uma visÃo hermenÊutica do princÍpio da dignidade … · operadores do direito, mais...
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MAURO AUGUSTO PONCE DE LEÃO BRAGA
UMA VISÃO HERMENÊUTICA DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE
DA PESSOA HUMANA, COMO FORMA DE ACESSO À JUSTIÇA
SOCIAL.
Dissertação apresentada como requisito, para
obtenção do título de Mestre em Direito, pela Universidade
Estácio de Sá.
Orientador: Prof. Dr. Humberto Dalla.
Rio de Janeiro
2005
2
VICE-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
A dissertação
UMA VISÃO HERMENÊUTICA DO PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA,
COMO FORMA DE ACESSO À JUSTIÇA SOCIAL.
elaborada por
MAURO AUGUSTO PONCE DE LEÃO BRAGA
e aprovada por todos os membros da Banca Examinadora foi aceita pelo Curso de Mestrado em
Direito como requisito parcial a obtenção do título de
MESTRE EM DIREITO
Rio de Janeiro, 8 de julho de 2005.
BANCA EXAMINADORA
___________________________
Prof. Dr. Humberto Dalla Presidente
Universidade Estácio de Sá
___________________________
Prof. Dra. Renata Braga
Universidade Estácio de Sá
___________________________
Prof. Dr. Francisco Mauro Dias
Pontifícia Universidade Católica – Rio de Janeiro
3
RESUMO
É o objetivo primeiro deste Estudo a defesa da aplicação do Princípio Constitucional da
Dignidade da Pessoa Humana, como forma de acesso à Justiça Social em nosso País. Nossas
preocupações repousam na total disparidade entre os direitos e deveres do homem que trabalha,
diante da força a ele imposta pelo capital.
Com este objetivo, trataremos das três atividades que, na visão de Hannah Arendt, caracterizam a
Condição Humana: o labor, que corresponde ao processo biológico do corpo humano; o trabalho
que representa o artificialismo da existência humana, e a ação que é a única atividade que se
exerce diretamente entre os homens sem a mediação das coisas ou da matéria. É pois, através da
ação que o homem dá continuidade à vida e modifica as condições de sua existência.
Se é através do trabalho que o homem produz o mundo em que vive e através da ação é capaz de
modificar as condições de sua existência, vislumbramos, em um mundo globalizado onde se vê
imperar a força do capital sobre o trabalho, a possibilidade de uma nova visão hermenêutica do
Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, pretendendo, com isso, uma profunda reflexão por
parte dos operadores do Direito, em especial pelos Juízes do Trabalho, de que este princípio deve
nortear e embasar as decisões dos casos levados às suas apreciações. É diante da perfeita
compreensão do que representa o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, para o homem que
trabalha, que poderemos aplicar com maior amplitude os princípios da Eticidade, da Boa-fé e,
principalmente, da Proteção.
Palavras-chave: princípio da proteção. trabalho. acesso à justiça.
4
ABSTRACT
The first objetive of this research is the defense of the Constitucional Principles of Human Being,
as away to approach to the Social Justice in our contry. Our concernings lay on the total disparity
between rights and duties of the worker in dueto the influence imposed on him by the capital.
With this objetive we will be concerned with three actives that, on Hannah Arendt view fefines
the Human Condition: the labour, that corresponds to the process of biological body of the human
being; the labour that represents the artificiality of the human being existence, and the action tha
is the only one activity what it carries out strainght to the mankind without any transaction
neither the things nor the material one. Then through the action of mankind to continue life and
changes the condition of his existence.
If so, it is through the labour force that the mankind works out the world that we live then
through action he is able to change the condition of his existence, we discerning in a global world
where we are able to see the influence of the capital force upon the labour, the new hermeneutic
view on principles of the human being dignity, it pretends with that a deep reflection to set aside
by the law careers, in special to the labour judges, in hence to this principle must guide and found
on the decisions of the cases which are take into Justice. It is with a perfect knowledge of what it
means the Principle of the Human Being Dignity, to the man who works and the we will be able
to aplly enlargely the principles of Ethical, Good Faith and mainly Protection.
Ahd so this is our objetive. We shall reflect on this Thesis and struggle to assure for al workers,
tha so willing way to Justice and for all brazilian citizens, that it will be a wonderful social life
context.
SUMÁRIO
5
1.INTRODUÇÃO..............................................................................................................8
2. LABOR, TRABALHO E AÇÃO COMO FORMAS DE CONCRETIZAÇÃO DA
EXISTÊNCIA E DA CONDIÇÃO HUMANAS............................................................12
2. 1. A VIDA ATIVA COMO FUNDAMENTO DA CONDIÇÃO HUMANA............12
2.2. A INVERSÃO DA ORDEM HIERÁRQUICA ENTRE VIDA ATIVA E VIDA
CONTEMPLATIVA.......................................................................................................13
2.3.DIMENSÃO FILOSÓFICA – O MUNDO DA CONTEMPLAÇÃO E O MUNDO DA
AÇÃO.......................................................................................................................16
2.4.DIMENSÃO SOCIOLÓGICA - A AÇÃO COMO ELEMENTO DA CONDIÇÃO
HUMANA.......................................................................................................................18
2.5. DIMENSÃO ECONÔMICA – AS ESFERAS PÚBLICA E
PRIVADA.......................................................................................................................23
2.6. DIMENSÃO JURÍDICA - TRABALHO QUE LIBERTA E EMBRUTECE O
HOMEM..........................................................................................................................29
3. A HERMENÊUTICA COMO INSTRUMENTO DE CONCRETIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS
NA APLICAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICAS....................................35
3.1. OS TRAÇOS FUNDAMENTAIS DE UMA TEORIA DA EXPERIÊNCIA
HERMENÊUTICA..........................................................................................................35
3.2. INTERPRETAÇÃO, COMPREENSÃO E APLICAÇÃO NO PROCESSO
HERMENÊUTICO..........................................................................................................47
3.3. A QUESTÃO DA APLICAÇÃO NA HERMENÊUTICA
JURÍDICA.......................................................................................................................52
6
4. OS PRINCÍPIOS COMO FUNDAMENTO DA INTERPRETAÇÃO E DA
APLICAÇÃO..................................................................................................................60
4.1. DEFINIÇÃO E ALCANCE.....................................................................................60
4.2. 4.2. OS PRINCÍPIOS E AS REGRAS COMO CONSTITUTIVOS DA NORMA
JURÍDICA.......................................................................................................................63
4.3. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E OS DIREITOS SOCIAIS....................68
4.3.1. ASPECTOS GERAIS............................................................................................68
4.3.2. A CONSTITUIÇÃO DE WEIMAR E OS DIREITOS SOCIAIS. OS DIREITOS
INDIVIDUAIS ASSEGURADOS NAS CONSTITUIÇÕES BRAS.............................72
3.3. A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 – “A CONSTITUIÇÃO CIDADÔ.....76
4.3.4. HISTÓRICO SOBRE A JUSTIÇA DO TRABALHO NO BRASIL....................77
4.3.5. O DIREITO AO TRABALHO, O DIREITO NO TRABALHO E O DIREITO DO
TRABALHO.............................................................................................................83
a) O DIREITO AO TRABALHO....................................................................................83
b) O DIREITO NO TRABALHO...................................................................................85
c) O DIREITO DO TRABALHO....................................................................................86
4.3.6. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ.....................................................................................88
4.3.7. PRINCÍPIO DA ETICIDADE...............................................................................91
4.3.8. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA....................................95
5. O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO E A EFETIVIDADE DA JUSTIÇA SOCIAL....101
6.CONCLUSÃO............................................................................................................114
BIBLIOGRAFIA...........................................................................................................117
7
1. INTRODUÇÃO O Estudo que nos propusemos a elaborar fará uma abordagem sobre a origem e a
evolução dos Princípios Constitucionais e dos Direitos Sociais dentro de nosso ordenamento
jurídico constitucional. Procuraremos enfatizar os princípios da boa-fé, da eticidade, da dignidade
da pessoa humana e da proteção, que além de possuírem estatura constitucional, norteiam e
direcionam o Direito do Trabalho de nosso País.
Nosso objetivo é proporcionar uma nova visão hermenêutica do princípio da
dignidade da pessoa humana, objetivando que sua aplicação venha a garantir um efetivo acesso à
Justiça Social. Para isso procuraremos demonstrar de que forma os aplicadores do Direito, em
especial, os Juízes do Trabalho, no nosso modo de ver, deveriam aplicá-lo quando da apreciação
dos casos levados ao seu conhecimento, visando uma maior efetividade na prestação
jurisdicional.
Ao propormos a presente pesquisa temos a expectativa de contribuir com os
operadores do direito, mais especificamente com aqueles que se debruçam diuturnamente sobre
as questões relacionadas ao Direito do Trabalho, visando buscar soluções que possibilitem
eficiência e maior proteção dos direitos trabalhistas.
Neste diapasão, não se pode esquecer que o Direito do Trabalho é Direito Social;
em seu âmbito, discute-se salário, trabalho e sustento do trabalhador e de sua família e, portanto,
em última análise, falamos de dignidade da pessoa humana. A fome e outras mazelas decorrentes
da inserção do trabalhador no mundo ocupacional não podem esperar.
De maneira coerente com tal premissa, a lei, formulada para proteger o pólo fraco
de toda e qualquer relação jurídica, não pode representar impedimento para a garantia de
prestação jurisdicional eficaz e tempestiva daquele que, na relação capital x trabalho, não possua
8
qualquer garantia de que seu emprego e, portanto, o sustento de seus dependentes, estará
assegurado.
É tempo de aplicação dos princípios, do Estado Democrático de Direito, da
Democracia. É o tempo da prevalência da Dignidade da Pessoa Humana.
Com base nessa premissa e nesses valores nos propusemos a elaborar o presente
estudo visando discutir a possibilidade de uma nova visão hermenêutica do Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana, como forma de acesso à Justiça Social.
Primeiramente trataremos dos três elementos que concretizam a condição e a
existência humanas: labor, trabalho e ação. Procuraremos demonstrar de que forma a vida ativa
fundamenta a condição humana, bem como sua dimensão filosófica, sociológica, econômica e
jurídica.
Em um segundo momento procuraremos enfatizar a questão da hermenêutica
jurídica analisando o problema hermenêutico da aplicação para, ao final, tentarmos dimensionar
de que forma o Juiz, na era do Estado Democrático de Direito e com fundamento no Princípio da
Dignidade da Pessoa Humana, deverá proferir suas decisões, visando, acima de tudo, alcançar a
Justiça Social.
No momento seguinte nossas considerações repousarão sobre os princípios de
estatura constitucional e os direitos sociais, seu surgimento e sua evolução diante de todas as
Constituições do Brasil, desde o tempo do Império, até a Constituição Cidadã de 5 de outubro de
1988. Faremos, ainda, um breve histórico sobre a Justiça do Trabalho no Brasil e os direitos
individuais elencados nas Constituições Federais do País. Estudaremos os princípios, seu alcance
e aplicação, em especial os princípios da Boa-fé, da Eticidade e da Dignidade da pessoa humana.
Para uma melhor compreensão do ensaio que nos propusemos a elaborar, mister uma distinção
entre os conceitos de Direito ao trabalho, Direito no trabalho e Direito do Trabalho, para que,
9
desta forma, possamos melhor compreender que, fundamentando sua decisão no princípio da
dignidade da pessoa humana, o Juiz do Trabalho poderá buscar os dispositivos legais que melhor
se adeqüem ao caso levado ao seu exame e, agindo dessa forma, estará próximo de uma decisão
justa, podendo garantir uma efetiva prestação jurisdicional e, em conseqüência, o absoluto acesso
à justiça.
Por fim, procuraremos discutir de que forma o Princípio da Proteção dará
efetividade à Justiça Social. Procuraremos, inicialmente, analisar o atual conceito de acesso à
justiça, visando superar o entendimento segundo o qual esse acesso se restringe ao direito de
ingresso ou contestação de ações judiciais, nas varias instâncias do Poder Judiciário. Neste
diapasão procuraremos enfatizar que somente através da aplicação do Princípio da Proteção, no
âmbito do Direito do Trabalho, o Juiz poderá igualar as forças do capital e do trabalho, de patrões
e empregados, tendo em vista que o fundamento deste princípio está ligado à própria razão de
existência do Direito do Trabalho, que surgiu como conseqüência de que a liberdade de contrato
entre pessoas com poder e capacidade econômicas desiguais poderia conduzir a diferentes formas
de exploração. Falaremos sobre as ponderações divergentes, em especial às defendidas pelo
Professor Arion Sayão Romita, em sua obra O Princípio da Proteção em Xeque, por estarem ali
esposados alguns dos argumentos contra os quais procuramos lutar em nosso dia-a-dia pela
aplicação do Direito Social. E é com enorme respeito e admiração ao professor Romita e por total
amor ao argumento e ao Direito do Trabalho que ousaremos discutir suas considerações e seus
fundamentos.
Concluiremos nossos estudos defendendo o Direito ao Trabalho, o Direito no
Trabalho e o Direito do Trabalho, bem como a aplicação dos Princípios da Boa-fé, da Eticidade,
da Dignidade da Pessoa Humana e da Proteção, como forma de um ilimitado e efetivo acesso à
Justiça Social em nosso País.
10
A pesquisa ora proposta será de natureza documental, de acordo com o modelo
crítico dialético.
Conforme dito anteriormente, a pesquisa que ora se inicia fará uma abordagem
sobre a origem e a evolução dos Princípios Constitucionais e dos Direitos Sociais dentro de nosso
ordenamento jurídico constitucional, objetivando que a aplicação dos princípios da boa-fé, da
eticidade, da dignidade da pessoa humana e da proteção, possam garantir um efetivo acesso à
Justiça Social e, assim, possam os aplicadores do Direito, em especial os Juízes do Trabalho,
garantir uma efetiva, rápida e justa prestação jurisdicional, alcançando-se, desta forma, a paz e a
justiça sociais.
Para o desenvolvimento da pesquisa, pretendemos tomar como fontes a vasta
doutrina filosófica, constitucional e trabalhista nacional e estrangeira, que visem a dar suporte às
respostas questões norteadoras e objetivos de nossa investigação.
A adoção desse material obedecerá a critérios históricos e evolutivos do direito
constitucional e do trabalho, que visem a demonstrar qual a realidade atual do Direito do
Trabalho e quais as suas perspectivas futuras. A coleta de dados será feita através da consulta à
bibliografia, além de busca em Internet, jornais, revistas e periódicos que tratem do tema a ser
abordado.
Nosso objetivo não é apenas a defesa de uma tese, mas uma tese em defesa da
Constituição, do Trabalho, do Direito e da Justiça em toda sua amplitude; é a defesa dos
princípios como origem e fundamento do próprio Direito; é uma declaração de confiança e fé de
que, proteger é ser ético, é agir de boa-fé e é garantir o respeito à dignidade de todo e qualquer
ser humano.
Façamos nossa parte.
11
2. LABOR, TRABALHO E AÇÃO COMO FORMAS DE
CONCRETIZAÇÃO DA EXISTÊNCIA E CONDIÇÃO HUMANAS.
2.1. A VIDA ATIVA COMO FUNDAMENTO DA CONDIÇÃO HUMANA.
Neste capítulo trataremos das concepções sobre labor, trabalho e ação, como
atividades fundamentais da vita activa, desenvolvidas por Hannah Arendt, em sua obra A
condição humana; Tradução de Roberto Raposo, prefácio de Celso Lafer 10ª edição – Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2003, que visa, fundamentalmente, refletir sobre os nossos fazeres
nestes três campos de atividade.
Contudo, antes de empreendermos o desenvolvimento da questão é necessário a
explicitação de qual vida ativa trata Hannah Arendt, na referida obra.
Testemunhamos um tempo de surpreendentes progressos do conhecimento do
universo e da vida, não apenas afirmados na dimensão da vida especulativa, mas
experimentalmente provado pela dimensão da vida ativa. A primeira guerra mundial em 1919 e a
segunda, em 1945 são os dois acontecimentos que impuseram novas concepções a respeito do
universo da matéria, do homem, da vida onde o universo e a matéria, segundo Jaspers1, projetam
nosso conhecimento do mundo para os infinitos; o primeiro para o infinitamente grande, sempre
em expansão; o segundo, para o infinitamente pequeno, sempre em contração.
1 JASPERS, Karl. Introdução ao pensamento filosófico. Tradução de Leônidas Hegenberg e Octanny Silveira da Mota. 5ª edição - São Paulo, Editora Cultrix, 1965. p. 18.
12
A partir desse mundo, a ciência construiu uma visão radicalmente nova. Antes
daquele momento se aceitava que a totalidade do existente era o mundo, mas o mundo se
fragmentou, se desmitificou e os seus fenômenos tornaram-se inteligíveis. Estamos num mundo,
sem termos jamais como objeto, a totalidade desse mesmo mundo. Nele, os fenômenos devem ser
explorados ao infinito2 .
Situado no mundo, “o homem que somos parece a própria evidência e é, entretanto
a mais enigmática das coisas.”3 Como enfatiza Jaspers,4 “tudo que sabemos do homem, tudo que
cada um dos homens sabe de si mesmo não corresponde ao homem. Aquilo a que o homem está
ligado, aquilo com que o homem se debate não identifica o homem.” É na relação com o outro
que o homem, através da ação sobre o mundo e sobre si mesmo, se reconstrói e faz a sua própria
história.
Exilado em seu existente o homem quer ultrapassar-se. Não se satisfaz
com ser numa quietude fechada em si mesma, o perpétuo retorno do existente. Não
mais se reconheceria autenticamente como homem, se se contentasse com ser o homem
que hoje é. [...] Só na ação sobre si mesmo e sobre o mundo, em suas realizações é que
ele adquire consciência de ser ele próprio, é que ele domina a vida e se ultrapassa. 5.
2.2. A INVERSÃO DA ORDEM HIERÁRQUICA ENTRE VIDA ATIVA E
VIDA CONTEMPLATIVA. 2 JASPERS, Op. Cit., p. 23. 3 IDEM, p. 45. 4 IDEM, p. 48. 5 IDEM, p. 50.
13
As descobertas da era moderna e a fé do homem “no engenho das próprias mãos”
levaram, segundo Hannah, à inversão da ordem hierárquica entre a vida contemplativa e a vida
ativa. Sendo um instrumento, o telescópio, obra da mão do homem que forçou o universo a
revelar os seus segredos.
As razões para que se confiasse no fazer e se desconfiasse do contemplar ou observar
tornaram-se ainda mais fortes após o resultado das primeiras pesquisas ativas.6 [...] a
mudança que ocorreu no século XVII foi mais radical do que se pode depreender da
simples inversão da ordem tradicional entre contemplação e ação.7 (304)
Mostrando que a inversão de posição entre a vida ativa e a vida contemplativa não
é privilégio da modernidade, mas algo que tem ocorrido ao longo da história, Hannah afirma que
a tradição platônica do pensamento filosófico e político começou com uma inversão, e que esta
inversão determinou em grande parte as correntes de pensamento da filosofia ocidental. Que a
inversão de que trata A condição humana tem como suporte as descobertas de Galileu e como
fundamento, “a convicção de que a verdade objetiva não é dada ao homem e que ele só pode
conhecer aquilo que ele mesmo faz não advém do ceticismo, mas de uma descoberta
demonstrável e, portanto, não leva à resignação, mas a uma atividade redobrada ou ao
desespero.” 8
Para compreensão do termo Condição Humana, Hannah Arendt9 utiliza a
expressão a vita activa pretendendo designar três atividades humanas fundamentais: labor,
6 ARENDT, Hannah. A condição Humana. 10ª edição – 3ª reimpressão. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2003. p. 303. 7 IDEM, p. 304. 8 IDEM, p. 306. 9 IDEM, p. 15.
14
trabalho e ação, porque a cada uma delas corresponde uma das condições básicas mediante as
quais a vida foi dada por Deus ao Homem aqui na terra.
O labor é a atividade que corresponde ao processo biológico do corpo humano,
cujo crescimento espontâneo, metabolismo e declínio, mesmo que eventuais, têm a ver com as
necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo labor no processo da vida. Portanto, a
condição humana do labor é a própria vida.
O trabalho é a atividade correspondente ao artificialismo da existência humana, ou
seja, pelo trabalho o homem produz um mundo artificial de coisas e através dele pode modificar
todo e qualquer ambiente natural. O trabalho como condição humana é a mundalidade, ao passo
que o mundo deva transcender e sobreviver a todas as vidas individuais. Em outras palavras, o
homem nasce, trabalha, morre e o mundo permanece em função desse trabalho por ele
desenvolvido.
A ação, única atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a
mediação das coisas ou da matéria, corresponde à condição humana da pluralidade já que nesse
sentido os homens e não o Homem, vivem e habitam o mundo e se multiplicam dando
continuidade à vida humana e ao próprio mundo.
Essas três atividades antes mencionadas e suas respectivas condições têm íntima
relação com as condições mais gerais da existência humana, isto é, o nascimento e a morte, a
natalidade e a mortalidade. O labor é o responsável por assegurar não apenas a sobrevivência do
indivíduo, mas a vida da espécie; o trabalho e seu produto, o artefato humano, emprestam certa
permanência e durabilidade à futilidade da vida mortal e ao caráter efêmero do tempo humano e,
15
por fim, a ação, na medida em que se empenha em fundar e preservar corpos políticos, cria a
condição para a lembrança, ou seja, para a história.
O labor e o trabalho, bem como a ação, têm também raízes na natalidade, na
medida em que sua tarefa é produzir e preservar o mundo para o constante influxo de recém-
chegados que vêm a este mundo na qualidade de estranhos, além de prevê-los e levá-los em
conta. Não obstante, das três atividades, a ação é a mais intimamente relacionada com a condição
humana da natalidade; o novo começo inerente a cada nascimento pode fazer-se sentir no mundo
somente porque o recém-chegado possui a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir.
Tem-se, pois, que tudo que toque ou diga respeito à vida humana ou entre em
ralação duradoura com ela assume imediatamente o caráter de condição da existência humana.
Sendo assim, os homens, independentemente do que façam serão sempre seres condicionados,
posto que, tudo o que adentra espontaneamente no mundo humano, ou por ele é trazido pela
força humana, torna-se parte da condição humana.
2.3. DIMENSÃO FILOSÓFICA – O MUNDO DA CONTEMPLAÇÃO E O
MUNDO DA AÇÃO.
A expressão vita activa trás uma enorme carga de tradição e essa tradição, longe
de abranger e conceituar todas as experiências políticas da humanidade ocidental é produto de
uma constelação histórica específica: o julgamento de Sócrates e o conflito entre o filósofo e a
polis. Depois de haver eliminado muitas das experiências de um passado anterior que eram
16
irrelevantes para suas finalidades políticas, prosseguiu até o fim, na obra de Karl Marx, de modo
altamente seletivo. A própria expressão que, na filosofia medieval, é a tradução consagrada do
bios politikos de Aristóteles, já ocorre em Agostinho onde, como vita negatiosa ou actuosa,
reflete ainda o seu significado original: uma vida dedicada aos assuntos públicos e políticos.
São três os modos de vida que Aristóteles distinguia, os quais caberia ao homem
escolher livremente, independentemente das necessidades da vida e das relações dela decorrentes.
Esta condição, que garantia tal liberdade de escolha do tipo de vida escolhida pelo homem para si
eliminava, de logo, qualquer modo de vida dedicado basicamente à sobrevivência do indivíduo –
não apenas o labor, que nada mais era do que o modo de vida do escravo, mas também a vida de
trabalho dos artesãos livres e a vida aquisitiva do mercador. Essa liberdade de escolha de vida
pelo homem excluía todas as formas em que o homem, voluntária ou involuntariamente,
temporária ou permanentemente, não poderia dispor de liberdade quanto aos seus movimentos e
às suas ações.
