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UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”
AVM FACULDADE INTEGRADA
DOLO EVENTUAL NOS CRIMES COMETIDOS NO TRÂNSITO
Por: Camila Chaves Santos
Orientador
Prof. Jean Alves
Rio de Janeiro
2013
UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES
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PÓS-GRADUAÇÃO “LATO SENSU”
AVM FACULDADE INTEGRADA
DOLO EVENTUAL NOS CRIMES COMETIDOS NO TRÂNSITO
Apresentação de monografia à AVM Faculdade
Integrada como requisito parcial para obtenção do
grau de especialista em Direito e Processo Penal.
Por: Camila Chaves Santos
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RESUMO
O presente trabalho visa a abordar a temática referente à possibilidade
de homicídio doloso em direção de veículo automotivo. Teremos uma análise
dos principais crimes que culminam em homicídio doloso no trânsito, eleitos
embriaguez ao volante, disputa em competição automobilística não autorizada
e velocidade incompatível, bem como uma abordagem sobre a diferenciação
entre dolo e culpa e uma reflexão sobre quando se pode considerar o
homicídio no trânsito um crime doloso, destacando o posicionamento de
doutrinadores pátrios, bem como a análise da Lei n° 9.503 de 23 de setembro
de 1997 (Código de Trânsito Brasileiro).
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5
METODOLOGIA
Os métodos utilizados para o desenvolvimento do presente trabalho
foram consultas à jurisprudência, à legislação, bem como a doutrinas diversas
e internet.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 08
CAPÍTULO I - O trânsito no Brasil 09
1.1 Definição do termo “trânsito” 09 1.2 O primeiro acidente de trânsito no Brasil 10 1.3 Origem da legislação brasileira de trânsito 10
CAPÍTULO II - Os principais crimes que podem caracterizar o dolo eventual 12
2.1 Disputa em competição automobilística não autorizada (racha) 12 2.2 Embriaguez ao volante 14 2.3 Velocidade incompatível 16
CAPÍTULO III – Dolo eventual e culpa consciente 18
3.1 O dolo e a culpa 18 3.2 O dolo eventual e a culpa consciente 21 3.3 Jurisprudência brasileira e o dolo eventual nos 27 crimes de trânsito
CONCLUSÃO 37
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA 39
7
8
INTRODUÇÃO
Devido ao crescimento exponencial nas estatísticas de acidentes com
vítimas fatais nas rodovias brasileiras causadas principalmente por motoristas
embriagados, realizando “rachas” ou em alta velocidade, a doutrina e os
Tribunais apresentam divergências acerca do reconhecimento do dolo eventual
na conduta do agente que, nessas condições, ocasiona a morte de pessoas
conduzindo veículo automotor, diante da linha tênue que separa o dolo
eventual da culpa consciente.
O presente trabalho busca demonstrar a possibilidade da aplicação do
dolo eventual nos homicídios praticados na direção de veículo automotor, mais
precisamente quando conexos com os crimes definidos nos artigos 306
(embriaguez ao volante), 308 (racha ou pega) e 311 (excesso de velocidade)
da Lei nº 9.503, de 23 de setembro de 1997 - Código de Trânsito Brasileiro.
É de suma importância verificar a correta aplicação do dolo eventual
nos crimes de homicídio no trânsito, diante da ameaça a um dos principais
bens jurídicos protegido pelo ordenamento jurídico brasileiro, a “vida”, pois a
falta de uma punição mais severa aos motoristas inconsequentes gera uma
sensação de impunidade, acarretando maior número de mortes no trânsito
brasileiro, fazendo com que a sociedade não possa desfrutar de um trânsito
seguro, nos termos do artigo 1º, §2º, do Código de Trânsito Brasileiro.
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CAPÍTULO I
O TRÂNSITO NO BRASIL
1.1 DEFINIÇÃO DO TERMO “TRÂNSITO”
Conforme o art. 1°, § 1° do Código de Trânsito Brasileiro (CTB, 2009,
p.21), “Considera-se como trânsito a utilização das vias por pessoas, veículos,
animais, isolados ou em grupos, conduzidos ou não, para fins de circulação,
parada, estacionamento e operação de carga ou descarga”.
Tomando por base as definições feitas pelo legislador no Código de
Trânsito Brasileiro, trânsito é tudo aquilo que se movimenta, se locomove de
alguma forma, através de veículos ou animais, até mesmo aquele que se
movimenta de maneira solitária.
A definição de trânsito conforme o Dicionário Michaelis é a seguinte:
“trân.si.to (zi) sm (lat transitu) 1 Ação ou efeito de
transitar. 2 Passagem, trajeto. 3 O movimento de
pedestres e veículos que transitam nas cidades ou nas
estradas. 4Abertura, lugar por onde se passa;
passagem. 5 Mudança, passagem. 6 Morte,
passamento. 7 Faculdade de fazer passar mercadorias
através de um Estado, de uma cidade, sem pagar direitos
de entrada. 8 Topogr Instrumento de agrimensor que
serve para medir ângulos horizontais. 9 Certo instrumento
náutico.”
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Portanto, a movimentação é o que define “trânsito”, seja ela do tipo
que for.
1.2 O PRIMEIRO ACIDENTE DE TRÂNSITO NO
BRASIL
O primeiro acidente de automóvel ocorrido no Brasil aconteceu em
1887, quatro anos após a chegada do primeiro veiculo automotor em nosso
país, no Rio de Janeiro, mais precisamente no bairro de Botafogo.
Foi Olavo Bilac, jornalista importante e renomado poeta,que, ao guiar o
automóvel de seu amigo José do Patrocínio, jornalista, escritor e ativista
político a favor da abolição da escravatura, não tendo a menor noção sobre
direção de automóveis, acabou por colidir com uma árvore em velocidade de
4km/h.
O veículo era importado da França e tinha motor movido a vapor d’água,
equipado com fornalha, caldeira e chaminé. O acidente ocorreu no caminho
para a barra da tijuca.
