uma religião que cura, consola e diverte - as redes de sociabilidade da jurema sagrada

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UMA RELIGIÃO QUE CURA, CONSOLA E DIVERTE - AS REDES DE SOCIABILIDADE DA JUREMA SAGRADA Ivaldo Marciano de França Lima" Certa vez encontrava-me num dos mui- tos bairros populares da Zona Norte do Re- cife, em meio a uma gira: diversas pessoas dançavam, bebiam e comiam junto a outras que rezavam e pediam proteção, sorte e amores. Gira é um dos muitos termos usados para definir as sessões da Jurema. As mú- sicas que eram cantadas suscitavam em al- guns dos presentes saudades de tempos passados; eram canções que ouviam quan- do crianças, entoadas por seus avós que a essas cerimônias acorriam também por motivos diversos. Tudo isso em meio a pa- queras, disputas de espaços e outros tantos interesses que possam existir entre os ho- Estudante do curso de mestrado em história pela UFPE e bolsista do CNPq. Este artigo foi apre- sentado, com algumas modificações, sob a forma de mens e as mulheres deste mundo. Essa era uma das muitas "testas" do pai Tuca, que comemorava a exaltação de sua mestra espiritual, a popular e ao mesmo tempo poderosa Aninha. Mas, como pode ocorrer o encontro da fé e da diversão em uma cerimônia de caráter religioso? Aliás, o que vem a ser mesmo a Jurema? Será que podemos dizer que esta religião vem sendo (ou foi) estudada? Neste artigo abordarei alguns aspectos referentes à maneira como a Jurema é vista por alguns adeptos de outra religião afro- descendente (o Xangô). Dessa forma, em- preendo esforços no sentido de tentar comunicação na XXIV Reunião Brasileira de Antropologia, que foi realizada em Olinda, em junho de 2004.

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  • UMA RELIGIOQUE CURA, CONSOLA E

    DIVERTE - AS REDESDE SOCIABILIDADE DA

    JUREMA SAGRADA

    Ivaldo Marcianode Frana Lima"

    Certa vez encontrava-me num dos mui-tos bairros populares da Zona Norte do Re-cife, em meio a uma gira: diversas pessoasdanavam, bebiam e comiam junto a outrasque rezavam e pediam proteo, sorte eamores. Gira um dos muitos termos usadospara definir as sesses da Jurema. As m-sicas que eram cantadas suscitavam em al-guns dos presentes saudades de tempospassados; eram canes que ouviam quan-do crianas, entoadas por seus avs que aessas cerimnias acorriam tambm pormotivos diversos. Tudo isso em meio a pa-queras, disputas de espaos e outros tantosinteresses que possam existir entre os ho-

    Estudante do curso de mestrado em histria pelaUFPE e bolsista do CNPq. Este artigo foi apre-sentado, com algumas modificaes, sob a forma de

    mens e as mulheres deste mundo. Essa erauma das muitas "testas" do pai Tuca, quecomemorava a exaltao de sua mestraespiritual, a popular e ao mesmo tempopoderosa Aninha. Mas, como pode ocorrero encontro da f e da diverso em umacerimnia de carter religioso? Alis, o quevem a ser mesmo a Jurema? Ser quepodemos dizer que esta religio vem sendo(ou foi) estudada?

    Neste artigo abordarei alguns aspectosreferentes maneira como a Jurema vistapor alguns adeptos de outra religio afro-descendente (o Xang). Dessa forma, em-preendo esforos no sentido de tentar

    comunicao na XXIV Reunio Brasileira deAntropologia, que foi realizada em Olinda, em junhode 2004.

  • elucidr algumas questes que merecem serapreciadas na academia e por aqueles quese detm -nos estudos sobre as religies afro-descendentes. Dessas questes, a quepercebo serde maior Yelevncia diz respeitoa um certo descaso e esquecimento queainda persiste para com os estudos sobre aJurema, enquanto religio, na academia,principalmente se insistirmos na neces-sidade de que os mesmos devem levar emconta os pontos de vista dos seus adeptos.Assim, persigo uma trilha que me permitacontribuir para a construo de uma histriaem que estejam presentes os juremeiros eas suas festas, suas crenas e mitos, suasmemrias e experincia& Tais esforosdevem ser entendidos como tentativas parareverter esses descasos e esquecimentosexistentes na academia para com os estudosreferentes Jurema. Nesse sentido, tambmvou deter-me na discusso de algumas dasprtics, crenas e mitos da Jurema, aexemplo da relao entre a mesma e osprocessos de cura dos mais diferentes tiposde enfermidades, centrando o foco emalguns terreiros situados na Zona Norte doRecife, mais especificamente na Campina doBarreto, Cho de Estrelas, Campo Grandee Ilha do Joaneiro. Por uma questo tico-metodolgica, manterei todos os nomes dosjuremeiros entrevistados, assim comoaqueles que so citados deforma direta ouindireta em sigilo, utilizando apenas asiniciais dos seus nomes como refrncia.

    Jurema, uma religio?

    Antes de tudo, importante salientar queeste trabalho parte da concepo de religiodefendida por Clifford Geertz (1989, pp 101- 142) enquanto um sistema cultural e sim-blico. Tradicionalmente considerada comouma seita, por no dispor de um cdigo es-crito de leis ou de doutrinas, de uma filosofiahomognea (que conferiria unidade a todasas modalidades de Jurema que existem peloNordeste), bem como pela presena acen-tuada da magia, pode-se questionar at que

    ponto uma tal conceituao usada pararetirar a legitimidade dessa religio, tornan-do-a algo menor ou inferior s outras moda-lidades religiosas, e que serviram de modelopara o exerccio cdmpartivo.