Excluídos tais modos de vida, Aristóteles distinguia três outros modos, os quais
têm em comum o fato de se ocuparem do “belo”, ou seja, de coisas que não eram necessárias nem
meramente úteis. São eles:
...a vida voltada para os prazeres do corpo, na qual o belo é consumido tal como é dado; a vida dedicada aos assuntos da polis, na qual a excelência produz belos feitos; e a vida do filósofo, dedicada à investigação e à contemplação das coisas eternas, cuja beleza perene não pode ser causada pela interferência produtiva do homem nem alterada através do consumo humano.”10
10 ARENDT, Op. Cit. p. 21.
17
Vale dizer que essa enorme superioridade da contemplação sobre qualquer outro
tipo de atividade, inclusive a ação, não tem sua origem no cristianismo. Pode ser encontrada na
filosofia política de Platão, onde toda a reorganização utópica da vida na polis não é apenas
dirigida pelo superior discernimento do filósofo, porém, sua finalidade não é outra senão tornar
possível o modo de vida filosófico.
Tradicionalmente, e até o início da era moderna, a expressão vita activa jamais
perdeu sua conotação negativa de “in-quietude”. Como tal, sempre permaneceu intimamente
ligada à distinção grega, ainda mais fundamental, entre as coisas que são por si o que são e as
coisas que devem ao homem a sua existência. O primado da contemplação sobre a atividade
baseia-se na convicção de que nenhum trabalho de mãos humanas pode igualar em beleza e
verdade o kosmos físico, que revolve em torno de si mesmo, em imutável eternidade, sem
qualquer interferência ou assistência externa, seja humana ou divina.
Há, pois, uma significativa separação entre dois mundos e dois homens distintos: o
mundo da contemplação, onde reside o homem do pensamento, e o mundo da ação, onde reside o
homem com a mesma natureza, o homem que trabalha, que produz e que modifica o mundo em
que vive, sendo a ação responsável por sua condição humana.
2.4. DIMENSÃO SOCIOLÓGICA - A AÇÃO COMO ELEMENTO DA
CONDIÇÃO HUMANA.
18
A vita activa, isto é, a vida humana na medida em que se empenha ativamente para
fazer algo, tem raízes permanentes em um mundo de homens; em um mundo de coisas
produzidas, feitas pelos homens. As coisas e os homens, com efeito, constituem o ambiente de
cada uma das atividades humanas que não teriam sentido se não estivessem ou pertencessem a
esse mundo. Por essa razão, seria correto afirmar que o mundo ao qual viemos não existiria sem a
atividade humana que o produziu; produtos fabricados, cultivo de terras, organização do corpo
político.
Todas as atividades humanas são condicionadas pelo fato de que os homens vivem
juntos; mas, somente a ação, apenas ela é a única que não pode ser imaginada fora da sociedade
dos homens. Poder-se-ia dizer que a atividade do labor realizada por um único homem em
completa solidão, sem requerer a presença de outros homens que laborassem junto a ele, o
transformaria de homem em animal laborans. Quanto ao trabalho, um homem que trabalhasse,
fabricasse, construísse em um mundo habitado apenas por ele mesmo seria um fabricador, mas
teria perdido a sua qualidade especificamente humana e seria, antes, um deus, mas, certamente,
não o Criador.
A ação é prerrogativa exclusiva do homem e só ela depende inteiramente da
constante presença de outros homens. Com essa afirmação e com a relação entre ação e vida em
comum, podemos concluir que o homem é, por natureza, um ser social e político. É somente com
o conceito de sociedade da espécie humana que o termo “social” começa a adquirir sentido geral
de condição humana fundamental.
Segundo o pensamento grego, a capacidade humana de organização política não
apenas difere mas é diretamente oposta a essa associação natural cujo centro é construído pela
19
casa e pela família. O surgimento da cidade-estado significava que o homem recebera, além de
uma vida individual e privada, uma segunda: a vida política.
De todas as atividades necessárias e presentes nas comunidades humanas, somente
duas eram consideradas políticas: a ação e o discurso, os quais eram tidos como semelhantes,
pertencentes às mesmas categoria e espécie; isto significava originalmente não apenas que quase
todas as ações políticas são realmente realizadas por meio de palavras, sendo a ação nada mais do
que o ato de encontrar as palavras adequadas no momento certo, independentemente da
informação ou comunicação que transmitem.
Na experiência da polis que, com alguma razão, tem sido considerada o mais
eloqüente dos corpos políticos, e mais ainda na filosofia-política que dela surgiu, a ação e o
discurso separaram-se e tornaram-se atividades cada vez mais independentes. A ênfase passou da
ação para o discurso, e para o discurso como meio de persuasão, não como forma
especificamente humana de responder, replicar e enfrentar o que aconteceu ou o que é feito.
O ser político, o viver em uma polis, significava que tudo era decidido mediante
palavras e persuasão, e não através do emprego de força ou violência. Os gregos compreendiam
que o emprego da violência ao invés da persuasão eram modos pré-políticos de tratar com as
pessoas e que só tinham lugar fora das polis, sendo característicos do lar e da vida em família,
onde o chefe da casa se fazia impor através de poderes nunca contestados, ou também nos
impérios bárbaros cujos imperadores se impunham através dos poderes despóticos.
Já Aristóteles não pretendia definir o homem, mas identificar sua mais alta
capacidade, a qual, para ele não era o uso da palavra, o Logus, mas o nous, isto é, a capacidade de
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contemplação, cuja principal característica é que o seu conteúdo não pode ser reduzido a
palavras.
Hannah Arendt11 afirma haver um profundo erro de interpretação contido na
tradução latina de “político” como “social”:
De fato, não só na Grécia e na polis, mas em toda a antiguidade ocidental, teria sido
evidente que até mesmo o poder do tirano não era tão grande nem tão ‘perfeito’ quanto
o poder com que o paterfamilias, o dominus, reinava na casa onde mantinha os seus
escravos e seus familiares; e isto não porque o poder do dirigente da cidade fosse
igualado e controlado pela combinação dos poderes dos chefes de família, mas porque o
domínio absoluto e inconteste e a esfera política propriamente dita eram mutuamente
exclusivas.
Embora tal equivoco de interpretação entre as esferas política e social seja tão
antigo quanto a tradução latina de expressões gregas e sua adaptação ao pensamento romano-
cristão, a confusão daí decorrente agravou-se ainda mais no uso moderno e na moderna
concepção de sociedade.
A distinção entre uma esfera de vida privada e uma esfera de vida pública
corresponde à existência de uma esfera da família e outra da política, como entidades
absolutamente diferentes e distintas, que se acentuou com o surgimento da cidade-estado.
Cabe aqui uma distinção entre a esfera familiar e a esfera da polis. Era na esfera
familiar que os homens viviam juntos por serem a isso compelidos por suas necessidades e por
11 ARENDT, Op Cit. p. 36-37.
21
suas carências, impostas pela própria vida. E assim, pois, com o acompanhamento de outros
homens, era mantida a sua sobrevivência e a de sua espécie. Na esfera familiar a tarefa do homem
era a manutenção individual, através do labor e do suprimento dos alimentos, enquanto que à
mulher cabia a sobrevivência da espécie, através do parto. Tanto homem quanto mulher
trabalhavam para a permanência da vida e a comunidade natural da família, do lar, decorria da
necessidade.
A esfera da polis, ao contrário, era a esfera da liberdade, isto é, se havia alguma
relação entre família e polis, essa repousava na idéia de que a vitória sobre as necessidades da
vida em família constituía a condição natural para a liberdade na polis. Assim, liberdade encontra
seu amparo na esfera social. É através da liberdade que o homem que vive em sociedade, seja ela
qual for, de empregados ou de proprietários, de consumo ou de produção, protege-se da
autoridade política e da violência, que passa a ser monopólio do governo.
Por fim, pode-se dizer que a polis diferenciava-se da família pelo fato de somente
conhecer “iguais”, ao passo que a família era o centro da mais severa desigualdade. Ser livre
significava ao mesmo tempo não estar sujeito às necessidades da vida nem ao comando do outro
e também não significava submissão. Assim, dentro da esfera da família, a liberdade não existia,
pois o chefe da família, seu dominante, só era considerado livre na medida em que tinha a
faculdade de deixar o lar e ingressar na esfera política, onde todos eram iguais.
Com o advento da sociedade, com a admissão das atividades caseiras e da
economia doméstica à esfera pública, a nova esfera tem-se caracterizado principalmente por uma
irresistível tendência a crescer e de devorar as esferas mais antigas como a política e a privada.
Este enorme e constante crescimento é reforçado pelo fato de que, através da sociedade, o próprio
22
processo da vida foi, de uma ou de outra forma, canalizado para a esfera pública. A esfera
privada da família era o plano no qual as necessidades da vida, da sobrevivência individual e da
continuidade da espécie eram atendidas e garantidas.
A mais nítida indicação de que a sociedade constitui a organização pública do
próprio processo de vida talvez seja encontrada no fato de que, em um breve espaço de tempo, a
nova esfera social transformou todas as comunidades modernas em sociedades de operários e de
assalariados, em outras palavras, essas comunidades concentram-se imediatamente em torno da
única atividade necessária para manter a vida – o labor.
2.5. DIMENSÃO ECONÔMICA – AS ESFERAS PÚBLICA E PRIVADA.
Para nossos estudos, o que interessa neste contexto é a o surgimento de um fato
novo, qual seja, uma divisão decisiva entre as esferas pública e privada, entre as esferas da polis e
da família e, finalmente entre as atividades pertinentes a um mundo comum e aquelas pertinentes
à manutenção da vida, divisão esta na qual se baseava todo o antigo pensamento político, que a
via como axiomática e evidente por si mesma. Pode-se dizer que a linha divisória é inteiramente
diversa, tendo em vista ver o corpo de povos e comunidades políticas como uma família, cujos
negócios diários devem ser atendidos por uma administração doméstica nacional e gigantesca. O
pensamento científico, portanto, que corresponde a essa nova concepção já não reflete a ciência
política, mas a economia nacional ou a economia social, todas elas indicando uma espécie de
administração doméstica coletiva, conhecida, a partir de então, como sociedade, ou seja, o
conjunto de famílias economicamente organizadas de modo a constituírem o fac-smile de uma
única família sobre-humana, e sua forma política de organização é denominada nação.
23
O que foi chamado anteriormente de ascensão do social coincidiu historicamente
com a transformação da preocupação privada em preocupação pública. Logo que passou à esfera
pública, a sociedade assumiu o disfarce de uma organização de proprietários que, ao invés de se
arrogarem acesso à esfera pública em virtude de sua riqueza, exigiram dela proteção para o
acúmulo de mais riqueza.
O que se pode constatar é que a apropriação privada de riquezas não é bastante
para proteger as liberdades individuais, tendo em vista que em uma sociedade de detentores de
empregos, sem qualquer estabilidade ou garantia que os assegurem nos mesmos, estas liberdades
só estarão seguras na medida em que são garantidas pelo estado, e ainda hoje são constantemente
ameaçadas, quer pela sociedade, que distribui os empregos e determina a parcela de apropriação
individual, como pelo próprio estado, que dispõe de sua faculdade de legislar de acordo com a
conveniência e necessidade do governo que detiver o poder em dado momento, deixando-se de
lado, pois, com tal postura, os direitos sociais e excluindo-se os mesmos da categoria dos direitos
fundamentais.
Leciona Vicente de Paulo Barretto 12 em seu texto denominado Reflexões sobre os
Direitos Sociais, que a alocação de recursos para suprimir demandas sociais depende, em última
instância, da vontade política que se expressa no estado democrático de direito através do sistema
representativo, quando ocorre a escolha pelo eleitor dos projetos públicos de sua preferência.
Tanto a questão da liberdade, como a da igualdade, constituem o pano de fundo diante do qual
serão escolhidas as alternativas de políticas públicas apresentadas pelos partidos políticos. E
12 BARRETTO, Vicente de Paulo. Texto: Reflexões sobre os Direitos Sociais. Direitos Fundamentais Sociais: Estudos de Direito Constitucional, Internacional e Comparado, organizado por Ingo Wolfgang Sarlet. Rio de Janeiro - São Paulo. Renovar, 2003. p. 119-120.
24
acrescenta: “A sociedade é que deverá escolher quais as opções político-econômicas e, portanto,
em quais setores serão aplicados preferencialmente os recursos públicos.”13
Como assinalado anteriormente, o labor é a única atividade necessária para manter
a vida. É indispensával, todavia, fazer uma distinção entre labor e trabalho para que se possa
chegar a uma dimensão jurídica dessa ação imprescindível da condição humana.
Entendemos que tal discussão deve restringir-se aos conceitos atuais, tendo em
vista o que nos dispusemos a abordar nas linhas que completam nossos estudos.
É surpreendente que a era moderna, onde se inverteram todas as tradições
referentes aos conceitos de ação e contemplação, como a tradicional hierarquia dentro da própria
vita activa, tendo glorificado o trabalho (labor) como fonte de todos os valores, e tendo
promovido o animal laborans à posição tradicionalmente ocupada pelo animal rationale - não
tenha produzido uma única teoria que distinguisse claramente entre o labor do nosso corpo e o
trabalho de nossas mãos. O que se vê na verdade é uma distinção entre trabalho produtivo e
improdutivo; mais tarde, uma diferenciação entre trabalho qualificado e não-qualificado; e,
finalmente, sobrepondo-se a ambas por ser aparentemente de importância mais fundamental, a
divisão de todas as atividades em trabalho manual e intelectual.
Apenas o trabalho produtivo tinha a aceitação da opinião pública, sendo
menosprezado o trabalho improdutivo, ao passo que esse modo de trabalho não contribuía para o
enriquecimento do mundo. Em outras palavras a distinção entre trabalho produtivo e
improdutivo, contém, embora recheada de preconceito, a distinção mais fundamental entre
trabalho e labor, tendo em vista ser típico deste último, nada deixar atrás de si: o resultado de seu 13 IDEM. P. 120.
25
esforço é consumido quase tão depressa quanto o esforço é despendido. E, no entanto, esse
esforço, a despeito de sua futilidade, decorre de enorme premência; motiva-o o impulso mais
poderoso que qualquer outro, pois a própria vida depende dela. A era moderna, em geral
fascinada, pela produtividade real e sem precedentes da humanidade ocidental, tende quase que
irresistivelmente a encarar todo o labor como trabalho e a falar do animal laborans em termos
muito mais adequados ao homo faber, como a esperar que restasse apenas um passo para eliminar
totalmente o labor e a necessidade.
Independentemente de circunstâncias históricas ou localização na esfera pública
ou privada, há que se destacar aqui a verdadeira atividade do trabalho (labor), qual seja, a
produtividade. Essa produtividade não reside em qualquer um dos produtos do labor, mas,
efetivamente, na força humana, cuja intensidade não se esgota depois de produzidos os meios de
subsistência ou sobrevivência, mas tem a capacidade de produzir algo mais, mais do que
realmente se tem por necessário. Essa força de trabalho do homem, portanto, é que explica a
produtividade do trabalho e é a partir desse ponto de partida que devemos concentrar nossos
estudos em busca de uma melhor compreensão e aprimoramento das decisões que contemplem o
homem e sua força de trabalho produtiva.
Não há, todavia, como iniciar nossas considerações sem nos reportarmos ao
trabalho escravo, que ainda hoje, em lugares não tão distantes, pode ser encontrado sem tanta
dificuldade.
A escravidão veio a ser a condição social das classes trabalhadoras porque se
acreditava que ela era a condição natural da própria vida.
26
O ônus da vida biológica, que pesa sobre a vida humana, medida entre os dias do
nascimento e da morte, e que a consome, só pode ser eliminado mediante o uso de servos, sendo
a função principal dos antigos escravos, a de arcar com o ônus do consumo de uma casa, e não
produzir para uma sociedade em geral. O trabalho escravo, portanto, desempenhou um
importante papel nas antigas sociedades porque os poderosos da terra podiam usar até mesmo os
sentidos através de seus escravos, isto é, podiam ver e ouvir através de seus escravos, sendo a
comida sua recompensa. Assim, com essa paga, os escravos obtinham o necessário para
sobreviver, enquanto seus donos, proprietários de terras, tinham a certeza de que subsistiriam
fisicamente. Vale ressaltar que essa remuneração, a qual consistia basicamente na sobrevivência
dos escravos, mantinha, por outro lado, a rentabilidade da terra de seus donos.
Sendo assim, o trabalho escravo era um trabalho que revertia seus frutos única e
exclusivamente aos seus donos, nada, porém, se destinava aos próprios escravos.
Passamos posteriormente a uma nova era do trabalho, onde surgem as ferramentas
e os instrumentos que podiam suavizar consideravelmente o esforço do labor. Tais instrumentos e
ferramentas são, na verdade, frutos do trabalho do próprio homem.
Passa-se a ter uma abundante e desenfreada busca pelo consumo, que move a
sociedade e que traduz nossa preocupação com o trabalho e com o homem que trabalha. É através
de uma dimensão jurídica do trabalho como condição humana que procuraremos amparar esse
trabalhador cada vez mais vulnerável e isolado no mundo da produção e do consumo
exacerbados.
Podemos dizer que o trabalho, se por um lado, deu algum poder ao homem, por
outro, tornou-o impotente diante de um enorme instrumental que o obriga a pensar em por a salvo
27
a própria existência humana. Irany Ferrari14 afirma que o trabalho, de uma parte eleva, liberta e
civiliza o homem para o mundo e de outra, reduz o homem a tarefas que o embrutecem pela
rotina desgastante.
Evoluindo, o homem foi encontrando os meios necessários para seu
desenvolvimento pessoal e social e, assim, o trabalho passou a oferecer-lhe melhores condições
de uma vida condigna e maior segurança, deixando de ser castigo, como na escravidão, e
passando a ser sinônimo de bem-estar do próprio trabalhador e de sua família. Passa a ser
exigência social, pois traz benefícios a toda a sociedade; adquiriu status social, pois passou a
contribuir para uma melhoria no nível de vida do trabalhador e de sua família; passou a ter
relevância política, pois, passou-se a exigir mais do Estado no que concerne à educação, saúde,
saneamento etc. e, por fim, passa a ter um caráter de solidariedade, pois o trabalho sai da esfera
do indivíduo e passa à esfera coletiva, isto é, no mundo moderno já não trabalha mais o homem
sozinho, mas todos os homens.
Há que se ressaltar que o trabalho começa a se expandir tanto na esfera do
indivíduo, quanto nas sociedades civil, comercial, industrial e agrícola, começando, pois, a trazer
melhorias na renda de quem se dedica ao trabalho, especialmente, para aqueles que se dedicam
aos trabalhos de direção e supervisão, o que traz uma nova visão ao trabalho intelectual, o qual
passa a assumir um papel relevante no meio empresarial.
14 FERRARI, Irany, NASCIMENTO, Amauri Mascaro e FILHO, Ives Gandra da Silva Martins. História do Trabalho do Direito do Trabalho e da Justiça do Trabalho – Homenagem a Armando Casimiro Costa. 2ª Edição. São Paulo: Editora LTr, 2002. pg. 48.
28
2.6. DIMENSÃO JURÍDICA - TRABALHO QUE LIBERTA E EMBRUTECE O
HOMEM.
Chegados a esse ponto, o trabalho não poderia deixar de merecer a proteção do
Direito. Um valor em si mesmo, eleva-se à condição de Bem Jurídico e passa a ser tutelado pelo
Estado.
No caso brasileiro o trabalho tem estatura constitucional desde a Constituição
Política do Império, datada de 25 de março de 1824, a qual, em seu artigo 179 garantia a
liberdade, a segurança individual e a propriedade, de diversas maneiras, estabelecendo no item 24
que nenhum gênero de trabalho, de cultura, indústria ou comércio poderia ser proibido, uma vez
que não se opusessem aos costumes públicos, à segurança e saúde dos cidadãos.
Já a Constituição Republicana, de 1891, na Seção de Declaração de Direitos,
artigo 72, inciso 24, estabelecia, em síntese, ser garantido o livre exercício de qualquer profissão
moral, intelectual e industrial.
A Carta de 16 de julho de 1934, originária do Governo Provisório instalado no
País em data de 11.11.1930, teve a primazia de introduzir um capítulo dedicado à Ordem
Econômica e Social nas que lhe sucederam. Escreveu-se naquela Constituição de 1934, no
Capítulo II destinado aos Direitos e Garantias Individuais, mais especificamente em seu item 12,
estar garantida a liberdade de associação para fins lícitos, as quais não poderiam ser previamente
dissolvidas senão por força de sentença judiciária. O item 13 do mesmo capítulo, por sua vez,
29
dizia ser livre o exercício de qualquer profissão, observadas as condições de capacidade técnica e
outras que a lei estabelecesse, ditadas pelo interesse público.
Por fim, já no Título IV de que trata da Ordem Econômica e Social poder-se-ia
destacar os artigos: 115 que estabelecia ser de responsabilidade dos poderes públicos a
verificação periódica acerca do padrão de vida nas várias regiões do País; 120 que disciplinava a
matéria sindical e 121 que dispunha que a lei promoveria o amparo à produção e estabeleceria as
condições de trabalho, na cidade e nos campos, tem em vista a proteção social do trabalhador e os
interesses econômicos do País. Vale ressaltar que o parágrafo primeiro desse mesmo dispositivo
legal passou a ser praticamente seguido pelas demais Constituições do Brasil, quando estabelecia
que a legislação do trabalho observaria os seguintes preceitos, além de outros que colimassem
melhorar as condições do trabalhador, quais sejam, proibição de diferença de salário para o
mesmo trabalhador por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil, salário mínimo
capaz de satisfazer as necessidades normais de cada trabalhador, jornada de trabalho diária não
excedente de oito horas, proibição do trabalho para menores de 14 anos, de trabalho noturno para
os menores de 16 anos e em condições insalubres aos menores de 18 anos e às mulheres, repouso
hebdomadário, de preferência aos domingos, férias anuais remuneradas, indenização do
trabalhador dispensado sem justa causa, assistência médica e sanitária ao trabalhador e à gestante,
assegurado a esta descanso antes e depois do parto, sem prejuízo do salário e do emprego, e
instituição de previdência, mediante contribuição igual à União, do empregador e do empregado,
a favor da velhice, da invalidez, da maternidade e nos casos de acidente de trabalho ou de morte,
além de regulamentação do exercício de todas as profissões e reconhecimento das convenções
coletivas de trabalho. O parágrafo segundo desse artigo 121 é de suma importância para a época,
quando ainda não havia sido criada a CLT, mas apenas algumas tímidas leis sobre o trabalho,
30
pois determinava a proibição de distinção entre o trabalho manual e intelectual ou técnico nem
entre os profissionais respectivos. Por fim, o artigo 123 da mesma Carta de 1934 equiparava aos
trabalhadores, para todos os efeitos das garantias e dos benefícios da legislação social, os que
exerciam profissões liberais.
Surgiu no ordenamento jurídico brasileiro a Carta de 10 de novembro de 1937,
com a justificativa de que o Estado, sob as instituições existentes, não dispunha de meios
adequados para preservação e defesa da paz, da segurança e do bem-estar do povo e, com o apoio
das Forças Armadas e cedendo às inspirações da opinião pública nacional, foi editada pelo
Presidente da República de então, Getúlio Vargas.
Nasce o Estado Novo, intervencionista em seu todo, mas, em especial, na Ordem
Econômica e Social – tudo é o Estado, para o Estado e nada contra ele: A greve foi proibida; os
Sindicatos passaram a ser assistenciais; vigorou a unicidade sindical, com a reserva legal de que
só o Estado poderia reconhecer-lhe a legitimidade; Criou-se o Conselho de Economia nacional
com representantes de vários ramos da produção nacional, garantida a igualdade de representação
entre empregados e empregadores, divididos em cinco seções: (a) da indústria e do artesanato; (b)
da agricultura; (c) do comércio; (d) dos transportes; e (e) do crédito. Foi retirado o termo “Social”
do Capítulo dedicado à Ordem Econômica o qual estabelecia em seu artigo 136 que o trabalho
seria um dever social. O trabalho intelectual, técnico e manual tem direito a proteção e solicitude
especiais do Estado, sendo a todos garantido o direito de subsistir mediante seu trabalho honesto
e este, como meio de subsistência do indivíduo, constituiria um bem que é dever do Estado
proteger, assegurando-lhe condições favoráveis e meios de defesa.