1.3 ORIGEM DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA DE
TRÂNSITO
Em 27 de Outubro de 1910, treze anos após a chegada do primeiro
veículo automotor ao Brasil e também do primeiro acidente de trânsito de que
se tem notícia no país, surgiu a primeira legislação de trânsito, que tinha como
objetivo regular os serviços de transporte por veículo automotivo. A referida
legislação fixava, por exemplo, a necessidade de verificação das condições
dos automóveis com o escopo de tutelar a segurança dos próprios usuários e
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também dos pedestres. A partir da consolidação da indústria automobilística no
país e do consequente aumento do número de veículos nas ruas, surgiu a
necessidade de uma regulamentação maior. Assim, em 21 de setembro de
1966 foi aprovado o Código Nacional de Trânsito (CNT), Lein° 5.108, que já
previa as infrações de trânsito, cuja maioria se encontrava no capítulo
chamado “Dos deveres e Proibições”. Nos artigos desse capítulo eram
descritos os deveres, proibições e ainda as penalidades referentes a cada
descumprimento agrupadas do grupo 1 ao 4, sendo o grupo 1 a mais grave e o
grupo 4 a mais leve.Tal legislação foi regulamentada dois anos mais tarde e
ficou vigente até a implantação do atual Código de Trânsito Brasileiro (CTB).
CAPÍTULO II
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OS PRINCIPAIS CRIMES QUE PODEM CARACTERIZAR
O DOLO EVENTUAL
2.1 DISPUTA EM COMPETIÇÃO AUTOMOBILÍSTICA
NÃO AUTORIZADA (RACHA)
O artigo 308 do Código de Trânsito Brasileiro dispõe o seguinte:
Art. 308 – Participar, na direção de veículo automotor, em
via pública, de corrida, disputa ou competição
automobilística não autorizada pela autoridade
competente, desde que resulte dano potencial à
incolumidade pública ou privada:
Penas - detenção, de seis meses a dois anos, multa e
suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a
habilitação para dirigir veículo automotor.
A grande quantidade de acidentes graves em virtude dos chamados
“rachas” motivou o legislador a tipificar esta conduta como um crime de trânsito
e não mais como uma mera contravenção penal, conforme era previsto
anteriormente no artigo 34 da Lei de Contravenções Penais. O bem jurídico
tutelado nesse caso é a incolumidade pública e, de forma secundária, a
incolumidade individual ou privada daquela pessoa que sofreu dano por conta
da prática de “racha”.
O sujeito ativo são todos os condutores participantes, sendo irrelevante
o fato da pessoa ser ou não habilitada a conduzir veículo pelo órgão
competente. É um crime de concurso necessário, ou seja, não há possibilidade
de ser praticado por uma única pessoa. Assim, para que seja enquadrado
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como crime de disputa em competição automobilística não autorizada,
necessariamente deve haver a participação de dois ou mais motoristas. Os
“co-pilotos”, promotores do evento e os fiscais da competição respondem como
partícipes. O sujeito passivo principal é a coletividade, enquanto o secundário
são as pessoas vítimas do perigo de dano. Para configuração do crime não é
necessário ter uma vítima determinada, basta a situação de perigo à
incolumidade pública ou privada.
A expressão “competição automobilística” que o artigo supracitado nos
demonstra, foi utilizada de forma genérica, com a finalidade de incluir todas as
competições, como por exemplo, envolvendo motocicletas, caminhões, ônibus,
caminhonetes etc. A lei se refere dessa forma para abranger o maior número
de condutas.
A seguir, o posicionamento de doutrinadores acerca do tema:
- Júlio Fabbrini Mirabete: “Querer o perigo ou aceitar o
risco de sua
ocorrência equivale a consentir no risco do resultado
(morte ou lesão corporal).” MIRABETE, Júlio Fabbrini.
Manual de Direito Penal.
- José Marcos Marrone: “Se da corrida, disputa ou
competição não autorizada resultar evento mais grave
(lesão ou morte), configura-se o dolo eventual (art. 18, I,
2ª parte, do Código Penal), respondendo o condutor pelo
delito de homicídio doloso ou lesão corporal dolosa. Fica
absorvido o crime do art. 308 do CTB. ” Reforçando o
mesmo entendimento o autor continua: “Efetivamente,
aquele que participa de ‘racha’, em via pública, tem
consciência dos riscos envolvidos, aceitando-os, motivo
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pelo qual merece ser responsabilizado por crime doloso.”
MARRONE, José Marcos.
2.2 EMBRIAGUEZ AO VOLANTE
O crime de embriaguez ao volante encontra-se disciplinado no Código
de Trânsito Brasileiro em seu artigo 306. Consta dele:
Art. 306 – Conduzir veículo automotor, na via pública, sob
a influência de álcool ou substância de efeitos análogos,
expondo a dano potencial a incolumidade de outrem:
Penas - detenção, de seis meses a três anos, multa e
suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a
habilitação para dirigir veículo automotor.
Anteriormente a conduta de dirigir embriagado enquadrava-se no art. 34
da Lei de Contravenções Penais (Decreto-Lei n° 3.688, de 3 de Outubro de
1941), era abarcado pelo crime de direção perigosa de veículo em via pública.
Com o Código Brasileiro de Trânsito, o legislador elevou essa conduta à crime.
Este artigo 34 foi revogado em parte, pois há várias formas de se praticar
direção perigosa de veículo automotor em via pública, as quais não haviam
sido tipificadas no Código Brasileiro de Trânsito.
Esse crime visa a tutelar o bem jurídico da segurança pública no que
tange ao trânsito de veículos e, em última análise, à vida e integridade física da
coletividade.
Qualquer pessoa pode ser sujeito ativo desse crime, não tendo
relevância o fato da pessoa ser ou não habilitada pelo órgão competente a
conduzir veículos automotores. Para ser enquadrada nesse crime, a pessoa
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deve estar sob influência de álcool ou substâncias de efeitos análogos. O
sujeito passivo é a coletividade, pois não há necessidade de vítima específica
para a caracterização deste crime, tendo em vista que o que se protege é a
própria coletividade, que foi exposta à perigo graças àquela conduta perigosa.
