o ensino de
espanhol na formação universitária.
Linha do tempo36
1827
Presença do espanhol no Collegio Inglez
1885 Primeiro concurso para professor de espanhol no Colégio Pedro II.
1919 Aprovação de Nascentes à cátedra de espanhol.
36
A maior parte das informações apresentadas foi extraída de pesquisas, cuja referência se faz ao longo dos
capítulos desta tese e, especialmente, do documento intitulado “Histórico da APEERJ” produzido por Freitas
(2006) e veiculado no site da APEERJ.
1930 Inaugura-se a formação de professores de Letras no Brasil com a criação das
Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras.
1939 Surge a graduação em Letras Neolatinas na Universidade do Brasil, atual
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
1941 A Faculdade de Filosofia do Instituto Lafayette, integrada posteriormente ao curso
de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, põe em funcionamento o
curso de Letras Neolatinas. No mesmo ano, a Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro também oferece o curso de Neolatinas
1942 Lei Orgânica do Ensino Secundário n. 4244/42 determina que o espanhol faça
parte do currículo do Segundo Ciclo do Ensino Secundário, na 1ª e na 2ª séries do
Clássico e na 1ª série do Científico.
1951 Criação do curso de Neolatinas na Universidade Federal do Estado do Rio
de Janeiro, atual Universidade Federal Fluminense.
1961 Inauguração da habilitação Letras Português/ Espanhol na Universidade
Federal Fluminense.
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional no
4024/61. O espanhol sai
novamente do espaço educativo.
1963 Criação do curso de Neolatinas na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
1976 Com a Resolução 58/76, a língua estrangeira passa a integrar o currículo do
2o e, no 1
o grau, é apenas sugerida, ficando a critério das instituições de
ensino. Salvo algumas exceções como o Colégio Pedro II e algumas escolas
da rede estadual do Rio de Janeiro, o espanhol praticamente desaparece das
escolas e permanecem apenas o inglês e o francês.
1981 Fundação da APEERJ
1982 Realização do I Seminário de Estudos Hispânicos, intitulado Homenagem ao VII
Centenário Juan Manuel, na Faculdade de Filosofia de Campo.
1983 Realização do II Seminário de Estudos Hispânicos, na Universidade do
Estado do Rio de Janeiro.
Inicio do segundo mandato da APEERJ
1984 A partir de solicitação da APEERJ, o CEE prova o parecer a respeito da inclusão
da Língua Espanhola no Segundo Grau.
Realização do III Seminário de Estudos Hispânicos
Inauguração do Boletín Hispánico.
1985 Por solicitação da APEERJ, inclusão do espanhol no Vestibular.
SEE promove, pela primeira vez, concurso público para o provimento do cargo de
professor de espanhol.
Realização do I Congresso Brasileiro de Professores de Espanhol na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Inicio do terceiro mandato da APEERJ
1986 Realização do IV Seminário de Estudos Hispânicos, intitulado García Lorca:
poeta, dramaturgo e ensaísta, na Universidade Federal Fluminense.
1987 Inicio do quarto mandato da APEERJ
Realização do V Seminário de Estudos Hispânicos na casa de España.
1988 Realização do VI Seminário de Estudos Hispânicos na Universidade Federal do
Rio Ed Janeiro.
Realização de Curso de Reciclagem para professores na Casa de España.
1989
Aprovação da Proposta Popular de Emenda ao Projeto de Constituição
apresentada pela APEERJ, pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais e pelo
Instituto Brasileiro de Cultura Hispânica.
Inicio do quinto mandato da APEERJ
Realização do VII Seminário de Estudos Hispânicos na Casa de España.
1992
Inicio do sexto mandato da APEERJ
Realização do VIII Seminário de Estudos Hispânicos, na Universidade Federal do
Rio de Janeiro.
1994
IX Seminário de Estudos Hispânicos
Inicio do sétimo mandato da APEERJ
Primeira edição da Revista da APEERJ
1996
Inicio do oitavo mandato da APEERJ
Aprova-se a “Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional”, n. 9394/96, que
determinava a inclusão, no Ensino Médio de uma Língua Estrangeira, escolhida
pela comunidade escolar, e uma segunda língua opcional, o que abre espaço para a
inclusão do Espanhol nas grades curriculares de todo o Brasil.
Realização do X Seminário de Estudos Hispânicos, intitulado O corpo nas
literaturas hispânicas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Prefeitura do Município do Rio de Janeiro promove, pela primeira vez, concurso
público para o provimento do cargo de professor de espanhol.
1998 Publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Estrangeira- Ensino
Fundamental
Inicio do nono mandato da APEERJ
Realização do XI Seminário de Estudos Hispânicos, intitulado Federico García
Lorca: uma voz centenária
APEERJ publica o primeiro livro, intitulado Mitos españoles: imaginación y
cultura.
APEERJ organiza palestra sobre os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino
Fundamental.
2000 Funda-se a Associação Brasileira de Hispanistas.
Inicio do décimo mandato da APEERJ
2002 Inicio do décimo primeiro mandato da APEERJ
Criação da primeira homepage da APEERJ
APEERJ promove o evento Experiencias Exitosas na UERJ.
2003 APEERJ promove o evento II Grupo de Trabalho, Aprendendo com as
dificuldades, no Instituto de Educação.
Realização do XIV Seminário de Estudos Hispânicos, no Colégio Pedro II
2004 Inicio do décimo segundo mandato da APEERJ
Realização do evento I Jornadas Didáctico - pedagógicas na UERJ
2005
Sanção da Lei 11.161, que determina a oferta obrigatória do ensino de espanhol no
Ensino Médio.
A APEERJ promove o I Fórum de Ensino Superior na UERJ.
Realização do evento Semana Quijote en el siglo XXI, na Universidade Estadual
do Rio de Janeiro.
2006
Inauguração do Proyecto Oye, visando à formação on-line de professores de
espanhol, a partir da parceria entre a SEE de São Paulo, o Banco Santander e o
Instituto Cervantes.
Publicação das Orientações Curriculares para o Ensino Médio, com um capítulo
destinado ao Espanhol
Inicio do décimo segundo mandato da APEERJ
Participação no Encontro de Estudos Hispânicos - Homenagem ao México,
organizado pela Fundação Educacional Unificada Campograndense
(FEUC). Foi realizada uma campanha de filiação com a venda, pela
primeira vez, de camisetas e canetas e apresentação de oficinas.
Participação no IV Congresso Brasileiro de Hispanistas com campanha de
filiação da APEERJ.
Apresentação de oficinas na UNISUAM aos alunos do curso de Letras.
Apresentação de oficinas e campanha de filiação IV Jornada Pedagógica
da Faculdade Geremário Dantas.
Realização de palestra e campanha de filiação na Fundação Educacional
Unificada Campograndense (FEUC)
Realização do Jubileu de prata da APEERJ: uma história de dedicação ao
ensino de espanhol. O seminário comemorativo dos seus 25 anos de
fundação reuniu cerca de 200 associados.
2007
Realização do Curso de Atualização de Professores de Espanhol em
parceria com a Consejería de Educación e a Casa de España.
Realização do Concurso Citas Hispánicas, que visava a selecionar frases
para estampar as novas camisetas da APEERJ.
Realização do Encuentro de profesores de español “Experiencias
didácticas en torno a Gabriel García Márquez” em parceria com o Centro
de Centro de Recursos Didáticos de Espanhol do Rio de Janeiro.
Realização do Curso de Actualización para Profesores de Español, em
parceria com Consejería de Educación de la Embajada de España e Casa de
España.
Realização do Curso de Actualización para Profesores de Español em
parceria com Consejería de Educación de la Embajada de España e Casa de
España e Universidade Severino Sombra, na cidade de Vassouras.
Realização XVI Seminário de Estudos Hispânicos no Instituto de Letras da
Universidade Federal Fluminense,
Realização do Ciclo Cine y Literatura em parceria com o Centro de
Recursos Didáticos de Espanhol e a APEERJ.
2008 Inicio do décimo terceiro mandato da APEERJ
Realização do Curso de Actualización para Profesores de Español em
parceria com a Consejería de Educación de la Embajada de España e
UniFOA, na cidade de Volta Redonda.
Realização do Curso de Actualización para Profesores de Español em
parceria com a Consejería de Educación de la Embajada de España, na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Realização do Curso de Actualización para Profesores de Español em
parceria com a Consejería de Educación de la Embajada de España e
CETEP-FAETEC, na cidade de Itaperuna.
Realização de Curso de Actualización para Profesores de Español em
parceria com a Consejería de Educación de la Embajada de España e Casa
de España.
Realização de Mesa Redonda intitulada Reflexões sobre a implementação
da lei 11.161 no Rio de Janeiro, no CEFET.
2009 Proposta de Acordo entre Ministério da Educação e o Instituto Cervantes.
Realização da Mesa Redonda Ensino e formação de professores de
espanhol no Brasil a partir da assinatura do acordo MEC-Instituto
Cervantes na UERJ
É criada a Comissão Permanente de Acompanhamento da Implantação do
Espanhol no Sistema Educativo Brasileiro (COPESBRA).
Realização do Curso de Actualización para Profesores de Español, em parceria
com a Consejería de Educación de la Embajada de España e Universidade
Severino Sombra, na cidade de Vassouras.
Realização de Curso de Actualización para Profesores de Español em
parceria com a Consejería de Educación de la Embajada de España no Pólo
Universitário Professor Jair Travassos da Universidade Federal
Fluminense, em Angra dos Reis.
Realização do projeto Cita con la APEERJ, com palestras, oficinas, mini-
cursos e mesas redondas em diferentes instituições de ensino superior
(UNISUAM, UFF, UFRJ, FacCCAA)
2010 Realização do XV Congresso Brasileiro de Hispanistas na Universidade Federal
Fluminense.
Inicio do décimo quarto mandato da APEERJ
Realização do Seminário APEERJ de Experiências Didáticas
Realização do Encontro das Associações de Professores de Espanhol no Brasil
2011 Proposta de Acordo entre a Prefeitura de Niterói e o Instituto Cervantes.
Realização do XIV Congresso Brasileiro de Professores de Espanhol na UFF
2.4 SÍNTESE DO SEGUNDO CAPÍTULO
Revisitar as condições históricas do surgimento da APEERJ é um percurso
necessário para a compreensão das condições de enunciabilidade (FOUCAULT, 2004a)
dos escritos fundadores dessa entidade e das suas práticas discursivas subseqüentes. Para
tanto, buscou-se abarcar no presente capítulo dois cenários, cuja reconstituição mostrou-se
fundamental para leitura do arquivo da APEERJ: o cenário político e o cenário
educacional.
No que diz respeito ao cenário político, destaca-se o novo fôlego experimentado
pelo associacionismo no processo de democratização do país na década de 1980. Ainda
que a gênese das associações remeta aos movimentos migratórios do século XX, são o
processo de abertura política e a crescente mobilização da sociedade civil - inclusive do
âmbito universitário- que criam condições para a organização dessas coletividades nos
anos 1980.
Deve-se levar em consideração que APEERJ é fundada em um momento de
efervescência do associacionismo sindical e não sindical que, embora defendam posições
políticas muito variadas, tem um elemento em comum: seu surgimento está vinculado ao
reconhecimento da necessidade da ação coletiva em prol de determinados interesses.
A revisitação do cenário educacional e, em especial, a referência que se faz à
gênese da profissionalização do professor de espanhol são indispensáveis no presente
capítulo para a elucidação de dois elementos fundamentais que marcam a fundação da
APEERJ: (i) configurava-se no âmbito universitário terreno propício à criação dessa
entidade, visto que, apesar da existência de cursos de formação de professores de espanhol,
o índice de absorção desses profissionais pelas redes de ensino era baixíssimo,
justificando-se o interesse dos professores formadores em ampliar o campo de atuação dos
licenciandos de língua espanhola. Nesse sentido, o interesse de expandir o ensino de
espanhol na educação básica propagado pela APEERJ estava diretamente vinculado ao
fomento dos cursos universitários; (ii) apesar do declarado interesse de expandir o ensino
de espanhol na escola, a discussão sobre o ensino de espanhol no contexto escolar era
muito incipiente em um contexto historicamente caracterizado pela valorização dos saberes
acadêmicos em detrimento dos saberes oriundos da sala de aula.
CAPÍTULO 3
Politicidade no Ensino de
Línguas: da instrumentalização
à educacionalidade
A diferença entre explicar e entender pode dar conta entre acumulação de
conhecimentos e compreensão do mundo. Explicar é reproduzir o
discurso midiático, entender é desalienar-se, é decifrar, antes de tudo, o
mistério da mercadoria (SADER, 2008)
Para muitos professores, é um pouco escandaloso falar em política
e em educação no mesmo texto.
(GANDIN, 2001)
O processo de construção e transformação dos traços da identidade política da
APEERJ não pode ser compreendido de forma insular. Ele está diretamente vinculado com
a história do ensino de línguas estrangeiras neste país, que se constitui do embate entre
diferentes concepções acerca do papel do ensino de línguas e, em sentido mais amplo, do
papel da própria escola básica.
A instituição de novos sentidos nas práticas discursivas dessa entidade docente nos
últimos anos não é concebida aqui como fruto de escolhas de individuais e muito menos de
uma essência subjetiva. Compreende-se que essa transformação identitária está atrelada à
emergência de determinadas condições de enunciabilidade. Essas, por sua vez, são
resultantes de uma redefinição de um cenário mais amplo que inclui transformações no
campo das ideias linguísticas e pedagógicas no Brasil, assim como fatores contextuais de
ordem político-econômica que interferiram diretamente no âmbito educacional.
Pautado na indissociabilidade entre educação e política, o presente capítulo propõe-
se a refletir sobre o processo de politização das práticas discursivas do ensino de línguas
estrangeiras, priorizando o lugar da língua espanhola nessa trajetória. Como ponto de
partida, retoma-se a discussão sobre os fundamentos políticos da escola moderna e a
posterior disseminação dos valores mercadológicos no âmbito educacional à luz dos
estudos de Foucault (2004a; 2008a; 2008b) e de Bauman (2010). Em seguida, o foco se
verte especificamente sobre a trajetória do ensino de idiomas no contexto escolar. Procura-
se, então, evidenciar as relações entre as abordagens consolidadas no ensino de línguas
estrangeiras e os valores político-educacionais que lhes são subjacentes. Recuperam-se
sentidos inerentes a formações discursivas historicamente instituídas na memória do ensino
de línguas neste país m- língua como um instrumento para o acesso à “boa cultura” ou ao
mercado - privilegiando a situação do ensino de espanhol neste cenário.
Conclui-se este capítulo assinalando a instauração de um novo posicionamento
político sobre o papel do ensino de espanhol na escola brasileira, que resulta, a um só
tempo, (i) do desenvolvimento de pesquisas no campo dos estudos linguísticos e
educacionais, que se consolidam na década de 1990 e se materializam nos documentos
curriculares nacionais (PCN-LE/ BRASIL, 1998; OCEM/ BRASIL, 2006) e (ii) do
fortalecimento de contracondutas (FOUCAULT, 2008a) do professorado frente a política
pan-hispânica neste país.
3.1 EDUCAÇÃO E POLÍTICAS DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS
A abrangência de sentidos atribuídos à definição de política exige que se faça
preliminarmente uma delimitação conceitual. Nesta pesquisa, cujo olhar se volta para o
acontecimento da enunciação, opta-se pela compreensão do político como fundamento das
relações sociais e, portanto, como algo que afeta materialmente a linguagem. Segundo
Guimarães (2005),
o político, ou a política, é para mim caracterizado pela contradição
de uma normatividade que estabelece (desigualmente ) uma divisão
do real e a afirmação de pertencimento dos que não estão
incluídos. Deste modo o político é um conflito entre uma divisão
normativa e desigual do real e uma redivisão pela qual os desiguais
afirmam seu pertencimento. Mais importante ainda para mim é que
deste ponto de vista o político é incontornável porque o homem
fala. O homem está sempre a assumir a palavra, por mais que esta
lhe seja negada (GUIMARÃES, 2005, p.16).
Preliminarmente, com o intuito de tratar da relação entre educação e política,
retomam-se definições tradicionais de política para, posteriormente, dar visibilidade à
perspectiva foucaultiana (2004a; 2008a; 2008b) da qual se aproxima esta pesquisa.
Bobbio (1983) recupera a acepção clássica de política oriunda da obra de
Aristóteles. Política significa, nessa perspectiva, “tudo o que se refere à cidade e,
consequentemente, o que é urbano, civil, público, e até mesmo sociável e social”
(BOBBIO, 1983, p.954). Na tradição clássica, a política estabelece os critérios de justiça e
do bom governo, fazendo-se imprescindível para que o homem possa atingir a felicidade (o
bem-estar). Nesse contexto, somente as formas corretas de governo são consideradas como
poder político.
Segundo Maar (2006, p.29), o significado atual de política resulta de um longo
processo histórico, durante o qual a atividade política se realizou na vida social em
constante movimento e transformações. De acordo com o autor citado, a política somente
adquire maioridade quando se passa, a partir de lição legada por Maquiavel, a distinguir
governo e Estado, sendo o primeiro concebido como o agente da atividade política do
segundo (MAAR, 2006, p.36).
Outra acepção de política apresentada por Maar (2006, p.40) diz respeito à
contribuição da obra de Marx, à qual se atribui a função de levar a atividade política ao
plano social. Marx incorpora à política o sentido de conflito de classes sociais. Assim
sendo, “a necessidade de estudar as relações entre governantes e governados daria lugar,
como cerne da própria atividade política, à análise das relações entre classes dominantes e
classes dominadas, entre exploradores e explorados”. A questão básica de Maquiavel, que
consiste em “como os governados podem tornar-se governantes?”, em Marx, substitui-se
por “como as classes dominadas podem tornar-se classes dominantes?” (MAAR, 2006,
p.41).
Com Foucault (2008a; 2008b; 2012) a noção de política ultrapassa a dicotomia
Estado/sociedade. Em face à teoria da soberania, segundo a qual somente o soberano
governa, Foucault apresenta uma genealogia da governamentalidade. A proposição do
filósofo se opõe à perspectiva monolítica do poder, à supervalorização e à mitificação do
Estado, ressaltando a existência de uma multiplicidade de governos.
Com a palavra governamentalidade, o autor concebe:
1. O conjunto constituído pelas instituições, procedimentos,
análises e reflexões, cálculos e táticas que permite exercer esta
forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a
população, por forma principal de saber a economia política e por
instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança.
2. A tendência que em todo o Ocidente conduziu incessantemente,
durante muito tempo, à preeminência deste tipo de poder, que se
pode chamar de governo, sobre todos os outros – soberania,
disciplina etc. – e levou ao desenvolvimento de uma série de
aparelhos específicos de governo e de um conjunto de saberes.
3. O resultado do processo através do qual o Estado de justiça da
Idade Média, que se tornou nos séculos XV e XVI Estado
administrativo, foi pouco a pouco governamentalizado.
(FOUCAULT, 2012, p. 429)
Com a fusão do “governar” (gouverner) com a “mentalidade” (mentalité) no
neologismo governamentalidade, Foucault enfatiza a interdependência entre o
governamento e as mentalidades que legitimam essas práticas (FIMYAR, 2009). No
decorrer da obra foucaultiana, a noção de governamentalidade deixa de designar somente
as práticas constitutivas de um regime de poder particular e passa a ser entendida como a
maneira como se conduz a conduta dos homens, servindo assim como grade de análise
para as relações de poder em geral (FOUCAULT, 2008a). Se em um primeiro momento, o
filósofo enfatiza com o conceito de governamentalidade as tecnologias de dominação,
posteriormente, a governamentalidade é concebida como o ponto de encontro entre
técnicas de dominação sobre os outros e técnicas de si. Segundo Fimyar (2009):
a governamentalidade pode ser descrita como o esforço de criar
sujeitos governáveis através de várias técnicas desenvolvidas de
controle, normalização e moldagem das condutas das pessoas.
Portanto, a governamentalidade como conceito identifica a relação
entre o governamento do Estado (política) e o governamento do eu
(moralidade), a construção do sujeito (genealogia do sujeito) com a
formação do Estado (genealogia do Estado) (FIMYAR, 2009).
Com o deslocamento do Estado de uma posição de proeminência, assinala-se a
entrada na questão dos micropoderes instituídos em uma rede infinita nas relações sociais.
Foucault entende que as relações de poder constituem um campo de ações de múltiplas
possibilidades: desde agir sobre uma população, agir sobre as ações de outrem (governo
dos outros) até agir sobre a própria conduta (governo de si mesmo). (CANDIOTTO, 2010,
p.37).
A existência da governamentalidade em Foucault (2008a; 2008b) está atrelada às
formas de “contracondutas” que lhes corresponde. Segundo essa perspectiva, as
contracondutas constituem o sintoma de uma “crise de governamentalidade” (2008a, p.93).
Em um de seus manuscritos sobre governamentalidade, afirma Foucault (2008b, p.535): “a
política não é nada mais nada menos do que o que nasce com a resistência à
governamentalidade, a primeira sublevação, o primeiro enfrentamento.”37
Aderindo ao ponto de vista foucaultiano no que tange à indissociabilidade entre
macro e micro poderes, na atual pesquisa, considera-se o âmbito educacional e, em
especial, o da educação lingüística, como terreno complexo de embates entre práticas
políticas conflitantes. Estas envolvem múltiplos agentes, cujas ações podem contribuir para
a preservação de subjetividades modeladas pelo sistema dominante ou para fazer emergir
“novas sensibilidades”, formas singulares de ver o mundo (GUATTARI, ROLNIK,1986).
Para Foucault,
A educação pode muito bem ser, de direito, o instrumento graças
ao qual todo o indivíduo, numa sociedade como a nossa, pode ter
acesso a qualquer tipo de discurso; sabemos no entanto que, na sua
distribuição, naquilo que permite e naquilo que impede, ela segue
as linhas que são marcadas pelas distâncias, pelas oposições e pelas
lutas sociais. Todo o sistema de educação é uma maneira política
de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os
saberes e os poderes que estes trazem consigo (FOUCAULT,
2004b, p. 43-44).
À luz da perspectiva de Foucault, a escola moderna se constitui, juntamente com
outras instituições (lugares de produção, hospitais, manicômios, prisões), como um lugar
chave das práticas disciplinares, que cria em seu bojo saberes que legitimam diversas
práticas de sujeição. Segundo ele, não há relação de poder que não seja acompanhada da
criação de saber e vice-versa.
A noção foucaultiana de escola como “fábrica da ordem” na sociedade disciplinar é
atualizada por Bauman (2010), que discorre sobre o fato de que a educação escolarizada na
modernidade foi posta a serviço do império da ordem. Pautado numa das principais teses
associadas ao seu nome, a passagem da “modernidade sólida” à “modernidade líquida”, o
37
Este fragmento é recuperado por Senellarte, em nota do editor de Segurança, Território, População
(FOUCAULT, 2008b).
autor analisa os mecanismos empregados pelo Estado-nação para a instituição do império
da ordem na primeira etapa da vida moderna.
Em sua reflexão, Bauman (2010) recupera as origens do projeto de escolarização,
evidenciando o legado do Iluminismo nesse processo. Considera, em primeiro lugar, a
reconfiguração do Estado na Era Moderna, a quem passa a ser atribuído o papel – antes
desempenhado pela Igreja- de formar os indivíduos e garantir a conduta correta. Em
segundo lugar, contempla-se a criação de um novo mecanismo de ação disciplinar voltado
para a regulamentação e regularização da vida social.
A partir do diálogo com a obra de Backzo (apud BAUMAN, 2010), voltada
especialmente para a análise dos projetos educacionais da Revolução Francesa, Bauman
corrobora a tese de que um dos grandes legados do Iluminismo na concepção do papel da
escola foi a convicção de que a ela caberia moldar a conduta humana correta, cuja possível
falha resultaria de um equívoco do próprio sistema educacional. Nesse contexto, no qual os
participantes do debate sobre a educação pública consideravam a educação como metáfora
da sociedade, as escolas deveriam ser, portanto, espécies de miniaturas da sociedade
almejada.
A leitura dos documentos sobre debates educacionais na Revolução burguesa
mostra que o tema mais frequente era o da definição de regras para o comportamento dos
alunos. Ensinar a obedecer era um dos pilares do projeto de escolarização, consolidado
pela atuação dos professores, vistos pelo autor como os “legisladores” da vida correta e
cujos interesses disciplinares convergiam com os do Estado.
o propósito da educação é ensinar a obedecer. Instinto e presteza
para conformar-se, seguir o comando, fazer o que o interesse
público, tal como definido pelos superiores, exige que seja feito,
essas eram as habilidades de que mais necessitavam os cidadãos de
uma sociedade planejada, inteira e completamente racionalizada.
Não era o saber transmitido aos educandos, mas a atmosfera do
adestramento, rotina e previsibilidade total sob a qual a transmissão
do saber seria conduzida, eis a condição que importava
(BAUMAN, 2010, p.107).
A ideia da existência de um Estado sem educação passa então a ser algo
inconcebível, haja vista a preocupação de que os indivíduos orientassem seu
comportamento segundo o interesse público, isto é, o interesse do Estado soberano. Para
tanto, modificar o comportamento humano pela intervenção de um profissional
especializado era indispensável.
Não se deve confundir, no entanto, a educação - entendida como instrução ou
adestramento - com o esclarecimento dirigido apenas ao pequeno número de homens
sensíveis (DIDEROT apud BAUMAN, 2010, p.115). O esclarecimento era concebido
como algo inacessível ao povo, considerado como incapaz de ter pensamento
independente. Afirma Bauman: “esclarecimento era algo de que os governantes
necessitavam; seus súditos careciam de instrução orientada para a disciplina” (BAUMAN,
2010, p.115).
A reconfiguração da razão de Estado moderno na contemporaneidade afetou
diretamente, segundo Bauman (2010), o lugar do discurso intelectual tradicional. Nas
palavras do autor:
Por conseguinte, é o mecanismo do mercado que agora toma a si o
papel de juiz, de formulador de opinião, de verificador de valores.
Os intelectuais foram expropriados outra vez. Foram desalojados
até na área que por vários séculos parecia constituir seu domínio
monopolista de autoridade- a área da cultura em geral, da “alta
cultura”em particular (BAUMAN, 2010, p.173)
No intuito de trazer a tese de Bauman (2010) sobre a formação histórica da
categoria de intelectual para o campo educacional brasileiro, consideram-se as mudanças
sociais oriundas do advento da modernidade líquida como fatores de desestabilização de
uma concepção moderna-sólida de escola, isto é, a ideia de que a escola seria uma
instituição a serviço do Estado.
Em obra que trata especialmente das implicações pedagógicas da sociologia de
Bauman, Almeida, Gomes e Bracht (2009, p.70) consideram a crise do preceito instaurado
na escola moderna “educação para toda a vida” não resulta essencialmente da descoberta
de seu caráter inacabado, mas da mercadorização do ensino. Na modernidade líquida,
advertem os autores (ALMEIDA; GOMES; BRACHT, 2009, p.67) os bens educacionais
tendem a ser concebidos apenas como informação e, portanto, como elementos
descartáveis. Questionam-se;
Podem sobreviver a educação e a formação ao declínio da
durabilidade, da perpetuidade e da infinitude, primeiras vítimas
colaterais do mercado de consumo? Se tomarmos a clássica relação
da educação com o trabalho, sem dificuldade notaremos que a
“natureza” desse está em posição diametralmente oposta à
“natureza” da formação sólido-moderna, pois, no mundo de corte
empresarial e prático da sociedade de consumidores, tudo aquilo
que não pode demonstrar seu valor instrumental, quer dizer, que
vise à formação pessoal mais além da vantagem pessoal é
demasiadamente arriscado (ALMEIDA; GOMES; BRACHT, 2009,
p.66).
Os autores anteriormente citados consideram que, decorrente do divórcio entre o
Estado e a educação, surge a união (transitória) entre esta última com o mercado, que, por
sua vez, passa a ser nova fonte de autoridade definidora de validações na modernidade
liquefeita. Uma das principais consequências desse processo é a transformação do espaço
escolar - submetido à lógica do consumo e a códigos uniformes - no que Augé (1994)
classificou como em um “não lugar”.
A atualidade e a urgência do momento presente reinam neles.
Como os não-lugares se percorrem, eles se medem em unidades de
tempo. Os itinerários não funcionam sem horários, sem quadros de
chegada ou de partida, que sempre concedem um lugar à menção
dos atrasos eventuais (AUGÉ, 1994, p.95).
Diante da queda do intelectual legislador, caracterizada pelo abandono das
ambições universalistas e da função de gerar e promover valores que o Estado e os seus
súditos devem implementar e, igualmente, pelo fortalecimento do mecanismo do mercado
que toma para si o papel de juiz, Bauman (2010, p.173) aponta para a necessidade do
desenvolvimento de novo caminho para as práticas intelectuais: a arte da conversação
civilizada.
Este é, naturalmente, um tipo de reação ao conflito permanente de
valores para o qual os intelectuais, graças às suas habilidades
discursivas, estão mais bem preparados. Falar com as pessoas em
vez de brigar com elas; entendê-las em vez de repudiá-las ou
aniquilá-las como mutantes; incrementar sua própria tradição
bebendo com liberdade na experiência de outros grupos, em vez de
excluí-los do comércio de ideias. É isso que a tradição própria dos
intelectuais, constituída pelas discussões em curso, prepara as
pessoas para fazerem bem. A arte da conversação civilizada é algo
de que o mundo pluralista necessita com premência. Ele só pode
negligenciar essa arte às suas expensas. Conversar ou sucumbir
(BAUMAN, 2010, p.197).
Bauman (2010) menciona o colapso do matrimonio entre Estado e os intelectuais,
ressaltando que estes perdem o status de “legisladores” e assumem o papel de
“intérpretes”, cuja função principal já não é a de separar a verdade da inverdade por meio
de afirmações autorizadas e autoritárias, mas dialogar com distintas tradições culturais, isto
é, trazer à tona uma multiplicidade de valores. A tarefa do intérprete consistiria em manter
o equilíbrio entre duas tradições que interagem, indispensável para a mensagem não ser
distorcida ou mal compreendida.
Almeida, Bracht e Gomes (2009) mostram que a nova situação do discurso
intelectual analisada na obra do sociólogo traz consequências significativas para a escola e,
naturalmente, para o professor. A crise do postulado “educação para toda a vida” em uma
sociedade que tomou a liquidez como seu paradigma afeta, portanto, diretamente a
autoridade do professor, que sofre um processo de descentralização. Nesse contexto,
marcado pela força extraterritorial do capital, o valor episódico da notícia nos meios de
comunicação se sobrepõe aos preceitos da educação escolarizada tradicional.
Nessas circunstâncias, ao professor também é retirada a tarefa de legislar e lhe é
atribuída a função de interpretar e ensinar a interpretar o mundo. Afirmam os autores
sobre o desafio que se impõe ao trabalho docente na contemporaneidade:
O grande desafio desse exercício é que, sendo observador “de
fora”, o professor precisa acercar-se da posição dos “de dentro”, o
mais próximo possível daquilo que ela representa para os nativos,
sem perder contato com o universo e significado próprio (que
também é contigente, e desse modo, pode ser modificado). Nessas
circunstâncias, será considerado bom professor (bom intérprete)
aquele que traduz mais apropriadamente o texto com o qual se
depara, explicando, em alto e bom som, as regras que guiaram sua
leitura e que tornaram válida sua interpretação (ALMEIDA;
GOMES; BRACHT, 2009, p.66).
Segundo os autores, a crise imposta à forma escolar moderna cria brechas para o
surgimento de um aprendizado capaz de romper com as regularidades de um projeto
escolar marcadamente disciplinar, embora a educação e os educadores se deparem nestas
circunstâncias com o grande desafio: a não aderência acrítica às regras do discurso
mercadológico.
A partir das considerações anteriores, voltamo-nos para as especificidades do
ensino de línguas estrangeiras com o intuito de refletir sobre os lugares ocupados
historicamente por essa área do saber no âmbito educacional.
3.2 ENSINO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS COMO INSTRUMENTO
Após tratar da relação entre educação e política, esta reflexão volta-se
especificamente para o papel do ensino de línguas estrangeiras no contexto escolar,
procurando dar maior visibilidade à língua espanhola. Partindo da noção de que,
historicamente, se atribui ao ensino de línguas diferentes finalidades, as próximas seções
dedicam-se a descrição de cada uma delas. Para tanto, torna-se indispensável a
recuperação de determinadas formações discursivas, nas quais se instituem sentidos
diversos sobre o ensino de línguas estrangeiras, cuja compreensão é indissociável da
conjuntura educacional deste país.
3.2.1 Sentidos Belletristas no ensino de línguas
Estudiemos las lenguas de las naciones cultas, [...] traslademos a nuestra
patria los grandes monumentos de la razón humana.
(MARTÍN-GAMERO apud SÁNCHEZ, 2009)
A inclusão do ensino das línguas estrangeiras modernas na escola preservou a
herança da prática pedagógica tradicional concernente ao ensino das línguas clássicas, que
estava centrada em regras gramaticais abstratas e na tradução de sentenças. Essa tendência
constituiu verdadeira tradição na memória do ensino de línguas estrangeiras na escola, cuja
concretização prática pedagógica deu-se pelo predomínio do Método Tradicional, também
designado como Método Gramática e Tradução (LEFFA, 1988).
Além de instituir na memória do ensino de línguas estrangeiras uma visão de língua
abstrata e uma visão de ensino de línguas pautado na memorização de regras e de
vocabulário, uma das principais características do método tradicional consiste na
valorização de elementos culturais vinculados às nações estrangeiras, dando destaque as
suas manifestações literárias. Exemplifica esse tipo de posicionamento o pronunciamento
de Martín-Gamero na epígrafe anterior originalmente inscrita nos estatutos do Real
Instituto Asturiano, inaugurado em 1794 (SÁNCHEZ, 2009, p.36).
A valorização de um saber prestigiado associado à aprendizagem de uma língua,
uma tradição do ensino das línguas clássicas, se reproduz no ensino das línguas modernas,
que também passa a ser concebido como um meio de acesso à “boa cultura”. A busca pelos
saberes eruditos, isto é, pelo conhecimento das obras renomadas e dos monumentos da
humanidade, é um elemento fundamental na construção da memória do papel do ensino de
línguas estrangeiras na escola.
No âmbito da trajetória do ensino de línguas estrangeiras no Brasil, a relação com o
conhecimento da língua-cultura estrangeira ganha sentidos diferentes, tendo em vista que
não se trata aqui apenas do acesso a uma língua ou cultura de outra nação, mas consiste
numa possibilidade de aproximação à língua-cultura dos bons costumes e do
desenvolvimento oriundos do hemisfério norte.
No que tange, particularmente, ao ensino de línguas de origem européia, nota-se
frequentemente a associação do processo de aprendizagem a uma espécie de caminho de
fuga da barbárie para o pertencimento à civilização, projeto esse sustentado por nítidos
valores eurocêntricos preservados ao longo da história.
Em pesquisa sobre a história do ensino de língua francesa, Pietraróia (2008)
observa, no espaço de tempo que vai da implantação do francês na escola secundária, na
primeira metade do século XIX, até as vésperas da Reforma Capanema, em 1942, a grande
preocupação de trazer uma formação literária e humanística ao aluno brasileiro por meio
do ensino do idioma francês. O programa do Colégio Pedro II de 1850, apresentado pela
autora, indica que, além da sistematização gramatical, atribui-se grande importância à
leitura dos grandes autores franceses nesse contexto de ensino.
1º ano: Gramática (formação do plural dos substantivos e dos
adjetivos, formação do feminino dos adjetivos, adjetivos e
pronomes possessivos, verbos)
2º ano : Buffon, Morceaux Choisis
3º ano: Fénelon, Morceaux Choisis
4º ano: Massillon, Petit Garême
5º ano: Montesquieu: Selecta de Blair
6º ano: Racine, Athalia
7º ano: Bossuet, orações fúnebres
(Programa de Língua Francesa do Colégio Pedro II em 1850.
PIETRARÓIA, 2008, p.11)
O projeto de recrutamento da elite nacional e de formação dos dirigentes do país,
instituído na fundação do colégio Pedro II, explica os motivos que orientavam a definição
dos seus currículos programáticos (FÁVERO, 2002, p.66). Assim, essa instituição, voltada
para a formação integral do aluno, abrangia os saberes das chamadas humanidades
clássicas e das humanidades modernas. A partir de 1843, ano em que o primeiro grupo de
alunos terminou o curso de estudos do colégio, institui-se a colação do grau de Bacharel
em Letras.
Nesse contexto escolar, ao lado do estudo das Belas Letras ou letras clássicas -
exigência inclusive para o ingresso nos cursos de Direito e Medicina - julgava-se
necessário também conhecer as línguas modernas. Essas eram vistas como habilidades de
suma importância para o desenvolvimento das relações diplomáticas e comerciais do país e
também para o acesso à produção científica e cultural européia (CUNHA JUNIOR, 2008,
p.106). Reproduz-se, à continuação, depoimento de 1841, proferido pelo Barão de Planitz,
então professor do Colégio Pedro II, sobre a importância da formação do Homem de
Lettras:
Creio que he hum dos mais vigorosos estimulos para a mocidade a intima
perfeição e palpavel certeza, que tudo o que se ensina lhes he de
immediato proveito. Estudando-se o Latim, não há menino que não saiba
que este idioma eh indispensavel para o Jurisconsulto, o medico e o
sacerdote; ensinando-se o inglez, fornece qualquer caza de commercio,
qualquer reunião social, a prova que esta lingua eh de absoluta
necessidade nas actuaes relações commerciaes do paiz; á respeito do
francez, que tem se tornado huma necessidade, e cuja literatura he talvez
uma fatalidade para a mocidade Brasileira, evidente he á qualquer
menino, que sem fallar mais ou menos mal esta lingua, não pode aspirar a
ser considerado como homem bem educado, nem figurar em companhias
de bom tom [...] Mas duvido se o mesmo há de acontecer com o Allemão.
He a literatura e unicamente a litteratura allemã que compensa, que com
generosidade remunera os esfforços daquelles que conseguem aprender
este idioma (CUNHA JUNIOR, 2008, p.108)38
No depoimento citado são atribuídos diferentes sentidos às línguas latina, inglesa,
francesa e alemã. Cada uma delas teria uma “utilidade” específica, de modo que a
aprendizagem de todas resultaria imprescindível aos alunos. Institui-se no enunciado um
projeto político e educacional para a “mocidade Brasileira” do qual faz parte a aquisição,
além do conhecimento dos códigos linguísticos, dos saberes a respeito do mundo e, em
especial, dos países ao lado dos quais o governo gostaria de se posicionar.