    As diferenas existentes entre as reli-giese os seus sistemas doutrinrio, oufilosficos, nos permitem perceber que umaforma de transcendncia do plano materialpara o espiritual no deve ser dissociada docontexto em que a mesma ocorre. Apesarde no pretendermos, neste trabalho,aprofundar a discusso em torno dasdiferenas entre a magia e a religio,concordamos com Bernardi (1988, p. 393),quando afirma que, num nvel mais funda-mental - na interpretao humana d cos-mos - no existe qualquer diferena entrereligio e magia - pois so constituintesde um etnema nico.' Adespeito de muitosautores, a exemplo de Frazer (1982, pp 34-52), que afirma ser a religio um estgioevolutivo superior e mais avanado do quea magia, postulo, aqui, a idia de que a Ju-rema uma religio, e que possui a magiacomo um de seus elementos constitutivos(Mauss: 1974).

    Na literatura acadmica a Jurema foiobjeto de alguns estudos. Ren Vandezande,ao estudar na dcada de 1970 o Catimb,nome como chamada a religio existenteno Litoral Sul da Paraba, a entende como"um sistema j elaborado de smbolos paracomunicao", apesar de que em algunsmomentos relativiza esse conceito afirmandoque se trata de uma "religio parcial"(Vandezande: 1975, pp 164, 176). RobertoMotta tambm a discute, ao fazer umaclassificao das religies afro-descendentesno Recife, deixando explicita a idia de que aJurema uma variedade das mesmas (Motta:1997, p. 11). Moila tambm deixou explcitoque se trata de uma religio de encantados,assim como Brando (2001).

    Para ojuremeiro T, chefe de um terreiroem Campo Grande, a Jurema no s umareligio, como tambm e'"minha maior ex-presso de segurana, conforto e alegria 11.2

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  • Alm de ser uma religio, pois vividaenquanto tal, tambm representa umapossibilidade de diverso (Ayala: 2000) e deencontros sociais entre diferentes indivduosde uma ou de vrias comunidades, contri-buindo para a auto-estima de seus parti-cipantes, bem como construindo esperanaspara muitas pessoas que no contam comum 'plano de sade" ou um sistema mdicoadequado para o tratamento de doenasdeste ou do outro mundo.

    mais do que sabido que a Jurerna uma rvore que floresce no agreste e nacaatinga nordestina, mas tambm umacincia forte que ajuda nos momentos deangstia, como nos diz Ma.3 AJurema umareligio intimamente relacionada com ocontexto em que feita por seus adeptos nabusca de respostas para os problemas denaturezas diversas, que surgem no dia-a-dia,e integram um amplo espectro scio-culturaldos indivduos que nela crem.

    Em rpidas linhas podemos dizer que aJurema uma religio de encantados, e quepossui semelhanas com outras tantas peloBrasil afora. As entidades que nela existemviveram - ao menos na fala de seus adeptos- realmente em terra e quando morreram seencantaram, tornando-se entidades compoderes para fazer diversos "tipos detrabalhos" (Prandi: 2001).

    Jurema ou Catimb,qual o nome mesmo?

    Ren Vandezande fez a distino entreo Catimb, a Jurema e o Tor, mostrandoque os dois ltimos integram o conjunto desimbolos existentes no primeiro, no caso emquesto, o Catimb do litoral Sul da Paraba(Vandezande: 1975, p164). Entretanto, hoje possvel afirmar - com base nas entre-vistas e na vivncia com diversos juremeirosda Zona Norte - que o Tor constitui uni tipode cerimnia especial, dentro da estruturareligiosa denominada de Jurema, em quebaixam os caboclos. Tambm h o uso dapalavra catimb no vocabulrio utilizado

    pelos juremeiros, mas esta usada no sentidode "feitio" que se joga contra o adversrio,ou o "trabalho" para realizar algum desejo,curar alguma doena, ou coisas afins. Noesto dissociados, portanto, Catimb, Tor eJurema, apesar de que, para o conjunto dossimbolos e das prticas, o nome atribudo, namaioria dos terreiros que foram pesquisados,odeJurema.

    Nel existem diversos tipos de entidades:ndios, caboclos, pretos velhos, pretas ve-lhas, mestres, mestras, exus e pombas giras.Seus poderes e servios variam de acordocom os pedidos que lhe so feitos, mas emregra geral, tratam de curar doenas internase externas,' arranjar trabalhos, fazer e des-fazer casamentos, abrir caminhos e dar fims aflies do dia-a-dia. Nesse panteo deencantados, os caboclos e os ndios soapontados como de origem indgena, j ospretos velhos so tidos como antigos negrosconhecedores das ervas e de outros se-gredos que viveram nas senzalas do tempoda escravido 5 0s exus e as pombas-giraenquadram-se na condio de entidades quepodem fazer o bem e o mal ao mesmo tempo,aparecendo na fala de T como "espritos nomuito evoludos que fazem aquilo que sepede". Roberto Motta informa que os exus eas pombas-gira no faziam parte do panteode entidades da Jurema desde os seus maislongnquos prirtirdios, tendo sua incor-porao acontecido na segunda metade dosculo XX em meio aos processos cons-tantes de reinterpretao das funesmitolgicas (Motta: 1997, p. 13). Os mestrese as mestras so as entidades que re-presentam o espirito de homens e mulheresque viveram no passado e retornam parafazer "trabalhos" diversos. Mestra Ritinha,Paulina, Maria Cabar, Aninha, ou Maria doAcais, so algumas das muitas que "descem"e danam nos terreiros de Jurema. JosSibamba, Carlos, Z Pilintra, Z Bebinho, ZPretinho, Major do Dias e Junqueiro soalguns dos muitos mestres que ajudam suas"matrias" a fazer "os trabalhos" na terra. Taisentidades habitam a cidade encantada da