Entretanto, existe a possibilidade de haver um sujeito passivo secundário, uma
pessoa determinada que esteja correndo diretamente o risco ou o perigo de
dano.
O artigo em foco, não traz um limite tolerado de álcool ou substância
análoga a estar presente no sangue. Assim, considera-se suficiente para o
enquadramento no crime a condução sob influência de álcool ou substância
análoga, seja por qualquer quantidade. Já para efeitos de infração
administrativa, o Código Brasileiro de Trânsito estabeleceu um limite de 6
decigramas por litro de sangue. É importante ressaltar que é necessário que
haja nexo causal entre estar sob influencia de álcool ou substância análoga
com a condução anormal do veículo. Se a hipótese é de ter ingerido tais
substâncias e continuar a dirigir de forma regular, não haverá crime, mas pode
permanecer a infração administrativa.
Neste sentido leciona Gomes:
O estar "sob influência" exige a exteriorização de um fato
(de um plus) que vai além da embriaguez, mas derivado
dela (nexo de causalidade). Ou seja: não basta a
embriaguez (o estar alcoolizado), impõe-se a
comprovação de que o agente estava sob "sua
influência", que se manifesta numa direção anormal (que
coloca em risco concreto a segurança viária). [...]. Basta
que a direção tenha sido anormal (em zig-zag, v.g.): isso
já é suficiente para se colocar em risco a segurança
viária. (GOMES, 2008).
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A prova da influência do álcool pode ser pericial ou testemunhal. O
agente não é obrigado a realizar o teste do bafômetro, mas será encaminhado
a autoridade policial, que o submeterá a exames clínicos com a finalidade de
apurar a embriaguez.
2.3 VELOCIDADE INCOMPATÍVEL
Este crime encontra-se tipificado no artigo 311 do Código Brasileiro de
Trânsito:
Art. 311 – Trafegar em velocidade incompatível com a
segurança nas proximidades de escolas, hospitais,
estações de embarque e desembarque de passageiros,
logradouros estreitos, ou onde haja grande movimentação
ou concentração de pessoas, gerando perigo de dano:
Penas - detenção, de seis meses a um ano, ou multa.
O excesso de velocidade em determinados locais foi transformado em
crime previsto no Código Brasileiro de Trânsito, mas segundo o doutrinador
Fernando Capez:
“O legislador, preocupado em proteger a segurança viária
de locais onde exista elevado número de pessoas,
criminalizou a conduta de imprimir velocidade
incompatível em suas proximidades. Entretanto, teria
agido melhor se tivesse dado redação mais genérica ao
dispositivo, de forma a abranger quaisquer manobras
perigosas na direção do veículo, realizadas nas
proximidades de hospitais, escolas etc. Dessa forma,
como a Lei menciona apenas o excesso de velocidade,
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as demais condutas tipificarão tão somente a
contravenção de direção perigosa (LCP, art. 34). “CAPEZ,
Fernando. Curso de direito penal, volume 4: legislação
penal especial. 2. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2007,
p. 316.
O renomado doutrinador nos sugere que foi infeliz o legislador ao
tipificar apenas o excesso de velocidade, esquecendo das manobras perigosas
na direção de veículo automotor perto das localidades descritas no artigo 311
do Código de Trânsito Brasileiro.
O bem jurídico protegido nesse crime é a incolumidade pública, no que
tange a segurança no trânsito de veículos. O sujeito ativo pode ser qualquer
pessoa, habilitada para dirigir veículos ou não. E o sujeito passivo principal é a
coletividade e o sujeito passivo secundário são as pessoas que eventualmente
ficarem expostas à situação de perigo.
CAPÍTULO III
DOLO EVENTUAL E CULPA CONSCIENTE
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3.1 O DOLO E A CULPA
É considerada dolosa aquela conduta em que o agente tem a vontade
de realizar o resultado ou a consciência de que está realizando uma conduta
que se encontra descrita no tipo penal.
Essa conduta é composta de uma fase interna e outra externa. A fase
interna acontece quando se passa o fato nos pensamentos do futuro agente.
Nessa fase ainda não se pode considerar que houve crime, pois não pode ser
tipificada a conduta de planejar em pensamentos um crime. Já na fase
externa é exteriorizada a vontade que antes era só pensada. É nessa fase que
o crime é efetivamente cometido.
Nas palavras de Julio Fabbrini Mirabete:
“Dolo é a vontade dirigida à realização do tipo penal.
Assim, pode-se definir o dolo como a consciência e a
vontade na realização da conduta típica, ou a vontade da
ação orientada para a realização do tipo.” in “Manual de
Direito Penal”, vol. I, pág. 139
Para Cezar Roberto Bitencourt:
“É indispensável uma determinada relação de vontade
entre o resultado e o agente e é exatamente esse
elemento volitivo que distingue o dolo da culpa. Como
lucidamente sustenta Alberto Silva Franco: ‘Tolerar o
resultado, consentir em sua provocação, estar a ele
conforme, assumir o risco de produzi-lo não passam de
formas diversas de expressar um único momento, o de
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aprovar o resultado alcançado, enfim, o de querê-lo’’. in
“Manual de direito Penal”, Parte Geral, vol. 1, pág. 205
Já o crime considerado culposo é aquele realizado por meio de uma
conduta não voluntária, podendo ser uma ação ou uma omissão que acaba por
produzir um resultado antijurídico não desejado nem planejado pelo agente,
mas que poderia, entretanto, ser evitado, pois era previsível. Dessa maneira,
são elementos do crime tido como culposo: a conduta do agente, a não
observância do dever de cuidado objetivo, o resultado involuntário lesivo, a
previsibilidade desse resultado e a tipificação do crime.