As considerações anteriores indicam que o ensino de línguas estrangeiras ocupa um
lugar especial na construção da imagem do brasileiro de “boas maneiras”, cujas origens
remetem ao governo imperial (SCHWARCZ, 1998). O Homem de Lettras, portanto, faz
parte da fundação de um ideário e de um projeto de nação brasileira (bem educada), que
toma como parâmetro principal os países do hemisfério norte.
3.2.2 Ensino de espanhol como instrumento da “boa cultura”
Daher e Sant´anna (2009, p.16) reconhecem “uma trajetória de aproximadamente
oitenta anos em que cursos de Letras se dedicam a valorizar os saberes acadêmicos
desvinculados das situações vividas no cotidiano do trabalho docente”. A visão de ensino
de línguas belletrista preservada na formação docente se reconfigura em diferentes
textualidades orais e escritas, cuja recuperação pode se dar por meio da análise de
materiais didáticos, programas curriculares, provas, entrevistas, etc.
Seguindo a tradicional referência ao Colégio Pedro II em pesquisas interessadas na
historização do ensino de espanhol no Brasil (CELADA, 2002; DAHER, 2006 FREITAS,
2010, PARAQUETT, 2009; PICANÇO, 2003), uma possibilidade de identificar sentidos
fundadores que instituem visões sobre o ensino de espanhol está na análise de teses de
concurso submetidas por candidatos ao cargo de professor. Elencam-se, em seguida, os
títulos das teses apresentadas à instituição em 1919.
38 Extraído da obra de Cunha Junior (2008, p.108), o fragmento compõe o documento “Exposição dos
inconvenientes e defeitos encontrados pelos respectivos professores nos differentes ramos de ensino,
acompanhada das observações do Reitor” de 10/02/1841, localizado no Arquivo Nacional, na pasta sob o
código IE4-29.
Um capitulo de psycologia das letras hespanholas (A. Moares de los Rios
Filho);
Alguns elementos de grammatica hespanhola (Francisco Pereira Novaes da
Cunha);
Leis de formação da língua castelhana (David José Perez);
O verbo em espanhol (Antonio de Araujo Mello Carvalho) e
Um ensayo diferencial de fonética luso-castelhana (Antenor Nascentes).
A tendência filológica e gramatical predominante na área dos estudos de Letras
nesse contexto materializa-se nos títulos dos trabalhos citados. As referidas teses de 1919
ocupam lugar importante na história do ensino de espanhol, visto que se tratam de
documentos que fundam o processo de seleção de professor de espanhol neste Estado, e
provavelmente no país, para atuar no contexto escolar 39
. Essas textualidades são aqui
consideradas como espaços de constituição de memória, nos quais se estabelecem sentidos
acerca do que se esperava de um candidato a professor de língua espanhola em uma escola
renomada no âmbito nacional no início do século XX.
Segundo Daher (2006), em pesquisa sobre provas de seleção de professores, as
provas preservam uma memória e, ao mesmo tempo, prescrevem concepções de língua e
de ensino que perfilam discursivamente imagens de um professor “ideal”, ou pelo menos, o
“esperado” (DAHER, 2006, p.1).
Na segunda metade do século XX, mais precisamente em 1963, opondo-se
radicalmente à tendência filológica e gramatical das teses anteriores, Leônidas Sobrino
Porto submeteu, à banca avaliadora do Colégio Pedro II, a tese intitulada “El español en la
enseñanza secundaria brasileña”. Nessa tese, não se discute nenhum ponto gramatical ou
aspecto filológico, mas o papel da disciplina língua espanhola no ensino, abordando
questões relacionadas às políticas curriculares e à metodologia de ensino.
39
A título de informação, cabe mencionar que, em 2009, além das teses anteriormente citadas, identificamos
nos registros do acervo do Colégio Pedro II menção à existência de tese de concurso de 1885 para professor
substituto de espanhol de autoria de Alfredo Augusto Gomes. O exemplar da tese, contudo, ainda não foi
encontrado.
Em sua tese, Leônidas Sobrino Porto procura justificar a preservação da língua
espanhola no currículo escolar do Colégio Pedro II, cuja cátedra, segundo o candidato,
havia sido restaurada pelo novo Regulamento do Colégio Pedro II em 1961, motivado pela
aprovação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB). Em termos gerais, a tese de Leônidas
Sobrino Porto inscreve um perfil de professor de língua estrangeira cujos saberes
ultrapassam os campos linguístico e literário, dedicando-se, especialmente, à dimensão
política e pedagógica dessa disciplina. Concebe-se a inscrição da palavra “ensino” no título
do trabalho de Leônidas, ausente nas teses de 1919, como uma espécie de índice de
transformação das práticas acadêmicas na área de Letras que inicia um tímido processo de
incorporação de discussões sobre saberes político-educacionais.
Pese a importância de revisitar textos fundadores do ensino de espanhol na escola
pública brasileira, nesta pesquisa, privilegiou-se o arquivo constituído ao longo da
trajetória da APEERJ, que, do ponto de vista histórico, abarca diferentes momentos
vivenciados pelo ensino de língua espanhola no Rio de Janeiro e no Brasil.
O surgimento da APEERJ no inicio da década de 1980 se dá em um contexto em
que já se instituíra a formação específica de professores de espanhol nas universidades,
embora não houvesse campo de atuação suficiente para esses profissionais. Ampliar o
número de vagas para professores de espanhol nas escolas para combater o desequilíbrio
entre a oferta e a demanda de professores de espanhol foi, portanto, a principal bandeira da
APEERJ desde a sua fundação.
Uma segunda frente de atuação da APEERJ, apresentada desde o seu primeiro
estatuto como um de seus fins principais, consiste na congregação desses profissionais para
o “intercambio cultural e pedagógico” (ANEXO 1). Condizente ao previsto no seu estatuto,
durante os seus mandatos, a associação promoveu diferentes tipos de eventos voltados para
o aperfeiçoamento da formação dos professores de espanhol no Estado do Rio de Janeiro.
O primeiro evento organizado pela associação foi o Seminário de Estudos
Hispânicos (SEH), em 1982, na Faculdade de Filosofia de Campos, cujo programa
apresenta-se em seguida:
Figura no 9: Programa do I Seminário de Estudos Hispânicos
Conforme o documento anterior, observa-se que os trabalhos apresentados nesse
evento são predominantemente pertencentes aos estudos literários, sem estabelecer, pelo
que se pode inferir pelos títulos, qualquer vínculo com o ensino propriamente.
A fim de explicitar o desequilíbrio entre os estudos literários e os estudos de língua
que se configura nessa época, propõe-se a tabela a seguir, que, a partir dos seus títulos,
classifica os trabalhos apresentados no primeiro evento promovido pela APEERJ. Ainda
que se reconheça a possibilidade de um possível distanciamento entre os títulos e o
conteúdo efetivo de alguns trabalhos, parte-se do pressuposto de que aqueles criam efeitos
de sentidos imprescindíveis para a compreensão do que se então valorizava como objeto de
estudo e divulgação cientifica em um evento organizado por uma associação de professores
de espanhol.
Literatura Língua
1. Don Juan Manuel e sua época.
2. Don Juan Manuel: apresentação e seu
legado cultural.
3. Releitura de El Conde Lucanor de Don
Juan Manuel.
4. Don Juan Manuel e Jorge Luis Borges:
atualidade de um clássico medieval.
5. O estudo literário da América: um
exemplo crítico atual.
6. O refazer-se da frase feita em Calderon de
La Barca.
7. A megera domada duas vezes.
8. O caminho de Dom Quixote em
audiovisual.
9. Tradição e simbologia cultural no
Cancioneiro Popular da Península Ibérica.
1. Um estudo de interferência lexical:
bilingüismo Português- Espanhol.
Tabela no 3: Títulos de trabalhos apresentados no I Seminário de Estudos Hispânicos
Os quatro primeiros títulos correspondem ao tema do evento que homenageava o
sétimo centenário do nascimento do escritor Juan Manuel. Com exceção do trabalho “Um
estudo de interferência lexical: bilingüismo Português- Espanhol”, os demais estão
voltados para o campo literário e nenhum dos títulos citados faz correlação explícita ao
ensino de língua. A ausência de pesquisas diretamente voltadas para o ensino de línguas
indicam que os saberes privilegiados por esses profissionais centravam-se na literatura.
No ano seguinte, em 1983, atendendo a previsão de periodicidade anual desse
evento, promoveu-se o II Seminário de Estudos Hispânicos (II SEH). Dessa vez, o
seminário foi realizado nas três grandes universidades públicas do Estado do Rio de
Janeiro: Universidade Federal Fluminense, Universidade do Estado do Rio de Janeiro e
Universidade Federal do Rio Janeiro. A descentralização das atividades do evento,
ocupando o espaço de diferentes instituições, localizadas em regiões igualmente
diversificadas do Grande Rio, pode ser compreendida como indicativo de interesse de
expansão e ampliação da APEERJ. Essa preocupação é explicitada no relatório técnico-
científico do II SEH, tal como mostra o fragmento à continuação:
Para congregar o maior número possível de estudantes e professores da área de
estudos hispânicos, bem como de pessoas interessadas nesses estudos, ainda que
não-profissionais da área, a APEERJ decidiu desenvolver as atividades do II
SEMINÁRIO nas três Universidades públicas do Grande Rio: dia 17, na
Universidade Federal Fluminense, dia 18, na Universidade do Estado do Rio de
Janeiro; e dia 19, na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Registrou-se a
participação de oitenta e cinco pessoas[..].
Relatório técnico-científico do II Seminário de Estudo Hispânicos, p. 1, 1983
A fim de evidenciar uma vez mais a relação entre o quantitativo de trabalhos
voltados para a literatura, língua e ensino, segue a tabela com a classificação dos títulos
dos trabalhos apresentados na ocasião:
Literatura Língua Ensino
1. Ortega y Gasset: ideias e
crenças (conferência de
abertura).
2. Juan Alarcón: escritor
Hispano-americano.
(conferência).
3. A literatura infantil de
Horacio Quiroga
(comunicação).
4. Os heróis em Doña Bárbara.
(comunicação).
5. A linguagem de Asturias em
suas “Cortinas Negras”
(comunicação).
6. Sobre o teatro de Buero
Vallejo (conferência).
7. Uma leitura de “História de
uma escalera”, de Buero
Vallejo (comunicação)
1. Sobre a geografia
dialetal no Espanhol e
no Português
(comunicação)
2. Laísmo, loísmo, leísmo
na fala de Madri
(comunicação)
1. Aprendizagem acelerada
de ensino de línguas
estrangeiras
(comunicação)
2. A semelhança com a
língua materna; tropeços
na aprendizagem da
língua espanhola
(comunicação).
3. Uma experiência de
prática de ensino de
língua espanhola
(comunicação).
4. Análise do ensino de
Espanhol como língua
estrangeira
(comunicação)
8. Ecos de poesia peninsular
num poeta argentino do
século XVII (comunicação)
9. Construção espetacular em
“El gaucho Martín Fierro”, de
José Hernández
(comunicação).
10. A influência de Juan Carlos
Onetti na obra de Mario
Benedetti (comunicação).
11. Puig e “El beso de La mujer
araña” (comunicação).
12. Uma experiência de teatro
hispano-americano no Brasil:
“El día que me quieras”, de
José Ignacio Cabrujas.
13. A mentira em “La verdad
sospechosa” (comunicação).
14. Quiroga; horror como
denúncia (comunicação).
15. Lendo uma cantiga de ninar
de Pablo Antonio Cuadra.
Tabela no4: Títulos de trabalhos apresentados no II Seminário de Estudos Hispânicos
O II SEH homenageou o primeiro centenário de nascimento de Ortega y Gasset e a
figura de Ruiz de Alarcón, atendendo à deliberação em assembléia de homenagear nos
eventos da APEERJ personalidades do campo literário a partir da criação de um temário
para esse fim.
Em 1983, no relatório técnico-científico do referido evento, afirma-se que as
homenagens rendidas nos Seminários, característica essencial desse evento, não
inviabilizariam a existência de um temário aberto à comunidade de todo trabalho realizado
em Hispanismo. A partir do levantamento dos títulos das conferências e comunicações que
compuseram o II SEH, observa-se a inserção de trabalhos voltados para o ensino de
espanhol. Contudo, a análise dos programas dos eventos da associação mostra que a
maioria dos trabalhos continuava vertendo sobre o campo dos estudos literários.
A realização de eventos em âmbito nacional dos professores de espanhol inaugura-
se em 1985, fruto da parceria da APEERJ com a Associação de Professores de Espanhol no
Estado de São Paulo (APEESP). Nesse ano, é promovido o I Congresso Brasileiro de
Professores de Espanhol. A seguir, apresenta-se a ficha de inscrição do evento com o
temário para comunicações especificado na ocasião:
Figura no 10: Ficha de inscrição do I CONBRAPE
O programa do evento (ANEXO 27), em consonância com o temário das
comunicações exposto na ficha de inscrição que sequer menciona o termo “ensino”, mostra
uma vez mais o predomínio dos trabalhos em literatura. Contudo, chama a atenção a
proposição da seguinte mesa-redonda no primeiro dia do evento: “O ensino de espanhol na
escola de 1o e 2
o graus: conteúdos programáticos”. O título sinaliza a emergência da
necessidade de se falar sobre a escola em um evento nacional promovidos pelos
professores de espanhol. Deve-se atentar que, nos anos antecedentes, novas situações de
enunciabilidade viabilizaram um lugar para a instituição desse debate. Sendo assim, em um
cenário em que as produções acadêmicas eram majoritariamente voltadas para os estudos
literários e filológicos, a temática do ensino de espanhol vai conquistando maior espaço a
passos lentos.
Por fim, no que tange ainda do referido congresso, deve-se ressaltar que, para a
solenidade de abertura do evento, foi convidado o professor Antonio Quilis, da
Universidad Complutense de Madrid, cuja conferência intitulava-se “Diferenciación entre
la entonación portuguesa (de Brasil) y la española”. Esse título nos dá pistas sobre a
priorização que então se dava aos aspectos puramente lingüísticos em detrimento das
questões de ensino propriamente e igualmente às contribuições dos pesquisadores
espanhóis na formação dos professores neste país
Uma segunda pista a respeito da valorização dos aspectos lingüísticos pode ser
identificada no programa de curso preparatório para candidatos ao magistério público
estadual promovido pela APEERJ em pareceria com a Embajada de España na década de
1980.
Figura no 11: Conteúdo programático de curso preparatório para concurso de professor
de espanhol promovido pela APEERJ na década de 1980.
O conteúdo programático de um segundo curso de preparatório para professores
candidatos ao Magistério Estadual, realizado em 1988 na Casa de España, vai além das
questões linguísticas ou literárias. Nessa ocasião, privilegiam-se os métodos
tradicionalmente utilizados no ensino de idiomas, as habilidades e a relação entre teoria
linguística e o ensino de línguas, conforme explicita o material preparado para a
divulgação do evento a seguir.
Figura no
12: Material de divulgação de curso preparatório para concurso de ingresso
no Magistério Estadual
Os documentos apresentados nesta seção mostram que, ao passar dos anos,
questões pertinentes ao ensino de línguas, incluindo as referentes às escolhas
metodológicas, começaram a ocupar maior espaço nas práticas da APEERJ em
conformidade a um contexto mais amplo de transformações no âmbito educacional.
No que tange à esfera acadêmico científica, o desenvolvimento de pesquisas da área
de Letras, - especialmente com o fortalecimento da Linguística Aplicada (LA) - é um
elemento fundamental para compreender a ampliação do interesse pelos temas relativos ao
ensino de língua estrangeira. Segundo Moita Lopes (1996), dentre as pesquisas
desenvolvidas no campo da LA, a maior parte se volta para o ensino/aprendizagem de
Língua Estrangeira.
No que diz respeito especificamente às mudanças relativas ao ensino de espanhol
no Brasil, além do desenvolvimento acadêmico científico na área de ensino de línguas, não
se podem desconsiderar nessa trajetória fatores de ordem político econômica, que afetam
diretamente as políticas educacionais e, portanto, o ensino de línguas estrangeiras na
escola. Nas próximas seções, busca-se ampliar essa discussão.
3.2.3 Sentidos mercadológicos no ensino de línguas
Pese a preocupação em inculcar valores culturais do Velho Mundo por meio do
ensino de línguas, nunca se anulou o interesse pelo conhecimento prático das línguas ao
longo da história humana. Exemplos mostram que, ao longo da história humana, delineou-
se uma relação de coexistência entre abordagens de ensino de línguas mais práticas e
abordagens mais próximas da tradição belletrista, que são condizentes a diferentes visões
de língua e de ensino.
O desejo de aprender a se comunicar em uma língua estrangeira é detectado desde
a Antiguidade e foi amplamente documentado. Dentre esses registros, destacam-se os
vocabulários, que costumavam ter um catálogo de palavras ordenadas por áreas temáticas
(capitula) e um conjunto de diálogos curtos referentes à vida cotidiana. No que tange
especificamente ao ensino de espanhol, durante o Renascimento, foi publicado o primeiro
livro de diálogos que contemplava o ensino dessa língua: o “Vocabulario para aprender
frances, español y flamini” (SANCHEZ, 1992).
No século XVIII, surgiram na Europa questionamentos contra a abordagem
tradicional. Segundo Chagas (1957), a necessidade de estabelecer um contato mais direto
entre os indivíduos através da comunicação oral, aliada ao imediatismo característico da
época da máquina, refletiu-se intensamente na pedagogia dos idiomas modernos. As novas
propostas foram em seguida importadas por outros países entre o fim do século XIX e
início do XX. Fávero (2002, p.127) recupera o Decreto de 08 de abril de 1899 que defende
o objetivo prático do ensino de línguas vivas: “Ao estudo das línguas vivas, será dada
feição eminentemente prática” .
A defesa de um ensino mais prático também se configura, em 1931, com a Primeira
Reforma educacional de caráter nacional, realizada pelo Ministro da Educação e Saúde
Francisco Campos. Foi imposta, nesse período, uma nova metodologia de ensino de
línguas, destinada a “fazer falar” aos alunos: o Método Direto Intuitivo ou Abordagem
Direta, que consistia, entre outros atributos, em ensinar a língua estrangeira na própria
língua estrangeira. Segue fragmento das instruções para a execução do Decreto 20.833 de
21 de dezembro de 1931, que institui novos sentidos na trajetória do ensino de línguas
estrangeiras no sistema escolar brasileiro:
Figura no 13: Instruções para execução do Decreto 20.833 de 21 de
dezembro de 1931
Além da influência das tentativas de inovação concernentes ao ensino de línguas
empreendidas na Europa no século XIX e XX em oposição ao ensino tradicional, fatores
internos da conjuntura política do país explicam as razões da proposta governamental de
adoção do Método Direto nas escolas brasileiras.
Os anos 1930 são marcados pela implantação do Governo de Getúlio Vargas, após
a derrubada de Washington Luiz. Com a crise do modelo oligárquico agroexportador e a
expansão de um modelo nacional-desenvolvimentista com base na industrialização, exigia-
se aprimorar a educação. Dentre os princípios básicos do novo regime, estava uma política
de educação centralizadora, que passa a ter um papel fundamental na formação nacional e
na modernização do país (CAMPOS; MACHADO; SAUNDERS, 2007). É justamente
nesse contexto de implantação de políticas de modernização da Era Vargas, que se inserem
as propostas de um ensino de línguas de “caráter eminentemente prático”, materializadas
no decreto de 1931.
Fávero (2002, p.127) enfatiza que as novas orientações governamentais que
engendraram mudanças de cunho pedagógico e metodológico tiveram sua origem em
contextos políticos e sociais específicos:
Elas coincidiram com o desenvolvimento da indústria, do
comércio, das relações internacionais e dos meios de comunicação,
ou seja, com uma época em que o público e os objetivos do
aprendiz se diversificaram, acarretando um aumento da demanda
em relação às línguas estrangeiras.
A oficialização do uso do Método Direto pelo poder governamental, contudo, não
implicou no seu uso efetivo no sistema escolar em nível nacional, servindo como prova do
distanciamento entre as decisões ministeriais e o contexto escolar. Para explicar o fracasso
desse projeto, são elencadas diferentes razões relacionadas à falta de infraestrutura da
própria escola para esse tipo de prática pedagógica (como o número reduzido de horas e o
elevando quantitativo de alunos) e também à formação dos professores, historicamente
marcada pela valorização da metalínguam e dos cânones literários (CHAGAS, 1957;
LEFFA, 1999).
No Decreto no 20.833/31, resultante da Reforma de Francisco Campos, a explícita
negação das práticas pedagógicas tradicionais, dá maior visibilidade ao embate existente
entre o discurso utilitarista econômico e o discurso belletrista. Além de crítica ao
belletrismo, observa-se no enunciado a instituição de um projeto nacional de escola e de
uma visão de professor, cuja atribuição é estabelecida via decreto. A título de ilustração,
recupera-se, à continuação, fragmento das citadas instruções para o cumprimento do
decreto: “ [...] dotar os jovens brasileiros de três instrumentos práticos e eficientes,
destinados não somente a estender o campo da sua cultura literária e de seus
conhecimentos científicos, como também a colocá-los em situação de usar para fins
utilitários” (BRASIL, 1932).
Reitera-se que a fundação do que aqui se designa como discurso de ensino de
línguas utilitarista é muito anterior à instituição escolar. O desejo de se comunicar com
povos falantes de outras línguas acompanha a história da humanidade provavelmente desde
os seus primórdios, embora a ciência só tenha registro efetivo desse interesse por volta dos
anos 3.000 a.C entre acadianos e sumérios (GERMAIN, 1993; SÁNCHEZ, 2000)
conforme exemplificado no início desta seção.
Do ponto de vista histórico, são inegáveis as antigas relações existentes entre as
práticas comerciais e a necessidade de aprender línguas estrangeiras. E, portanto, o sentido
mercadológico de alguma maneira sempre esteve presente na memória do ensino e
aprendizagem das línguas40.
O discurso da erudição linguístico cultural que fundamenta a escola moderna,
também antecede a educação formal. À guisa de exemplo, recorre-se uma vez mais à
civilização romana. Expressa na humanitas romana, a valorização da educação e da cultura
do espírito nessa sociedade se estendia à formação do individuo virtuoso, como ser moral,
político e literário (ARANHA, 2006). Nesse contexto, fazia-se indispensável ao homem
culto a aprendizagem da língua grega e, sobretudo, o conhecimento dos bens culturais
helenísticos.
A história do ensino de línguas na escola em sua forma moderna se constitui,
portanto, originalmente, do embate entre diferentes formações discursivas, dentre as quais
ganharam relevo o discurso de ensino de línguas de caráter mais utilitário, específico e
prático e o discurso de ensino de línguas de caráter cultural, formativo e universal
(FÁVERO, 2002, p.126). O movimento entre os pólos utilitário e belletrista, contudo, não
foi regular ou excludente e esteve sempre vinculado indiretamente a um complexo
conjunto de fatores de natureza político-econômica e diretamente a políticas lingüístico-
educacionais condizentes a um dado contexto histórico.
Além de evidenciar a interferência sobre a instituição escola, a necessidade da
imposição governamental via decretos de um ensino mais prático em detrimento da
abordagem tradicional mostra certa resistência das escolas em aderir à renovação
pedagógica. Segundo Fávero (2002, p.128), a metodologia tradicional não desaparece no
início do século XX, “mesmo que nesse período tenham sido editados alguns métodos
40
Nietzsche (2007, p.173) adverte que a aprendizagem de língua estrangeira é um mal necessário em virtude
das necessidades comerciais cada vez mais impostas ao homem cosmopolita: [...] pero, dado que el trato
entre los hombres por fuerza deviene cada vez más cosmopolita y, por ejemplo, un comerciante londinense
como es debido tiene que hacerse entender ya hoy día, por escrito y oralmente, en ocho idiomas, el
aprendizaje es por cierto un mal necesario pero que cuando por último llegue al extremo obligará a la
humanidad a buscar remedio; y en futuro tan lejano como se quiera habrá para todos una lengua nueva,
primeiro como idioma comercial, luego como idioma de trato espiritual em general, tan cierto como que un
día habrá navegación aérea [...]
diretos, a maior parte da documentação referente ao ensino de línguas, publicada até início
do século no Brasil, pode ser considerada mista”41.
As medidas empreendidas pelo governo para dar “feição eminentemente prática” ao
ensino de línguas desde o final do século XIX não podem ser analisadas isoladamente das
mudanças vivenciadas pela escola em geral nesse período, pois a educação, no decorrer do
século XX, passou a se orientar cada vez mais pelas diretrizes impostas pelas relações de
mercado.
Com a solidificação do sistema capitalista, os valores utilitaristas econômicos
deram principal sustento ao sistema educacional brasileiro. Em artigo que trata do
confronto entre o utilitarismo e a responsabilidade social na trajetória de implementação
das políticas educacionais no Brasil, afirma Fonseca (2009, p. 21):
Na prática, a ação educativa deu ênfase a programas e projetos
orientados pela lógica do campo econômico, dirigindo a ação
escolar para as atividades instrumentais do fazer pedagógico e para
a administração de meios ou insumos. A qualidade, por sua vez, foi
sendo legitimada pelo horizonte restrito da competitividade, cuja
medida é a boa colocação no ranking das avaliações externas.
Como era de se esperar, o discurso mercadológico, ao interferir diretamente no
rumo da ação educativa nas últimas décadas, também afetou o âmbito do ensino de línguas,
ao qual (antes e depois da sua precoce inserção no contexto escolar brasileiro) já vinha
sendo historicamente atribuído papel utilitário nas negociações comerciais.
Freitas (2010) assinala a relação existente entre a consolidação do capitalismo e a
conversão da língua em bem material. A autora considera que a disseminação dos cursos
livres está vinculada a essa conjuntura econômica, embora o ensino de línguas tenha
origens mais remotas. Salve as especificidades da trajetória do ensino de línguas nos
cursos e no contexto escolar, seguindo a perspectiva de Freitas (2010), podemos considerar
a importância que desempenha a expansão dos cursos livres na memória do ensino de
línguas estrangeiras.
41
Leffa (1999) considera que o Método Gramática e Tradução efetivamente nunca esteve totalmente fora da
prática escolar. É importante levar em consideração que, embora muitos materiais ou programas curriculares
apresentem uma proposta de ensino prático, passadas as lições introdutórias, as atividades didáticas se
pautam em visões de ensino tradicionais.
Se por um lado a escola na prática se mostrou resistente ao efetivo cumprimento de
determinadas propostas metodológicas seguidas rigidamente nos referidos cursos, pode-se
dizer que ela foi diretamente afetada por uma visão de ensino de língua como produto que
não se propaga exclusivamente nesses centros, mas em todo o sistema educacional de base
capitalista. Nas palavras do professor do Colégio Pedro II em meados do século XIX,
“ensinando-se o inglez, fornece qualquer caza de commercio, qualquer reunião social, a
prova que esta lingua eh de absoluta necessidade nas actuaes relações commerciaes do
paiz” (CUNHA JUNIOR, 2008, p.108). Em outros termos, a escola, por vezes, não aderiu
a determinadas metodologias, mas incorporou discursos, visões de língua, visões de ensino
que, em geral, desqualificam o próprio trabalho realizado nesse espaço educacional em
detrimento ao ensino de línguas promovido nos cursos livres.
Na próxima seção, busca-se refletir mais especificamente sobre a relação entre o
ensino de espanhol e os sentidos mercadológicos que atravessam a rede de discursos sobre
o ensino/ aprendizagem de línguas estrangeiras.
3.2.4 Ensino de espanhol como instrumento do mercado
Un sistema que constituirá la mayor garantía de aprendizaje de nuestro
idioma para millones de estudiantes de todo el mundo, y que
incrementará el valor académico y profesional de los diplomas que
ofrecen cada uno de nuestros países e instituciones. Permitirá también
que las industrias culturales en español, como la del libro, la música, la
televisión o las tecnologías de la información y la comunicación,
recorran el camino abierto a la expansión internacional de nuestra
lengua. (Pronunciamento do Rei Juan Carlos, no IV Congreso
Internacional de la Lengua Española, em Cartagena de Indias, 2007)
Nos últimos anos, os meios de comunicação nacionais e internacionais vêm
abordando com frequência questões relacionadas ao ensino de Espanhol no Brasil. A
publicação de notícias jornalísticas sobre a obrigatoriedade da oferta do espanhol antes
mesmo que a Lei 11.161/2005 estivesse em vigor chamam a atenção de Freitas, Barreto e
Vargens (2009) 42. Segundo as autoras, esse acontecimento “representa uma inversão no
42
Na ocasião, a Lei 11.161/2005 havia sido aprovada pelo Parlamento, mas não havia sido assinada pelo
Presidente da República.
papel da mídia, que seria o de tornar públicos os acontecimentos relevantes da vida social”
(2009, p.159).
Além da sobreposição de claros de interesses empresariais, já identificado por
Novodvorski (2007, 2008) em análise de notícias jornalísticas, segundo Barreto, Freitas e
Vargens (2009) o discurso jornalístico manifesta um entusiasmo excessivo pautado na
suposição de elevada carência de professores de espanhol no Brasil e, consequente oferta
de mercado de trabalho nesse país. As autoras revelam, no entanto, que o referido
entusiasmo, no lugar de dispor de bases sólidas, lança mão de cifras errôneas acerca da real
demanda de professores no sistema escolar brasileiro.
Ainda observando o discurso midiático sobre a implantação do espanhol, Freitas,
Barreto e Vargens (2009) identificam que a presença do espanhol nas escolas brasileiras é
tratada como uma novidade, encobrindo a trajetória histórica do ensino de espanhol no
Brasil. Segundo as autoras, ignorar o passado implica no “apagamento de grande parte
dessa história e de seus atores sociais” (BARRETO, FREITAS, VARGENS, 2009, p. 166).
Afirmam ainda:
É como se toda a história, as experiências, os saberes envolvidos não
existissem ou, ainda, tivessem sido descartados, em benefício da ideia de
um Brasil como terreno fértil ainda a ser descoberto, um paraíso intocado,
pelo menos no que diz respeito ao ensino de espanhol. Desse contexto,
são esquecidos os principais envolvidos nas conseqüências dessa lei e no
trabalho desenvolvido até hoje no ensino de espanhol (BARRETO,
FREITAS, VARGENS, 2009, p.166).
A ideia de que o Brasil seria uma espécie de “paraíso do ensino de espanhol”
também se inscreve em relatório informativo sobre o espanhol no Brasil, elaborado por
Moreno Fernández (2000,p.18-19). Nesse documento, se encontra a seguinte afirmação:
La situación del español al inicio del siglo XXI en Brasil es de bonanza,
de auge y de prestigio. En este momento se vive un crecimiento
espectacular de la demanda de cursos de español, con todo lo que implica
el proceso de enseñanza-aprendizaje de un idioma extranjero: necesidad
de material impreso y sonoro, necesidad de profesorado y de
organización de cursos, por citar sólo algunas de las principales áreas
implicadas.
No discurso de natureza acadêmica, também se encontram argumentos que
justificam a importância do ensino-aprendizagem de espanhol. Sedycias (2005), por
exemplo, apresenta várias razões por que os brasileiros devem aprender espanhol.
Observa-se, contudo, que as razões econômicas sobressaem na argumentação de Sedycias
(2005), acentuando-se a ideia de que o espanhol viveria o seu boom e, ao mesmo tempo,
teria um futuro promissor no Brasil.
Segundo o referido autor o ensino/ aprendizagem de espanhol justifica-se: (1) por
ser tratar de uma língua mundial; (2) por ser língua oficial de muitos países; (3) por dispor
de importância internacional; (4) por ser muito popular como segunda língua; (5) pela
implantação do Mercosul; (6) por ser a língua oficial da maior parte dos países que fazem
fronteira com o Brasil; (7) por facilitar o turismo do brasileiro; (8) por estimular o
recebimento de turistas hispanófonos em nosso país; (9) pela importância do espanhol nos
EUA; (10) pelo fato de o português e o espanhol serem línguas irmãs e, finalmente, (11)
pela beleza e romance intrínsecos à língua espanhola (SEDYCIAS, 2005).
O ensino de espanhol no Brasil, marcado predominantemente pelo “quase
esvanecimento” (FREITAS, 2010), ganha novos contornos a partir do inicio do século
XXI, época caracterizada como momento de “bonança, auge e prestígio” do espanhol no
Brasil (MORENO FERNÁNDEZ, 2000, p.18). Daher e Sant‟anna (1998) consideram
vertiginoso o crescimento da demanda do ensino do espanhol, mostrando a superação de
um tradicional desprestígio social em relação ao espanhol e as suas manifestações
culturais.
Ainda que o movimento de expansão do ensino de espanhol no Brasil tenha se
fortalecido nos últimos anos, é importante sublinhar que a proposta de integração do Brasil
com os países da América do Sul é uma bandeira política do governo brasileiro pós-
ditadura (GONZÁLEZ, 2011, p. 135), inscrita inclusive no texto da Constituição Federal
Brasileira desde 1988 (BRASIL, 1988). Consta nos “Princípios fundamentais” da referida
lei:
Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração
econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina,
visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações
(BRASIL, 1988).
A criação do Mercosul, que se dá poucos anos depois da promulgação da
Constituição de 1988, é concebida por Del Valle e Villa (2005) como elemento
fundamental no processo da ampliação do interesse do governo e das empresas espanholas
pelo Brasil, estimulando o crescimento da demanda pela aprendizagem dessa língua por
parte dos brasileiros. Del Valle e Villa (2005) assinalam que a campanha linguística
brasileira coexiste a um amplo projeto de planificação do status internacional da língua
espanhola que, a partir da criação de uma conjuntura político-econômica brasileira
favorável, ganha fôlego novo nos anos 1990 neste país.
A essa mesma década, Berdugo (2000), atribui o surgimento da expressão “Español
como Recurso Económico”, cuja finalidade era agrupar diferentes atividades econômicas
que lançam mão do espanhol como “herramienta básica de trabajo” (BERDUGO, 2000,
p.37-38): “servicios linguísticos; enseñanza de español para extranjeros; productores
editoriales para la enseñanza del español; tecnologías de la lengua; sector editorial; sector
audiovisual y sector musical”. O autor, ex presidente da Asociación para el Progreso del
Español como Recurso Económico43, explicita o interesse pela construção de um novo
setor e a sua plena integração na economia espanhola. No esquema proposto por Berdugo
(2000, p.38), o ensino do espanhol estaria no núcleo central desse setor. À continuação,
expõe-se a reprodução do gráfico apresentado pelo autor:
43
A sucessora da Asociación para el Progreso del Español como Recurso Económico é a Eduespaña,
organização reconhecida como entidade colaboradora pela Secretaría de Estado de Comercio Exterior,
dependente do Ministerio de Comercio y Turismo do Governo da Espanha.
Figura n0 14: Gráfico de Oscar Berdugo sobre o Español como Recurso Económico
(ERC), 2000, p. 38
O trabalho de Del Valle (2007) também faz referência à década de 1990 como
momento consolidador da indústria da língua espanhola. Essa transformação é relacionada
pelo autor com as mudanças contextuais que marcam o perfil da Espanha no final dos anos
1980: a consolidação da democracia, a incorporação à OTAN e à UE, o crescimento
econômico, a extensão de corporações com o capital espanhol na América Latina e o
desenvolvimento da Comunidad Iberoamericana de Naciones (DEL VALLE, 2007, p.39).
Com o apoio do Estado espanhol, mas protagonizada pelo capital transnacional, a
política linguística de base mercantil ganhou novo fôlego no território brasileiro a partir da
sanção da lei 11.161, embora se atribua ao Mercosul o primeiro movimento de crescimento
da demanda do ensino de espanhol no Brasil (FANJUL, 2011, p. 325). Denominada como
pan-hispânica44, essa política exigiu a atuação de instituições encarregadas pela promoção
da língua espanhola, contando igualmente com o apoio de instâncias do Estado brasileiro
(FANJUL, 2011, p.326).
Del Valle e Villa (2005) consideram o Instituto Cervantes (IC), inaugurado em
1991 pelo governo espanhol e originalmente dependente do Ministerio de Asuntos
Exteriores, como agencia linguística de atuação fundamental na política de promoção da
língua espanhola. Segundo os autores, trata-se, assim como a Real Academia Española, de
um dos principais responsáveis pela transformação da imagem pública dessa língua, que
passa a se constituir de quatro aspectos: a) o espanhol como língua do encontro,
viabilizadora da democracia; b) o espanhol como língua com peso e em expansão; c)
espanhol como língua do mundo hispânico e, portanto, representante dos ideais
internacionalistas e oposta ao etnicismo e nacionalismo; d) espanhol como língua útil e
rentável, cujo conhecimento pode constituir valioso recurso econômico ( DELVALLE
apud DEL VALLE; VILLA, 2005, p. 200).
As considerações de Del Valle e Villa (2005) enfatizam a pré-existência de um
amplo projeto de planificação linguística, articulado a uma pré-disposição de ingresso do
capital ibérico no Brasil. Os autores mostram que, quando governo brasileiro passa a situar
44
Fanjul (2011) adverte que o pan-hispanismo apresenta diferentes versões desde o final do século XIX.
Segundo o autor, a construção imaginária criada no final do século XIX “ atribui explicitamente à Espanha
um papel tutelar e sustenta a territorialidade da língua, bem como a sua condição de veículo de umacultura
comum, ambas dimensões ausentes no pan-hispanismo atual (FANJUL, 2011, p.322).
a América do Sul como frente prioritária de sua política externa, torna-se, do ponto de vista
da política espanhola, terreno fértil para possíveis investimentos lucrativos. Afirmam Del
Valle e Villa (2005, p. 204):
El interés de las agencias españolas de política linguística por este
país se inscribe en el contexto generado por el crecimiento
económico de España a partir de finales de los ochenta, la
liberalización de las economias americanas en los noventa y la
consecuente expansión de empresas españolas (especialmente de
los sectores energético, financiero, de telecomunicaciones y
editorial) por uma Latinoamérica que se abría a las inversiones
internacionales.