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  • Jurema, dividida em remos, dos quais osmais conhecidos so: Vajuc, Tigre, Ca-nind, Juremal, Josaf e o Reino do Fundodo Mar (Cascudo: 1988, p. 121).

    Malunguinho a nica entidade quepode ser um exu, mestre ou caboclo, almde que sua representao religiosa esimblica constitui uma espcie de chefe daJurema e das entidades que a compem(Carvalho: 2001; 1996). Entretanto, nopodemos deixar de lado o fato de que emalguns terreiros visitados (sobretudo aquelesmais ligados a umbanda propriamente dita),o chefe mesmo seria Ogum, para quem secanta alguns pontos, antes mesmo de sereminiciados os trabalhos para os senhores eas senhoras mestres e mestras. Tambmencontramos um juremeiro da cidade deGoiana, prxima de Alhandra (o lugar deonde uma grande quantidade de juremeirosafirma ter se originado a religio) queinformou ser Tranca Ruas o chefe de suaJurema.6 H tambm a informao de quealguns juremeiros dedicariam esse titulo derei ao mestre Carlos (Pinto: 1995, p. 30).

    A grande diversidade das prticas eformas da Jurema no pode ser vista comoum aspecto negativo, pois se h diferenas,tambm existem semelhanas que per-meiam, praticamente, todos os terreirospesquisados: a limpeza feita com a fumaae a crena no poder milagroso e teraputicoda mesma, o uso do cachimbo ao contrriocomo maneira de promover a defumao, otranse medinico, a ingesto de bebidaspreparadas base da casca ou raiz dajurema, o quarto com as imagens das enti-dades, e a mesa (a cidade de Jurema naZona Norte , dessa forma, representada)com o tronco de jurema, os copos e as taascom gua que so denominados res-pectivamente de prncipes e princesas. Emalguns terreiros h a presena do sacrifciode animais, que no se constitui em umaregra para a religio, uma vez que existemcasas que no adotam tal prtica.

    Tida como parte da umbanda por algunsde seus praticantes que a consideram

    apenas como uma das suas muitas linhas efalanges, considerada por outros comouma religio distinta da Umbanda. ReginaldoPrandi, no artigo A dana dos caboclos,afirma que diversos cultos regionais foramabsorvidos pela umbanda, 7 o que lhes pro-piciou formar uma estrutura nacional, aopasso que os que no foram assimiladosficaram circunscritos aos limites de uma dadaregio.

    Talvez a Umbanda tenha mesmo absor-vido diversas religies baseadas no culto aosencantados, e possvel que nesse contextotenha ocorrido o mesmo com muitas casas decatimb pelo Nordeste, mas no podemosomitira existncia de conflitos nesse processoem alguns locais,, sobretudo na regio deAlhandra, no estado da Paraba (Vandezande:1975). Nesse debate, importante salientara existncia de uma autonomia da Juremaenquanto religio, mesmo nos locais onde aUmbanda incorporou outras modalidadesreligiosas existentes, e at alguns terreirosde Catimb ou de Jurema. Alis, mesmo nosterreiros em que o chefe da casa afirmou serema Jurema e a Umbanda "a mesma coisa",diversos elementos do culto praticado soutilizados como critrios por outros terreiros paradistinguir a Jurema da Umbanda (Sobre aUmbanda, ver Ortiz: 1999; Magnani: 1986).

    O discurso da desvalorizao,a relao entre a Juremae o Xang

    Na Zona Norte do Recife h, portanto,uma relao complexa entre diversasreligies, mas observo que existe umadesvalorizao da Jurema quando con-frontada com o Xang, sobretudo poraqueles que se dizem praticantes de umamodalidade "pura', sem misturas de nenhumtipo. Tambm a Umbanda colocada nessacondio de inferioridade ou como des-caracterizao da religio dos orixs,principalmente quando no seu culto seassociam diversas prticas da Jurema, oudo prprio Xang associados ao catolicismo

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  • e ao kardecismo (Pinto: 1995). Tal desva-lorizao tem forte penetrao em meio aalguns terreiros da Zona Norte do Recife, eem muitos praticantes de outras modalida-des religiosas afro-recifenses.