No crime culposo não importa ao que o agente visa com aquela
conduta, mas sim o meio e a maneira inadequada como o agente atua. O
crime culposo sempre advém de uma imprudência, negligência ou imperícia do
agente.
Imprudente é o agente que comete a ação de maneira descuidada. A
imprudência se caracteriza por ser sempre um comportamento positivo, Outra
característica é que a culpa ocorre simultaneamente com a conduta, ou seja, a
ação em si já gera o perigo.
É considerado negligente aquele agente que se omitiu. É o
comportamento negativo da culpa. É quando a pessoa não age de forma a se
precaver dos riscos previsíveis.
Já a imperícia se caracteriza quando um profissional age com falta de
habilidade ou conhecimento em assunto relacionado à sua função.
Segundo Cezar Roberto Bitencourt:
“Imprudência é a prática de uma conduta arriscada ou
perigosa”.
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“Negligência é a displicência no agir, a falta de
precaução, a indiferença do agente, que, podendo adotar
as cautelas necessárias, não o faz”.
“Imperícia é a falta de capacidade, despreparo ou
insuficiência de conhecimento técnico para o exercício de
arte, profissão ou ofício”.
(Manual de Direito Penal, Parte Geral, Vol. 1, pág. 205)
Para Julio Fabbrini Mirabete:
“Tem-se conceituado na doutrina o crime culposo como a
conduta voluntária (ação ou omissão) que produz
resultado antijurídico não querido, mas previsível, e
excepcionalmente previsto, que podia, com a devida
atenção, ser evitado”. in “Manual de Direito Penal”, vol. I,
pág. 139
Na doutrina de Cezar Roberto Bitencourt:
“Culpa é a inobservância do dever objetivo de cuidado
manifestada numa conduta produtora de um resultado
não querido, objetivamente previsível”. in “Manual de
direito Penal”, Parte Geral, vol. 1, pág. 205
3.2 O DOLO EVENTUAL E A CULPA CONSCIENTE
Os trágicos acidentes de trânsito que acontecem diariamente devido a
violações das normas de cuidado trazem à baila a polêmica sobre a natureza
dolosa ou culposa desses delitos. Tal tema é de suma importância, tendo em
vista que determina a competência para julgamento do crime. Quando o
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homicídio é enquadrado como dolo eventual a competência é do Tribunal do
Júri, já quando é considerado culpa consciente a competência é do juiz
singular.
O dolo eventual se caracteriza quando o agente, embora não deseje
diretamente o resultado, aceita a possibilidade ou probabilidade de produzi-lo.
O agente não deseja o resultado, pois se assim fosse, seria considerado crime
cometido com dolo direto e não eventual. Assim, são a previsibilidade do
resultado, o desejo de agir e a assunção do risco que caracterizam o dolo
eventual. Embora o agente não se importe com o resultado em si, há a plena
aceitação de correr o risco de tê-lo produzido.
Agir com dolo direto significa contar com a sorte, pois há a plena
consciência da possibilidade e previsibilidade do dano e, ainda assim, o agente
não se importa e prossegue na sua conduta.
No Código Penal, o crime doloso está definido no artigo 18, inciso I. In
fine, especificado o dolo eventual:
Art. 18, inciso I: “Diz-se o crime: I – doloso quando o
agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-
lo;”De acordo com Julio Fabbrini Mirabete, in “Manual de
Direito Penal”, vol. I, pág. 141, no dolo eventual “a
vontade do agente não está dirigida para a obtenção do
resultado; o que ele quer é algo diverso, mas prevendo
que o evento possa ocorrer, assume assim mesmo o risco
de causá-lo”.
Para Cezar Roberto Bitencourt:
“Haverá dolo eventual quando o agente não quiser
diretamente a realização do tipo, mas a aceitar como
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possível ou até provável, assumindo o risco da produção
do resultado (art. 18, in fine, do CP). No dolo eventual o
agente prevê o resultado como provável, ou, ao menos,
como possível, mas, apesar de prevê-lo, age aceitando o
risco de produzi-lo. Como afirmava Hungria, assumir o
risco é alguma coisa mais que ter consciência de correr o
risco: é consentir previamente no resultado, caso este
venha efetivamente a ocorrer” in “Manual de direito
Penal”, Parte Geral, vol. 1, pág. 205
Conforme o mestre Miguel Reale Júnior:
“O dolo é eventual quando o agente inclui o resultado
possível, de forma indiferente, como resultado da ação
que decide realizar, assentindo em sua realização, que
confia possa se dar” in “Instituições de Direito Penal”,
Parte Geral, vol. I, pág. 219 e seguintes.
Nelson Hungria comenta o seguinte:
“Na conceituação do dolus eventualis, VON LISZT e
FRANK aderem iniludivelmente à teoria da vontade
quando, em tal caso, declaram insuficiente a simples
representação do resultado e exigem para este o
consentimento do agente. Ora, consentir no resultado não
é senão um modo de querê-lo (Pronuncia o ministro
CAMPOS na sua Exposição de motivos: ‘É inegável que
arriscar-se conscientemente a produzir um evento vale
tanto quanto querê-lo: ainda que sem interesse nele, o
agente o ratifica ex ante, presta anuência ao seu
advento’)” in “Comentários ao Código Penal”, vol. I, Tomo
II, Ed.Forense, 4ª edição, nas págs 114 e seguintes.
23
Já a culpa consciente acontece quando o agente é capaz de prever o
resultado, porém acredita totalmente que não irá produzi-lo. Confia o agente
que sua ação terá exatamente o resultado que ele pretende e não aquele
resultado lesivo que previu anteriormente. Dessa maneira, o resultado lesivo
em caso de culpa consciente acontece por um erro de cálculo ou erro na
execução do ato. Não basta a simples previsão do resultado para caracterizar
a culpa consciente, é necessário que o agente também tenha no momento da
ação a plena consciência da infração ao dever de cuidado.
A culpa consciente tem como principal característica a confiança do
agente que não irá produzir um resultado desfavorável.