Os autores citados (2005, p.206) consideram um elemento central, para
compreender as motivações e estratégias das políticas de promoção do espanhol no Brasil,
a conexão entre ação política, interesses empresariais e projeção cultural. Defendem o
ponto de vista de que o fortalecimento e da consolidação de laços culturais entre o Brasil e
a Espanha foram estimulados com a finalidade de estreitar as relações empresariais entre
esses países. É, segundo os autores, diante dessa convicção que são postas em prática tanto
políticas linguísticas que estimulam ainda mais o interesse que já existe no Brasil por essa
língua, como ações diplomáticas visando à concretização de iniciativas legislativas que
favorecem a implantação do espanhol no sistema educacional (VALLE; VILLA, 2005,
p.217).
Pese a importante contribuição do trabalho de Del Valle e Villa (2005, 2007), para
a compreensão das operações do Español S. A45,
deve-se atentar para o fato de que em sua
análise, não põe em evidencia a história do ensino de espanhol do Brasil. Esta não é tratada
como elemento relevante na definição do atual panorama dessa língua no cenário
educacional brasileiro. Ainda que o olhar crítico dos autores se oponham à ideologia
mercantil que sustenta as políticas de agências espanholas com a colaboração de setores
empresariais e inclusive de instâncias do governo brasileiro, na análise de Del Valle
(2007), sequer é pontuada a trajetória dos professores de espanhol no Brasil e o seu lugar
desses sujeitos como efetivos agentes nas políticas de línguas. De algum a forma, silencia-
45 Expressão usada por Del Valle (2007) para referir à concepção mercantil do ensino de espanhol.
se o trabalho do professor de espanhol tanto no que tange a sua atuação na escola, no
âmbito acadêmico e no âmbito político em sentido estrito.
No subcapítulo que segue, buscamos identificar novos sentidos que se instituem na
memória do ensino de línguas e que conferem papel educativo ao ensino espanhol
3.3 ENSINO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS COMO ESPAÇO DE
EDUCACIONALIDADE
O título atribuído ao presente subcapítulo rompe com a tradicional concepção de
língua estrangeira como instrumento, contemplada até então na presente reflexão. Abre-se
mão da noção de “ferramenta” ou “meio”, privilegiando-se uma visão educacional do
ensino de idiomas que se materializa nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Línguas
Estrangeiras do Ensino Fundamental, publicados pelo Ministério da Educação em 1998
(BRASIL/ SEF, 1998).
Considera-se aqui esse documento curricular, cuja produção contou com a
participação de um seleto grupo de professores universitários do país46
, como um marco no
ensino de línguas. Nele são enfatizados aspectos educacionais no ensino de línguas
estrangeiras na escola brasileira, em oposição aos objetivos comunicativos e
informacionais comuns em propostas anteriores (BOHN, 2000). Segue fragmento dos PCN-
LE que apresenta um dos objetivos dessa disciplina do ensino fundamental:
A aprendizagem de uma língua estrangeira deve garantir ao aluno
seu engajamento discursivo, ou seja, a capacidade de se envolver e
envolver outros no discurso. Isso pode ser viabilizado em sala de
aula por meio de atividades pedagógicas centradas na constituição
do aluno como ser discursivo, ou seja, sua construção como sujeito
do discurso via Língua Estrangeira. Essa construção passa pelo
envolvimento do aluno com os processos sociais de criar
46
Trabalharam na confecção dos PCN-LE profissionais do ensino universitário das áreas de inglês, francês e
espanhol de todo o país. A equipe de espanhol se constituiu de professores de universidades públicas do Rio
de Janeiro, Professora Consuelo Alfaro, Professora Vera Sant´anna e Professora Del Carmen Daher, que
também eram associadas à APEERJ. A título de informação, cabe mencionar que, antes da produção dos
PCN-LE, o MEC organizou reuniões com vários especialistas de diferentes países. Em etapa seguinte,
optou-se em seguir algo semelhante à proposta espanhola, apresentada pelo Prof. Cesar Palls, da Universidad
de Barcelona, visto que ela permitia articular organicidade, fundamentação teórica e temas transversais
(DAHER,1998).
significados por intermédio da utilização de uma língua estrangeira
(BRASIL, SEF, 1998, p.19)
Em estudo sobre as teorias do currículo, Silva (2007, p.150) defende o ponto de
vista segundo o qual o currículo não pode ser compreendido sem uma análise das relações
de poder nas quais ele está envolvido. Nas palavras do autor, “o currículo é um documento
de identidade”. Compreende-se, portanto, que a reorientação curricular proposta pelos
PCN-LE (BRASIL/ SEF, 1998) implica numa redefinição identitária dessa disciplina no
sistema escolar. Nesse documento se forja uma identidade para o ensino de língua
estrangeira na escola.
É de suma importância levar em consideração que a inovação instituída na
publicação dos PCN-LE (BRASIL/ SEF, 1998), cujas visões de língua estrangeira e de
ensino são legitimadas pela voz oficial no Ministério da Educação, vincula-se a uma rede
de discursividades que antecede o referido acontecimento. Em outras palavras, os PCN-LE
atualizam outros enunciados e sentidos acerca do ensino de língua estrangeira e da escola
construídos no decorrer da história do ensino de línguas no Brasil. Bonh (2000) considera
que o destaque dado aos valores educacionais nos PCN resulta do atravessamento da voz
dos educadores no processo decisório educacional.
Tomando como referência os sentidos que se inscrevem nos PCN-LE e em outras
textualidades, as próximas seções se voltam para a reflexão acerca da visão educacional do
ensino de línguas que se fortalece nos últimos anos, dando maior destaque ao caso
especifico da língua espanhola.
3.3.1 O conceito de libertação no ensino de línguas
O eixo do diálogo que se materializa nos PCN-LE (BRASIL/SEF, 1998) entre o
ensino de línguas estrangeiras e perspectiva libertadora de Paulo Freire (1975; 2001ª;
2001b) é a indissociabilidade entre política e educação. É a partir do reconhecimento da
politicidade como inerente ao ensino de idiomas que se rompe com uma visão de ensino
neutro, meramente fornecedor de uma mercadoria, de “objetos que nos tornam
consumíveis num mercado de trabalho seletivo e exigente” (CORACINI, 2007, p.10).
Freire, referência mundial na educação libertária e libertadora, propõe a constante
politização do processo educativo, considerando que o papel do educador contém
implicações essencialmente políticas. Estar a serviço da alienação e da domesticação ou da
conscientização e da libertação é, segundo ele, o dilema central da educação. Afirma
Freire,
Me parece fundamental, neste exercício, deixar claro, desde o
início, que não pode existir uma prática educativa neutra,
descomprometida, apolítica. A diretividade da prática educativa
que a faz transbordar sempre de si mesma e perseguir um certo fim,
um sonho, uma utopia, não permite sua neutralidade. A
impossibilidade de ser neutra não tem nada que ver com a arbitrária
imposição que faz o educador autoritário a “seus” educandos de
suas opções (FREIRE, 2001, p.21).
Sob o olhar freireano, os problemas principais da educação não se limitam ao
âmbito pedagógico, mas são questões de cunho político. Na definição de uma pedagogia
para a construção do homem-sujeito, Freire (1983) distingue a educação bancária da
problematizadora. Na primeira, educar é sinônimo de doar saberes aos educandos, num
movimento unidirecional, similar ao depósito bancário. Na segunda concepção de
educação, trata-se de um processo dialógico, no qual educador e educando aprendem
reciprocamente na produção de conhecimentos. Mais do que transmitir conhecimentos,
concebe-se o ato de ensinar como a criaçao nos educandos da possibilidade de construçao
do conhecimento de forma criativa e transformadora.
Somente as práticas educativas dominantemente críticas são capazes, segundo o
autor, de proporciar, aos discentes, meios de superar uma “consciência ingênua” ou no seu
estado natural. Para tanto, a criticidade é um dos saberes exigidos ao professor para o
exercício da sua prática . Afirma Freire:
Educação que mata o poder criador não só do educando, mas
também do educador na medida em que este se transforma em
alguém que impõe ou, na melhor das hipóteses, num doador de
„fórmulas‟ e „comunicados‟, recebidos passiva-mente por seus
alunos (FREIRE, 1983, p. 69).
Sob esse ponto de vista, a liberdade viabilizada pela educação crítica não é,
portanto, uma conquista exclusiva do aluno, mas inclui também a luta do professor, que
igualmente se liberta dos valores opressores durante o processo educativo. A pedagogia
dos oprimidos exige dos educadores um constante exercício de reflexão crítica sobre a sua
prática e, ao mesmo tempo, o reconhecimento do oprimido como produtor de cultura.
Pese a importancia da pedagogia crítica na história da educação ao defender a
construção de uma escola transformadora e contrária aos processos de dominação de
classe, a teorização pós-crítica, ao estender a nossa compreensão dos processos de
dominação, passou a ver com desconfiança a noção de emancipação dos indivíduos
através da priorização de um determinado conhecimento curricular (SILVA, 2002). Para
Silva (2007, p.149), subjaz à ideia de libertação a existência de “um núcleo subjetivo pré-
social que teria sido contaminado pelas relações de poder do capitalismo e que seria
libertado pelos procedimentos da pedagogia crítica” (SILVA, 2007, p.149).
Aderindo às teorias pós-críticas, Silva (2007) rejeita a ideia da existência de um eu
livre e autônomo, assim como a de uma consciência coerente, centrada com conotações
racionalistas e cartesianas. Segundo ele, os processos de dominação também são
descentrados e não há conhecimento fora das relações de poder. Contudo, o autor não
desconsidera o legado das teorias críticas. Afirma o autor:
Não se pode dizer que os processos de dominação de classe,
baseados na exploração econômica, tenham simplesmente
desaparecido. Na verdade, eles continuam mais evidentes e
dolorosos do que nunca [...] as teorias pós-críticas podem nos ter
ensinado que o poder está em toda a parte e que é multiforme. As
teorias críticas não nos deixam esquecer, entretanto, que algumas
formas de poder são visivelmente mais perigosas e ameaçadoras do
que outras (SILVA, 2002, p.147)
No que tange especificamente ao ensino de línguas, pode-se dizer que a sua
instituição como espaço de libertação nos PCN-LE vincula-se, a um só tempo, a uma visão
de educação e a uma visão de língua. Segundo os PCN-LE (BRASIl/SEF, 1998, p.39),
“Pode-se considerar o desenvolvimento de uma consciência crítica sobre a linguagem
como parte dessa visão lingüística como libertação”. Concebe-se, nessa abordagem, a
língua como fenômeno de interação social entre interlocutores historicamente situados, em
oposição à noção de língua como código neutro a ser apropriado a despeito de seu contexto
de uso. A língua é concebida como uma prática social.
Em decorrência dessa abordagem, cujas raízes estão situadas no enfoque
sociointeracionista (MOITA LOPES, 1996), enfatiza-se, nos PCN-LE (BRASIL/ SEF,
1998) que o ato de ensinar uma língua estrangeira vai muito além da apresentação de
conhecimentos sistêmicos que dizem respeito ao seu funcionamento interno. A esses
saberes – não menos importantes - precisam ser acrescidos conhecimentos sobre a
organização textual e conhecimentos de mundo. Concebe-se a articulação de saberes como
meio de garantia, ao aluno, não apenas da aquisição de um “instrumento de comunicação”,
mas do seu engajamento discursivo, ou seja, a capacidade de se envolver e envolver outros
no discurso e, consequentemente, criar significados por intermédio da utilização de uma
língua estrangeira.
Reitera-se que ocupa papel central nesse cenário o desenvolvimento da Linguística
Aplicada (LA), cujas pesquisas majoritariamente se voltaram para a educação em línguas
estrangeiras (MOITA LOPES, 1996). Como resultado de um amplo processo de
construção, iniciado na década de 1970, de diferentes pesquisas na área de educação em
LA e do aumento do nível teórico desse campo, institui-se, nos anos 1990, rupturas
importantes no âmbito da política de línguas deste país (PENNYCOOK, 1998).
Nesse contexto, rompe-se a tradição dos métodos de ensino de línguas e da
definição de determinados procedimentos metodológicos a serem seguidos pelos
professores. Nos PCN-LE (BRASIL/SEF, 1998), o esquema da “receita de bolo” é então
substituído por orientações gerais sobre os principais objetivos do ensino de línguas no
espaço escolar e sobre a multiplicidade de saberes – linguísticos e extralinguísticos - a
serem mobilizados por professores e alunos no processo de ensino/ aprendizagem.
No que tange à concepção sobre o papel da educação escolar, o ensino de línguas
estrangeiras como força libertadora se pauta numa visão de espaço da prática educativa
capaz de transformar os sujeitos envolvidos nesse processo. Com foco no ensino de
português, Geraldi (2006) tem presente que qualquer metodologia de ensino articula uma
opção política com os mecanismos utilizados em sala de aula.
O autor propõe que, antes das discussões sobre o que ensinar, quando ensinar, como
ensinar, reflita-se a respeito do “para que ensinamos o que ensinamos” ou do “para que as
crianças aprendem o que aprendem” (GERALDI, 2006, p.40). Assim, aos tradicionais
questionamentos sobre “o que ensinar em LE?” e “como ensinar LE?”, sobrepõe-se a
reformulação: “para que ensinar/aprender línguas estrangeiras na escola?”.
3.3. 2 Educacionalidade no ensino de espanhol
A sanção da Lei 11.161/2005 (BRASIL, 2005), que prevê a oferta obrigatória do
ensino de espanhol para o Ensino Médio, é concebida neste trabalho como um
acontecimento discursivo que propiciou uma ampla rede de enunciados sobre a temática do
ensino de espanhol nos últimos anos. Recebida com e exagerado triunfalismo pela mídia
nacional e internacional (BARRETO; FREITAS, VARGENS; 2009; GONZÁLEZ, 2008;
2011) e problematizada no campo universitário (DAHER, 2011; FREITAS, 2010;
RODRIGUES, 2010; FANJUL, 2011; GÓNZALEZ, 2008, LEMOS, 2008), a referida lei
desatou efeitos que merecem destaque neste capítulo.
O primeiro deles diz respeito à publicação das Orientações Curriculares para o
Ensino Médio (BRASIL/SEB, 2006) um ano após a sanção da lei 11.161/2005. Nesse
documento, dentre as línguas estrangeiras modernas, exclusivamente para o espanhol, foi
redigido um texto específico, distinguindo-o, portanto, das demais línguas, cujas
especificações curriculares se agrupam em um único documento a parte.
Como desdobramento da redação das OCEM de Língua Espanhola (BRASIL/SEB,
2006), dois acontecimentos podem ser apontados: (a) em sintonia com a 11.161, se atribui
ao espanhol lugar diferenciado no currículo do Ensino Médio; (b) apesar de algumas
singularidades, o documento reafirma a visão formativa e educativa do ensino de língua
estrangeira, já presente nos PCN-LE alguns anos antes, que dialoga com uma trajetória de
pesquisas na área de ensino de língua estrangeira com forte contribuição do campo da
Linguística Aplicada.
Um segundo efeito propiciado pela lei do espanhol a partir de 2006 diz respeito ao
enrijecimento da política pan-hispânica no Brasil. Segundo Fanjul (2011, p.326), o
proceder invasivo de órgãos encarregados pela difusão da língua provocou enfrentamentos
constantes com o campo universitário e o professorado brasileiro contrários à ingerência
dessas instituições (GONZÁLEZ apud FANJUL, 2011), cujo discurso promove a ideia de
uma suposta limitação tanto do sistema educacional brasileiro como das competências dos
profissionais do país.
Observa-se que, em decorrência da lei 11.161, resultou o embate entre diferentes
discursos, sustentados por ideologias e visões de ensino de línguas igualmente diversos.
De um lado, se configura uma perspectiva educativa e formativa do ensino de idiomas,
materializada nos PCN-LE (BRASIL/ SEF, 1998) e nas OCEM (BRASIL/SEB, 2006). De
outro lado, os agentes da política pan-hispânica lutam por maior espaço de atuação a partir
de tentativas de acordos (com a possibilidade terceirização do ensino de línguas nas
escolas) com o Estado brasileiro.
Esse cenário de enfrentamento político e ideológico conjuga, portanto, a
manifestação de diferentes sujeitos e posicionamentos acerca do ensino de espanhol,
propiciando espaços de confronto, que se atualizam também nas discursividades da
APEERJ. Foram justamente formas de contracondutas, na acepção foucaultiana (2008a),
provocadas pela força invasiva da política pan-hispânica, que fizeram emergir no âmbito
da APEERJ, assim como em outras esferas, novas práticas e sentidos sobre a
implementação do ensino de espanhol, então instituídos como reação à
governamentalidade espanhola.
O uso da expressão “governamentalidade espanhola” neste trabalho exige
esclarecimentos, levando em consideração a aparente contradição instituída pela
combinação entre o termo governamentalidade de inspiração foucautiana (2008a; 2008b) e
a referência ao Estado espanhol. Como abordado anteriormente, em Foucault, a noção de
política ultrapassa a mitificação do Estado e a dicotomia Estado/sociedade. Utiliza-se aqui
o neologismo governamentalidade associado à Espanha, com o propósito de sublinhar as
mentalidades que legitimam as práticas constitutivas de um regime de poder
essencialmente marcado por traços de colonialidade e eurocentrismo47
que, certamente,
não se limita ao poder desse Estado nacional48
, embora tenha sido historicamente
defendido por ele.
A partir da sanção da lei 11.161, as principais contracondutas, em oposição ao que
se designa aqui como governamentalidade espanhola, se concentraram no combate às
tentativas do Instituto Cervantes de ocupar espaços educativos incabíveis a um órgão
estrangeiro, como a formação de professores. Nas práticas da APEERJ, assim como nas
práticas de outras entidades no país, os enfrentamentos e as estratégias de resistência contra
essa política foram recorrentes.
Essa temática tem sido alvo de discussão entre os professores de espanhol nos
últimos anos, tal como indica as considerações de conferência ministrada por González
(2008) no V Congresso Brasileiro de Hispanistas, apenas um ano após a sanção da lei do
espanhol.
47
Segundo Quijano (2002), colonialidade e eurocentrismo são classificados como dois dos principais
elementos que constituem o atual padrão de poder mundial. 48
Fanjul (2011, p. 318) adverte que seria incorreto identificar o sujeito político do pan-hispanismo atual com
o Estado espanhol: “Certamente essa política conta com o apoio político e orçamentário do Estado espanhol,
mas ela é protagonizada e sustentada fundamentalmente por um conjunto de empresas de capital
transnacional, como Telefónica, Repsol ou o Banco Santander, que cresceram com base na integração da
Espanha na União europeia. Unidas a editoras e a empórios multimídia, enunciam uma relação com a língua
como “ativo econômico” internacional. Como parte do gerenciamento desse ativo, fomentam e patrocinam os
cenários para o trabalho de outro grupo de entidades de “administração” da língua e da cultura, algumas
espanholas, como o Instituto Cervantes[..].”
Essa proposta de ajudar a “formar” professores - algo que é função
das instituições universitárias brasileiras (sobretudo as públicas),
cujos docentes, na sua grande maioria, vêm se opondo
publicamente a tal ingerência, e que é uma missão de interesse
político nacional - pareceria vir ganhando espaço e força por meio
de acordos feitos muitas vezes por instâncias mais altas das
instituições acadêmicas nacionais, de secretarias de educação ou,
em alguns casos, com o aval de alguns grupos de docentes e de
associações interessados que atuam nesses espaços acadêmicos
(GONZÁLEZ, 2008, p. 3178).
As considerações anteriores auxiliam na compreensão de que a valorização do
papel educativo do ensino de espanhol na escola brasileira está vinculada, de alguma
maneira, à pressão imposta pela governamentalidade espanhola. Com essa afirmação, não
se pretende invalidar uma trajetória do ensino de espanhol no Brasil e de seus
protagonistas, que antecede o recente impulso do pan-hispanismo nesse país. Tampouco se
pode desconsiderar a relevância do desenvolvimento da pesquisa na área de ensino de
línguas no âmbito nacional, que criou subsídios, do ponto de vista científico, para o início
de um enfretamento contra o eurocentrismo, que tradicionalmente controlou a produção do
conhecimento no Brasil.
O que se espera sublinhar é que a política pan-hispânica não encontra aqui livre
terreno ou paraíso intocado, pelo menos no que diz respeito à atuação de parte do
professorado brasileiro, que, em resposta à pressão de determinados agentes da política de
línguas, institui em suas falas traços de um projeto político educacional para o ensino de
espanhol, que implicam na construção de uma nova identidade dessa categoria
profissional. Daremos continuidade a esse debate nos próximos capítulos se voltam para a
análise de materialidades discursivas produzidas pela APEERJ em diferentes contextos de
sua história.
3.4 SÍNTESE DO TERCEIRO CAPÍTULO
Toda a reflexão proposta neste capítulo se fundamentou na indissociabilidade entre
educação e política. Inicialmente, julgou-se necessário recuperar a definição de política sob
o enfoque foucautiano (2008a; 2008b), sublinhando o conceito de governamentalidade. A
partir do deslocamento do Estado de um lugar de proeminência, se dá visibilidade a
existência de relações de poder e de posicionamentos conflitantes que permeiam o campo
educacional.
O projeto de escolarização é visto sob o enfoque do sociólogo Bauman (2010),
segundo o qual sempre esteve vinculado a projetos político- econômicos mais amplos. Se
em sua origem a escola está subordinada aos interesses disciplinares do Estado Moderno,
com a expansão do sistema capitalista, o Estado se divorcia da Educação, que passa a estar
sob a tutela do mercado. Na crise da forma escolar moderna, Bauman (2010) identifica
brechas para uma nova concepção sobre a construção do saber: a arte da conversação
civilizada. Contudo, para enfrentar esse desafio, os educadores precisam encontrar
estratégias de resistência à aderência acrítica às regras do discurso mercadológico.
Põem-se em discussão no presente capítulo as diferentes visões de ensino de
línguas, considerando os posicionamentos político educacionais que lhes são subjacentes.
Identificam-se duas concepções hegemônicas sobre o ensino de línguas: a língua como
instrumento de acesso à boa cultura e a língua como instrumento de acesso ao mercado.
Vista como uma forma de oposição a essas duas definições, apresenta-se a concepção de
língua como espaço de libertação que emerge a partir do final do século XX e se
materializa nos documentos curriculares oficiais do país.
Como último ponto de discussão, trata-se do processo de consolidação do papel
educativo do ensino de espanhol na escola brasileira. Considera-se a relevância da ação da
política pan-hispânica nesse processo. Embora a defesa de uma concepção educativa do
ensino de língua espanhola constitua um longo processo e anteceda as medidas mais
invasivas de determinados órgãos impulsionados pela sanção da Lei 11.161/2005, a
pressão exercida pela governamentalidade espanhola desencadeia, nas práticas de um
segmento do professorado brasileiro, o delineamento mais nítido de um projeto político
educacional para o ensino de língua espanhola na escola.
Este capítulo volta-se para a análise dos temas que incidem nas atas de reuniões da
APEERJ, partindo-se da ideia de que nessas textualidades se materializam diferentes vozes
e sentidos que constituem uma dimensão da identidade dessa associação. Entre ditos e não
ditos, as atas permitem ao pesquisador caminhar por um fio de regularidade conduzida pela
marcação temporal inerente a esse gênero que se faz presente em toda a história da
APEERJ.
Propõe-se como organização capitular a seguinte divisão: inicialmente, apresenta-se
reflexão sobre o gênero ata de reunião tomando como alicerce teórico a perspectiva
bakhtiniana (2000). Em seguida, expõe-se uma caracterização geral das atas da APEERJ.
Finalmente, empreende-se a análise dos temas que constituem essas textualidades,
viabilizando a identificação de três principais grupos temáticos correspondentes a
diferentes esferas de atuação da APEERJ: o administrativo organizacional; o acadêmico
pedagógico e o político educacional.
4.1 ATA SOB O PONTO DE VISTA DISCURSIVO
Antes de propor considerações específicas sobre o gênero ata a partir de ponto de
vista discursivo, inicia-se esta reflexão com a apresentação de duas definições
dicionarizadas do termo.
ata s.f. (s.XIII) 1. registro ou resenha de fatos ou ocorrências
verificadas e resoluções tomadas numa assembléia ou numa
reunião de corpo deliberativo ou consultivo de uma agremiação,
associação, diretoria, congregação etc. <livro de atas> 2 registro
escrito de uma obrigação contraída por alguém 3. fig. Relato,
crônica ETIM lat. Acta, ōrum „coisas feitas, obras, feitos,
façanhas‟, PL. do neutro actum, ī der. De actus, a, um, part. Pás.
Lat. de agĕre „fazer‟PAR atá (s.m.) (HOUAISS; VILLAR, 2009)
ata [Do lat. acta „coisas feitas‟.] s. f. 1. Registro escrito no qual se
relata o que se passou numa sessão, convenção, congresso, etc.: ata
da convenção dos advogados. 2. Registro escrito de uma obrigação
contraída por alguém: o escrivão leu a ata da venda do
apartamento. 3. Dir. Proc. Registro escrito de uma audiência, de um
julgamento, etc.: o relator leu a ata do processo. 4. Fig. Relato,
crônica.~atas. (FERREIRA, 2010).
Nos verbetes, atribui-se às atas a função de „registrar‟ por escrito fatos ocorridos em
uma dada situação comunicativa. Apresenta-se um amplo leque de situações possíveis, em
que se recorre à produção da ata: uma sessão, uma convenção, um congresso, uma
negociação comercial, uma audiência, um julgamento, o testemunho de um fato, o
resultado de uma eleição, etc. Apesar da diversidade entre elas, todas são eventos de
caráter oficial e pressupõem uma coletividade organizada.
Conclui-se, à primeira vista, que as atas fazem parte de diferentes esferas das
atividades humanas e, desde uma ótica bakhtiniana (2000), pressupõe-se que, em cada uma
delas, esse gênero discursivo complexo apresente possíveis especificidades, tanto em sua
forma linguístico discursiva como em sua função comunicativa, adequadas às exigências
de cada uma dessas esferas da vida social.
Dentre os gêneros que estabelecem diálogo com as atas, estão as reuniões
profissionais. À continuação, propõe-se um aparente desvio desta reflexão com a
finalidade de contemplar especificidades desse segundo gênero historicamente presente na
história da APEERJ, para em seguida retomar as considerações sobre as atas.
A pesar da sua ampla difusão no âmbito laboral, não é simples descrever o
funcionamento das reuniões profissionais, levando em consideração a existência de uma
variedade de tipos possíveis de reuniões, que atendem a necessidades igualmente
diversificadas dos coletivos de trabalho. Muitos fatores interferem na atualização
configuracional de uma reunião, dentre os quais estão o tipo de interação entre os
interlocutores, o contexto em que acontece e o seu o conteúdo temático.
No que tange especificamente ao trabalho docente, as reuniões são tarefas previstas
desse ofício, especialmente as que tratam de questões concernentes ao âmbito pedagógico.
No verbete “professor” do dicionário das profissões (1981), expõe-se: “além disso deve
participar de reuniões de planejamento e avaliação das atividades escolares, visando ajustar
o seu trabalho aos dos demais professores...” (BERTELLI,1981).
Além das reuniões de natureza pedagógica, que acontecem periodicamente no
contexto escolar, existem outras modalidades, como as que atendem, por exemplo, a fins
administrativos para a definição de cargos, funções, horários, contratação de novos
professores, etc. O foco desta reflexão, contudo, não está voltado para a multiplicidade de
atividades docentes que acontecem rotineiramente dentro da escola, mas se direciona para
uma atividade que não faz parte das prescrições do trabalho do professor: as reuniões como
práticas do associacionismo docente.
Ao contrário do que acontece nas esferas pedagógicas e administrativas, a
participação em reuniões promovidas por uma associação, como as realizadas pela
APEERJ, não estão previstas entre as normas do trabalho do professor. Embora a
participação regular dos associados seja concebida, no estatuto dessa entidade, como um
dos deveres atribuídos aos seus integrantes (ANEXO 1), não existe efetivamente nenhuma
prescrição do trabalho docente sobre o exercício do associacionismo e, conseguintemente,
tampouco para as atividades inerentes a essa prática.
Além de não serem exigidas do professor, pelo menos de forma coercitiva, a
filiação e a participação em atividades de uma associação profissional, na prática, são
raríssimas as políticas efetivas de incentivo para que os professores usufruam da
possibilidade de participar ativamente em associações profissionais. Nota-se, no que
concerne à participação dos professores na APEERJ, uma conjuntura laboral que impõe
obstáculos para o engajamento do professor nas atividades extra escolares relacionadas à
capacitação profissional e, ainda em maior grau, às atividades de cunho político.
A importância da interação do professor com os seus pares, especialmente no que
diz respeito às ações políticas, tem sido historicamente diminuída por uma concepção
individualizante do trabalho docente. Nesse contexto marcado pela desvalorização dos
interesses coletivos e igualmente pela imposição de obstáculos reais que dificultam as
tentativas de mudança desse panorama, explica-se o baixo índice de frequência do número
de associados da APEERJ nas assembleias convocadas por essa entidade ao longo do
tempo, conforme o registro do Livro de Presenças da APEERJ. Apresenta-se em seguida,
copia de um do último livro de presença da APEERJ, inaugurado em 1996:
Figura no 15: Folha de abertura do segundo livro de presenças da APEERJ em tamanho
reduzido
Apesar da disseminação do gênero ata nos diferentes âmbitos da organização social,
a sua origem tem raízes fincadas no âmbito jurídico. É justamente na área do Direito que se
encontram mais informações sobre o assunto. As condições de surgimento e uso efetivo da
ata vinculam-se a um contexto histórico em que escrita passou a desempenhar papel
fundamental na formação do processo do direito romano e passou a ser a “materialização
da prova jurídica” (CARRARO apud MELO, 2006). As manifestações de vontade e os
fatos começaram, então, a serem gravados quase que exclusivamente em papel e a
subscrição de documentos tornou-se hegemônica, provocando uma clara dicotomia entre as
provas oral e a escrita.
Tomando como alicerce teórico a noção de gênero de Bakhtin (2000), a gênese e a
preservação do uso das atas até os dias atuais são concebidas como uma necessidade legal
e histórica - em constante atualização - de reconstituir determinados fatos por meio do
registro escrito de relatos. A estabilidade relativa desse gênero e a sua função de fixar
enunciados de forma padronizada propiciam-lhe o status de documento com valor jurídico,
responsável pela materialização das falas de uma dada coletividade.
Em pesquisa voltada para a análise de atas de reuniões escolares, Melo (2006)
considera minimamente a concentração de três instâncias de situações de comunicação
interdependentes: a situação da reunião que gera o registro; as situações extra reunião, que
são atualizadas durante a reunião específica; e, por último, a situação de registro
(simultânea e/ ou posterior) à situação comunicativa que gerou a ata.
Em complementaridade às considerações de Melo (2006), observa-se que as atas de
reunião simulam a reprodução da interação instituída entre os sujeitos participantes desse
encontro. Contudo, desde o ponto de vista enunciativo há uma relação de não coincidência
entre a situação comunicativa da reunião e a cena reconstruída na produção da ata. Logo,
sob essa ótica, rejeita-se a concepção da ata como um espelho fiel do acontecimento da
reunião ou como mera transcrição das falas produzidas oralmente. Isto é, não se trata
apenas de uma reformulação do oral para o escrito.
No intuito de sublinhar a distância entre a reunião empírica e a situação
comunicativa inscrita em uma ata, deve-se levar em consideração, primeiramente, que são
situações comunicativas diferentes, entre sujeitos, espaço e tempo igualmente distintos.
Também se deve ter em conta que a situação de interação direta entre sujeitos possui traços
específicos, como, por exemplo, a entonação da voz e os gestos, que interferem na
construção de significados e que são irreproduzíveis. Outro fator a ser observado é, sob a
ótica bakhtiniana (2000, 2004) o discurso citado é sempre um discurso modificado, visto
que as falas passam necessariamente pelo olhar do enunciador relator cuja apreciação
valorativa é inevitável. E ainda, o fato de as falas integrarem um novo contexto, de
constituírem uma nova cena enunciativa em um novo gênero discursivo inviabiliza a
possibilidade de reprodução dos sentidos produzidos na reunião.
Fazem parte das múltiplas especificidades que diferenciam os gêneros ata e reunião,
o maior grau de rigidez na estrutura composicional e o estilo mais objetivo do primeiro. Da
atualização das falas oriundas de uma reunião em uma ata, exige-se, tradicionalmente, um
processo de formalização e de impessoalização - características típicas da esfera jurídica -,
criando diferenças mais nítidas entre as duas cenas de enunciação. Ainda que a validação
da ata exija geralmente uma aprovação coletiva, limitando evidentemente grandes
distanciamentos do que foi dito em reunião, alterações de sentidos mais sutis – porém não
menos importantes- se instituem.
A reflexão preliminar sobre o gênero reunião em contexto profissional é essencial
para que se possa compreender a natureza da ata e dos seus elementos constituintes. De
inicio, deve-se levar em consideração que não são todas as reuniões do âmbito profissional
que resultam na produção de uma ata. Compreende-se, então, que nem sempre o registro
escrito das falas é reconhecido como uma real necessidade. A formulação de uma ata
atribui caráter de oficialidade a uma reunião, distinguindo-a de situações de interação mais
informais. Portanto, supõe-se que nem todas as reuniões da APEERJ propiciaram a
elaboração desse registro.
A seleção dos temas que constam nas atas da APEERJ - e, igualmente, o
apagamento de alguns deles - devem ser contemplados com atenção. Eles remetem a uma
escolha que se dá em vários níveis. Citamos pelo menos três deles: (a) a elaboração da
pauta de reuniões; (b) o decorrer da reunião; (c) a escrita da ata. Deve-se levar em
consideração que, a definição da pauta de reunião, exige um processo seletivo de temas
que se reconfiguram historicamente. A ata resulta, portanto de um processo de constantes
seleções temáticas, que se materializam discursivamente nesse gênero e, assim, evidenciam
a importância atribuída à preservação e à possibilidade de rememoração e atualização de
determinadas ações vivenciadas no passado pelo coletivo.
A partir da ótica bakhtiniana (2000, 2004), que considera a existência de uma
relação orgânica entre o gênero discursivo e o seu conteúdo temático, compreende-se que a
atualização e o apagamento de determinados temas são definidos pela própria natureza do
gênero e pelo contexto histórico-social em que ele está situado. Logo, sublinha-se nesta
reflexão que a ata, discursivamente, não é simplesmente o registro do que aconteceu, mas
do que pode e deve ser dito e registrado em uma dada situação enunciativa.
Segundo orientação de organismos oficiais como a Associação Brasileira de
Normas Técnicas (ABNT) e o Manual de Redação Oficial da Presidência da República,
não existem normas regulamentares para a redação de atas. Supõe-se, portanto, que a
ausência de normalizações esteja relacionada como a tradição consolidada do gênero em
determinados âmbitos da vida social (MELO, 2006, p.35-36)
No caso específico do Rio de Janeiro, o Manual de Redação Oficial dessa cidade
(2001), apresenta informações pontuais sobre a estrutura composicional da ata:
1. Cabeçalho, onde aparece o número (ordinal) da ata e o nome do
órgão que a subscreve.
2. Texto sem delimitação de parágrafos, que se inicia pela
enunciação da data, horário e local de realização da reunião, por
extenso, objeto da lavratura da Ata.
3. Fecho, seguido da assinatura de presidente e secretário, e dos
presentes, se for o caso (ESTADO DO RIO DE JANEIRO, 2001)
No intuito de definir a estrutura composicional das atas de reuniões, outros
elementos devem ser acrescidos à normalização governamental. No que tange ao tipo de
organização textual, destaca-se o predomínio da sequencia narrativa no gênero em questão.
É frequente nas atas a recorrência aos verbos em tempos pretéritos para apresentar ações
empreendidas pelos sujeitos nos espaço/tempo da reunião ou antes dela. No processo de
recuperação de um emaranhado de vozes que atravessam as situações comunicativas
simultâneas ou precedentes às reuniões ata, isto é, na tentativa de constituir enunciados
sobre outros enunciados, as citações indiretas instituem-se como ingrediente indispensável
na composição estrutural da ata.
A ausência de parágrafos é igualmente uma das características atribuídas ao gênero
em questão. Trata-se de um texto completamente contínuo, sem listas de itens, espaços ou
rasuras. Antes do advento do computador, essas medidas justificavam-se como meio de
evitar fraudes e, consequentemente, a perda de um dos seus projetos discursivos: tornar-se
prova de um fato e possuir valor legal.
Bakhtin (2000, p.284) também apresenta o estilo como elemento constituinte do
gênero discursivo. Nas atas, o estilo privilegiado é o objetivo-neutro49
, marcado pela
formalidade e pelo predomínio da impessoalidade que contribuem na construção do status
de documento com valor legal. Nas atas da APEERJ, observa-se que, tanto o modo de
introduzir a fala dos professores, como a maneira de referenciá-los lança mão de sentidos
49
Bakhtin distingue o estilo familiar, íntimo e objetivo- neutro. Os dois primeiros se caracterizam pelo
caráter pessoal, ao passo que o último reduz ao máximo as marcas discursivas dos interlocutores (BAKHTIN,
2000)
de formalidade que, no decorrer de reuniões entre os pares, supostamente, não se daria no
mesmo grau.
Conclui-se esta seção pondo em evidencia os interlocutores do gênero ata: quem
enuncia e a quem se dirige o enunciador. As atas de reuniões possuem um enunciador
relator. Tradicionalmente, o relator é o secretário da reunião que, habitualmente, firma o
registro assumindo a sua autoria, embora outros sujeitos integrantes do grupo (secretários
eventuais) também possam eventualmente fazê-lo. Ainda que se configure o estilo objetivo
neutro nesse gênero, é possível encontrar algumas marcas de subjetividade deixadas pelo
enunciador na textualidade das atas, inclusive pistas linguístico discursivas da sua
apreciação valorativa a respeito dos enunciados.
Quanto ao coenunciador, consideram-se, no gênero estudado, três instâncias: a
primeira constitui-se dos próprios participantes da reunião que irão decretar a aprovação da
ata. Esta corre o risco de não ser alcançada caso haja uma distancia significativa entre o
dito e o que se quer como o seu registro, portanto, o coenunciador validador da ata
interfere diretamente na definição da inclusão/ exclusão do que é relatado e no modo como
ele é feito.