    Muitos terreiros de Xang tambm pra-ticam a Jurema, ora em ambientes sepa-rados, para que no haja contaminao doprimeiro, ora no mesmo ambiente, depen-dendo das posses materiais de seus fiis. Aidia de contaminao deve-se ao fato deque muitos devotos (o povo do santo) atri-buem Jurema um papel de "culto inferior"ou de "ferramenta para as coisas baixas".Um dos entrevistados afirmou que a "Juremaserve para os trabalhos do dia-a-dia que noexigem maiores energias", atribuindo aosorixs poderes mais nobres que os encan-tados. Essa "desvalorizao" existente entremuitos dos praticantes das religies afiro-descendentes nos terreiros onde ocorre oduplo pertencimento religioso, ou entre osque se declaram adeptos do "Xang ou donag puro", no algo natural, mas resultadoda disputa de interesses em meio a umasociedade complexa. interessante obser-var que esse discurso da inferioridade podeser entendido como um argumento delegitimao social, mesmo por que ele ocorretambm contra o Xang nos locais aonde oCatimb se apresenta com maior fora, e dotado da aura de uma religio tradicional:

    Deve ser um trabalho feito contra ele,umas coisas deste Xang que mexe comExu e negro. Mas os mestres sosuperiores. Elos vo resolver logo estecaso. Este povo de Xang brinca comfogo, mexe com esprito e depois nosabe trancar; e o esprito fica andandono mundo, fazendo o mal e a pessoaadoece e tem toda sorte de casos, edepois tem de chegar aqui mesa deAdo que sabe trabalhar' (Vandezande:1975, p. 54).

    Em meio a uma sociedade que buscavalorizar o Xang como um legitimo ele-mento da cultura afro-descendente, a prticada Jurema ocultada em alguns terreiros.Entretanto, pode-se identificar a sua pre-

    sena nas prticas religiosas dos filhos desanto ligados a esses terreiros (Brando eNascimento: 2001; Pinto: 1995). Dessemodo, o discurso de inferioridade da Jurema apresentado quase sempre sob a jus-tificativa de que a mesma no possui umatradio religiosa africana sendo, portanto,uma descaracterizao que rene misturasde outras tradies diferentes da existenteno "nag puro".

    A idia de pureza defendida por algunsdos praticantes do Xang cai por terraquando nos deparamos com uma conside-rvel diversidade de prticas e costumesentre os adeptos do candombl baiano e doXang pernambucano. Considere-se tam-bm a inexistncia de um modelo de religioe de uma uniformidade nas prticas deadorao pelos orixs entre os que sereivindicam nag nos estados de Per-nambuco, Bahia e Sergipe, conforme de-monstra Dantas (1988). Essa consideraopode ser entendida como um indicador deque tal discurso muito mais uma maneirade buscar legitimidade - o que, costumei-ramente, denominamos de discursos legiti-madores - do que uma prtica concreta.

    Essa disputa pela hegemonia e a relaoque se estabelece com a idia de pureza etradio entre os praticantes das religiesafro-descendentes, foi expressa por Pinto:

    "Com a intimidade adquirida durante otrabalho de campo junto a este grupo,observei que tambm estas senhoraseram afeitas prtica da ,Jurema, emsuas casas. Ficava claro, ai a difi-culdade das casas que se dizem tra-dicionais, assumir a prtica da .Jurema.Negar significava, nesta situao re-latada, reforar sua legitimidade peranteos representantes de outras casas(Pinto: 1995, p. 12).

    Em meio a essas questes, podemosindagarcomo uma religio, que apontada poralguns de seus adeptos como mais popular oumais forte do que o Xang,' pode ser preteridaou quase sempre posta de lado quando se tratade auferir a importncia das religies? Alis,salvo raras excees, percebe-se uma pre-

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  • ponderncia simblica e discursiva das mo-dalidades de matriz africana em detrimento daJurema, mesmo que essa ltima esteja pre-sente em um maior nmero de terreiros e suascerimnias sejam mais freqentadas. Ao quetudo indica, h um discurso que se lana paraa sociedade, principalmente para os pesqui-sadores, diferentemente de uma vivncia docotdiano na qual a Jurema ocupa um papel dedestaque. Nas palavras da mesma antro-ploga citada anteriormente, constata-se umpouco dessa idia de que h uma diferenaentre o que se vive no cotidiano e o que dito,tanto sociedade e para os pesquisadores:

    Vurante todo o tempo de freqncianessa casa, houve uma grande resis-tncia por parte de M. 8 em prepararsesses dejurema (mestre ou tors decaboclo), apesar do grande nmero defilhos ligados ao terreiro ter a prticadessas sesses em suas prprias casas. necessrio registrar um fato que,talvez, esclarea essa resistncia quesenti: para obter informaes ou assistirs sesses neste terreiro. O terreiro delemanj Sab foi primeiro que mantivecontato, aps o encontro com as mesde santo promovido pelo INrECAS. Suadirigente foi uma das que falaram commaior autoridade sobre ajurema, o queme levou a escolher essa casa comoprincipal objeto de observao. Ointeresse pelo terreiro em refernciatambm era partilhado por pesqui-sadores estrangeiros. Diferente do temaobjeto de minha pesquisa, os outrospesquisadores iriam investigar o cultoaos orixs. Tentamos inicialmente, for-mar uma equipe que, apesarde trabalharem conjunto, tinha interesses distintos.A idia, que inicialmente parecia boa, jque facilitaria o acesso ao campo, almda troca de sugestes, na verdadedesacelerou o andamento de minhapesquisa. Alm das atenes daquelegrupo de fiis passarem a fixar-se nosestrangeiros, o interesse de transmitir aimagem de um terreiro tradicional,quanto s prticas rituais, afastavaqualquer possibilidade de acesso s in-formaes. Durante um ano inteiro, s

    foi possvel assistir a um nico ritual,apesar da eterna promessa de rea-lizao de um tor. Mesmo entre os filhosda casa, cuja prtica da jurema eracomum em seus prprios terreiros, nofoi facilitado, em nenhum momento, meutrabalho" (Pinto: 1995p. 16).