O crime culposo está definido também no artigo 18, apenas que em seu
inciso II. Art. 18, inciso II: “Diz-se o crime: II – culposo, quando o agente deu
causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia”.
Na hipótese de homicídio culposo praticado na direção de veículo, diz o
artigo 302, da Lei 9.503/97 (Código Nacional de Trânsito):
“Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de
veículo automotor: Penas – detenção, de 2 (dois) a 4
(quatro) anos, e suspensão ou proibição de se obter a
permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor”.
Para Cezar Roberto Bitencourt:
“Há culpa consciente, também chamada culpa com
previsão, quando o agente, deixando de observar a
diligência a que estava obrigado, prevê um resultado,
previsível, mas confia convictamente que ele não ocorra.
Quando o agente, embora prevendo o resultado, espera
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sinceramente que este não se verifique, estar-se-á diante
de culpa consciente e não de dolo eventual”. in “Manual
de direito Penal”, Parte Geral, vol. 1, pág. 205
Conforme Miguel Reale Júnior:
“Sucede, todavia, que na culpa consciente tem o agente
conhecimento de que o resultado pode ocorrer, no que
não dá seu assentimento, próprio do dolo eventual”. in
“Instituições de Direito Penal”, Parte Geral, vol. I, pág. 219
e seguintes
Imagine, por exemplo, que um agente enfurecido por uma briga de rua
atropele e mate pessoas depois de passar a conduzir o carro praticando
manobras perigosas e arriscadas, gritando pela janela que as pessoas saiam
da frente, pois passará por cima de quem estiver no caminho. Temos também
o caso concreto em que um agente na direção de veículo automotor que queria
passar por uma via onde ciclistas realizavam uma manifestação, bloqueando o
fluxo de carros, simplesmente acelerou o carro atropelando dezenas de
ciclistas, imprimindo fuga logo em seguida. Esses dois casos são exemplos
claros de dolo eventual.
Por outro lado, se um pai sai de uma festa de família depois de beber
dois copos de cerveja e no trajeto causa um acidente e com isso a morte de
um filho que estava dentro do carro. Nesse caso, não se pode afirmar que o
infrator agiu com dolo eventual apenas porque tomou dois copos de bebida
alcoólica. Da mesma maneira, não há como afirmar que houve dolo eventual
na conduta de um filho que, levando o pai para um pronto socorro, imprime
velocidade excessiva no automóvel e causa um acidente matando o próprio
pai. Esses dois últimos casos exemplificam o que seria um homicídio na
modalidade de culpa consciente, pois, embora previsível o resultado, o agente
tinha a certeza inabalável de que o resultado danoso não aconteceria.
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O limite tênue que existe entre a culpa consciente e o dolo eventual está
no fato de que na primeira se conhece o risco de que o resultado danoso
ocorra e a confiança, certeza e segurança do agente que esse resultado
danoso jamais irá acontecer, pois ele crê que, de alguma maneira ele evitará o
resultado danoso ou este simplesmente não acontecerá, no segundo, o dolo
eventual, o agente já aceita, assume o risco do dano, não se importando se
ocorrerá ou não, pois isso não o fará deixar de agir.
Julio Fabbrini Mirabete ensina:
“A culpa consciente avizinha-se do dolo eventual, mas
com ela não se confunde. Naquela (na culpa consciente),
o agente, embora prevendo o resultado, não o aceita
como possível. Nesse (no dolo eventual), o agente prevê
o resultado, não se importando que venha ele a ocorrer.”
in “Manual de Direito Penal”, vol. I, pág. 142.
Para Fernando Capez, membro do Ministério Público:
“A culpa consciente difere do dolo eventual, porque neste
o agente prevê o resultado, mas não se importa que ele
ocorra (‘se eu continuar dirigindo assim, posso vir a matar
alguém, mas não importa; se acontecer, tudo bem, eu vou
prosseguir’). Na culpa consciente, embora prevendo o
que possa vir a acontecer, o agente repudia essa
possibilidade (‘se eu continuar dirigindo assim, posso vir a
matar alguém, mas estou certo de que isso, embora
possível não ocorrerá’). O traço distintivo entre ambos,
portanto, é que no dolo eventual o agente diz: ‘não
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importa’, enquanto na culpa consciente supõe: ‘é
possível, mas não vai acontecer de forma alguma’ ”. in
“Curso de Direito Penal”, Parte Geral, Vol. 1, pág. 187.
De acordo com Miguel Reale Júnior:
“No dolo eventual une-se o assentimento à assunção do
risco, a partir da posição do agente de que confia que
pode ocorrer o resultado e assim mesmo age. Na culpa
consciente assoma ao espírito do agente a possibilidade
de causação do resultado, mas confia ele que este
resultado não sucederá. Na culpa consciente o agente
considera que tudo andará bem, tudo vai dar certo”. in
“Instituições de Direito Penal”, Parte Geral, vol. I, pág.
222.
Conforme Nelson Hungria:
“Há, entre elas, é certo, um traço comum: a previsão do
resultado antijurídico; mas, enquanto no dolo eventual o
agente presta anuência ao advento desse resultado,
preferindo arriscar-se a produzi-lo, ao invés de renunciar
à ação, na culpa consciente, ao contrário, o agente
repele, embora inconsideradamente, a hipótese de
superveniência do resultado, e empreende a ação na
esperança ou persuasão de que este não ocorrerá”. in
“Comentários ao Código Penal”, vol. I, Tomo II,
Ed.Forense, 4ª edição, pág. 116.
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Fica demonstrado então, grosso modo, que o espaço entre confiar e
desejar é o que separa o dolo eventual da culpa consciente.
3.3 A JURISPRUDÊNCIA BRASILEIRA E O DOLO
EVENTUAL NOS CRIMES DE TRÂNSITO
Em nosso país a jurisprudência vem cada vez mais reconhecendo o
dolo eventual em homicídios no trânsito em situações de competições
automobilísticas não autorizadas, também conhecidas como “rachas”,
embriaguez ao volante e velocidade excessiva. Além dessas condições
citadas, é necessário que seja concomitante o fato do agente ter assumido o
risco de produzir o resultado.