Como segunda instância instituem-se os interlocutores, tidos como competentes,
para avaliar as decisões e os interessados pelos encaminhamentos feitos pelo coletivo em
questão. Nessa instância, incluem-se, por exemplo, no caso da APEERJ, os professores de
espanhol ou os possíveis interessados pelas atividades executadas pela associação. As atas
de reuniões desempenham um importante papel de dar visibilidade às iniciativas
empreendidas pela associação, legitimando a sua existência, a participação efetiva dos
sócios e, inclusive, os cargos ocupados pelos diretores dessa entidade.
Finalmente, como terceira instância, identifica-se a existência de um
sobredestinatário, concebido como o interlocutor que não pode ser previamente definido
por estar situado para além das evidências empíricas. Ele é invisível, o futuro capaz de
assumir diferentes identidades. É o caso, por exemplo, do pesquisador que transforma a
materialidade discursiva no corpus de sua pesquisa. (ROCHA; ROCHA, 2004). Afirma
Bakhtin (2000, p. 356):
Todo diálogo se desenrola como fosse presenciado por um terceiro,
invisível, dotado de uma compreensão responsiva, e que se situa
acima de todos os participantes do diálogo (os parceiros). (...) o
fato decorre da natureza da palavra quem quer sempre ser ouvida,
busca a compreensão responsiva, não de detém numa compreensão
que se efetua no imediato e impele sempre mais adiante (de modo
ilimitado) (BAKHTIN, 2000, p.356)
À continuação, damos prosseguimento a próxima seção do presente capítulo, cujo
objetivo principal é introduzir uma caracterização geral das atas que compõem o arquivo
da APEERJ.
4.2 CARACTERIZAÇÃO DAS ATAS DA APEERJ
Após discussão sobre o gênero ata à luz do enfoque discursivo, propõe-se, nesta
seção, uma descrição geral das atas de reuniões da APEERJ.
Constam, no arquivo dessa associação, 150 atas classificadas em duas principais
categorias segundo o tipo de reuniões da associação: atas de reuniões específicas entre os
membros da diretoria da APEERJ e atas de Assembleias Gerais, que incluem a
participação dos professores associados mediante previa convocação.
Além dessas duas categorias principais, consta o registro de uma reunião realizada
em 11 de agosto de 2009, para tratar especificamente do Acordo entre o Ministério da
Educação e o Instituto Cervantes, que é designada como “reunião ampliada”. Ainda no que
diz respeito ao tipo de reunião, as atas apontam a realização de reuniões de caráter
ordinário e extraordinário.
As atas da APEERJ estão arquivadas em três livros de atas. Um deles reúne 32 atas
de assembleias gerais que ocorreram durante o período de 1981 a 1989. Há também um
livro correspondente a esse mesmo período que agrupa as 21 atas das reuniões específicas
da diretoria. E, por fim, existe um terceiro livro de atas, inaugurado na década de 1990 e
vigente até a presente data, que engloba, indistintamente, 97 atas de todas as reuniões da
APEERJ referentes aos últimos anos.
No que concerne às características tipográficas dos volumes, até o ano 2002, as atas
foram manuscritas diretamente nas páginas dos respectivos livros. Posteriormente, a partir
de maio do ano citado, começaram a ser digitadas e coladas nos mesmos, conforme
imagem à continuação:
A estrutura composicional das atas da APEERJ também sofreu modificações ao
longo tempo. Observa-se nas últimas atas o aumento do grau de objetividade do registro
escrito, que obedece com maior rigidez aos tópicos previstos nas pautas das reuniões.
Sendo assim, verifica-se expressiva diminuição da extensão das atas.
Alguns fatores podem ser elencados para justificar as transformações das atas da
APEERJ. Dentre eles está a crescente adesão, nesta última década, aos gêneros virtuais que
viabilizaram novos tipos de interação entre os membros da associação. Parte das
discussões, portanto, passou a ser antecipada por meio da troca de emails entre os diretores
e também com os associados da APEERJ.
É possível fazer outras inferências no que diz respeito às modificações das atas da
APEERJ. Considera-se o detalhamento das atas iniciais da APEERJ como índice da
preocupação dessa entidade recém fundada de legitimar, perante os seus associados, as
ações por ela realizadas. Depois de mais de 30 anos de sua fundação, a legitimidade já
consolidada da associação entre os professores de espanhol permite maior brevidade dos
registros, que se tornam cada vez mais sucintos. Ainda que a sua elaboração mantenha-se
obrigatória do ponto de vista jurídico, as atas mais recentes, basicamente, se restringem aos
pontos previamente definidos nas pautas de reuniões.
É importante salientar que esta análise se pauta na materialidade que se institui nas
atas, atribuindo a plano secundário a questão da concretização empírica de propostas ou
relatos registrados nessa textualidade. O foco da leitura do arquivo que se propõe nesta tese
verte sobre a compreensão dos acontecimentos discursivos que se inscrevem (ou se
silenciam) nas atas e os sentidos que lhes são constituintes.
4.3 MAPEAMENTO DE TEMAS NAS ATAS
Além de propiciar pistas acerca da constituição identitária da APEERJ, as atas
viabilizaram, a esta pesquisa, o acesso a um leque de textualidades produzidas pela
associação. Por meio da leitura desses registros, foi possível localizar outras produções
discursivas da APEERJ às quais se faz menção na referida documentação. Compreende-se,
portanto, o papel de situar no tempo e no espaço acontecimentos por meio do relato como
característica essencial das atas, cujo movimento é sempre guiado pela seleção do dizível e
do não dizível.
Nas atas o silêncio deve ser então compreendido como um elemento tão
significativo quanto à palavra materializada. O mesmo acontece com a repetição, que é
uma marca igualmente indispensável à análise dessa materialidade discursiva. Ambos
evidenciam a sobreposição de determinados enunciados a outros enunciados.
Do ponto de vista metodológico, as atas são concebidas nesta pesquisa como uma
espécie de mapa, que auxilia duplamente ao pesquisador: (a) a ter uma visão panorâmica
das práticas discursivas da APEERJ ao longo do tempo e da constituição do seu arquivo e
(b) a investir numa primeira aproximação dos sentidos que contribuem na construção
identitária da APEERJ.
Com o interesse de identificar ditos e não ditos, atualizações, apagamentos e
repetições optou-se tratar do conteúdo temático enquanto noção operatória da análise das
atas. O levantamento de temas, sob o ponto de vista discursivo, não é, porém, uma
determinação óbvia. Consiste num processo de abstração empreendido pelo leitor/
coenunciador a partir de determinados índices verbais e não verbais que resultam da
enunciação (SANT´ANNA, 2004). Logo, a definição de temas que circulam50
nas atas da
APEERJ decorre de um gesto de leitura do analista a partir de elementos lexicais e
reformulações de referentes que incidem nessa materialidade discursiva.
Após a localização de temas nas atas observou-se que eles correspondiam às
diferentes esferas de atuação desempenhadas pela APEERJ. Optou-se, portanto, agrupá-los
em três categorias, separadas por tênues fronteiras, que foram nomeadas como: campo
administrativo organizacional, campo acadêmico pedagógico e, finalmente, campo político
educacional. É importante frisar que esses agrupamentos não são concebidos como zonas
insulares, levando-se em consideração que os próprios temas levantados estão entrelaçados
e não existem de forma independente um dos outros.
Nos próximos itens, é para cada um desses campos temáticos que se volta esta
reflexão, objetivando observar a incidência de temas nas atas referentes a cada um dos
biênios da associação51
. Foi analisada uma totalidade de 74 atas da APEERJ, que se
subdividem em dois grupos: (i) atas produzidas durante o período de 1981 a 1989 (total de
53 atas) e (ii) atas produzidas de 2006 a 2010 (total de 21 atas)52.
50
A noção “circulação temática” é proposta por François (apud SANT‟ANNA, 2004, p.149). Para esse autor,
“os discursos se organizam em torno de temas, num processo que, para garantir a continuidade discursiva,
precisa efetuar deslocamentos temáticos”. 51
O levantamento detalhado de temas por cada ata da APEERJ apresenta-se em anexo (ANEXO 3). 52
As atas referentes ao ano de 2011 não foram disponibilizadas à pesquisa pela APEERJ, pois durante o
desenvolvimento da tese ainda não haviam sido confeccionadas pela associação. Esse fato reforça a ideia do
A discrepância entre o quantitativo de atas referentes a essas duas fases justifica-se
pela diferença da extensão de tempo entre elas (9 anos e 5 anos, respectivamente).
Portanto, para fazer uma comparação em termos quantitativos entre a incidência de temas
em cada uma desses agrupamentos de atas deve-se usar o princípio da proporcionalidade.
Resta, ainda, justificar os critérios utilizados para delimitar como foco deste estudo essas
duas fases da APEERJ.
A delimitação do período de 2006/2010 deve-se a um interesse de identificar os
traços da identidade da APEERJ que se configuraram nos últimos mandatos dessa
entidade. Parte-se da hipótese de que, nos últimos anos, ocorreram transformações
significativas no âmbito do ensino de espanhol que interferiram diretamente nas práticas da
associação. Nesse passado recente, alguns acontecimentos dos contextos nacional e
internacional - dentre os quais se destacam (i) a promulgação da lei 11.161 que estabelece
a oferta obrigatória do ensino de espanhol em 2005- propiciaram a ampliação da produção
discursiva sobre o ensino de espanhol e de determinadas políticas concernentes à expansão
dessa língua no Brasil.
Faz parte dessa rede de enunciados e sentidos as práticas discursivas da APEERJ,
que, por sua vez, recuperam vozes antagônicas sobre o ensino de espanhol. Assim, com o
intuito de compreender as posições enunciativas ocupadas pela APEERJ nesse espaço de
debate, e diante da necessidade de delimitar um recorte para a constituição de um corpus
de pesquisa, optou-se priorizar os três últimos mandatos da APEERJ como um dos
períodos estudados nesta pesquisa53
.
A necessidade de recuperar sentidos fundadores que se atualizam nos enunciados
mais recentes da associação e, assim, identificar o processo de transformação identitária
dessa entidade, impulsionou a decisão de também contemplar textualidades que constituem
os primeiros mandatos da APEERJ. No lugar de abranger apenas os três primeiros
mandatos (1981 a 1987), julgou-se necessário considerar mais um biênio (1988-1989),
levando em consideração a relevância do acontecimento que ocorre durante esse mandato:
nessa época se instaura a mobilização da APEERJ em prol de uma Proposta Popular de
Emenda ao Projeto de Constituição do Estado do Rio de Janeiro em defesa da
obrigatoriedade do ensino da língua espanhola nas escolas estaduais. A aprovação da
distanciamento, inclusive cronológico, que pode existir entre o acontecimento da reunião e o seu registro em
ata. 53
Embora o presente capítulo se restrinja aos mandatos de 2006/2008 e 2008/2010, no capítulo seguinte,
propõe-se a análise de produções discursivas da APEERJ relativas ao seu último mandato iniciado em 2010 e
ainda em andamento.
referida proposta na Constituição estadual foi vista como uma conquista efetiva da
APEERJ. Esse acontecimento foi então considerado como um verdadeiro marco na
memória da APEERJ, que, por conseguinte, gerou uma rede de enunciados ao longo da
história dessa associação, justificando o interesse de também contemplar esse período nesta
análise.
Como antecipado no primeiro capítulo deste trabalho, delimita-se dois principais
períodos como foco da presente reflexão: uma fase inicial, que denominamos como
fundadora. Esse período abrange o recorte temporal de 1981 a 1989. E uma fase
denominada como contemporânea, que abarca o período de 2006 a 2011 (ainda que no
presente capítulo nos limitemos ao ano de 2010 em função da inexistência de atas mais
recentes).
Nas próximas seções, serão apresentadas tabelas referentes a cada um dos três
campos temáticos identificados a partir do levantamento geral de temas das atas da
APEERJ. Procura-se, em cada uma dessas seções, fazer uma análise geral a respeito da
incidência de temas nas fases inicial e contemporânea. Os dados apresentados nas tabelas
não foram explorados de forma exaustiva. Optou-se dar destaque às relações de equilíbrio
ou de discrepância na incidência dos temas em cada uma das fases da APEERJ.
Ao longo da análise, recuperam-se fragmentos das atas e de outras textualidades da
APEERJ a fim de ilustrar e complementar as reflexões desenvolvidas no presente capítulo.
4.3.1 Campo administrativo organizacional
Nesta seção, procurou-se agrupar temas voltados especialmente para a gestão das
atividades internas da APEERJ. Para fins de análise, optou-se classificar esse conjunto de
temas como integrantes do campo administrativo-organizacional. Este se constitui de
elementos de natureza distinta, abrangendo, por exemplo, temas como informes financeiros
à definição da sede da entidade.
Apresentam-se, à continuação, tabela que sistematiza a incidência dos temas que
constituem o campo administrativo organizacional nos dois recortes temporais estudados
nesta investigação.
CAMPO ADMINISTRATIVO
ORGANIZACIONAL
1981-1
983
1983-1
985
1985-1
987
1987-1
989
Tota
l
2006-2
008
2008-2
010
Tota
l
TEMAS
Estatuto 4 3 0 1 8 3 0 3
Eleição / afastamento de membros da
diretoria
8 2 1 4 15 2 4 6
Filiação de novos associados 0 1 3 11 15 4 3 7
Informes financeiros 5 8 13 9 35 14 6 20
Definição de sede 2 2 8 3 15 1 0 1
Aprovação / registro de ata 5 5 10 9 24 1 1 2
Definição de tarefas da APEERJ 1 0 0 0 1 2 0 2
Planejamento das reuniões da
APEERJ
3 0 6 1 10 0 0 0
Material de consumo da APEERJ 1 1 0 0 2 0 0 0
Declarações, certificados e diplomas 0 1 1 0 0 0 0 0
Exclusão de sócios inadimplentes 0 1 0 0 1 0 0 0
Logotipo/ símbolo da APEERJ 0 1 0 0 1 1 0 1
Voto de louvor a membros da
APEERJ
0 1 1 2 4 0 0 0
Boletim hispânico 0 1 3 4 8 0 0 0
Criação da Casa do Professor 0 0 1 0 1 0 0 0
Concessão de títulos de sócios
honorários e de presidentes de honra
0 2 2 1 3 1 0 1
Carteirinha para associados 0 1 0 0 1 2 0 2
Registro no Cadastro Geral dos
Contribuintes
0 1 2 0 3 0 0 0
Divulgação da APEERJ 1 1 0 1 3 3 0 3
Comunicado de falecimento/
pêsames
0 1 1 0 2 0 0 0
Envio de congratulações 0 0 1 0 1 0 0 0
Interação com associados 0 0 0 0 0 4 3 7
Site da APEERJ 0 0 0 0 0 3 1 4
Estagiário da APEERJ 0 0 0 0 0 1 0 1
Confecção de panfletos, banner,
camisetas e brindes diversos
0 0 0 0 0 3 0 3
Boletim eletrônico 0 0 0 0 0 0 1 1
Seguro saúde 0 0 0 0 0 0 1 0
Tabela no5: Temas no campo administrativo organizacional
A tabela anterior mostra que os informes financeiros predominam nas atas da
APEERJ concernentes aos dois períodos em análise. Consideram-se como pertencentes a
esse tema os ajustes da taxa semestral cobrada aos associados, a situação de inadimplência
de alguns deles e, ainda, questões relativas à conta bancária da associação.
Nos primeiros mandatos da APEERJ, nota-se um relativo equilíbrio nos enunciados
que tratam das finanças nas atas da associação. No ano de 2006, no entanto, verifica-se, na
tabela, que esse tema ocupou lugar privilegiado nas discussões da entidade destacando-se
entre os demais. Compreende-se que o interesse pela questão financeira da APEERJ, nesse
ano, vincula-se a um projeto mais amplo de reorganização dessa associação inaugurado a
partir desse período. Registra-se nas atas do biênio 2006-2008, além da discussão ordinária
sobre pendências relativas ao trâmite bancário da APEERJ, o empenho dos diretores em
conseguir subsídios para o crescimento dessa entidade.
Em consonância à proposta de crescimento da APEERJ, a partir de 2006, registra-
se em ata, pela primeira vez na história dessa entidade, a proposta de confeccionar
camisetas e brindes diversos para os seus associados a fim de arrecadar fundos e, ao
mesmo tempo, divulgar a associação. Concebe-se a recorrência frequente a temas do
âmbito financeiro como índice de um movimento expansionista que se inaugura nessa
fase54
. Manifesta-se, nas práticas da associação, a preocupação com a sua imagem pública
e com a maior interação com os associados. Registra-se na ata do dia 10 de agosto de 2006:
seria imprescindível: (1) divulgar nossas propostas e informações sobre
eventos por e-mail – responsabilidade de todas as Diretoras, a princípio;
(2) construir um panfleto no qual se observariam as contribuições da
APEERJ e nossas metas de trabalho – tarefa de todas as Diretoras;
transformar o panfleto em banner e realizar a primeira tentativa de
organização dos dados dos associados – a cargo da Vice-Presidente,
Luciana Maria Almeida de Freitas e da 1ª diretora Secretária, Viviane
Conceição Antunes Lima; (3) comprar um celular para que se possa
estabelecer um outro tipo de contato com os sócios – o mencionado
54
No mandato de 2006, a quantidade de associados quintuplicou em relação ao mandato anterior. Segue o
número de associados da APEERJ no período de 2003 a 2008: 110 associados em 2003; 45 em 2004, 47 em
2005, 238 em 2006, 266 em 2007 e 340 em 2008.
aparelho estaria aos cuidados da 2ª Diretora Secretária, Flávia Augusto
Severino; (4) reformular a ficha cadastral a fim de simplificá-la e
procurar alguém que confeccione brindes para a APEERJ– tarefa a ser
realizada pela 1ª diretora Secretária, Viviane Conceição Antunes Lima;
(6) pensar em citações para a confecção de camisas – incumbência da
1ª Diretora Cultural, Elda Firmo; (7) entrar em contato com o possível
confeccionador das mesmas – tarefa a cargo da 1ª Diretora Financeira,
Aline Machado.55
Ata do dia 10 de agosto de 2006
Quanto à filiação de novos associados, também existem distinções entre os dois
períodos. Na década de 1980, o processo se dava durante as reuniões da APEERJ passando
necessariamente pela aprovação dos seus membros, conforme o registro em diversas atas.
Posteriormente, embora não saibamos identificar com precisão o ano dessa mudança, a
filiação passa a ser feita, praticamente de forma automática, através do preenchimento de
fichas de filiação distribuídas pela diretoria da associação ou encaminhadas via email aos
professores. Ao desvincular-se do ritual periódico de aprovação coletiva realizado nas
reuniões, a inscrição do tema filiação diminui da materialidade das atas a APEERJ, pois
deixa ser assunto recorrente nas pautas das assembleias.
Contudo, a diminuição desse tema nas atas não deve ser compreendida como índice
de um possível desinteresse em angariar sócios. Ao contrário, os associados passam a ser
aceitos automaticamente pela associação sem que se julgasse necessário uma seleção e
uma autorização para a inserção de novos membros. A preservação de um processo mais
democrático de filiação, oriunda do mandato que antecede o ano de 2006, rompe com o
procedimento historicamente consolidado nessa associação que exigia dos professores
candidatos a sócios, além da aprovação em assembleia, indicação por meio de carta de
apresentação de sócios efetivos da APEERJ.
Nos últimos mandatos da APEERJ, a discussão sobre as filiações está atrelada ao
interesse de promover a divulgação da entidade. Para tanto, lança-se mão de diferentes
meios para alcançar os seus interlocutores. A utilização de homepage, email institucional,
folders, newsletter, panfletos e cartazes é citada nas atas das reuniões da APEERJ durante
esse período.
55
A fim de distingui-los das demais citações, os fragmentos do corpus transcritos neste trabalho serão
apresentados emoldurados.
O investimento da APEERJ nos meios virtuais de comunicação, a partir de 2006,
exerce papel significativo na trajetória dessa entidade, especialmente, no que diz respeito
ao tipo de interação que passa a ser estabelecida com os seus associados e com outras
entidades. Possibilita-se, assim, a ampliação dos espaços discursivos de interação.
Enunciados passam, então, a circular com maior dinamicidade e extensão nos gêneros
usuais da internet, que se mostram mais produtivos no andamento das atividades da
associação em relação a outros espaços de interação antes mais utilizados como as reuniões
presenciais e os tradicionais boletins.
A título de exemplificação, reproduz-se, à continuação, o primeiro boletim da
APEERJ, publicado em 1986. É importante observar que a associação opta pelo uso da
língua espanhola para estabelecer contato com os professores, embora se trate de entidade
de nacional, cujos membros são majoritariamente falantes nativos da língua portuguesa.
Do ponto de vista político educacional, a escolha do uso do espanhol na comunicação entre
os professores em uma situação discursiva que não seja precisamente acadêmica institui-se
como um traço identitário da APEERJ naquele momento, que enaltecesse o emprego da
língua espanhola em detrimento do português dentro e fora da sala de aula. Entende-se essa
opção como um fator limitador das condições de engajamento discursivo dos professores,
cuja língua materna era o português.
Figura no 17: Primeira edição do Boletim Hispânico em tamanho reduzido
Na ata de 31 de outubro de 1985, encontra-se menção a críticas feitas ao I
Congresso Brasileiro de Professores de Espanhol pelo fato de algumas comunicações
terem sido apresentadas em português. Nessa ocasião, porém, uma segunda voz se opõe a
essa posição pautando-se no argumento de que em todo congresso existe mais de uma
língua oficial.
Figura no 18: Ata XVII do dia 24 de novembro de 1984 (reunião diretoria)
O emprego predominante da língua portuguesa nos escritos mais recentes da
APEERJ é igualmente entendido como um traço do seu projeto identitário, que se opõe a
uma posição historicamente construída nos discursos concernentes ao ensino de línguas em
consonância aos enfoques de base estruturalista, segundo os quais se deve anular ou
reduzir ao máximo o uso da língua materna. Nesse sentido, a ampliação do uso da língua
portuguesa em situações de interação com os seus associados é mais um dos índices do
processo de transformação da APEERJ.
Dentre os temas mais recorrentes da primeira fase dessa entidade, destaca-se a
menção à produção das atas. Deve-se levar em consideração que, durante muitos anos, em
cada reunião da APEERJ, lia-se a ata da reunião anterior com o propósito de corrigi-la,
ajustá-la ou aprová-la pela coletividade presente. Esse procedimento, realizado
rotineiramente nos primeiros mandatos, não foi mantido pela associação, que passou a
lançar mão dos emails para agilizar esse processo.
Deve-se levar mais uma vez em consideração a ampliação do uso dos meios de
comunicação virtuais, que possibilitou a expansão dos tipos de interação entre os sócios em
outros espaços, que, supostamente, abarcaram grande parte dos temas contemplados
outrora nas reuniões presenciais promovidas pela diretoria56
. Nesse contexto, ditas reuniões
e, consequentemente, as suas respectivas atas tiveram, nos últimos anos, os seus papeis
redimensionados e ganharam novo papel na historia da APEERJ.
Cabe ressaltar que as condições favoráveis à agilidade da comunicação entre os
membros da APEERJ também viabilizaram a ampliação da comunicação da APEERJ com
os seus associados, que antes se dava predominantemente por meio do Boletín Hispánico.
Nos seus últimos mandatos, algumas das reuniões da APEERJ inclusive passaram a ser
feitas virtualmente, conforme as atas das reuniões de 23 de agosto de 2007 e de 11 de
fevereiro de 2010 e 06 de abril de 2010, acarretando a adequação desse gênero ao veículo
utilizado.
O terceiro tema mais abordado nas atas da APEERJ em sua fase inicial, juntamente
com os temas eleição e filiação, gira em torno da sua sede. No segundo capítulo deste
trabalho, fez-se menção à questão da definição da sede que, durante os primeiros mandatos
da associação, foi alvo de repetidas discussões entre seus diretores. Contudo, nenhum deles
obteve êxito em conseguir um lugar definitivo para sediar essa entidade. Todas as sedes da
56
Em virtude das limitações impostas a esta investigação, a materialidade discursiva resultante da interação
virtual entre os membros da APEERJ não foi contemplada.
APEERJ tiveram caráter provisório, conforme inscrição nos seus estatutos, que atribuíam a
sede à residência dos diretores presidentes de cada mandato.
Sem ter conquistado uma sede oficial, a APEERJ se instalou provisoriamente em
diferentes espaços durante a sua história. Dentre os lugares utilizados pela associação na
sua fase fundadora, tal como antecipado no segundo capítulo deste trabalho, predomina a
recorrência às instalações da Casa de Espanha57
. Esse acontecimento é concebido nesta
pesquisa como um dos índices do poder da governamentalidade espanhola sobre a
organização o professorado.
Conforme mencionado no terceiro capítulo deste trabalho, a expressão
governamentalidade espanhola remete ao conceito foucaultiano (2004), segundo o qual a
arte de governar não seria apenas exercer o poder sobre o território e seus habitantes, mas
implicaria o acionamento de forças múltiplas na arte de governar homens e coisas. Nesta
pesquisa, utiliza-se o conceito de Foucault para referenciar o poder que exercem os valores
intrínsecos à política de línguas do governo espanhol nas práticas da APEERJ.
Deslocando para um plano secundário os elementos de ordem factual que
justificariam a escolha da Casa de España como espaço da maioria das reuniões da
APEERJ, a ocupação do referido lugar para sediar esses encontros atribuem, a nosso ver,
sentidos à identidade da APEERJ. Outro fator a ser considerado é que, embora
tradicionalmente tenha oferecido cursos de espanhol, esse espaço não é originalmente um
espaço educacional, mas se trata de um clube sócio-cultural e esportivo58
. O fragmento à
continuação, compilado da ata do dia 11 de novembro de 1983, mostra o posicionamento
dessa instituição acerca do uso de suas instalações pela APEERJ:
Figura no 19: Ata XXII, 12 de novembro de 1983 (assembleia geral)
57
A APEERJ também lançou mãos durante toda a sua história da residência dos membros da diretoria para a
realização de reuniões. 58
Apresentam-se, a seguir, os principais objetivos da Casa de Espanha: • Servir de vínculos entre os
membros da coletividade espanhola, a fim de manter as características dos costumes, cultura, idioma, arte,
folclore, arte e tradição da Espanha. • Promover reuniões sociais, culturais e recreativo-esportivas entre seus
associados e aproximar as relações entre espanhóis e brasileiros. • Promover atividade de caráter assistencial,
educacional e filantrópico. • Promover e incentivar atividades culturais, tais como: Institutos de cultura,
cinema, vídeo clube, cursos de idiomas, de música, de dança e outros que contribuam para o
desenvolvimento cultural (CASA DE ESPAÑA, 2012).
Subjaz ao enunciado “observando-se que só fossem tratados assuntos culturais
durante as mesmas” o enunciado de que a APEERJ poderia tratar de assuntos de outra
natureza que não fossem estritamente culturais. Levando-se em consideração o contexto
político da época, identifica-se nesse posicionamento a proibição aos professores de
usarem o espaço da Casa de Espanha para ser organizarem politicamente. Nota-se nas atas
que, a referida proibição não provoca nenhum tipo de reação dos membros da APEERJ.
Com o silêncio, configura-se textualmente uma espécie de aceitação da imagem atribuída à
APEERJ: uma entidade cuja finalidade é tratar restritamente de assuntos culturais.
Nas atas da APEERJ evidencia-se a disponibilidade apresentada por instituições
diversas vinculadas de alguma forma ao Estado espanhol em relação às demandas da
associação em sua fase fundacional. Destaca-se nesse cenário, a receptividade da
Embaixada da Espanha, que se apresenta como um dos principais interlocutores dos
professores de espanhol ao longo dos anos. Em outras palavras, pode-se afirmar que a
representação diplomática espanhola geralmente mostrou interesse nessa aproximação.
Ainda no que concerne à discussão entorno da sede da associação, o campus da
UERJ- Maracanã sediou a maior parte das reuniões da APEERJ nos seus últimos
mandatos. Diferentemente da Casa de Espanha, trata-se de um local público da esfera
estadual do governo voltado primordialmente para atividades de ensino e pesquisa. O
Instituto de Letras, especificamente, é um espaço cuja função principal é a formação de
professores de línguas. Portanto, compreende-se a realização de reuniões de professores de
espanhol nas instalações desse local como uma espécie de fortalecimento dos laços da
APEERJ com o espaço público e com a universidade. Ao mesmo tempo, a partir da
promoção de reuniões de uma associação docente na UERJ, ampliam-se os sentidos
atribuídos ao próprio campus universitário, então tratado não apenas como espaço de
formação de profissionais, mas também como espaço propicio para a articulação e troca
entre professores interessados em discutir assuntos pertinentes ao seu oficio que vão além
dos saberes disciplinares.
Incluem-se ainda no grupo dos temas mais recorrentes nas atas da APEERJ em sua
fase embrionária, discussões sobre o estatuto da APEERJ e sobre a eleição de novas
diretorias. No que diz respeito particularmente aos estatutos, a necessidade de fazer
alterações nesse documento é reafirmada repetidamente na história da APEERJ59
. A
análise dos estatutos mostra, entretanto, que a maior parte dessas alterações diz respeito à
59
No arquivo da associação, foram encontrados quatro estatutos referentes aos anos de 1982, 1992 e 2003
(anexo 26).
composição dos membros da diretoria e a tentativas de viabilizar as votações em
assembleias, levando em consideração o baixo índice de presença dos associados. A
participação escassa dos associados nas reuniões da APEERJ é demonstrada na aceitação
de votos por meio de procurações dos sócios, a partir do segundo estatuto da APEERJ.
A eleição de membros da diretoria também se institui diversas vezes nas atas da
APEERJ, que, a cada dois anos, conforme estabelecido em seus estatutos, promove nova
eleição de diretores, permitindo-se nesse processo condições para abertura de novas
chapas. Em toda a trajetória eleitoral da APEERJ, não consta a concorrência entre
candidatos ao cargo de presidente. É também uma prática comum a reeleição de membros
das diretorias anteriores nos mandatos subsequentes. Nota-se, em determinados períodos,
profunda desmobilização dos professores, inviabilizando, inclusive, em certas ocasiões, a
realização de eleições por falta de quorum nas assembleias.
A partir de 2006, entretanto, registra-se, nas atas da APEERJ, o interesse de
estimular a participação dos associados nas decisões concernentes à associação. Para tanto,
como mencionado anteriormente, investe-se na divulgação da APEERJ e em campanhas de
filiação durante os eventos organizados pela associação. No fragmento da ata de 28 de
março de 2008, a diretoria da APEERJ, ao resumir as atividades realizadas durante o
biênio de 2006-2008, apresenta como mérito desse biênio o expressivo crescimento do
número de associados da APEERJ:
pagantes. Como relação aos pagantes, eles foram 108 em 2001, 110
em 2002, 60 em 2003, 35 em 2004, 23 em 2005, 224 em 2006, 176
em 2007 e 44 em 2008, até o fim de março. O número de associados é
diferente porque, lembrou Luciana Freitas, que somente é desligado da
Associação o professor que está com uma anuidade em atraso: 110 em
2003, 75 em 2004, 47 em 2005, 238 em 2006, 266 em 2007, 340 em
2008, até o mês de março.
Ata do dia 28 de março de 2008
A eleição de sócios honorários da APEERJ na sua fase fundacional também é
responsável pela instituição de sentidos ao tipo de relação estabelecida entre a APEERJ e
os órgãos diplomáticos, visto que uma parte expressiva dos eleitos a esse cargo são
representantes dessas entidades. Compreende-se que, nessa ação, conferem-se sentidos de
contentamento, reconhecimento e gratidão a respeito da atuação empreendida por essas
instituições em relação à APEERJ. Consta em ata:
Figura no 20: Ata XXII, de 31 de agosto de 1985 (reunião específica da
diretoria)
A prática de concessão de títulos na história da APEERJ não se restringiu, contudo,
à representação diplomática espanhola. Foram concedidos títulos de sócios honorários aos
principais colaborados dessa entidade, incluindo-se nessa categoria alguns reitores de
universidades públicas do Estado do Rio de Janeiro, professores renomados da área de
Letras, dentre outros. Insistimos, porém, no fato de que os gestos de contentamento, no que
tange à relação entre à APEERJ e a Embaixada da Espanha, é uma característica definidora
da fase fundacional dessa associação docente.
Segue à continuação a sistematização dos temas concernentes ao campo acadêmico
pedagógico.
4.3.2 Campo acadêmico pedagógico
Nesta subseção são contemplados temas recorrentes nas atas da APEERJ que fazem
menção ao âmbito acadêmico pedagógico. O interesse pelas atividades acadêmicas
manifesta-se desde a ata de fundação da APEERJ, de 15 de outubro de 1981, na qual já se
inscreve a proposta de realizar o Colóquio de Estudos Hispânicos:
Figura no 21: Ata I, do dia 15 de outubro de 1981(assembleia geral)
A organização de eventos acadêmicos é a temática predominante nas atas da
APEERJ ao longo de toda a sua história, superando quantitativamente os enunciados que
fazem menção às esferas administrativa e política. Nesse sentido, é correto afirmar que,
dentre a variedade de temas que constituem a memória institucional da APEERJ, se
destacam quantitativamente os eventos acadêmicos.
Na tabela a seguir, recuperam-se os principais temas inscritos nas atas da
associação relativos ao campo acadêmico pedagógico.
CAMPO ACADÊMICO
PEDAGÓGICO
1981-1
983
1983-1
985
1985-1
987
1987-1
989
Tota
l
20
06-2
00
8
2008-2
010
Tota
l
TEMAS
Organização de evento acadêmico 16 26 27 20 89 21 14 35
Materiais didáticos 4 2 1 4 11 0 0 0
Espaço para publicação acadêmica 4 0 5 3 12 6 2 8
Bolsas de estudo 0 1 8 15 24 8 3 11
Currículo no ensino de línguas 0 1 0 0 1 0 0 0
Metodologia de ensino de línguas 0 1 1 0 2 0 0 0
Divulgação de eventos acadêmicos e
culturais
0 3 24 18 45 0 1 1
Criação de inventário necrológico de
autores
0 1 0 0 0 0 0 0
Biblioteca da APEERJ 1 9 14 18 42 0 0 0
Intercambio e convênios 1 2 4 4 7 4 1 5
Participação da diretoria em eventos
acadêmicos
0 2 5 3 10 3 1 4
Tradução de documentos escolares
espanhóis
0 0 0 1 1 0 0 0
Diploma de Español como Lengua
Extranjera (DELE)
0 0 0 1 1 0 0 0
Apresentação de materiais
paradidáticos
0 0 0 3 3 0 0 0
Divulgação de publicações acadêmicas 0 1 1 3 5 0 0 0
Solicitação de Leitor 0 0 0 1 1 0 0 0
Concursos (literários, culturais) para
professores
0 2 0 0 2 0 0 0
Concursos para estudantes (redação) 0 0 0 1 0 0 0
Concursos para associados (frases e
unidades didáticas)
0 0 0 0 0 2 0 2
Participação da diretoria em conselho
editorial
0 0 0 0 0 1 0 1
Tabela no 6: Temas do campo acadêmico pedagógico
Dentre os temas pertinentes à organização de eventos, destacam-se referências ao
Seminário de Estudos Hispânicos (SEH) e ao Congresso Brasileiro de Professores de
Espanhol (CBPE). O primeiro deles acompanha toda a trajetória da APEERJ desde 1982,
mantendo a frequência regular de suas edições anuais. Nas atas analisadas, consta o
detalhamento das programações desses eventos, que evidenciam, nas suas edições iniciais,
a sobreposição do interesse pelos estudos literários ao ensino de línguas propriamente.
Conforme já mencionado no terceiro capítulo deste trabalho, a valorização dos
estudos literários no SEH manifesta-se tanto na programação desse evento como nas
homenagens a autores espanhóis e hispanoamericanos que nele eram realizadas. Essa
prática tornou-se rotineira em várias edições do SEH.
Ao longo do tempo, porém, a discussão sobre o ensino da língua espanhola foi
conquistando maior dimensão e seu registro passa a constar nas atas da APEERJ. Aos
poucos, temas relacionados ao ensino de língua espanhola passam a integrar os programas
dos eventos promovidos pela associação de forma mais expressiva. O processo de inclusão
da temática do ensino no âmbito da APEERJ está vinculado a um contexto mais amplo.
Deve-se levar em consideração a reintrodução do ensino de espanhol na educação básica,
articulada ao desenvolvimento dos estudos linguísticos voltados ao ensino de línguas,
como um fator determinante no processo de difusão do interesse pela discussão sobre o
tema ensino de espanhol.
Sendo assim, conforme se integrava como disciplina da grade escolar nas diferentes
redes, os saberes relativos a essa área de conhecimento começaram a ganhar lentamente
novo lugar na esfera acadêmica e, consequentemente, passam também a circular nas
práticas da APEERJ. Exemplifica o emergente interesse pelo tema do ensino, mais
propriamente pela metodologia de ensino de línguas, o enunciado que trata da definição
metodológica a ser privilegiada no sistema escolar. Inscreve-se na ata do dia 17 de março
de 1984:
Figura no 22: Ata XXIV, do dia 17 de março de 1984 (assembleia geral)
O fragmento anterior faz menção ao retorno do ensino de espanhol no 2º Grau.
Compreende-se a oficialização do ensino de espanhol no contexto escolar no Estado do
Rio de Janeiro, a partir de 1983, como fator que propicia maiores condições para a
produção de enunciados sobre o ensino de espanhola num cenário tradicionalmente voltado
para os estudos literários ou linguísticos, sem quaisquer tipos de vínculo com a prática
escolar. Dito de outro modo, a presença do espanhol na escola introduz, ainda que de
forma incipiente, a discussão metodológica nas atas da APEERJ.
Alguns meses após a criação da mencionada comissão da APEERJ para tratar
especificamente da metodologia a ser empregada no ensino do 2o grau, na ata do dia 31 de
julho de 1984, registra-se a aceitação, por parte da Secretaria do Conselho Estadual de
Educação, do currículo programático a ser definido pela referida comissão de professores.
Figura no 23: Ata XVI, do dia 31 de julho de 1984 (assembleia geral)
É importante frisar que o assunto sobre metodologia é inaugurado nas atas da
APEERJ em 19 de novembro de 1982. Na ocasião, no entanto, a discussão é direcionada à
avaliação de manuais didáticos oriundos da Espanha sem considerar as especificidades
exigidas pelo sistema de ensino escolar brasileiro, que, nesse contexto, não possuíam
contornos nítidos.