    E importante discutir o papel dos pes-quisadores que estudaram (e que estudam)as religies afro-descendentes, a influnciaque exerceram nos terreiros, e a dissemi-nao da idia de pureza africana. Enquantoencontramos nos terreiros homens e mu-lheres preocupados em refazer, no dia-a-dia,as suas tradies, redefinindo suas heranase dando sentido para as suas crenas, apresena de pesquisadores que vo fazer apesquisa j imbudos de uma concepo quesepara e hierarquiza magia e a religio, quevo em busca do autntico e do puro eindubitavelmente exercem uma influnciasobre a desvalorizao da Jurema.

    Tambm devemos considerar o fato deque alguns estudiosos dessa temtica, aexemplo de Artur Ramos e Ruth Landes,lanaram as bases para a elevao domodelo denominado por nag ao "status deforma normativa da religio afro-brasileira",e que essa normatizao se reflete nosterreiros. (Motta: 2004, p. 495).

    importante considerar se a supremaciado Xang para com a Jurema no foireforada pelo fato de ter sido esta ltimamais perseguida e reprimida, principalmentedurante o governo de Carlos de LimaCavalcanti (Lima: 2003). Nos anos 1930,dentre os intelectuais que trabalhavam comUlisses Pernambucano, havia uma cate-gorizao que considerava as vrias ma-nifestaes religiosas afro-descendentes,exceto o Xang, como baixo espiritismo, enas palavras de Zuleica Campos, 'de acordocom as categorias que predominavam nasidias desse grupo de intelectuais, o 'baixoespiritismo', como religio, impuro; en-quanto moral, patolgico; enquanto valorsocial, ilegtimo; e enquanto sistema decura, ilegal" (Campos: 2001, p. 95). Tais

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  • observaes podem ser comprovadas emdiversas obras de intelectuais que escre-veram no perodo sobre essas religies(Fernandes: 1938; Fernandes: 1937; Lima:1!.37 ; Bastide: 1945;-Cascudo: 1978).

    No seria a atual desvalorizao daJurema, o fato de a mesma ter sido asso-ciada durante anos por diversos intelectuaise estudiosos ao charlatanismo, vigarice eao falseamento da verdade? Alis, como nodesvalorizar algo que, quando comparado aoXang, era vista como uma descarac-terizao da religio africana em virtude dasmisturas provenientes do catolicismo,kardecismo e etc? Tal idia de pureza doXang pernambucano pode ser pecebida nadeclarao que Ado, famoso pai de santodo Recife, nos anos trinta, deu para opesquisador Gonalves Femandes:

    Falam que nas seitas afn'canas se fazbruxaria adorando o diabo. Isto no verdade. Baixan assim quem faz no onegro, oportugus e o ndio. Veja: donde que vem o /Wiv da feiticeira e o tio -o deSo Cn'ano?Ns no adoramos o d'ato. verdade que temos Exu, que foi comoum anjo que se perverteu, justamentecorno na religio catlica, que representaa mesma coisa que a nossa para o branco"(Femandes: 1937 pp. 62- 63).

    Magia e bruxaria no so elementospresentes na religio africana, concluso aque chegaramos com essa afirmao de PaiAdo. Entretanto, no se deve esquecer dadisputa que existiu (e existe) entre! osdiferentes pais e mes de santo, em buscada legitimidade e da hegemonia no "mercadodas almas', e uma das maneiras de se des-legitimar o "concorrente" nos anos trinta eraacus-lo de ser da Jurema, de fazer uso dafeitiaria, de praticar o Catimb e de fazer omal. Almeida, um pai de santo que viveu noRecife dos anos trinta, foi acusado, em umacarta publicada no livro de GonalvesFernandes, de ser catimbozeiro e de estarvinculado com outras pessoas desse culto:

    Eu me sentei para escreverno foi parapedir nem para adular adular s santogrande que tenha para dar Apois assim

    eu soube que o senhoria procedera nodar esta licencia se o senhor quizer darder seno quizer no der. Eeu antesde conhecerchongouja comia eia bebiae ja vestia para isto eu tenho .a minhas

    - - outras leis meu caximbo grande para medefender eu e Maroca Gorda somoschefe do catimb e minhas filhas todase se eu trabalhar por uma parte trabalhopor outra e no tenho medo de soldadode policia nenhum somente o medo quetenho dos castigos de deus... para istoeu tenho Eich Gel e Eich Tamentarpara me defender e se assim for euquero que me mande os meu retratosquer que uma cofie o que l e noconheo bamba para acabar como meuterreiro Jos Claudino de Almeida e seduvidar pode vir a onde eu moro e podemandar pulicia grande que sae tudo fechado nas nagrimas eu moro namangabeira na casa de Maroca Gordaque tem o maracat" (Fernandes: 1937p. 39).

    Em sua defesa, visto ter sido chamadoperante Ulisses Pernambucano, dirigente doServio de Higiene Mental, para explicar oteor da carta, Almeida alegou que a mesmahavia sido "arte de sua ex-mulher para pre-judic-lo" (Femandes: idem).

    Tal carta nos traz importantes infor-maes a respeito do pensamento pre-dominante entre os integrantes do Serviode Higiene Mental, da relao entre ospraticantes das religies afro-descendentese da viso existente entre os populares quediante de suas intrigas, utilizam-se de todosos recursos possveis para destruir os seusconcorrentes. A carta acima descrita foienviada ao S.H.M. e estava com a data de29 de maro de 1937. Ao receb-la, UlissesPernambucano, chefe do referido servio,mandou chamar o pai de santo que tinha sidoo suposto autor da carta. Este no s foicomo tambm afirmou, (segundo GonalvesFernandes) que a letra existente na carta erade sua ex-esposa, constituindo tal ato "umaarte para destrui-lo", devido ao fato damesma estar em outro terreiro. No se sabese Ulisses Pernambucano aceitou esta ar-

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  • gumentao, mas o fato demonstra que umaboa estratgia para tornar ilegtimo umadversrio ou concorrente entre os prati-cantes destas religies, era acusar tal indi-vduo de praticar Catimb. A acusao noteria sentido se no existisse no Servio deHigiene Mental uma concepo de que osXangs "puros" eram reminiscncias da reli-gio africana e como tal, no poderiam serobjeto de represso policial, ao contrrio doscatimbs que eram considerados "baixoespiritismo". Denncias de que determinadopai ou me de santo praticava tal culto e que,por conseguinte no possua "competncia",foram atos comuns entre adversrios econcorrentes das religies afiro-descen-dentes. (Lima: 2003, p. 54).

    Apesar de impuraf,a Jurema forte.

    foram devidamente divulgadas (Motta: 1988,pp. 267 - 268).

    A fora da Jurema, portanto, est emdiversos elementos reunidos, dentre osquais, considere-se a convenincia de territos muitos mais simples e baratos do que oXang, e de suas entidades falarem dire-tamente com o indivduo, sem haver ne-cessidade do uso de bzios ou qualqueroutro meio de intermediao. Considere-se,ainda, o fato de que um mestre ou mestrafala em portugus, facilitando a transmissodos "recados" e diagnsticos para o fiel.Ento, por mais que seja "impura" ou "infe-rior', a Jurema que garante pblico e re-cursos para a manuteno do terreiro e deseu chefe. Logo, como deixar de pratic-la?

    Diverso: dana, msica, comidae sociabilidades.

    Diante de um quadro em que a Jurema declarada inferior por alguns pais de santos,ou vista como sinnimo de mistura, impurezae degradao por diversos intelectuais,resta-nos interrogar um fato intrigante:mesmo aqueles pais de santo que declarama inferioridade da Jurema, ou a sua pre-ferncia pelo Xang, afirmam que "so osmestres que mantm a seita" (pai W), "festacom muita gente sempre coisa de jurema"(me M.) e "casa cheia s com os mestres eas mestras da Jurema' (pai Ma.). Ora, no preciso fazer muitos esforos para provarque, de fato, a Jurema possui mais fora emmeio aos adeptos das religies afro-descendentes, visto ter sido esse aspecto jabordado em outros estudos. Em um artigosobre a relao entre adeptos, terreiros epertencimento religio, Roberto Mottamostrou que uma quantidade significativapossui relao com a Jurema, precisamentealgo em torno de sessenta por cento (Motta:1985, pp. 121 e 122). Em outro artigo, essemesmo antroplogo mostra que a Juremano s mais forte como tambm poucoestudada nos meios acadmicos, e que aspoucas obras referentes ao tema ainda no

    "Gosto muito de danar Jurema, mas nosou chegado ao santo" afirmou P., adepto deum dos muitos terreiros com dupla filiaoreligiosa na Zona Norte. Esta fala sinaliza queestamos diante de uma religio que no apenas sagrada, mas tambm propiciadora doelemento ldico e da construo de iden-tidades. Quando algum afirma que daJurema, est tomando para si uma religioainda hoje muito mal vista pela sociedade emgeral, e essa afirmao de identidade mereceser pensada mais detidamente. Os encontrosentre pessoas que danam e paqueram nasgiras propiciam exerccios de sociabilidade, aomesmo tempo em que lhes propiciam opor-tunidades de se afirmarem socialmente, aocomparecerem e incorporarem suas entidades,legitimando-as perante seus iguais. Essas soapenas algumas das vrias motivaes quelevam uma quantidade razovel de pessoaspara as festas de Jurema. A diverso aparecesob vrias formas nesses toques: a bebida que servida para as entidades e os que assistem sesso; a comida ofertada e, ao mesmotempo, sagrada por ter sido tambm oferecidaaos encantados, particularmente quando setrata de uma festa dos pretos velhos; a dana

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  • propiciada pelo som alucinante dos lus, soalguns dos elementos que aproximam essareligio da diverso. Comida, bebida, msica,dana, paquera, afirmao identitria, proteoe limpeza espiritual... Tudo isso em meio asdemonstraes de f entre aqueles que algumdia tiveram diversos problemas resolvidos pelosmestres e mestras da Jurema.

    A Jurema cura,salva vidas pela f.

    Neste momento, importante interrogarsobre a cura na Jurema, uma vez que co-lhemos muitos depoimentos de individuos queafirmaram terem sido curados em sessesdesta religio. Em uma entrevista, 1, de 58anos e residente na Campina do Barreto,afirmou que a vida de seu filho mais velho foigarantida por um caboclo de nome PenaBranca, e pela cabocla Olindina. O filho dessasenhora estava ainda com meses de vidaquando foi desenganado por uma mdica queafirmou "em se tratando de gastar comremdios, melhor guardar o dinheiro para oenterro, pois esse menino no se cria".Mediante tal situao, o que fazer? Resignar-se e aceitar a dura realidade da iminncia damorte? Chegando do mdico, foi procuradapor sua vizinha que lhe disse que uma amigaem comum de-sejava v-Ia. Tratava-se de S,conhecida e afamada juremeira. Uma vezinformada do problema de sade da criana,S invocou uma cabocla que disse que a curaseria feita mediante a ajuda de um outrocaboclo, Araripe Pena Branca, av da mes-ma. Reforou que a f em seguir a receita aser dada era fundamental para que a cura seprocessasse? No caso descrito, pesaram asrelaes de sociabilidade e a f associadasao aspecto identitrio, elementos que aju-dassem a entender o processo da cura, umavez que o caso teve um desfecho feliz, poisofilho de 1 est vivo, forte e com sade. Este um dentre muitos casos de cura aceitos ecomprovados nas comunidades em questo,e que servem como pontos de apoio refor-ando f e identidade:

    minha vizinha falando da macumba,disse que respeitava, mas que no quedanenhum macumbeiro metendo a mo nacabea dela no, e eu ento disse - lvendo aquele nego ali? (Ireferindo-se aseu filho, .4) ele s l aqui por causa doscaboclos, de dois caboclos...'

    Outro importante caso em que houve acura pela f foi o de X, 52 anos, integrantedo terreiro de M na Campina do Barreto. Xestava com uma cirurgia marcada pararesolver um problema muito srio: extrair umtumor do tero. Neste caso, a intervenopara a cura foi feita por Pombagira, quereceitou chs e banhos de ervas para que otumor desaparecesse. Os exames, o pri-meiro com os resultados do tumor e osegundo comprovando o seu desapa-recimento, so usados como provas etambm como armas na luta silenciosatravada entre os neopentecostais e osjuremeiros. 11 Antes de qualquer coisa, preciso ressaltar que na prpria crenaexistente entre alguns dos que circulam emalgumas igrejas pentecostais e neopen-tecostais h a idia de que s quem cura"doena de mestre ou de caboclo aJurema". A cura vista no Catimb-Juremacomo ltimo recurso foi objeto de discussopor Cmara Cascudo, quando afirma:

    aQ doentes curados, de todas as classessociais so inmeros. Quase sempre, noscasos que os mdicos, confidencia/mente,dizem perdidos, o catimb a derradeiraesperana instintiva. Tenho visto e lidoreceitas para bacharis, oficiais do exrcitoemadnha, altos burocratas, etc' (Cascudo:1988, p. 76).

    Ma, 37 anos, pai de santo e tambm ju-remeiro, foi acometido por uma forte pneu-monia e teve de ser socorrido s pressas noHospital Agamenon Magalhes, no ms dedezembro de 2003. Sabendo que estava compneumonia, Ma se viu diante da necessi-dade de ter que se alimentar bem, repousarbastante e no se preocupar nem to cedocom os seus trabalhos espirituais. Tais malesde Ma foram atribudos ao fato de que estehavia recentemente mudado de pai de santo,

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  • e que o anterior no havia aceitado amudana. Ma precisou, ento, da ajuda deseu novo pai e dos caboclos que lhe guiam,para que sua vida no tivesse fim naquelemomento. Aps alguns meses de trabalho"nos dois lados", ou seja, tomando osremdios receitados pelo mdico e seguindoas orientaes da Jurema, Ma no srecobrou sua sade, como tambm passoua utilizar deste feito para mostrar a sua fora,e a de seu pai, no "uso da fumaa e docachimbo", utilizando a cura para demonstrarsua f, fora e ao mesmo tempo legitimando-se socialmente aps ter sido alvo deinvestidas de seus adversrios, que afir-mavam ser a doena em questo sinal deque estava perdendo fora.`

    Alm dos casos citados, muitos outrosjuremeiros e pais de santo afirmam que oprincipal motivo de seus ingressos na Juremase deu por motivos de sade (Pinto: 1995,pp. 17-21). bastante comum tambm entremeus entrevistados a afirmao de que aentrada na Jurema se deu por algum motivorelacionado a cura. Me, que se considera felize satisfeito em ser da Umbanda, afirmou queera muito catlico, mas que, devido "as suascorrentes de mediunidade" se viu obrigado a"fazer sua Jurema". 13

    A relao entre a cura e a f constitui umdos aspectos mais importantes no sen-timento de pertencimento Jurema. Aodiscorrer sobre as prticas de cura em umterreiro na comunidade da Macaxeira, ZonaNorte do Recife, Luzuriaga sinalizou para aexistncia de uma relao de reciprocidadeentre os homens e as entidades. Tal conceitose apia na idia de que os encantados quedescem para operar os "trabalhos" no mundomaterial, o fazem para cumprir sua missoe, assim, evolurem espiritualmente." Umavez que os encantados obtm o progressoespiritual, os homens vem-se livres de seus

    males fsicos que atormentam as suas exis-tncias (Luzuriaga: 2001).

    A Jurema cura, consola,diverte e constitui identidade

    A Jurema pode ser vista, portanto, comouma religio que cura pelo fato de que osseus ritos so voltados quase sempre paraa prtica da limpeza espiritual e para aresoluo dos problemas de sade que seapresentam em seus fiis. As suas cele-braes so regadas base de muita msicae bebida, conferindo a essas um carterldico e ao mesmo tempo convidativo. Seno por doena ou qualquer outro pro-blema, o indivduo que vai para a Juremaencontra muitos motivos para se divertirenquanto ouve os pontos que eram cantadospelos seus pais e avs. 15 AJurema tambmconsola, visto que se apresenta como umapossibilidade de cura para aqueles que nemsequer dispem de servio mdico pblico.Possibilita, ao mesmo tempo, acesso aexperincias que dificilmente seriam pos-sveis em outros locais, como cantar umponto para que todos lhe respondam,incorporar espritos encantados, e aindapoder falar de seus problemas com osmestres, em busca de conselhos para oamor, o trabalho e a vida em geral. Almdisso, a Jurema constitui identidades, gerasentimentos de pertencimento a um grupo,e permite aos indivduos das camadas po-bres constiturem alianas para os enfren-tanientos do dia a dia, em uma sociedadeque os marginalizam. nesse sentido quea Jurema precisa ser mais bem estudada ecompreendida, principalmente buscando ospontos de vista de seus praticantes, evitan-do-se a disseminao de preconceitos e deerros e injustias que, no passado, foramcometidos contra os juremeiros.

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  • Notas

    'A respeito de etnema, o autor o conceitua enquanto'os aspectos coletivos da cultura". Tal conceito nopode ser entendido sem um outro definido porantroponema, que so os aspectos individuais e queconstituem o etnema.

    2 Entrevista realizada em seu terreiro, na comunidade

    de Campo Grande, no dia 19105104.

    in: http://w.ff]ch.usp.br/sociologia/prandi/danca-cab.rtf, p. 7, acessado em 12/03/2004, as 18:15 minutos.

    Chamamos de Xang o nome dado religio comoum todo, h, entretanto, diversos praticantes damesma que no aceitam esse termo preferindodenomin-lo de Candombl.

    Entrevista feita em sua residncia, na comunidadede Cho de Estrelas no dia 24105104.

    Essa diviso entre doena interna e externa foiutilizada por T e W quando estes definiram os tiposde males possveis de serem curados pela jurema.As doenas internas estariam associadas aos malesorgnicos que esto dentro do corpo e os externosqueles que aparecem no exterior deste ltimo. Osmales causados por feitios so denominados de"doenas do outro mundo" ou "males espirituais".

    Em trs descries etnogrficas das festas de PrelosVelhos realizadas nos terreiros de Me no bairro doArruda, Ma em Cho de Estrelas e T em CampoGrande, percebi a forte relao entre o prelo velho ea Bahia. Boa parte dos pontos - que a maneiracomo so chamadas as msicas cantadas nascerimnias - faz aluso Bahia e aos baianos: "naBahia tem, tem lima tem limo, na Bahia tem muitobaiano no cho'; "Na Bahia sim, que tem orofim, quetem orof, pimenta da Costa, macumba yoy', ouainda 'Bahia, minha Bahia, cidade de So Salvador,quem nunca foi a Bahia no sabe o que o amor".Em entrevista realizada no dia 27105104, em suaresidncia na comunidade de Cho de Estrelas, iaafirmou que 'os pretos velhos nasceram, viveram emorreram na Bahia e que eles tinham muita cincia'.Tambm, declarou que 'tem muito mestre que temde salvar os seus avs antepassados (os baianos)'.Talvez estejamos diante da idia de que os negrosescravos na Bahia foram aqueles que repassaram "acincia dos pretos velhos" para os daqui dePernambuco. Essa relao entre a Bahia e os pretosvelhos precisa ser mais bem estudada.

    Entrevista feita em 10109102, na comunidade deNova Goiana, no municpio de Goiana.

    PRANDI, Reginaldo. A dana dos caboclos - Umasntese do Brasil segundo os terreiros afro-brasileiros,

    Entrevista feita com 1, em sua residncia, no dia 10105104, na comunidade de Campina do Barreto. Areceitaque foi repassada para 1 era uma mistura de ch dealfazema com um mingau base de goma para roupa.Tal receita foi repassada pela cabocla aps ainterferncia de um outro caboclo que massageou abarriga da criana, benzendo-a no ato. Na entrevista, 1declarou que o caboclo Pena Branca no fez uso denada que no fosse folhas e as suas mos. Ela tambminformou que esse caboclo j estava para terminar osseus 'trabalhos' em terra e que esse leda sido um dosltimos feitos pelo mesmo. O ponto da caboclaOlindina, segundo 1, era "Teve sentado na pedra fina,um rei dos ndios mandou chamar".

    lO Idem.

    Entrevista feita com M, em sua residncia, no dia22105104, na comunidade de Campina do Barreto.2

    Entrevista feita com Ma, em seu terreiro, no dia 24105104, na comunidade de Cho de Estrelas. Aexpresso "uso da fumaa e do cachimbo' b5Manteutilizada entre os juremeiros da Zona Norte do Recife,e pode ser entendida como uma afirmao de poderespiritual, e ao mesmo tempo de aviso para os seuspares de que a sua Jurema possui fora.13

    Entrevista feita com Me, Em seu terreiro, no dia 25105104, no Arruda. Este no se considera juremeiro,mas umbandista, por considerar a Jurema como "umacincia dentro da Umbanda que a religio oficial'.

    A idia de evoluo espiritual bastante presentenos terreiros de jurema que sofrem a influncia daUmbanda, mas no identificamos este aspecto emtodos os que foram observados.15

    Tal sentimento de prazer em cantar antigos pontosaprendidos com seus avs e pais, foi declarado porpai W, da Ilha de Joaneiro em entrevista feita na suaresidncia, no dia 21105104.

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