Nesse sentido, o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça:
HOMICÍDIO NO TRÂNSITO. ANÁLISE DOS
ELEMENTOS CONSTANTES NO
ACÓRDÃORECORRIDO. REEXAME DE MATERIAL
FÁTICO/PROBATÓRIO. AUSÊNCIA. DOLOEVENTUAL
x CULPA CONSCIENTE. COMPETÊNCIA. TRIBUNAL
DO JÚRI.RESTABELECIMENTO DA SENTENÇA DE
PRONÚNCIA.
1. O restabelecimento do decisum que remeteu o
agravante à Júri Popular não demanda reexame do
material fático/probatório dos autos,mas mera revaloração
dos elementos utilizados na apreciação dos fatos pelo
Tribunal local e pelo Juiz de primeiro grau.
2. A decisão de pronúncia encerra simples juízo de
admissibilidade da acusação, exigindo o ordenamento
jurídico somente o exame da ocorrência do crime e de
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indícios de sua autoria, não se demandando aqueles
requisitos de certeza necessários à prolação de um édito
condenatório, sendo que, nessa fase processual, as
questões resolvem-se a favor da sociedade.
3. Afirmar se o Réu agiu com dolo eventual ou culpa
consciente é tarefa que deve ser analisada pela Corte
Popular, juiz natural da causa, de acordo com a narrativa
dos fatos constantes da denúncia e com o auxílio do
conjunto fático/probatório produzido no âmbito do devido
processo legal.
4. Na hipótese, tendo a provisional indicado a existência
de crime doloso contra a vida - embriaguez ao volante,
excesso de velocidade e condução do veículo na
contramão de direção, sem proceder à qualquer juízo de
valor acerca da sua motivação, é caso de submeter o Réu
ao Tribunal do Júri.
5. Recurso especial provido para restabelecer a sentença
de pronúncia.
REsp 1279458 / MG RECURSO ESPECIAL
2011/0214784-7
Nesse julgado pode-se aferir que, de acordo com o posicionamento do
Superior Tribunal de Justiça, em caso de dúvida se o homicídio foi praticado de
forma dolosa ou culposa, não há impedimento para o julgamento em Júri
Popular, tendo em vista que na fase de pronúncia se aplica o princípio do in
dubio pro societate. Nesse caso, decidirá o corpo de jurados se o crime foi
doloso ou culposo.
Em situação similar, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro,
ao julgar conflito de jurisdição, atribuiu a competência também ao Tribunal do
Júri. Vejamos:
29
CONFLITO DE JURISDIÇÃO. Crimes de homicí-dios,
consumado e tentado, ambos na direção de veículo
automotor. Dolo eventual.Presença, em tese.
Competência do Tribunal do Júri. As circunstâncias em
que os fatos se desenvolveram indicam que o condutor
do veículo automotor praticou, em tese, os crimes contra
os transeuntes de forma dolosa, eis que se lançou, em
tresloucada fuga, a conduzir a sua máquina em
velocidade incompatível com o local, em
verdadeiro racha com o motociclista que o perseguia, e,
inclusive, na contramão de direção; não hesitou o
motorista em avançar sinalizações de trânsito que lhes
eram adversas, até atropelar pedestres que,
ordeiramente, cruzavam a via pública na faixa a eles
destinadas, matando a moça e ferindo gravemente o pai
da mesma, resultados estes plenamente previsíveis e
aceitos por aquele. O condutor de veículo automotor que
se lança a trafegar na forma retratada nos autos tem
plena consciência de que corre o risco de provocar
violentas colisões e sérios atropelamentos de
transeuntes; se ele, ainda assim, assume tais riscos,
indiferente aos resultados que podem se verificar, atua
com dolo, no caso eventual.
DES. MOACIR PESSOA DE ARAUJO - Julgamento:
30/10/2007 - PRIMEIRA CAMARA CRIMINAL Data de
Julgamento: 30/10/2007.
No mesmo sentido o Tribunal de Justiça de Santa Catarina:
TJ-SC - Recurso Criminal RCCR 208176 SC
1999.020817-6 (TJ-SC)
Data de publicação: 15/02/2000
30
Ementa: PRONÚNCIA - HOMICÍDIO - TRÂNSITO -
EMBRIAGUEZ - DOLOEVENTUAL - PRETENDIDA
DESPRONÚNCIA POR ANEMIA PROBATÓRIA -
IMPOSSIBILIDADE - DÚVIDA RESOLVIDA PRO
SOCIETATE - DECISÃO MANTIDA. Para a decisão de
pronúncia basta mero juízo de admissibilidade da
acusação, para que seja decidida pelo Júri; eventuais
dúvidas, nesta fase, são resolvidas em favor da
sociedade.
Pode-se perceber um posicionamento firme da jurisprudência no sentido
de que, pairando alguma dúvida sobre se houve dolo eventual ou culpa
consciente no homicídio, profere-se a sentença de pronúncia deixando a
dúvida para ser dissipada no âmbito do Júri Popular.
Porém, nem todo caso de homicídio no trânsito deixa dúvidas acerca da
vontade do agente, havendo casos em que o magistrado não profere a
sentença de pronúncia por ter a plena convicção de que se trata de crime
culposo.
STJ - HABEAS CORPUS HC 58826 RS 2006/0099967-9
(STJ)
Data de publicação: 08/09/2009
Ementa: PENAL. PROCESSUAL PENAL. HABEAS
CORPUS. 1. HOMICÍDIO. CRIME DE
TRÂNSITO. EMBRIAGUEZ. DOLO EVENTUAL. AFERIÇ
ÃO AUTOMÁTICA. IMPOSSIBILIDADE. 2. ORDEM
CONCEDIDA. 1. Em delitos de trânsito, não é possível a
conclusão automática de ocorrência de dolo eventual
apenas com base em embriaguez do agente. Sendo os
crimes de trânsito em regra culposos, impõe-se a
indicação de elementos concretos dos autos que
indiquem o oposto, demonstrando que o agente tenha
31
assumido o risco do advento do dano, em flagrante
indiferença ao bem jurídico tutelado. 2. Ordem concedida
para, reformando o acórdão impugnado, manter a decisão
do magistrado de origem, que desclassificou o delito para
homicídio culposo e determinou a remessa dos autos
para o juízo comum.