Figura no 24: Ata XVII, do dia 19 de novembro de 1982
O material didático sugerido pela professora no fragmento é qualificado de duas
formas: trata-se de um material “moderno” e “recém-publicado na Espanha”. A
recenticidade e a origem do material são apresentadas como atributos que o classificam
como adequado ao ensino de espanhol no sistema escolar. Nota-se, ao final do fragmento,
o apagamento das especificidades do ensino de línguas na Educação Básica e no ensino
superior a medida que a professora afirma utilizar o referido material em suas aulas na
universidade.
No que diz respeito ao Congresso Brasileiro de Professores de Espanhol
(CONBRAPES/ CNPE)60
, o evento foi promovido pela primeira vez em 1985, fruto da
parceria entre a APEERJ e a APEESP (Associação de Professores de Espanhol do Estado
de São Paulo). Como indica o nome dado ao congresso, possui caráter nacional e, por
conseguinte, a organização de suas edições bienais, sem nenhuma interrupção, abarcou o
envolvimento de todas as APEs. A primeira menção ao I CONBRAPES nas atas da
APEERJ se deu no dia 31 de julho de 1984, quando se notifica o recebimento de carta da
APEESP com a proposta de organização do evento. O folheto da primeira edição do
congresso e o cartaz segue à continuação.
60
A sigla desse evento inicialmente era CONBRAPES e, posteriormente, passou a ser utilizada a CBPE.
Figura no 25: Folheto do I Congresso Brasileiro de Professores de Espanhol em tamanho reduzido
Em 2011, realizou-se a mais recente edição do CBPE na Universidade Federal
Fluminense, no Estado do Rio de Janeiro. O primeiro registro do interesse da APEERJ em
sediar a última edição do evento consta na ata do dia 20 de maio de 2009, que menciona a
necessidade de estabelecer os representantes da APEERJ que apresentariam o projeto do
evento às demais APEs naquele mesmo ano, na cidade de João Pessoa, ocasião em que se
realizaria o XIII CBPE sob a organização da Associação dos Professores de Espanhol do
Estado da Paraíba (APEEPB).
Na ata seguinte, datada em 06 de agosto de 2009, manifesta-se a oposição da
APEERJ contra a organização do XIII CBPE no que diz respeito à ausência de um fórum
específico para a discussão política durante o congresso e também ao fato de constar na
página do referido evento que o seu público alvo era constituído de “estudantes e
professores brasileiros e espanhóis”. Segue o fragmento da ata:
Quanto à representação da APEERJ no Congresso de João Pessoa, não
ficou definido, a priori, quem o faria. Assim, ficou acertado que os
diretores que estivessem no congresso mencionado apresentariam o
projeto. De qualquer forma, nosso pedido de mesa política e de moção
contra público-alvo constante na página web do evento (“estudantes e
professores brasileiros e espanhóis”) foi efetuado e aceito.
Ata do dia 06 de agosto de 2009
A oposição política contra outra APE inaugurada nas atas da APEERJ integra o
processo de construção identitária dessa entidade, que passa a delimitar, em registro
oficial, distanciamento em relação a determinadas posturas políticas assumidas por outras
associações. Esse afastamento fica evidente no projeto de organização do XIV CBPE, que
prevê amplo espaço para a discussão sobre políticas de implantação do espanhol na
escola61
.
Além do Seminário de Estudos Hispânicos e do Congresso Brasileiro Professores
de Espanhol, anteriormente mencionados, nas atas da APEERJ, se faz menção à
organização de diferentes eventos voltados especificamente para a formação continuada do
professor de espanhol. Dentre os cursos e oficinas criados com essa finalidade, a maioria
foi realizada em parceria com a Consejería de Educación de la Embajada de España de
Educación. A menção ao órgão espanhol é frequente nas atas da APEERJ no que tange a
realização de eventos acadêmicos, dentre os quais fazem parte os cursos para professores.
Na fase inicial da APEERJ, contudo, além da mencionada parceria na realização de
cursos, o apoio da Consejería e da Embaixada da Espanha se estende também a propostas
de publicação de trabalhos, à aquisição de acervo para a biblioteca da APEERJ e à
concessão de bolsas de estudo na Espanha durante muitos anos. Nesse sentido, verifica-se,
nas atas da APEERJ, que o tema denominado em nossa análise como “interação com
representação diplomática”62
, parece reiteradamente vinculado aos temas “bolsas de
estudo” e “ biblioteca da APEERJ”63
.
61
No terceiro capítulo, é feita remissão ao conteúdo programático do XIV CBPE. 14
Esse tema pertence ao campo político educacional, que será contemplado na próxima seção. Nota-se, nas
atas da APEERJ, que o tema “interação com representação diplomática” combina-se regularmente com
outros temas pertinentes aos campos administrativo, acadêmico ou político. A partir da identificação dessas
Em relato sobre o Encontro das Diretorias das APEs, realizado em Brasília, sob a
“convocação”64
do Embaixador da Espanha Miguel de Aldasoro, em 1986, a presidente da
APEERJ elenca dentre as propostas levadas pela entidade ao referido Encontro:
Figura no 26: Ata XXI, do dia 15 de outubro de 1986 (assembleia geral)
A vinda de professores espanhóis para ministrar cursos e conferências no Brasil,
assim como a obtenção de bolsas de estudo e a realização de intercâmbios na Espanha, são
elementos permanentes na pauta de reivindicações da APEERJ em sua fase fundacional.
No que tange especificamente à menção a intercâmbios, sua inauguração nas práticas da
associação se dá desde o seu primeiro estatuto, cujo fragmento é citado em sua ata
fundacional:
Figura no 27: Ata fundacional da APEERJ, dia 15 de outubro de 1981
Sobre a concessão de bolsas de estudo na Espanha, chamam a atenção, na primeira
fase da APEERJ, dois aspectos. O primeiro deles diz respeito à participação ativa da
Embaixada da Espanha nesse processo, visto que a maior parte das bolsas era oferecida
pelo Instituto de Cooperación Iberoamericana, órgão pertencente ao Ministerio de Asuntos
Exteriores 65
.
combinações, pode-se considerar como uma característica das atas da APEERJ a presença de interseções
temáticas regulares. 15
Essa combinação regular entre determinados temas nos permite identificar alguns tipos de interseções
temáticas que se repetem nas atas da APEERJ. O tema 64
Nas correspondências dirigidas à APEERJ referentes às reuniões promovidas pela Embaixada da Espanha
com as APEs, atribui-se a esta o papel de “convocante” das associações. 65
El Instituto de Cooperación Iberoamericana (ICI) foi um orgão espanhol, com sede en Madri, criado em
1979, dependente do Ministerio de Asuntos Exteriores. En noviembre de 1988, el ICI se transformou Agencia
Española de Cooperación Internacional (AECI) , cujo propósito era o de agrupar diferentes Centros
Culturais, de Formação e Oficinas Técnicas de Cooperação sob uma única instituição.Posteriormente,
transformou-se em Agencia Española de Cooperación Internacional para el
Desarrollo (AECID).
A seleção previa da APEERJ dos candidatos a bolsas, então, passava
necessariamente pelo aval da Embaixada da Espanha, justificando, mais uma vez, a
extensa repetição de enunciados nas atas sobre essa entidade nessa materialidade
discursiva.
O segundo aspecto relevante relacionado à concessão de bolsas consiste na
valorização atribuída ao conhecimento adquirido pelos bolsistas durante sua estadia na
Espanha. Quando retornavam ao Brasil, eram imediatamente convidados pela APEERJ
para proferirem palestras, ministrarem oficinas ou participarem de algum tipo de evento
cujo objetivo principal era difundir o aprendizado, concebido como “de ponta”, entre os
demais professores. A transmissão de saberes e de informações adquiridos nos cursos
realizados na Espanha foi uma prática comum na história da APEERJ.
Figura no 28: Ata XXV, do dia 10 de dezembro de 1988 (assembleia geral
A fim de evidenciar uma ruptura na memória da APEERJ, no que tange à visão
sobre os cursos realizados na Espanha, recupera-se à continuação um fragmento da ata de
24 de setembro de 1994, que registra a fala de professora ex bolsista, segundo a qual existe
uma inadequação do curso oferecido na Espanha para os professores, tendo em vista as
especificidades do ensino de espanhol no Brasil. O enunciado a seguir aporta sentidos
contrários ao discurso eurocêntrico, que subjaz as textualidades da APEERJ, segundo o
qual as instituições de ensino espanholas seriam o melhor lugar para a formação de
professores de espanhol.
Figura no 29: Ata de 24 de setembro de 1994
Entende-se o uso das aspas no fragmento como uma forma se expressar a
ambiguidade de sentidos que a palavra “falha” pode instituir. O locutor das atas, ao
registrar o relato da professora ex bolsista, de certa maneira, não se compromete com a
avaliação que ela faz dos cursos realizados na Espanha66
.
Na segunda fase da APEERJ, a presença do tema sobre as bolsas de estudo é
igualmente recorrente. Contudo, percebe-se uma ruptura da tradição espanhola visto que,
nos últimos mandatos da APEERJ, ampliam-se os convênios com instituições latino
americanas propiciando, então, maior oferta de bolsas em países deste mesmo continente.
Desse modo, rompe-se, na história da APEERJ, o clássico binômio concessão de bolsas/
governo espanhol.
No que diz respeito à aquisição de títulos para a biblioteca da APEERJ, a
participação da Embaixada da Espanha foi igualmente incisiva. Diversas vezes, nas atas,
se faz referência a doação de materiais para a APEERJ. O que merece maior destaque
nesta análise, no entanto, diz respeito à frequente discussão durante as reuniões da
APEERJ sobre o uso livros didáticos de origem espanhola para o ensino de línguas no 2o
grau. Como mencionado anteriormente, identifica-se, nas atas da APEERJ do período
fundacional, uma centralização da discussão concernente à metodologia de ensino de
línguas em torno das características de livros didáticos, concebidos geralmente como o
mais novo “método” de ensino de línguas. Com isso, constata-se na fala dos professores a
preocupação rotineira acerca de qual o melhor livro (ou método) para ensinar espanhol no
contexto escolar.
Sobre os materiais que chegavam da Espanha e a influência peninsular no ensino de
espanhol no Brasil, afirma Paraquett (2009) que davam a ilusão de que estaríamos
conectados com o que se produzia de mais novo e moderno na Europa (PARAQUET,
2009). A autora adverte, contudo, que, embora propagassem aderir às abordagens de
ensino de línguas mais modernas, esses materiais continuavam seguindo o modelo
gramaticalista, deixando de lado questões comunicativas, culturais ou discursivas que,
então, começavam a ser pensadas para a aprendizagem de línguas.
A criação da comissão para tratar da metodologia de ensino a ser priorizada no
sistema escolar, a qual se fez referência no inicio desta subseção, indica a necessidade
66
No quinto capítulo, o uso das aspas será tratado mais detalhadamente à luz da classificação proposta por
Authier-Revuz (1995).
instaurada entre os professores na primeira fase da APEERJ de repensarem o papel do
ensino de espanhol no contexto escolar. No entanto, observa-se que, na busca de subsídios
para essa empreitada, os olhares se voltam para as obras trazidas da Espanha, cuja
aquisição, geralmente, atrelava-se ao acionamento de instituições espanholas.
Na ata de 10 de dezembro de 1988, por exemplo, relata-se a solicitação de livros
feita pela APEERJ ao Ministério de Cultura da Espanha para a Universidade Federal do
Rio de Janeiro, para a Universidade Federal Fluminense e para a Faculdade de Filosofia de
Campos. Nessa fase, encontram-se diversas menções favoráveis à aproximação da
associação aos consulados de países de língua espanhola. Um desses enunciados compara a
possível colaboração da Embaixada da Espanha com o procedimento já adotado pelo
Consulado da França.
Figura no 30: Ata XI, do dia 18 de outubro de 1983 (assembleia geral)
Compreende-se que a equiparação entre os órgãos diplomáticos espanhol e francês
como fornecedores de materiais para as associações de professores de alguma forma
naturaliza essa prática, isto é, o tipo de relação entre essas entidades. Atribui-se, nesse
cenário, às entidades diplomáticas, a responsabilidade de suprir as necessidades das
associações e, simultaneamente, a estas caberia apenas o papel de solicitantes do apoio a
ser oferecido pelas referidas entidades.
Observa-se, na materialidade discursiva referente à primeira fase da APEERJ,
traços de uma relação de dependência em relação a instituições espanholas, as quais se
atribui um status superior, tanto no que diz respeito à produção acadêmica concernente ao
ensino de línguas propriamente, quanto no que tange às condições de subsidiar essas ações,
tal como demonstra o lugar centralizador ocupado historicamente pelo governo espanhol
em relação às associações de professores de espanhol.
Na segunda fase da APEERJ, são promovidos diversos eventos direcionados para a
formação continuada dos professores que resultam da atuação conjunta dessa entidade com
a Consejería de Educación. Registram-se nas atas da APEERJ, de 2006 a 2009, nove
cursos de atualização para professores de espanhol resultantes da parceria da APEERJ com
a Consejería de Educación, contando também com a participação de outras entidades como
a Casa de España e instituições de ensino superior das esferas públicas e privadas em
diversas cidades do Estado do Rio de Janeiro.
A seguir, elencam-se os títulos de oficinas apresentadas pela diretoria da APEERJ
no primeiro desses cursos de atualização, realizado entre 5 a 09 de fevereiro de 2007, na
Casa de España:
Los PCN en la enseñanza media: contextualización de conocimientos e
interdisciplinariedad;
Los PCN en el aula: interacción dinâmica entre texto y lector;
Los PCN de Lenguas Extranjeras para o ´Ensino Fundamental´ en análisis;
Los PCN de Lenguas Extranjeras para el ´Ensino Fundamenal´ en práctica e
Los temas transversales y la enseñanza de E/LE67
.
Os títulos mostram claramente a preocupação da APEERJ em ampliar a discussão
sobre o currículo no ensino de espanhol a partir de documentação oficial publicada pelo
Ministério da Educação. É importante ressaltar que as oficinas ministradas, portanto, se
voltam especificamente para particularidades do ensino de espanhol no contexto escolar
brasileiro.
Não podemos deixar de mencionar que, embora este período não seja o foco da
presente análise, nas atas referentes aos biênios de 2002/2004 e 2004/2006, encontram-se
pistas importantes acerca da ampliação do lugar da escola nas práticas discursivas da
APEERJ. Isto é, nesse período são realizados eventos que se voltam diretamente para o
trabalho do professor na educação básica. A título de exemplo, cita-se o “Primeiro Grupo
de Trabalho: Experiencias Exitosas” realizado na UERJ em 2002. À continuação, o cartaz
do evento.
67
As referidas oficinas, nessa ocasião, foram ministradas por membros da diretoria da APEERJ na época, as
professoras Viviane Lima (CPII/ SEE), Talita Barreto (UERJ/ PUC-RJ), Luciana Freitas (UFF) e Dayala
Vargens (UERJ/CPII).
Primer Grupo de Trabajo
EXPERIENCIAS EXITOSAS
29 DE NOVIEMBRE DE 2002
Instituto de Letras/ UERJ
Realización
Figura no 31: Cartaz em tamanho reduzido do 1
o Grupo de Trabalho: Experiências
Exitosas, 2002
Deve-se igualmente atentar para o fato de que a discussão sobre os PCN-LE
(BRASIL, 1998) entre os professores de espanhol é também anterior ao período que aqui
denominamos como fase contemporânea da APEERJ. Durante curso de atualização de
Professores, realizado na Casa de España em 1998, ministrou-se a seguinte palestra: “Una
visión general de los fundamentos teórico-filosóficos de los Párametros Curriculares
Nacionales - Lengua Extranjera”.68
68
Esse evento foi promovido pela Special Book Service da Enterprise/Edelsa, com o apoio da Consejería de
Educación de la Embajada de España en Rio de Janeiro e da APEERJ.
O que distingue a fase contemporânea da APEERJ de outros períodos vivenciados
por essa entidade é a priorização de temas referentes ao ensino de espanhol nas escolas
brasileiras e a crescente participação da diretoria da associação na organização de todas as
etapas dos cursos de atualização de professores, tanto no âmbito administrativo como no
acadêmico. Assumir essas funções atribuiu, nos último anos, à APEERJ, papel ativo tanto
na produção de saberes concernentes ao ensino de espanhol como no gerenciamento do
processo de formação de professores no Estado do Rio de Janeiro.
Após as considerações acerca do movimento temático referente ao campo
acadêmico pedagógico, na seção seguinte, voltamo-nos aos temas que constituem o campo
político educacional.
4.3.3 Campo político educacional
Inicia-se esta seção com a exposição da tabela indicadora dos temas mais
recorrentes nas atas da APEERJ no que diz respeito a sua atuação política nas duas fases
analisadas.
CAMPO POLÍTICO
EDUCACIONAL
1981-1
983
1983-1
985
1985-1
987
1987-1
989
Tota
l
2006
-2008
2008-2
010
Tota
l
TEMAS
Implantação do ensino de espanhol no
ensino regular
14 28 36 40 11
8
3 10 18
Implantação do ensino de espanhol no
ensino não regular
2 2 2 3 9 0 0 0
Articulação com associações
4 15 16 7 40 4 4 8
Interação com representação diplomática
6 7 18 16 47 6 2 8
Interação com esfera governamental 5 9 12 27 53 2 11 13
Articulação com instituições de ensino
nacionais e internacionais
2 1 2 3 8 0 1 1
Concurso/contratação de professores de 0 1 3 10 14 0 3 3
espanhol
Criação de entidade nacional de
representação dos professores de
espanhol
0 0 3 0 3 2 1 3
Organização de documentação sobre a
expansão do ensino de espanhol no RJ
para apresentação em evento acadêmico
0 0 2 0 2 0 0 0
Manifestação dos alunos universitários
em prol da implantação do espanhol
0 0 0 1 1 0 0 0
Elaboração de documento sobre
plurilinguismo
0 0 1 0 0 0 0 0
Confecção de documento de protesto 0 0 0 0 0 1 1 2
Questões sobre o Exame Nacional do
Ensino Médio (ENEM)
0 0 0 0 0 0 1 1
Reconhecimento da atuação política da
APEERJ
0 0 0 0 0 1 4 5
Reconhecimento da atuação da APEERJ 0 0 1 1 2 1 0 1
Divulgação midiática sobre o ensino de
espanhol
0 0 0 1 0 0 2 2
Tabela no 7: Temas do campo político educacional
Na ata de fundação da APEERJ, de 15 de outubro de 1981, registra-se o seguinte
pronunciamento:
Figura no 32: Ata de 15 de outubro de 1981 (ata fundacional da APEERJ)
O interesse pela implantação do ensino de espanhol é manifestado ao longo de toda
a história da APEERJ. Trata-se de uma das suas principais finalidades materializada desde
os seus textos fundacionais. Embora essa entidade tenha historicamente se apresentado
como uma associação exclusivamente cultural69
, na conjuntura atual, é inconcebível negar
a atuação política da APEERJ no que tange à implantação do ensino de espanhol neste
estado. Os registros dessa entidade mostram que a política de difusão do ensino de
espanhol no sistema escolar faz parte das principais ações dessa associação.
A análise das atas possibilita uma subclassificação dos enunciados que vertem
sobre a implantação do espanhol no sistema escolar em diferentes subcategorias: (a) a
atuação da APEERJ frente ao poder público; (b) a atuação da APEERJ em relação às
direções escolares; (c) o acompanhamento da APEERJ acerca da expansão do ensino de
espanhol no Rio de Janeiro e em outros Estados.
Dentre as três subcategorias apontadas, predomina a primeira delas ao longo da
história da APEERJ. As interações com as esferas municipais, estaduais e federais são
relatadas nas atas da entidade ora como planos de ação ora como fatos concretizados pelos
seus integrantes. Pese a dificuldade de averiguar o efetivo cumprimento das ações
planejadas pelos membros da APEERJ, entende-se que o estabelecimento de ditas ações no
plano discursivo como metas prioritárias a serem cumpridas, independentemente da sua
real efetivação, contribui na construção de um projeto político e, portanto, um projeto
identitário dessa entidade.
Ainda que a menção às iniciativas da APEERJ frente ao poder público seja uma
constante nos seus diversos mandatos, apenas as particularidades dos dois períodos
analisados serão contempladas nos parágrafos seguintes.
69
Como antecipado no primeiro capítulo inscreve-se nos registros da APEERJ a denominação associação
cultural. Em ata referente à reunião realizada em 14 de março de 1998, institui-se o seguinte enunciado: “A
Diretora-Presidente agradece em público aos diretores da atual gestão, ressaltando a função da Associação
que é cultural”.
De antemão, deve-se levar em conta que a primeira fase da APEERJ é marcada por
ações em prol da inserção do espanhol que tiveram um resultado positivo. A primeira delas
diz respeito à aprovação, em 1983, do Conselho Estadual de Educação de proposta enviada
pela APEERJ de inclusão do ensino da língua espanhola no 2o grau (ANEXO 19). O
segundo acontecimento trata-se da inclusão do espanhol, em 1985, no vestibular mediante
a solicitação da APEERJ à Fundação Cesgranrio (ANEXO 29). O terceiro, por sua vez,
refere-se à inclusão da proposta popular de emenda ao Projeto de Constituição enviada
pela APEERJ, juntamente como o Sindicato dos Jornalistas e o Instituto Latino-
Americano de Cultura, que estabeleceu a obrigatoriedade da oferta do ensino de espanhol
no 2o grau no Estado do Rio de Janeiro em 1989 (ANEXO 22). Seguem fragmentos das
atas concernentes a esses três acontecimentos em ordem cronológica:
Figura no 33: Ata XV, do dia 26 de maio de 1984 (assembleia geral)
Figura no 34: Ata XVIII, do dia 20 de abril de 1985 (assembleia geral)
Figura no 35: Ata do dia 10 de dezembro 1988
No encaminhamento dos principais acontecimentos da fase fundacional da
APEERJ, a entidade desempenhou papel ativo, instituindo-se como agente efetivo no
âmbito da política de implantação do espanhol. Os três acontecimentos emblemáticos na
fase inaugural da associação, dentre outros, são apresentados nas atas, no decorrer dos
anos, como conquistas da APEERJ atribuindo-lhe autoridade.
Conforme explicitado na tabela anterior, a implantação do espanhol no ensino
regular destaca-se quantitativamente dentre os demais, sinalizando a importância dessa
ação para a associação. Em geral, esse tema aparece vinculado a tentativas de interação da
APEERJ com representantes das esferas governamentais. Na fase fundacional da APEERJ,
contudo, além da articulação com o poder público, o tema da implantação do espanhol na
escola aparece nas atas atrelado à solicitação de apoio a órgãos diplomáticos, em especial,
à Embaixada da Espanha. A título de exemplo, segue, à continuação, fragmento de ata no
qual é registrada a necessidade de pedir apoio ao Cônsul da Espanha para reforçar o
movimento de oferta de vagas para professores de espanhol na rede pública de ensino.
Figura no 36: Ata XXXVII, do dia 16 de dezembro de 1987 (reunião
específica da diretoria)
Nesse aspecto, existe uma ruptura importante na fase contemporânea da APEERJ.
Os movimentos reivindicativos dessa associação frente às esferas governamentais se
instituem de forma desvinculada à representação diplomática espanhola. Não se configura
nenhum tipo de aliança ou solicitação de apoio desses órgãos. Ao contrario do que
acontecia no passado, uma parte das demandas dessa associação dirigidas a instâncias
públicas inclusive se opõe veementemente à atuação do Instituto Cervantes, principal
agência do governo da Espanha de promoção do ensino de espanhol no Brasil.70
Sublinha-se mais de uma vez nesta tese que a ação política é uma característica que
atravessa toda história da APEERJ. Especialmente durante os seus primeiros mandatos,
como já mencionado anteriormente, são expressivas as iniciativas dessa associação em prol
da expansão do ensino de espanhol. Diversas práticas protagonizadas por essa entidade
contribuíram direta ou indiretamente no processo de inclusão do espanhol no sistema
escolar. Além do relato das iniciativas de interação com as esferas governamentais em prol
do ensino de espanhol, o acompanhamento e a avaliação da expansão do espanhol nas
redes escolares e, igualmente, em contextos não escolares, constitui uma rotina
materializada em suas atas desde a sua fundação.
Não obstante, somente a partir de 2006, inscreve-se nas práticas discursivas da
APEERJ o reconhecimento explícito da sua atuação política. Em outras palavras,
inaugura-se na trajetória dessa entidade docente o reconhecimento da politicidade como
elemento inerente as suas ações. Verifica-se na primeira ata do biênio 2006-2008:
Todos os presentes concordaram com a 1ª Diretora Cultural, Elda
Firmo, ao frisar que se fazia extremamente necessário que a
comunidade acadêmica voltasse a reconhecer a relevância da APEERJ,
no que respeita ao fortalecimento político e aperfeiçoamento do corpo
docente centrado nos estudos hispânicos. Para tal, seria
Ata do dia 10 de agosto de 2006 (reunião da diretoria)
Com o uso da expressão “voltasse a reconhecer a relevância da APEERJ”, valoriza-
se o passado remoto da APEERJ e, ao mesmo tempo, admiti-se uma suposta perda em
70
É importante pontuar que o Instituto Cervantes é uma entidade pública, criada em 1991. Diferentemente da
Consejería de Educación, que está vinculada ao Ministerio de Educación, Cultura y deporte da Espanha, o
Instituto Cervantes pertence ao Ministerio de Asuntos Exteriores y Cooperación.
tempos recentes da força de atuação dessa entidade entre os seus pares, “a comunidade
acadêmica”, que precisaria ser reconquistada. É, justamente, nessa ata que, pela primeira
vez, registra-se por escrito a referência explícita ao papel político da APEERJ.
Inicia-se, então, uma nova fase da APEERJ, marcada pela incorporação no plano
discursivo da atividade política como um dos seus principais campos de atuação. O
silenciamento do papel político da associação, que classificava a APEERJ como uma
associação meramente cultural, é finalmente rompido e, assim, essa entidade passa a
afirmar-se como um agente da política de línguas no Estado do Rio de Janeiro. Fragmentos
de atas dessa de reuniões referentes a essa fase, indicam a circulação do termo política
nesses escritos:
Foram discutidas, então, as metas para o biênio 2008-2010.
Primeiramente, a implementação de uma atuação política intensa junto
às Secretarias Municipais e Estadual de Educação em prol da promoção
do ensino de espanhol e da defesa dos interesses do professorado.
Ata 15 de outubro de 2008
A professora Luciana Freitas fez um balanço dos últimos acontecimentos
políticos e ressaltou a atuação na APEERJ. Lembrou que a APEERJ foi a
primeira instituição a se manifestar publicamente contrária a qualquer
ingerência dessa natureza e a convocar a campanha para envio de
cartas ao MEC.
Ata de 11 de agosto de 2009
(4) Política: ficou estabelecido que Luciana Freitas mandaria um
documento com reivindicações à Secretaria Estadual de Educação (SEE)
e que Fábio Sampaio e Cristina Giorgi encaminhariam um documento à
SEE e à FESP, questionando o processo de seleção dos concursos
públicos. Elda Braga ficou incumbida de enviar cartas aos municípios de
Niterói, Angra dos Reis, Caxias, São Gonçalo e Rio das Ostras para
saber sobre a convocação dos aprovados nos últimos concursos.
Ata 10 de dezembro de 2009
Ao reconhecer aqui papel politizador da APEERJ a partir de 2006, não se pretende
negar a intensa atuação política da associação durante toda a sua história, ainda que no
passado não fosse identificada com esse papel. Como antecipado neste capítulo, uma das
frentes de atuação da APEERJ consistia no acompanhamento acerca da realização de
concursos para professores de espanhol no sistema público Esse tema foi recorrente nas
pautas de discussão das reuniões da associação. Segue um fragmento da ata de 20 de abril
de 1985:
Figura no 37: Ata XVIII do dia 20 de abril de 1985 (assembléia geral)
O fragmento anteriormente citado indica a atenção prestada em toda a história da
APEERJ ao funcionamento dos concursos e as práticas de interferência junto às esferas
governamentais visando à efetiva oferta de vagas para os professores de espanhol. O uso
da negação “em não vai „funcionar‟” institui-se como pista para a identificação de um
enunciado subjacente, segundo o qual a realização do concurso para professores estaria
garantida sem maiores complicações. O locutor nega, instaurando-se a polêmica na cena de
enunciação. Abre-se, então, espaço para a discussão71
.
Voltando-se o foco para diferentes momentos da APEERJ, apresentam-se
enunciados pertencentes a distintos fases dessa associação que exemplificam o interesse
pela avaliação do andamento de concursos para professores e, igualmente, o interesse de
estabelecer articulações com o governo para a implantação do espanhol no sistema escolar:
71
O concurso em questão foi o primeiro após a inclusão do espanhol na rede estadual do Rio de Janeiro e
oferecia 600 vagas para professores.
Figura no 38: Ata XXI, do dia 15 de outubro de 1986 (assembléia geral)
(4) Política: ficou estabelecido que Luciana Freitas mandaria um
documento com reivindicações à Secretaria Estadual de Educação (SEE)
e que Fábio Sampaio e Cristina Giorgi encaminhariam um documento à
SEE e à FESP, questionando o processo de seleção dos concursos
públicos. Elda Braga ficou incumbida de enviar cartas aos municípios de
Niterói, Angra dos Reis, Caxias, São Gonçalo e Rio das Ostras para saber
sobre a convocação dos aprovados nos últimos concursos.
Ata do dia 10 de fevereiro de 2009
Além das reivindicações feitas ao poder público em prol da abertura de vagas para
professores de espanhol, nas atas da APEERJ, também se faz menção a tentativas de
interação com as instituições de ensino em defesa do cumprimento da lei da oferta do
espanhol nas escolas. Os trechos à continuação mostram que essa prática integra as
diferentes fases da APEERJ:
Figura no 39: Ata XXXIV, do dia 03 de julho de 1987 (reunião específica da
diretoria)
O secretário Thiago Vinicius fica sendo o indicado para elaborar e enviar
uma carta a todos os associados esclarecendo aspectos da lei de n°
11.161/2005, ressaltando o fato de que sua implementação expirará em
agosto de 2010 e que, por esse motivo, medidas legais só poderão ser
tomadas a partir desse prazo. Na carta, também é necessário pedir que
os associados enviem denuncias de escolas/redes que não estejam
cumprindo a referida lei. Mediante tais denuncias, caberá à APEERJ
entrar em contato com essas instituições/ redes de ensino.
Ata 11 de fevereiro de 2010 (reunião da diretoria)
No segundo fragmento, institui-se o sentido da “denúncia” do não cumprimento da
lei. A APEERJ, amparada na lei 11.161, assume incisivamente o papel de “fiscal” das
instituições de ensino que não seguem a determinação legal.
Diferentemente da articulação com a esfera governamental, que é uma constante
nas duas fases da APEERJ, caracteriza especificamente a sua fase fundacional o
estreitamento da relação dessa entidade com a Embaixada da Espanha no que tange à
solicitação de “apoio” político nas suas ações de reivindicação perante o governo
brasileiro.
Nas atas das reuniões do primeiro mandato da associação, a menção ao
estabelecimento de contatos com órgãos diplomáticos é recorrente. A iniciativa de
interação com essas entidades, prevista desde o seu estatuto, se materializa a partir da
terceira reunião da APEERJ, cujos fragmentos das atas seguem à continuação:
Figura no 40: Ata III, 02 de abril de 1982 (assembléia geral)
A atuação de outras associações docentes é também um tema recorrente nas atas da
APEERJ conforme sinaliza a tabela apresentada no início desta seção. Nas atas, registra-se
o surgimento das associações de professores de espanhol que, ao longo da década de 1980,
vão sendo fundadas em várias regiões do Brasil72
. Repetidamente, se faz menção à
participação de membros da APEERJ em eventos promovidos por outras associações e,
igualmente, são relatadas as ações dessas entidades em prol do ensino de espanhol em seus
respectivos estados.
Nas formas de articulação da APEERJ com outras associações de professores de
espanhol, nota-se a participação constante da Embaixada da Espanha. Como símbolo dessa
posição de intermediadora entre as APEs assumida pela Embaixada, destaca-se a promoção
do “Encuentro sobre la Enseñanza del Español en Brasil” realizado pela primeira vez no
ano de 1986 em Brasília. O objetivo desse evento era reunir, sob o “convite” ou
“convocação” 73
da Embaixada, às diretorias das APEs e a outras entidades envolvidas com
o ensino de espanhol como o Colégio Miguel de Cervantes de São Paulo.
O fragmento seguinte, referente à ata do terceiro mandato da APEERJ, mostra a
participação de várias entidades diplomáticas no encontro das Diretorias das Associações
de Professores de Espanhol:
72
Cronologia das APEs: 1981 (Rio de Janeiro); 1983 (São Paulo); 1985 (Rio Grande do Sul e Paraná); 1986
(Santa Catarina); 1987 (Distrito Federal e Maranhão); 1988 (Minas Gerais e Pará); 1989 (Bahia, Ceará,
Espírito Santo, Pernambuco, Goiás e Amazonas). 73
Esses dois termos são utilizados para referir ao convite feito pela Embaixada a APEERJ para participar da
mencionada reunião.
Figura no 41: Ata XXI, 15 de outubro de 1986
A diversidade de representantes na reunião relatada não anula o lugar de destaque
ocupado pela Embaixada da Espanha, conforme evidencia o enunciado anterior. No inicio
do relato, explicita-se o lugar de anfitrião do “Senhor Embaixador da Espanha em Brasília,
D. Miguel de Aldasoro” em relação às APEs e às demais entidades no encontro provido em
Brasília.
Segue relato sobre a segunda edição do “Encuentro sobre la Enseñanza del Español
en Brasil” que aconteceu em junho de 1987.
Figura no 42: Ata XXIII, 15 de agosto de 1987
Na ata citada, consta o registro de discussão acerca da criação de uma federação de
APEs. Dois anos antes, porém, na ata de 18 de outubro de 1985, relata-se o recebimento de
carta da APEESP com a sugestão de integração das Apes em um órgão nacional. Nas duas
ocasiões, os associados da APEERJ julgaram prematura a fundação dessa entidade74
.
Somente em 19 de setembro de 2003, fundou-se a Secretaria Nacional de Professores de
Espanhol (Senacape), em uma reunião de presidentes de APEs, em Nata, e, quatro anos
depois, seu estatuto foi apresentado e aceito pela APEERJ em 23 de agosto de 200775
.
Levando-se em consideração que uma federação, ao reunir outras entidades sob
uma única autoridade, implica a definição de objetivos comuns e que a atribuição de uma
secretaria, por sua vez, volta-se mais especificamente para a relação administrativa entre
entidades, concebe-se a criação de uma secretaria das associações- Senacape-, em
substituição da proposta de fundação de uma federação, como um indicativo da
inexistência (ou da fragilidade) de um projeto político compartilhado entre as diferentes
associações de professores de espanhol no Brasil.
A primeira iniciativa de criação de um grupo com um propósito político explícito
concernente ao ensino de espanhol se deu em 2009, a partir do surgimento da Comissão
Permanente de Acompanhamento à Implantação do Ensino de Espanhol no sistema
educativo brasileiro (Copesbra). A comissão, porém, não se constituiu apenas de membros
das APEs, mas articulou, em uma só entidade, professores universitários e representantes
74
Constitui o acervo da APEERJ, sem especificação de data, o projeto de estatuto da Federação Brasileira de
Associações de Professores de Espanhol- FEBRASPE, embora nunca tenha sido implementado (ANEXO 27) 75
A Secretaria foi criada em caráter extra oficial e se manteve nessa condição até a presente data.
das APEs de todo o Brasil. Diferentemente da Senacape, a Copesbra surge como entidade
de caráter explicitamente político, cujo papel principal é acompanhar o processo de
implantação do ensino de espanhol na escola. Por fim, é importante frisar que as APEs não
compartilham das mesmas posições em relação às políticas de implantação do espanhol no
Brasil e, portanto, nem todas aderem à Copesbra e a sua pauta de reivindicações.
O sentido de autonomia, que se institui na segunda etapa da APEERJ como traço da
sua identidade, não se restringe a sua relação com a Consejería de Educación de la
Embajada de España. Um segundo trecho registrado em ata desse período mostra que a
preocupação da APEERJ de se manter autônoma do ponto de vista político faz parte de um
processo mais amplo, conforme o enunciado seguinte:
Ressaltou-se a importância de que a representante da APEERJ nas
reuniões mantenha uma postura firme diante de qualquer atitude
considerada como inadequada da direção das reuniões e, também,
demonstre uma posição de independência com relação à APEESP. Como
a reunião se realizará em vários dias, a representante poderá consultar
as demais diretoras da APEERJ que estarão no congresso ou as que
estiverem no Rio, por e-mail.
Ata 23 de agosto de 2007
O trecho anterior merece atenção, pois, pela primeira vez, nas atas da APEERJ,
defini-se a defesa de uma ação de independência em relação aos posicionamentos de outras
entidades. O fragmento traz igualmente vestígios da existência de divergências políticas
entre as Apes e, ao mesmo tempo, assume-se a necessidade que a APEERJ mantenha uma
postura “firme” e “independente” em relação aos demais. A partir de 2006, cada vez mais,
são sublinhados os valores políticos subjazem as ações dos agentes envolvidos no processo
de implantação do ensino de espanhol.
Como antecipado anteriormente, o interesse de revitalizar as ações da APEERJ
tanto no âmbito político com no âmbito acadêmico é registrado nas atas mais recentes da
associação. Conforme a indicação da tabela dos temas reincidentes nas atas, nessa fase da
APEERJ, se faz diversas vezes menção à possibilidade de sua atuação efetiva, atribuindo-
lhe o caráter de associação potencialmente ativa do ponto de vista político e acadêmico.
Foram discutidas, então, as metas para o biênio 2008-2010.
Primeiramente, a implementação de uma atuação política intensa junto
às Secretarias Municipais e Estadual de Educação em prol da promoção
do ensino de espanhol e da defesa dos interesses do professorado. Foi
proposto o envio de cartas às Secretarias com a finalidade de fazer
levantamentos sobre a presença do Espanhol na grade e do quantitativo
de professores, bem como com reivindicações da implantação ou
implementação da disciplina. Em segundo lugar, foi abordada a
continuidade do intercâmbio com as demais Associações de Professores
de Espanhol do Brasil e do exterior, instituições e grupos de
pesquisadores interessados na promoção do ensino de Espanhol.