31
Na visão de Irany Ferrari15 este dispositivo contém a concepção mais correta
elaborada para o trabalho no contexto da sociedade. Não pode ser compreendido como um dever-
obrigação, mas como um dever-direito. Defende o ilustre professor ser certo que o Brasil da
época, sob a influência do Estado Novo, influenciado pelo fascismo italiano, o dever ali se inseriu
para ser obrigação, tanto assim, que o Código Penal Brasileiro de 1940, sob a mesma inspiração,
tipificou como crime a vadiagem. Eram os sinais dos tempos de concepções da época em que se
sonhava com um mundo igualitário, inclusive quanto às obrigações de cada um, e nesse diapasão,
de trabalhar, como um dever, de não fazer greve, por ser ato anti-social, de ser passível de prisão
quem não trabalhasse.
E conclui Irany Ferrari16 seu pensamento:
De nada disso seria preciso, como coerção estatal, se o trabalho antes da obrigação
fosse um direito de todo o cidadão, como veremos no capítulo dedicado ao direito do
trabalho, e se o Governo da época se dispusesse a tomar medidas concretas para que
nenhum brasileiro ficasse sem o trabalho, como também era a filosofia reinante, tanto
que o trabalho honesto deveria ser um dever a ser protegido pelo Estado assegurando-
lhe condições favoráveis e meios de defesa.
A Constituição de 18 de setembro de 1946, votada pela Assembléia Constituinte
legalmente convocada, reorganizou o País nos moldes democráticos, incluiu a Justiça do
Trabalho como órgão do Poder Judiciário, com a mesma Constituição que existe até hoje,
hierarquicamente. No Título reservado à Ordem Econômica e Social, está dito que ela deveria ser
organizada conforme os princípios da justiça social, conciliando a liberdade de iniciativa com a
15 FERRARI, Op. Cit. p. 57-58. 16 IDEM, p. 58.
32
valorização do trabalho humano, devendo ser assegurado trabalho a todos, possibilitando-se,
assim, existência digna, continuando a ser o trabalho uma obrigação social, neste passo entendida
como uma necessidade social, gerando reflexos positivos para toda a sociedade.
Foi, portanto, com o advento da Constituição de 1946 que se ouviu falar, pela
primeira vez, em valorização do trabalho humano, princípios de justiça social e necessidade
social. Surge, portanto, ainda muito timidamente, uma semente com a preocupação do trabalho
como forma de dignidade da pessoa e condição humanas.
Promulgada a Constituição de 1967 em um período no qual o Brasil se encontrava
sob o regime militar, que fora instaurado com a revolução de 30 de março de 1964, tinha como
objetivo o combate à inflação que atingia limites alarmantes e para prevenir o País do comando
da esquerda política que crescia a olhos vistos. Porém, sua justificativa maior foi a de garantir a
harmonia e a solidariedade entre os fatores de produção, bem como a valorização do trabalho
humano. Essa Constituição praticamente manteve os direitos individuais e coletivos dos
trabalhadores garantidos pela Constituição de 1946, restringindo, todavia, o direito à greve e
proibindo-a nas atividades essenciais e nos serviços públicos. Como avanço enfatizou a
integração do trabalhador na vida e no desenvolvimento da empresa, com participação nos lucros
e, excepcionalmente, na gestão da própria empresa. Com tal inovação surgiu, inicialmente o PIS
e, posteriormente o PASEP, sendo depois geridos, o primeiro pela Caixa Econômica Federal e o
segundo pelo Banco do Brasil. A idade mínima para o trabalho passou a ser de 12 anos o que
contrariou flagrantemente todas as recomendações internacionais. Porém, a principal alteração,
quando ao trabalho, foi, sem dúvida, a introdução do FGTS, em substituição, ao menos parcial,
do direito à indenização, que, somente com a Constituição Federal de 1988, teve seu golpe de
morte finalmente dado.
33
Foi, todavia, com a promulgação da Constituição Federal de 5 de outubro de 1988
que o trabalho passou a fazer parte dos princípios fundamentais da República Brasileira, ao lado
da soberania, da cidadania, do pluralismo político, eis que ali estão, no artigo 1º da Carta Maior,
“a dignidade da pessoa humana” e, “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”,
fundamentos do Estado Democrático de Direito, da República Federativa do Brasil.
E será sobre esses princípios basilares, em especial o da dignidade da pessoa
humana que repousarão nossas considerações neste Estudo que nos propusemos a iniciar e jamais
a encerrar.
34
3. A HERMENÊUTICA COMO INSTRUMENTO DE
CONCRETIZAÇÃO DOS PRINCÍPIOS NA APLICAÇÃO DAS NORMAS
JURÍDICAS.
3.1. OS TRAÇOS FUNDAMENTAIS DE UMA TEORIA DA EXPERIÊNCIA
HERMENÊUTICA
A elevação da historicidade da compreensão a um princípio hermenêutico.Para
Gadamer, a compreensão não se trata de uma faculdade do homem, mas sim uma pré-condição
para sua existência inteligente. A hermenêutica, segundo o autor, não é utilizada para fins
práticos; mas sua preocupação é definir em que condições se dá o processo de compreensão.
“(...). É verdade que os preconceitos que nos dominam freqüentemente
comprometem o nosso verdadeiro reconhecimento do passado histórico. Mas sem uma prévia
compreensão de si, que é neste sentido um preconceito, e sem a disposição para uma autocrítica,
que é igualmente fundada na nossa autocompreensão, a compreensão histórica não seria
possível nem teria sentido. Somente através dos outros é que adquirimos um verdadeiro
conhecimento de nós mesmos. O que implica, entretanto, que o conhecimento histórico não
conduz necessariamente à dissolução da tradição na qual vivemos; ele pode também enriquecer
essa tradição, confirma-la ou modifica-la, enfim, contribuir para descoberta de nossa própria
identidade.(...)”17
“(...).Tal é provavelmente o papel mais importante da consciência histórica
caracterizada como burguesa: não que o antigo deva ser relativizado, mas que o novo, por sua
vez relativizado, torne possível uma justificação do antigo.”18
17 Cf.Gadamer,O Problema da Consciência Histórica,p.13. 18 Cf.Gadamer,O Problema da Consciência Histórica,p.15.
35
A intenção de Gadamer é dar plausibilidade ao seu modo de ver a hermenêutica, é
por apresentar uma teoria inovadora que alguns de seus observadores atribuem ao seu trabalho a
virada hermenêutica. Ao utilizar a consciência histórica como elemento indispensável para
compreensão, Gadamer se coloca em uma posição de vanguarda nessa nova visão de
hermenêutica.
“(...).Entendemos por consciência histórica o privilégio do homem moderno de ter
plena consciência da historicidade de todo presente e da relatividade de toda opinião.(...).19
Esse homem moderno -que Gadamer descreve- possui um comportamento notadamente
reflexivo, possibilitando a compreensão como um todo:
“(...). Ninguém pode atualmente eximir-se da reflexividade que caracteriza o
espírito moderno. Seria absurdo, daqui por diante, confinar-se na ingenuidade e nos limites
tranqüilizadores de uma tradição fechada sobre si mesma, no momento em que a consciência
moderna encontra-se apta a compreender a possibilidade de uma múltipla relatividade de pontos
de vista. Também nos habituamos, nesse sentido, a responder aos argumentos que se nos opõem
através de uma reflexão em que nos coloquem deliberadamente na perspectiva do outro”.20
Para que a interpretação seja feita da maneira como Gadamer a vislumbra, a
consciência histórica não pode assumir uma atitude passiva diante da tradição:
“(...), vida moderna começa a se recusar a seguir ingenuamente uma tradição ou
um conjunto de verdades aceitas tradicionalmente. A consciência moderna assume –
precisamente como consciência histórica – uma posição reflexiva com relação a tudo que lhe é
transmitido pela tradição. A consciência histórica já não escuta beatificamente a voz que lhe
chega do passado, mas, ao refletir sobre ela mesma, recoloca-a no contexto em que ela se
originou, a fim de ver o significado e o valor relativos que lhe são próprios. Esse comportamento
reflexivo diante da tradição chama-se tradição”.21
19 Cf.Gadamer,O Problema da Consciência Histórica,p.18. 20 Cf.Gadamer,O Problema da Consciência Histórica,p.18. 21 Cf.Gadamer,O Problema da Consciência Histórica,p.18.
36
A atitude que Gadamer espera do intérprete não é a que abomine a tradição, pelo
contrário, para que seja perfeito o ciclo da compreensão é antes dever daquele que busca o
significado colocar em discussão suas opiniões e buscar aquilo que a tradição coloca em questão.
Não se trata de um método em busca da verdade, o que fez Gadamer foi valorizar a posição do
intérprete no processo, chamando a atenção para a posição deste como observador do passado e
do presente.
“(...). Não se trata, em absoluto, de definir simplesmente um método específico,
mas sim de fazer justiça a uma idéia inteiramente diferente de conhecimento e de verdade.
(...)”.22
Com relação à teoria do círculo hermenêutico, em particular, se apresenta sob
novo aspecto e adquire importância fundamental. Não se trata somente da relação formal entre
a antecipação do todo e a construção das partes, correspondente à regra do “decompor e
recompor” que nos era ensinada nos cursos de latim – relação que de fato constitui a estrutura
circular da compreensão de textos. Ora, o círculo hermenêutico é um círculo rico em conteúdo
que reúne o intérprete e seu texto numa unidade interior a uma totalidade em movimento. A
compreensão implica sempre uma pré-compreensão que, por sua vez, é prefigurada por uma
tradição determinada em que vive o intérprete e que modela seus preconceitos.
Gadamer atribui à análise existencial de Heidegger a descoberta do novo sentido
da estrutura circular da compreensão:
“Eis o que lemos em Heidegger: “Não podemos depreciar esse círculo
qualificando-o de vicioso e nos resignarmos com este seu traço. O círculo encerra em si uma
autêntica possibilidade de conhecer mais original que só aprendemos corretamente quando
admitimos que toda explicitação (ou interpretação) tem por tarefa primeira, permanente e última
22 Cf.Gadamer,O Problema da Consciência Histórica,p.18.
37
não deixar que seus conhecimentos e concepções prévios se imponham pelo que se antecipa nas
instituições e noções populares.(...)”.23
Com relação à descoberta de Heidegger e da pré-estrutura da compreensão,
enquanto Heidegger entra na problemática da hermenêutica e das críticas históricas com o fim
ontológico de desenvolver, a partir delas a pré-estrutura da compreensão; Gadamer quer saber se
uma vez liberadas as inibições ontológicas do conceito de objetividade da ciência, a hermenêutica
fará jus à historicidade da compreensão.
“(...). Toda interpretação correta tem que proteger-se da ocorrência de “felizes
idéias” e contra a limitação de hábitos imperceptíveis do pensar e orientar sua vista “às coisas
elas mesmas”(...)”.24
Para que um texto seja compreendido é necessário um projetar, porque ao
constatar o intérprete um primeiro sentido no texto, em verdade já é também noção do todo.
“ Naturalmente que o sentido somente se manifesta porque quem lê o texto lê a
partir de determinadas expectativas e na perspectiva de um sentido determinado. A compreensão
do que já está posto no texto consiste precisamente na elaboração desse projeto prévio, que,
obviamente, tem que ir sendo constantemente revisado com base no que se dá conforme se
avança na penetração do sentido”.25
No processo de compreensão, o intérprete se coloca em uma posição em que não
pode desprezar o passado e se utilizar apenas de suas opiniões prévias; em razão de sua existência
como ser inteligente, o indivíduo é dotado de preconceitos que fazem parte desse processo de
busca, não diria de uma verdade absoluta, até porque o próprio Gadamer não vê a compreensão
como um processo finito. É necessário, porém, que essas opiniões prévias que ensejaram a
23 Cf.Gadamer,O Problema da Consciência Histórica,p.60. 24 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.402. 25 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.402.
38
compreensão tenham legitimidade (origem e validez), do contrário não há porque se falar em
interpretação, se não satisfeita tal exigência.
“Essa exigência fundamental deve ser pensada como a radicalização de um
procedimento que na realidade exercemos sempre que compreendemos algo. Face a qualquer
texto, nossa tarefa é não introduzir, direta e acriticamente, nossos próprios hábitos lingüísticos –
ou, no caso de uma língua estrangeira, aquele que nos é familiar através dos autores ou do
exercício cotidiano. Pelo contrário, reconhecemos como nossa tarefa o alcançar a compreensão
de um texto somente a partir do hábito lingüístico epocal e de autor(...)”.26
Gadamer se ocupou também em encontrar “a saída do cabo de força das próprias
opiniões prévias”, e explicita qual seria a atitude do intérprete a fim de não fosse afetada a
compreensão e fosse observado o conteúdo do texto, qual seja, aquele que quer compreender não
pode se entregar já desde o início, à causalidade de suas próprias opiniões prévias e ignorar o
mais obstinada e conseqüentemente possível a opinião do texto – até que este, finalmente, já não
possa ser ouvido e perca sua suposta compreensão. Quem quer compreender um texto, em
princípio, disposto a deixar que ele diga alguma coisa por si. Por isso, uma consciência formada
hermeneuticamente tem que se mostrar receptiva, desde o princípio para a alteridade do texto.
Mas essa receptividade não pressupõe nem “neutralidade” com relação à coisa nem tampouco
auto-anulamento, mas inclui a apropriação das próprias opiniões prévias e preconceitos,
apropriação que se destaca destes.27
O descrédito que sofreu o preconceito através do Aufklãrung, fez surgir a teoria
dos preconceitos desenvolvida no Aufklãrung traz a seguinte divisão:
26 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.403. 27 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.405.
39
- Preconceitos gerados pelo respeito humano.
- Preconceitos gerados por precipitação.
Na verdade, o fato de que a autoridade seja uma fonte de preconceitos coincide
com o conhecido princípio fundamental de Kant: tenha coragem de te servir de teu próprio
entendimento. Embora, a decisão, citada acima, não se restrinja somente ao papel que os
preconceitos desempenham na compreensão dos textos, ela encontra seu campo de aplicação
preferencial também no âmbito hermenêutico..28
Convém, ainda, assinalar que a tendência geral do Aufklãrung é não deixar valer
autoridade alguma e decidir tudo diante de um tribunal da razão. Assim, a tradição escrita, a
Sagrada Escritura, como qualquer outra informação histórica, não podem valer por si mesmas.
Antes, a possibilidade de que a tradição seja verdade depende da credibilidade que a razão lhe
concede. A fonte última de toda autoridade já não á tradição mas a razão. O que está escrito não
precisa ser verdade”.29
Os padrões do Aufklãrung moderno continuam determinando a autocompreensão
do historicismo. Fazem-no não imediatamente, é claro, mas através de uma ruptura peculiar
causada pelo romantismo. Isso cunha-se muito claramente, no esquema básico da filosofia da
história, que o romantismo tem em comum com o Aufklãrung e que se firma como premissa
inabalável precisamente pela reação romântica contra o Aufklãrung: o esquema da superação do
mythos pelo logos..30
Ademais a auto-reflexão e a autobiografia – pontos de partida de Dilthey- não são
fatos primários e não bastam como base para o problema hermenêutico, porque por eles a história
é reprivatizada. Na realidade não é a história que pertence a nós mas nós é que a ela pertencemos.
28 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.409. 29 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.410. 30 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.411.
40
Muito antes de que nós compreendamos a nós mesmos na reflexão, já estamos nos
compreendendo de uma maneira auto-evidente na família, na sociedade e no Estado em que
vivemos. A lente da subjetividade é um espelho deformante. A auto-reflexão do indivíduo não é
mais que uma centelha na corrente cerrada da vida histórica. Por isso os preconceitos de um
indivíduo são, muito mais que seus juízos, a realidade histórica do seu ser.”31
Não podemos deixar de destacar o importante papel têm os preconceitos como
condição de compreensão, para tanto segue-se a análise:
a) A reabilitação da autoridade e tradição
“(...), a atitude autêntica é aquela que visa a uma “cultura” da tradição no sentido
literal da palavra, ou seja, um desenvolvimento e uma continuação daquilo que reconhecemos
como sendo o elo concreto entre todos nós.(...).De fato, a realidade da tradição mal constitui um
problema de conhecimento; ela é, ao contrário, um fenômeno de apropriação espontânea e
produtiva dos conteúdos transmitidos”.32
“(...).Se se quer fazer justiça ao modo de ser finito e histórico do homem, é
necessário levar a cabo uma drástica reabilitação do preconceito e reconhecer que existem
preconceitos legítimos.(...)”.33
Como identificar quando um preconceito é legítimo?
31 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.415. 32 Cf.Gadamer,O Problema da Consciência Histórica,p.44. 33 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.416.
41
A premissa do Aufklãrung se calca no uso metódico e disciplinado da razão como
suficiente para coibir o erro (idéia cartesiana do método). A má utilização dessa razão está
associada à precipitação, que é fonte de equívocos. Já a autoridade nem ao menos permite o uso
dessa razão.
A Reforma de Lutero proporcionou a busca pela utilização correta da razão na
compreensão da tradição, sem que isso seja feito da forma despótica como era de costume:
“(...).Nem a autoridade do magistério papal,
nem o apelo à tradição podem tornar supérflua a
atividade hermenêutica, cuja tarefa é defender o
sentido razoável do texto contra toda imposição”.34
Então, o preconceito legítimo seria tão-somente aquele que se respalda na razão?
Responder afirmativamente seria restringir demais o papel dos preconceitos, e
simplificar seu papel na interpretação. Mesmo quando um preconceito é justificável, torna-se,
porém imprescindível analisa-lo a partir do problema da autoridade, pois, na verdade, a
autoridade é, em primeiro lugar, um atributo de pessoas. Mas a autoridade das pessoas não tem
seu fundamento último num ato de reconhecimento e de conhecimento: reconhece-se que o outro
está cima de nós em juízo e perspectiva e que, por conseqüência, seu juízo precede, ou seja, tem
primazia em relação ao nosso próprio. Junto a isso dá-se que a autoridade não se outorga,
adquire-se, e tem de ser adquirida se ela quer apelar.35
A tradição foi uma forma de autoridade defendida pelo romantismo, afirmava-se
que aquilo consagrado pela tradição e pela herança histórica perfaz uma autoridade que se tornou
anônima, mas que não pode ser ignorada. Por exemplo: os costumes retiram sua validade da
34 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.417. 35 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.419.
42
herança histórica e da tradição, e nem por isso deixam de ser respeitados e reconhecidos pela
sociedade, pode até ser que mudem.
“(...), à margem dos fundamentos da
razão, a tradição conserva algum direito e
determina amplamente as nossas instituições e
comportamentos.(...)”.36
A tradição é essencialmente conservação e como tal sempre está atuante nas
mudanças históricas. No entanto, a conservação é um ato de razão, ainda que caracterizado pelo
fato de não atrair atenção sobre si.37
Vê-se, pois, que a conservação, a destruição e a inovação no processo de
interpretação constituem a conduta livre da sociedade de uma época:
O que, de fato, satisfaz nossa consciência histórica é sempre uma pluralidade de
vozes nas quais ressoa o passado. Isso somente aparece na diversidade de ditas vozes, tal é a
essência da tradição da qual participamos e queremos participar. A própria investigação histórica
moderna não é somente investigação, mas também mediação da tradição.38
b) O exemplo do clássico.
O conceito de clássico, que no pensamento histórico, a partir do descobrimento do
helenismo por Droysen, tinha sido reduzido a um mero conceito estilístico, obtém agora um novo
direito de cidadania.39
36 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.421. 37 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.423. 38 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.427. 39 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.428.
43
O conceito do clássico designa hoje uma fase temporal, uma fase de um
desenvolvimento histórico, não um valor supra-histórico.40
O clássico é uma verdadeira categoria histórica por ser mais do que o conceito de
uma época ou o conceito histórico de um estilo, sem que por isso pretenda ser uma idéia de valor
supra-histórico. Não designa uma qualidade que deva ser atribuída a determinados fenômenos
históricos, mas, sim, um modo característico do próprio ser histórico, a realização histórica da
conservação que, numa confirmação constantemente renovada, torna possível a existência de
algo verdadeiro.41
No fundo, o clássico é bem outra coisa do que um conceito descritivo em poder de
uma consciência histórica objetivadora; é uma realidade histórica, à qual a própria consciência
histórica continua pertencendo e submetida. O que é clássico é aquilo que se diferenciou
destacando-se dos tempos mutáveis e dos gostos efêmeros; é acessível de modo imediato.42
Temos assim o significado hermenêutico da distância temporal.
- Como se inicia o esforço hermenêutico?
- Quais as conseqüências geram para a compreensão a condição hermenêutica de
pertença a uma tradição?
De acordo com a regra hermenêutica, é necessário compreender o todo a partir do
individual e o individual a partir do todo.
40 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.430. 41 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.431. 42 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.431.
44
“(...) A antecipação do sentido, na qual está entendido o todo, chega a uma
compreensão explícita através do fato de que as partes que se determinam a partir do
todo, determinam por sua vez, a esse todo”.43
“(...) O critério correspondente para a correção da compreensão é sempre a
concordância de cada particularidade com o todo. Quando não há tal concordância,
isso significa que a compreensão malogrou”.44
Schleiermacher aponta no círculo hermenêutico um aspecto objetivo e um aspecto
subjetivo, tal como cada palavra forma parte do nexo da frase, cada texto forma parte do nexo da
obra de um autor e esta forma parte, por sua vez, do conjunto do correspondente gênero literário e
mesmo de toda literatura. Mas, por outro lado, o mesmo texto pertence, como manifestação de
um momento criador, ao todo da vida da alma de seu autor. A compreensão acaba acontecendo, a
cada caso, a partir desse todo, de natureza tanto objetiva como subjetiva. No que se relaciona com
essa teoria, Dilthey falará de “estruturas” e da “concentração em um ponto central”, a partir do
qual se produz a compreensão do todo. Com isso ele transporta ao mundo histórico, como já
dizíamos, o que desde sempre tem sido um fundamento de toda interpretação textual: que cada
texto deve ser compreendido a partir de si mesmo.45
Mas, em que aspecto deve ser entendido o movimento circular da compreensão?
“O círculo, portanto, não é de natureza formal. Não é nem objetivo nem
subjetivo, descreve, porém, a compreensão como a interpretação do movimento da
43 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.436. 44 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.436. 45 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.437.
45
tradição e do movimento do intérprete. A antecipação do sentido, que guia nossa
compreensão de um texto, não é um ato de subjetividade, já que se determina a partir
da comunhão que nos une com a tradição. Porém, essa nossa relação com a tradição,
essa comunhão está submetida a um processo de contínua formação.(...)”.46
Gadamer atribui um novo sentido a esse círculo, em razão de uma nova
conseqüência hermenêutica, e que ele denomina de “concepção prévia da perfeição”.
“(...)O que pretende dizer é que somente é compreensível o que apresenta uma
unidade perfeita do sentido. Fazemos tal pressuposição da perfeição quando lemos um
texto, e somente quando esta se manifesta como insuficiente, isto é, quando o texto não
é compreensível, duvidamos da transmissão e procuramos adivinhar como pode ser
remetida”.47
É através da comunidade de preconceitos fundamentais e sustentadores que se
realiza o momento da tradição no comportamento histórico-hermenêutico, para Gadamer este é o
sentido da pertença.
“(...)A hermenêutica tem de partir do fato de que quem quer compreender está
vinculado com a coisa em questão que se expressa na transmissão e que tem ou
alcança uma determinada conexão com a tradição a partir da qual a transmissão fala.
Por outro lado, a consciência hermenêutica sabe que não pode estar vinculada à coisa
em questão, ao modo de uma unidade inquestionável e natural, como se dá na
continuidade ininterrupta da tradição.(...)”.48
46 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.440. 47 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.440. 48 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.442.
46
Para Gadamer, a hermenêutica tem como tarefa esclarecer as condições que
ensejam a compreensão, não se confundido com um procedimento específico para tanto.
“(...) Mas essas condições não têm todas o modo de ser de um procedimento ou
de um método de tal modo que quem compreende poderia aplica-las por si mesmo –
essas condições tem de estar dadas. Os preconceitos e opiniões prévias que ocupam a
consciência do intérprete não se encontram à sua disposição, enquanto tais.(...)”.49
Dizer que a compreensão é um comportamento sempre produtivo, demonstra que
o novo sentido dado a um texto pelo intérprete irá superar seu autor sempre; especialmente
quanto maior for a distância do tempo, porque o tempo já não é mais, primariamente, um abismo
a ser transposto porque divide e distancia, mas é na verdade, o fundamento que sustenta o
acontecer onde a atualidade finca suas raízes(...) Na verdade trata-se de reconhecer a distância do
tempo como uma possibilidade positiva e produtiva do compreender. Não é um abismo
devorador, mas está preenchido pela continuidade da herança histórica e da tradição(...)”.50
A distância temporal possibilita, ainda, “distinguir os verdadeiros preconceitos,
sob os quais compreendemos, dos falsos preconceitos que produzem os mal entendidos”. Isso
porque Gadamer não aceita que o intérprete seja neutro.