Nesse mesmo sentido:
TJ-SE - RECURSO EM SENTIDO ESTRITO
RECSENSES 2010302076 SE (TJ-SE)
Data de publicação: 02/08/2010
Ementa: HOMICÍDIO - CRIME DE TRÂNSITO -
EMBRIAGUEZ - DOLO EVENTUAL - AFERIÇAO
AUTOMÁTICA - IMPOSSIBILIDADE -
DESCLASSIFICAÇAO PARA HOMICÍDIO CULPOSO -
RECURSO PROVIDO, POR MAIORIA . 1. Em delito de
trânsito, ou se demonstra o dolo direto, ou se reduz em
demasia a possibilidade dodolo eventual ante a
perspectiva de que o próprio agente ativo da relação
penal substantiva poderia ser, também, vítima fatal do
evento a que deu causa. 2. Aembriaguez não autoriza a
presução de dolo eventual, o que importaria em odiosa
conclusão automática da existência de um elemento
subjetivo do tipo, indemonstrado. 3. Recurso provido para
desclassificar o delito para homicídio culposo. 4. Decisão
por maioria.
Nos dois julgados acima o posicionamento foi o mesmo. Posicionaram-
se ambos pela impossibilidade da aferição automática do dolo eventual pelo
simples fato do condutor do veículo estar alcoolizado. A situação de
embriaguez do condutor não pode ser a única condição para que o crime seja
32
enquadrado na modalidade doloso, pois, como visto anteriormente, para se
configurar o dolo eventual é necessário que o agente preveja o resultado
danoso e consinta com esse resultado.
No julgado que segue, houve condenação do júri por homicídio com
dolo eventual não só pelo agente estar embriagado, mas por ter também
imprimido alta velocidade na condução do veículo, demonstrando assim não se
importar com os possíveis e previsíveis resultados lesivos.
HABEAS CORPUS. PENAL. CRIME DE HOMICÍCIO
PRATICADO NA CONDUÇÃO DE VEÍCULO
AUTOMOTOR. PLEITO DE DESCLASSIFICAÇÃO PARA
O DELITO PREVISTO NO ARTIGO 302 DO CÓDIGO
DE TRÂNSITO BRASILEIRO. DEBATE ACERCA DO
ELEMENTO VOLITIVO DO AGENTE. CULPA
CONSCIENTE X DOLO EVENTUAL. CONDENAÇÃO
PELO TRIBUNAL DO JÚRI. CIRCUNSTÂNCIA QUE
OBSTA O ENFRENTAMENTO DA QUESTÃO.
REEXAME DE PROVA. ORDEM DENEGADA. I - O órgão
constitucionalmente competente para julgar os crimes
contra a vida e, portanto, apreciar as questões atinentes
ao elemento subjetivo da conduta do agente aqui
suscitadas – o Tribunal do Júri - concluiu pela prática do
crime de homicídio com dolo eventual, de modo que não
cabe a este Tribunal, na via estreita do habeas corpus,
decidir de modo diverso. II - A jurisprudência desta Corte
está assentada no sentido de que o pleito de
desclassificação de crime não tem lugar na estreita via do
habeas corpus por demandar aprofundado exame do
conjunto fático-probatório da causa. Precedentes. III –
Não tem aplicação o precedente invocado pela defesa,
qual seja, o HC 107.801/SP, por se tratar de situação
33
diversa da ora apreciada. Naquela hipótese, a Primeira
Turma entendeu que o crime de homicídio praticado na
condução de veículo sob a influência de álcool somente
poderia ser considerado doloso se comprovado que
a embriaguez foi preordenada. No caso sob exame, o
paciente foi condenado pela prática de homicídio doloso
por imprimir velocidade excessiva ao veículo que dirigia,
e, ainda, por estar sob influência do álcool, circunstância
apta a demonstrar que o réu aceitou a ocorrência do
resultado e agiu, portanto, com dolo eventual. IV - Habeas
Corpus denegado.
HC 115352 / DF - DISTRITO FEDERAL
HABEAS CORPUS
Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI
Julgamento: 16/04/2013 Órgão Julgador: Segunda
Turma
A seguir, um caso de “racha” que causou a morte de inocentes. O crime
foi capitulado na modalidade de dolo eventual:
DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL. HABEAS
CORPUS. CRIME DE COMPETÊNCIA DO TRIBUNAL
DO JÚRI. "RACHA" AUTOMOBILÍSTICO.HOMICÍDIO
DOLOSO. DOLO EVENTUAL. NOVA VALORAÇÃO DE
ELEMENTOS FÁTICO-JURÍDICOS, E NÃO
REAPRECIAÇÃO DE MATERIAL PROBATÓRIO.