Ata do dia 15 de outubro de 2008
Passando a outro tópico, todos os membros presentes concordam que,
no âmbito das ações políticas desenvolvidas pela APEERJ no ano de
2009, houve um saldo bastante positivo, mas há ações que ainda
precisam ser trabalhadas.
Ata do dia 11 de fevereiro de 2010
Os trechos indicam o lugar central que as ações de ordem política passam a ocupar
nas atas da APEERJ, constituindo-se como metas prioritárias dos seus mandatos. O
interesse de investir nas ações políticas vai ao encontro da criação, em 2010, pela primeira
vez na história da APEERJ, do cargo de “assessor político”, conforme consta em ata do dia
20 de agosto de 2010.
É emblemática desse período, a promoção de eventos específicos para a discussão
política concernente ao ensino de espanhol e, ainda, a inclusão desse debate nos eventos de
natureza acadêmica, como, por exemplo, a organização da “Mesa Redonda Reflexões
sobre a implementação da lei 11.161”, em 2008, pela APEERJ, no Centro Educacional
Federal Tecnológico Celso Suckow da Fonseca- Maracanã (CEFET)76
.
Teve igualmente expressiva atuação política, a reunião ampliada da APEERJ,
realizada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 11 de agosto de 2009. A pauta
principal da reunião centrava-se na proposta na assinatura de acordo entre o Ministério da
Educação do Brasil e o Instituto Cervantes que, na ocasião, encontrava-se em andamento.
O cerne do acordo, que constitui uma das principais temáticas das atas da APEERJ, estava
76
Participaram dessas mesas as professoras Del Carmen Daher (UFF), Consuelo Alfaro (UFRJ), Marcia
Paraquett (UFF) e representantes das esferas governamentais. O vídeo do evento está disponível em:
<http://www.youtube.com/user/apeerj>.
na capacitação de professores brasileiros para o uso de material fornecido pela instituição
espanhola nas escolas brasileiras.
A reunião fora convocada, em caráter extraordinário, após a divulgação de notícia
sobre o referido acordo nos sites das instituições citadas. Dias antes da reunião, a APEERJ
já havia enviado carta ao MEC solicitando novas informações (ANEXO 7). A resposta
obtida, porém, discrepava das informações encontradas nos sítios do MEC e do IC. Por
esse motivo, a APEERJ solicitara o envio da documentação referente a esse acordo que, até
o dia da reunião, não havia sido apresentada. Segue fragmento com as propostas
resultantes da reunião:
semana o envio da documentação pelo MEC e pelo IC; caso isso não se
concretizar, a APEERJ entrará na justiça para solicitá-los; (2) buscar o
apoio das instituições de ensino superior, coletivos de professores,
escolas, associações e sindicatos envolvidos com o ensino de espanhol e
com a educação, incentivar, especialmente, a manifestação de reitores e
diretores de faculdades de letras e de educação. Nesse processo,
denunciar que este tipo de acordo não ameaça somente o ensino de
espanhol e sim a educação brasileira em geral; (3) entrar em contato
com senadores, deputados e vereadores sensíveis a questões
educacionais e com as comissões de educação do Congresso Nacional,
Assembléias Estaduais e Câmara de Vereadores, bem como os
Conselhos Estaduais e Municipais de Educação; (4) verificar a
possibilidade de transformar a segunda carta da APEESP em um
documento nacional, com adesão de entidades e pessoas físicas, por
meio de um abaixo-assinado on-line. Para isso, propomos pequenos
ajustes no texto, com a finalidade de ampliar para o âmbito nacional
alguns pontos citados que são de caráter estadual; (5) publicar uma
carta sobre o assunto em alguns dos grandes jornais do país. Para isso,
pensou-se no apoio financeiro da ABH que, segundo se supõe, é a única
associação com condições para custear a empreitada; (6) participar da
comissão nacional proposta pela APEESP para pedir uma audiência com
o MEC e acompanhar todo o processo relativo à implantação do espanhol
no Brasil. Foram indicados três nomes para representar o Rio de Janeiro:
Del Carmen Daher (UFF – representante das universidades), Cristina
Giorgi (CEFET – representante da APEERJ) e Marise Ramos (FAETEC/SME
– representante do ensino básico); (7) elaborar um texto com as
conquistas dos governos anteriores em relação à educação brasileira,
como algumas leis e documentos. Mostrar as contradições do governo
assinalando as ações positivas e as negativas; (8) enviar cartas à
imprensa para estimular a realização de reportagens sobre o assunto.
Foi citada a Band News, que seria mais acessível a demandas dessa
natureza; (9) promover um evento para discutir leis da educação
brasileira e os documentos referentes ao ensino de espanhol no Brasil;
(10) preparar uma mesa-redonda sobre o acordo e as políticas
lingüísticas.
Ata do dia 11 de agosto de 2009
Nas deliberações anteriormente citadas, institui-se o projeto da APEERJ de se
articular com diferentes entidades a fim de conter a assinatura do projeto MEC- Instituto
Cervantes e, assim, salvaguardar não apenas “o ensino de espanhol e sim a educação
brasileira em geral” desse tipo de acordo que, supostamente, não contemplaria as
necessidades do sistema educacional brasileiro e subjugaria o papel das universidades
brasileiras como centros de formação docente, assim como as possíveis contribuições
oriundas de pesquisas consolidadas na área do ensino de espanhol no Brasil.
A partir do ano de 2009, as atas da APEERJ sinalizam a adesão da associação a um
discurso que não defende apenas para a expansão do ensino de espanhol “a qualquer
custo”, mas que se propõe à problematização desse processo e da atuação dos agentes nele
envolvidos.
Ainda no ano de 2009, como efeito do acordo MEC- Instituto Cervantes, a APEERJ
promove, com a participação de representantes de quatro Universidades públicas do Rio de
Janeiro que ofereciam Letras-Espanhol, a Mesa Redonda “Ensino e formação de
professores de espanhol no Brasil” nas instalações da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro77
.
Nesse contexto, a articulação entre representantes da Apes e das universidades
brasileiras de várias regiões do país é expandido. Amplia-se a discussão política nos
eventos acadêmicos realizados a partir dessa época sobre a implantação do ensino de
espanhol78
.
A interação com outras associações de professores de espanhol, entretanto, não é
uma novidade na historia da APEERJ. Trata-se de um assunto recorrente em toda a sua
trajetória. Especialmente na sua fase fundacional, inscrevem-se, nas atas da associação,
77
Foram convidados para participar dessa mesa os professores Cristina Junger (UERJ), Giane Lessa
(UFRRJ), Mercedes Sebold (UFRJ) e Xoán Lagares (UFF). 78
O debate ganha maiores proporções com o advento da lista de discussões Eledobrasil, criada no ano de
2009, estreitando as alianças políticas entre associações e professores de espanhol no Brasil.
relatos sobre as conquistas e as dificuldades enfrentadas pelas Apes em todo o país. É,
portanto, uma prática comum a repetida alusão aos boletins informativos, criados por essas
entidades, primordialmente, para estabelecer contato com os seus associados, mas que
também se prestam à divulgação entre as próprias APEs das atividades por elas
desenvolvidas. A inovação concernente às relações entre as APEs na segunda fase da
APEERJ diz respeito à intensificação do processo de politização do debate entre essas
entidades em torno do tema da implantação do ensino de espanhol e dos agentes
envolvidos nesse processo.
Nesse cenário, concebe-se a sanção da Lei 11.161 em 2005, que estabelece a oferta
obrigatória do ensino de espanhol no Ensino Médio em todo o país, como um dispositivo
discursivo que propiciou, nos anos seguintes, a multiplicação de novas práticas e
textualidades referentes ao ensino de espanhol no Brasil. Como já mencionado, com o
advento da referida lei, a APEERJ assume, sobretudo, o papel de “fiscalizadora” da
situação do ensino de espanhol nas escolas. De alguma forma, a APEERJ em longo prazo
já vinha desempenhando esse papel, visto que tentativas de interlocução junto às esferas do
poder público foram ações rotineiras desde os primeiros mandatos da APEERJ, conforme
registram as atas dessa entidade. A alternância entre o papel de propositora de políticas de
implantação do espanhol e o papel de fiscalizadora ou de cobradora do cumprimento das
leis acompanha, portanto, toda a trajetória da APEERJ.
Os espaços de reivindicação, contudo, ampliam-se na fase contemporânea da
APEERJ. Nesse novo contexto a recorrência a gêneros pertencentes ao campo político
torna-se mais frequente. Institui-se nas cartas dirigidas aos representantes do governo um
enunciador mais combativo. Em suma, inaugura-se uma fase de tensão e enfrentamento da
APEERJ contra discursos historicamente consolidados na memória do ensino de espanhol
no Brasil, que também constituem a memória discursiva da APEERJ. Fazem parte desse
movimento rotinas e rupturas de sentidos que tecem os traços da identidade política dessa
associação docente.
4.4 SÍNTESE DO QUARTO CAPÍTULO
O levantamento de temas instituídos nas atas da APEERJ viabilizou um primeiro
mapeamento de sentidos que participam da construção dos traços identitários dessa
entidade docente. A partir da comparação das atas relativas à fase inicial e à fase
contemporânea da APEERJ, observou-se que predomina um relativo equilíbrio entre os
temas mais recorrentes nesses dois períodos. Dessa regularidade do conteúdo temático
atualizado nas atas da APEERJ, infere-se que (a) existe um movimento de continuidade
temática na memória discursiva dessa entidade; no que tange ao dizível nas atas, o presente
não rompe radicalmente com o passado e (b) as restrições inerentes ao gênero ata limitam a
inserção de quaisquer temas nesse gênero. Alguns deles não podem se materializar nas
atas. Fogem a esse tipo de registro.
Em algumas ocasiões, além do mapeamento do que se falava foi preciso trazer à
superfície fragmentos das atas em busca de pistas que explicitassem sentidos constituintes
dos traços da identidade dessa associação. Assim, pese a regularidade temática
predominante nas atas da APEERJ, também foi possível identificar rupturas nessas
textualidades.
A partir da análise das atas, observou-se que atravessa diferentes temáticas a
referência a governamentalidade espanhola. Pode-se pensar esse atravessamento como uma
espécie de interseção temática nas atas, em que diferentes dimensões do eurocentrismo,
representado pelo Estado espanhol, inscrevem-se regularmente nessas textualidades.
Identifica-se, tanto no âmbito acadêmico, como no administrativo e político, traços de
colonialidade que caracterizam a fase fundacional da APEERJ.
Nas atas relativas às últimas gestões da associação, inscrevem-se sentidos que
apontam para busca da APEERJ por maior autonomia no âmbito do saber e no âmbito do
fazer. No campo do saber, nota-se um processo gradual de independência em relação aos
saberes teóricos e metodológicos oriundos da Espanha. Quanto ao âmbito do fazer, o
gerenciamento de atividades promovidas pela associação –sejam de natureza acadêmica,
administrativa ou estritamente política- é cada vez mais desvinculado dos órgãos
representativos da Espanha.
A fim de dar maior visibilidade à transformação identitária vivenciada pela
APEERJ a partir de 2006, propõe-se a ampliação do corpus desta investigação, cujo foco
se voltará, no próximo capítulo, para os documentos públicos de caráter estritamente
argumentativo produzidos por essa associação pela defesa de seus ideais.
CAPÍTULO 5
Diferentes discursividades constituíram o processo de politização da APEERJ ao
longo dos anos. A partir das suas últimas gestões, no entanto, a discussão política explícita
passou a ocupar lugar central nas suas práticas discursivas. Constitui-se como um marco
dessa mudança, a inscrição da palavra política nas atas da APEERJ, cuja inauguração se dá
apenas no ano de 2006. É para esse novo cenário, em que a associação de professores de
espanhol passa a reconhecer publicamente o seu papel como agente da política de línguas
no Estado do Rio de Janeiro e, mais amplamente, no Brasil, que se volta esse capítulo.
Constata-se, nos escritos da APEERJ, que o espaço criado nas/pelas atas de reunião
ao longo dos anos não dá conta das necessidades de intervenção dessa entidade nas
políticas de línguas. Ela lança mão, então, de outros gêneros discursivos, que lhe propiciam
agir diretamente no espaço público. À prática narrativa, organização textual predominante
nas atas, sobrepõe-se a necessidade de argumentar. É para as textualidades de natureza
explicitamente argumentativa que se direciona o foco do presente capítulo.
Após uma primeira leitura do arquivo dessa entidade docente e do levantamento de
temas e sentidos nas suas atas, que apontam para a conquista de maior autonomia, tanto no
que tange ao âmbito do fazer como ao do saber, percebeu-se a necessidade de aprofundar
essa reflexão. Por meio da análise discursiva, objetiva-se identificar posições enunciativas
ocupadas pela APEERJ nos últimos anos que contribuem no processo de construção
identitária dessa entidade docente.
Como material de análise, foram selecionados documentos públicos produzidos
pela associação em sua fase contemporânea com o propósito de convencer aos seus
interlocutores acerca das pautas defendidas por essa entidade. A fim de situar a fundação
de determinados sentidos e discursos atualizados recentemente nas práticas da APEERJ,
foi necessário complementar dito material com textos de natureza similar criados pela
associação de professores de espanhol em sua fase inicial (1981-1989).
Como organização deste capítulo, apresenta-se inicialmente uma categorização dos
gêneros discursivos aqui contemplados. Em seguida, são explicitados os dispositivos
enunciativos utilizados na análise discursiva, para, finalmente, apresentar a identificação
de cinco enunciadores que se instituem nos textos analisados: o enunciador
condescendente, o enunciador especialista, o enunciador pesquisador, enunciador
educador e o enunciador engajado.
5.1. DEBATES PÚBLICOS DA APEERJ: UMA CATEGORIZAÇÃO GENÉRICA
Nos últimos anos, a APEERJ ampliou suas práticas discursivas no debate público.
Para tanto, impôs-se a mobilização de gêneros adequados às necessidades historicamente
construídas dessa entidade. Dentre os gêneros que habitualmente intervêm no debate
público, lançou-se mão das seguintes categorias: carta aberta, manifesto político e abaixo-
assinado79
.
Na tabela a seguir listam-se os documentos com as suas respectivas datas de
produção, os seus assuntos, os seus destinatários e remetentes:
79
Nesta pesquisa, optou-se agrupar esses três gêneros na categoria de cartas públicas. Também foram
identificados nos escritos da APEERJ cartas de natureza estritamente administrativa que não se mostraram
relevantes para o interesse desta pesquisa. Restringimo-nos aos documentos que foram concebidos pela
APEERJ para serem difundidos em uma ampla coletividade.
Data Tipo de
documento Assunto Destinatário Remetente
23/09/2006 Carta aberta
Formação de
professores de
espanhol
População
APEs
(adesão da
APEERJ)
19/09/2006 Manifesto
político Projeto Oye População APEERJ
20/02/2008 Carta aberta
Inclusão do
ensino de
espanhol
Secretaria de
Educação do Estado
do Rio de Janeiro
APEERJ
21/05/2008 Carta aberta
Inclusão do
ensino de
espanhol
Secretaria de
Educação do Estado
do Rio de Janeiro
APEERJ
04/08/2009 Carta aberta Acordo entre o
IC/MEC
Ministério da
Educação APEERJ
13/08/2009 Abaixo-assinado Acordo IC/MEC População APEERJ/
APEESP
(adesão dos
subescreventes)
17/09/2009 Carta aberta
Inclusão do
ensino de
espanhol
Conselho Estadual
de Educação APEERJ
30/11/2009 Carta aberta
Inclusão do
ensino de
espanhol
Secretaria de
Educação do Estado
do Rio de Janeiro
APEERJ
11/12/2009 Carta aberta Concurso
Público
Secretaria de
Educação do Estado
do Rio de Janeiro
APEERJ
11/12/2009 Carta aberta Concurso
Público
Conselho Estadual
de Educação APEERJ
30/07/2010 Carta aberta
Inclusão da
Língua
Espanhola no
Ensino Médio
em cumprimento
da Lei 11.161
População
APEs
(adesão da
APEERJ)
09/08/2010 Carta aberta
Repúdio à nota
do Jornal “O
Globo”
Professores APEERJ
28/01/2011 Carta aberta
Acordo entre
Fundação
Municipal de
Niterói/ IC
Secretaria de
Educação de Niterói
e Fundação
Municipal de
Educação de Niterói
APEERJ
31/01/2011 Carta aberta
Acordo entre
Fundação
Municipal de
Niterói/ IC
População APEERJ
13/02/2011 Carta aberta Acordo entre População APEERJ/
Tal como indica a tabela anterior, o material de análise se constitui de 15
documentos que se subdividem em: 13 cartas abertas; 1 manifesto político e 01 abaixo-
assinado. Dentre os documentos listados, 2 cartas foram produzidas pelas APEs com a
adesão da APEERJ. Uma das cartas foi elaborada em parceria com várias APEs, com a
ABH e a COPESBRA. O abaixo-assinado, por sua vez, resultou de parceria com a
APEESP, contando com a adesão de diversos subscreventes. Os demais documentos são
assinados exclusivamente pela APEERJ. A maior parte dos textos pertence ao gênero carta
aberta. Opta-se, portanto, iniciar a descrição sobre esse gênero para mais adiante fazer
considerações sobre o manifesto e sobre o abaixo-assinado.
Maingueneau (2006) considera a carta um “hipergênero”, tendo em vista a
debilidade das coerções de suas estruturas genéricas. Segundo Marcuschi (2002) trata-se de
um gênero fundador que pode servir para tipificar outros gêneros. Silva (2002), por sua
vez, prefere empregar, no lugar de gênero carta, a expressão “sistema (ou constelação) de
gêneros epistolares” (SILVA, 2002, p.55) para designar o conjunto heterogêneo que agrupa
os variados tipos de cartas.
No que tange especificamente à carta aberta, Maingueneau (2006) classifica-a
como a categorização mais difundida para as cartas que intervêm em debates públicos. Sua
principal característica reside no fato de mobilizar necessariamente uma estrutura de dupla
enunciação, embora essa última possa ser mais ou menos evidente. Sendo assim, a carta
aberta possui dois destinatários ao mesmo tempo: (a) o destinatário atestado, aquele que é
explicitamente especificado pelo texto e (b) o destinatário público ou indireto que, apesar
de não necessariamente explicitado textualmente é explicitado pelo gênero. Afirma
Maingueneau (2006):
A carta pública tira partido dessa propriedade de interpelação
convocando o destinatário indireto; a carta pode ser endereçada a
Fundação
Municipal de
Niterói/ IC
APEESE,
APEMG,
APEEMS,
APEEPR,
APEEAL,
COPESBRA,
ABH
Tabela no 8: Categorização dos documentos públicos da APEERJ 2006-2011
quem quer que seja, pois, de qualquer modo, ela terá por
destinatário um público (MAINGUENEAU, 2006, p.129).
As cartas abertas da APEERJ apresentam três categorias de destinatários atestados,
isto é, invocados textualmente pelo locutor:
Destinatários atestados Modo de inscrição do destinatário atestado
Representantes do governo
Nessas cartas, o destinatário é designado como
“Excelentíssima Senhora Secretária de Educação do
Estado do Rio de Janeiro”; “Excelentíssimo Doutor
Presidente do Conselho Estadual de Educação”, etc;
População
Nesse caso, o destinatário “a população” aparece
inscrito somente no título das cartas, tal como
“Carta aberta à população sobre a formação de
professores de espanhol”; “Carta das associações de
professores de espanhol à população”, etc. Não
existe na abertura da carta um termo vocativo.
Colegas (professores de
espanhol)
Apenas a carta do dia 10 de agosto de 2010, que
consiste em um repúdio ao etnocentrismo cultural e
ao preconceito linguístico materializados em nota
publicada no Jornal O Globo, designa-se o
destinatário como “colegas”. A relação de
aproximação estabelecida com o uso dessa
designação possibilita associar esse destinatário aos
colegas de profissão do remetente, isto é, os
professores de espanhol.
Tabela no 9: Destinatários atestados nos documentos da APEERJ
Do ponto de vista empírico, não se pode precisar ao certo a data e o veículo
utilizado em cada uma dessas interlocuções da APEERJ no debate público. Contudo, a
maioria das cartas abertas, inclusive as que têm representantes do governo como
destinatários atestados, foi disponibilizada pela APEERJ, aos seus associados pelo correio
eletrônico e, mais amplamente, a toda população interessada, por meio do site e do blog da
entidade. Alguns exemplares desses documentos foram inclusive catalogados e são
divulgados até a presente data na Plataforma Permanente para o Acompanhamento da
Implantação do Espanhol no sistema educativo brasileiro80
.
Do ponto de vista enunciativo, as cartas abertas, embora endereçadas a outros
destinatários, têm a propriedade de interpelar o destinatário indireto. Ainda que se explicite
textualmente que existe um destinatário atestado como, por exemplo, a Secretária de
Educação do Estado do Rio de Janeiro, a “carta aberta”, pelas coerções impostas pelo
gênero em questão, determina-se previamente que se dirige, a um só tempo, a um segundo
destinatário. Como adverte Maingueneau (2006), não se trata de uma carta privada
desviada e endereçada ao grande público, pois a sua concepção visa à ação no debate
público.
Portanto, como resultado das coerções desse gênero, nas cartas públicas da
APEERJ, ecoam demandas compartilhadas pelos professores em outros contextos, que se
fortalecem ao serem atualizadas na voz institucional. Ao recuperar os enunciados que
circulam entre os docentes e encaminhá-las duplamente ao governo e à população, a
APEERJ apresenta uma espécie de ação- resposta às solicitações que lhe são feitas pelos
professores.
As considerações anteriores mostram que as cartas abertas não se restringem aos
limites de uma carta de solicitação ou de protesto de uma entidade a quem quer que seja,
pois há nela uma peculiaridade que faz com que todos os seus elementos discursivos sejam
redimensionados: a sua publicidade entre os professores de espanhol. Sumariamente,
observa-se que, ao publicá-la, o enunciador reconfigura a situação de enunciação. A um só
tempo, adere às demandas dos professores e dá visibilidade as suas reivindicações e, com
essa ação-resposta, incentiva-os para que se dê continuidade à mobilização da categoria.
O segundo gênero epistolar que constitui o corpus desta pesquisa é o abaixo-
assinado. Ambas possuem similitudes tanto no que tange ao conteúdo temático, ao estilo e
à estrutura composicional. No que tange ao tema, o abaixo-assinado em análise, proposto,
80
Trata-se de um blog criado em 2009 com o objetivo de juntar informação que permita ajudar a
compreender processo de implantação da lei 11.161/05.
<http://espanholdobrasil.wordpress.com>.
em 2009, pela APEERJ e pela APEESP, trata do acordo entre o Ministério da Educação e o
Instituto Cervantes. Esse tema também está presente em outras cartas da APEERJ81
.
O estilo adotado nesse gênero tampouco é um elemento diferenciador em relação às
cartas, predominando entre eles o estilo objetivo-neutro (BAKHTIN, 2000). Quanto à
estrutura, as duas categorias de cartas públicas dispõem de indicação de lugar, data e
assinatura dos interlocutores. No abaixo-assinado, diferenciando-se das demais cartas da
APEERJ, não é apresentado o seu destinatário. A principal particularidade desse gênero é
que, apesar de ser assinado em primeiro plano por duas associações de professores,
também o constituem um vasto conjunto de assinaturas de professores e estudantes de
espanhol que subscrevem a carta, indicando adesão ao que nele se expõe. O enunciador da
carta é apresentado como “nós, os abaixo-assinados”, instaurando-se, assim, a ideia de um
sujeito coletivo que defende um determinado ponto de vista.
No dicionário de gêneros textuais, Costa (2009) apresenta o seguinte verbete para a
carta abaixo-assinado:
ABAIXO-ASSINADO: requerimento (v) ou petição (v.) subscrito
(a) por várias pessoas, ou seja, documento (v.) coletivo, de caráter
público ou restrito, que torna manifesta a opinião de grupo e/ou
comunidade, ou representa os interesses dos que o subscrevem. O
conteúdo requerido vem no início do documento, como uma
espécie de cabeçalho, geralmente curto e objetivo, seguido da data
e das assinaturas, com ou sem registro de documento de identidade
dos subscreventes, dependendo do caráter público ou restrito do
abaixo-assinado (COSTA, 2009, p.29).
É justamente a adesão de um extenso grupo de pessoas à opinião manifestada na carta
que fortalece a sua capacidade de persuasão e, inclusive, de interferir politicamente em
determinadas esferas da vida social. Grosso modo, pode-se considerar a carta abaixo-assinado
como espaço de mobilização e organização política de uma comunidade discursiva.
Também existem muitas semelhanças entre essas duas categorias de cartas publicas
(especialmente, as que têm como destinatário atestado o público em geral) e o gênero
manifesto político: a extensão, o formato, a circulação, os temas e os interlocutores desses
81
A proposta de Acordo entre o MEC e o IC, conforme explicitado no capítulo 4, ocupa lugar de destaque
nas atas da APEERJ relativas ao segundo semestre de 2009. Trata-se da temática central da pauta da reunião
realizada no dia 11 de agosto de 2009. A insatisfação de professores de várias instituições do país diante
desse acontecimento serviu como alavanca, na ocasião, para a constituição da COPESBRA (Comissão
Permanente de Acompanhamento da Implantação do Espanhol no sistema educativo brasileiro).
escritos. O único manifesto da APEERJ foi produzido em 2006 como expressão de
oposição ao Projeto Oye, que previa a formação de professores da rede estadual de São
Paulo82
. Temáticas similares a essa foram tratadas em cartas abertas da APEERJ no
decorrer dos últimos anos. Pese a aproximação entre os dois gêneros, ambos de natureza
sociopolítica, o manifesto preserva algumas especificidades.
Definições sobre esse gênero são encontradas com maior facilidade nos estudos
literários voltados para os movimentos das vanguardas. Nessa vertente, se insere o trabalho de
Gelado (2006), que recupera algumas noções do manifesto como gênero discursivo. A autora
cita a seguinte acepção proposta por Claude Abastado:
le terme [manifeste] s‟applique [...] à des textes, souvent brefs,
publiés soit en brochure, soit dans un journal ou une revue, au nom
d‟un mouvement politique, philosophique, littéraire,artistique.[...]
Un manifeste a toujours pour effet de structurer et d‟affirmer une
identité. C‟est l‟acte fondateur d‟un sujet collectif. [...] Cet intenté
explique le rituel d‟auto-destination des écritures manifestaires: les
signataires y informent et contemplent en elles une image
spéculaire (ABASTADO apud GELADO, 2006 p. 195-196).
Sob essa perspectiva, a produção do manifesto seria, portanto, uma espécie de ato
fundador de um sujeito coletivo que contribui na construção da identidade do professor de
espanhol. Neste estudo, ainda que, do ponto de vista composicional, estilístico ou temático,
não se diferenciem significativamente a carta aberta e o manifesto político, a inauguração
desse gênero discursivo na história da APEERJ é um marco definidor em sua construção
identitária. Pela primeira vez, no ano de 2006, essa entidade mostra a necessidade de produzir
um manifesto político, ocupando um determinado espaço social que antes não havia sido
mobilizado.
A fim de alinhavar as semelhanças que agrupam os documentos públicos da
APEERJ, elenca-se, à continuação, o seguinte feixe de características comuns:
trata-se de textos concebidos pela APEERJ para serem difundidos em uma
ampla coletividade;
inscrevem-se, na materialidade discursiva, insatisfações da APEERJ em relação
a acontecimentos que abarcam predominantemente a temática do ensino de
espanhol, da formação docente e do trabalho do professor e
82
Mais informações sobre o Projeto Oye são apresentadas no decorrer deste capítulo.
os textos se pautam no modo de organização argumentativo e, portanto, buscam
persuadir os seus interlocutores a partir de posicionamentos acerca dos temas
atualizados na materialidade discursiva.
À continuação, passamos aos dispositivos que foram privilegiados na análise das
cartas públicas.
5.2 DISPOSITIVOS ENUNCIATIVOS: OS CONFRONTOS ENTRE
ENUNCIADORES
A concepção da discursividade como uma representação de realidades pré-
construídas capaz de traduzir ou obscurecer uma realidade anterior e exterior opõe-se aos
fundamentos teóricos da Análise do discurso. Esta pressupõe que o discurso não pode ser
considerado como um instrumento que traduz passivamente uma dada conjuntura, mas
como uma forma de ação (MAINGUENEAU, 2002, p.53) produzida por um sujeito em
um espaço e um tempo determinados, isto é, em uma situação de enunciação.
Todo enunciado, antes de ser esse fragmento de língua natural que
o linguista procura analisar, é produto de um acontecimento único,
sua enunciação que supõe um enunciador, um co-enunciador, um
momento e lugares particulares, esse conjunto de elementos define
a situação de enunciação. (MAINGUENEAU, 2001, p. 5)
A tarefa do analista do discurso é recuperar os “vestígios observáveis”
(MAINGENEAU, 2001, p. 6) deixados nos enunciados pelo acontecimento enunciativo,
tendo como objetivo compreender como se opera discursivamente a construção de
determinados sentidos. Sem perder de vista a situação empírica e os atores sociais, visto
que se refuta o corte que se opera entre o linguístico e o extralinguístico, o foco da atual
investigação recai sobre a enunciação e os seres discursivos. Isto é, interessa-nos
compreender como os sujeitos empíricos se constroem como enunciadores, construindo,
assim, traços de sua identidade.
Parte-se do pressuposto de que é, justamente, dos múltiplos embates entre os
enunciadores que se dá o processo de construção de traços de identidade da APEERJ. O
princípio de que a identidade se constitui por meio do debate com a alteridade vai ao
encontro da própria concepção bakhtiniana do ser humano, segundo a qual este – sempre
situado em um tempo e em um espaço - não pode ser concebido fora das relações que o
ligam com o outro.
A partir da concepção dialógica da linguagem, emprestada à Análise do Discurso
por Bakhtin (2000), Maingueneau (1997) distingue o dialogismo constitutivo do
dialogismo mostrado. Segundo o autor, “o primeiro define as condições de possibilidade de
uma formação discursiva no interior de um espaço discursivo, enquanto o segundo diz
respeito à interdiscursividade manifestada” (MANGUENEAU, 1997, p.123).
Para Maingueneau (1997), o dialogismo mostrado interessa especialmente à AD
por deixar entrever o mecanismo da polêmica, isto é, o embate entre vozes antagônicas no
plano discursivo. Afirma o autor sobre a polêmica:
Cada uma das formações discursivas do espaço discursivo só pode
traduzir como “negativas”, inaceitáveis, as unidades de sentido
construídas por seu Outro, pois é através desta rejeição que cada
uma define sua identidade. Uma formação discursiva opõe dois
conjuntos de categorias semânticas, as reivindicadas (chamemo-las
de “positivas”) e as recusadas (as “negativas”). Note-se que ela
projeta as unidades “positivas” deste Outro sobre as categorias de
seu próprio sistema: para preservar a sua identidade, o discurso só
pode relacionar-se com o Outro do espaço discursivo através do
simulacro que dele constrói (MAINGUENEAU, 1997, p.122)
O rompimento com o tecido de uma formação discursiva é tratado por Authier-
Revuz (1998). Esta propõe o conceito de heterogeneidade enunciativa, do qual é possível
distinguir dois planos de embate com a alteridade: a heterogeneidade constitutiva e a
heterogeneidade mostrada83
.
Fala-se em heterogeneidade constitutiva quando não há marcas de um discurso
primeiro visíveis no fio de um discurso segundo. Nesse plano, o discurso dialoga
constitutivamente com outro discurso. Já na heterogeneidade mostrada, a alteridade pode
ser evidenciada na materialidade linguística a partir de índices linguísticos. A autora
83
Além da perspectiva de Authier- Revuz (1998), o segundo encaminhamento tradicionalmente seguido
pelos estudos que tratam da heterogeneidade discursiva é a abordagem de Ducrot (1984), que operacionaliza
o conceito de polifonia bakhtiniano e propõe a análise de diferentes marcas linguísticas. Nesta pesquisa,
aproveitam-se contribuições dos dois autores.
subdivide esse plano da heterogeneidade em formas marcadas e formas não marcadas. A
primeira constitui-se de marcas explícitas da alteridade, como discurso direto ou indireto,
aspas e glosas que indicam a “não coincidência do dizer”. A heterogeneidade mostrada não
marcada, por sua vez, pode ser identificada através da incidência do discurso indireto livre,
das alusões, da ironia, do pastiche... (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004).
Com o propósito de depreender os movimentos de aproximação ou de afastamento
do locutor em relação aos diferentes pontos de vistas que se atualizam nos escritos da
APEERJ e que põem em evidência os diferentes processos de identificação dessa entidade
docente, lançou-se mão, de diferentes dispositivos enunciativos na presente análise.
Segundo Rocha (2003), a autonomia excessiva entre os dispositivos enunciativos,
nos procedimentos de análise discursiva, revela-se empobrecedora dos resultados a serem
obtidos. O autor considera que:
por intermédio do intrincamento dos diferentes dispositivos
apreende-se mais efetivamente a solidariedade entre marcas
linguísticas que se recuperam no fio do discurso e pistas remetendo
aos processos enunciativos (ROCHA, 2003, p. 141)
Corroborando a perspectiva do autor citado e, levando em consideração que a
heterogeneidade enunciativa pode ser reconstruída a partir de índices variados e, ainda,
respeitando as especificidades do corpus estudado, estabeleceram-se diferentes
dispositivos de análise desta pesquisa. À continuação, elencam-se cada um deles seguidos
de uma breve explicação da relevância que possuem na análise aqui proposta.
Os elementos da cenografia discursiva: Para Maingueneau (2002), a cenografia
é a cena que na enunciação se institui pelo próprio discurso e é validada progressivamente
no processo no desenvolvimento da enunciação. São seus elementos:
- os participantes da locução discursiva (interlocutores): as marcas linguísticas que
instituem o eu e o tu na situação de enunciação servem à presente análise como
porta de entrada para a apreensão de sentidos atribuídos ao enunciador e ao
coenunciador.Nos documentos analisados, inscrevem-se os interlocutores a partir
de diferentes marcas que instituem sentidos a ambos e igualmente ao tipo de
interação entre eles. Para o estudo das relações de personalidade e subjetividade,
lançou-se da perspectiva de Benveniste (1995). Além da correlação de
subjetividade entre a APEERJ e seus coenunciadores, observou-se a correlação de
personalidade entre essa entidade, seus coenunciadores e a atualização da não
pessoa no plano discursivo;
-elementos referentes à cronografia e à topografia discursivas: em contraposição
ao agora e ao aqui, instaurados na enunciação, nas textualidades da APEERJ
instalam-se marcas temporais e espaciais que instituem movimentos de
aproximação ou afastamentos em relação à situação de enunciação. Por meio dessas
marcas, buscou-se identificar o tempo e o espaço da APEERJ versus o tempo e o
espaço do Outro
Processos de designação: as designações mostraram-se categorias produtivas na
análise do embate polifônico pelo fato de manifestarem um ajustamento de determinados
termos a diferentes sentidos e, consequentemente, apontarem para a construção da
distinção do discurso assumido pela APEERJ do discurso assumido pelo Outro. Os modos
de apresentação do enunciador são índices fundamentais no processo de construção
identitária da associação;
Discurso relatado: como uma das manifestações clássicas da heterogeneidade
enunciativa, tem-se o discurso relatado. Nesse fenômeno discursivo, dois acontecimentos
enunciativos são postos em relação, sendo a enunciação citada objeto da citante. O
discurso citado pode ser dissociado através do uso de determinadas marcas explícitas ou
não apresentar nenhuma sinalização. Nos escritos da APEERJ, encontram-se casos de
discurso direto (duas situações de enunciação; a palavra do Outro é recuperada
integralmente), de discurso indireto (uma só situação de enunciação) Há também casos de
modalização em discurso segundo. Authier-Revuz (1998) propõe essa categoria para os
casos em que o enunciador modaliza a sua própria enunciação, mostrando-a como segunda
em relação a outro discurso. A recuperação de partes dos arquivos jurídico e legislativo
referentes ao ensino de espanhol é uma rotina nos escritos da APEERJ;
Modalização autonímica: trata-se de procedimento em que o enunciador
comenta a sua própria fala enquanto ela está sendo produzida (AUTHIER-REVUZ, 1998).
Dentre as múltiplas categorias da modalização autonímica, ressaltaram-se no corpus em
análise a colocação de aspas, forma privilegiada desse dispositivo. Segundo Maingueneau
(2001, p.161), com o uso das aspas, o enunciador abre uma brecha no seu próprio discurso.
Existem vários sentidos propiciados pelo uso das aspas. A classificação de Authier-Revuz
(1998) a respeito dos campos de não coincidência, nos quais o enunciador comenta a sua
fala enquanto está sendo produzida, podem relacionar-se aos quatro tipos “não
coincidências do dizer”:
- a não coincidência interlocutiva: ocorre quando uma maneira de dizer ou um
sentido não são inteiramente partilhados ou quando se reconhece um não eu,
explicitando-se que “as palavras que eu digo não são suas” ;
- a não coincidência do discurso consigo mesmo: ocorre quando se assinala a
presença de palavras pertencentes a outro discurso dentro do seu próprio discurso,
marcando-se, assim, a interdiscursividade;
- a não coincidência entre as palavras e as coisas: quando se assinala que as
palavras usadas não correspondem exatamente à realidade que deveriam designar;
- a não coincidência das palavras consigo mesmas: quanto se procura fixar um
sentido, reconhecendo-se que o sentido é ambíguo;
Ironia: o funcionamento da ironia é semelhante ao das aspas, segundo
Maingueneau (2002), pois em ambos os casos se instaura uma divisão interna da instância
da enunciação. Caracteriza a ironia o fato de o enunciador produzir um enunciado que é
invalidado por ele. A ironia, assim como as aspas, são fenômenos que podem apresentam
diferentes gradações;
Negação: como índice recorrente na polêmica, a negação não poderia de
dispensada como dispositivo da presente análise. No quadro da teoria polifônica, Ducrot
(1987) recorre à distinção entre o locutor (L) e o enunciador (E)84
. O locutor, ao assimilar-
se ao enunciador da negação (E2), opõe-se ao enunciador da atitude positiva (E1) que é
posto em cena no próprio discurso, isto é, é interna ao discurso no qual é contestado, sem
que outro locutor assuma efetivamente o enunciado. A esse tipo de negação, Ducrot (1987)
classifica como “negação polêmica” que, segundo o autor, corresponde a maior parte dos
enunciados negativos e tem sempre um efeito rebaixador” (DUCROT, 1987, p.204).
Ducrot (1987) distingue, além da negação polêmica, mais duas categorias da negação: a
metalinguística e a descritiva. A primeira permite anular os pressupostos do
posicionamento positivo que subjaz a negação. Em “Pedro não parou de fumar, de fato, ele
nunca fumou na sua vida”, o enunciado negado “Pedro parou de fumar” é anulado pelo
locutor. Nesse tipo de negação, segundo Ducrot (1987, p.204) pode ter lugar um valor de
elevação, como em “Pedro não é inteligente, ele é genial”. Quanto à negação descritiva,
84
O conceito de Ducrot (1987) de enunciador é, portanto, distinto da proposta de Maingueneau (1997, 2002).
Maingueneau denomina enunciador e coenunciador aos parceiros da interação verbal, os participantes da
locução discursiva. Em nenhum dos casos, se confundem com os sujeitos empíricos envolvidos em uma dada
situação comunicativa.
Ducrot a considera como um derivado delocutivo da negação polêmica. Afirma o autor:
“Se posso descrever Pedro dizendo “ele não é inteligente”, é porque lhe atribuo a
propriedade que justificaria a posição do locutor no diálogo cristalizado subjacente à
negação polêmica” (DUCROT, 1987, p.204). Rocha e Rodrigues (2010) consideram que
Ducrot não caracteriza satisfatoriamente a distinção entre a negação polêmica e descritiva.
Para os referidos autores, “apenas o conhecimento do universo do debate permite o
reconhecimento efetivo de um enunciador que sustentaria uma afirmativa subjacente a um
enunciado negativo” (ROCHA; RODRIGUES, 2010, p.215-216). Logo, caberia aos
analistas decidir, com base na interlocução que têm com o campo discursivo, se um
enunciado negativo é ou não de caráter polêmico;
Conectivos argumentativos: os conectivos, morfemas cuja função é unir
enunciados, constituem um dos fenômenos contemplados com frequencia pelos trabalhos
voltados para argumentação. Segundo Maingueneau (1997), as teorias linguísticas da
argumentação são essenciais para a AD. Nesta pesquisa, à luz da teoria de Ducrot (1984),
consideram-se os conectivos mas e no entanto como marcas do afrontamento entre
interlocutores e como elementos constituintes da organização textual argumentativa que é
predominante no corpus em foco.
5.3 MAPEAMENTO DE ENUNCIADORES: AS CARTAS PÚBLICAS
Caracteriza este capítulo a recorrência a diferentes dispositivos de análise, visando
à identificação de posições de enunciação da APEERJ constituídas nas cartas públicas
produzidas por essa associação de professores. O levantamento de vozes e de sentidos
antagônicos no corpus propiciaram o mapeamento dos lugares ocupados pelo sujeito que
se constitui a medida que assume determinada posição.
Ao longo da análise discursiva, julgou-se importante recuperar, quando necessário,
textualidades produzidas pela APEERJ nos seus anos fundadores, a fim de elucidar as
relações de intertextualidade e interdiscursividade que se constituem nos escritos mais
recentes dessa associação. Elencam-se à continuação os referidos documentos:
Carta enviada pela APEERJ ao Conselho Estadual de Educação em 26 de
setembro de 1983;
Carta enviada pela APEERJ ao Ministério da Educação em 11 de setembro de
1986;
Carta enviada pela APEERJ à Secretaria Estadual de Educação em novembro
de 1987;
Proposta de Emenda Constitucional encaminhada pela APEERJ ao Presidente
da Comissão Constitucional da Assembleia Constituinte do Estado do Rio de
Janeiro em 1988;
Carta enviada pela APEERJ ao Núcleo de Educação Continuada- RJ em 14 de
março de 1988;
Oficio enviado à Secretaria Municipal de Educação em 15 de agosto de 1988.
85
As pluridades de lugares ocupados pela APEERJ mostram que se confundem, em
uma mesma entidadade profissional, identidades bastantes variadas como as de
condescendente, educador, especialista, pesquisador e engajado. À continuação, segue a
descrição dessas cinco categorias.
5.3.1 O enunciador condescendente
Inicia-se esta seção com um fragmento da carta enviada pela APEERJ à Secretaria
Estadual de Educação em 21 de maio de 200986
:
A obrigatoriedade do ensino de língua espanhola, por sua vez, está pautada
em diversos fatores, entre os quais, destacam-se a necessária integração do
nosso país com seus vizinhos de origem hispânica...
Secretaria Estadual de Educação, 21 de maio de 2009
No mesmo ano, trecho idêntico reaparece em carta do dia 17 de setembro, dirigida
ao Conselho Estadual de Educação. Entende-se a repetição como um índice da importância
conferida pela APEERJ aos posicionamentos que se atualizam nesse fragmento sobre o
ensino da língua espanhola.
85
Ainda que os documentos elencados pertençam a diferentes categorias genéricas, que os vinculam com
outras esferas de atividades sociais, consideramos que contrastá-los com os escritos mais recentes da
APEERJ ajuda-nos a explorar os movimentos de retomadas e de rupturas de sentidos que se instituem nessas
materialidades discursivas, evidenciando casos de intertextualidade e de interdiscursividade nas práticas da
APEERJ. Cabe esclarecer ainda que ainda que se encontre a menção a outros documentos nas atas da
APEERJ, eles não estão disponíveis no acervo da APEERJ. 86
A fim de facilitar a sua visualização, no presente capítulo, transcrevemos os documentos em análise. Os
trechos principais foram destacados em negrito. As letras maiúsculas, contudo, correspondem à forma
original dos documentos.
Com o intuito de analisar o embate entre diferentes discursos e sentidos cujos
vestígios se corporificam no trecho citado, prioriza-se, inicialmente, o nome “vizinhos”,
utilizado no processo de designação dos países hispano-americanos.
Em trabalho dedicado à identificação de contradições no processo de determinações
discursivas na designação dos territórios objeto de integração do Brasil, Rodrigues (2010)
considera que a inscrição de “vizinhos”, nos arquivos jurídico e legislativo analisados pela
autora, remete a “sentidos vinculados ao estabelecimento das fronteiras do país, que desde
o período colonial e, de modo, particular após a segunda metade do século XIX e o início
do século XX, marcou as relações entre o Brasil e os países da América do Sul (
RODRIGUES, 2010, p.175).
Sem desconsiderar as considerações aportadas por Rodrigues (2010), identifica-se,
na inscrição de “vizinhos”, a constituição de outros sentidos que se enlaçam com a ideia de
“fronteira” assinalada pela autora citada. Além da instituição do limite e da separação,
“vizinhos” também atualiza os sentidos da personificação, da proximidade e do conhecido.
São precisamente esses sentidos que, no corpus desta pesquisa, fortalecem o
posicionamento favorável à integração do Brasil com as nações hispano-americanas.
A ideia de solidariedade latino-americana não é, evidentemente, uma invenção da
APEERJ. Segundo Glinkin (1984), remete aos primórdios do processo de emancipação
política das colônias hispano-americanas no inicio do século XIX, fortemente marcado
pelas relações interamericanas iniciadas com Simón Bolívar. Magnoli (1997) adverte,
embora reconheça o bolivarianismo como fonte pioneira da representação ideológica das
Américas, que a representação bolivariana originalmente excluía o Brasil e os Estados
Unidos do conjunto hispano-americano. A representação “América Latina” surge apenas
da dissolução do projeto de integração de Bolívar, que historicamente se opunha ao pan-
americanismo defendido pelo poder norte americano, como forma de demarcação de um
limite ao expansionismo imperial dos Estados Unidos.
A partir de então, várias tentativas de definir a América Latina e propor alternativas
para o seu desenvolvimento cultural e econômico foram apresentadas pelo pensamento
político e por vários campos das ciências humanas. Segundo Otavio Ianni (1995):
Surge pela independência e ressurge em diversas épocas, em cada
país. Bolívar já havia posto claramente o problema. Martí fala em
Nuestra América. Também Betances, Hostos, Sandino, Ingenieros,
Haya de la Torre, Mariátegui, Guevara e outros reabrem o
problema em seus escritos e suas lutas. [...] Ainda que em distintas
perspectivas, preconizam a emancipação das sociedades nacionais
no âmbito da integração, ou confederação, que as projetam; e
favoreçam as suas potencialidades sociais, econômicas, políticas e
culturais (IANNI, 1995, p.106).
Ianni (1995) ressalta a existência de uma diversidade de
posicionamentos políticos e ideológicos que, em contextos amplamente
distintos, recuperaram no pensamento e nas práticas políticas a ideia de
solidariedade latino-americana. Dito de outra maneira, o
latinoamericanismo tem sido constantemente reinventado como
“reações a situações novas que ou assumem a forma de referência a
situações anteriores, ou estabelecem seu próprio passado através da
repetição quase que obrigatória (HOBSBAWN, 1984, p. 10).
“Vizinhos” não é um marco das práticas discursivas recentes da
APEERJ. Tal como se vê na carta à continuação, enviada em 1983 pela
APEERJ ao Conselho Estadual de Educação, o referido termo é
empregado na condição de determinante dos correferentes “países
vizinhos” e “nações vizinhas”. A ideia de que o Brasil deveria se integrar
aos países “vizinhos” constitui uma rotina na memória dessa entidade
desde a década de 1980.
Propiciar, num futuro próximo, integração maior entre os povos latino-
americanos, dando-se condições de melhor relacionamento com os
habitantes dos países vizinhos, já que está o Brasil incrustado entre nações
cujos povos, em sua quase totalidade são falantes da LÍNGUA
ESPANHOLA e apresentam idênticos problemas sócio-econômicos. Este
objetivo está implícito no texto do Parecer no 220/76 desse Egrério
Conselho, quando se observa a necessidade de inclusão do Espanhol entre
as opções de língua estrangeira moderna: “num país como o Brasil, situado
no continente americano e indissoluvelmente ligado aos destinos das nações
vizinhas de língua espanhola, não se compreende a não inclusão do
espanhol entre as opções da língua estrangeira moderna que deve integrar
o núcleo comum da escola brasileira
Carta ao Conselho Estadual de Educação, datada de 26 de setembro de 1983.
Ainda nesse fragmento, emprega-se o discurso direto para atualizar o parecer
emitido pelo próprio Conselho Estadual de Educação de 1976, que é favorável à inclusão
do espanhol no contexto escolar. Ou seja, o enunciador traz ao presente da enunciação um
discurso atribuído ao coenunciador, simulando uma comunhão de interesses entre ambos.
O exemplo põe em evidencia uma formação discursiva em prol do ensino de
espanhol que antecede as práticas dos professores de espanhol na memória legislativa do
Estado do Rio de Janeiro, mas que é, ao longo da história, apropriada por eles
reiteradamente, inclusive em seus escritos mais recentes.
Em 1988, em carta da APEERJ dirigida à Secretaria Municipal de Educação,
recupera-se o Projeto de Constituição Nacional, que se mostra igualmente favorável à
integração latino-americana. Expõe-se, à continuação, o trecho da referida carta:
Considerando a oportunidade da introdução do ensino de LÍNGUA
ESPANHOLA no currículo de 1o grau deste Município, no momento em que
a Assembléia Nacional Constituinte aprova o Art. 5 do seu Projeto de
Constituição, o qual diz que: “O Brasil buscará a integração econômica,
política, social e cultural dos povos da América Latina, tendo em vista a
formação de uma comunidade latino-americana de nações”
Carta à Secretaria Municipal de Educação/ RJ, datada em 15 de agosto de
1988
O discurso relatado na sua forma direta do Projeto Constitucional exemplifica a
contínua recuperação da memória legislativa e jurídica nas práticas da APEERJ a fim de
justificar as razões da implantação do ensino de espanhol. Ao trazer à cena a voz da lei,
reforça-se a existência de uma sintonia entre a política de expansão do espanhol e um
projeto político nacional mais amplo. A APEERJ mostra-se disposta a atender a uma
necessidade do Estado brasileiro. Situação similar é vista em:
O ensino do ESPANHOL, ministrado, como vem sendo, na rede pública
estadual, coincide com os interesses nacionais de integração do Brasil com
os países da América da LÍNGUA ESPANHOLA
Carta à Secretaria Estadual de Educação, datada em 26 de novembro de
1987
A inserção do ensino de espanhol no sistema escolar teria, portanto, uma função
política específica: suprir o isolacionismo do Brasil no continente americano87
.
A defesa do latino americanismo é ainda mais expressiva na
proposta popular de emenda dirigida pela APEERJ à Assembleia
Constituinte em 1988, juntamente com o Sindicato dos Jornalistas
Profissionais do Estado do Rio de Janeiro (SJP-RJ) e o Instituto Latino-
Americano de Cultura. Seguem fragmentos do referido documento:
A língua espanhola compõe com a língua portuguesa instrumento
adequado no processo de libertação técnico-científica, econômico-
financeira e cultural da América Latina, com vistas à instauração de uma
ordem socialmente justa nesta região, de prosperidade e paz para os seus
povos...
...Já daí a pertinência da obrigatoriedade do ensino do idioma de
87
Rodrigues (2010a; 2010b) detecta contradições no processo de construção discursiva, que contribuem para
a constituição de uma memória da identidade nacional que coloca o país numa posição de isolamento com
respeito às nações latino-americanas. Segundo a autora, processos de determinação da designação de
territórios objeto da integração indicam vínculos positivos com o “ibérico” e negativos com o “americano”.
Cervantes, de Sarmiento, de Bolívar, nas escolas públicas fluminenses,
até impor-se como elemento vital para a preservação de uma identidade
cultural latino-americana, em sintonia com a nova política brasileira
dentro da América Latina, de sólida, próspera, irreversível aproximação
entre os povos da região
Proposta Popular de Emenda ao Projeto de Constituição do Estado do Rio de
Janeiro, datada no ano de 1988
Identifica-se, nesses trechos, a recuperação de um discurso
antiditatorial condizente à conjuntura política que caracteriza o final da
década de 1980. A língua espanhola é então concebida como um
“instrumento adequado ao processo de libertação” da América Latina e
como “elemento vital para a preservação de uma identidade cultural
latino-americana”. A língua espanhola, por sua vez, é o idioma de
grandes ícones da literatura (espanhola) e da política (latino-
americana): “Cervantes, de Sarmiento, de Bolívar”. Na inscrição de uma
“nova política brasileira dentro da América Latina”, subjaz a superação
de uma velha política brasileira supostamente descompromissada com a
integração latino-americana.
Em um segundo fragmento da Proposta de Emenda
Constitucional, o enunciador se opõe às ações de uma não pessoa, no
sentido proposto por Benveniste (1995) designada como “comunidade
de interesses”. Segundo o enunciador, “burlando a vigilância do poder
público”, essa não pessoa vem lesando o “tecido cultural brasileiro”.
Como reação a essa postura, o enunciador propõe, ao coenunciador,
isto é, à Assembleia Constituinte Fluminense, formar “ombro a ombro”
o “mutirão latino”. Não se pode desprezar nesta textualidade o
atravessamento do discurso sindical, que, supostamente, resultaria da
parceria entre a APEERJ e o Sindicato dos Jornalistas, ambos locutores
da proposta de emenda.
Como vimos anteriormente, o discurso da integração latino-americana ganha
diferentes matizes de sentidos na memória APEERJ, mas a sua presença institui-se como
uma rotina nas práticas discursivas dessa entidade que se mostra condescendente a essa
política governamental. Dialogando com os textos fundadores, observa-se, nos escritos
mais recentes, que os enunciados sobre o tema da integração dos países latino americanos
são inclusive reproduzidos literalmente, indicando uma espécie de cristalização e
automatização do uso desses enunciados. Compreende-se esse fenômeno como um recurso
argumentativo, condizente ao gênero em análise, que silencia as contradições e as marcas
ideológicas inerentes a essa formação discursiva.
Para além do integracionismo latino-americano, nesta pesquisa, optou-se pelo uso
ampliado da noção de integracionismo para referir às relações do Brasil com outros países
no mundo. Essa noção estaria então vinculada à ideia de uma postura favorável à
integração econômica deste país com o âmbito internacional. Nesse processo, o papel
exercido pela língua espanhola é concebido como essencial.
Extraído da carta aberta da APEERJ ao Conselho Estadual de Educação em 2009,
encontra-se como argumento para a inclusão do espanhol:
...e o fato de o espanhol ser considerado a segunda língua internacional,
demonstrando seu crescimento não somente no Brasil, mas em diversos
países do mundo
Carta à Secretaria Estadual de Educação, datada de 21 de maio de 2009
No fragmento anterior, a afirmação do espanhol como “segunda língua
internacional” é apresentada para justificar a sua obrigatoriedade no sistema de ensino.
Para elevar a relevância do aprendizado dessa língua estrangeira, usa-se a negação em
“demonstrando seu crescimento não somente no Brasil, mas em diversos países do
mundo”.
A elevação do valor de um enunciado por meio do uso da negação é apontada por
Ducrot (1987, p. 204) como uma das características da negação metalinguística. Segundo o
autor, essa categoria de negação, na qual se dá a oposição a um suposto locutor do
enunciado negado, é capaz de provocar, em lugar do efeito habitual de abaixamento da
negação, um valor de elevação. Portanto, no enunciado em destaque, eleva-se a dimensão
geoeconômica do crescimento da língua espanhola e, consequentemente, reforça-se a ideia
que a promoção da sua aprendizagem possa gerar benefícios para à esfera pública.
Pese o reconhecimento da expansão do ensino de espanhol no Brasil nas últimas
duas décadas - propagado com entusiasmo exagerado no discurso midiático - a noção do
espanhol como língua internacional não consiste em uma ruptura na memória discursiva da
APEERJ. Ela está presente nas práticas dessa entidade desde os seus anos fundacionais.
Seguem fragmentos de documentos produzidos pela APEERJ na década de 1980:
Considerando ser a LÍNGUA ESPANHOLA uma das mais faladas no
mundo atual, tanto em número de falantes, como em expansão geográfica
e diversidade cultural...
Considerando que em alguns países europeus o ESPANHOL já é utilizado
como uma segunda língua e que em outros esta medida está prestes a
oficializar-se, como já foi proposto nos Estados Unidos da América...
...Considerando, não só pelos motivos aqui enunciados, como também pelo
desenvolvimento do comercio internacional e, ainda, pela expansão dos
meios de comunicação...
Carta ao Conselho Estadual de Educação, datada de 26 de setembro de 1983
Em distintas textualidades da APEERJ, a legitimação do ensino de espanhol está
atrelada à ideia de que o espanhol constituiria um “produto” valioso e indispensável aos
interesses de cada um de seus aprendizes e da nação brasileira. Institui-se, portanto, uma
visão de língua como instrumento de acesso ao desenvolvimento econômico. A integração
internacional, nessa dimensão, estaria vinculada especialmente a um discurso
desenvolvimentista, segundo o qual o ensino/aprendizagem de espanhol seria um elemento
necessário aos interesses do mercado mundial88
.
É importante salientar que, na materialidade discursiva da APEERJ, ao mesmo
tempo em que se concebe o ensino de espanhol como meio de preservação de uma
comunidade de interesses latino americana, ressalta-se a importância de articulação do
Brasil com outros países que não fazem parte desse agrupamento. Para tanto, o espanhol
seria uma espécie de instrumento de acesso à América Latina e ao mundo e, portanto, ao
desenvolvimento, um instrumento útil ao rompimento do isolacionismo (RODRIGUES,
2010) que caracterizaria historicamente este país.
88
A adoção de uma imagem pública da língua espanhola que a sua afirmação como língua global em
expansão e como língua útil e rentável, segundo Del Valle (2007) fazem parte de uma rede linguístico-
ideológica das políticas contemporâneas de planificação do corpus e o status do espanhol. O tema é discutido
mais amplamente no terceiro capítulo deste trabalho.
A ausência de qualquer tipo de problematização nas práticas discursivas da
APEERJ referente ao processo de integração latino-americana também se dá no que tange
à visão do espanhol como língua internacional. Ambos se instituem como posicionamentos
aceitos monocordiamente. O locutor se apresenta de forma condescendente à política
externa do Brasil e às imposições do mercado. No emaranhado de discursos e sentidos que
constitui a memória discursiva da APEERJ, observa-se, portanto, a configuração de um
enunciador condescendente, caracterizado pela aceitação e submissão às definições
políticas, econômicas e ideológicas traçadas pelo Estado e pelo mercado internacional.
5.3.2. O enunciador educador
Em reação à nota publicada no Jornal O Globo, em 09 de agosto de 2010, a
APEERJ produziu uma carta de repúdio, cujo fragmento segue à continuação. Nesse
trecho, são estabelecidos diferentes correferentes do enunciador: “os professores de
espanhol”, “nós” e “educadores”.
Os professores de espanhol lastimam a opinião da coluna que, indubitavelmente,
não reflete o esforço que nós, educadores, há muitos anos, dedicamos não só à
implantação do ensino de espanhol nas escolas brasileiras, mas, sobretudo, à
construção do respeito à diversidade linguística e de uma visão de mundo mais
justa em relação à cultura latino-americana
Carta aberta, datada de 09 de agosto de 2010
O emprego generalizante do artigo em “os professores de espanhol” evoca o
coletivo dos professores. Para Maingueneau (2002, p.191), por meio do uso dessa categoria
linguística, o “coenunciador é convidado a procurar, num contexto determinado, o
conjunto máximo de objetos assim designados”. Nesse caso, não são apenas os membros
da APEERJ ou a sua diretoria que lastimam a opinião da coluna, mas a coletividade dos
professores de espanhol. Com a inscrição da marca de pessoa “nós”, a APEERJ passa,
então, a se incluir no grupo de professores insatisfeitos com a publicação do colunista.
Lançando mão da perspectiva de Benveniste, Maigueneau (2002, p.127), afirma que o
“nós” não é uma soma de indivíduos, mas um sujeito coletivo compacto, embora a
predominância do “eu” seja muito forte. Na qualidade de coletivo, a legitimidade da crítica
feita pelo locutor ao jornal é ainda mais fortalecida.
Posteriormente, a inscrição de “educadores” complementa o processo designativo
do locutor, propiciando novos sentidos à enunciação. A APEERJ apresentada, em um
primeiro momento, como um coletivo ampliado de professores de espanhol, em seguida,
recebe nova designação. O fenômeno indica uma espécie de tentativa de preenchimento de
uma lacuna de sentidos que o grupo nominal “professores de espanhol” parece não suprir,
justificando-se a instauração de “educadores”.
A concorrência entre o uso das designações “professor” e “educador” remete a
formações discursivas nas quais se encontram diferentes visões sobre o papel dos
profissionais do campo educacional. Deve-se levar em consideração que essas escolhas
lexicais colocam “em circulação significações múltiplas e contraditórias”
(MAINGUENEAU, 1997, p.136-137). Daher e Sant‟anna (2009, p.17) situam nas décadas
de 1980 e 1990 a inscrição da referência “educador”, resultante de reações a uma
concepção de formação de professores técnica e funcionalista. Com fundamento em
discursos de base marxista, buscava-se, naquele contexto, a um só tempo, desestabilizar a
ideia de educação neutra e enfatizar o compromisso com a prática pedagógica como
elemento primordial do trabalho do professor.
O uso da negação e do conetivo “mas” no trecho em análise constitui índice
importante para observar o embate entre as distintas concepções existentes acerca do
trabalho do professor de espanhol. Em “há muitos anos, dedicamos não só à implantação
do ensino de espanhol nas escolas brasileiras, mas, sobretudo, à construção do respeito à
diversidade lingüística...”, a negação metalinguística assinala o confronto entre dois
locutores: um que define o a APEERJ como entidade dedicada exclusivamente à
implantação do espanhol e outro que nega essa posição e identifica outras ações de
natureza político educacional dessa associação. O emprego do conectivo mas, por sua vez,
fortalece o segundo argumento em detrimento do primeiro, ou seja: “(nos dedicaremos) à
constrição do respeito à diversidade...” está entre as prioridades da APEERJ.
Em carta dirigida à Secretaria de Educação e à Fundação Municipal de Niterói, em
28 de janeiro de 2011, incide, mais uma vez, a designação “educadores”. Nesse mesmo
documento, inscreve-se outra designação aos professores de espanhol que é rejeitada pelo
locutor: “implementadores de métodos idealizados por aqueles...”.
...consideramos que, como educadores, não podemos dar vez a esse
princípio... Seremos apenas implementadores de métodos idealizados por
aqueles que pouco ou nada sabem acerca da realidade de nosso
alunado?...
Carta à Secretaria Estadual de Educação e Fundação Municipal de
Educação de Niterói, datada de 28 de janeiro de 2011
Identifica-se, nesse fragmento, uma não coincidência entre as palavras do
enunciador com a designação “implementadores de métodos idealizados por aqueles...”.
Esta é, então, atribuída a uma não pessoa (BENVENISTE,1995). Constituem a não pessoa
que não participa da interlocução entre a APEERJ e o poder governamental: os que “pouco
ou nada sabem acerca da realidade de nosso aluno”.
Observa-se, nas textualidades da APEERJ, que, à tematização do ensino de
espanhol, subjazem visões de língua, do papel do professor e da escola. A fim de dar
prosseguimento a esta reflexão, apresenta-se um segundo fragmento da mesma carta
anteriormente citada:
... as aulas em cursos livres não condizem com a proposta de ensino de
espanhol como língua estrangeira em nossas escolas, conforme é possível
comprovar nos documentos norteadores da educação brasileira, como PCN
e OCEM. Nestas, é imprescindível dispensar séria atenção à
heterogeneidade cultural e linguística, à educação intercultural à
promoção da autonomia e da co-responsabilidade social de nossos alunos
Carta à Secretaria Estadual de Educação e Fundação Municipal de
Educação de Niterói, datada de 28 de janeiro de 2011
Em primeiro lugar, nota-se a inscrição das marcas topográficas “em cursos livres” e
“ em nossas escolas” que são apresentadas de forma polarizada. O uso da marca de pessoa
“nossas” deixa a pista de que é a escola o espaço de pertencimento do enunciador,
deixando os cursos para um plano secundário.
Com o uso da negação polêmica em “... as aulas de cursos livres não condizem com
a proposta de ensino de espanhol como língua estrangeira em nossas escolas”, nega-se a
afirmativa subjacente de que os cursos livres estariam aptos a atuarem nas escolas. Para
tanto, recorre-se à voz oficial do governo, materializada nos PCNs e nas OCEM, que vai ao
encontro da posição defendida pelo enunciador, segundo a qual o papel do ensino de
línguas na escola é insubstituível pelo curso livre.
Em sintonia com o fragmento anteriormente citado, o discurso sobre a dimensão
educacional do ensino de línguas se materializa, nos seguintes trechos à continuação,
vinculado à noção de formação de cidadãos:
...lutaremos contra qualquer iniciativa que não esteja de acordo com as leis
e que fira os interesses dos professores e alunos de espanhol da Educação
Básica, que têm o direito a uma educação de qualidade para a formação de
cidadãos conscientes e atuantes
Carta aberta à população, datada de 23 de setembro de 2006
A língua espanhola de ser, portanto, uma forte aliada à formação cidadã,
que no ambiente escolar encontra espaço mais propício ao seu
desenvolvimento. Conforme se acentua nas OCEM (2006, p.131), o ensino
de espanhol na escola brasileira “precisa enfim, ocupar um papel
diferenciado na construção coletiva do conhecimento e na formação do
cidadão”. Como se vê, nas salas de aula, deve-se ir muito além do ensino de
estruturas linguísticas desvinculadas da interação, da história política e
sociocultural de seus partícipes
Carta à Secretaria de Educação de Niterói e à Fundação Municipal de
Niterói, datada de 28 de janeiro de 2011
A partir do grupo nominal “formação de cidadãos”, que no segundo fragmento
inscreve-se atrelado ao espaço “do ambiente escolar”, da “escola brasileira”, “da sala de
aula”, é possível identificar a incorporação de uma formação discursiva do campo
educacional relativamente recente. Ainda que a fundação da cidadania remeta à
Antiguidade, é somente em meados do século XX, com as grandes transformações dos
objetivos políticos da escola, que a noção de educação para a cidadania é instituída nas
práticas educacionais.
Segundo Cardoso (2009, p.146-147), a educação para a cidadania resulta da
transformação histórica da educação cívica. Afirma o autor:
A “educação para a cidadania” do século XX pretendeu romper
com o moralismo da “educação cívica” do século XIX, mas herdou
dela o intuito de intervir efetivamente junto aos alunos para torná-
los cidadãos. A diferença mais visível entre a “educação cívica” e a
“educação para a cidadania” reside no fato de a primeira
caracterizar-se historicamente como uma disciplina escolar,
enquanto que a segunda pretende atingir os alunos não apenas por
meio de uma disciplina, mas pela atuação conjunta de várias
delas... (CARDOSO, 2009, p.146-147)
Diferentemente do discurso integracionista contemplado na seção anterior, as
noções de formação e cidadania atribuídas ao ensino de espanhol instituem uma efetiva
ruptura na memória da APEERJ em relação aos seus anos fundadores. Nas textualidades
mais remotas dessa entidade, não há referência à formação da cidadania do alunado ou a
dimensão educacional do ensino de línguas. Ainda que tenha sido feita breve menção ao
crescimento do aluno como “cidadão do mundo” e à “formação do aluno” em cartas
enviadas pela APEERJ à Secretaria Municipal de Educação-RJ em 1988 e ao Ministério da
Educação em 1986 respectivamente, os sentidos conferidos a essas expressões, nas
referidas ocasiões, remetiam muito mais ao conhecimento da cultura do outro e,
consequentemente, à inclusão/aceitação desse sujeito pelo outro do que propriamente ao
conhecimento da sua realidade social e à educação para a cidadania. Segue exemplo:
[...] na certeza de que a inclusão desta terceira língua favorecerá a
ampliação do universo cultural do aluno da escola municipal e seu
crescimento como cidadão do mundo e, muito particularmente, como
integrante da grande comunidade latino-americana de nações, irmanadas,
todas, no esforço pelo desenvolvimento econômico, político, social e
cultural.
Carta à SME, 15 de agosto de 1988
Entende-se a instituição de valores educacionais nas práticas discursivas da
APEERJ como fruto de mudanças mais amplas no campo da Educação, nos estudos da
Linguagem e, igualmente, no processo de profissionalização do professor de língua
estrangeira neste país. No que diz respeito à profissionalização dessa categoria, a criação
das habilitações específicas nos cursos de Letras, embora tenha constituído um marco
importante nesse processo, não pode ser desvinculada da construção de um corpo de
saberes que respondam às necessidades da escola básica e, consequentemente, a
qualificação para o trabalho (DAHER, 2011).
No que tange à profissionalização dos professores nas práticas discursivas da
APEERJ, observam-se algumas pistas do embate entre diferentes posicionamentos,
conforme o fragmento que segue:
É com surpresa e muita indignação que recebemos hoje a notícia anexa,
publicada na imprensa, sobre um acordo entre o Instituto Cervantes e o
MEC para a “formação” de professores de espanhol no nosso país.
Devemos lembrar que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação nacional,
em seu artigo 62, afirma (grifo nosso): “A formação de docentes para
atuar na educação básica far-se-á em nível superior, em curso de
licenciatura, de graduação plena, em universidades e institutos superiores
de educação... Desconhecemos o conteúdo do referido acordo para a
“formação” de professores, mas, segundo as informações que possuímos
até o momento, o Instituto Cervantes não é uma universidade ou um
instituto superior de educação e, portanto, não está habilitado a oferecer
cursos de licenciatura no Brasil
Carta ao MEC, datada de 04 de agosto de 2009
Mais uma vez, verifica-se um caso de discurso direto na materialidade analisada.
Nesse exemplo, contudo, cita-se parte do artigo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB), que trata da formação de professores para atuar na educação básica.
Por meio do uso de aspas e negrito89
, recupera-se literalmente o texto da lei, que
atribui exclusivamente às universidades a formação de docentes, deslegitimando-se
qualquer outra instituição interessada em exercer dita função. Dessa forma, o enunciador se
opõe à suposta proposta de acordo entre o Instituto Cervantes e o Ministério da Educação
que abarcaria a formação de professores.
A palavra formação aparece duas vezes aspeada no texto, constituindo um caso de
modalização autonímica. Segundo Authier-Revuz (1998), as aspas desempenham uma
função de distanciamento em relação ao espaço enunciativo e, assim, indicam um vazio a
ser preenchido interpretativamente. Nas ocorrências do termo “formação”, além de chamar
a atenção do leitor para que ele preencha essa lacuna, resulta do uso das aspas a não
coincidência do discurso consigo mesmo: é feita a referência à outra fonte enunciativa,
pois se atribui a responsabilidade do dito à imprensa que noticiara na ocasião o referido
89
O trecho da LDB encontra-se originalmente destacado na carta em negrito.
acordo entre o MEC e o IC e que empregara o termo “formação”. Também se nota uma
espécie de estranhamento do locutor a respeito do emprego inadequado da palavra
“formação” na notícia, visto que essa atividade, do ponto de vista legal, estaria restrita às
universidades e às instituições de educação superior.
Outra estratégia utilizada para desqualificar o IC como instituição formadora de
professores consiste no uso da ironia inscrita em: “... segundo as informações que
possuímos até o momento, o Instituto Cervantes não é uma universidade ou um instituto
superior de educação”. Utiliza-se a modalização em discurso segundo (MAINGUENEAU,
2002 p.139) para indicar que, com base nas informações compartilhadas pelo locutor, o IC
não haveria mudado as suas atribuições institucionais e, portanto, não seria uma instituição
formadora. Com o uso do discurso segundo, nesse caso, se institui o sentido de ironia, pois,
em nenhum momento, cogita-se efetivamente a possibilidade do IC ter sido convertido em
uma universidade ou instituto de formação.
Ainda nesse mesmo trecho, o uso da negação chama a atenção como marca
polifônica. Em “o Instituto Cervantes não é uma universidade ou um instituto superior de
educação e, portanto, não está habilitado a oferecer cursos de licenciatura no Brasil”,
observa-se, em primeiro plano, um caso de negação descritiva, seguido de uma negação
polêmica. Na primeira negativa descreve-se apenas o status institucional do IC. A segunda
negação, contudo, trata-se de uma negação polêmica, da qual subjaz o enunciado, segundo
o qual, o IC, mesmo sem ser uma universidade, estaria habilitado a formar professores de
espanhol. Tomando como base a descrição da primeira negação, o locutor contesta a
posição favorável à atuação na formação docente.
Tal como no fragmento anterior, encontra-se uma ocorrência da palavra formação
entre aspas no manifesto produzido pela APEERJ contra o Proyecto Oye , assinado, no ano
de 2006, pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo e pelo banco Santander
Banespa. Segue um fragmento do referido manifesto:
Diante do projeto de “formação” à distância de professores de espanhol
assinado pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo e pelo banco
Santander Banespa, com a parceria do Instituto Cervantes e de universidades
públicas do estado de São Paulo, nós, membros da diretoria da Associação
de Professores do Estado do Rio de Janeiro (APEERJ) ...
...A meta final do referido projeto (segundo o texto disponível em HTTP://
cenp.edunet.sp.gov.br/índex.htm) é que, no ano de 2010, 45.000 docentes
estejam supostamente “capacitados” para o ensino da língua espanhola nas
escolas públicas de ensino médio de São Paulo.
Manifesto de 19 de setembro de 2009
No manifesto, a APEERJ se opôs ao projeto, coordenado pela Universia Brasil e pelo
apoio do Instituto Cervantes, cuja meta era a oferecer um curso de 600 horas para
professores que atuavam na rede estadual em qualquer disciplina a fim de que, após a sua
conclusão, estivem aptos a ensinar espanhol nas escolas. Nota-se, uma vez mais, na
inscrição de “formação” e “capacitação” entre as aspas, que o enunciador aponta para essas
palavras indicando que ele não as assume. No caso de “capacitação” as aspas são
reforçadas pelo modalizador “supostamente”. Assim, desqualifica-se o papel das
instituições envolvidas no projeto Oye como formadoras ou capacitadoras de professores
de espanhol para a escola brasileira.
Em carta redigida pelas APEs em 2006, a formação de professores também é
mencionada:
Tendo em vista a existência de projetos que visam a uma formação
inadequada de professores de espanhol, insistimos em que seja respeitada a
legislação brasileira vigente que atribui às Instituições de Ensino Superior
(IES) a formação de professores da Educação Básica, em cursos de
Licenciatura com uma carga mínima presencial de 2.800 horas em, pelo
menos, três anos...
Carta aberta à população, datada de 23 de setembro de 2006
No fragmento anterior, recorre-se igualmente à legislação brasileira, reformulando-
a com suas próprias palavras. A menção ao arquivo jurídico sinaliza, contudo, que o
locutor não é o responsável pelas informações proferidas, mas o Estado, garantindo, assim,
maior legitimidade ao dito.
Vale frisar que, nas textualidades da associação da década de 1980, tampouco se
encontram referências à formação de professores. Faz-se apenas menção à existência de
uma “preparação sistemática de professores” e de um “professorado apto no exercício
pedagógico”, que é apresentada como argumento para a realização de concursos públicos
e, consequentemente, para a implantação do espanhol no sistema escolar. Seguem os
fragmentos nos quais se inscrevem as expressões citadas anteriormente:
Considerando que nas três Universidades oficiais do Grande Rio há
preparação sistemática de professores de ESPANHOL, o mesmo
ocorrendo na Faculdade de Filosofia de Campos;
Considerando que a introdução do ESPANHOL no segundo grau já
encontraria, portanto, um professorado apto ao exercício dessa atividade.
Carta ao Conselho Estadual de Educação, datada de 26 de setembro de 1983
...e, conforme o Parecer no 122/84 do Egrério Conselho Estadual de
Educação, receba o ESPANHOL o tratamento que permita sua plena
implantação na escola de 2o grau, o que exige, como base, a existência de
um professorado apto ao exercício pedagógico, habilitado para tal por
aprovação em concurso público
Carta à Secretaria Estadual de Educação-RJ, datada de 26 de novembro de
1987
A distinção entre os sentidos que decorrem dos grupos nominais “formação de
professores” e “preparação de professores” está relacionada a formações discursivas
diferentes acerca do trabalho do professor e da sua profissionalização. Candau (apud
DAHER; SANT‟ANNA, 2009, p.17) situa nos anos 1960 a consolidação da expressão
formação de professor, que, nesse período, começa a se destacar na área de Educação.
Nesse momento, segundo as autoras, predominava uma concepção técnica e funcionalista,
segundo a qual a formação de um professor dependia exclusivamente da sua
instrumentalização ou do treinamento para que fosse capaz de utilizar determinados
métodos em sala de aula.
Contra esse posicionamento, confronta-se o seguinte enunciado que, com o uso do
modalizador “suposta”, identifica a voz do outro, colocado à distância pelo discurso e
evidencia que a palavra formação não corresponde exatamente à realidade que deveria
designar.
do que não precisamos são acordos com instituições estrangeiras para uma
suposta formação de professores, atividade que nossas universidades
desenvolvem muito bem, apesar de todas as dificuldades, há muitos anos
Carta ao MEC, datada de 4 de agosto de 2009
As textualidades da APEERJ permitem identificar, então, a constituição de um
enunciador educador que adere, a partir da constituição de posicionamentos que vinculam
o ensino de línguas estrangeiras não só à formação cidadã do alunado, mas também aos
enunciados que estendem as preocupações educacionais ao âmbito da formação de
professores.
5.3.3. O enunciador especialista
Nas textualidades que integram o corpus desta pesquisa, identificam-se enunciados
que atribuem à APEERJ a imagem de detentora de saberes concernentes à profissão do
professor de espanhol. Alguns desses saberes são relativos às leis que regem o ensino de
espanhol no Estado do Rio de Janeiro e no Brasil.
A recuperação de elementos dos arquivos jurídico e legislativo sobre o ensino de
espanhol é frequente nas cartas produzidas pela APEERJ, conforme os exemplos:
Nosso Estado foi o primeiro a incluir a Língua Espanhola na grade curricular das
escolas da rede, ainda em 1984. O Conselho Estadual de Educação apreciara a
demanda, por solicitação desta Associação, em 16/02/1983 e, com a defesa do
Conselheiro Dinamérico Pombo e total apoio do então Presidente, Bayard Boiteux,
decidiu aprová-la.
Em 1989, a Constituição do Estado do Rio de Janeiro incluiu a Proposta
Popular, liderada pela Apeerj, pelo Instituto Latino-Americano de Cultura
(ILAC) e pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Estado do Rio de
Janeiro, que determina o ensino obrigatório de língua espanhola no nível
médio da Rede Estadual...
Carta ao Conselho Estadual de Educação 17 de setembro de 2009
Consideramos que a Resolução Secretaria Estadual de Educação no 4359,
publicada no Diário Oficial do Rio de Janeiro de 19 de outubro de 2009,
cumpre satisfatoriamente a Lei no 11.161/2005, que dispõe sobre a
obrigatoriedade da oferta do espanhol no ensino médio, no máximo, até o
ano de 2010. Convém recordar que a importância dessa disciplina na
Escola Básica é oficialmente reconhecida pelo nosso Estado desde 1984,
quando o Rio de Janeiro fez-se o pioneiro na inclusão do idioma na grade
curricular das escolas da rede por solicitação desta Associação
Carta à Secretaria Estadual de Educação de 30 de novembro de 2009
No primeiro fragmento, o locutor apresenta ao Conselho Estadual de Educação
relato acerca da aprovação da inclusão do espanhol em 1984 pelo próprio Conselho. Nota-
se a inscrição do enunciador por meio das marcas de pessoa em “nosso Estado” e “desta
associação” que desempenham a função de aproximar os coenunciadores. O uso do
possessivo em “nosso Estado” aponta para o compartilhamento entre eles de mesmo
espaço, de uma única origem: o Estado do Rio de Janeiro. Além desse laço entre os
partícipes da interlocução- o governo e a APEERJ- se acercam na enunciação por serem
apresentados como agentes em um acontecimento pioneiro: a aprovação governamental de
inclusão da língua espanhola na grade das escolas em 1984 em resposta à solicitação da
APEERJ.
Em carta dirigida ao MEC, em 2009, a exposição de dados numéricos oriundos de
pesquisas institucionais propicia o fortalecimento da autoridade da APEERJ que se
constitui como entidade detentora de saberes sobre a temática do ensino de espanhol no
Brasil.
...segundo dados proporcionados pelo próprio MEC por intermédio do
INEP, há no Brasil hoje 382 cursos autorizados ou reconhecidos de
graduação em Letras- Espanhol...
Carta ao MEC, datada de 04 de agosto de 2009
É importante observar que, fazendo uso da modalização em discurso segundo, o
locutor apresenta ao Ministro da Educação, Fernando Haddad, seu interlocutor,
informações oferecidas pelo próprio MEC, por intermédio de consulta ao Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). Reforça-se, assim,
a autoridade e a legitimidade da APEERJ como associação que possui saberes
concernentes à educação brasileira.
Assim como em diversas textualidades da APEERJ, nos fragmentos à continuação,
a atualização dos arquivos jurídico e legislativo institui-se como argumento para justificar
demandas da APEERJ em prol de medidas concretas para a inserção do espanhol no
sistema escolar, como abertura de vagas em concursos e melhorias nas condições de
trabalho do professor.
Com a aprovação, em fevereiro de 1984, e devida homologação da
proposta da APEERJ, a Secretaria Estadual de Educação-RJ acionou
mecanismos para a implantação do ESPANHOL nos estabelecimentos de 2
grau da rede pública, aí incluída a realização, em 1985, de concurso
público...
Abaixo-assinado à Secretaria Estadual de Educação, de 25 de novembro de
1987
...o oferecimento de VAGAS DE LÍNGUA ESPANHOLA na rede oficial
deste Estado, conforme preconiza o parecer... no 122/84 do CEDERJ, que
incluiu a “LÍNGUA ESPANHOLA como acréscimo à Área de
Comunicação e Expressão, prevista para o Segundo Grau
Oficio à Secretaria Estadual de Educação, de 14 de março de 1988
Constitui-se, então, um enunciador especialista, que é conhecedor das políticas
educacionais referentes ao ensino de línguas. Esse conhecimento é indispensável na
constituição da sua autoridade como entidade representativa dos professores.
Há um segundo elemento que é também responsável pela atribuição do sentido de
autoridade à APEERJ. Trata-se da qualificação de seus membros como professores
atuantes no sistema educacional de ensino. De carta enviada ao MEC, em 2009, recupera-
se o seguinte fragmento:
Na qualidade de membros da diretoria da Associação de Professores de
Espanhol do Rio de Janeiro- Apeerj e, principalmente, como professores de
Língua Espanhola que atuam nos diversos níveis e segmentos...
Carta ao Conselho Estadual de Educação, datada de 11 de dezembro de
2009
A diversidade da atuação dos membros da APEERJ em diferentes níveis e
segmentos do ensino é apresentada no enunciado como uma qualidade dessa associação,
rompendo com a imagem de uma entidade de caráter predominantemente acadêmico ou
distanciado na realidade escolar. A associação da imagem da diretoria da APEERJ a
professores da educação básica é um traço caracterizador dessa entidade nos últimos anos,
que rompe com a tradição universitária instituída na sua fundação, época em que o ensino
de espanhol era, do ponto de vista quantitativo, pouco expressivo nas redes escolares.
Segue à continuação um fragmento do abaixo-assinado, do qual a APEERJ se
institui como um dos locutores juntamente com a Associação de Professores do Estado de
São Paulo (APEESP). Nesse documento, o enunciador se opõe ao uso dos conteúdos
propostos pelo Instituto Cervantes no sistema educacional brasileiro.
Como é de público conhecimento, o material se enquadra nos parâmetros
do Quadro Europeu Comum de Referência para as Línguas. Não apenas o
Brasil não é parte da União Europeia, nem a realidade dos alunos de
nossas escolas se adéqua a esse contexto, como existem inúmeras ações
educativas desenvolvidas no contexto do Mercosul, nas quais o MEC tem
liderança
Abaixo-assinado de 13 de agosto de 2009
O uso da negação acarreta dois sentidos distintos. Em “o Brasil não é parte da
União europeia”, não se trata de uma marca da polêmica, pois não se institui um embate
entre posicionamentos antagônicos sobre essa questão. Nota-se mais propriamente um
“colorido irônico” (MAINGUENEAU, 2002, p.178) instituído nesse enunciado, tendo em
vista a obviedade da informação apresentada ao coenunciador no processo argumentativo.
Diferentemente do caso anterior, em “nem a realidade dos alunos de nossas escolas
se adéqua a esse contexto”, observa-se a instalação da polêmica entre um primeiro
enunciador que acredita que o material proposto pelo Instituto Cervantes se adéqua à
realidade do ensino escolar e um segundo enunciador, segundo o qual o material é
inadequado a essa realidade. A este último, adere o locutor do documento que, em
contraste com o enunciado rejeitado, mostra-se como conhecedor do espaço escolar.
O enunciador especialista, portanto, além de dispor de saberes concernentes à
legislação que rege o ensino de espanhol, também têm conhecimentos que são construídos
na/pela experiência docente. A instauração do enunciador especialista está atrelada à
constituição do enunciador pesquisador, cujo processo de constituição na enunciação será
contemplado na próxima seção.
5.3.4 O enunciador pesquisador
Além do enunciador especialista, identifica-se, no corpus em análise, a presença de
um enunciador que está a par dos saberes acadêmicos produzidos no campo científico que
dizem respeito ao ensino de línguas.
Com a finalidade de facilitar a análise discursiva, recuperamos uma vez mais um
fragmento da carta enviada pela APEERJ à Secretaria de Educação de Niterói e à
Fundação Municipal de Niterói em 2011.
A língua espanhola de ser, portanto, uma forte aliada à formação cidadã,
que no ambiente escolar encontra espaço mais propício ao seu
desenvolvimento. Conforme se acentua nas OCEM (2006, p.131), o ensino
de espanhol na escola brasileira “precisa enfim, ocupar um papel
diferenciado na construção coletiva do conhecimento e na formação do
cidadão”. Como se vê, nas salas de aula, deve-se ir muito além do ensino
de estruturas linguísticas desvinculadas da interação, da história política e
sociocultural de seus partícipes
Carta à Secretaria de Educação de Niterói e à Fundação Municipal de
Niterói, datada de 28 de janeiro de 2011
A repetição do fragmento nesta seção auxilia a identificação da referência que se
faz às OCEM na carta da APEERJ. O uso do discurso direto para a atualização de trechos
de documentos oficiais do governo é frequente nas práticas discursivas da APEERJ.
Entende-se esse fenômeno enunciativo, em que o locutor profere falas pelas quais não se
responsabiliza, como uma citação de autoridade (MAINGUENEAU, 1997, p.100). A
distância estabelecida, nesse caso, marca a adesão do locutor ao enunciado proferido e, ao
mesmo tempo, institui-se um enunciador informado a respeito das discursividades
produzidas sobre o ensino de espanhol no âmbito político educacional.
Sendo assim, a APEERJ assume um duplo papel: em primeiro plano, apresenta às
autoridades documentos oficiais sobre o ensino de espanhol que sustentam o seu ponto de
vista e legitimam as suas reivindicações. Concomitantemente, demonstram saberes
concernentes à normalização90
do ensino de língua espanhola.
Recuperados de carta enviada à Secretaria de Educação do Estado do Rio de
Janeiro em 2009, que tece críticas sobre os exames de seleção de professores de espanhol,
nos fragmentos a seguir, também é feita menção à produção acadêmica referente aos
estudos da linguagem.
Com base em pesquisas recentes na área das Ciências da Linguagem,
verificamos que as provas de Língua Espanhola, aplicadas nos últimos
concursos, vêm apresentando diversos problemas que, elencamos a
seguir...
...são tomadas nas provas como única fonte de conhecimentos sobre
línguas, que aqui é entendida, ingenuamente, como um bloco homogêneo,
contrariando toda a produção acadêmica atual sobre o tema, uma vez que
há muito já se sabe que qualquer língua somente existe na diversidade
dos usos concretos realizados por seus falantes nas diversas situações de
comunicação. Em especial a língua espanhola é falada por povos com
características culturais e linguísticas próprias
Carta ao Conselho Estadual de Educação, datada de 11 de dezembro de
2009
De início, a expressão “Com base pesquisas recentes na área das Ciências da
Linguagem” sinaliza o estabelecimento de um diálogo estreito entre a produção acadêmica
e o interlocutor. Este último mostra-se atualizado do ponto de vista do conhecimento
científico, visto que se pauta em “pesquisas recentes” e na “produção acadêmica atual”.
A ausência de marcas polifônicas explícitas não impede a identificação de vozes
diferentes provenientes do discurso científico, mais precisamente das Ciências da
Linguagem, que são atualizadas na materialidade discursiva. É possível observar no
90
À luz dos estudos ergológicos, as normas antecedentes abrangem as prescrições específicas, como as para a
realização de uma dada atividade, aos elementos mais amplos, como os políticos, econômicos e sociais
(SCHWARTZ, 1997).
fragmento citado a inscrição de dois conceitos opostos de língua: o conceito de língua
como “bloco homogêneo” e o conceito de língua como “usos concretos realizados por seus
falantes nas diversas situações de comunicação”. Ao confrontar essas duas definições, o
locutor adere à segunda delas. O conceito de língua é legitimado pela relação temporal
com o presente: o fato de existir “há muito”.
A inscrição de um enunciador pesquisador, que atualiza saberes do âmbito
científico, não é uma novidade nas práticas discursivas da APEERJ que,
predominantemente, se voltam para o âmbito acadêmico. A inovação está, sobre tudo, na
instituição da cena enunciativa em que saberes do âmbito acadêmico vêm à superfície do
texto cujo interlocutor é o governo. O entrelaçamento do discurso político e do discurso
acadêmico na rede do processo argumentativo pode ser considerado como uma ruptura na
história da APEERJ. É da organicidade da relação entre o acadêmico e político que se
instaura o enunciador engajado a ser contemplado na próxima seção.
5.3.5 O enunciador engajado
Inicia-se esta seção com parte da carta produzida pela APEERJ em parceria com
demais Associações de Professores de Espanhol de outros estados em detrimento do início
da vigência da Lei 11.161/2005 em 2010. Apesar de definir como interlocutor a
“população”, o trecho que finaliza o documento, especialmente o emprego da expressão,
“sua escola” traz indícios de que seu coenunciador seja o professor que atua na escola
básica.
Denuncie à Associação de Professores de Espanhol do seu estado se sua
escola (ou do seu filho) não oferece essa disciplina
Carta das Associações de Professores de Espanhol à população, datada de 03
de agosto de 2010
O verbo “denuncie” na sua forma imperativa, articulado às demais marcas de
pessoa nesse fragmento, convoca o coenunciador, que é incentivado a denunciar as escolas
que não cumpram a lei federal. O locutor que assina o documento, além de informar à
população sobre a legislação vigente concernente ao ensino de espanhol, assume, portanto,
o papel de intermediador entre a população – especialmente os segmentos dos professores
de espanhol e dos pais de alunos - e o poder público no que diz respeito à fiscalização do
cumprimento da referia lei.
Constitui-se como elemento novo nas práticas da associação, o papel
explicitamente engajado assumido pela APEERJ em relação a medidas da esfera pública
em suas discursividades. Ainda que a análise baseada em itens lexicais exija restrições,
(MAINGUENEAU, 1997), a identificação de ações verbais como “exigir”, “questionar”,
“lutar” e “defender” assumidas pelo enunciador nas cartas da APEERJ parece ser relevante
para a recuperação de traços identitários dessa entidade. Leiam-se os fragmentos:
... sentimo-nos obrigados a questionar os exames de seleção de
Professores de Língua Espanhola, realizados no estado do Rio de
Janeiro, que a nosso ver não estão de acordo com o perfil de
professor esperado para atuar na rede pública segundo os
documentos que regem a educação nacional...
Carta ao MEC, datada de 11 de dezembro de 2009
No lugar de uma resposta apropriada para um gestor público, o
Presidente da FUNDAÇÃO MUNICIPAL DE NITERÓI preferiu-se
exaltar-se ofender pessoas e instituições que há décadas trabalham em
prol do ensino de espanhol. Tal atitude é inadmissível e a APEERJ
exige uma retratação. Os professores de espanhol merecem respeito
Nota da APEERJ sobre ofensas proferidas pelo Presidente da
Fundação Municipal de Niterói, datada de 31de Janeiro de 2011
...Nós, professores de espanhol do Rio de Janeiro, exigimos mais
detalhes sobre esse acordo e, principalmente, mais respeito ao
trabalho que há décadas desenvolvemos em prol do ensino de
espanhol no Brasil... ...defitivamente do que não precisamos são
acordos com instituições estrangeiras para uma suposta formação de
professores, atividade que nossas universidades desenvolvem muito
bem, apesar de todas as dificuldades, há muitos anos
Carta ao MEC, datada de 4 de agosto de 2009
...lutaremos contra qualquer iniciativa que não esteja de acordo com
as leis e que fira os interesses dos professores e alunos de espanhol da
Educação Básica, que têm o direito a uma educação de qualidade
para a formação de cidadãos conscientes e atuantes
Carta aberta à população, datada de 23 de setembro de 2006
Defendemos que seja respeitada a legislação brasileira vigente que
atribui às Universidades a formação e a capacitação de professores
do Ensino Básico, em cursos de Licenciatura com uma carga horária
mínima presencial de 2.800 horas em, no mínimo, 3 anos
Manifesto de 19 de setembro de 2006
O uso dos verbos “exigir”, “questionar”, “lutar” e “defender”, ao definir traços
identitários do enunciador, também antecipa a imagem do seu coenunciador e o tipo de
relação construída entre os parceiros da enunciação.
No terceiro fragmento, novamente, utiliza-se o “nós” procedido do grupo nominal
“professores de espanhol”. O locutor, identificado à coletividade dos professores, faz
exigências ao seu interlocutor, amparando-se na autoridade conquistada por esse grupo,
cujo trabalho não seria fruto das recentes mudanças de ordem econômica, tratando-se,
porém, de um grupo que trabalha “há décadas” em prol do ensino de espanhol.
O uso do “não” polêmico nesse fragmento também permite identificar a existência
de um enunciado subjacente segundo o qual os professores precisariam de acordos com
instituições estrangeiras para a formação docente. Esse enunciado é veemente negado pelo
locutor da carta, que apresentas as reais necessidades do professorado ao Ministro da
Educação, seu interlocutor: vagas na licenciatura, novos concursos, melhores condições de
trabalho.
Observa-se, nos documentos analisados, que a APEERJ se dirige a diferentes
esferas do poder público, à imprensa e à população em geral de forma crítica e autônoma,
amparada em sentidos de autoridade que se vinculam à experiência profissional e
acadêmica de seus membros. Em carta à Secretaria Estadual de Educação de Niterói e à
Fundação de Niterói de Educação, os modos de referenciar a não pessoa, ocupada pelo
Instituto Cervantes, desqualifica completamente essa instituição de atuar no sistema
público de ensino. Chama também a atenção o uso do verbo “penetrar”, que atribui ao
Instituto Cervantes a imagem de invasor do território compartilhado pelos interlocutores.
...posiciona-se contrariamente a que o Instituto Cervantes, bem como
quaisquer cursos livres – instituições que se encontram à margem do
sistema educativo regular, pois não estão no âmbito de controle dos
organismos estatais da educação – penetrem nas escolas e universidades
brasileiras e sejam responsáveis pelo ensino de espanhol ou pela produção
de materiais didáticos dirigidos ao ensino regular, sejam tais iniciativas
onerosas ou não ao poder público..
Carta aberta de 13 de fevereiro de 2011
Em abaixo-assinado de 13 de agosto de 2009 sobre a temática similar à carta
anteriormente mencionada - isto é, mais uma das tentativas de acordo do Instituto
Cervantes com a esfera pública, nesse caso com o MEC - é instalada a polêmica entre
diferentes posicionamentos. À continuação, o fragmento do documento:
...surge nossa preocupação quanto ao que possa derivar esse acordo. Ele
pode estimular, nos estados, soluções “fáceis” para o não planejamento de
grades e de recursos humanos, que não contemplem a qualidade de ensino...
Abaixo-assinado de 13 de agosto de 2009
A partir da colocação de aspas em “facéis”, ocorre uma divisão interna da instancia
da enunciação. À luz da classificação de Authier-Revuz (1998), esse fato linguístico pode
ser classificado como um fenômeno de não coincidência do discurso consigo mesmo, pois
o enunciador alude a um outro discurso dentro do seu próprio discurso. Nesse caso, o
enunciador rejeita a ideia de que ditas soluções sejam efetivamente fáceis, levando em
consideração que a aparente facilidade poderia acarretar maiores dificuldades no futuro.
O fragmento seguinte amplia as considerações da APEERJ sobre a realização de
acordos com instituições estrangeiras.
De forma alguma, estamos rechaçando a parceria com instituições
estrangeiras que desejem estabelecer um diálogo efetivo e de qualidade
com nossas instituições de ensino. No entanto, entendemos que o interesse
do Instituto Cervantes pelo ensino de espanhol no Brasil, em muitos casos,
chega a configurar-se como um desrespeito ao trabalho dos docentes que
dedicam suas atividades acadêmicas ao hispanismo.
Carta à Secretaria Estadual de Educação e Fundação Municipal de Niterói,
datada de 28 de janeiro de 2011
A operação negativa também viabiliza a negação do enunciado subjacente segundo
o qual a APEERJ estaria rechaçando a parceria e o diálogo com instituições. O uso da
expressão “de forma alguma” indica que o enunciado “estamos rechaçando a pareceria
com instituições estrangeiras” não é legítimo e que, portanto, a acusação à APEERJ -
prevista antecipadamente pelo locutor - seria improcedente.
Mais adiante, no mesmo fragmento, é empregado o conectivo “no entanto” com
valor adversativo. Segundo Ducrot (1984), a partir do uso do conectivo adversativo, o
locutor declara negligenciar o enunciado que antecede o conectivo e, assim, deriva a força
maior do enunciado que o procede. No exemplo analisado, o uso de “no entanto” fortalece
a forma argumentativa: “o interesse do Instituto Cervantes pelo ensino de espanhol no
Brasil, em muitos casos, chega a configurar-se como um desrespeito ao trabalho dos
docentes que dedicam duas atividades acadêmicas ao hispanismo”. Configurado como a
não pessoa, o Instituto Cervantes é excluído do grupo ao qual se identifica o enunciador: o
“dos docentes que dedicam suas atividades acadêmicas ao hispanismo”.
No fim do fragmento citado, inscreve-se a palavra “trabalho”, que põe em
circulação sentidos que qualificam as atividades acadêmicas dos professores de espanhol
como atividades laborais. A palavra “trabalho” também aparece na carta enviada pela
APEERJ ao MEC em 04 de agosto de 2009:
Nós, professores de espanhol do Rio de Janeiro, exigimos mais detalhes
sobre esse acordo e, principalmente, mais respeito ao trabalho que há
décadas desenvolvemos em prol do ensino de espanhol no Brasil...
Carta ao MEC, datada de 4 de agosto de 2009
Nesse fragmento, amplia-se o sentido do “trabalho” exercido pelos professores de
espanhol, abarcando, não somente as atividades propriamente acadêmicas, mas de forma
generalizada, as que são realizadas em vistas à inclusão do ensino de espanhol no sistema
escolar. A concepção de trabalho do professor é, portanto, expandida nesse enunciado,
dando margem à admissão das múltiplas atividades desenvolvidas pela APEERJ, não
estritamente acadêmicas, em prol do ensino de espanhol como inerentes à definição do
trabalho docente. É justamente com relação a esse “trabalho” que o locutor “exige”
respeito.
A referência ao “trabalho” do professor no que tange as suas ações nas políticas de
línguas não é um invenção recente nos escritos da APEERJ, mas se institui desde o seu
estatuto fundacional:
Trabalhar para a promoção e o desenvolvimento do ensino de espanhol no
sistema escolar brasileiro.
Estatuto da APEERJ, 1982
Ao contrário do que acontece coma palavra política, materializada nas
textualidades da APEERJ repetidamente a partir de 2006, as atividades em prol da
implantação do ensino de espanhol são concebidas como trabalho nessa associação desde
o se surgimento. Sendo assim, conclui-se que, apesar de ser recente a instituição de um
enunciador engajado nas práticas da APEERJ, o processo de politização no/do trabalho do
professor não ganha contornos mais nítidos sem que se arrisque à revisitação do passado
dessa categoria profissional. A memória da APEERJ sublinha a indissociabilidade entre o
trabalho do professor de espanhol e as políticas de línguas neste país.
5.4 SÍNTESE DO QUINTO CAPÍTULO
A análise das cartas públicas da APEERJ contribui para a compreensão de que as
transformações dos traços identitários dessa entidade estão atreladas às mudanças que
ocorrem em um contexto mais amplo. Uma das dimensões das referidas mudanças consiste
no desenvolvimento do campo das ideias linguísticas e, em especial, de uma vertente de
estudos direcionados ao ensino de línguas estrangeiras no espaço escolar. O
reconhecimento da educacionalidade como especificidade do processo de ensino e
aprendizagem de línguas na escola básica viabiliza a aceitação de que os saberes
concernentes a essa disciplina na escola não se identificam com as prioridades de
instituições extra escolares. Esse cenário permite a emergência, nos escritos da APEERJ,
de um enunciador pesquisador, que, ao se dirigir às autoridades públicas, recupera saberes
acadêmicos específicos dos estudos linguísticos e educacionais, de cujos discursos ele se
apropria. A esse enunciador, se articula o enunciador educador que se institui nos escritos
da APEERJ por meio da valorização da dimensão educacional do ensino de línguas na
formação do aluno e do professor de espanhol. As duas posições enunciativas, pesquisador
e educador, atribuem sentidos novos à identidade política da APEERJ, que passa a trazer
ditos sentidos ao debate público como elemento de autoridade dessa categoria profissional.
Contribui ainda na construção do referido sentido de autoridade, a instituição de um
enunciador especialista. Esse se apresenta aos seus coenunciadores como conhecedor das
leis que regem o ensino de espanhol. Esse conhecimento do domínio jurídico legislativo é
explicitado como estratégia argumentativa para convencer o interlocutor da necessidade de
implantação do espanhol. Documentos da APEERJ produzidos na década de 1980 mostram
que essa estratégia de persuasão em relação aos representantes do poder público institui-se
como rotina nas práticas da APEERJ ao longo dos anos. Contudo, um novo sentido se
instaura quando se inscreve no plano discursivo a valorização do professor no âmbito
escolar. O enunciador especialista não é apenas o acadêmico ou o conhecedor das leis
referentes ao ensino de línguas. A especialidade também abarca o conhecimento oriundo
da prática, isto é, da atuação nos diferentes níveis e segmentos de ensino.
Com principais marcas de continuidade e de ruptura na memória discursiva da
APEERJ, identifica-se, respectivamente, a presença do enunciador condescendente e do
enunciador engajado. Entende-se como enunciador condescendente aquele reproduz
acriticamente a política integracionista defendida pelo Estado brasileiro como justificativa
para a implantação do ensino de espanhol nesse país. Ou seja, o ensino de espanhol é
apresentando como uma espécie de ferramenta do Estado necessária para o cumprimento
da integração dos países latino americanos. O sentido de subserviência também se
relaciona com a ideia de que o espanhol, então classificado como língua do comércio
internacional, seria um instrumento indispensável para o acesso ao desenvolvimento
econômico dos indivíduos e do país. Em suma, a configuração do enunciador
condescendente se dá pela submissão às diretrizes impostas pelo Estado e pelo mercado
internacional.
Por fim, identifica-se a inscrição do enunciador engajado, cuja principal
característica é problematizar o processo de implantação do espanhol no sistema escolar. A
APEERJ não assume apenas o papel de agente defensor da expansão do espanhol de forma
incondicional. Inaugura-se o questionamento sobre o encaminhamento dado a esse
processo pelo governo e, especialmente, sobre a interferência dos representantes da
governamentalidade espanhola. A emergência do enunciador engajado não deve ser
compreendida como uma característica intrínseca da APEERJ ou de seus membros. Seu
surgimento está antes atrelado a constantes tentativas de fortalecimento da
governamentalidade espanhola no Brasil. Entende-se, portanto, que, tanto as
transformações do âmbito acadêmico e profissional relativas ao ensino de espanhol, como
a intensificação da pressão exercida pela governamentalidade espanhola nas políticas de
línguas deste país, contribuíram para efetivas mudanças nos traços identitários da APEERJ
e de um segmento expressivo do professorado brasileiro.
Aproveitaremos estas considerações finais para alinhavarmos questões centrais
suscitadas separadamente nos capítulos anteriores e tratarmos das implicações político
educacionais levantadas por esta pesquisa relativas ao ensino de língua espanhola.
Em primeiro lugar, ressaltamos uma vez mais a importância da historização do
ensino de línguas estrangeiras, com foco no ensino de espanhol, que vem sendo
empreendida por algumas pesquisas referenciadas nesta pesquisa. A recuperação de parte
da memória do ensino de língua espanhola e, por vezes, mais propriamente do trabalho
docente, é concebida aqui como meio indispensável para dar visibilidade à complexidade
desse ofício, que vai muito além da execução de aulas mecanizadas em conformidade a
prescrições de um ou outro material didático.
A aceitação de um discurso reducionista acerca do trabalho do professor de língua
estrangeira – muitas vezes denominado inclusive como “instrutor”- geralmente se sustenta
numa visão de língua concebida como produto a ser adquirido ou, quiçá, dominado pelos
alunos/consumidores. Trata-se aqui de uma perspectiva mercadológica, amplamente
difundida nos discursos midiáticos, segundo a qual a aprendizagem de determinadas
línguas estrangeiras está associada à aquisição de um instrumento necessário à inserção no
mercado.
Observa-se que, em uma conjuntura fortemente marcada pela pressão do capital e
pela mercantilização da educação, a tradicional visão de língua como “instrumento à boa
cultura”, atravessada por vestígios coloniais e ainda predominante até o início do século
XX na escola brasileira, cada vez mais, foi sendo superada pela visão de língua como
“instrumento do mercado”.
No que tange especificamente à APEERJ, o discurso educacional utilitarista foi
recuperado sem reservas nas práticas discursivas dessa associação ao longo da sua história.
Utilizada reiteradamente como estratégia argumentativa, a visão do espanhol como língua
internacional capaz de incentivar o desenvolvimento econômico deste país se inscreve em
diferentes documentos da APEERJ dirigidos a esferas do poder público em momentos
diferentes dessa entidade.
Outro traço de continuidade na memória da APEERJ diz respeito à atualização do
discurso de integração dos países latino americanos. Desde a sua fundação até tempos
recentes, o integracionismo foi defendido nas práticas da associação como uma das
principais razões que justificariam a implantação do ensino de espanhol no sistema
educacional. Nota-se que, nessas materialidades, recuperam-se sentidos, seja por relações
de intertextualidade ou de interdiscursividade, de parte da memória do arquivo jurídico e
legislativo deste país. Em outras palavras, a voz do poder público é atualizada nas
produções discursivas da APEERJ que, por sua vez, se posiciona positivamente em relação
ao cumprimento do projeto governamental de integração latino-americana.
Observa-se, contudo, que a adesão aos argumentos anteriores de caráter
predominantemente econômico – o espanhol como língua internacional e o espanhol como
forma de integração continental- se materializa especialmente nas cartas públicas da
APEERJ, dirigidas a um só tempo aos representantes do governo e ao grande público - que
visam justificar a inserção do espanhol na escola brasileira. Assim sendo, a análise
discursiva das cartas da APEERJ empreendida nesta pesquisa propiciou a identificação da
instituição de um enunciador condescendente tanto aos interesses do mercado laboral como
aos interesses do Estado. Nessas textualidades, observamos uma concepção reprodutivista
da educação, segundo a qual o ensino de espanhol é tratado como um elemento funcional à
lógica do sistema hegemônico.
A heterogeneidade da composição do material de análise, que prioriza dois gêneros
diferentes - atas de reuniões e cartas públicas-, lançando mão ainda de outras textualidades
quando necessário, permitiu a identificação de diferenças significativas entre os sentidos
que se inscrevem em uma situação de interação interna entre os professores e uma situação
de debate público. Referimo-nos, mais precisamente, aos vestígios do que foi designado
nesta pesquisa como governamentalidade espanhola.
Compreende-se, no uso dessa expressão, o poder exercido não apenas pelo Estado
espanhol, mas também pelo capital transnacional, em vários aspectos da política de
línguas. Com base nas práticas discursivas na APEERJ, constatou-se que a esse poder,
atravessado por nítidos valores eurocêntricos, alcançou diferentes dimensões do ensino de
espanhol no Brasil, abarcando desde a importação de materiais didáticos e de metodologias
de ensino à depreciação do trabalho desenvolvido nas universidades o âmbito da formação
de professores de espanhol e nas escolas públicas brasileiras.
O mapeamento temático das atas da APEERJ auxiliou-nos a perceber que a
governamentalidade espanhola não se instituiu de forma independente às práticas
discursivas do professorado brasileiro. Ao contrário, mostra que os seus vestígios se
materializam nos enunciados pertencentes às três principais frentes de atuação da APEERJ
associação: o campo administrativo organizacional, o campo acadêmico pedagógico e o
campo político educacional- seja pelo assujeitamento ou pela contraposição a esse poder.
Deve-se levar em consideração ainda que, nas atas da APEERJ, o vínculo à
governamentalidade espanhola se sobrepõe a qualquer tipo de relação com as nações deste
continente. Apesar da rotineira adesão ao discurso latinoamericanista nas práticas
discursivas dessa associação, as instituições vinculadas de alguma maneira ao poder
espanhol historicamente se apresentaram como um de seus principais interlocutores.
A revisitação dos registros preservados nas atas da APEERJ trouxe, portanto,
importante contribuição para a compreensão de uma parte da história do ensino de
espanhol no Estado do Rio de Janeiro e da atuação do seu professorado como um dos
agentes desse processo. Constatou-se ainda a produtividade desse gênero no processo de
mapeamento de outras textualidades da APEERJ, seja pelo discurso direto ou pela simples
menção à existência dessas produções discursivas. A periodicidade da produção das atas,
que abarca todas as fases da trajetória APEERJ desde a sua fundação, possibilitou a
percepção, apesar do relativo equilíbrio entre os temas mais recorrentes nesses escritos ao
longo do tempo, de que existem rupturas de sentidos que afetam os traços identitários da
associação.
Uma dessas transformações na memória discursiva da APEERJ pode ser
identificada nos tipos de eventos promovidos por essa associação cujo registro consta nas
atas. Eles sinalizam o crescimento progressivo do interesse por discussões pertinentes ao
ensino de espanhol na escola básica. A consolidação dessa temática nas discursividades da
APEERJ é concebida nesta pesquisa como acontecimento essencial para a criação de
condições que propiciaram o processo de politização dessa associação.
Compreende-se como processo de politização o reconhecimento do papel político
da APEERJ e, consequente, dos professores como agentes da política de línguas. Ainda
que o fazer político indubitavelmente integre a trajetória da APEERJ desde a sua fundação,
nesta pesquisa, defende-se o ponto de vista de que é somente em tempos mais recentes que
essa associação passa a assumir explicitamente esse papel.
Pese as importantes contribuições aportadas pelas atas da APEERJ, a análise desse
gênero exigiu do pesquisador o cuidado necessário para não neutralizar o distanciamento
entre o dito e o que se materializa nesses escritos. Isto é, levou-se em consideração que os
relatos nas atas não correspondem às situações discursivas das quais se originam, visto que
o processo de seleção/silenciamento de enunciados e sentidos é concebido como inerente à
produção das atas da APEERJ.
Em busca do indizível nas atas, julgou-se necessário recorrer, em segunda etapa de
pesquisa, a outros gêneros discursivos que constituem o arquivo da APEERJ. Para tanto,
foram contempladas como material de análise as cartas públicas produzidas pela
associação. Essas, por sua vez, propiciaram a delimitação, por meio da análise discursiva,
de diferentes posicionamentos enunciativos assumidos pela APEERJ nos seus três últimos
mandatos. Dentre eles, além do enunciador condescendente às imposições do Estado e do
mercado, chamam a atenção o enunciador pesquisador, o enunciador especialista, o
enunciador educador e o enunciador engajado.
As múltiplas posições que o sujeito assume apresentam-nos uma identidade
multifacetada da APEERJ, que se institui a partir de rotinas e rupturas em relação ao
passado. Como traço de continuidade, destaca-se o enunciador condescendente aos
interesses do Estado e do mercado e, ainda, o enunciador especialista que se debruça sobre
o arquivo jurídico e legislativo deste país para justificar a implantação do espanhol nas
escolas. Como traços de mudança, instauram-se outros enunciadores: o enunciador
pesquisador, que lança mão dos subsídios oriundos do desenvolvimento científico na área
do ensino de línguas estrangeiras; o enunciador educador, que sublinha a educacionalidade
na formação dos alunos e dos futuros professores e, ainda, o enunciador engajado, que se
contrapõe ao encaminhamento dado pelo governo e por agentes externos à implantação do
ensino de espanhol.
A guisa de conclusão, sublinhamos aqui três questões que se mostraram como
implicações de caráter político educacional relativas ao ensino de espanhol. Em primeiro
lugar, ressaltamos a necessidade de se incentivar o processo de politização no âmbito do
ensino de espanhol. Isto é, estimular o reconhecimento dos professores de línguas
estrangeiras, em suas diferentes frentes de atuação, como agentes das políticas de línguas e
da educação. Essa afirmação, pautada numa concepção ampla do fazer político, acarreta o
reconhecimento do poder desses trabalhadores em promover fissuras ou perpetuar rotinas
na memória e na história do ensino espanhol. Em segundo lugar, como desdobramento da
questão anterior, destaca-se a importância de refletirmos criticamente sobre o papel do
ensino de línguas no sistema escolar, levando sempre em conta que a maior parte dos
projetos de escola instituídos pela atual mercantilização da educação se direcionam
opostamente à emancipação do homem, mas visam à reprodução ou, no máximo, a
correção de detalhes da ordem estabelecida. Por fim, defendemos, em contraposição aos
discursos fatalistas, que o ensino de língua estrangeira pode ser um campo aberto de
possibilidades e, aos olhos do sistema mercantil, uma inesperada alavanca para mudanças
na educação.
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