3.2. INTERPRETAÇÃO, COMPREENSÃO E APLICAÇÃO NO PROCESSO
HERMENÊUTICO.
49 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.442. 50 Cf.Gadamer, Verdade e Método,p.445.
47
Antes de falarmos da hermenêutica jurídica como instrumento de concretização
dos princípios, mister que analisemos o problema hermenêutico da aplicação, fulcrando nossas
considerações nos ensinamentos de Hans-Georg Gadamer, em sua obra intitulada Pensamento
Humano – Verdade e Métodos – Traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3ª Edição.
Petrópolis: Editora Vozes, 1999, mais especificamente na segunda parte da referida obra, que
trata da retomada do problema hermenêutico fundamental, páginas 459 a 544.
O problema hermenêutico fundamental, que ocupava lugar sistemático, apresenta
dois componentes: a compreensão (subtilitas intelligendi) e interpretação (subtilitas explicandi),
tendo a elas, durante o pietismo, sido incorporado um terceiro componente, qual seja, a aplicação
(subtilitas applicandi). Esses três momentos deveriam, pois, perfazer o modo de realização da
compreensão.
A interpretação não é um ato posterior e oportunamente complementar à
compreensão, porém, compreender é sempre interpretar, e, por conseguinte, a interpretação é a
forma explicita da compreensão. A fusão interna da compreensão e da interpretação teve como
conseqüência prática a complexa desconexão do terceiro momento da problemática da
hermenêutica, qual seja, o da aplicação, o que vai de encontro aos nossos estudos, pois
acreditamos que a aplicação é um momento do processo hermenêutico, tão essencial e integrante
como a compreensão e a interpretação.
A história da hermenêutica nos ensina que junto à hermenêutica filológica -
ciência que, por meio de textos escritos, estuda a língua, a literatura e todos os fenômenos de
cultura de um povo - existiriam também uma teológica e outra jurídica e que somente as três
juntas comportariam o conceito pleno de hermenêutica.
48
A união dessas três formas de interpretação como um conceito pleno de
hermenêutica é descrito como sendo uma estreita pertença que unia na sua origem a hermenêutica
filológica com a hermenêutica jurídica repousando sobre o reconhecimento da aplicação como
momento integrante de toda compreensão. Tanto para a hermenêutica jurídica como para a
teológica, é constitutiva a tensão que existe entre o texto proposto – da lei ou da revelação – por
um lado, e o sentido que alcança sua aplicação ao instante concreto da interpretação, no juízo ou
na prédica, por outro. Uma lei não quer ser entendida historicamente. A interpretação deve
concretizá-la em sua validez jurídica. Da mesma maneira, o texto de uma mensagem religiosa
não deseja ser compreendido como um mero documento histórico, mas ele dever ser entendido de
forma a poder exercer seu efeito redentor. Em ambos os casos isso implica que o texto, lei ou
mensagem de salvação, se se quiser compreendê-lo adequadamente, isto é, de acordo com as
pretensões que o mesmo apresenta, tem de ser compreendido em cada instante, isto é, em cada
situação concreta de uma maneira nova e distinta. E, assim, nesse sentido, poder-se-ia dizer que
compreender é sempre aplicar.
Outra questão fundamental para nossas considerações está na teoria geral da
interpretação onde procurou-se distinguir três formas de interpretação, quais sejam, cognitiva,
normativa e re-produtiva.
A distinção entre uma função normativa e uma função cognitiva faz cindir,
definitivamente, o que claramente é uno. O sentido da lei, que se apresenta em sua aplicação
normativa, não é, em princípio, diferente do sentido de um tema, que ganha validez na
compreensão de um texto. É completamente errôneo fundamentar a possibilidade de
compreender textos na pressuposição da “congenialidade” que uniria o criador e o intérprete de
uma obra. Se isso fosse assim, as ciências do espírito estariam em maus lençóis. O milagre da
49
compreensão consiste, antes, no fato de que não é necessária a congenialidade para reconhecer o
que é verdadeiramente significativo e o sentido originário de uma tradição. Somos, antes, capazes
de nos abrir à pretensão excelsa de um texto e corresponder compreensivamente ao significado
com o qual nos fala. A hermenêutica, no âmbito da filologia e da ciência espiritual da história,
não é um “saber dominador”, isto é, apropriação por apoderamento, mas se submete à pretensão
dominante do texto. Mas para isso o verdadeiro modelo é constituído pela hermenêutica jurídica e
teológica. A interpretação da vontade jurídica e da promessa divina não são evidentemente
formas de domínio, mas de servidão. Ao serviço daquilo que deve valer, elas são interpretações,
que incluem aplicação. A tese é, pois, que também a hermenêutica histórica tem que levar a cabo
o fornecimento da aplicação, pois, também ela serve à validez de sentido, na medida em que
supera, expressa e conscientemente, a distância de tempo que separa o intérprete do texto,
superando assim a alienação de sentido que o texto experimentou.
Não há falar em hermenêutica sem que se esteja obrigado a nos reportarmos a
Aristóteles, mais especificamente à sua teoria da atualidade hermenêutica e Hans-Georg
Gadamer51 faz referência à atualidade hermenêutica de Aristóteles, considerando a ética
aristotélica como solução para o que denomina de “contexto problemático”, referido-se ao núcleo
do problema hermenêutico, que, segundo ele, está no fato de que a tradição como tal tem que ser
entendida cada vez de uma maneira diferente, tratando-se, portanto, sob o ponto de vista lógico,
da relação entre o geral e o particular.
A ética aristotélica tem como pilar a questão de que o saber do homem deve
orientar o seu fazer. Nesse particular o saber se divide em dois campos: técnico e ético.
Surge, então, a partir dessa discussão sobre o técnico e o ético, o ponto em que se
poderia relacionar a análise aristotélica do saber ético com o problema hermenêutico das 51 GADAMER, p. 465.
50
modernas ciências do espírito. Na verdade, a consciência hermenêutica não se trata de um saber
técnico nem ético, porém, ambos contêm a mesma tarefa da aplicação que temos reconhecido
como a dimensão problemática central da hermenêutica. Também é claro que “aplicação” não
significa o mesmo em ambos os casos. Existe uma peculiaríssima tensão entre a tekne que se
ensina e aquela que se adquire por experiência.
Sobre o conceito de aplicação, conclui-se que só se pode aplicar o que já se
conhece previamente, que uma tekne ou técnica se aprende e pode-se esquecer, enquanto que o
saber ético não pode ser aprendido e nem esquecido, ao passo que não podemos nos confrontar
com ele de maneira que dele possamos ou não nos apropriar, da mesma forma que se pode eleger
um saber objetivo, ou seja, uma tekne.
O saber ético já deve ser sempre conhecido por nós e, dessa forma, esteja pronto
para ser aplicado à situação concreta. As imagens que o homem forma, sobre o que ele deve ser,
como por exemplo, seus conceitos de justo e injusto, de decência, coragem, dignidade,
solidariedade etc. (todos conceitos que têm seu correlato no catálogo das virtudes de Aristóteles)
são, de certo modo, imagens, diretrizes, pelas quais se guia.
E será que essas imagens e diretrizes farão justas todas as atitudes do homem? O
que é justo não pode ser determinado por inteiro, independentemente da situação que nos pareça
de justiça. É evidente que o justo também parece estar determinado num sentido absoluto, pois
está formulado nas leis e contido nas regras gerais de comportamento da ética, que apesar de não
estarem codificadas, mesmo assim, tem uma determinação precisa e uma vinculação geral. O
próprio cultivo da justiça é uma tarefa própria que requer saber e poder.
No campo do direito, aquele que “aplica”, estará obrigado, diante da situação
concreta, a fazer concessões com respeito à lei num sentido estrito, mas, não porque não seja
51
justo. Fazendo o aplicador do direito concessões em face da lei não estará fazendo deduções à
justiça, mas, ao contrário, estará encontrando um direito melhor. Diz Aristóteles, por conseguinte
que a eqüidade é a correção da lei.
Surge então uma questão fundamental para a teoria aristotélica: a distinção entre
direito natural e direito positivo, não sendo a inalterabilidade do primeiro e alterabilidade desse
último, a única característica que os diferencia.
O direito positivo existe pela própria existência de leis jurídicas que são coisa da
conveniência, como por exemplo as normas de trânsito, como a regra que determina a condução
pela direita. Mas, também existem aquelas que não permitem uma convenção humana qualquer,
porque a própria “natureza das coisas” tende a se impor constantemente, sendo essa classe de leis
chamadas justificadamente de “direito natural”.
Os exemplos que Aristóteles apresenta são extremamente elucidativos, quando se
entende que a natureza das coisas deixa uma certa margem de mobilidade para a afirmação,
podendo, por conseguinte, esse direito natural ser alterado.
Exemplifica Aristóteles, na questão das leis do trânsito, quando se convencionou
que se deva conduzir pela direita, que a mão direita é, por natureza, a mais forte, mas nada
impede que se treine a esquerda até igualá-la à direita.
3.3. A QUESTÃO DA APLICAÇÃO NA HERMENÊUTICA JURÍDICA.
Onde está o homem está a interpretação. Não adiantaria ali estar o Direito se não
estivesse ele constantemente sendo interpretado, sendo submetido à apreensão do sentido que
52
possa oferecer. Sem isso, é como se não estivesse lá. Direito, ou qualquer outro objeto cultural,
sem a abordagem do interprete, ou seja, sem o sendo da interpretação, é paralisia, é estagnação.
Não passa de algo virtual, mera potencialidade, e, assim, perde a razão de ser. Mas a própria
interpretação já feita, também é paralisia e estagnação. Outra interpretação que se faça, do mesmo
objeto cultural, é sempre nova apreensão de sentido, é sempre uma nova interpretação, que pode
até coincidir com o sentido antes captado, mas não necessariamente, pois o processo espiritual é
novo. Todo nova interpretação é uma interpretação nova. Por isso, se se deseja dar vida vivente
ao Direito, não se fale em Direito, fale-se em interpretação dele. Esta é que se aplica à existência
efetiva das relações convivenciais.
A ordem jurídica constitui um sistema, por conta disso, reveste-se de unidade. Não
de uma unidade morta, parada, mas de uma unidade funcional, em que cada elemento ou parte,
mesmo sem perder sua forma ou base física, tem de contribuir para o funcionamento do todo. A
hermenêutica permite, através do circulo que se forma entre as compreensões do mundo físico, da
sociedade objetiva, da vida vivente, da individualidade, enfim, do existir, extraindo-se das
inúmeras alternativas que se oferecem ao intérprete aquela de maior interesse, respeitado o
homem, ao todo convivencial. Toda e qualquer interpretação que se feche para essa enorme
tessitura sistêmica, será uma interpretação insensível ao todo em que o homem e o Direito se
inserem, por isso mesmo, será uma compreensão pobre e incapaz de escolher, em meio à
variedade de sentidos possíveis, aquele que melhor atenda aos reclamos da dimensão total do ser
humano em busca da justiça.
Outro ponto de fundamental importância para nossos estudos repousa no
significado paradigmático da hermenêutica jurídica. Nesse particular, há que se fazer uma
53
distinção entre a hermenêutica jurídica e a hermenêutica histórica, estudando os casos em que
uma e outra se ocupam do mesmo objeto, isto é, os casos em que textos jurídicos devem ser
interpretados juridicamente e compreendidos historicamente.
O jurista toma o sentido da lei a partir de, e em virtude de um determinado caso
concreto. Já o historiador jurídico, pelo contrário, não tem nenhum caso de que possa partir, mas
procura determinar o sentido da lei, na medida em que coloca construtivamente a totalidade do
âmbito de aplicação da lei diante dos olhos. Defende sua teoria sob o argumento de que a
hermenêutica jurídica recorda em si mesma o autêntico procedimento das ciências do espírito.
Nela temos o modelo de relação entre passado e presente que estávamos procurando. Quando o
juiz adeqüa a lei transmitida às necessidades do presente, quer certamente resolver uma tarefa
prática. Isso não quer dizer, todavia, que sua interpretação da lei seja uma tradução arbitrária.
Também nesse caso, compreender e interpretar significam conhecer e reconhecer um sentido
vigente. O juiz procura corresponder à “idéia jurídica” da lei, intermediando-a com o presente e
com o caso posto à sua análise. É evidente, ali, uma mediação jurídica. O que tenta reconhecer é
o significado jurídico da lei, não o significado histórico de sua promulgação ou certos casos
quaisquer de sua aplicação. Assim, não se comporta como historiador, mas se ocupa de sua
própria história, que é seu próprio presente. Por conseqüência, pode, a cada momento, assumir a
posição do historiador, face às questões que implicitamente já o ocuparam como juiz.
Por outro lado e inversamente, o historiador, que não tem diante de si nenhuma
tarefa jurídica, mas que pretende simplesmente averiguar o significado histórico da lei – como o
faria o conteúdo de qualquer outra tradição histórica – não pode ignorar que seu objeto é uma
criação do direito, que tem que ser entendida juridicamente. Ele tem que poder pensar também
juridicamente e não apenas historicamente.
54
Diante de tais considerações, conclui-se que para a possibilidade de uma
hermenêutica jurídica é essencial que a lei vincule por igual todos os membros da comunidade
jurídica, posto que se isso não ocorrer, como no caso do absolutismo, onde a vontade do senhor
absoluto estava acima da lei, não há falar em hermenêutica alguma.
A tarefa da interpretação, pois, consiste, nas palavras de Gadamer, em “concretizar
a lei em cada caso, isto é, em sua aplicação.”52 . Cabe, assim, ao juiz, o papel de complementar
produtivamente o direito, sendo sua sentença, não um conjunto de arbitrariedades imprevisíveis,
mas uma ponderação justa do conjunto, estando, assim, garantida a tão desejada segurança
jurídica, fundamental no estado democrático de direito.
Há que se fazer, ainda, uma breve referência à a hermenêutica e à dogmática
jurídicas, informando existir entre elas uma relação essencial, na qual a hermenêutica detém uma
posição preponderante. Poder-se-ia, pois, afirmar, não ser sustentável a idéia de uma dogmática
jurídica total, sob a qual se pudesse baixar qualquer sentença por um simples ato de subsunção.
Outra questão abordada por Gadamer53 diz respeito à hermenêutica teológica, tal
como foi desenvolvida pela teologia protestante, entendendo que aqui se pode apreciar com
clareza uma autêntica correspondência com a hermenêutica jurídica, já que nesse caso, a
dogmática não reveste nenhum caráter de primazia. Chama atenção, porém, para uma diferença
fundamental, qual seja, a hermenêutica teológica encontra sua verdadeira concreção da
proclamação na prédica, (pregação, sermão), a qual não é uma complementação produtiva do
texto que interpreta, mas, tão-somente, o anúncio de uma verdade, tendo o ouvinte que alcançar
seu significado, não pela idéia do pregador, mas pela força da própria palavra.
52 GADAMER, Op. Cit. p. 489. 53 IDEM, P. 490.
55
Conclui-se, portanto que, o que é verdadeiramente comum a todas as formas da
hermenêutica é que o sentido de que se trata de compreender, somente se concretiza e se
completa na interpretação, porém, ao mesmo tempo, essa ação interpretadora se mantém
inteiramente atada ao sentido dado ao texto por aquele a quem tal texto fora direcionado. Assim,
a compreensão não está na literalidade da ordem, nem tampouco na verdadeira intenção de quem
a dá, mas unicamente na compreensão da situação e na responsabilização de quem a obedece.
Tornou-se, pois, evidenciado que o sentido da aplicação já está de antemão em
toda forma de compreensão. A aplicação não significa aplicação ulterior de algo comum,
compreendida primeiro em si mesma, a um caso concreto, mas é, antes, a verdadeira
compreensão do próprio comum que cada texto dado representa para nós.
Após os ensinamentos de Hans-Georg Gadamer entendemos necessário
mencionarmos o processo de interpretação defendido por Lenio Luiz Streck54 em sua obra
Jurisdição Constitucional e Hermenêutica.
Lenio Luiz Streck55 rompendo com o paradigma metafísico aristotélico-tomista
defende a idéia de que, ao mesmo tempo, o processo interpretativo deixa de ser reprodutivo e
passa a ser produtivo, alegando que nesse ponto repousa a teoria de Gadamer quando afirma que
o caráter da interpretação é sempre produtivo e que esse aporte produtivo forma parte
inexoravelmente do sentido da compreensão.
Defende Streck, no plano da Nova Crítica do Direito, que o intérprete não
interpreta por partes, como se estivesse repetindo as fases da hermenêutica clássica, ou seja,
primeiro compreende, depois interpreta, para finalmente aplicar. Ao contrário, em sua visão esses
54 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica – Uma Nova Crítica do Direito., Porto Alegre: Livraria do Advogado editora, 2002. 55 STRECK, Op. Cit. P. 169.
56
três momentos ocorrem em um só: a applicatio, que se dá no movimento da circularidade da
autocompreensão no interior da espiral hermenêutica. Assim, ao interpretar um texto, o intérprete
estará no entremeio do círculo hermenêutico, havendo um movimento antecipatório da
compreensão.
Em sendo assim, o juiz, a partir da Nova Crítica do Direito, não decide para depois
buscar a fundamentação; ao contrário, ele decide porque já encontrou o fundamento para sua
decisão, sendo esse fundamento a condição de possibilidade para a decisão tomada, buscando, em
um segundo momento o aprimoramento de seu fundamento.
Com tal afirmação Lenio Streck56 afirma que não é possível desdobrar o ato de
aplicação em dois momentos: decisão e fundamentação. Defende a idéia que um faz parte do
outro e assim, as condições de possibilidades para que o intérprete possa compreender um texto
implicam a existência de uma pré-compreensão (seus pré-juízos) acerca da totalidade do sistema
jurídico-político-social.
Não há falar em interpretação sem que se mencione a Dogmática Jurídica. Neste
particular, mister reportarmo-nos à obra do Professor Tércio Sampaio Ferraz Junior – Função
Social da Dogmática Jurídica57 onde se lê:
O postulado quase universal da Dogmática Jurídica, de que não há norma sem
interpretação, define de imediato a função social das interpretações dogmáticas. Como
dissemos, a Dogmática cria condições para uma libertação do espírito onde a sociedade
espera vinculação. Ao afirmar seu postulado, a Dogmática interpreta sua própria
vinculação a dogmas, conferido ao intérprete uma disponibilidade que o autoriza a
ampliar as incertezas sociais de um modo suportável e controlado.
56 STRECK, Op. Cit. p. 180. 57 FERRAZ Jr., Tércio Sampaio. Função Social da Dogmática Jurídica. São Paulo: Ed. Max Limonad, 1998.
57
No que se refere à interpretação no plano do direito, acrescenta Tércio Sampaio
Ferraz Junior58, que a questão da unidade se torna um problema de sentido da ordem normativa.
Fundamenta sua teoria suscitando as palavras de Savigny, numa fase do seu pensamento anterior
a 1814, quando afirmada que interpretar era mostrar aquilo que a lei diz. Tal alusão ao verbo
“dizer” nos faz crer que Savigny estava preocupado com o texto da lei. A questão técnica da
interpretação era, então, como determinar o sentido textual da lei. Daí emerge a elaboração de
quatro técnicas, quais sejam: a interpretação gramatical, que procurava o sentido vocabular da lei;
a interpretação lógica, que visava o seu sentido proposicional; a sistemática, que buscava o
sentido global; e a histórica, que tentava atingir o seu sentido genético. Após 1814, percebe-se na
obra de Savigny que a questão toma outro rumo, e o problema da constituição da Dogmática
Jurídica, a partir de um modelo hermenêutico, se esboça. A questão deixa de ser a mera
enumeração de técnicas interpretativas para refere-se ao estabelecimento de uma teoria da
interpretação. Surge o problema de se procurar um critério para a interpretação autêntica. A
pergunta é: qual o paradigma para se reconhecer que uma interpretação do texto da lei é
autêntica? A resposta envolve a possibilidade de um sentido último e determinante. A concepção
de que o texto da lei é expressão da mens legislatoris leva Savigny a afirmar que interpretar é
compreender o pensamento do legislador manifestado no texto da lei
Contrapondo-se à teoria de Savigny, Niklas Luhmann59, em sua obra Sociologia
do Direito II, referindo-se à origem do direito afirma que a mesma não está ligada à vontade do
legislador tão-somente, em verdade a decisão do legislador – o mesmo se diga para a do juiz – se
confronta com uma multiplicidade de projeções normativas, entre as quais, e com uma certa
58 FERRAZ Jr., Op. Cit. p. 139-140. 59 LUHMANN, Neklas. Sociologia do Direito II.. Rio de Janeiro Editora Tempo Brasileiro, 1983. p. 8.
58
margem de liberdade, ele vai optar por uma delas. Logo, a função do juiz e do legislador não
consiste na criação do Direito, mas na seleção e na dignificação simbólica da norma enquanto
Direito vinculativo. Há, nesse processo um “filtro processual”, por onde passam todas as idéias
jurídicas com o fim de se tornarem socialmente vinculativas enquanto Direito.
Diante de todas as ponderações até aqui apresentadas verificamos que o objetivo
maior de um conceito amplo da hermenêutica jurídica, sua compreensão e efetivação por todos os
aplicadores do direito, repousa na busca incessante de aprimoramento do próprio Direito, dentro
das inúmeras mudanças sociais, econômicas, políticas e jurídicas que se multiplicam no mundo
contemporâneo. E nesse diapasão é fundamental a posição do aplicador do direito, não sendo essa
figura restrita à figura do juiz, nem tampouco do legislador.
O processo de interpretação deve ultrapassar toda e qualquer fronteira que o limite,
assim, também, como aproximar o historiador jurídico ao filólogo, o juiz ao advogado, o jurista
ao legislador, enfim, dar a cada um a parte que lhe cabe e assim, adicionando-se os papéis, e não
os separando, por via da hermenêutica jurídica, poderemos, quem sabe, acompanhar o
desenvolvimento de toda a sociedade, fim maior do Direito. Que se façam presentes no processo
de interpretação o fundamento e a decisão, o legislador e o espírito que o envolveu ao elaborar
determinada lei. Que se possa compreender, através de uma pré-compreensão do mundo e dos
valores que envolvem nosso comprometimento com o Direito, que se julgue através de nossos
“pré-juízos” e que se interprete o Direito comprometidos com sua correta aplicação para toda a
sociedade e com o contínuo processo evolutivo dessa mesma sociedade e do próprio Direito.
59
4. OS PRINCÍPIOS COMO FUNDAMENTO DA INTERPRETAÇÃO E DA
APLICAÇÃO
Princípios são proposições máximas, ponto de
partida ou fundamento do ser ou do conhecer
Abbagnano
4.1. DEFINIÇÃO E ALCANCE
E o que são os Princípios? O que eles alcançam? Como devem ser aplicados?
Américo Plá Rodriguez60 define princípios como “linhas e diretrizes que informam
algumas normas e inspiram direta ou indiretamente uma série de soluções, pelo que podem servir
para promover e embasar a aprovação de novas normas, orientar a interpretação das existentes e
resolver os casos não previstos.”
Portanto, diante de tal definição, podemos dizer que os princípios são os caminhos
orientadores das normas que podem ser utilizados direta ou indiretamente para o alcance de
soluções para os casos concretos; alcançam a aprovação de outras tantas normas, devendo servir
de orientação daquelas existentes e devem ser aplicados para resolver os casos ainda não
previstos.
Dos ensinamentos de Américo Plá Rodriguez61 extrai-se que os princípios são
enunciados básicos que contemplam, abrangem, compreendem uma série indefinida de situações,
60 PLÁ RODRIGUEZ, Américo. Princípios de Direito do Trabalho. 3ª edição atualizada – 2ª tiragem. São Paulo: Editora LTr, 2002. p. 36 61 PLÁ RODRIGUEZ, Op. Cit. p. 36-38.
60
sendo algo mais geral que uma norma, tendo em vista servir para inspirá-la, para entendê-la, para
supri-la.
Para a obtenção de um princípio, há que se submeter a um processo lógico que
consiste em induzir uma solução mais geral da comparação de disposições particulares
concordantes, para aplicar o princípio assim obtido a qualquer hipótese não abrangida por
nenhuma previsão legal.
Há que se destacar que os princípios possuem eficácia jurídica, cujas modalidades,
segundo Ana Paula de Barcelos62 são: a interpretativa, a negativa e a vedativa do retrocesso,
sendo que esta última não se consolidou inteiramente na doutrina e na prática jurisprudencial.
Ao contrário do que acontece com as regras, a eficácia interpretativa tem aplicação
bastante ampla no caso específico dos princípios, tendo em vista a indeterminação de seus efeitos
e da multiplicidade de situações às quais eles poderão ser aplicados.
Quando se trata de princípios constitucionais, isso se torna ainda mais evidente,
pois estarão associadas suas características de norma-princípio com a superioridade hierárquica
própria da Constituição. Daí resulta que cada norma constitucional ou infraconstitucional, deverá
ser interpretada de modo a realizar o mais amplamente possível o princípio que rege a matéria.
Há ainda a eficácia negativa que exige mais elaboração quando se trata dos
princípios, tendo em vista a força de seus efeitos. No caso, a eficácia negativa funciona como
uma barreira de contenção, impedindo que sejam praticados atos ou editadas normas que se
oponham aos propósitos dos princípios.
Já a vedação do retrocesso, desenvolveu-se principalmente levando em
consideração os princípios constitucionais e, em particular, aqueles que estabelecem fins
62 BARCELLOS, Ana Paula de. Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais – Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Rio de Janeiro – São Paulo: Renovar, 2002. p. 80.
61
materiais relacionados aos direitos fundamentais, para cuja consecução é necessária a edição de
normas infraconstitucionais. Sua finalidade é evitar que o legislador vá tirando as tábuas e vá
destruindo o caminho porventura já existente, sem criar qualquer alternativa ao objetivo em
questão.63
E quais as funções dos princípios?
Américo Plá Rodrigues64, sob os ensinamentos de Federico de Castro enumera três
funções essenciais pertinentes aos princípios, quais sejam: informadora, através da qual os
princípios inspiram o legislador, servindo de fundamento para a elaboração do ordenamento
jurídico; normativa, isto é, os princípios atuam como fonte supletiva, no caso de ausência de lei,
sendo meios de integração de direito e, por fim, interpretativa, tendo em vista que os princípios
operam como critério orientador do juiz ou do intérprete.
E aqui repousa a importância da hermenêutica para nossos estudos: como deve o
juiz aplicar a melhor solução ao caso?
Deve o magistrado fundamentar sua decisão inspirado pelos princípios morais e
éticos que a sociedade tanto espera dele, devendo sua decisão repercutir em toda a sociedade, e
não restringir-se a objetivos individuais e particulares.
Buscar conselho consigo é o que deve o juiz fazer quando se deparar com um
problema que dele exija muito mais do que a simples aplicação de uma determinada norma. É a
ética fluindo de seu pensamento, é a moral explodindo por sobre o papel da sentença e é,
principalmente, a realização da justiça com base nos princípios da ética, da boa-fé e da dignidade
63 Afirma Ana Paula de Barcellos que tanto a eficácia interpretativa, como a negativa e a vedativa do retrocesso, só dispõem de meios para impedir que o princípio seja violado quando confrontadas com alguma espécie de ação, normalmente estatal; seja uma outra norma ou ato administrativo que deverá ser interpretado de acordo com o princípio constitucional, seja o ato ou a norma regulamentadora do princípio constitucional que primeiro terá que existir para que, em seguida, se considere inconstitucional sua revogação. Caso nenhuma manifestação comissiva se apresente, será impossível desencadear o mecanismo de quaisquer das três modalidades de eficácia jurídica. 64 PLÁ RODRIGUEZ, Op. Cit. p. 43-44.
62
da pessoa humana, que ora passamos a examinar, dando especial enfoque aos mesmos no que se
refere à sua aplicação no âmbito da Justiça Social Brasileira, qual seja, a Justiça que trata das
angústias, necessidades e anseios do homem trabalhador.
Como dito no Capítulo 1 do presente estudo, Hannah Arendt65 atribui ao trabalho e
ao seu produto, o artefato humano, o verdadeiro sentido da condição do ser humano, além da
ação e do labor, que juntos emprestam certa permanência e durabilidade à futilidade da vida
mortal e ao caráter efêmero do tempo humano.
4.2. OS PRINCÍPIOS E AS REGRAS COMO CONSTITUTIVOS DA NORMA
JURÍDICA
A noção de principio aqui desenvolvida está sustentada no entendimento de
Humberto Ávila (2003:18), de que os princípios, assim como as regras, são elementos
constitutivos das normas. Segundo afirma, enquanto as regras sãos normas imediatamente
descritivas, primeiramente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para
cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá
suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobejacentes, entre a construção
conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos, os princípios são normas
imediatamente finalistas, primeiramente prospectivas e com pretensão de complementaridade e
de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de
coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à promoção.
No seu entendimento, as normas são princípios ou regras, sendo que essas não
precisariam e nem poderiam ser objeto de ponderação, enquanto aqueles, ao contrário, precisam e 65 ARENDT, Op. Cit. p. 16-17.
63
devem ser objeto de ponderação. Enquanto as regras instituem deveres definitivos, independentes
das possibilidades fáticas e normativas, isto é, no caso de colidirem duas regras, uma delas deverá
ser considerada inválida, ou, em última análise, deve ser aberta uma exceção a uma delas para a
solução do conflito, por outro lado, quando colidirem dois princípios, os dois devem ultrapassar o
conflito mantendo sua validade, cabendo ao aplicador decidir qual deles possui maior peso e
melhor se coaduna com o caso em exame. Em última análise os princípios poderiam ser
distinguidos das regras pelo caráter hipotético-condicional, isto é, as regras possuem uma
hipótese e uma conseqüência que predeterminam a decisão, sendo aplicadas ao modo se, então;
já os princípios apenas indicam o fundamento a ser utilizado pelo aplicador para, futuramente,
encontrar a regra aplicável ao caso concreto. Assim, os princípios seriam as normas que
estabelecem os fundamentos para que um determinado mandamento seja encontrado, enquanto
que as regras determinariam a própria decisão.
A definição apresentada por Ávila66 inicia dizendo que os princípios são normas
imediatamente finalistas, isto é, eles estabelecem um fim a ser atingido. Ressalte-se que “um fim”
conduz à idéia de fixação de um objetivo ou de um conteúdo a ser alcançado ou pretendido, não
necessariamente significando um ponto final a ser alcançado, mas, apenas, um conteúdo
desejado. Daí se dizer que “o fim” estabelece um estado ideal de coisas a ser alcançado ou
atingido. É determinando “o fim” que se encontrarão os meios para alcança-lo.
Neste diapasão temos como exemplo o princípio da moralidade que exige a
realização ou preservação de um estado de coisas exteriorizado pela lealdade, seriedade, zelo,
postura exemplar, boa-fé, sinceridade e motivação. Para a realização desse estado ideal de
coisas, todavia, são necessários determinados comportamentos, senão vejamos: para efetivação
66 ÁVILA, Op. Cit. pg. 70.
64
de um estado de lealdade e boa-fé é preciso o cumprimento de tudo aquilo que foi prometido;
para realização de um estado de seriedade é essencial agirmos movidos por motivos sérios; para
tornarmos real uma situação de zelo é fundamental colaborarmos com o administrado e informá-
lo de seus direitos e da forma de protegê-los; para concretizarmos um estado em que predomine a
sinceridade é indispensável falarmos a verdade e, para garantirmos a motivação é necessário
expressarmos por que se age. Por tudo isso, sem esses comportamentos não se contribuirá para a
existência do estado de coisas apregoado como ideal pela norma, e, por via de conseqüência, não
se atingirá o fim desejado. Não se concretizará, portanto, o princípio.
Os princípios não são, pois, apenas valores cuja realização depende de meras
preferências sociais. Princípios e valores não se confundem, simplesmente se relacionam, na
medida em que o estabelecimento de fins implica qualificação positiva de um estado de coisas
que se quer promover. Porém, podem afastar-se porque, enquanto os princípios se situam no
plano deontológico e, por via de conseqüência, estabelecem a obrigatoriedade de adoção de
condutas necessárias à promoção gradual de um estado de coisas, os valores se situam no plano
axiológico ou meramente teleológico e, por isso, apenas atribuem uma qualidade positiva a
determinado elemento.
Humberto Ávila67 propõe algumas diretrizes para análise dos princípios,
considerando que sua definição repousa na idéia de que se tratam de normas finalísticas que
exigem a delimitação de um estado ideal de coisas a ser buscado por meio de comportamentos
necessários a essa realização.
67 ÁVILA, Op. Cit. p. 72-77.
65
Uma primeira diretriz trata da especificação dos fins ao máximo, isto é, quanto
menos específico for o fim, menos controlável será sua realização.68 Neste caso é necessário
trocar o fim vago por um fim específico. Uma segunda diretriz refere-se às pesquisas de casos
paradigmáticos que possam iniciar esse processo de esclarecimento das condições que compõem
o estado ideal de coisas a ser buscado pelos comportamentos necessários à sua realização.69 Aqui
mister substituir o fim vago por condutas necessárias à sua realização. A terceira diretriz trata do
exame, nesses casos, das similaridades capazes de possibilitar a construção de grupos de casos
que girem em torno da solução de um mesmo problema central.70É necessário abandonar a mera
catalogação de casos isolados, em favor da investigação do problema jurídico neles envolvido e
dos valores que devem ser preservados para sua solução. Uma quarta diretriz fala da verificação
da existência de critérios capazes de possibilitar a delimitação de quais são os bens jurídicos que
compõem o estado ideal de coisas e de quais são os comportamentos considerados necessários à
sua realização.71 Em outras palavras, troca-se a busca de um ideal pela realização de um fim que
possa se concretizar. Por fim, uma quita e última diretriz versa sobre a realização de um percurso
inverso, ou seja, descobertos o estado das coisas e os comportamentos necessários à sua
68 Para Ávila isso significa, em primeiro lugar, ler a Constituição Federal com atenção específica aos dispositivos relacionados ao princípio objetivo de análise; segundo, relacionar os dispositivos em função dos princípios fundamentais; terceiro, tentar diminuir a vagueza dos fins por meio da análise das normas constitucionais que possam, de forma direta ou indireta, restringir o âmbito de aplicação dos princípios. 69 Casos paradigmáticos, para Humberto Ávila são aqueles cuja solução pode ser tida como exemplar, considerando-se, assim, aquela solução que serve de modelo para a solução de outros tantos casos, em virtude da capacidade de generalização do seu conteúdo valorativo. 70 Ao investigar alguns casos – e Humberto Ávila cita, por exemplo, o caso de um funcionário que agiu conforme memorando interno de uma instituição financeira, que mais tarde não o quis cumprir; ou o do estudante que teve deferido seu pedido de transferência de uma Universidade para outra, e anos depois, teve tal transferência anulada, por vício formal; dentre outros casos – constata-se que, em todos eles, as decisões do Poder Judiciário giram em torno do problema relativo à proteção da legítima expectiativa riada pelo Poder Público na esfera jurídica do particular, notadamente quando essa expectativa se consolidou no plano dos fatos, durante longo espaço de tempo. 71 No caso do princípio da moralidade, a análise de alguns casos investigados podem revelar, de um lado, o dever de realizar o valor da lealdade e, de outro, a necessidade de adoção de comportamentos sérios, motivados e esclarecedores para a realização de tal valor. Bem concretamente, isso significa, primeiramente, analisar a existência de critérios que permitam definir, também para outros casos, quais são os comportamentos necessários para a realização de um princípio e, em segundo lugar, expor os critérios que podem ser utilizados e os fundamentos que fazem com que sejam atodados.
66
promoção, tornar-se-ia necessária a verificação da existência de outros casos que deveriam ter
sido decididos com base no princípio ora em análise.
Um segundo passo no exame dos princípios refere-se à investigação da
jurisprudência, especialmente dos Tribunais Superiores, para que se possa verificar em casa caso
paradigmático, quais foram os comportamentos tidos como necessários à realização do princípio,
objeto da análise.
Há casos em que determinado princípio, embora utilizado, não vem a ser
expressamente mencionado. Em outras hipóteses, embora obrigatória à promoção de um fim, o
princípio não é utilizado como fundamento e em face dessas considerações é preciso, depois de
desvendadas as hipóteses de aplicação típica do princípio em análise, refazer a pesquisa, dessa
feita não mediante a busca do princípio como palavra-chave, mas, por meio da busca do estado
de coisas e dos comportamentos havidos como necessários à sua realização. Significa dizer que
se deve, primeiramente, refazer a pesquisa jurisprudencial mediante a busca de outras palavras-
chave e, ato contínuo, analisar de forma crítica as decisões encontradas, reconstruindo-as de
acordo com o princípio que se está analisando, de modo a evidenciar seu uso ou a falta dele. E
qual a função do juiz nesse processo de análise e interpretação dos princípios e regras que são
normas?
Para respondermos a esta pergunta reportamo-nos a Dworkin72 que em sua obra o
Império do Direito, no Capítulo VII – Integridade do Direito, no tópico destinado à cadeia do
direito, afirma que a interpretação criativa vai buscar sua estrutura formal na idéia de intenção,
não (pelo menos não necessariamente) porque pretenda descobrir os propósitos de qualquer
pessoa ou de algum grupo histórico específico, mas porque pretende impor um propósito ao
texto, aos dados ou às tradições que está interpretando. 72 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p 275.
67
Tudo depende, com efeito, do tempo em que o juiz vai decidir, da tradição que
envolve esse mesmo tempo e das circunstâncias com as quais o juiz se depara no seu processo
interpretativo e aplicativo dos princípios ou das regras.
Vivemos no Brasil, de acordo com o que dispõe o Artigo 1º da Constituição
Federal, um Estado democrático de Direito, que tem como fundamento, dentre outros, a
dignidade da pessoa humana.
Assim, é essa a tradição, é esse o nosso tempo, portanto é assim, em conformidade
com tal princípio, que deve agir o juiz ao decidir o caso concreto, ao analisar a letra da lei e ao
formular sua fundamentação que ensejará sua decisão. É o tempo do Estado democrático de
Direito é a tradição da dignidade da pessoa humana, portanto, que devem reger e nortear toda e
qualquer decisão judicial, ainda mais se tal decisão tiver reflexo na questão social brasileira.
4.3. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS E OS DIREITOS SOCIAIS
4.3.1. ASPECTOS GERAIS
Ao se tratar de Justiça Social e dos Princípios Constitucionais que a sustentam,
mister uma primeira abordagem quanto ao surgimento dos Direitos Sociais nas Constituições
Brasileiras, anteriores à Constituição Federal promulgada em 5 de outubro de 1988.
Após a independência da nação brasileira em 7 de setembro de 1822, D. Pedro I
outorgou a primeira carta constitucional do país em 25 de março de 1824, a qual fora elaborada
pelo Conselho de Estado, tendo sido adotada a forma unitária de Estado, o regime monarquista
parlamentar, em consonância com a filosofia liberal da revolução francesa, não tratando, todavia,
68
dos direitos sociais do trabalhador, que pressupõem a intervenção do Estado nas relações
contratuais.
Em 15 de novembro de 1889, proclamada a República, o Congresso Nacional,
dotado de poderes constituintes, promulgou o novo estatuto político fundamental em data de 24
de fevereiro de 1891, sob decisiva influência da Constituição norte-americana, tornando-se o
Estado brasileiro um Estado federal, republicano, presidencialista e liberal. Mais uma vez, assim
como a Constituição do Império, essa também não cuidou dos direitos sociais do trabalhador,
tendo em vista se entender que a legislação trabalhista infringia o princípio da liberdade
contratual e que, além disso, ainda que fosse permitida, seria da competência dos Estados legislar
sobre tal matéria.
Rui Barbosa, todavia, em famosa conferência proferida no Teatro Lírico, em 1920,
defendeu a competência do Congresso Nacional para legislar sobre a proteção ao trabalho, o que
irradiou, desde então, ampla adesão à sua proposição, culminando com a reforma de 1926 que
consagrou tal competência.
Vale ressaltar que antes mesmo dessa reforma, algumas conquistas já haviam sido
conseguidas pelos trabalhadores, quais sejam: o direito de sindicalização aos trabalhadores,
através do Decreto nº 1.637 de 1907; a União legislou sobre o seguro de acidentes de trabalho –
Lei nº 3.724, de 1919; foram instituídas as Caixas de Aposentadorias e Pensão dos Ferroviários,
com estabilidade decenal para os empregados das respectivas empresas – Lei Eloi Chaves, nº
4.682, de 1923; foi criado o conselho Nacional do Trabalho, vinculado ao Ministério da
Agricultura, Indústria e Comércio – Decreto nº 16.027, de 1923; direito a quinze dias de férias
anuais remuneradas aos empregados de estabelecimentos comerciais, industriais, bancários e de
caridade ou beneficentes – Lei nº 4.982, de 1925.
69
Cabe assinalar que a reforma constitucional não impulsionou a legislação social-
trabalhista e que até a Revolução de 1930 apenas foram elaborados a Lei nº 5.109, de 1926, que
estendeu o regime das Caixas de Aposentadorias e Pensões às empresas portuárias e às de
navegação marítima e fluvial; o Decreto nº 17.934, de 1924, que dispunha sobre o trabalho de
menores e a Lei nº 5.492, de 1928, disciplinando a locação de serviços teatrais.
Depois da Revolução de 3 de outubro de 1930 todas as constituições dispuseram
sobre os direitos sociais do trabalhador e não poderiam deixar de faze-lo em virtude da legislação
decretada por Getúlio Vargas, como chefe do Governo Provisório, a partir da criação do
Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio, a 26 de novembro de 1930.
Aqui vale transcrever um breve relato histórico-comparativo trazido ao nosso
conhecimento pelas palavras do Eminente Professor Arnaldo Süssekind73:
Promulgada a 16 de julho de 1934, o Novo Estado Político tornou-se um marco na
história do Direito Constitucional brasileiro pelas normas que inseriu no capítulo, até
então inédito, sobre a ordem econômica e social.
Como veremos no registro comparativo que a seguir faremos sobre os direitos sociais-
trabalhistas nas constituições de 1934, 1937, 1946 e 1967 (esta reformada pela
Emenda Constitucional nº 1, de 1969):
a)variaram consideravelmente as diretrizes doutrinárias e os preceitos concernentes ao
direito coletivo de trabalho;
b) a Justiça do Trabalho, a princípio de natureza administrativa, teve ampliada sua
competência e se integrou no Poder Judiciário;
c)os direitos individuais do trabalhador cresceram a partir do elenco consagrado pela
Constituição de 1934.
Determinava a Constituição de 1934, em síntese, que a ordem econômica deveria
ser organizada conforme os princípios de Justiça e as necessidades da vida nacional, de modo que
73 SÜSSEKIND, Arnaldo. Direito Constitucional do Trabalho.. 3ª Edição Ampliada e Atualizada até 20.10.2003. Rio de Janeiro – São Paulo: Renovar, 2004.; p 34.
70
possibilitasse a todos uma existência digna, devendo a lei promover um amplo amparo da
produção e estabelecer as condições de trabalho, tendo em vista a proteção social do trabalhador
e os interesses econômicos do país. Por fim, caberia, ainda, à lei dispor sobre o reconhecimento
dos sindicatos e das associações profissionais, tendo que assegurar a pluralidade sindical e a
completa autonomia dos sindicatos, assim, também, como o reconhecimento das convenções
coletivas de trabalho.
A Carta Magna de 10 de novembro de 1937, outorgada por Getúlio Vargas, com o
apoio das Forças Armadas, sublinhou que o trabalho, como meio de subsistência do indivíduo,
constitui um bem que é dever do Estado proteger, assegurando-lhe condições favoráveis e meios
de defesa.
No campo do direito coletivo do trabalho, depois de assegurar a livre associação
profissional e sindical, deu ao sindicado o reconhecimento pelo Estado, garantindo-lhe o
privilégio de representar a todos os que o integram, defendendo-lhes os direitos, bem como a
prerrogativa de estipular contratos coletivos de trabalho e o poder de impor contribuições e
exercer funções delegadas do poder público.
A Constituição de 18 de setembro de 1946, ao ver de Arnaldo Süssekind74, “o
melhor dos estatutos fundamentais brasileiros”, foi decretada e promulgada por uma Assembléia
Constituinte. No Capítulo Da Ordem Econômica e Social, asseverou que a ordem econômica
deveria ser organizada conforme os princípios da justiça social, conciliando a liberdade de
iniciativa com a valorização do trabalho humano. É o primeiro momento, no nosso modo de ver,
que se inicia uma preocupação, ainda que superficial, com a dignidade do trabalhador; é o
primeiro passo para a contemplação do princípio da dignidade da pessoa humana.
74 SÜSSEKIND, Op. Cit. p. 36.
71
No que se refere à organização sindical, afirmou a liberdade associativa e atribuiu
à lei regular a forma da constituição dos sindicatos. Outro importante avanço foi o
reconhecimento da greve como direito dos trabalhadores, cabendo à lei regular seu exercício,
bem como o reconhecimento dos direitos trabalhistas assegurados através das convenções
coletivas de trabalho.
A Constituição de 1967 foi decretada e promulgada pelo Congresso Nacional
visando assegurar a continuidade da Revolução de 1964, tendo, porém, sofrido rude golpe em
data de 17 de outubro de 1969, ocasião em que a Junta Militar, que assumiu o poder naquela
oportunidade, impôs-lhe ampla revisão através da Emenda Constitucional nº 1, a qual, todavia,
não alterou o elenco dos direitos sociais trabalhistas, mas introduziu modificações de relevo
quanto à finalidade da ordem econômica.
No que se refere ao direito coletivo de trabalho, a Carta Magna de 1967/69 repetiu
as disposições da Constituição de 1946 sobre organização sindical, tornando, todavia, obrigatório
o voto nas eleições sindicais e incluindo, de logo, entre as funções públicas que poderiam ser
delegadas aos sindicatos, a de arrecadar contribuições para o custeio das atividades de seus
órgãos e para a execução de programas de interesses das categorias por eles representadas.
Outros avanços dizem respeito à greve – incluída entre os direitos dos
trabalhadores, salvo em relação aos serviços públicos e às atividades essenciais definidas por lei,
e também ao reconhecimento das Convenções Coletivas de Trabalho como instrumento de
negociação entre empregados e empregadores.
4.3.2. A CONSTITUIÇÃO DE WEIMAR E OS DIREITOS SOCIAIS. OS
DIREITOS INDIVIDUAIS ASSEGURADOS NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS.
72
Com o fim da primeira Guerra Mundial a situação da Alemanha era grave. As
instituições políticas estavam destruídas, as forças de ordem desmoralizadas e a situação social
caótica. A esquerda radical buscava tomar o poder em favor dos conselhos de operários e
soldados ao estilo bolchevique.
Não era ao menos possível que a Assembléia Constituinte convocada
estabelecesse um novo quadro constitucional. Desta feira, ela se reuniu em Weimar.
Foi, assim, elaborada uma Constituição para a Alemanha republicana, cuja Parte II
concentra o ponto mais relevante para a história jurídica, qual seja, “Direitos e deveres
fundamentais dos alemães”. Dedica-se a primeira seção ao indivíduo, a segunda, à vida social, a
terceira, à religião e sociedades religiosas, a quarta, à instrução e estabelecimento de ensino, e a
quinta, à vida econômica.
Um novo espírito, o qual se pode chamar de “social”, marca todas referidas
seções. Estava assim consagrado um novo modelo, o qual foi seguido e imitado na constituições
que mais tarde foram editadas na Europa, e pelo resto do mundo, chegando ao direito positivo
brasileiro – o qual a será retratado em outro ponto – com a Carta de 1934.
Quais seriam, então, os caracteres dos direitos sociais?
Os direitos sociais, assim como as liberdades públicas, são direitos subjetivos. Não
se tratam, todavia, de meros poderes de agir, mas sim poderes de exigir.
Sem dúvida há direitos sociais que são antes poderes de agir, como é o caso do
direito ao lazer, entretanto assim mesmo quando a eles se referem, as Constituições tendem a
encara-los pelo prisma do dever do Estado, o qual é considerado como sujeito passivo desses
direitos.
73
O direito social tem como objeto uma contraprestação sob a forma de prestação de
um serviço, pressupõe sociedade; logo não são direitos naturais no sentido que dava a essa
expressão a doutrina iluminista no século XVIII.
Contudo, os direitos sociais podem ser deduzidos da sociabilidade humana,
considerando-se tal sociabilidade como própria à natureza humana, é que podem ser ditos
naturais.
A garantia que o Estado, considerado como coletividade organizada, dá a esses
direitos é a instituição dos serviços públicos a eles correspondentes. Temos, destarte, uma
garantia institucional.
Quanto aos direitos individuais o Estatuto Político de 1934 assegurou a percepção
do salário mínimo, capaz de satisfazer, conforme as condições de cada região às necessidades
normais do trabalhador. A Carta Constitucional de 1937 repetiu o texto de 1934. A de 1946
ampliou o termo necessidades normais do trabalhador, para necessidades normais do trabalhador
e de sua família, o que foi repetido pela Constituição de 1967.
O princípio da Isonomia – salário igual para o trabalho igual – foi garantido em
termos amplos pela Constituição de 1934, a qual proibia a diferença salarial por motivo de sexo,
idade, nacionalidade ou estado civil. Já a Constituição de 1937 foi silente quanto a esse ponto.
Com a Constituição de 1946 a norma foi reincorporada ao texto, nos mesmos dizeres da de 1935.
A de 1967 estendeu a não discriminação, antes referente exclusivamente aos salários, aos
critérios de admissão, mas só mencionou os motivos de sexo, cor e estado civil.
O salário do trabalho noturno superior ao do diurno foi uma inovação trazida pela
Carta de 1937 e reproduzida pela de 1946 e pela de 1967. As Constituições de 1934, 1937, 1946
e 1967 estabeleceram a jornada normal de trabalho não excedente de oito horas, sendo que as
74
duas primeiras aludindo à prorrogação nos termos da lei e a última referindo-se ao intervalo
intrajornada.
A Constituição de 1934 instituiu o repouso semanal, preferencialmente aos
domingos e a de 1937 previu o descanso aos domingos e feriados, observado os limites das
exigências técnicas da empresa. A de 1946 assegurou que esse repouso semanal e em feriados
passasse a ser remunerado, o que foi repetido pela Constituição de 1967.
Férias anuais remuneradas foram inscritas no elenco dos direitos sociais dos
trabalhadores pelas Constituições de 1934 e repetidas nas constituições que se seguiram. Quanto
à higiene e segurança do trabalho, somente com a Constituição de 1946 recebeu estatura
constitucional, sendo da mesma forma referida na Carta Magna de 1967.
No que respeita ao trabalho da mulher e do menor, as Constituições de 1934 e de
1937 dispuseram igualmente no sentido de proibir o trabalho a menores de 14 anos; o trabalho
noturno a menores de 16; e em indústrias insalubres a menores de 18 anos e a mulheres. A de
1946 ampliou proibição do trabalho noturno para 18 anos e acrescentou a seguinte frase:
“respeitadas , em qualquer caso, as condições estabelecidas em lei e as exceções admitidas pelo
juiz competente” (art. 157, IX). A de 1967 proibiu o trabalho da mulher e do menor de 18 anos
em indústrias insalubres, o menor de 18 anos à noite e baixou para 12 anos a admissão em
qualquer trabalho, o que afrontou o limite de idade para o trabalho determinado pelas normas
internacionais adotadas pela OIT.
A licença da trabalhadora gestante, antes e após o parto, sem prejuízo do emprego
e do respectivo salário, foi garantida pelas Constituições de 1934, 1937, 1946 e 1967. A
indenização do trabalhador dispensado sem justa causa foi instituída pela Carta Magna de 1934,
tendo a Constituição de 1937 assinalado que tal indenização seria proporcional aos anos de
serviço e que seria também devida, quando o empregado não desse motivo à cessação das
75
relações de trabalho e desde que a lei lhe conferisse direito à estabilidade no emprego. Já a
Constituição de 1946 enunciou simplesmente a estabilidade do empregador na empresa ou na
exploração rural e indenização caso fosse despedido, nos casos e condições previstos em lei. A de
1967, visando compatibilizar o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS, com a
Constituição, impôs uma regra, segundo a qual, estaria garantida a estabilidade no emprego, com
indenização ao trabalhador despedido ou fundo de garantia equivalente. No que se refere à
sucessão de empregadores nas obrigações trabalhistas, cumpre destacar que somente a Carta de
1937 tratou da referida matéria.
A não discriminação entre os trabalhos manual, técnico ou intelectual, ou entre os
respectivos profissionais, no que concerne aos direitos sociais-trabalhistas, foi enunciada pelas
Constituições de 1934, 1946 e 1967, porém, a de 1934 estabeleceu que o trabalho agrícola seria
objeto de regulamentação especial, que atenderia, tanto quanto fosse possível, ao elenco dos
direitos sociais enumerados no seu art. 121, § 4º.
Outra questão que passou a ter estatura Constitucional foi a da assistência médica
e a previdência social, previstas nas de 1934, 1937, 1946 e 1967. A Constituição de 1934
recomendou a regulamentação do exercício de todas as profissões, o que até a presente data não
se efetivou. Já a participação do trabalhador nos lucros das empresas, que posteriormente foi
estatuída em lei de forma direta e obrigatória, foi preceituada na Constituição de 1946, tendo a de
1967 ido além, determinando a integração na vida e no desenvolvimento da empresa com
participação nos lucros e, excepcionalmente, na gestão, segundo critérios estabelecidos em lei.
4.3.3. CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 – “A CONSTITUIÇÃO CIDADÔ.
76
Chegamos a 5 de outubro de 1988, o Congresso Nacional promulga, sob as
bênçãos de Deus, a Constituição Cidadã que trás em seu Preâmbulo a instituição de um Estado
democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de
uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e
comprometida com a ordem interna e internacional, solucionando pacificamente as controvérsias.
Assim dispõe o Artigo 1º da Constituição Federal de 1988:
Art. 1º. A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado democrático de direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político. Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição.
Portanto, como sublinhado no preâmbulo e no Artigo 1º da Constituição em vigor,
o regime político brasileiro corresponde a um Estado democrático de Direito, em que todo o
poder emana do povo e por ele é exercido, ou através de representantes eleitos.
4.3.4. HISTÓRICO SOBRE A JUSTIÇA DO TRABALHO NO BRASIL.
Antes de nos reportarmos à Justiça do Trabalho no Brasil necessário se faz investigarmos
a razão do seu surgimento no mundo.
O reconhecimento de que os primeiros organismos especializados na solução de conflitos
entre empregados e patrões a respeito do contrato de trabalho surgiram na França é unânime,
foram os conselis de Prud’hommes, em 1806.
77
Note-se, porém, que se tratava de uma experiência bem sucedida, a qual passou a ser
adotada por outros países europeus que instituíram organismos independentes do Poder
Judiciário. Tais organismos buscavam, primeiramente, a conciliação, muito mais do que uma
solução pelo Estado. A composição, originariamente, era feita por juízes letrados, conhecedores
tanto do direito como das questões laborais. Posteriormente, adotou-se a sistemática da
representação paritária, em que as comissões de conciliação dos conflitos trabalhistas eram
compostas por um representante do empregador e outro dos empregados, cuja indicação era feita
pelo sindicato profissional. Surge, então, o modelo de juízo tripartite, onde, aos representantes
das categorias econômica e profissional se somava, como elemento de desempate, o representante
estatal.
A tendência moderna segue no sentido da supressão da representação classista nos órgãos
jurisdicionais trabalhistas, podendo remanescer em conselhos de conciliação e arbitragem, dada a
natureza distinta que possuem em relação aos órgãos jurisdicionais.
A criação de uma jurisdição do trabalho independente teve como objetivos os de
possibilitar uma solução mais rápida, simples e barata dos conflitos laborais, a par de propiciar
métodos mais eficazes de composição tanto de dissídios individuais como de coletivos.
Para melhor exemplificar, extraí-se do quadro abaixo a situação da Justiça do Trabalho no
mundo.
OS CONFLITOS TRABALHISTAS SÃO DIRIMIDOS DA SEGUINTE FORMA
JUSTIÇA COMUM OU
ADMINISTRATIVA
JUSTIÇA DO TRABALHO
COMO RAMO DE
JUSTIÇA COMUM
JUSTIÇA DO TRABALHO
COMO JUSTIÇA
ESPECIAL
78
ESTADOS UNIDOS
FRANÇA
ÍNDIA
MÉXICO
SUÍÇA
ARGENTINA
BOLÍVIA
COLÔMBIA
COSTA RICA
CHILE
ESPANHA
ITÁLIA
PANAMÁ
PARAGUAI
PERU
URUGUAI
ALEMANHA
AUSTRÁLIA
BRASIL
CAMARÕES
COSTA DO MARFIM
EGITO
GRÃ-BRETANHA
ISRAEL
MADAGASCAR
NOVA ZELÂNDIA
SENEGAL
VENEZUELA
Os países que adotam o sistema de atribuir a um dos ramos da Justiça Comum a
apreciação das questões laborais funcionam, em primeira instância, em juízos monocráticos, de
caráter estritamente técnico-jurídico.
SISTEMA DE SOLUÇÃO DE CONFLITOS COLETIVOS
ARBITRAGEM
VOLUNTÁRIA
ARBITRAGEM
OBRIGATÓRIA
PODER NORMATIVO
ARGENTINA
ESTADOS UNIDOS
GRÃ-BRETANHA
CHILE
COLÔMBIA
EGITO
AUSTRÁLIA
BRASIL
MÉXICO
79
JAPÃO
PANAMÁ
ESPANHA
ITÁLIA
MALÁSIA
REPÚBLICA DOMINICANA
PAQUISTÃO
SENEGAL
VENEZUELA
NOVA ZELÂNDIA
PERU
Nos países de pequenas dimensões geográficas, não há uma 3ª instância
trabalhista, uniformizadora da jurisprudência, cabendo, das decisões de 2 ª instância, quando a
controvérsia envolve matéria constitucional, o apelo à Corte Suprema do país. A 3ª instância
laboral serve, assim, basicamente nos países de constituição federativa, como uniformizadora da
jurisprudência entre as várias entidades federadas. De suas decisões cabe recurso à Suprema
Corte do país, que exerce o controle de constitucionalidade das decisões dos demais órgãos do
Poder Judiciário.
ESTRUTURA DA JUSTIÇA DO TRABALHO
PAÍS 1ª INSTÂNCIA 2ª INSTÂNCIA CORTE SUPERIOR
ALEMANHA ARBEITGERICHTS LANDSARBEITGERICHT BUNDESARBEITGERICHT
ARGENTINA JUEZ DEL
TRABAJO
SALA SOCIAL DE LA
CORTE DISTRITAL
SALA SOCIAL DE LA
CORTE SUPREMA DE
JUSTICIA
CHILE JUZGADO DE
LETRAS DEL
CORTE DE APELACIÓN SUPREMA CORTE DE
JUSTICIA
80
TRABAJO
COSTA
RICA
JUZGADO DEL
TRABAJO
TRIBUNAL SUPERIOR
DO TRABALHO
SALA DE CASSACIÓN DE
LA CORTE SUPREMA
ESPANHA JUECES DE LO
SOCIAL
SALAS DE LO SOCIAL
DE LOS TRIBUNALES
SUPERIOES DE
JUSTICIA DE LAS
COMUNIDADES
AUTONOMAS
SALA DE LO SOCIAL DE
LA AUDIENCIA
NACIONAL
FRANÇA CONSELI DE
PRUD’HOMMES
COURT D’APPEL COURT DE CASSATION
ITÁLIA PRETORE TRIBUNALE COMUNE
DI APELAZIONE
CORTE DE CASSAZIONE
PARAGUAI JUEZ DE
PRIMERA
INSTANCIA EM
LO LABORAL
TRIBUNALE DE
APELACIÓN DEL
TRABAJO
CORTE SUPREMA DE
JUSTICIA
No tempo do Império no Braisl, as leis de 13 de setembro de 1830, 11 de outubro
de 1837 e 15 de março de 1842 foram as primeiras a dar tratamento especial às demandas
relativas à prestação de serviços, que deveriam ser apreciadas segundo o rito sumaríssimo pelos
juízes comuns. O Decreto n.2.827, de 15 de março de 1879, no entanto, veio a restringir tal
81
procedimento às demandas de prestação de serviços no âmbito rural, atribuindo sua solução aos
juízes de paz. As demais demandas relativas a contratos de trabalho, de acordo com o
Regulamento n.737, de 25 de novembro de 1850, seriam apreciadas pelos juízes comuns, mas
segundo o rito sumário. Via-se, desta forma, o reconhecimento de que as questões trabalhistas
demandavam um processo mais célere e simplificado. No entanto, os primeiros ensaios de se
criar organismos independentes para a solução dessas demandas apenas se verificaram nos
começos da República.
Sendo o Brasil, nos seus primórdios, um país agrícola, o protecionismo estatal dirigiu-se
basicamente ao trabalhador manual do campo, especialmente o imigrante. O Decreto n.979, de 6
de janeiro de 1903 facultou aos trabalhadores do campo a organização de sindicatos para a defesa
de seus interesses, mas com objetivos mais amplos. Sua feição era mais econômica do que
política ou jurídica.
Em 1923, surgia, no âmbito do então Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio, o
Conselho Nacional do Trabalho (núcleo do futuro TST), instituído pelo Decreto n.16.027, com
tríplice finalidade: ser órgão consultivo do Ministério em matéria trabalhista; funcionar como
instância recursal em matéria previdenciária; e atuar como órgão autorizador das demissões dos
empregados que, no serviço público, gozavam de estabilidade, através de inquérito
administrativo.
A revolução Constitucionalista Paulista de 1932 levou à convocação de uma Assembléia
nacional Constituinte por Getúlio Vargas em 1934, na qual o deputado Abelardo Marinho
formulou a proposta de que fosse instituída a Justiça do Trabalho, uma vez que o sistema
administrativo que vinha sendo seguido, com as decisões das JCJs sendo alteradas a seu talante
pelo Ministro do Trabalho ou revistas integralmente pela Justiça Comum, tornavam ineficazes as
decisões proferidas pelos órgãos existentes.
82
No que se refere à Justiça do Trabalho no Brasil, sua instituição foi prevista pela
Constituição de 1934, o que foi repetido pela Carta Maior de 1937, porém, apenas em 1º de maio
de 1941 a Justiça do Trabalho foi instalada em todo o país, como parte da Administração Federal,
vinculada ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio.
Foi com a Constituição de 1946, todavia, que a Justiça do Trabalho foi intergrada
ao Poder Judiciário, ficando assegurado a paridade de representação de empregados e
empregadores em todos os seus órgãos e sua competência era restrita a estabelecer normas e
condições de trabalho nos casos especificados em lei, ao julgar os dissídios coletivos.
A Constituição de 1967/69 manteve essas normas e deu um passo além, definindo
a composição do Tribunal Superior do Trabalho e dos Tribunais Regionais, com juízes vitalícios
e juízes classistas temporários, entre aqueles garantida, nas proporções indicadas, a participação
de magistrados de carreira, advogados e membros do Ministério Público do Trabalho e, por fim,
limitou o recurso ao Supremo Tribunal Federal aos casos em que a decisão da Justiça do
Trabalho contrariasse a Constituição.
4.3.5. O DIREITO AO TRABALHO, O DIREITO NO TRABALHO E O
DIREITO DO TRABALHO.
a) O DIREITO AO TRABALHO.
Antes de analisarmos os princípios e suas diversas manifestações no âmbito das
relações entre patrões e empregados, mister fazermos uma breve distinção entre o direito ao
trabalho, o direito no trabalho e o Direito do Trabalho.
83
E o que vem a ser o direito? Alberto Nogueira75 o define como sendo tudo aquilo
que pode ser sem afetar os outros. O Direito é o espaço em que cada um é absoluto, o centro de
todas as pretensões. Quem está com o Direito – por menor que seja – detém legitimamente todo o
poder humano. Pode até não lograr exercê-lo, diante da opressão, mas é o legítimo titular do
poder, em cada situação concreta. O Direito assim concebido, pois, é a fonte do poder humano.
Basta dizer – validamente – que se tem o Direito para pôr em ação toda força legítima da
humanidade, ou seja, a ordem jurídica.
Nossa Constituição Federal de 1988, em seu art. 6º impõe que o trabalho é um
Direito Social e como tal deve ser promovido pelo Estado a todo cidadão, sendo livre o exercício
de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais estabelecidas
em lei, conforme dispõe o inciso XIII, do Artigo 5º que trata dos Direitos e Garantias
Fundamentais da Carta Constitucional vigente.
Por fim a ordem social do Estado democrático de Direito brasileiro tem como base
o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais, conforme se extrai do art.
193 da Carta Maior de 1988.
Mas, nem sempre foi assim. Como já visto no Capítulo 1 do presente estudo, tudo
teve início com a escravidão como condição social das classes trabalhadoras, os quais tinham
como função principal arcar com o ônus do consumo de uma casa, e não produzir para uma
sociedade em geral. Passamos posteriormente a uma nova era do trabalho, onde surgem as
ferramentas e os instrumentos que podiam suavizar consideravelmente o esforço do labor.
Passou-se a ter uma abundante e desenfreada busca pelo consumo, o que moveu a sociedade e
deu início a uma preocupação com o trabalho e com o homem que trabalha, isto é, passou-se a
75 NOGUEIRA, Alberto. Jurisdição das Liberdades Públicas. Rio de Janeiro . São Paulo: Renovar, 2003. p. 164-165.
84
pensar em formas amparar esse trabalhador cada vez mais vulnerável e isolado no mundo da
produção e do consumo exacerbados. Continua o processo evolutivo e o homem foi encontrando
os meios necessários para seu desenvolvimento pessoal e social e, assim, o trabalho passou a
oferecer-lhe melhores condições de uma vida condigna e maior segurança, deixando de ser
castigo, como na escravidão, e passando a ser sinônimo de bem-estar do próprio trabalhador e de
sua família. Passou a ser exigência social, pois trouxe benefícios a toda sociedade; adquiriu status
social, pois passou a contribuir para uma melhoria no nível de vida do trabalhador e de sua
família; passou a ter relevância política, pois, passou-se a exigir mais do Estado no que concerne
à educação, saúde, saneamento etc. e, por fim, passa a ter um caráter de solidariedade, pois o
trabalho sai da esfera do indivíduo e passa à esfera coletiva, isto é, no mundo moderno já não
trabalha mais o homem sozinho, mas todos os homens.
E o trabalho culminou com tudo isso que hoje nos envolve, isto é, têm-se o
trabalho subordinado, o trabalho autônomo, doméstico, servidores públicos, avulsos, eventuais,
dentre outros, coube ao Direito o papel de garantidor dos deveres e direitos das partes que
compõem as relações jurídicas de trabalho.
O Direito ao trabalho, pois é um dever do Estado, um direito de toda sociedade e a
forma mais clara de dignidade da pessoa humana.
b) O DIREITO NO TRABALHO.
85
Como visto no item anterior, várias são as formas de trabalho: subordinado,
autônomo, doméstico, serviços públicos, trabalhos avulsos, eventuais dentre tantos outros.
Em cada um deles os sujeitos da relação jurídica são detentores de direitos e
obrigações recíprocas, que se descumpridas por uma das partes, ensejarão o rompimento da
relação pela outra parte.
No caso de nossos estudos vamos nos restringir a uma das formas de relações de
trabalho, qual seja, o trabalho subordinado. Não queremos, todavia, dizer que os princípios da
boa-fé, eticidade e dignidade da pessoa humana não estejam ou, não devam estar presentes nas
demais formas de relações de trabalho. Ao contrário, são tais princípios – ou deveriam ser -
inerentes a toda e qualquer relação humana, muito mais quando nessas relações o objeto é o
trabalho.
Na relação empregatícia o empregado tem direitos assegurados no curso do
contrato, isto é, quais sejam, aqueles estabelecidos no art. 7º da Constituição Federal de 1988,
incisos I a XXIV, parágrafo único, quais sejam, proteção contra despedida arbitrária ou sem justa
causa, seguro-desemprego, fundo de garantia por tempo de serviço, salário mínimo,
irredutibilidade de salário, décimo terceiro salário, férias anuais, participação nos lucros da
empresa, salário família, licença maternidade e licença paternidade, aviso prévio, dentre outros.
Estão, outrossim, na Consolidação das Leis do Trabalho os demais direitos e também os deveres
do empregado, e respectivamente os do empregador.
c) O DIREITO DO TRABALHO.
86
Jorge Luiz Souto Maior76 destaca que o direito do trabalho surgiu como reflexo de
uma tensão que se instalou no mundo das idéias, surgido como fórmula da classe burguesa para
impedir a emancipação da classe operária. Com o direito do trabalho a separação de classes está
mantida.
Porém, com o surgimento do direito do trabalho, inicia-se um processo de
valorização do trabalho, que somente tomou corpo a partir da formação de uma consciência
social em torno dessa mesma valorização. Nasce nesse momento a idéia de um homem livre, o
trabalhador, que ainda não é detentor dos meios de produção, portanto não podendo usufruir do
resultado de seu próprio trabalho, mas, que aos poucos começa a aproveita-lo.
Aos poucos vai-se desvinculando o trabalho da figura do trabalhador, passando a
importar apenas sua força de trabalho, que tem seu valor determinado pela lei do mercado
econômico. Assim, o direito do trabalho deixa de ser um meio de valorizar o trabalho e o homem,
passando a ser examinado em conformidade coma as contingências econômicas. É o surgimento
de fenômenos como a flexibilização e da desregulação do direito do trabalho, o que nos remete à
situação atual.
Essa situação, semelhante em quase todas as nações, é muito mais grave no Brasil
onde a ausência de ideais de justiça, ou pelo menos a ausência da difusão desses ideais perante as
classes trabalhadoras, visando a formação de uma consciência de cidadania entre os
trabalhadores, levou a crer que o direito por eles conquistado, na verdade lhes foi um direito
concedido.
Ao tratarmos dos princípios da boa-fé, da eticidade e da dignidade da pessoa
humana, voltaremos nossas considerações à disciplina Direito do Trabalho e de que forma a
76 MAIOR, Jorge Luiz Souto; O direito do trabalho como instrumento de justiça social; São Paulo, LTr, 2000, pgs. 69-70.
87
aplicação desses princípios poderá servir como instrumento para a realização de uma verdadeira
justiça social no Brasil.
4.3.6. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ.
Para que se alcance o fim estabelecido quando da celebração de um contrato de
trabalho é necessário que o trabalhador assuma a obrigação de realizar suas tarefas de forma a ter
rendimento no trabalho, demonstrando empenho e dedicação e seus afazeres. Em contrapartida,
tal obrigação também alcança o empregador que deve, com o cumprimento integral de suas
obrigações, conduzir a relação em consonância com o princípio da boa-fé.
É, portanto, a boa-fé que antecede à celebração de um contrato de trabalho, por
tratar-se de um elemento jurídico indispensável para sua interpretação e sua integração. Quando
dizemos isso, queremos afirmar que o princípio da boa-fé não é uma norma, mas um princípio
jurídico fundamental que devemos admitir como premissa de todo ordenamento jurídico. É a boa-
fé que deve sustentar toda e qualquer relação jurídica, pois ela se desdobra em fidúcia e,
conseqüentemente, no princípio da continuidade da relação laboral, fundamental para a
concretização do verdadeiro sentido da condição humana.
Américo Plá Rodrigues77ao afirmar a importância do princípio da boa-fé no
Direito do Trabalho, conceitua boa-fé distinguindo-a entre a boa-fé-crença e a boa-fé-lealdade,
afirmando que a primeira é a posição de quem ignora determinados fatos e pensa, portanto, que
sua conduta é perfeitamente legítima e não causa prejuízos a ninguém, v.g. o possuidor de boa-fé
- que ignora o vício ou o obstáculo que lhe impede a aquisição da coisa ou do direito possuído.
Já a boa-fé-lealdade se refere à conduta da pessoa que considera cumprir realmente com o seu 77 PLÁ RODRIGUES, Op. cit. p. 425-426.
88
dever. Pressupõe uma posição de honestidade e honradez no comércio jurídico, porquanto
contém implícita a plena consciência de não enganar, não prejudicar, nem causar danos. E ainda
mais: implica a convicção de que as transações são cumpridas normalmente, sem trapaças, sem
abusos, nem desvirtuamentos, sendo esta última, sem sombra de dúvidas a boa-fé que deve
vigorar como princípio do Direito do trabalho, isto é, a boa-fé que se refere a um comportamento
e não a uma simples convicção. Ressalta, ainda, que tal princípio abrange ambas as partes do
contrato de trabalho e não apenas uma delas, devendo inspirar o trabalhador e demonstrar o
empregador.
Muito se fala no cumprimento do dever do trabalhador de apresentar rendimento,
ou seja, exige-se que realize seu trabalho com rendimento e a um ritmo regular, porém, se
omitem muitas outras implicações contidas na idéia de que o trabalhador deve agir lealmente.
Mas, sobretudo, costuma-se prescindir da projeção desse princípio no que diz respeito à conduta
do empregador. Agir o empregador de boa-fé, lealmente, representa cumprir com todas as suas
obrigações contratuais. Plá Rodrigues78 leciona que a reafirmação desta obrigação não é ociosa,
nem inútil, porque a experiência prática enumera inúmeros exemplos de violações desse dever:
desde o do empregador que paga salários inferiores aos mínimos estabelecidos ou atribui
hierarquias inadequadas, até ao que faz uso abusivo e injustificado do jus variandi. Não se pode
esquecer os casos menos freqüentes, mas não desconhecidos, daqueles patrões que obrigam o
trabalhador a cumprir horário sem destinar-lhe qualquer tarefa, para que se sinta moralmente
embaraçado e acabe por deixar a empresa.
Cabe salientar que o Princípio da Boa-fé abrange a todas as obrigações contratuais,
e que este princípio deve ser levado em conta para a aplicação de todos os direitos e obrigações
que as partes adquirem como conseqüência do contrato de trabalho. 78 IDEM, p. 427.
89
Como dito anteriormente, o Princípio da Boa-fé, é muito mais do que uma simples
norma jurídica, é, nas palavras de Américo Plá Rodrigues79, “um modo de agir, um estilo de
conduta, uma forma de proceder, diante das mil e uma emergências da vida quotidiana, que não
se pode ater nem se limitar à forma de cumprimento de certas obrigações. E que, quanto mais
importante é a obrigação e maior o tempo que ela demande, maior será a importância prática do
princípio.” Assim, a importância antes mencionada centraliza-se na obrigação, de um lado, de
prestar os serviços e, de outro, de pagar a retribuição correspondente. O não cumprimento dessas
obrigações básicas, pois, ensejarão outras tantas ocasiões e circunstâncias que levarão à violação
do princípio.
Tamanha a importância do Princípio da Boa-fé na relação entre trabalhador e
empregador, que a inobservância ou violação desse princípio por quaisquer das partes, poderá
ensejar a ruptura por justa causa do vínculo empregatício, conforme capitulado nos Artigos 482 e
483 da CLT.80
O trabalhador estará violando o Princípio da Boa-fé e constituindo justa causa para
rescisão de seu contrato de trabalho pelo empregador nas seguintes situações:
Art. 482. Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empegador: ...................................................................................................... c) negociação habitual por conta própria ou alheia sem permissão do empregador e quando constituir ato de concorrência à empresa para a qual trabalha o empregado, ou for prejudicial ao serviço; ...................................................................................................... e) desídia no desempenho das respectivas funções; ...................................................................................................... g) violação de segredo da empresa; ...................................................................................................... i) abandono de emprego;
79 PLÁ RODRIGUES, Op. Cit. p. 428. 80. SAAD; Eduardo Gabriel. Consolidação das Leis do Trabalho Comentada. 36ª edição. São Paulo: LTr, 2003. p. 335- 339.
90
Já o empregado, diante do que dispõe o Artigo 483 Consolidado quando o
Princípio da Boa-fé deixar de ser observado por seu empregador, nas seguintes situações:
Art. 483. O empregado poderá considerar rescindido o contrato de trabalho e pleitear a devida indenização quando: a) forem exigidos serviços superiores às suas forças, defesos por lei, contrários aos
bons costumes, ou alheios ao contrato; b) for tratado com pelo empregador ou por seus superiores hierárquicos com rigor
excessivo; ...................................................................................................... d) não cumprir o empregador as obrigações do contrato; ...................................................................................................... g) o empregador reduzir o seu trabalho, sendo este por peça ou tarefa, de forma a afetar sensivelmente a importância dos salários;
4.3.7. PRINCÍPIO DA ETICIDADE.
A Ética, segundo Gustavo Korte81, estuda as relações entre o indivíduo e o
contexto em que está situado, isto é, entre o que é individualizado e o mundo a sua volta,
procurando enunciar e explicar as regras, normas, leis e princípios que regem os fenômenos
éticos, que são, todos os acontecimentos que ocorrem nas relações entre o indivíduo e seu
contexto. Tais fenômenos, com efeito, são enunciados por idéias, linhas e formas de pensar, e
tornam-se concretizados em atos, fatos, ações, relações e procedimentos.
A Ética está ligada ao conceito de Respeito que, por sua vez, corresponde à idéia
de uma regra para o relacionamento de todo indivíduo com tudo que se encontra no contexto
onde esteja situado. E Respeito também se equivale a Moral, cuja idéia recebemos das tradições e
costumes: Dizer a verdade é moral; deve-se trabalhar para alcançar o sustento, porque a ética
81 KORTE, Gustavo; Iniciação à Ética; São Paulo; Editora Juarez de Oliveira – 1999; pg. 1
91
ensina que deve ser assim; Ame a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como assim mesmo, é
o Mandamento maior da Lei de Deus; honre seu pai e sua mãe para ser próspero e ter vida longa
na terra, foi o ensinamento gravado na pedra e recebido por Moisés.
O homem ético, pois é um homem de virtudes que traz em seu ser o verdadeiro
sentido da eticidade. Gustavo Korte82, valendo-se do pensamento Confuciano enumera sete
palavras-chaves, para revelar o verdadeiro sentido ético em que deve o homem se basear para
conviver com o contexto que o cerca:
A primeira é a Fidelidade que pode ser compreendida sob dois prismas distintos: o
primeiro como um ato de livre manifestação de vontade individual, que liga o amante ao ser
amado, prendendo-lhe a atenção e os sentimentos e gera uma relação afetiva unilateral – amo
porque quero vê-la amada, ou bilateral – amo porque sou amado; o segundo no sentido da
fidelidade do súdito ao seu soberano, do trabalhador ao empregador, ocorre da parte do primeiro
uma ligação de fé, de confiança, em que o último, com mais sabedoria, poder e força, irá fazer o
melhor por aquele e por sua comunidade. Há uma fé latente na validade da relação soberano-
povo. A fidelidade se extingue quando o soberano, o empregador, se mostra injusto ou incapaz.
A segunda palavra é Altruísmo que emerge do conformismo, traduzindo, em
sentido genérico, os conceitos de abnegação e amor ao próximo, opondo-se ao egoísmo.
Terceira palavra, Humanidade, que dentre os vários sentidos, indica as virtudes
morais, como compaixão, clemência e benevolência, opondo-se a desumanidade, crueldade e
impunidade.
A quarta palavra é Justiça, que diz respeito à profissão que abraçamos, pode ser
resumida na seguinte frase: Dar a cada um o que lhe pertence. E para que se possa alcançar a
justiça, não é suficiente aplicar-se a lei, posto que fazer-se isto sem humanidade, sem altruísmo, 82 KORTE, Op. Cit. p. 71-78.
92
sem sabedoria, sem decência, sem sinceridade e sem fidelidade, não é fazer justiça; pode ser
sentença, mas nunca passará de uma manifestação isolada, injusta e indesejada de quem detém o
poder, mas não sabe julgar.
Quinta palavra: Decência é a virtude que decorre da compatibilidade entre o
procedimento, suas causas e os ritos e rituais em que ele se desenvolve. O que é decente para uns
é indecente para outros. Decência, pois, está de acordo com os ritos e rituais de uma determinada
sociedade, o que para nós quer significar comportar-se de acordo com os nossos usos e costumes.
A sexta palavra é a Sabedoria, que como virtude, é a somatória da fidelidade, da
humanidade, da sinceridade, da justiça, do altruísmo e da decência.
Por derradeiro, a palavra é Sinceridade. Existe a sinceridade quando a pessoa é
decente porque quer sê-lo. Quando fiel porque acredita na fidelidade como virtude. É altruísta,
porque é humilde. É sábio porque ama a sabedoria e é justo porque acredita na justiça.
Estamos falando em homem social, em vida em sociedade, em condição humana,
que na concepção de Hannah Arendt83, como assentado no Capítulo I, utiliza a expressão a vita
activa pretendendo designar três atividades humanas fundamentais, quais sejam, labor, trabalho e
ação, porque a cada uma delas corresponde uma das condições básicas mediante as quais a vida
foi dada por Deus ao Homem aqui na terra.
Falamos, pois, em Ética Social que guarda ralação direta com a política, a
economia, a produção, o consumo e a filosofia do direito.
No que se refere ao trabalho, relacionado diretamente com as questões políticas,
econômicas, produtivas e filosóficas, leciona Gustavo Korte84 que o trabalhismo, movimento que
surgiu na Inglaterra no século XIX, e depois nos demais países avançados, teve por princípio
83 ARENDT, Op. Cit. p. 15. 84 KORTE, Op. Cit. p. 148-149.
93
interferir na relação capital-trabalho, dando ao trabalhador uma importância e uma proteção
maior, em face do poder do capital.
Assim, tendo o capital maior força econômica que o trabalho, este deve ser
protegido pelo Estado, para viabilizar equilíbrio e justiça social. Vale dizer, a segurança dos
direitos do trabalhador passa a ser também função do Estado, e à medida que cresce o capital,
nessa relação, mais proteção deve ser dispensada ao trabalhador.
Fidelidade, Altruísmo, Humildade, Justiça, Decência, Sabedoria e Sinceridade são
elementos essenciais à Ética, cujo princípio norteia também as relações laborais, tendo em vista
que trabalhador e patrão, devem trazer para dentro da relação jurídica cada um desse elementos e,
assim, cumprir suas obrigações recíprocas e garantir os direitos que lhe são assegurados por lei e
pela vontade que declararam quando da celebração do contrato.
A Ética está inserida nos próprios conceitos de empregador e empregado,
capitulados nos artigos 2º e 3º da Consolidação das Leis do Trabalho, respectivamente, cabendo
ao primeiro assumir os riscos da atividade econômica por ele explorada, admitindo e assalariando
o empregado e dirigindo a prestação dos serviços. Quanto ao segundo, deve prestar seus serviços
de forma não eventual, mediante o recebimento de salário.
É ético, pois, o empregador que não transfere ao empregado os prejuízos que
porventura venha a sofrer na execução da atividade explorada. É comum nos Pretórios
Trabalhistas de todo o País, frentistas de postos de gasolina, serem obrigados a ressarcir os
valores pagos com cheques sem fundos ou com cartões de crédito roubados. Motoristas serem
obrigados a pagar prejuízos causados em acidentes de trânsito e tantos outros casos. É ético o
empregador que admite um empregado independentemente de sua cor, sua crença religiosa ou
sua opção sexual. É ético o patrão que paga corretamente a remuneração a que faz jus o
trabalhador e é ético o empregador que dirige a prestação dos serviços sem exigir do empregado
94
esforço que não esteja apto a suportar, ou impor ordens que não façam parte do objeto do
contrato. É ético o empregador que age com humanidade e justiça diante de seus subalternos.
Quanto ao empregado, diz-se ético aquele que cumpre rigorosamente com todas as
obrigações contratuais, cumpre horários, respeita seus colegas de trabalho e seus superiores
hierárquicos, é fiel e sincero com seu empregador e utiliza sua sabedoria para melhorar as
condições de vida de sua família.
É a Ética que preconiza outro Princípio do Direito do Trabalho, qual seja, o
Princípio da Continuidade do contrato de trabalho, o qual só poderá se consolidar se empregado e
empregador agirem em absoluta consonância com o Princípio da Eticidade.
Por fim, cabe ao Juiz do Trabalho, considerando e tendo em mente sempre os
fundamentos do trabalhismo, citado anteriormente, fazer prevalecer tal princípio quando da
apreciação de toda e qualquer demanda de natureza trabalhista.
É, pois, ético, o Juiz do Trabalho que assegura equivalência à relação capital-
trabalho, dando ao trabalhador a importância e a proteção de que necessita, em virtude do
incomensurável poder do capital.
É o Estado Juiz, repleto de Ética e com uma visão social e normativa, quem tem o
poder de proteger o trabalhador em face do maior poder do capital, viabilizando, em última
análise, o equilíbrio, o acesso à justiça e a tão desejada Justiça Social.
4.3.8. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA.
95
Dispõe o Artigo 1º da Constituição Federal de 198885, que trata Dos Princípios
Fundamentais, em síntese, que o Brasil, constitui-se em um Estado democrático de direito e tem
como fundamentos, dentre outros, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho
e da livre iniciativa .
Já o Artigo 5º, inciso XIII do Título II, Capítulo I da Carta Constitucional, que
trata Dos Direitos e Garantias Fundamentais, assegura o livre exercício de qualquer trabalho,
ofício ou profissão, atendidas as qualificações estabelecidas em lei.
No Artigo 6º, do Título II, Capítulo II da Carta Fundamental, que trata dos Direitos
Sociais, restam assegurados a educação, a saúde, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência
social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados e o trabalho, na
forma da Constituição.
A garantia desses direitos, liberdades e princípios fundamentais é dever do Estado,
em conformidade com o que dispõe a Constituição Federal vigente, conforme se lê nos incisos
XXXV e XLI do Artigo 5º, que dispõem, respectivamente, que a lei não excluirá da apreciação
do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito e, a lei punirá qualquer discriminação atentatória
dos direitos e liberdades fundamentais.
Arnaldo Süssekind86 afirma que os instrumentos normativos que incidem sobre as
relações de trabalho devem visar, sempre que pertinente, a prevalência dos valores sociais do
trabalho. E a dignidade do trabalhador, como ser humano, deve ter profunda ressonância na
interpretação e aplicação das normas legais e das condições contratuais de trabalho.
85 Constituição Da República Federativa do Brasil promulgada em 5 de outubro de 1988. 86 SÜSSEKIND, Op. Cit. p. 66.
96
A Constituição Federal de 1988 determina, em seu Título VIII, Artigo 193, que a
ordem social tem como base o primado ao trabalho e, como objetivo o bem-estar e a justiça
sociais.
A esse respeito Arnaldo Süssekind87 menciona as artigos 7º e 8º da Constituição
Federal vigente, para verificar a existência de princípios inerentes aos direitos fundamentais do
trabalhador, como o princípio da não-discriminação, que proíbe diferença de critério de admissão,
de exercício de funções e salário por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil (Art. 7º, XXX),
ou critério de admissão e de salário em razão de deficiência física (Art. 7º, XXXI). Outro
princípio é o da continuidade da relação de emprego, o qual, embora não seja inflexível, posto
que não há estabilidade absoluta consagrada na Constituição de 1988, emana das normas que
garantem indenização por dispensa arbitrária, ou sem justa causa (Art. 7º, I).
Mas, o que vem a ser a dignidade da pessoa humana?
Rizzato Nunes88 leciona que Dignidade é um conceito que foi sendo elaborado no
decorrer da história e chegou ao início do século XXI repleta de si mesma como um valor
supremo, tendo sido construído pela razão jurídica, sendo uma conquista da razão ético-jurídica,
fruto da reação à história de atrocidades que, infelizmente, marcou e marca a existência humana.
Ingo Wolfgang Sarlet89 diz que se deve entender por dignidade da pessoa humana
a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e
consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de
direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de
cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas
87 SÜSSEKIND, Op. Cit. p. 68. 88 NUNES, Rizzatto. O Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana – Doutrina e Jurisprudência. São Paulo: Editora Saraiva, 2002. p 46. 89 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição Federal de 1988; Segunda Edição Revista e Ampliada. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2002. p. 62.
97
para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável
nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.
Desse conceito pode-se extrair alguns termos que devem nortear as relações entre
os indivíduos, comunidade/indivíduo e Estado/indivíduo: o respeito e a consideração por parte do
Estado e da comunidade. O indivíduo deve ser tratado com respeito e consideração por todos
aqueles que fazem parte do contexto de sua vida em sociedade: família, amigos, empregador e
pelo próprio Estado. Essa condição de respeito e consideração leva o indivíduo à realização plena
de seus direitos e deveres, que tem por finalidade, sejam inibidos atos desumanos e atentatórios à
sua pessoa, assegurando-lhe condições mínimas essenciais para uma vida saudável. Essas
condições são, moradia, saúde, lazer, previdência social e trabalho, dentre outros, todas elas
consubstanciadas no texto do Artigo 6º da Constituição Federal, antes mencionado.
É certo afirmar que nossa Constituição, de cunho marcadamente compromissário
elevou a dignidade da pessoa humana à condição de fundamento de nosso Estado democrático de
Direito. Assim, nossa Constituição pode ser considerada como sendo uma Constituição da pessoa
humana, por excelência, mesmo que não raras vezes venha a ser desrespeitada.
Conforme salienta Ingo Wolfgang Sarlet90, ainda que a dignidade preexista ao
direito, certo é que o seu reconhecimento e proteção por parte da ordem jurídica constituem
requisito indispensável para que esta possa ser tida como legítima.91
Assiste, pois, razão aos que apresentam a dignidade da pessoa humana como
critério aferidor da legitimidade substancial de uma determinada ordem jurídico-constitucional.
Se por um lado consideramos que há como discutir, especialmente na nossa ordem constitucional
90 SARLET, Op. Cit. p. 82-83. 91 E acrescenta Ingo Wolfgang: “Aliás, tal dignidade tem sido reconhecida à dignidade da pessoa humana que se chegou a sustentar, parafraseando o conhecido e multicitado art. 16 da Declaração Francesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), que toda sociedade que não reconhece e não garante a dignidade da pessoa não possui uma Constituição.”
98
positiva, a afirmação de que todos os direitos e garantias fundamentais encontram seu
fundamento direto, imediato e igual na dignidade da pessoa humana, e por ele concretizados,
verifica-se, por outro lado, que os direitos e garantias fundamentais podem, ainda que de modo e
intensidade variáveis, ser reconhecidos de alguma forma à noção de dignidade da pessoa humana,
tendo em vista que todos remontam à idéia de proteção e desenvolvimento de todas as pessoas e
não apenas de cada uma, individualmente.
Impõe-se, pois, seja ressaltada a função instrumental e hermenêutica do princípio
da dignidade de pessoa humana, na medida em que este serve de parâmetro para aplicação,
interpretação e integração não apenas dos direitos fundamentais e das demais normas
constitucionais, mas de todo o ordenamento jurídico.
Há aqui que se relembrar os ensinamentos do professor Lenio Luiz Strek92, já
vistos quando da elaboração do Capítulo 2 do presente ensaio. Diz o professor, com base na
teoria da Nova Crítica do Direito, que o intérprete não interpreta por partes, isto é, primeiro
compreende, depois interpreta, para finalmente aplicar. Em se tratando da aplicação do princípio
da dignidade da pessoa humana e de todos os demais princípios que dele emergem e sustentam
não só o ordenamento constitucional, mas todo o ordenamento jurídico pátrio, esses três
momentos devem ocorrer em um só: a applicatio, que se dá no movimento da circularidade da
autocompreensão no interior da espiral hermenêutica.
Em sendo assim, o juiz, a partir da Nova Crítica do Direito, não decide para depois
buscar a fundamentação; ao contrário, ele decide porque já encontrou o fundamento para sua
decisão, sendo esse fundamento a condição de possibilidade para a decisão tomada, buscando, em
92 STRECK, Op. Cit. p. 169.
99
um segundo momento o aprimoramento de seu fundamento e esse fundamento deve repousar no
princípio da dignidade da pessoa humana.
No caso do Direito do Trabalho, este deve ser o comprometimento do Juiz:
fundamentar sua decisão no princípio da dignidade da pessoa humana e buscar, a partir desse
ponto, desse fundamento, os dispositivos legais que melhor se adeqüem ao caso levado ao seu
exame. Agindo dessa forma, o Juiz do Trabalho estará próximo de uma decisão justa, garantindo
uma efetiva prestação jurisdicional e, em conseqüência, o absoluto acesso à justiça.
100
5. O PRINCÍPIO DA PROTEÇÃO E A EFETIVIDADE DA JUSTIÇA
SOCIAL.
Para que possamos efetivamente refletir acerca da questão proposta é imprescindível
visualizarmos o direito como Instrumento. Há uma dificuldade em definir o direito, posto que se
apresenta paradoxal, pois, de um lado,protege-nos do poder arbitrário, exercido à margem de
toda regulamentação, dá a todos oportunidades iguais e, ao mesmo tempo, ampara os menos
favorecidos. De outro lado, é um instrumento manipulável que frustra as aspirações dos menos
privilegiados, permitindo o uso de técnicas de controle e dominação, sendo assim acessível
apenas a uns poucos especialistas. Cumpre observar ainda, que se trata de um dos mais
importantes fatores de estabilidade social, haja vista que admite um cenário comum no qual as
mais diversas aspirações podem encontrar uma aprovação e uma ordem.
Ultrapassada que seja tal discussão a respeito do direito como Instrumento, resta-nos
indagar qual seria um dos fins almejados quando da sua utilização efetiva, deparamo-nos, então,
com o tão festejado movimento do acesso à justiça.
Neste Capítulo procuraremos analisar o atual conceito de acesso à justiça, superando o
entendimento segundo o qual tal acesso se restringe ao direito de ingresso ou contestação de
ações judiciais nas varias instâncias do Poder Judiciário. Para tanto, embasaremos nossas
considerações na Obra de Mauro Cappelletti e Bryant Garth, com tradução de Ellen Gracie
Northfleet, Acesso à Justiça, Porto Alegre, Sergio Antônio Fabris Editor, 1988, reimpresso em
2002.
Inicialmente direito ao acesso à proteção judicial significava essencialmente o
direito formal do indivíduo agravado de propor ou contestar uma ação. A justiça, assim como
outros bens, só poderia ser obtida por aqueles que pudessem arcar com seus custos, sendo os
101
únicos responsáveis por sua boa sorte, aqueles que não pudessem fazê-lo. Era, pois, o acesso
formal, mas não o acesso efetivo à justiça, isto é, a igualdade era formal, mas não a igualdade
efetiva.
Surge, com o crescimento das sociedades do laissez-faire, em tamanho e
complexidade, uma forte transformação do conceito de direitos humanos e, assim, as ações e
também os relacionamentos passaram a assumir um caráter mais coletivo do que individual,
ficando para trás a visão individualista dos direitos. É quando surge o movimento que passa a
reconhecer os direitos e deveres sociais dos governos, comunidades e indivíduos. Esses novos
direitos humanos, inicialmente exemplificados no preâmbulo da Constituição Francesa de 1946,
são, antes de tudo, os necessários para tornar efetivos, isto é, acessíveis a todos os direitos antes
proclamados, quais sejam, os direitos ao trabalho, à saúde, à segurança material e à educação.
Assim, imperiosa passou a ser a atuação positiva do Estado com vistas a assegurar o gozo de
todos esses direitos sociais básicos. Com isso, foi ganhando particular atenção o direito ao efetivo
acesso à justiça, na medida em que as reformas do Welfare state procuraram armar os indivíduos
de novos direitos substantivos em sua qualidade de consumidores, locatários, empregados e,
acima de tudo, cidadãos.
O acesso à justiça, nas palavras de Mauro Cappelletti93, “pode, portanto, ser
encarado como o requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema
jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos.
Embora o acesso efetivo à justiça venha sendo crescentemente aceito como um
direito social básico nas modernas sociedades, o conceito de efetividade é muito vago. A
efetividade perfeita, aquela que todos almejamos, poderia ser expressa como uma completa
“igualdade de armas”, isto é, a garantia de que se chegaria a uma conclusão definitiva ao final de 93 CAPPELLETTI, Op. Cit. p. 12.
102
um processo judicial, pura e simplesmente pelos méritos jurídicos relativos às partes e ao seu
litígio, e que nenhum fator estranho ao Direito pudesse afetar o curso do processo e a garantia do
Direito a quem fosse seu real detentor.
Inúmeros obstáculos se opõem a que se alcance esse tão desejado acesso à justiça,
tais como as elevadas custas judiciais; o infindável tempo para que se dê a solução final ao
processo - a Convenção Européia para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades
Fundamentais reconhece explicitamente, no artigo 6º, parágrafo primeiro que a Justiça que não
cumpre suas funções dentro de “um prazo razoável” é, para muitas pessoas, uma Justiça
inacessível; a disparidade dos recursos financeiros que possuem pessoas e organizações, contra os
assalariados e pobres de nosso País e, finalmente, o infindável rol de recursos judiciais que
proporcionam àqueles que podem constituir bons advogados, a garantia de que o processo nunca
terá fim.
As mudanças que desejamos só poderão ser concretizadas se efetivamente houver
uma mudança social e política por parte daqueles que detêm o poder. Mas, vai muito além disso.
É necessária uma mudança de mentalidade e de comprometimento de todos os aplicadores do
direito, especialmente, por parte daqueles que defendem o direito laboral. Tal mudança ultrapassa
a letra fria da lei, se encontra com os princípios fundamentais esculpidos no Texto Constitucional
e se derrama sobre o homem e a dignidade que deve preencher sua existência. A finalidade, nas
palavras de Mauro Cappelletti94 não é fazer uma justiça “mais pobre”, mas torná-la acessível a
todos, inclusive aos pobres. E, se é verdade que a igualdade de todos perante a lei, igualdade
efetiva – não apenas formal – é o ideal básico de nossa época, o enfoque de acesso à justiça só
poderá conduzir a um produto jurídico de muito maior “beleza”, ou seja, de muito melhor
qualidade, do que aquele de que dispomos atualmente. 94 CAPPELLETTI, Op. Cit. p. 165.
103
E como garantir essa efetiva igualdade entre capital e trabalho, entre patrões e
trabalhadores, dentro do âmbito do Direito do Trabalho?
Entendemos que a resposta está na aplicação por parte do Juiz do Trabalho,
quando da apreciação das demandas que lhe forem levadas ao conhecimento, de um dos
princípios que regem nossa disciplina: o Princípio da Proteção.
Américo Plá Rodrigues95 afirma que tal princípio se refere ao critério fundamental
que orienta o Direito do Trabalho, pois este, ao invés de inspirar-se num propósito de igualdade,
responde ao objetivo de estabelecer um amparo preferencial a uma das partes, qual seja, o
trabalhador.96
O fundamento deste princípio está ligado à própria razão de existência do Direito
do Trabalho, que surgiu como conseqüência de que a liberdade de contrato entre pessoas com
poder e capacidade econômicas desiguais conduzia a diferentes formas de exploração. A partir
daí, o legislador não teve mais como manter a ficção de igualdade existente entre as partes do
contrato de trabalho e inclinou-se para uma compensação dessa desigualdade econômica
desfavorável ao trabalhador com uma proteção jurídica que lhe fosse favorável. Aqui está, pois, o
fundamento do direito do Direito do Trabalho: responder ao propósito de nivelar as
desigualdades. É através do que costumamos denominar de direito social - que representa um
sistema legal de proteção dos hipossuficientes, através do qual, em caso de dúvida, a
interpretação deverá ser sempre feita em favor do economicamente fraco, em favor do
empregado, quando de seu litígio com o empregador - que se realizará a justiça social.
95 PLÁ RODRIGUES, Op. Cit. p. 83. 96 Assevera Américo Plá Rodrigues que enquanto no direito comum existe uma constante preocupação para assegurar a igualdade jurídica entre os contratantes, no Direito Laboral a preocupação central é a de proteger uma das partes com o objetivo de, mediante essa proteção, alcançar uma igualdade substancial e verdadeira entre elas.
104
Essa orientação vai de encontro aos critérios que se aplicam em qualquer ramo do
direito, nos quais o intérprete deve sempre atuar em consonância com a intenção do legislador.
Assim, o Princípio da Proteção se explica não só sob o ponto de vista social, mas também sob o
jurídico, tendo em vista que a intenção do legislador nesta matéria foi sempre a de favorecer aos
trabalhadores, conforme se pode verificar tanto no Texto Constitucional, quando na legislação
infraconstitucional. Mas há divergências.
Dentre as inúmeras ponderações que divergem dos conceitos até aqui expostos,
reportamo-nos às considerações do Professor Arion Sayão Romita, em sua obra intitulada O
Princípio da Proteção em Xeque e outros ensaios. São Paulo: LTr, 2003, por tratar-se de obra
repleta de argumentos que embasam uma teoria absolutamente contrária ao protecionismo que
deve reger, em nossa concepção, o Direito do Trabalho como meio para a realização da justiça
social.
Fundamenta o professor Romita97 sua teoria nas mudanças ocorridas no mundo da
economia, da tecnologia e da política, que segundo ele, deverão refletir-se na legislação que
regula as relações individuais e coletivas de trabalho para adaptá-la às novas realidades
econômicas e sociais. Defende, ainda, que a visão conservadora e resistente às mudanças se
esmera na supervalorização do princípio da proteção, opondo-se à tendência renovadora, como a
flexibilização e questões afins. Estariam, pois, em mãos opostas: princípio da proteção x
princípio da flexibilização ou princípio autoritário e corporativista x princípio da democracia.
Essas afirmações repousam no fato de que, o princípio de proteção não existiria
nem poderia ser afirmado sem que se levasse em conta os fundamentos históricos e sociopolíticos
do ordenamento trabalhista brasileiro, cujo regime autoritário e corporativista jamais aceitaria a
tese de um ordenamento jurídico que privilegiasse ou protegesse o trabalhador. Ao contrário, a 97 ROMITA, Op. Cit. p. 21.
105
própria índole desse ordenamento jurídico repele tal noção de proteção, pois em última análise,
os destinatários dessa proteção seriam os detentores do poder estatal, econômico e sindical.
Assim, não sendo o trabalhador detentor de qualquer desses poderes, seria uma ficção a
afirmação de existência de qualquer princípio criado para protege-lo.
Por outro lado, na visão do professor Romita98, não constitui função do direito, ou
melhor, de qualquer dos ramos do direito, proteger algum dos sujeitos de dada relação social. Ao
contrário, a função do direito é apenas regular a relação em busca da realização do ideal de
justiça.
Neste particular, podemos imaginar como estariam os consumidores nos dias de
hoje, sem o Código de Defesa do Consumidor; como seriam tratados os réus em processos
criminais, diante da absurda onda de criminalidade que assola o País, sem que lhe fossem
garantidos o direito à ampla defesa, o contraditório e o princípio basilar do in dubbio pro réu”
que rege o direito penal brasileiro. Mesmo o Direito Civil, com o advento do Novo Código Civil
de 2002, passou a tratar da função social do contrato e princípio da boa-fé, assegurando aos que
não dispõem de recursos materiais um maior equilíbrio com os detentores do poder econômico.
Vê-se, pois, que se busca “equilibrar a balança”, garantindo a oportunidade para os
litigantes disputarem, fazendo com que assim seja respeitado o princípio da isonomia material,
especialmente no plano processual.
Ao mesmo tempo que afirma não ser função do direito proteger os sujeitos de dada
relação social, nem tampouco ser função do direito do trabalho proteger o empregado, assim
conclui: “Se para dar atuação prática ao ideal de justiça for necessária a adoção de alguma
98 IDEM, P. 23.
106
providência tendente a equilibrar os pólos da relação, o direito concede à parte em posição
desfavorável alguma garantia, vantagem ou benefício capaz de preencher aquele requisito.”99
E qual é essa garantia que o direito concede ao trabalhador para equilibrar uma
relação social a ele totalmente desfavorável? É essencialmente a certeza de que em havendo
dúvidas sobre qual norma aplicar, sobre as provas produzidas no decorrer do processo, só será
alcançado o ideal de justiça se aplicado o Princípio da Proteção em benefício do trabalhador.
Há, no nosso modo de ver, duas questões que precisam ser examinadas
separadamente, para que não se confunda o conceito de Princípio de Proteção com benefício ou
garantias exacerbadas a quaisquer das partes.
A primeira versa sobre o momento da celebração do contrato de trabalho
subordinado e o momento de sua vigência. Aí todos concordamos e reconhecemos a inicial
posição de desvantagem em que se encontra o trabalhador, porém, seria a função principal do
direito do trabalho equilibrar as posições econômicas entre empregador e empregado por meio de
concessão de garantias a esse último, com o intuito de compensar, ou pelo menos de tentar
compensar as desigualdades iniciais. Mas, onde estão essas garantias? Onde está assegurado o
emprego do trabalhador? Se buscarmos cuidadosamente por tais institutos, certamente não os
encontraremos. Ao fazer jus o empregado à Carteira de Trabalho assinada, não tem certeza do
recolhimento de seu INSS que contabiliza seu tempo para aposentadoria; se faz jus a um salário
nunca inferior ao mínimo legal, não tem certeza de que o receberá ao final de 30 dias de trabalho;
se lhe é garantida multa de 40% sobre o FGTS pela dispensa sem justa causa, não pode reclamar,
enquanto empregado, o não recolhimento de tal fundo e a pior de todas as situações: mesmo
estando subordinado ao poder potestativo de seu patrão, podendo ser dispensado a qualquer
momento sem justa causa, não lhe sendo garantida nenhuma estabilidade no emprego, ainda 99 ROMITA, Op. Cit. Pg. 23.
107
assim, tem o empregador o poder de dispensá-lo por justa causa sem pagar-lhe qualquer valor a
título de indenização.
E podem surgir algumas indagações como por exemplo sobre o instituto da
estabilidade do cipeiro, do dirigente sindical, da mulher gestante. Respondo que tal estabilidade é
também provisória, estando o empregado totalmente desamparado ao final do período
estabelecido em lei.
O que se tem, na verdade, são direitos sociais mínimos garantidos ao empregado
enquanto perdurar o contrato de trabalho, mas não há no nosso ordenamento jurídico qualquer
garantia de que o empregado poderá acordar todos os dias sabendo que seu emprego estará
garantido. Como se vê, essas ditas garantias não protegem o trabalhador nem atenuam as
desigualdades com o empregador, muito menos o protegem.
Se essa é a triste realidade que encontramos em nosso País, onde poderá ser
aplicado o Princípio Protetor que rege o Direito do Trabalho?
É através das sentenças trabalhistas fundadas nos princípios da eticidade, da boa-fé
e da dignidade da pessoa humana que o Juiz do Trabalho, como operador do Direito Social pode
e deve igualar ou pelo menos amenizar as diferenças entre o capital e o trabalho, entre o
empregado e o empregador.
É na Justiça do Trabalho, no mais das vezes, que se faz valer o Direito do
Trabalho, garantido ao trabalhador todos os institutos previstos em lei, que muitas vezes lhe
foram negados quando da vigência do contrato.
108
O Princípio da Proteção, portanto, deverá ser aplicado no momento da apreciação
das demandas trabalhistas, devendo desdobrar-se nas regras “in dubio, pro operario” , “da norma
mais favorável” e “da condição mais benéfica”.100
É aqui, neste momento, que o direito compensa as desigualdades iniciais e é aqui,
neste momento que se realiza o ideal de justiça.
Negar a efetividade e a aplicação do Princípio da Proteção é negar a própria razão
de existência do Direito – material e processual - e da Justiça do Trabalho e toda sua história em
nosso País.
O Direito tem, por sua natureza, um caráter instrumental, o qual pode ser sentido
na constatação de que sua ação pode modificar até mesmo a base social que lhe deu existência.
Jorge Luiz Souto Maior, em sua obra O Direito do Trabalho como Instrumento de
Justiça Social. São Paulo: LTr, 2000, p. 244-316, sustenta que o direito como instrumento não é
só o direito legislado, ou seja, a visão do direito como instrumento fornece todas as armas que se
encontram no próprio direito. Sendo assim, em uma sociedade democrática, a Constituição,
necessariamente, consagra os muitos valores constantes das diversas ideologias político-sociais
que podem ser modificados com a evolução das ralações sociais que exige novas respostas do
direito a cada momento. Devem, pois, estar sempre atentos à essa evolução os legisladores, os
juízes e os doutrinadores para elaborarem um direito aplicável a seu tempo.
O Direito do Trabalho, sustenta Jorge Luiz Souto Maior101, pode ser um
instrumento para construção de uma sociedade mais justa, mesmo que forças econômicas afastem
100 In dúbio, pro operário: caso uma norma seja suscetível de duas ou mais interpretações, deve-se preferir a interpretação mais favorável ao empregado. Regra da norma mais favorável: Aplica-se ao caso concreto a norma mais favorável ao trabalhador, mesmo que hierarquicamente inferior a outra norma também aplicável ao caso em apreço. Regra da Condição mais benéfica: pressupõe a existência de uma situação concreta, anteriormente reconhecida, e determina que ela deve ser respeitada, na medida em que seja mais favorável ao trabalhador que a nova norma aplicável. 101 MAIOR, Op. Cit. p. 246.
109
leis sociais ou façam surgir leis anti-sociais, pois o direito é algo que está acima da lei e seu fim é
a busca pelo ideal justiça.
Esse ideal de justiça, pois, é o que confere sentido ao direito, o que lhe dá
dignidade. No que se refere à noção de justiça, impregnando o direito, basta verificar que o
Direito do Trabalho é construído sem que se perca de vista a desigualdade material entre seus
sujeitos – empregados e empregadores -, compondo-se de forma desigual, para compensar aquela
desigualdade, tentando-se torná-la uma igualdade, não apenas formal, mas uma igualdade de fato.
Lutar-se efetivamente por uma justiça social em nosso País, utilizando-nos do
Direito do Trabalho como instrumento, culmina com a constitucionalização das normas
protetivas do trabalho e a normatização de seus princípios fundamentais, possibilitando a
interpretação das normas infraconstitucionais com base nesses postulados. Dessa forma, o Direito
do Trabalho assim construído e aplicado é instrumento decisivo para a formulação e a defesa da
justiça social.
E o Princípio da Proteção poderia ser entendido como Norma de Direito
Fundamental?
Ana Virginia Moreira Gomes102 afirma que apesar de não escrito, é na própria
Constituição que encontramos a base jurídica para a consideração do princípio protetor como
direito constitucional dos trabalhadores. Sendo princípio fundamental do Estado Democrático de
Direito a dignidade da pessoa humana, torna-se, no mínimo razoável, que a sociedade exija um
nível mínimo de cidadania para todos, inclusive para o trabalhador, justificando-se, assim, a ação
protetora do Estado.
102 GOMES, Ana Virginia Moreira. A aplicação do princípio protetor no direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2001. ; p. 41-42.
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Hoje o que se vê no Brasil é que se está deixando de lado a preocupação com a
eliminação de injustiças, com vistas à melhoria das condições de vida dos trabalhadores, para
considerar, única e exclusivamente, o fenômeno do desemprego, o que, no nosso modo de ver,
justifica o surgimento de mais injustiça, todas elas consagradas pelo próprio direito.
Dessa forma fala-se em flexibilização das leis trabalhistas, reforma sindical,
prevalência da livre negociação sobre a norma posta. Preocupa-nos o surgimento desse novo
paradigma, hoje defendido por inúmeros juristas consagrados do Direito Laboral pátrio, tendo em
vista que apenas o oferecimento de trabalho, de qualquer trabalho, a qualquer custo, não é
suficiente para o desfazimento das injustiças e, sendo assim, nas palavras de Jorge Luiz Souto
Maior103, “o direito do trabalho, desse modo, tende a ser meramente direito a trabalhar, inserido
na conjuntura do direito civil.”
Não concordamos com esse novo paradigma, pois entendemos que a razão de ser
do Direito do Trabalho permanece viva e só podem ser desprezadas as suas bases teóricas por
aqueles que pretendem justificar uma enorme injustiça social, tentando fazer prevalecer a teoria
de um mal menor, Isto é, melhor ter-se trabalho, a qualquer preço, a qualquer título, sem qualquer
garantia, do que não ter trabalho. Em última análise, é isso que preconizam os defensores desse
novo paradigma, utilizando-se dos meios de comunicação tão somente para falar de desemprego
e globalização, mas escondendo, ou não mencionando em nenhum momento a dignidade, a ética
e a justiça.
Para que se considere o Direito do Trabalho como um instrumento de justiça
social, é necessário a total compreensão e defesa de um pressuposto, qual seja, de que o Direito
do Trabalho é o instrumento capaz de equilibrar as forças do capital e do trabalho, pois só assim
imperará a igualdade de forças numa relação totalmente desigual. 103 MAIOR, Op Cit. p. 261.
111
O que procuram na verdade os defensores do já citado modelo de flexibilização e
globalização é a desregulamentação do Direito do Trabalho, ou, para ser melhor compreendido, o
fim do Direito do Trabalho. E como deter o avanço brutal dessa idéia?
Jorge Luiz Souto Maior104 oferece razoável resistência utilizando-se de três
fundamentos: o primeiro, jurídico, através do qual, pode-se reafirmar os conceitos do Direito do
Trabalho, descortinando e valorizando seus princípios históricos, interpretando suas regras e
integrando suas lacunas à luz dessa base teórica; o segundo, político, por intermédio do exercício
da democracia, buscando a normatização de princípios consagrados do Direito do Trabalho e a
constitucionalização das normas, ou ainda, buscando manter a ordem já conquistada na
Constituição Federal de 1988; e, por fim, filosoficamente, mediante a construção de uma
ideologia, se não dominante pelo menos reveladora, de que o homem, para ter sua dignidade
protegida no mundo capitalista, precisa que sua força de trabalho seja valorizada, ou seja, que o
homem seja identificado como homem.
É este o objetivo de nosso trabalho: defender a razão de ser do Direito do
Trabalho, reconhecer e aplicar os princípios da eticidade, da boa-fé e da dignidade da pessoa
humana e, principalmente, fazer valer o princípio da proteção, que rege e orienta o Direito do
Trabalho como instrumento de Justiça Social no Brasil. Para isso conclamamos todos os
aplicadores do Direito, em especial aos Juízes do Trabalho espalhados por cada comarca deste
imenso País, para que defendam o Direito do Trabalho, juridicamente, defendendo os conceitos
históricos e valorizando seus princípios; politicamente, atuando para que sejam ampliados os
direitos trabalhistas consagrados pela Constituição e não diminuídos os que ali já estão colocados
e, filosoficamente, tratando o homem como homem, valorizando seu trabalho e reconhecendo sua
dignidade de pessoa humana, visando buscar a paz e a justiça sociais. 104 MAIOR, Op Cit. p. 264.
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Norberto Bobbio105 afirma:
Direitos do homem, democracia e paz são os três momentos necessários do mesmo movimento histórico: sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos. Em outras palavras, a democracia é a sociedade dos cidadãos, e os súditos se tornam cidadãos quando lhes são reconhecidos alguns direitos fundamentais; (...)
Rudolf Von Ihering, em a Luta pelo Direito, 106afirma:
O direito não é uma pura teoria, mas uma força viva. Por isso a justiça sustenta numa das mãos a balança em que pesa o direito, e na outra a espada de que se serve para o defender.
Pesemos na balança, segura pela mão esquerda, mão que guarda o lado do coração,
o peso do Direito do Trabalho e reflitamos sobre como sua aplicação se revelará para o homem
trabalhador, como se traduzirá em ética e dignidade. Protejamos, defendamos o Direito e o
trabalhador com a espada que se empunha com a mão direita, pois é assim que se alcançará a paz
e a justiça sociais.
105 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direito. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992. Introdução. p. 1. 106 Von, Ihering, Rudolf. A Luta pelo Direito. Tradução de João Vasconcelos. Rio de Janeiro: Forense, 1997. pg. 1.
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6. CONCLUSÃO:
São estes os fundamentos que entendemos necessários para uma reflexão sobre o
momento por que passa o Direito do Trabalho no Brasil. É, pois, sobre dos argumentos expostos
no decorrer de todos os capítulos deste ensaio, que repousam nossos objetivos e nossas
preocupações. Pretendemos, com nossas considerações, defender o trabalhador e sua dignidade
como ser humano; protegê-lo diante da força do capital, ampará-lo quando da apreciação de sua
demanda, aplicando sempre o princípio protetor sem esquecer a igualdade de tratamento que se
deve dar às partes – obrigação de todo magistrado. Porém, não é apenas do Juiz do Trabalho esta
árdua tarefa. Advogados, membros do Ministério Público do Trabalho. Pertence a todos o desafio
que ora propomos. É em todos nós que o trabalhador deposita sua confiança. É para nós que o
humilde entrega seu destino, portanto, é sobre nossos ombros que pesarão a demora na solução
dos litígios e, em conseqüência, a falta de justiça.
Falando sobre o advogado, Piero Calamandrei107 assim se manifesta:
A fé que certos clientes, especialmente gente humilde e inculta, depositam nas virtudes dos advogados e na infalibilidade dos juízes às vezes é tão cega e absoluta que provoca ao mesmo tempo espanto e ternura. Quando, diante das dúvidas honestas que exprimo sobre o desfecho de uma causa, ouço o cliente dizer-me: “Advogado, se o senhor quiser, com certeza o tribunal me dará razão”, tenho vontade de abrir os olhos desse iludido, que não sabe com quantos riscos está semeado o caminho dos advogados. Mas, depois, penso que sentir assim a justiça como um nume onipotente, que não invoca em vão, talvez seja a conquista mais elevada da civilização e é, por certo, o cimento que melhor mantém unida a sociedade humana. E não tenho coragem de desenganar o bom sujeito.
107 CALAMANDREI, Piero. Eles, os Juízes, vistos por um advogado. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 153-154.
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É isso que o cliente espera de seu Advogado: virtude e amor em defesa de sua
causa. Se é assim, que se faça com respeito ao Direito e à Justiça. Que se escreva a verdade, que
se narre os fatos como realmente ocorreram, que se respeite o adversário, que se recorra de uma
decisão pela certeza de que ela não é justa e não apenas para ganhar tempo e protelar o término
de um processo. Advogado e Direito são pilares de um mesmo ideal: a Justiça.
Ao juiz cabe se fazer compreender, cabe, diante da simplicidade daqueles que
lerão suas sentenças, dizer o Direito de forma simples, direta, objetiva e respeitosa com todos,
partes e patronos.
Sobre os juízes Piero Calamandrei108 assim se manifesta:
Dizer de um juiz que suas sentenças são “bonitas”, no sentido de que são ensaios de estilo ornamentado e de brilhante erudição exposta em vitrine, não me parece que seja fazer-lhe um elogio. As sentenças dos juízes devem, simplesmente, nos limites das possibilidades humanas, ser justas. [...]
E como ser justo? Como proferir decisões que reflitam o desejo da sociedade por
justiça social, sem que com isso, tenha o Juiz do Trabalho que se afastar da imparcialidade e da
igualdade de tratamento para com as partes?
Entendemos que isso só será possível quando se fizer presente na mente e no
coração do Magistrado o verdadeiro sentido do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana;
quando o Juiz antes de buscar o fundamento na letra fria da lei, puder encontrar em cada artigo,
em cada inciso, em cada alínea, os princípios de boa-fé e de eticidade; e mais; quando o Juiz do
Trabalho se convencer de que não há Estado Democrático de Direito, sem que se proteja aquele
que necessita de proteção, sem que se garanta a prestação jurisdicional proferindo decisões justas,
108 CALAMANDREI, Op. Cit. p. 171-172
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protegendo o trabalhador contra a força do capital, aplicando normas que lhe sejam mais
favoráveis, declarando-se procedente seu pedido, em caso de dúvida, pois estes são os princípios
que regem o Direito Social que defendemos. E é através das lições de Hans-Georg Gadamer que
pretendemos utilizar a hermenêutica como instrumento de concretização dos princípios na
aplicação das normas jurídicas para fazer prevalecer nossa convicção e nosso entendimento e
nossa esperança.
Dignidade da Pessoa Humana, a Justiça é tua morada e sob ela estarão protegidos
os trabalhadores e os humildes que de nós necessitarem.
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