DENEGAÇÃO. 1. A questão de direito, objeto de
controvérsia neste writ, consiste na eventual análise de
material fático-probatório pelo Superior Tribunal de
Justiça, o que eventualmente repercutirá na configuração
do dolo eventual ou da culpa consciente relacionada à
conduta do paciente no evento fatal relacionado à
34
infração de trânsito que gerou a morte dos cinco
ocupantes do veículo atingido. 2. O Superior Tribunal de
Justiça, ao dar provimento ao recurso especial interposto
pelo Ministério Público do Estado de Minas Gerais,
atribuiu nova valoração dos elementos fático-jurídicos
existentes nos autos, qualificando-os como homicídio
doloso, razão pela qual não procedeu ao revolvimento de
material probatório para divergir da conclusão alcançada
pelo Tribunal de Justiça. 3. O dolo eventual compreende
a hipótese em que o sujeito não quer diretamente a
realização do tipo penal, mas a aceita como possível ou
provável (assume o risco da produção do resultado, na
redação do art. 18 , I , in fine, do CP ). 4. Das várias
teorias que buscam justificar o dolo eventual, sobressai a
teoria do consentimento (ou da assunção), consoante a
qual o dolo exige que o agente consinta em causar o
resultado, além de considerá-lo como possível. 5. A
questão central diz respeito à distinção entre dolo
eventual e culpa consciente que, como se sabe,
apresentam aspecto comum: a previsão do resultado
ilícito. No caso concreto, a narração contida na denúncia
dá conta de que o paciente e o co-réu conduziam seus
respectivos veículos, realizando aquilo que
coloquialmente se denominou "pega" ou "racha", em alta
velocidade, em plena rodovia, atingindo um terceiro
veículo (onde estavam as vítimas). 6. Para configuração
do dolo eventual não é necessário o consentimento
explícito do agente, nem sua consciência reflexiva em
relação às circunstâncias do evento. Faz-se
imprescindível que o dolo eventual se extraia das
circunstâncias do evento, e não da mente do autor, eis
que não se exige uma declaração expressa do agente. 7.
35
O dolo eventual não poderia ser descartado ou julgado
inadmissível na fase do iudicium accusationis. Não houve
julgamento contrário à orientação contida na Súmula 07,
do STJ, eis que apenas se procedeu à revaloração dos
elementos admitidos pelo acórdão da Corte local,
tratando-se de quaestio juris, e não de quaestio facti. 8.
Habeas corpus denegado.
STF - HABEAS CORPUS HC 91159 MG (STF)
Data de publicação: 23/10/2008
Para José Marcos Marrone:
[b] se da corrida, disputa ou competição não autorizada
resultar evento mais grave (lesão ou morte), configura-se
o dolo eventual (art. 18, I, 2a parte, do Código Penal),
respondendo o condutor pelo delito de homicídio doloso
ou lesão corporal dolosa. Fica absorvido o crime do art.
308 do CTB (b) Efetivamente, aquele que participa de
‘racha’, em via publica, tem consciência dos riscos
envolvidos, aceitando-os, motivo pelo qual merece ser
responsabilizado por crime doloso. em Delitos de Transito
Brasileiro: Lei n. 9.503/97. São Paulo: Atlas, 1998, p. 76.
Vimos que nos crimes de trânsito pode ocorrer o dolo eventual, apesar
da regra do tipo ser culposo. A comprovação não é fácil, depende do caso
concreto, tendo em vista que só mesmo sabendo a real vontade e intenção do
agente para proceder à capitulação. A dificuldade existe porque tal intenção é
algo de foro muito íntimo, que só pode ser descoberta por meio da valoração
probatória. Assim, é necessária a prova do elemento subjetivo que norteou a
conduta do agente. A apuração do dolo vai depender, portanto, de cada caso.
36
As principais circunstâncias capazes de caracterizar o dolo eventual são
as já faladas anteriormente: velocidade excessiva, “racha”, embriaguez ao
volante, causando acidente com vítima fatal. Nesses casos, o condutor
assume o risco e consente o resultado.
CONCLUSÃO
O presente trabalho buscou fazer uma análise sobre as hipóteses
principais de capitulação de crimes de homicídio no trânsito como dolo
eventual, tomando por base opiniões doutrinárias e posicionamentos
jurisprudenciais diversos de nosso ordenamento jurídico. Vimos a definição de
cada uma dessas condutas, quais sejam, embriaguez ao volante, “racha” e
excesso de velocidade; uma breve explanação sobre dolo e culpa; abordamos
a diferenciação existente entre dolo eventual e culpa consciente e
demonstramos o posicionamento de nosso judiciário acerca do tema.
Diante de tudo o que foi exposto, percebemos que, apesar dos crimes
de trânsito serem considerados culposos por natureza, o dolo eventual passou
a ser reconhecido em casos em que o condutor cria risco demasiado sem se
importar com resultado lesivo que produz aos demais no trânsito. Esse
entendimento da doutrina e jurisprudência visa a combater o desrespeito à vida
no trânsito, procurando aplicar penas mais severas a condutores que praticam
crimes ao volante.
A tarefa de enquadrar um crime de homicídio no trânsito como dolo
eventual nem sempre é fácil, porém, vimos que, na dúvida, o magistrado age
visando somente ao bem da sociedade e concede a sentença de pronúncia ao
Tribunal do Júri, ao qual caberá decidir pelo dolo ou culpa caso a caso.
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A capitulação do crime como dolo ou culpa é de ímpar importância, pois
há extrema disparidade entre as penas e, ao mesmo tempo, às vezes é muito
difícil decidir entre o dolo ou a culpa, pois a prova pode não ser de fácil
obtenção e a vontade legítima mora no íntimo do agente. Quando não há
provas contundentes acerca do consentimento com o resultado lesivo
característico do dolo eventual, o mais prudente é considerar a modalidade
culposa para evitar injustiças.
Assim, diante da tendência jurisprudencial a reconhecer o dolo eventual
em crimes no trânsito e, consequentemente, atribuir penas mais gravosas,
espera-se que o cidadão condutor de veículo automotor se conscientize e
pratique uma direção mais segura para ele e para o resto da sociedade.
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BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito Penal, Parte Geral, vol. 1.
CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, volume 4: legislação penal especial.
2. ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2007.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, Parte Geral, Vol. 1.
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http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/definicao/transito%20_1057601.
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GOMES. Luiz Flávio. Reforma do Código de Trânsito (Lei 11.705/2008): novo
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junho.2008>. Acesso em 19/07/2013.
HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal, vol. I, Tomo II, Ed.Forense,
4ª edição.
JÚNIOR, Miguel Reale. Instituições de Direito Penal, Parte Geral, vol. I.
39
MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal.