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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA UNEB DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS EDIVANILDO FLAUBERTE CORREIA DE AFONSO SESSÃO ORDINÁRIA DA CÂMARA MUNICIPAL COMO EVENTO COMUNICATIVO DE HETEROGENEIDADE LINGUÍSTICO-CULTURAL Salvador - BA 2014

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS

EDIVANILDO FLAUBERTE CORREIA DE AFONSO

SESSÃO ORDINÁRIA DA CÂMARA MUNICIPAL COMO EVENTO

COMUNICATIVO DE HETEROGENEIDADE LINGUÍSTICO-CULTURAL

Salvador - BA

2014

EDIVANILDO FLAUBERTE CORREIA DE AFONSO

SESSÃO ORDINÁRIA DA CÂMARA MUNICIPAL COMO EVENTO

COMUNICATIVO DE HETEROGENEIDADE LINGUÍSTICO-CULTURAL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia - UNEB, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Estudo de Linguagens. Linha de Pesquisa: Linguagens, Discurso e Sociedade. Área de Concentração: Estudos Sociolinguísticos Orientadora: Profa. Dra. Lúcia Maria de Jesus Parcero

Salvador - BA

2014

FICHA CATALOGRÁFICA Sistema de Bibliotecas da UNEB

Bibliotecária: Jacira Almeida Mendes- CRB: 5/592

Afonso, Edivanildo Flauberte Correia de. Sessão ordinária da Câmara Municipal como evento comunicativo de heterogeneidade linguístico-cultural / Edivanildo Flauberte Correia de Afonso. - Salvador, 2014. 145f.

Orientador: Lúcia Maria de Jesus Parcero. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências Humanas. Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens. Campus I. Contém referências e apêndice.

1. Linguística. 2. Sociolinguística. I. Bahia. Câmara Municipal - Discursos Parlamentares. II. Parcero, Lúcia Maria de Jesus. III. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas. CDD: 410.285

EDIVANILDO FLAUBERTE CORREIA DE AFONSO

SESSÃO ORDINÁRIA DA CÂMARA MUNICIPAL COMO EVENTO

COMUNICATIVO DE HETEROGENEIDADE LINGUÍSTICO-CULTURAL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia - UNEB, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Estudo de Linguagens.

Banca Examinadora

___________________________________________________________________

Profª. Drª. Lúcia Maria de Jesus Parcero – Orientadora

Universidade do Estado da Bahia – UNEB

_________________________________________________________________________________

Profª. Drª. Marcela Moura Torres Paim

Universidade Federal da Bahia – UFBA

___________________________________________________________________

Profª. Drª Lígia Pellon de Lima Bulhões

Universidade do Estado da Bahia – UNEB

Aos meus tios/pais, Maria de Lourdes e Angelino da Conceição; à minha mãe, Edite Correia, e à minha avó Maria Balbina (in memoriam), que me ensinaram os valores mais importantes da vida e que sempre me apoiam em tudo, de modo incondicional. Aos meus irmãos, Fabrício e Fabíola, e aos meus primos/irmãos Ângelo Márcio, Pedro Paulo, Jacilene e Ana Paula, que tanto acreditam em meu potencial e que tanto me incentivam em cada passo que dou. A todos os meus amigos, cuja companhia e apoio são tão importantes para minha vida.

AGRADECIMENTOS

A Deus, pela vida e por todas as oportunidades e conquistas. À Professora Lúcia Parcero, pela segurança e tranquilidade com que conduziu a orientação desta Dissertação. Aos professores do PPGEL/UNEB, pelas valiosas contribuições para minha formação como pesquisador. Ao Professor César Vitorino, por todo apoio e incentivo. Aos vereadores da Câmara Municipal de São Domingos, pela grandiosa colaboração durante toda a pesquisa. Aos colegas do PPGEL/UNEB, pelo compartilhamento de saberes, alegrias e inquietações.

A estrutura da relação de produção linguística depende da relação de força simbólica entre dois locutores, isto é, da importância de seu capital de autoridade (que não é redutível ao capital propriamente linguístico): a competência é também portanto capacidade de se fazer escutar. A língua não é somente um instrumento de comunicação ou mesmo de conhecimento, mas um instrumento de poder. Não procuramos somente ser compreendidos mas também obedecidos, acreditados, respeitados, reconhecidos.

(Pierre Bourdieu, 1994)

RESUMO

Cada vez mais, domínios sociais tradicionalmente reservados a apenas uma parcela da população têm estado abertos à participação de uma diversidade de sujeitos. O domínio político é exemplar nesse sentido. Por uma série de razões, cargos tanto do Poder Legislativo quanto do Executivo têm sido ocupados não somente por indivíduos oriundos de culturas urbanas, onde há um predomínio de práticas e eventos de letramento, mas também de culturas rurais, onde essas práticas e eventos não são tão frequentes – ou mesmo desse entremeio. Utilizando-se de pressupostos teórico-metodológicos da Sociolinguística, especificamente da abordagem denominada Etnografia da Comunicação, analisa-se, nesta dissertação, o evento comunicativo Sessão Ordinária da Câmara Municipal de Vereadores e a competência comunicativa do seu heterogêneo conjunto de participantes. Fruto de uma pesquisa etnográfica realizada na Câmara Municipal de São Domingos, uma pequena cidade do interior da Bahia, este trabalho visa à descrição dos componentes do evento Sessão Ordinária da Câmara, com ênfase no que contribui para a constituição de suas regras culturais, interacionais e, sobretudo, linguísticas; visa também à análise da competência comunicativa dos vereadores de diferentes origens socioculturais, com foco em suas habilidades de variação estilística.

Palavras-chave: Sessão Ordinária. Câmara Municipal. Etnografia. Competência Comunicativa. Variação Estilística.

ABSTRACT

Increasingly, social domains traditionally reserved for only a portion of the population have been open to the participation of a diversity of subjects. The political domain is exemplary in this sense. For a variety of reasons, both positions of the legislative branch as the executive have been occupied not only by individuals from urban cultures where there is a predominance of literacy practices and events, but also of rural cultures where these practices and events are not so frequent - or even that inset. Using theoretical and methodological assumptions of Sociolinguistics, specifically the approach called Ethnography of Communication, is analyzed in this dissertation, the communicative event Ordinary Session of the City Council Chamber and the communicative competence of its heterogeneous set of participants. Result of an ethnographic research conduct in the City Council Chamber of São Domingos, a small town in the interior of Bahia, this work aims at the description of the components of the Ordinary Session of the Chamber event, with an emphasis on contributing to the establishment of its cultural, interactional, and especially linguistic rules; it also aims to analyze the communicative competence of the councilors from different social-cultural backgrounds, focusing on their ability to stylistic variation.

Keywords: City Council Chamber. Ordinary Session. Ethnography. Communicative Competence. Stylistic Variation.

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 11

1. SOCIOLINGUÍSTICA: UMA ABORDAGEM ETNOGRÁFICA .............................. 17

1.1 A Etnografia da Comunicação: o que é ....................................................... 20

1.1.1 Comunidade de Fala ............................................................................ 23

1.1.2 Competência Comunicativa ................................................................ 27

1.2 A Etnografia da Comunicação: como se faz ............................................ 31

2. A HETEROGENEIDADE LINGUÍSTICO-CULTURAL BRASILEIRA................. 39

2.1 As Culturas Rural e Urbana e o Contínuo de Urbanização .................... 41

2.2 As Práticas Sociais de Uso da Língua e o Contínuo de Oralidade-

Letramento.............................................................................................................50

2.3 A Variação Estilística e o Contínuo de Monitoração Estilística ............. 56

3. METODOLOGIA ................................................................................................. 69

4. O EVENTO DE COMUNICAÇÃO SESSÃO ORDINÁRIA DA CÂMARA ........... 82

5. A LINGUAGEM DA SESSÃO ORDINÁRIA DA CÂMARA: O ESTILO DOS

LÍDERES POLÍTICOS .............................................................................................. 99

5.1 Insegurança Linguística, Adequação e Viabilidade .............................. 106

5.1.1 O uso de regras linguísticas de variedades do português popular .. 107

5.1.2 O uso de hipercorreção ......................................................................... 114

5.1.3 Perfil sociocultural e insegurança linguística ..................................... 118

5.2 Segurança Linguística, Adequação e Viabilidade ................................. 121

5.2.1 O uso de regras linguísticas da variedade urbana culta ................ 121

5.2.2 Perfil sociocultural e segurança linguística .................................... 125

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 129

REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 136

APÊNDICE .............................................................................................................. 141

11

INTRODUÇÃO

É considerável a quantidade de mudanças pelas quais a sociedade brasileira

tem passado nos últimos tempos. Um número expressivo da população tem

experimentado um processo migratório, ainda em andamento, das áreas rurais para

as áreas urbanas. Uma grande parcela da população tem tido acesso à

escolarização – mesmo que ainda não de modo satisfatório. Uma gama de

indivíduos com perfis sociais os mais diversos têm ocupado papéis sociais há certo

tempo restritos a determinados estratos da sociedade. Desse modo, devido a, entre

outros fatores, uma notável mobilidade social ascendente de parte de sua

população, o Brasil tem caminhado de uma configuração tradicional de demarcações

sociais relativamente rígidas para uma configuração cada vez mais maleável e, por

extensão, complexa.

Essa mudança de configuração da sociedade brasileira tem sido revelada em

muitas pesquisas não apenas das Ciências Sociais, mas também de outras áreas

como a Educação, os Estudos sobre o Letramento, a Sociolinguística, enfim. Não é

por acaso que assuntos como estes têm sido objetos de estudos os mais diversos: a

transformação de dialetos rurais em variedades urbanas não padrão, o ensino da

língua culta à grande parcela da população que tem como língua materna

variedades populares da língua, as práticas de letramento de determinadas

comunidades, entre outros.

Há sem dúvida nesse contexto uma questão que também é de grande

relevância: a participação de sujeitos de origens e perfis os mais heterogêneos em

domínios sociais tradicionalmente reservados a sujeitos que combinassem atributos

como pertencer às classes sociais privilegiadas, pertencer à cultura urbana e possuir

determinado grau de escolaridade. O domínio político é hoje um notável exemplo de

ambiente social marcado pela heterogeneidade. Presidência de sindicatos, de

associações, direção de organizações sociais e comunitárias, cargos e funções

políticas tanto do Poder Legislativo quanto do Poder Executivo são exemplos de

papéis sociais que deixaram de ser ocupados somente por determinada parcela da

sociedade.

Sendo um caso notadamente paradigmático, o domínio político do Poder

Legislativo e do Poder Executivo tem uma relativamente recente abertura à

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heterogeneidade de seus integrantes. O processo de democratização política do

país tem possibilitado que tanto indivíduos com apenas o Ensino Fundamental

completo quanto aqueles com os mais altos títulos de Nível Superior ocupem, por

exemplo, o cargo de Presidente da República, ou de Governador ou de Prefeito; tem

possibilitado também que tantos indivíduos de origem rural quanto de origem urbana

ocupem, por exemplo, o cargo de Senador, de Deputado ou de Vereador.

É preciso destacar, no entanto, que essa ampla possibilidade de participação

política é acompanhada, por outro lado, de uma série de limitações de diversas

ordens, que em sua grande maioria não são inscritas legalmente, mas, sobretudo,

socialmente. Exige-se normalmente do líder político uma acomodação às exigências

de seu cargo, o que significa muito mais do que assumir uma postura formal, saber

ouvir e representar os interesses da população, conhecer a realidade de seu país,

de seu estado, de sua cidade. Espera-se que ele tenha habilidades mínimas de

leitura e escrita que lhe permitam lidar com as leis e documentos concernentes ao

seu cargo; que ele tenha a habilidade de falar em público e de articular um discurso

apropriado, enfim, que ele apresente a competência comunicativa que sua função

política exige.

O conjunto de conhecimentos e habilidades linguísticas, interacionais e

culturais que o líder político precisa dispor, ou seja, a competência comunicativa que

ele precisa exibir será definida pelas situações e eventos comunicativos de que

precise participar. Assim, de líderes políticos de diferentes esferas serão exigidas

diferentes competências comunicativas, embora parte considerável das habilidades

e conhecimentos necessários seja comum a todas elas, como é o caso, por

exemplo, do domínio dos estilos monitorados da variedade culta da língua.

No caso específico de líderes políticos da esfera municipal, mais

precisamente do Poder Legislativo, a competência comunicativa que se lhe exige é

advinda da própria Câmara Municipal, como uma situação de comunicação, e dos

eventos comunicativos que nela se desenvolvem. Impondo tanto regras explícitas,

formalmente constituídas, quanto regras tácitas, a Câmara Municipal pode acolher

indivíduos que exibam diferentes competências comunicativas, uma vez que eles

podem ter origens socioculturais as mais diversas.

Nesse sentido, os integrantes da situação comunicativa Câmara Municipal,

considerando sua potencial heterogeneidade, podem ter origens geográficas

distintas, possuindo assim antecedentes rurais ou urbanos. Eles podem também ser

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provenientes de uma cultura onde haja uma quantidade considerável de práticas e

eventos de letramento ou de uma cultura onde a quantidade de práticas e eventos

de letramento não seja tão expressiva. Sua origem sociocultural, bem como outros

relevantes aspectos, podem ter uma influência decisiva no modo como eles

desempenham seu papel de líder político.

Levando em conta o nível de formalidade que normalmente envolve o domínio

político de modo geral e o da Câmara Municipal, especificamente, pode-se afirmar

que entre as habilidades mais importantes a compor a competência comunicativa de

um vereador deva figurar a de variar seu estilo conforme o evento comunicativo de

que participe nessa situação. Assim, uma vez que há uma identificação entre

formalidade e estilos monitorados da variedade culta da língua, tem-se que, quanto

mais inserido estiver o indivíduo em práticas urbanas letradas, maior a tendência de

lidar sem dificuldades com esse tipo de variação estilística.

O paradoxo que se observa nesse cenário é o de que possibilidades de

participação política estão supostamente disponíveis a uma grande parcela da

população, no entanto, apenas bem poucos têm acesso de fato aos conhecimentos

e habilidades exigidos pelas situações e eventos comunicativos próprios dos

domínios políticos. O conhecimento linguístico pode ser apontado, nesse caso,

como um dos conhecimentos restritos a poucos, uma vez que, para os grandes

segmentos da população, a variedade culta (uma das mais requisitadas nesse

contexto) ainda é de acesso bem restrito.

Em verdade, pode-se dizer que no Brasil, tem-se uma situação linguística

bem peculiar, visto que a variedade culta e as variedades populares de modo geral

possuem funções bem definidas, mas grande parte da população não tem acesso a

esse espectro de variedades, sobretudo a variedade culta. Ademais, se verifica

ainda que as próprias variedades não são consideradas como entidades

necessariamente distintas, cujo uso pode ser alternado conforme a situação. Sem

fronteiras muito bem definidas, as variedades acabam se distinguindo pelo aumento

ou diminuição da presença de determinados traços linguísticos.

No contexto da participação política é possível, desse modo, observar a

presença de indivíduos que exibem uma habilidade notória de variação estilística tal

como exigida por esse domínio, e de outros indivíduos que, por uma série de razões,

têm sérias dificuldades de operar com diferentes estilos da língua. Habilidades

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contrastantes que resultam em uma possibilidade maior ou menor de viabilização

das tarefas comunicativas impostas por seu cargo ou função política.

Levando em conta a expressiva heterogeneidade de sujeitos que compõem o

Poder Legislativo Municipal por todo o país, das pequenas às grandes cidades,

considera-se que a Câmara Municipal de Vereadores pode mesmo ser um ambiente

representativo da combinação e interação de sujeitos com diferentes origens

socioculturais submetidos a um conjunto único e peculiar de regras culturais,

interacionais e linguísticas. Partindo dessa premissa, a pesquisa que resultou neste

trabalho teve como objetivo a descrição de um evento comunicativo específico de

uma Câmara Municipal, a Sessão Ordinária, de modo a verificar quais são suas

regras culturais, interacionais e, sobretudo, linguísticas e como elas são seguidas

por indivíduos de diferentes origens socioculturais.

Realizada na Câmara Municipal de São Domingos, uma pequena cidade do

interior da Bahia com pouco mais de nove mil habitantes, a pesquisa visava

descrever os elementos constitutivos da mais importante entre as Sessões da

Câmara, a Sessão Ordinária (dos seus participantes às suas regras propriamente

ditas); analisar a competência comunicativa de sujeitos de diferentes origens

socioculturais quando do desempenho do papel de líderes políticos no Poder

Legislativo Municipal, com foco na habilidade de variação estilística; bem como

verificar a relação existente entre as diferentes origens socioculturais dos

participantes da Sessão Ordinária da Câmara e seu desempenho linguístico.

Baseando-se nos pressupostos teórico-metodológicos da Etnografia da

Comunicação, considerada aqui como uma das abordagens da Sociolinguística,

empreendeu-se uma pesquisa etnográfica dentro da própria Câmara Municipal de

São Domingos, escolhida como a comunidade de fala foco da pesquisa. Valeu-se,

para tanto, de uma combinação de métodos que permitissem o acesso a dados

precisos e suficientes acerca da Sessão Ordinária como um evento comunicativo,

dos seus participantes e da competência comunicativa deles. Assim, foram utilizados

não apenas um dos mais importantes métodos dos estudos etnográficos, a

observação-participante, mas também a entrevista e o método filológico.

Ao longo deste trabalho são apresentados e discutidos noções e conceitos de

grande importância dentro da Sociolinguística, de modo geral, e da Etnografia da

Comunicação, em particular. Pode-se mesmo dizer que o trabalho se divide em duas

partes, sendo uma delas composta do primeiro e segundo capítulos, e a outra, do

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restante do trabalho. No primeiro capítulo, por exemplo, além de situar a Etnografia

da Comunicação dentro dos Estudos Sociolinguísticos, apresenta-se sua gênese e

suas peculiaridades em relação a áreas de pesquisa como a Sociolinguística

Quantitativa e a Sociologia da Linguagem. São apresentados ainda, nesse capítulo,

conceitos e questões básicos para o trabalho do etnógrafo da comunicação, como

colocados por autores como Hymes (1972a, 1972b, 1974) e Saville-Troike (2003):

comunidade de fala, competência comunicativa, as unidades de análise comumente

adotadas pela área (situação de comunicação, evento de comunicação e ato de fala)

e os elementos que constituem um evento de comunicação (situação, participantes,

propósitos, sequência dos atos de fala, tom emocional, instrumentos, normas,

gêneros, entre outros).

No segundo capítulo, discute-se a heterogeneidade linguístico-cultural do

Brasil, tendo como base a metodologia dos contínuos de urbanização, oralidade-

letramento e monitoração estilística, proposta por Bortoni-Ricardo (2006, 2009).

Partindo de interessantes considerações acerca das características da sociedade

brasileira atual, apresenta-se cada um dos contínuos usados para a análise da

complexa realidade linguístico-cultural do país. Desse modo, são discutidas

questões como a relação entre a cultura rural e urbana, destacando as

peculiaridades linguísticas de cada uma dessas culturas; a relação entre oralidade e

letramento enquanto práticas sociais de uso da língua; bem como a noção de

variação estilística, analisando como se dá o processo de monitoração do estilo

linguístico colocado em prática pelos falantes em geral.

A segunda parte da dissertação se inicia com uma apresentação detalhada da

metodologia adotada para a pesquisa empreendida. São tecidas importantes

considerações acerca das peculiaridades da pesquisa etnográfica, de modo geral, e

dos métodos adotados para essa pesquisa, especificamente. Apresenta-se também

as comunidades de fala pesquisadas, a cidade de São Domingos e a Câmara

Municipal (duas comunidades imbricadas, sendo a primeira mais ampla e a

segunda, mais específica, para a pesquisa), a situação de comunicação em foco e

os eventos de comunicação que coocorrem com o evento foco da pesquisa.

O quarto capítulo é destinado a uma análise minuciosa da Sessão Ordinária

da Câmara, o evento comunicativo de interesse principal da pesquisa. São

analisados seus elementos mais relevantes, do modo como propõe Hymes (1972b),

do ambiente no qual ele acontece, passando por seus participantes até às normas

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de interação e interpretação. A linguagem da Sessão Ordinária tal como ela é usada

pelos seus diferentes participantes é o assunto do quinto capítulo. Nesse ponto, dá-

se ênfase à questão da variação estilística, analisando como vereadores com

diferentes características socioculturais adaptam seu estilo às exigências do evento

comunicativo. Assim são analisados alguns dos recursos e fenômenos linguísticos

de que os participantes lançam mão para levar a cabo sua tarefa comunicativa.

É preciso destacar que todo o processo de produção dessa dissertação, da

pesquisa à escrita propriamente dita, foi permeado pelo esforço de entender, a partir

de um contexto cultural específico, o complexo e fabuloso processo de comunicação

humana. Tendo recorrido a noções, conceitos e ideias de grande importância,

buscou-se, enfim, lançar mais uma luz sobre a intrigante relação entre língua, cultura

e sociedade.

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1. SOCIOLINGUÍSTICA: UMA ABORDAGEM ETNOGRÁFICA

Entre linguagem e sociedade há, inegavelmente, uma intrínseca relação. Uma

não pode existir sem a outra, constatação essa que deriva de duas observações que

podem parecer óbvias: a de que o outro é condição indispensável para haver a

linguagem e que é exatamente através desse contato com o outro, por meio de

signos de comunicação comuns, que uma sociedade se sustenta. Apesar da força

dessas observações, durante muito tempo, elas parecem não ter sido devidamente

consideradas nos estudos linguísticos.

A Linguística do século XX testemunhou diferentes maneiras de se conceber

a relação entre linguagem e sociedade. De modo geral, pode-se afirmar que ao

longo de vários anos houve o predomínio de um ponto de vista que considerava bem

pouco, precisamente para seus estudos, a influência do social sobre a língua; visão

essa que pode ser atribuída com destaque à corrente estruturalista. Pode-se afirmar

que esse ponto de vista viu-se, no entanto, questionado quando do surgimento de

uma abordagem que levava em conta, veementemente, o funcionamento social

como parte mesmo do funcionamento da língua, ou seja, quando do surgimento da

Sociolinguística.

Precursor do Estruturalismo, Saussure (2006) definia a língua por oposição à

fala. Para ele, a língua, como sistema subjacente a toda manifestação, toda

variação, seria o verdadeiro objeto da Linguística; a fala, por sua vez, justamente por

seu caráter variável, seria objeto de outras disciplinas - que viriam, mais tarde, ser

denominadas de Linguística Externa. Assim, o interesse de Saussure era

essencialmente o espectro formal e estrutural do fenômeno linguístico, visto que a

variação, em seu ponto de vista, seria resultado do uso arbitrário e irregular que os

falantes fazem da língua. Numa visão estruturalista, do uso linguístico adviriam as

chamadas variantes livres, que não teriam tanta relevância para o estudo formal da

língua, uma premissa que demonstra bem que nessa abordagem opta-se por não

levar em consideração a influência da sociedade sobre a língua.

Contrapondo a corrente estruturalista em diversos aspectos, a

Sociolinguística, que vem a ser uma subárea da Linguística, sustenta que é

determinante o papel da sociedade sobre a língua, e mais ainda sobre a variação.

Essa outra corrente dos estudos linguísticos, como argumenta Mollica (2004, p. 12),

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vem provar, por exemplo, “como é equivocado o conceito estruturalista de variantes

livres, ao ser demonstrado que a variação é estruturada de acordo com as

propriedades sistêmicas das línguas e se implementa porque é contextualizada com

regularidade”. Nesse sentido, como bem observa Camacho (2001), a

Sociolinguística vem trabalhar com a ideia de que seria mesmo estranho que a

variação não fosse uma das mais significativas propriedades das línguas naturais,

uma vez que elas de fato consistem em sistemas organizados de forma e conteúdo.

Como área mesmo de estudo e pesquisa, a Sociolinguística surgiu na década

de 60 do século XX, com uma origem marcadamente interdisciplinar. Segundo

Alkmim (2001), o termo sociolinguística aparece pela primeira vez em um congresso

organizado por William Bright na Universidade da Califórnia, EUA, do qual

participaram estudiosos de diferentes áreas que se interessavam pela questão da

relação entre linguagem e sociedade. A definição e caracterização da nova área de

estudo foram feitas por William Bright em um texto intitulado “As Dimensões da

Sociolinguística”, que introduzia a obra que reuniu os trabalhos apresentados no

referido congresso. Ele apresentava como proposta da área a demonstração da

correlação sistêmica entre variação linguística e social.

De acordo com Pagotto (2006), as abordagens sob o rótulo de sociolinguística

possuem em comum, entre outros, um traço fundamental: todas elas pressupõem a

autonomia do sistema linguístico, para, somente em seguida, proporem a inter-

relação com o mundo social. Segundo ele, a Sociolinguística, de modo geral,

trabalha com a ideia de que o sistema linguístico tem um funcionamento próprio que

independe do mundo social, embora a ele se submeta. Apesar de parecer uma ideia

contraditória a visão de língua que a própria Sociolinguística sustenta, o autor

esclarece que a pressuposição da existência e da autonomia do sistema linguístico é

uma condição essencial para se compreender, por exemplo, como a estrutura

linguística se engendra na estrutura social, o que é sem dúvida uma das grandes

missões dessa corrente linguística.

Em termos metodológicos, a Sociolinguística busca lugares de intersecção

entre o mundo social e a dimensão linguística, podendo essas intersecções ser

definidas ou a partir do funcionamento social ou a partir do funcionamento

linguístico. As diferentes abordagens que são rotuladas como sociolinguística são

estabelecidas normalmente a partir do lugar que privilegiam para as intersecções

entre língua e sociedade, de modo que se pode distinguir três áreas, a saber: a

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Sociologia da Linguagem, a Teoria da Variação e Mudança e a Etnografia da Fala

(também chamada de Etnografia da Comunicação); cada uma delas focando em

determinados aspectos da relação entre língua e sociedade (Pagotto, 2006).

Denominada também de macrossociolinguística, a Sociologia da Linguagem,

segundo Wardhaugh (2006), tem como objetivo descobrir de que maneira a

estrutura social pode ser mais bem entendida por meio do estudo da língua, isto é,

entender a maneira como certos aspectos linguísticos servem para caracterizar

arranjos sociais específicos. O autor destaca, nesse sentido, que os estudos dessa

abordagem procuram entender o que as sociedades fazem com suas línguas,

abrangendo assim questões como atitudes linguísticas, a distribuição funcional das

formas de fala na sociedade, manutenção e mudança linguísticas, a delimitação e

interação entre comunidades linguísticas, entre outras. Pesquisadores como John

Fishman e Pierre Bourdieu são considerados grandes pilares dessa abordagem que

estuda a sociedade em relação à língua.

Às outras duas abordagens da Sociolinguística – A Teoria da Variação e

Mudança e a Etnografia da Fala – atribui-se a denominação de

microssociolinguística. A identidade de ambas, conforme Pagotto (2006, p. 52),

reside no fato de que elas “estão mais interessadas no funcionamento linguístico,

propriamente, isto é, interessam-se primordialmente pelo funcionamento da língua e

como este é afetado pela sua relação com a sociedade”. A distinção entre uma

abordagem e outra, no entanto, está no fenômeno que cada uma elege para

investigação e no tipo de questão feita ao se empreender a pesquisa.

Um dos objetivos primordiais da Teoria da Variação e Mudança – ou

Sociolinguística Quantitativa, como também é conhecida – é descrever e explicar

como o sistema linguístico, em seus aspectos gramaticais, é afetado pelas relações

com a sociedade. Para tanto, os estudos dessa abordagem normalmente se valem

de tópicos da estrutura e da evolução da língua, se ocupando assim, de acordo com

Elia (1987, p. 40), “do estudo de possível incidência das forças sociais sobre os

estratos fonológico, morfológico, sintático e semântico das línguas”.

Dentro da Sociolinguística Quantitativa, a variação das línguas humanas pode

ser explicada por parâmetros linguísticos e extralinguísticos. No que diz respeito aos

parâmetros extralinguísticos, Labov (1963) defende que fatores como idade, sexo,

ocupação, origem étnica e atitude podem ser relacionados à variação linguística, o

que ele comprova ao estudar o comportamento linguístico de moradores da ilha de

20

Martha’s Vineyard, no litoral de Massachusetts, EUA. Em relação aos parâmetros

linguísticos, Mollica (2004) aponta que a variação linguística também pode ser

explicada a partir de fatores relacionados à própria língua, em suas dimensões

fonológica, morfológica, sintática, semântica, lexical e até discursiva.

A Etnografia da Comunicação, por sua vez, é a abordagem da

microssociolinguística na qual, segundo Fasold (1990), o uso da língua em geral é

relacionado a valores de ordem sociocultural. Pagotto (2006) defende que dentro

dessa abordagem, hoje, pode-se incluir também a chamada Sociolinguística

Interacional. Segundo ele, os estudos desenvolvidos nessa área buscam chegar a

uma competência comunicativa dos falantes por meio da descrição de cenas

enunciativas capazes de revelar a maneira como uma comunidade se organiza.

Nesse caso, um dos principais objetivos é o conhecimento das regras sociais que

determinam o emprego das formas linguísticas dentro do funcionamento social da

comunidade.

Tanto as abordagens micro quanto a macro da Sociolinguística defendem

uma ideia que é chave para a área, de modo específico, e para a Linguística, de

modo mais amplo: a diversidade linguística é uma qualidade constitutiva das línguas

humanas. Assim, os estudos sociolinguísticos têm primado, sobretudo, por uma

ruptura com uma visão monolítica da língua e, consequentemente, têm destacado o

papel decisivo da sociedade sobre a língua.

1.1 A Etnografia da Comunicação: o que é

Até os anos 60 do século XX, aspectos verdadeiramente importantes da

relação entre língua, cultura e sociedade eram apenas perifericamente enfocados

por áreas como a Antropologia e a Linguística. Havia, de um lado, os estudos

etnográficos da Antropologia, que se concentravam em diferentes aspectos das

culturas (sobretudo, das chamadas culturas exóticas), tais como o sistema de

parentesco ou a visão de medicina e cura dos indígenas, estudando, assim, a língua

apenas subsidiariamente. De outro lado, havia os estudos linguísticos que, por sua

vez, concentravam sua atenção na língua como um sistema abstrato, descrevendo e

explicando, por exemplo, as estruturas de sentenças que os falantes de determinada

língua aceitavam como gramaticais, como bem formadas. Em um cenário como esse

21

em que os etnógrafos se interessam essencialmente pelos padrões e estruturas da

vida sociocultural e os linguistas, pela estrutura das línguas como códigos abstratos,

perdia-se de vista importantes questões relacionadas à comunicação humana.

Atentando para os aspectos da comunicação que escapavam aos trabalhos

dos linguistas e dos antropólogos, Dell Hymes, a partir dos anos 60, começa a

destacar o fato de que os usos da língua em diferentes sociedades possuem seus

próprios padrões, que podem, inclusive, ser comparados com padrões da

organização social e com outros domínios da cultura. Estavam, portanto, lançadas

as bases de uma nova disciplina, a Etnografia da Comunicação, cuja gênese é

assim descrita por Saville-Troike (2003, p. 1, tradução nossa):

Com a publicação de seu ensaio “A Etnografia da Fala”, em 1962, Hymes lança uma nova disciplina síntese que focaliza no padrão de comportamento comunicativo, em como ele constitui um dos sistemas da cultura, em como ele funciona dentro do contexto holístico da cultura, e em como ele se relaciona como outros componentes dos sistemas da cultura. A etnografia da comunicação, como a área veio a ser conhecida desde a publicação do volume da revista American Anthropologist com esse título (Gumperz e Hymes, 1964), mobilizou (e influenciou mutuamente) preocupações sociológicas com a análise interacional e a identidade de papéis sociais; o estudo de performance por folcloristas antropologicamente orientados, e o trabalho de filósofos da linguagem. Combinando linhas de interesse e orientações teóricas variadas, a etnografia da comunicação emergiu como disciplina, considerando um conjunto grande de informações para explicar a estruturação do comportamento comunicativo e seu papel na condução da vida social.

1

Nesse sentido, como destaca Fasold (1990), a Etnografia da Comunicação

surge para preencher uma lacuna, de modo a adicionar a fala ou, de modo mais

abrangente, a comunicação à lista de possíveis tópicos de descrição etnográfica dos

antropólogos, bem como a expandir os estudos da Linguística, uma vez que o foco

de interesse deixa de ser apenas a estrutura abstrata da sintaxe, da fonologia e da

1 “With the publication of his essay “The ethnography of speaking” in 1962, Hymes launched a

synthesizing discipline which focuses on the patterning of communicative behavior as it constitutes one of the systems of culture, as it functions within the holistic context of culture, and as it relates to patterns in other component systems. The ethnography of communication, as the field has come to be known since the publication of a volume of the American Anthropologist with this title (Gumperz and Hymes 1964), has in its development drawn heavily upon (and mutually influenced) sociological concern with interactional analysis and role identity, the study of performance by anthropologically oriented folklorists, and the work of natural-language philosophers. In combining these various threads of interest and theoretical orientation, the ethnography of communication has become an emergent discipline, addressing a largely new order of information in the structuring of communicative behavior and its role in the conduct of social life.”

22

semântica. Desse modo, a Etnografia da Comunicação vem a contribuir para um

alargamento do escopo da Linguística, visto que o interesse passa a estar também

na maneira como os falantes de fato usam as chamadas estruturas abstratas.

Sendo de ordem etnográfica, os estudos desenvolvidos nessa abordagem da

Sociolinguística são baseados, portanto, essencialmente na observação do

comportamento de um grupo de pessoas em seu ambiente natural. Os

pesquisadores dessa área normalmente descrevem o que consideram relevante

entre os fatos e fenômenos que se desenvolvem ao seu redor. Uma descrição que

leva em conta fatores como a organização social, o conjunto das atividades sociais,

os recursos materiais e simbólicos, as práticas interpretativas e as características de

um grupo específico de pessoas (Wardhaugh, 2006). Em se tratando

especificamente da Etnografia da Comunicação, o foco é ainda mais direcionado

para o uso da língua e para o próprio processo comunicativo, como práticas culturais

mesmo.

Como o que a língua é não pode ser separado de como e por que ela é

usada, a pesquisa etnográfica tem a vantagem de possibilitar um entendimento

holístico da língua e da comunicação em uma dada comunidade. Isso é possível,

sobretudo, porque essa abordagem toma a língua como uma manifestação cultural

socialmente situada e como um dos aspectos constitutivos da própria cultura.

Justamente por operar a pesquisa considerando tais pressupostos é que a

Etnografia da Comunicação pode, como defende Hymes (1974), oferecer um quadro

de referência dentro do qual o lugar da língua na cultura e na sociedade podem ser

acessados, permitindo vislumbrar questões como: os limites da comunidade em que

uma comunicação é possível, os limites das situações em que a comunicação

ocorre, os meios, propósitos e padrões de seleção, sua estrutura e hierarquia, entre

outros.

Nessa direção, pode-se afirmar que o principal assunto da Etnografia da

comunicação é a competência comunicativa, ou seja, o conjunto de conhecimentos

e habilidades que um falante precisa dispor para se comunicar apropriadamente

dentro de uma comunidade de fala. Desse modo, o foco dessa abordagem está nas

comunidades organizadas como sistemas de eventos comunicativos, relacionados

com todos os outros sistemas da cultura, ou seja, o foco está nas comunidades de

fala existentes numa dada sociedade.

23

O trabalho do etnógrafo da comunicação é, portanto, principalmente coletar e

analisar dados descritivos relacionados aos modos pelos quais o significado social é

transmitido. Através da descrição de como a fala e outros canais de comunicação

são usados pelas diversas comunidades, intenta-se descobrir quais informações do

sistema social e mesmo cultural estão contidas nas mais variadas formas de

comunicação que os falantes lançam mão. É um trabalho, então, que parte de

modos e funções de linguagem específicos, a fim de entender a linguagem humana

de um modo geral.

1.1.1 Comunidade de Fala

Para a pesquisa em Etnografia da Comunicação uma questão de grande

importância é a unidade social ou o local de descrição da fala, da comunicação. Em

linhas gerais, para os etnógrafos dificilmente essa não é uma questão problemática,

uma vez que eles costumam conduzir seus trabalhos de pesquisa e análise

considerando as chamadas unidades sociais, o que corresponde em geral ao local

de descrição etnográfica (uma tribo, um grupo étnico, uma área geográfica

ecologicamente delimitada, uma vila, etc.).

Alguns aspectos da problemática que envolve o local ou unidade de descrição

etnográfica da fala, da comunicação são fundamentais para o quadro conceitual

dessa abordagem. Um dos aspectos mais importantes, segundo Bauman e Sherzer

(1975), é que, independente de qual seja, o locus da pesquisa deve ser concebido

fundamentalmente como uma organização de diversidade, na medida em que o

acesso aos recursos linguísticos, bem como os conhecimentos e habilidades para a

produção verbal são distribuídos de modos distintos entre os membros de uma

unidade social. De acordo com os autores, essa é a única perspectiva consistente

com uma linha de pesquisa que tem parte substancial de seu foco na etnografia de

eventos e que toma como um de seus pontos de partida fundamentais a diversidade

de recursos para a fala em qualquer unidade social.

Na Etnografia da comunicação, desse modo, não se concebe uma

comunidade de fala como uma unidade homogênea, o que contraria a visão

tradicional e idealizada que tende a associar de modo estrito uma língua a uma

sociedade. Apesar de não haver dentro dessa abordagem uma única definição para

comunidade de fala, pode-se afirmar que todas as existentes consideram seu

24

caráter heterogêneo e, de modo geral, seguem o critério usado comumente pelas

Ciências Sociais para definir comunidade, qual seja, o compartilhamento de

conhecimentos, de posses ou de comportamentos. Nesse sentido, a depender do

que exatamente se considere que seja compartilhado pelos membros de um grupo,

chegar-se-á a diferentes definições de comunidade de fala.

Focando no compartilhamento de um determinado uso da língua, Gumperz

(1968) define comunidade de fala como sendo qualquer agregado humano

caracterizado pela interação regular e frequente através de um conjunto de signos

verbais. Assim, destacando a frequência das interações sociais e dos padrões

comunicativos que um determinado grupo social apresenta, a definição dada pelo

autor é construída em termos dos recursos e regras que se sobrepõem e se

complementam mutuamente para a produção e interpretação de uma fala

socialmente apropriada.

O foco para a definição de comunidade de fala pode também estar no

compartilhamento de princípios e regras básicas de interação, no compartilhamento

de valores e atitudes em relação às formas e usos linguísticos, no compartilhamento

de entendimentos e pressuposições em relação à fala, entre outros. É preciso dizer,

no entanto, que em meio à diversidade de critérios usados pelos etnógrafos da

comunicação, o compartilhamento, entre os membros de um determinado grupo, dos

modos de usar, avaliar e interpretar a língua é tido como um dos critérios mais

importantes para a delimitação de uma comunidade de fala.

A negação do critério homogeneidade para a caracterização de comunidade

de fala, no quadro da Etnografia da Comunicação, diz respeito também ao fato de

que muitos dos grupos sociais não são entidades estáticas, que contém sempre os

mesmos membros, sobretudo em sociedades complexas, nas quais há uma maior

permeabilidade de papéis sociais. Saville-Troike (2003) discute essa questão,

apontando para o fato de que os indivíduos podem participar do que ela nomeia de

comunidades de fala sobrepostas (overlapping communities), do mesmo modo que

eles participam de uma variedade de ambientes sociais.

Por esse viés, uma pessoa pode ser um vereador na Câmara Municipal, um

estudante numa universidade, um professor numa escola e um secretário em uma

associação, tudo ao mesmo tempo. Cada uma dessas “comunidades de fala” pode

ter pelo menos algumas regras de comunicação distintas. Alguma dessas

comunidades de fala pode inclusive ser diferente pela adição de uma regra especial

25

de fala. Pode haver uma série de termos e expressões verbais próprias da Câmara

Municipal, cujo uso não seria adequado, por exemplo, na escola ou na universidade.

Em outro caso, pode ainda haver regras de uma comunidade que podem ser

conflitantes com as de outras. O nível de monitoração estilística empregado em um

discurso na Câmara Municipal de Vereadores, por exemplo, dificilmente será

empregado numa interação entre os colegas de classe na universidade ou entre os

membros da associação.

A noção de comunidades de fala sobrepostas (overlapping communities) traz

em seu cerne a ideia de que não é necessário que cada falante pertença a apenas

uma comunidade de fala ou ainda a duas ou mais comunidades de fala que sejam

completamente diferentes. Em verdade, um indivíduo pode normalmente ser

membro de várias comunidades de fala ao mesmo tempo. A esse respeito é

interessante a seguinte observação feita por Saville-Troike (2003, p. 17, tradução

nossa):

(…) Para entender esse fenômeno, é necessário reconhecer que cada membro de uma comunidade tem um repertório de identidades, e cada identidade em um dado contexto é associada com um número de formas apropriadas de expressão verbal e não verbal. É portanto essencial identificar as categorias sociais reconhecidas em uma comunidade, de modo a determinar como elas são refletidas linguisticamente, e como elas definem e reprimem a interação interpessoal nas situações comunicativas.

2

Uma interessante variante da noção de comunidade de fala como unidade

social básica para as pesquisas em Etnografia da Comunicação é a de comunidade

de prática. Esse construto é definido por Eckert e McConnel-Ginet (1998) como

sendo um agregado de pessoas que se reúnem em torno de um engajamento mútuo

em algum esforço comum. Da atividade conjunta em torno desse esforço, segundo

as autoras, emergem maneiras de realizar tarefas, modos de falar, crenças, valores,

relações de poder, em suma, práticas. Eckert e McConnel-Ginet (1998) explicam que

o que diferencia a comunidade de prática, como sendo um construto social, da

noção tradicional de comunidade é o fato de que a primeira é definida ao mesmo

tempo pelos seus membros e pelas práticas nas quais eles se engajam e, também, 2 “To understand this phenomenon, it is necessary to recognize that each member of a community

has a repertoire of social identities, and each identity in a given context is associated with a number of appropriate verbal and nonverbal forms of expression. It is therefore essential to identify the social categories recognized in a community in order to determine how these are reflected linguistically, and how they define and constrain interpersonal interaction in communicative situations.”

26

o fato de que são as práticas da comunidade e a participação diferenciada dos

membros nessas práticas que determinam sua estrutura social.

De acordo com Eckert e McConnel-Ginet (1998), uma comunidade pode ser

pessoas trabalhando juntas numa fábrica, um grupo de brincadeiras da vizinhança,

uma família, etc.. Essas comunidades, elas dizem, podem ser grandes ou pequenas,

intensas ou difusas; podem nascer e morrer; podem continuar existindo mesmo com

a mudança de membros; elas podem também ser intimamente articuladas com

outras comunidades. As autoras argumentam que os indivíduos normalmente

participam de múltiplas comunidades de prática e que a identidade individual é

baseada na multiplicidade de participação.

Levando em consideração tanto a noção de comunidades de fala sobrepostas

(overlapping communities) quanto a de comunidade de prática, o importante é notar

o interesse e o esforço que as pessoas comumente fazem para poderem se

identificar, em uma ocasião, como membros de um grupo e, em outra, como

membros de um outro grupo. A variação intraindividual, nesse sentido, pode ser

apontada como uma das consequências desse processo de identificação com as

diferentes comunidades de que o indivíduo participa. Assim, em certo sentido, a

variação no uso linguístico pode ser explicada pela necessidade que as pessoas têm

de identificarem com ou de se diferenciarem de um dado grupo de referência.

O processo de identificação linguística de um indivíduo com uma dada

comunidade tem relação em boa medida com um conceito também importante em

se tratando de comunidade de fala: o repertório de fala. Como explica Wardhaugh

(2006), cada indivíduo possui seu próprio repertório de fala, ou seja, controla um

número de variedades de uma língua ou de duas ou mais línguas. Muitos indivíduos

podem inclusive ter repertórios virtualmente idênticos. Nesse caso, pode-se afirmar

que é o repertório de fala que o falante tem à sua disposição um dos mais

importantes aspectos de sua inserção numa comunidade de fala como um de seus

efetivos membros.

Repertório de fala é um conceito que, segundo Wardhaugh (2006), pode ser

aplicado tanto a indivíduos quanto a grupos. Quando relacionado a indivíduos, diz

respeito à competência linguística de determinado falante, ou seja, ao conjunto de

variedades linguísticas que um falante específico tem à sua disposição. Quando

relacionado a grupos, diz respeito ao conjunto de variedades linguísticas utilizadas

por uma comunidade de fala. Nessa perspectiva, conforme o autor, cada indivíduo

27

possui seu próprio repertório verbal distinto, e cada comunidade de fala em que ele

participe tem também seu repertório de fala distinto.

Ao passar por cada um desses conceitos que estão relacionados à noção de

comunidade de fala, pode-se perceber o quanto ainda é complicado chegar a uma

definição precisa. Talvez a própria dificuldade que os estudos sociolinguísticos têm

de caracterizar a fala num nível individual acarrete também a dificuldade de se

precisar o que vem a ser a língua de indivíduos em conjunto, ou seja, de se

caracterizar uma comunidade de fala. O que se pode apontar, com base nos

estudos desenvolvidos pela Etnografia da Comunicação, é que o que de fato há é

uma diversidade de tipos de comunidades de fala espalhadas por todo o mundo, e

que sua definição e a delimitação de suas fronteiras são mesmo desafios

constantes, que exigem, inclusive, um estudo empírico bem cuidadoso.

1.1.2 Competência Comunicativa

Como uma matéria de grande importância para a Etnografia da Comunicação,

a competência comunicativa envolve não apenas o conhecimento de como usar o

código linguístico, mas, sobretudo, o conhecimento de como usá-lo em situações

específicas. Abarcando também um conhecimento social e cultural, o conceito de

competência comunicativa é, na verdade, uma ampliação proposta por Hymes

(1972a) da noção de competência linguística de Chomsky, de modo a incluir na

análise da língua (e de outras formas de comunicação) a consideração do que é

formalmente possível, do que é viável, do que é apropriado e do que é realmente

realizado.

Na teoria gerativo-transformacional, Chomsky (1965) propõe uma dicotomia

entre competência e desempenho (performance). A competência linguística, nessa

teoria, consiste no conhecimento tácito que os falantes têm da estrutura da língua e

que lhe permite produzir e compreender um número infinito de sentenças e,

inclusive, reconhecer as sentenças gramaticalmente bem formadas. O desempenho

linguístico (performance), por sua vez, consiste no uso real da língua em situações

concretas.

Em sua crítica à teoria ckomskiana, Hymes (1972a) argumenta que o conceito

de competência linguística, em sua relação com o de desempenho, deixa de

considerar questões importantes como a variação da língua e, por conseguinte, seu

28

significado sociocultural, sob a alegação de que para uma teoria mentalista da língua

esses aspectos não seriam relevantes. Desse modo, ele propõe o conceito de

competência comunicativa, que, em seu ponto de vista, abrange, além do

conhecimento gramatical, outros conhecimentos que na teoria de Chomsky eram

agrupados no conceito de desempenho, como é o caso da viabilidade e da

adequação, entre outros. Assim, como bem resume Gumperz (1972), enquanto a

competência linguística cobre a habilidade dos falantes de produzir sentenças

gramaticalmente corretas, a competência comunicativa descreve sua habilidade

para selecionar, de uma totalidade de expressões gramaticalmente corretas

disponíveis para ele, formas que reflitam apropriadamente as normas sociais que

governam o comportamento em encontros específicos.

Quando se afirma que no conceito de competência comunicativa os

componentes social e cultural estão presentes é porque se considera que, sempre

que um falante se insere numa situação de comunicação, ele mobiliza consigo um

conjunto de conhecimentos e habilidades sociais e culturais, em sentido simbólico.

Sendo a língua um dos sistemas simbólicos constitutivos do sistema cultural de uma

sociedade, é, portanto, inegável que o uso linguístico influencie e seja influenciado

pelos diversos elementos culturais.

Nesse sentido, pode-se afirmar que todos os aspectos da cultura são

relevantes para a comunicação, com um especial destaque para a estrutura social,

os valores e atitudes em relação à língua e seus usos, a rede de categorias

conceituais resultantes da experiência acumulada, entre outros. Não é por acaso

que uma parcela considerável dos usos linguísticos e dos modos de interpretação

considerados contextualmente apropriados tem sua explicação no conhecimento

cultural compartilhado. Um exemplo disso é o fato de que muitos dos elementos do

código linguístico somente podem emergir do próprio processo interativo, o que

exige dos interlocutores um constante esforço no sentido de integrar as

características do código linguístico em uso a outros conhecimentos e habilidades

culturais, de modo a poder levar a cabo satisfatoriamente o processo comunicativo.

Considerando a natureza da competência comunicativa, Saville-Troike (2003)

propõe uma distinção entre as dimensões produtiva e receptiva dessa competência

e defende que apenas a competência receptiva compartilhada é necessária para

uma comunicação bem sucedida. Segundo ela, o conhecimento das regras para um

comportamento comunicativo apropriado engloba o entendimento de uma ampla

29

gama de formas linguísticas, porém não necessariamente a habilidade de produzi-

las. Os membros de uma mesma comunidade, explica a autora, podem entender

variedades de uma língua que diferem entre si sob aspectos como classe social,

região, sexo, idade e ocupação do falante, mas bem poucos serão capazes de falar

todas elas.

Para esclarecer quais conhecimentos compartilhados estão envolvidos em

uma comunicação apropriada, Saville-Troike (2003) apresenta uma lista que inclui

habilidades linguísticas, interacionais e culturais, e que pode, inclusive, ser levada

em conta ao se descrever e explicar adequadamente a competência comunicativa

de determinado falante:

1. Conhecimento linguístico:

a) Elementos verbais;

b) Elementos não verbais;

c) Padrões dos elementos em eventos de fala específicos;

d) Conjunto de possíveis variantes (em todos os seus elementos e sua

organização);

e) Significado das variantes em situações específicas.

2. Habilidades interacionais:

a) Percepção das características relevantes das situações comunicativas;

b) Seleção e interpretação das formas apropriadas a situações

específicas, a papéis sociais específicos e a relações específicas

(regras para o uso da fala);

c) Organização discursiva e processos discursivos;

d) Normas de interação e interpretação;

e) Estratégias para se alcançar objetivos.

3. Conhecimento cultural:

a) Estrutura social (status, poder, direitos de fala);

b) Valores e atitudes;

30

c) Esquemas cognitivos;

d) Processos de enculturação (transmissão de conhecimentos e

habilidades).

É preciso destacar que na perspectiva da Etnografia da Comunicação todos

os itens listados acima como componentes da competência comunicativa referem-se

em geral a conhecimentos e habilidades compartilhados por uma comunidade de

fala. Cada membro de determinada comunidade normalmente exibe níveis variáveis

de cada um desses itens e isso é um definidor de sua competência comunicativa

individual. Assim, uma vez que um indivíduo geralmente não é membro de apenas

uma comunidade e que cada comunidade estabelece seu próprio conjunto de regras

sociais e comunicativas, essa competência comunicativa em nível individual se

apresentará em graus diferentes a depender da comunidade de fala na qual ele

esteja inserido em dado momento. Isso estará refletido, portanto, no conhecimento

linguístico que o falante será capaz de selecionar e satisfatoriamente utilizar, nas

habilidades de interação que ele estará apto a empregar, bem como nos aspectos

do conhecimento cultural que ele será capaz de ativar. Assim, como afirma Saville-

Troike (2003), o que um indivíduo precisa realmente saber e quais habilidades ele

necessitará dependerá sempre do contexto social dentro do qual ele esteja usando a

língua e para quais propósitos estejam direcionados esses usos.

Nessa direção, é interessante pontuar os quatro questionamentos propostos

por Hymes (1972a) quando da elaboração de sua teoria da competência

comunicativa. O primeiro questionamento colocado pelo autor para se descrever e

explicar o comportamento cultural de modo geral, e linguístico-comunicativo, de

modo específico, é se esse comportamento é formalmente possível, o que em

matéria de língua, por exemplo, diz respeito à gramaticalidade, à possibilidade

formal de existência. O segundo questionamento é se o comportamento é viável, ou

seja, se fatores como limitação da memória, recursos perceptuais, ou mesmo, como

acrescenta Bortoni-Ricardo (2006), o conjunto dos recursos linguísticos à disposição

dos falantes permitem a viabilização de determinado comportamento verbal, por

exemplo. O terceiro questionamento proposto por Hymes (1972a) é se um dado

comportamento é adequado, o que implica a consideração das características do

contexto, ou seja, a consideração da esfera social na qual se dá determinada ação,

inclusive a verbal. O quarto questionamento sugerido para se analisar a

31

competência comunicativa é se um dado comportamento é de fato realizado, isto é,

a avaliação de sua ocorrência efetiva.

Quando propõe a ampliação da noção de competência linguística de

Chomsky para a noção de competência comunicativa, Hymes (1972a) nega

prontamente a ideia de um falante-ouvinte ideal em uma comunidade de fala

homogênea, defendendo que a heterogeneidade deve ser sempre considerada no

estudo da língua. Por esse ponto de vista, sendo a heterogeneidade umas das

características das comunidades de fala, têm-se que a competência comunicativa é

mesmo uma competência plural do indivíduo, que envolve, sobretudo, a consciência

das diferenças de uso e a habilidade de adaptar suas estratégias comunicativas à

gama variável de situações socioculturais nas quais ele possa se encontrar.

1.2 A Etnografia da Comunicação: como se faz

Para a análise e descrição do comportamento linguístico dentro de uma

comunidade de fala é preciso lidar com unidades de interação, ou seja, com

atividades comunicativas que possuem limites identificáveis. Hymes (1972b) sugere

que três unidades são úteis para a pesquisa sociolinguística: a situação de fala, o

evento de fala e o ato de fala. Três unidades que, como bem observa Fasold (1990),

são hierarquicamente imbricadas, no sentido de que os atos de fala são partes de

eventos de fala, que, por sua vez, são partes de situações de fala.

Situação de fala é definida por Hymes (1972b) como a situação associada

com (ou marcada pela ausência de) fala. Cerimônias, refeições, caças, entre outros,

são exemplos dados pelo autor. Ele destaca que as situações de fala, de modo

geral, não são puramente comunicativas; podem ser compostas tanto por eventos

comunicativos como por outros tipos de evento. As situações de fala, nesse caso,

não são necessariamente sujeitas às regras de fala, mas podem ser tomadas como

o contexto dentro do qual tais regras são estabelecidas. Saville-Troike (2003) chama

a atenção para o fato de que a situação pode permanecer a mesma, ainda que a

locação seja alterada, como quando uma reunião de comitê acontece em contextos

diferentes; ou pode ser mudada, se atividades muito diferentes acontecem na

mesma locação, em momentos diferentes. A mesma sala de uma universidade, por

exemplo, pode servir sucessivamente como o local de uma conferência, de uma

reunião de comitê ou de uma aula prática.

32

Evento de fala, de acordo com Hymes (1972b), é um termo que se refere

restritamente a atividades ou aspectos de atividades governadas diretamente por

regras ou normas de uso da fala. Como a unidade básica para propósitos

descritivos, um evento de fala pode ser definido por um conjunto unificado de

componentes, do começo ao fim, começando com o mesmo propósito de

comunicação geral, com o mesmo tópico, evolvendo os mesmos participantes,

geralmente usando a mesma variedade linguística, o mesmo tom emocional, as

mesmas regras de interação, no mesmo ambiente. Uma mudança na maioria dos

participantes, na relação entre os papéis ou no foco de atenção, ou mesmo em

outros aspectos, geralmente indica o término de um evento. A fronteira entre os

eventos de fala frequentemente são marcados por um período de silêncio e talvez

uma mudança na posição do corpo (Saville-Troike, 2003).

É parte fundamental da pesquisa em Etnografia da Comunicação o

reconhecimento e a classificação dos eventos de fala existentes numa dada

comunidade. Alguns desses eventos já são designados por diferentes rótulos na

linguagem e podem ser identificados como categorias de interação; outros, porém,

não são nitidamente diferenciados. Inventariar tanto um tipo quanto outro de evento

de fala é, portanto, uma das principais tarefas do etnógrafo.

Ato de fala, a terceira unidade de interação considerada, é, segundo Fasold

(1990), ao mesmo tempo, o nível mais simples e mais problemático. Ele argumenta

que é o mais simples, porque é a unidade mínima; e que é o mais problemático,

porque nos estudos da Etnografia da Comunicação tem um significado ligeiramente

diferente do que tem na Pragmática e na Filosofia, e também porque, em última

análise, ele não parece ser assim tão mínimo. Como Hymes (1972b) explica, um ato

de fala se distingue de uma sentença e não pode ser identificada com nenhuma

outra unidade ou nível da gramática. Um ato de fala pode assumir formas diversas,

que vão desde uma única palavra até longas sentenças, e se caracteriza como tal a

partir do contexto social, da forma gramatical e da entonação. Nesse sentido, todas

as expressões a seguir (com diferentes formas gramaticais, diferentes entonações e

inseridas em diferentes contextos) podem todas elas ser consideradas como o ato

de fala comando: “Eu ordeno que você saia dessa casa”, “Você se importaria de se

retirar?” e “Fora!”.

Geralmente um ato de fala corresponde a uma função interacional específica

como uma afirmação referencial, uma ordem, um pedido, etc., e pode variar

33

consideravelmente de forma. Saville-Troike (2003) afirma que no contexto de um

evento de comunicação até o silêncio pode ser um ato de comunicação

convencional e intencional e assim ser usado como uma pergunta, uma promessa,

uma negação, um insulto, entre outros. Ela afirma ainda que um mesmo

comportamento pode ou não constituir um ato comunicativo em diferentes

comunidades de fala.

É ilustrativo um dos exemplos apresentados por Saville-Troike (2003) para as

três unidades de interação. Ela classifica o serviço religioso cristão como uma

situação de comunicação, que inclui os seguintes eventos comunicativos, seguindo

uma ordem:

1. Chamada para a adoração

2. Leitura das escrituras

3. Oração

4. Proclamação

5. Sermão

6. Benção

Especificamente dentro do evento classificado como “oração”, a sequência de

atos comunicativos, segundo a etnógrafa, inclui: o chamamento, o louvor, a súplica,

o agradecimento e a fórmula final.

Além de sugerir que o estudo etnográfico leve em conta unidades como

situação de fala, evento de fala e ato de fala, Hymes (1972b) também sugere que,

ao se debruçar especificamente sobre um evento de fala, levem-se em conta todos

os seus fatores relevantes. Apesar de existir mais de oito fatores, ele reúne-os em

oito grupos, cada um deles representando uma das letras da palavra SPEAKING,

um acrônimo que, apesar de ser declaradamente apenas uma conveniência

mnemônica, mostra-se de grande utilidade para a descrição etnográfica. Assim têm-

se destaque fatores como a situação, os participantes, os propósitos do evento de

fala, a sequência dos atos de fala, o tom emocional dos atos de fala, os

instrumentos, as normas e os gêneros (situation, participants, ends, act sequence,

key, instrumentalities, norms, genres)

A situação (S) é composta dos fatores setting e scene. O setting se refere ao

tempo e lugar em que o evento acontece, ou seja, refere-se às circunstâncias físicas

34

concretas do evento comunicativo. O scene, por sua vez, refere-se ao ambiente

psicológico ou à definição cultural da ocasião. Uma fala pode se mostrar exemplar

para definir o scene, enquanto uma outra pode se mostrar completamente

inapropriada para determinadas circunstâncias. Dentro de um setting específico, os

participantes são de fato livres para alterar o scene, o que acontece quando se

muda o estilo linguístico ou mesmo quando se muda o tipo de atividade na qual

estão envolvidos.

O fator participante (P) inclui não apenas o falante e o ouvinte, mas também

outras combinações possíveis como remetente e destinatário, codificadores e

intérpretes, orador e auditório e mesmo escritor e leitores. As diferentes

combinações entre os participantes são geralmente definidas a partir dos papéis

sociais que cada um assume em determinada situação comunicativa. Nesse sentido,

é interessante atentar para o que destaca Saville-Troike (2003, p. 114, tradução

nossa):

Uma descrição adequada dos participantes inclui não apenas traços observáveis, mas também informação acerca da composição e da relação entre os papeis dentro da família e de outras instituições sociais, distinguindo características do ciclo de vida, e a distinção existente no grupo de acordo com sexo e status social. Uma análise de como os participantes são organizados em um evento é essencial para entender quais papeis eles estão assumindo um em relação ao outro, e como eles estão ativamente envolvidos na construção e performance de comunicação.

3

O ends (E) se refere aos propósitos de um evento comunicativo tanto em um

nível individual, já que cada participante numa ocasião específica tem seu objetivo

pessoal, quanto em um nível coletivo, já que os eventos em geral possuem objetivos

culturalmente definidos. Para distinguir esses dois tipos de propósitos de um evento

comunicativo, Wardhaugh (2006) cita o exemplo de um julgamento em um tribunal, o

qual, como ele explica, tem um reconhecido propósito social em vista, e, ao mesmo

tempo, objetivos pessoais diferentes para cada um dos participantes – o juiz, o

promotor, o júri, a defesa, o acusado e as testemunhas. 3 “An adequate description of the participants includes not only observable traits, but background

information on the composition and role-relationships within the family and other social institutions, distinguishing features in the life cycle, and differentiation within the group according to sex and social status. An analysis of how participants are organized in an event is essential to understanding what roles they are taking in the relation to one another, and how they are actively involved in the construction and performance of communication.”

35

O act sequence (A) se refere tanto à forma quanto ao conteúdo da mensagem

veiculada em um evento de comunicação. Esse fator diz respeito às palavras

precisamente usadas, a como elas são usadas e à relação entre o que é dito e o

tópico em questão. Diz respeito ainda à ordenação dos atos de fala dentro de um

evento. Como coloca Fasold (1990), a forma e o conteúdo da mensagem envolvem

habilidades comunicativas que variam de uma cultura para outra. Segundo esse

autor, os falantes precisam saber como formular eventos de fala e atos de fala da

maneira que sua cultura valoriza e saber também reconhecer o que está sendo

falado, quando um tópico muda e como gerenciar mudanças de tópico.

O key (K) refere-se ao tom emocional, ao espírito com que uma mensagem é

transmitida, se de modo sério, preciso, despreocupado, pedante, sarcástico,

pomposo e assim por diante. Geralmente associa-se determinado tom emocional a

determinado gênero (a uma piada, por exemplo, associa-se um tom alegre, jocoso),

porém essa não é uma relação necessariamente rígida (uma piada pode ter, em

alguns casos, um espírito sarcástico). Pode-se afirmar, também, que certos tons

emocionais são intimamente associados a outros fatores do evento comunicativo,

como o ambiente ou os participantes. Assim, por exemplo, há uma expectativa de

um tom solene em uma missa, por um lado, e de um tom alegre numa comédia

teatral, por outro. O Key de um evento de comunicação, na verdade, pode ser

sinalizado pela escolha da língua ou variedade, por sinais não verbais como o piscar

de olhos ou a postura, por características paralinguísticas, ou mesmo pela

combinação de todos esses elementos.

Os instrumentos dos eventos de comunicação (I) incluem os canais de

comunicação e as formas de fala. Os canais dizem respeito aos meios através dos

quais uma mensagem é transmitida, ou seja, se oral, escrito, telegráfico, etc.. As

formas de fala, por sua vez, dizem respeito aos recursos verbais de uma

comunidade de fala, isto é, às línguas e suas subdivisões – códigos, dialetos,

variedades e registros ou estilos.

As normas de interação e interpretação (N) referem-se ao sistema de regras

próprio de uma comunidade de fala, que permeia comportamentos específicos e

aspectos relacionados à fala. As normas de interação especificamente regulam, por

exemplo, as ações verbais que podem ou não ser interrompidas, a altura de voz

adequada a determinado evento, o arranjo dos turnos de fala, etc.. Elas implicam

uma análise da estrutura social e das relações sociais da comunidade de fala. As

36

normas de interpretação também são culturalmente estabelecidas e são

determinantes da competência comunicativa de um falante numa dada cultura.

Como Fasold (1990) diz, interpretar, no sentido colocado por Hymes, significa “ler

nas entrelinhas”, envolve o entendimento do que está além das palavras de fato

usadas. Apesar de erros de interpretação dos atos de fala entre membros de uma

mesma cultura ser possíveis de acontecer, é muito mais comum entre membros de

culturas diferentes.

Gênero (G), o último fator listado por Hymes (1972b), refere-se aos tipos de

enunciados claramente demarcados, como poemas, mitos, provérbios, oração,

editorial, dentre outros. De certo ponto de vista, analisar a fala em atos de

comunicação significa analisá-la em instâncias de gêneros. A noção de gênero

implica a possibilidade de identificar características formais tradicionalmente

reconhecidas. Hymes (1972b) argumenta que é heuristicamente importante proceder

como se toda fala fosse de certo modo composta por manifestações de gêneros.

Como argumenta o autor, a fala casual não deve ser tida como a ausência de

qualquer gênero, mas si como um gênero em sim mesma.

Hymes (1972b) defende que, apesar de gêneros frequentemente se

identificarem com eventos de fala, eles devem ser tratados como entidades

analiticamente diferentes, uma vez que um gênero de fala pode ocorrer em mais de

um tipo de evento de fala. O exemplo dado por ele é o de um sermão, que pode

mesmo ocorrer fora do contexto religioso, visando efeitos sérios ou humorísticos.

O fato de todos esses componentes – sumarizados por Hymes no acrônimo

SPEAKING – coocorrerem na execução de um evento de fala é uma demonstração

do quanto a interação é uma atividade complexa. Para que seja bem sucedido, um

evento de fala requer de seus participantes a sensibilidade e a consciência de todos

os seus componentes. Em verdade, normalmente os participantes se envolvem num

esforço conjunto para que nada dê errado nesse processo, o que nem sempre é

feito de modo consciente. É exatamente nesse cenário que o trabalho etnográfico se

desenvolve, exigindo, desse modo, do etnógrafo um cuidado e engajamento

compatíveis com a referida complexidade.

Ao longo dos últimos anos, um número considerável de trabalhos em

Etnografia da Comunicação foi realizado e muitos deles podem ser considerados

como excelentes modelos de como proceder diante da complexidade envolvida em

questões tão caras à área como comunidade de fala, competência comunicativa e

37

evento de comunicação. São pesquisas que têm como base uma observação

intensa e atenta a tudo que acontece numa dada situação (sobretudo pelo ponto de

vista de seus participantes); pesquisas que possuem os mais diversos focos e

objetivos, considerando sempre a linguagem e a comunicação como práticas

culturais.

Entre as notáveis pesquisas nessa abordagem da Sociolinguística, pode-se

citar os trabalhos de pesquisadores como Philips (2002) e Blom e Gumperz (2002),

cujos méritos se devem a, entre outras características, seu caráter holístico. No

trabalho de Philips, tem-se a descrição da comunidade de fala da reserva indígena

Warm Springs, no estado norte-americano de Oregon, com foco nas fontes e na

natureza da variabilidade cultural envolvida na ordenação da fala. Nesse estudo, a

pesquisadora compara a organização da conversa dos índios de Warm Springs com

a de anglo-americanos de classe média, concluindo pela existência de um conjunto

diferenciado de regras básicas que regulam a participação em cada uma dessas

comunidades. No trabalho de Blom e Gumperz, tem-se a descrição dos padrões de

fala de uma pequena cidade da Noruega, Hemnesberget. Os pesquisadores

apresentam uma cuidadosa análise dos traços específicos da fala e das relações

sociais subjacentes entre os falantes. Eles retratam a diversidade linguística de uma

comunidade bidialetal, estabelecendo uma distinção entre alternância situacional e

alternância metafórica. No primeiro caso, uma alternância em que a troca de códigos

é resultado de uma redefinição da situação social em curso, da mudança de papéis

sociais, por exemplo. No segundo caso, uma alternância em que a troca de códigos

não altera a situação social, mas a enriquece, permitindo, por exemplo, a alusão às

diferentes relações sociais que podem estar em curso num momento específico.

Tanto o trabalho de Philips quanto o de Blom e Gumperz são considerados pioneiros

e representativos dentro da Etnografia da Comunicação e mesmo da

Sociolinguística de modo geral.

Muitas outras pesquisas, desenvolvidas em diferentes comunidades de fala

pelo mundo, focam em aspectos os mais diversos, como o uso da linguagem em

culturas específicas, definidas a partir de aspectos como religião, idade, etnicidade e

outros; o uso da linguagem em determinados ambientes ou em determinadas

funções sociais; ou mesmo a descrição e análise de certos gêneros ou eventos

comunicativos.

38

A Etnografia da comunicação, como uma área que busca possibilitar a

compreensão da relação entre língua, cultura e sociedade, tem um escopo de fato

bem abrangente, que, inclusive, ultrapassa a descrição da composição sintática das

sentenças ou a determinação de seu conteúdo proposicional. O trabalho do

etnógrafo nesse campo é, por exemplo, descrever, como o faz Frake (1972), o que,

além da gramática, é preciso saber para ser um falante de subanun, ou mesmo,

especificamente, para pedir apropriadamente uma bebida entre os subanuns das

Filipinas. É, portanto, trabalho do etnógrafo da comunicação buscar especificar o

que significa ser um falante competente de uma língua específica, o que significa ser

um membro efetivo de uma dada comunidade de fala, o que caracteriza um falante

que transita com excelência entre as várias situações de comunicação, que participa

dos mais variados eventos comunicativos, que realiza os mais diversos atos de fala.

39

2. A HETEROGENEIDADE LINGUÍSTICO-CULTURAL BRASILEIRA

Qualquer tentativa de descrição da comunidade de fala brasileira terá como

constatação inicial e certa a sua intrínseca complexidade, uma característica

advinda, naturalmente, da própria estrutura social do país, sem dúvida, igualmente

complexa. É impossível, por exemplo, classificar a sociedade brasileira como sendo

unicamente tradicional ou como sendo unicamente moderna, uma vez que ela

apresenta características de uma e de outra, o que implica, por consequência, a

impossibilidade de uma classificação rígida de sua comunidade de fala.

A distinção entre um tipo e outro de sociedade é normalmente feita levando

em consideração, entre outros critérios, a rigidez das relações sociais. As

sociedades tradicionais são fortemente estratificadas, apresentando uma gama de

papéis sociais bem definidos e pouco ou nada permeáveis. Como consequência da

rígida estratificação social, tem-se, nessas sociedades, uma também rígida

estratificação linguística, sendo os limites entre uma variedade e outra bem precisos.

A pouca permeabilidade dos papéis sociais traz como consequência, por sua vez,

uma restrição considerável de acesso às variedades prestigiadas.

No caso das sociedades modernas, é característica marcante uma maior

alternância de papéis sociais e, por extensão, uma heterogeneidade menor no

repertório verbal de seus falantes, com limites, portanto, pouco precisos entre uma

variedade e outra. Nesse tipo de sociedade, é comum uma maior variação social e

estilística. Assim, maiores chances de mobilidade social significam também maiores

chances de acesso às variedades de prestígio.

O Brasil, nesse quadro, apresenta-se como um caso específico. Em sua

comunidade de fala observa-se, por um lado, grande variação no repertório verbal

de seus falantes e acesso limitado à norma culta, o que é característico das

sociedades tradicionais; por outro lado, uma notável permeabilidade de papéis

sociais e fluidez entre as variedades linguísticas, o que é característico das

sociedades modernas.

Nesse sentido, se há um atributo que não pode ser utilizado para caracterizar

a comunidade de fala brasileira é a homogeneidade. Na verdade, do mesmo modo

que se tem no país uma grande heterogeneidade sociocultural, tem-se também uma

grande heterogeneidade linguística. A própria língua portuguesa falada em terras

40

brasileiras apresenta-se, deveras, heterogênea em diversas ordens, da geográfica à

social, perpassando muitas outras.

Apesar de não chegar ao ponto de impedir a total ininteligibilidade entre seus

falantes, a heterogeneidade da língua portuguesa no Brasil deve ser considerada

como um aspecto relevante, uma vez que entre dialetos sociais e/ou geográficos,

por exemplo, podem existir diferenças profundas capazes de, no mínimo,

oferecerem dificuldades de comunicação entre falantes de dialetos distintos e de

origens socioculturais distintas.

Considerando a discutida complexidade da comunidade de fala brasileira,

pode-se afirmar que sua heterogeneidade é tal que chega a ser impossível

compartimentar precisamente as variedades linguísticas que a compõem. É mesmo

uma simplificação pouco justa com a realidade linguística acomodar o amplo e

diversificado repertório verbal da comunidade de fala brasileira em dicotomias como

língua padrão x língua não padrão. Essa e outras denominações, segundo Bortoni-

Ricardo (2006), padecem por não reconhecer as características comuns às diversas

variedades; por misturar critérios analíticos de tal modo a impossibilitar uma

distinção clara entre variedades regionais, sociais ou mesmo funcionais; e por não

considerar as distintas características das modalidades oral e escrita da língua, bem

como dos diferentes gêneros discursivos.

Com vistas a apreender, de modo sistemático, a situação sociolinguística do

português brasileiro, Bortoni-Ricardo (2006, 2009) elabora um modelo de análise

que relaciona a heterogeneidade linguística brasileira com fatores estruturais e com

fatores funcionais. Para tanto, a autora adota um instrumental que acomoda a

variação linguística em três contínuos, a saber: um de urbanização, por meio do qual

se analisa os atributos socioecológicos dos falantes; outro de oralidade-letramento,

por meio do qual se analisa as práticas sociais em que o falante se insere; e outro

de monitoração estilística, por meio do qual se analisa, entre outras questões, os

processos cognitivos de atenção e planejamento quando da enunciação.

A seguir, passa-se a analisar cada um dos contínuos propostos por Bortoni-

Ricardo, bem como seus respectivos componentes.

41

2.1 As Culturas Rural e Urbana e o Contínuo de Urbanização

Entre o Brasil rural e o Brasil urbano existem diferenças consideráveis, a

começar pelo contingente populacional. O censo do IBGE de 2010 revelou que há

uma disparidade muito grande entre o número de habitantes da zona urbana

(100.925.792) e da zona rural brasileira (29.830.007). Na verdade, a diferença

populacional é apenas um indício do conjunto de outros aspectos que diferem um

ambiente do outro. São mesmo vários aspectos, que vão desde os socioeconômicos

até os culturais, incluindo neste último, com especial destaque, a linguagem.

Na metodologia de análise do português brasileiro, proposta por Bortoni-

Ricardo (2006, 2009), o contínuo de urbanização é aquele que comporta em suas

extremidades, de um lado, as variedades rurais mais isoladas e, de outro, a

variedade urbana culta, a qual historicamente foi alvo de um estrito processo de

padronização. Entre os dois polos do contínuo, a autora diz estar uma área

denominada rurbana. Nesse ponto do contínuo, segundo ela, está situado o conjunto

de falantes formado pelos migrantes de origem rural que preservam muito de seus

antecedentes culturais, principalmente no seu repertório linguístico, e as

comunidades interioranas residentes em distritos ou núcleos semirrurais, que estão

submetidas à influência urbana.

É preciso destacar que as variedades rurais, rurbanas e urbanas, que estão

dispostas ao longo do contínuo de urbanização não são separadas por rígidas

fronteiras. Há, em verdade, uma grande fluidez e sobreposição entre as variedades,

razão pela qual elas estarem dispostas em um contínuo. Assim, o que se pode

apontar são características mais salientes em uma e outra dessas variedades e não

necessariamente propriedades estanques que as distingam.

Estando nos extremos do contínuo de urbanização, as variedades rurais

geograficamente isoladas e as urbanas padronizadas possuem uma série de

características peculiares que se expressam, entre outras formas, na fonética, na

morfossintaxe e no léxico, tendo ambas as variedades sido alvo de estudos

linguísticos, mesmo que em proporções diferentes, com número consideravelmente

bem maior para as variedades urbanas padronizadas.

No caso das variedades regionais rurais, especificamente, Bortoni-Ricardo

(2006) afirma ser possível que boa parte de suas características seja resultado da

influência que sofreram da língua tupi de intercurso, usada como língua franca no

42

litoral do Brasil até meados do século XVII, e do pidgin usado nas comunidades de

escravos como meio de comunicação de emergência. A autora pondera ainda que

algumas outras características se devam à manutenção de traços do português

arcaico, como fruto do sistema de colonização intermitente cuja precariedade teve

como agravante a grande extensão territorial do país e sua topografia adversa.

Dentre os traços que podem ser considerados peculiares das variedades

rurais – que em alguns estudos têm sido denominadas de caipiras – destacam-se,

inicialmente, alguns aspectos fonológicos, apresentados por Bortoni-Ricardo (2011) -

os primeiros elementos dos pares a seguir correspondem às formas do português

brasileiro padrão e os segundos às formas próprias de variedades rurais:

Neutralização de /r/ e /l/ em encontros consonantais de uma oclusiva ou fricativa

plana mais uma lateral:

/ĩklu’zivi/ : /ĩkru’zivi/ “inclusive”

/kõ’plɛtu/ : /kõ’prɛtu/ “completo”

/plã’tar/ : /prã’ta:/ “plantar”

Supressão da consoante líquida em encontros consonantais:

/’padri/ : /’padʒi/ “padre”

/’owtru/ : /’otu/ “outro”

Vocalização da lateral palatal /λ/:

/’miλo/ : /’miju/ “milho”

/mu’λer/ : /mujje:/ “mulher”

/’veλu/ : /’vejju/ “velho”

Neutralização de /r/ e /l/ em final de sílaba:

/’palma/ : /’parma/ “palma”

/’volta/ : /’vorta/ “volta”

/al’gũ/ : /ar’gũ/ “algum”

43

/al’mosu/ : /ar’mosu/ “almoço”

/avẽ’tal/ : /avẽ’tar/ “avental

Prótese de um /a/ em palavras iniciadas em consoante:

/lẽ’brar/ : /alẽ’bra:/ “lembrar”

/prepa’rar/ : /aprepa’ra:/ “preparar”

/xeu’nir/ : /axeu’ni:/ “reunir”

Nasalização de vogais orais em início de sílabas:

/ku’ziña/ : /kũ’ziña/ “cozinha”

/e’zẽplu/ : / ĩ’zẽpru/ “exemplo”

/i’gwal/ : / ĩ’gwal/ “igual”

Metátese do /r/ e, mais raramente do /s/:

/fer’vẽndu/ : /fre’vẽnu/ “fervendo”

/tor’ser/ : /tro’se:/ “torcer”

/presi’zar/ : /persi’sa:/ “precisar”

/satʃis’fejtu/ : /sastis’fejtu/ “satisfeito”

No que se refere à morfossintaxe das variedades rurais, pode-se afirmar que

também apresentam várias peculiaridades. Bortoni-Ricardo (2006, p.33) cita alguns

traços linguísticos que são característicos – apesar de não exclusivos - dessas

variedades:

Repare-se que, nos vernáculos rurais, muitas dessas oposições, como a de número, a de gênero e a de pessoa, para citar algumas, que no sistema da língua portuguesa são implementadas de maneira redundante, passaram a ser realizadas com recursos analíticos, em decorrência do reducionismo flexional. Assim, a oposição número-pessoa, nas formas verbais, que se consubstancia redundantemente por meio dos pronomes pessoais e das flexões, dispensou estas e manteve apenas aquelas. Na oposição de número, nos sintagmas nominais, a marca de plural desapareceu dos determinados, mas se conservou no primeiro determinante. O sistema temporal se simplificou, mas a dicotomia presente-passado foi mantida.

44

Em relação ao léxico das variedades rurais, é preciso destacar, inicialmente, o

fato de ele ser infimamente documentado e de ele ser escrito somente em ocasiões

específicas. Isso, no entanto, não significa que ele seja restrito ou pobre, como pode

se supor. O léxico dessas variedades, como argumentam Antunes e Viana (2006), é

de fato suficiente e adequado à expressão do pensamento; e seus falantes, dele se

utilizando, podem, de modo claro e preciso, manifestarem-se em seu mundo, bem

com assimilar conceitos, refletir, escolher, julgar, do mesmo modo que o pode fazer

aquele que se utiliza de outras variedades.

No seu pioneiro trabalho de levantamento e descrição do dialeto caipira –

portanto, de uma variedade rural – Amaral (1920/1976) afirma que o vocabulário

desse dialeto é formado por elementos oriundos do português usado pelos

colonizadores, portanto, do português do século XVI; de termos provenientes das

línguas indígenas; de vocábulos importados de outras línguas; e de vocábulos

formados no próprio dialeto.

Entre todos os elementos apontados por Amaral (1920/1976) como

constituintes do léxico caipira, destacam-se os elementos do português do século

XVI, muitos dos quais se tornaram arcaicos em outras variedades da língua,

notadamente nas variedades urbanas. Ele enfatiza o grande número de formas de

vocábulos do português arcaico que permanecem vivos no dialeto caipira. Como

ilustração, ele cita alguns vocábulos típicos da variedade rural que já aparecem na

Carta de Pero Vaz de Caminha, tais como: mêa (adj. meia), despois, reinar (brincar),

prepósito e alevantar.

Os elementos arcaicos da língua são classificados por Amaral (1920/1976)

em arcaísmos de forma, de significação, e de forma e significação. São alguns dos

exemplos dados:

Arcaísmos de forma:

acupá(r), inorá(r), agardecê(r), avaluá(r), malino, manteúdo, premêro, dereito,

repuná(r), reposta, saluço, escuitá(r), somana, fermoso.

Arcaísmos de sentido:

Dona – Senhora

45

Função – Baile, folguedo

Reiná(r) – Fazer Travessuras

Aério – Perplexo

Praça – Povoado

Salvar – Saudar

Arcaísmos de forma e significação:

Arreminado – Indócil

Contia – Quantidade qualquer

Cuca – Ente fantástico

Escotêro – O que viaja sem bagagem

Modinha – Cançoneta

Ainda tratando do léxico do dialeto caipira, Amaral (1920/1976) lista algumas

locuções que, segundo ele, também são advindas do português arcaico:

A par de – Justo, ao lado

De verdade – De vera

De primeiro – Outrora

Neste meio - Entrementes

Acerca do léxico de variedades rurais, é interessante destacar ainda o

trabalho de pesquisa que tem sido realizado pelas universidades mineiras UFVJM,

UFMG e UNI-BH. Do corpus “O vocabulário do dialeto rural no Vale do

Jequitinhonha” foram elaborados, entre muitos outros, os verbetes a seguir,

apresentados por Antunes e Viana (2006, p. 26):

dá fé Exp. Verbal [ação-processo] – Captar algo por meio dos sentidos – Pois é! Agora eu vô quebra os dois ovo e soldá. E você novamente sobe lá e coloca os dois ovo sem o buriti dá fé./Ele foi lá, subiu no pé de laranjeira, furto esses dois ovo do juriti. Juriti nem fé num deu. – (MSL) – Perceber, notar. imbruiá V. [ação-processo/compl. Nome animado] – Bras. Coloq. – Ato de envolver, habilmente, alguém de forma a obter vantagens. – Essa onça é toda besta! Todos bicho imbruiô ela e sumiro. – (O.B) – Enganar.

46

Invi Var. envinha, evinha – V. [ação]. Inform. – Encaminhar-se de um lugar para outro próximo de quem fala. – Quando ele invia lá, foro tudo lá pra dentro e chegô só ua na janela. – (CA) – Vir. neca Pron. [indefinido] – Coloq. Pop. – Usado quando se quer negar enfaticamente. – Foi no quarto do menino. Nada! Tudo desarrumado. O tocin? Neca! Já tinha furtado, né? – (MSL) – Nada, coisa nenhuma. zelá V. [ação/compl.: de + nome] – (Séc. XV) – Arc. – Tomar conta de algo ou alguém com toda a atenção, cuidado e interesse. – Num era caçadô, mas era um home que tinha uns cachorro muito bão e era vei’ assim que zelava muito das coisa dele... – (A) – Cuidar.

No espectro de variedades do português brasileiro, como o contínuo de

urbanização sugere, além das variedades rurais, pressupõe-se a existência de

variedades rurbanas e variedades urbanas. As variedades rurbanas correspondem,

de acordo com Bortoni-Ricardo (2009), aos falares dos migrantes de origem rural

que preservam muitos dos elementos da sua cultura de origem, notadamente o

repertório linguístico, e aos falares de comunidades interioranas como distritos e

núcleos semirrurais. Sendo assim, pressupõe-se que muitos dos traços linguísticos

dessas variedades sejam comuns com os das variedades rurais, como os

anteriormente exemplificados.

As variedades urbanas, por sua vez, como apresenta Bortoni-Ricardo (2006),

são aquelas utilizadas pelos falantes urbanos; são as que, de modo geral, sofreram,

ao longo do tempo, a influência da codificação linguística, de modo que muitas de

suas características são devidas à força normativa da ortografia e da ortoépia, dos

dicionários e gramáticas, além das agências padronizadoras da língua, típicas do

ambiente urbano, tais como a escola, a imprensa e a literatura.

Na verdade, sob o rótulo de variedades urbanas encontra-se uma série de

variedades estratificadas da língua, uma vez que se considerem fatores como classe

social, profissão, zona de residência e, sobretudo, grau de escolaridade. Numa

classificação proposta por Faraco (2008) – a qual, inclusive, tem para sua

construção a influência do modelo dos contínuos ora apresentado – as variedades

urbanas podem ser inseridas em três diferentes grupos: o português popular

brasileiro, a linguagem urbana comum e a norma culta.

Português popular brasileiro é o nome que Faraco (2008) adota para se

referir às variedades utilizadas pelas classes populares, o que inclui as populações

que possuem pouco tempo de urbanização, devido ao grande êxodo rural ocorrido

47

no Brasil nas últimas décadas. Nesse caso, é preciso destacar que essa é uma

classificação que abarca também parte dos falares que Bortoni-Ricardo denomina

de rurbanos.

Às variedades faladas pelas populações tradicionalmente urbanas, Faraco

(2008) reserva o nome de linguagem urbana comum. Esse seria o português dos

falantes situados na escala de renda média para alta e que, por consequência, têm

normalmente altos níveis de escolaridade e amplo acesso aos bens culturais da

cultura escrita. Essas variedades, segundo o autor, são mais bem delimitadas

quando considerada a inserção dos seus falantes nos contínuos de letramento e de

monitoração estilística.

A denominação de norma culta é utilizada por Faraco (2008) para se referir,

no espectro das variedades urbanas, àquela de uso corrente entre falantes com

escolaridade superior completa, especificamente em situações de monitoração

estilística. Tendo como referência os critérios adotados pelo Projeto NURC (Norma

Linguística Urbana Culta), Faraco defende que os contínuos de monitoração

estilística e de oralidade-letramento também devam ser levados em conta ao

classificar ou não uma variedade como norma culta.

Uma outra forma de caracterizar o conjunto de variedades que compõem o

espectro do contínuo de urbanização é apresentada por Lucchesi (2002). Levando

em consideração aspectos socioculturais dos falantes, bem como a formação sócio-

histórica do português brasileiro, ele defende que a realidade linguística brasileira

seja vista como um sistema bipolarizado, formado por dois subsistemas distintos: a

norma culta e a norma popular, por ele assim caracterizadas (LUCCHESI, 2002, p.

87):

A NORMA CULTA seria, então, constituída pelos padrões de comportamento linguístico dos cidadãos brasileiros que têm formação escolar, atendimento médico-hospitalar e acesso a todos os espaços da cidadania, e é tributária, enquanto norma linguística, dos modelos transmitidos ao longo dos séculos nos meios da elite colonial e do Império e inspirados na língua da Metrópole portuguesa. A NORMA POPULAR, por sua vez, se define pelos padrões de comportamento linguístico da grande maioria da população alijada de seus direitos elementares e mantida na exclusão e na bastardia social (...). Portanto, se é uma variedade do colonizador a que se impõe na fala dos segmentos sociais aí formados, não se pode deixar de perceber as marcas de sua aquisição precária e de sua nativização mestiça.

48

Dessa maneira, ao contrário do que se possa pensar e se disseminar no

senso comum, a língua portuguesa do Brasil não é apenas a norma padrão. Sob o

rótulo de língua, cientificamente, o que se tem é o conjunto de todas as variedades

utilizadas pelos brasileiros, desde as variedades rurais geograficamente mais

isoladas até as variedades urbanas padronizadas.

É preciso dizer, nesse ponto, que a coexistência de todos esses falares que

compõem a língua portuguesa não é tão simples e pacífica como possa aparentar.

De fato, cada falar situado ao longo do contínuo de urbanização é socialmente

submetido a uma escala de valores que vai desde os mais positivos aos mais

negativos – uma avaliação centrada muito mais em questões sociais e políticas do

que em questões estritamente linguísticas. A esse respeito são emblemáticas as

seguintes considerações de Gnerre (1998, pp. 6-7):

Uma variedade linguística “vale” o que “valem” na sociedade os seus falantes, isto é, vale como reflexo do poder e da autoridade que eles têm nas relações econômicas e sociais. Essa afirmação é válida, evidentemente, em termos internos quando confrontamos variedades de uma mesma língua, e em termos externos pelo prestígio das línguas no plano internacional.

Por esse viés, pode-se afirmar que na comunidade de fala brasileira existem

tanto variedades linguísticas prestigiadas quanto variedades estigmatizadas. Nesse

caso, observa-se que quanto maior a proximidade do polo urbano, no contínuo de

urbanização, maior prestígio terá a variedade.

Como consequência do prestígio que goza, a variedade urbana culta acaba

sendo socialmente alçada à condição de ser a própria língua e não apenas uma de

suas variedades. É bem provável que seja graças a essa condição que seja tão

espraiada a ideia de que existe uma língua que é adquirida de modos distintos pelos

falantes, em função das distintas condições de acesso a ela. É preciso dizer, no

entanto, que na realidade objetiva o falante não aprende a “língua” de maneira

imperfeita, como se tende a acreditar; o falante simplesmente aprende a variedade a

que está exposto. Pode-se mesmo dizer que chega a ser anticientífico sustentar

afirmações como a de que existem línguas imperfeitas, simples, inferiores, ou

mesmo que há línguas pobres em vocabulário. A Linguística, de fato, tem

sustentado que toda língua é adequada à comunidade que a utiliza. Assim,

49

gramaticalmente, todas as variedades de uma língua se apresentam sempre como

sistemas organizados e coerentes de regras (ALKMIM, 2001)

Na contramão das afirmações da ciência, as variedades rurais, as rurbanas e

as urbanas populares têm sido alvo constante de estigma. Bagno (2003, p. 67) diz

que o estigma a que essas variedades são submetidas pode ser definido como “um

julgamento extremamente negativo lançado pelos grupos sociais dominantes sobre

os grupos subalternos e oprimidos e, por extensão, sobretudo o que caracteriza seu

modo de ser, sua cultura e, obviamente, sua língua”. O autor até defende que,

levando em conta essa questão, se pode designar de variedades estigmatizadas as

variedades linguísticas que caracterizam os grupos sociais desprestigiados do

Brasil.

Ao tratar das características das variedades estigmatizadas e das

prestigiadas, Bortoni-Ricardo (2009) defende que há formas e usos linguísticos que

se circunscrevem a algumas dessas variedades e outras formas e usos linguísticos

que são comuns a todas elas. Para esclarecer, ela identifica os chamados traços

descontínuos e os chamados traços graduais. No primeiro caso, têm-se os itens

linguísticos típicos dos falares situados no polo rural do contínuo de urbanização e

que, por sua vez, vão desaparecendo à medida que se aproxima do polo urbano.

Segundo a autora, esses traços têm uma distribuição descontínua, pois,

naturalmente, seu uso não continua nas áreas urbanas. São exemplos desses

traços: a vocalização da lateral /λ/ (“cuié”) e a redução do ditongo crescente final

(nutiça) – para ficar somente no campo fonológico. No segundo caso, estão os itens

linguísticos que se fazem presentes na fala de todos os brasileiros e que, assim,

estão distribuídos ao longo de todo o contínuo, sendo, portanto, traços que possuem

uma distribuição gradual. De acordo com a autora, exemplos de variáveis dessa

categoria são, entre outros, a redução dos ditongos ei e ai seguidos dos fonemas /r/,

/n/, /j/ e /x/ para /e/ e /a/ - “cadera”, “caxa”, “bejo” etc; e a perda do /r/ final nos

infinitivos verbais e nas formas do futuro do subjuntivo – “comê” e “pudé”.

Identificadas as duas categorias nas quais podem ser inseridas as variáveis

linguísticas do português brasileiro, faz-se necessária uma observação. São

exatamente os traços descontínuos os que recebem uma carga maior de avaliação

negativa nas comunidades urbanas, o que se constitui em um ponto definidor do

estigma ou do prestígio a que as variedades estão submetidas.

50

A ecologia do português brasileiro, indo das variedades rurais

geograficamente mais isoladas até a variedade urbana culta, é mesmo numerosa e

diversa. Apesar da nefasta carga de avaliações injustas que algumas delas sofrem

socialmente, é inegável que elas, em todo o seu conjunto, são uma representação

da heterogeneidade que marca o Brasil; afinal, um país que possui uma sociedade e

uma cultura multifacetadas só poderia abrigar uma língua igualmente multifacetada.

2.2 As Práticas Sociais de Uso da Língua e o Contínuo de Oralidade-Letramento

O segundo contínuo proposto por Bortoni-Ricardo (2006, 2009) para a

apreensão e análise da heterogeneidade do português brasileiro é o de oralidade-

letramento. Esse é um continuo ao longo do qual estão situadas as práticas sociais

de uso da língua. Assim, em um de seus polos situam-se as práticas de oralidade;

no outro, as práticas de letramento. A construção e aplicação desse contínuo

pressupõem o entendimento das noções de fala e escrita e, principalmente, as de

oralidade e letramento, do modo como são concebidas na sociedade atual em suas

semelhanças, diferenças e possíveis relações.

Marcuschi (2007) explica que os termos fala e escrita são usados para se

referir às duas modalidades de manifestação da língua sob o aspecto das formas

linguísticas e das atividades de formulação textual. Com o termo fala, designam-se

as formas orais do ponto de vista do material linguístico e de sua realização textual-

discursiva. Com o termo escrita, por outro lado, designa-se o material linguístico da

escrita, ou seja, as formas de textualização na escrita. Assim, quando se usa os

termos fala e escrita, é preciso ter bem claro que se trata de aspectos relacionados à

organização linguística.

As pesquisas mais recentes na área, no entanto, têm mostrado que a relação

entre fala e escrita não é tão simples quanto possa parecer. Tem-se constatado que

essas são duas atividades interativas e complementares no contexto das práticas

sociais e culturais e, desse modo, não devem ser tratadas de maneira dicotômica.

Elas estabelecem, na verdade, uma relação complementar em que suas diferenças

se dão dentro de um contínuo, e não numa relação entre dois polos opostos;

configuração similar, como se verá, para as noções de oralidade e letramento.

51

Em relação aos termos oralidade e letramento, Marcuschi (2007) esclarece

que se referem às práticas sociais ou práticas discursivas nas duas modalidades de

manifestação da língua. Segundo ele, de modo geral, o termo oralidade diz respeito

ao conjunto de práticas sociais que se apresentam na modalidade oral da língua,

sob diversas formas ou gêneros textuais, variando conforme critérios como nível de

formalidade e contextos de uso. O termo letramento, por sua vez, diz respeito ao

conjunto de práticas sociais que fazem uso da escrita em maior ou menor grau,

apresentando-se também em formas as mais diversas.

O desenvolvimento desses dois conjuntos de práticas, de acordo com

Marcuschi (2007, p. 39) se dá, em geral, de modos bem específicos:

A oralidade como prática social se desenvolve naturalmente em contextos informais do dia a dia. O letramento pode desenvolver-se no cotidiano de forma espontânea, mas em geral, ele se caracteriza como a apropriação da escrita que se desenvolve em contextos formais, isto é, no processo de escolarização. Daí também seu caráter mais prestigioso como bem cultural desejável. Daí também a identificação entre alfabetização e escolarização. Em suma, há uma avaliação da alfabetização como sinônimo de valor e educação. Isso determinará, em boa medida, o uso da escrita em nossa sociedade, e dá ao letramento mais aprimorado um status mais alto.

É preciso, entretanto, não confundir alfabetização com letramento. A

alfabetização deve ser entendida como a prática formal e institucional de aquisição

da escrita, visando a interação e o domínio da cultura, uma prática levada a efeito

pelo sistema escolar (Tfouni, 1988). O letramento, por seu turno, deve ser entendido

como o estado ou condição que um grupo social ou um indivíduo adquire como

consequência de ter-se apropriado da escrita, ou seja, como a condição daqueles

que cultivaram e exercem as práticas sociais que se utilizam da escrita (Soares,

2012).

Nesse sentido, diferentemente da noção de alfabetizado, que implica a

existência ou não de um saber (o sistema alfabético da escrita), a noção de

letramento não pode ser tomada de modo estanque. Na verdade, não há uma linha

divisória que separa o sujeito letrado do iletrado, como se pode verificar entre o

alfabetizado e o analfabeto. Como o processo é, de certo modo, sem final, ele não

pode ser descrito de forma dicotômica. Assim, é mais adequado afirmar que as

competências que constituem o letramento sejam distribuídas de maneira contínua,

contendo pontos indicadores de tipos e níveis diferentes de conhecimento,

52

capacidades, habilidades em relação aos diversos tipos de material escrito. Por esse

ponto de vista, o letramento seria, como define Soares (2003, p. 95):

(...) um contínuo não linear, multidimensional, ilimitado, englobando múltiplas práticas e múltiplas funções, com múltiplos objetivos, condicionadas por e dependentes de múltiplas situações e múltiplos contextos, em que, consequentemente, são múltiplas e muito variadas as habilidades, conhecimentos, atitudes de leitura e de escrita demandadas, não havendo gradação nem progressão que permita fixar um critério objetivo para que se determine que ponto, no contínuo, separa letrados de iletrados.

Uma vez que se caracterize assim letramento como um contínuo, fica mesmo

complicado estabelecer uma relação precisa entre níveis diferentes de letramento e

determinados atributos sociais. O grau de escolaridade, por exemplo, não chega a

ser um critério exato na definição do nível de letramento de um indivíduo, ou, em

outras palavras, só é mesmo possível inferir, supor que quando se atinge certo grau

de instrução, o indivíduo possa estar situado em determinado ponto do contínuo que

o letramento é. Desse modo, é comum a expectativa de que quanto mais anos de

escolaridade tiver alcançado um indivíduo, maior será o seu nível de letramento.

Contrariando esse tipo de expectativa, a relação entre o atributo grau de

escolaridade e o nível de letramento pode se revelar algumas vezes, inesperada. É

possível encontrar, por exemplo, sujeitos com baixa escolaridade e alto grau de

letramento, bem como sujeitos com alta escolaridade e baixo grau de letramento.

Situações extremas que se relacionam mais com o primeiro caso são apresentados

por Soares (2012). Ela diz, por exemplo, que um indivíduo poder ser, de certo modo,

letrado, mesmo sendo analfabeto. Devido à sua condição socioeconômica, um

adulto pode ser analfabeto, mas viver em um meio em que a leitura e a escrita têm

forte presença e, desse modo, participar de atividades como ouvir a leitura de jornais

feita por um alfabetizado, receber cartas que os outros leem para ele, ditar cartas

para que um alfabetizado as escreva, pedir que alguém leia avisos ou indicações

afixados em algum lugar, práticas que o fazem ser considerado de certo modo

letrado, pelo fato de ele estar envolvido em práticas sociais de leitura e escrita.

Outra situação representativa da relação inesperada entre grau de

escolaridade e nível de letramento, porém relacionada ao segundo caso, é

apresentada por Oliveira e Vóvio (2003). Analisando dados do INAF 2001 (Indicador

Nacional de Alfabetismo Funcional), com foco no problema da homogeneidade e da

53

heterogeneidade entre sujeitos pertencentes a grupos com diferentes níveis de

alfabetismo, as pesquisadoras discutem o caso de sujeitos que possuem curso

superior completo ou incompleto que apresentaram baixo desempenho em um teste

de alfabetismo (letramento). Elas destacam até o fato de esses mesmos sujeitos

também possuírem características, condições e comportamentos comuns com

outros que, na pesquisa, foram classificados em um alto nível de alfabetismo. As

razões para essa relação inesperada, de acordo com as autoras, só poderiam ser

explicitadas por meio de um aprofundamento qualitativo da situação particular de

cada indivíduo, no entanto elas sugerem algumas hipóteses que podem estar no

cerne da questão: os sujeitos podem ter obtido um grau de instrução formalmente

elevado sem ter necessariamente adquirido competências letradas; podem ter tido

uma má relação com a escola e com o conhecimento escolar; podem ter tido poucas

oportunidades de efetivamente envolver-se em atividades que exijam o uso

constante das habilidades letradas, entre outras.

Nessa perspectiva, o uso das habilidades de leitura e escrita, num

dado contexto, e a relação dessas habilidades com as necessidades, valores e

práticas sociais estão mesmo na base da definição de letramento. Analisando o

fenômeno do letramento, Street (1984) apresenta os dois modelos que

predominaram a partir dos anos 50 do século XX, o autônomo e o ideológico. No

modelo autônomo de letramento, prevalente entre os anos 50 e 80, defende-se que

a escrita teria sido a grande responsável por introduzir na sociedade novas formas

de conhecimento e por favorecer a ampliação da capacidade cognitiva das pessoas.

Nesse modelo, defende-se ainda a tese de que a escrita seria superior à fala e

autônoma, na sua condição de tecnologia, representando assim, a fala e a escrita,

ordens diferentes de comunicação, com funções e processos de interpretação

também diferentes. Rojo e Schneuwly (2006) argumentam que essa polarização

defendida pelo modelo autônomo de letramento traria consequências para as

culturas e os contextos de uso da linguagem oral e escrita e, logo, para os

letramentos, como, por exemplo, a sustentação da ideia de que a escrita, por si só,

levaria os sujeitos a estágios mais complexos e desenvolvidos de cultura e de

organização cognitiva, dando acesso, inclusive, por si mesma, ao poder e à

mobilidade social, ideia que com certeza não se sustenta.

A partir dos anos 80, em contraponto ao modelo autônomo, desenvolve-se o

modelo ideológico de letramento, sugerindo que a oralidade e o letramento sejam

54

concebidos numa relação contínua e que se evite a noção de autonomia e

supremacia da escrita. Nesse modelo, entende-se que as práticas de letramento são

determinadas social e culturalmente, de modo que, a depender dos contextos e

instituições nos quais a escrita tenha sido adquirida, ela assumirá significados

específicos. Assim, letramento deixa de ser considerado como um instrumental de

participação social e passa a ser todo o conjunto de práticas socialmente

construídas envolvendo a leitura e a escrita, práticas essas representativas,

inclusive, das estruturas de poder de uma sociedade.

De modo geral, um e outro modelo de letramento é sustentado ou está na

base das ações das diferentes agências de letramento que existem na sociedade.

Nessa direção, são elucidativas as seguintes considerações de Kleiman (2012, p.

20):

O fenômeno do letramento, então, extrapola o mundo da escrita tal qual ele é concebido pelas instituições que se encarregam de introduzir formalmente os sujeitos no mundo da escrita. Pode-se afirmar que a escola, a mais importante das agências de letramento, preocupa-se não com o letramento, prática social, mas com apenas um tipo de letramento, qual seja, a alfabetização, o processo de aquisição de códigos (alfabético, numérico), processo geralmente concebido em termos de uma competência individual necessária para o sucesso e promoção na escola. Já outras agências de letramento, como a família, a igreja, a rua – como lugar de trabalho – mostram orientações de letramento muito diferentes.

Essas diferentes orientações que a escola e outras agências de letramento

possuem, como apontadas por Kleiman (2012), só reforçam a hipótese de que há

mesmo um contraste considerável entre o letramento que se dá na escola e o

letramento que se dá fora dela. Isso se deve em boa medida ao fato de a escola

basear seu trabalho no quadro de referência do modelo autônomo, considerando as

atividades de leitura e escrita como neutras e universais e, por conseguinte,

independentes dos determinantes culturais e das estruturas de poder, ou seja,

trabalhando exatamente com as premissas negadas pelo modelo ideológico.

Frente aos diferentes posicionamentos dos dois modelos de letramento e às

discussões deles suscitadas, Marcuschi (2007) defende que a maneira mais

adequada para se tratar das questões do letramento é a que parte das relações

entre oralidade e letramento na perspectiva de um contínuo de práticas sociais e

atividades comunicativas, de modo a envolver parcialmente o modelo ideológico –

55

com destaque para o aspecto da inserção da fala e da escrita no contexto da cultura

e da vida social – e a observar a organização das formas linguísticas no contínuo

dos gêneros textuais.

Nessa perspectiva, dois componentes devem ser tomados como básicos para

o entendimento do próprio fenômeno do letramento na sociedade: os eventos e as

práticas de letramento. Proposto por Heath (1983), o termo evento de letramento é

usado para designar as situações em que a escrita compõe ou ajuda a compor a

interação entre os participantes e os processos e estratégias de interpretação. Essas

situações de interação tanto podem ser face a face, com as pessoas interagindo

oralmente com a mediação da leitura ou da escrita; quanto podem ser à distância,

como é o caso da interação autor-leitor. O termo práticas de letramento, por sua vez,

proposto por Street (1984), é usado para designar os comportamentos, as ações dos

participantes de um evento de letramento, bem como as concepções sociais e

culturais que ajudam a configurar o evento em si e a determinar os modos de

interpretação válidos.

Nesse ponto, considerando toda a discussão em torno das noções de

oralidade e letramento enquanto práticas sociais, são interessantes e bem

esclarecedoras as seguintes observações feitas por Marcuschi (2007, p. 54):

a) não há uma dicotomia real entre oralidade e letramento, seja do ponto de vista das práticas sociais, dos fenômenos linguísticos produzidos e dos eventos nos quais ambas as práticas se acham presentes; b) oralidade e letramento são realizações enunciativas da mesma língua

em situações e condições de produção específicas e situadas que exigem mais do que uma simples habilidade linguística, mas um domínio da vida social; c) letramento é uma prática social estreitamente relacionada à situação

de poder social situada nos domínios discursivos e muitas vezes se acha fortemente imbricado com as práticas orais.

O contínuo de oralidade-letramento deve ser tomado como um instrumento de

apreensão da heterogeneidade linguística do português brasileiro, justamente

levando em conta cada uma dessas noções. Assim, os eventos de comunicação são

dispostos ao longo desse contínuo, conforme a natureza das práticas sociais de uso

da língua que são neles desenvolvidas.

Nesse sentido, Bortoni-Ricardo (2009) chama a atenção para o fato de que,

assim como o contínuo de urbanização, o de oralidade-letramento não é marcado

por fronteiras rígidas entre os pontos correspondentes aos eventos de oralidade e de

56

letramento. Segundo a autora, as fronteiras são fluidas e há muitas sobreposições, o

que não deixa de ser uma consequência da própria natureza das práticas

discursivas, sejam elas orais ou letradas.

2.3 A Variação Estilística e o Contínuo de Monitoração Estilística

Diferentemente de outras dimensões da variação linguística, a dimensão

estilística tem sido alvo de interesse dos estudos sobre a língua e seus usos há bem

menos tempo. Somente a partir dos anos 60 é que especialistas de diferentes áreas

- da sociolinguística à psicologia social - passaram a tomar a variação estilística

como objeto mesmo de estudo.

Entre os pesquisadores cujo interesse foi, entre outras questões, a noção de

variação estilística dentro de um contexto monolíngue, pode-se apontar o

sociolinguista Labov como um dos mais importantes, tendo sido ele um dos

primeiros a elaborar uma teoria e técnicas capazes de isolar e caracterizar diferentes

estilos dentro de uma comunidade linguística complexa. Labov (1972) sugere, em

um de seus estudos, que a ordenação dos estilos seja feita tendo como critério o

grau de atenção conferida à linguagem, o que, segundo ele, é feito pelo falante

normalmente através da audiomonitoração da própria fala. Partindo dessa

concepção, Labov (1972) estabelece cinco estilos, organizados em um eixo, de

acordo com o grau de atenção conferido pelo falante à linguagem: 1 – estilo

informal; 2 – estilo cuidado; 3 – estilo de leitura de texto; 4 – estilo de leitura de

palavras; 5 – estilo de leitura de pares mínimos. Segundo esse modelo, a escolha de

determinada variante pelo falante teria como base o contexto, de modo que nos

contextos onde se exige uma maior atenção à linguagem a variante utilizada seria

diferente da que seria usada em contextos onde se exige menor atenção.

Um dos mais importantes estudos realizados por Labov, nesse sentido, foi o

da estratificação estilística e social da variável th em início de palavra (como em

thing, por exemplo), em Nova Iorque. Valendo-se de uma amostra populacional que

incluía falantes da classe baixa, da classe trabalhadora, da classe média baixa e da

classe média alta, Labov (1972) pretendia verificar como a variável th, que pode ser

pronunciada [θ] ou [t], era realizada pelos falantes das diferentes classes nos estilos

informal, cuidado, leitura de texto e leitura de palavras. Como um dos resultados

mais relevantes apurados está o seguinte: para todos os grupos socioeconômicos,

57

do estilo informal ao de leitura de palavras, há um decréscimo na pronúncia [t], a

variante estigmatizada. Assim, o que esse e outros estudos de Labov mostram é que

todos os grupos sociais operam mudanças de código que vão na mesma direção,

muito embora os grupos sociais se distingam entre si pela frequência de utilização

das variantes apropriadas a cada um dos estilos.

Em seu modelo, Labov (1972) considera, portanto, que os diferentes estilos

que um indivíduo apresenta sejam desvios do seu estilo vernacular, isto é, que

sejam uma modificação de uma variedade linguística de base. Desse modo, o

vernáculo de um falante seria adaptado às diferentes situações, sendo o grau de

atenção conferida à linguagem o filtro dessa adaptação. Esse enfoque dado por

Labov ao critério sociocognitivo para a definição de estilo faz pressupor, portanto,

que seu modelo não concebe a existência per si de variedades estilísticas distintas,

mas sim de contextos distintos, aos quais o falante deve adaptar o seu vernáculo.

Avaliando o modelo laboviano para a apreensão da variação estilística,

Lefebvre (2001), apesar de reconhecer a grande importância do modelo, argumenta

que ele não consegue dar conta de todos os problemas ligados à noção de estilo.

Ela pondera que reduzir a definição de estilo apenas à dimensão do grau de atenção

que se confere à linguagem suscita, no mínimo, três problemas.

O primeiro problema, segundo Lefebvre (2001), é que o critério sociocognitivo

adotado por Labov para a definição de estilo peca por não ser capaz de tratar os

fatos de variação estilística que não podem ser classificados por esse critério. Como

exemplo, ela cita, entre outros, o caso do sistema de uso de códigos linguísticos em

Java, em que a seleção de uma variedade ou outra é determinada não pelo grau de

atenção conferida à linguagem, mas sim pela relação social existente entre o falante

e seu interlocutor.

O segundo problema apontado por Lefebvre em sua crítica ao modelo

laboviano é o fato de que nem sempre há um vínculo necessário entre fala formal e

monitoração, visto que existem pessoas que se mostram mais atentas quando estão

tentando ser coloquiais. O terceiro problema, por sua vez, reside, segundo ela, no

fato de que no modelo laboviano somente são consideradas as variáveis

socialmente pertinentes, deixando de fora, assim, aquelas variedades estilísticas

que não participam necessariamente da diferenciação social entre os grupos.

Ao também avaliar o modelo de Labov, Bell (1984) argumenta que a questão

da variação estilística intraindividual não pode ser explicada somente pelo grau de

58

atenção que o falante confere à sua fala, razão pela qual ele diz ser incompleto o

modelo laboviano. O autor sustenta que existe um outro fator bem mais

determinante para a variação estilística de um falante, qual seja, os participantes da

situação de comunicação. Segundo ele, a escolha de um estilo é resultado de um

processo que ele denomina audience design, que seria a acomodação do falante às

características de seu interlocutor.

De acordo com Bell (1984), o audience design é capaz de explicar todos os

níveis de escolhas linguísticas de um falante, como é o caso da alternância de uma

língua para outra (em situações bilíngues), a forma dos atos de fala, a escolha

pronominal, o uso de honoríficos, entre outros. Ele diz que a audience é, de certo

modo, simplesmente a pessoa que ouve as declarações do falante, o que não

significa de modo algum que seu papel seja de passividade. O autor diz que, assim

como o público de uma peça de teatro, a audience é o foro sensível e crítico diante

do qual as falas são proferidas. Os falantes, na verdade, segundo o autor, estão

sujeitos à sua audience, são dependentes de sua boa vontade, são responsivos à

sua reação, sendo exatamente essa responsividade o que determina o estilo do

falante.

Em sua teoria, Bell (1984) faz uma distinção entre diferentes tipos de

interlocutores, considerando aspectos como os papéis e a hierarquia constituídos

numa situação comunicativa. Para tanto, ele leva em conta se o interlocutor em

questão é conhecido, ratificado ou visado pelo falante. Desse modo, ele distingue

quatro tipos de interlocutores: o addressee, que é conhecido, ratificado e visado,

sendo assim considerado o principal; o auditor, que é conhecido, ratificado na

situação de comunicação, porém não visado pelo falante; o overhearer, quem o

falante sabe que se encontra na situação de comunicação, mas que não é nem

ratificado nem visado por ele; e o eavesdropper, cuja própria presença na situação

de comunicação é desconhecida do falante.

Dada a hierarquia dos papéis dos participantes de uma situação de

comunicação e sua saliência para o falante, pode-se esperar que a influência de

cada interlocutor no estilo adotado será tanto maior quanto mais visado ele for.

Assim, enquanto na dimensão social da variação linguística as características

sociais do falante (classe, idade etc.) são consideradas fatores determinantes, na

dimensão estilística, dentro da teoria de Bell, são as características dos ouvintes que

são as determinantes.

59

Numa análise de sua própria teoria para a explicação da variação estilística,

Bell (2001) afirma que a essência do audience design pode ser sumarizada em 10

pontos, que, segundo ele, podem mesmo ser tomados como princípios de análise da

variação estilística:

1- Estilo é o que um indivíduo faz com uma língua ao considerar o outro.

2- O significado do estilo é proveniente da associação entre aspectos

linguísticos e grupos sociais específicos.

3- Os falantes projetam seu estilo principalmente para e em resposta aos seus

interlocutores.

4- O audience design se aplica a todos os códigos e todos os níveis de um

repertório linguístico, tanto nos casos de monolinguismo quanto de

multilinguismo.

5- A variação na dimensão estilística na produção verbal de determinado falante

é proveniente de e ecoa a variação que existe entre os falantes na dimensão

social.

6- Os falantes têm uma grande habilidade de adaptar seu estilo a uma gama de

diferentes interlocutores.

7- O significado e o modo de alteração de estilo de acordo com o tema e o

ambiente têm sua explicação na relação subjacente entre o tema ou ambiente

e seus típicos interlocutores.

8- Assim como há a dimensão “responsiva” do estilo, há também a dimensão

“iniciativa”, onde a própria mudança de estilo implica uma mudança na

situação de comunicação.

9- As mudanças de estilo por iniciativa do falante são, em essência, “adaptação

arbitrária”, por meio da qual os aspectos linguísticos associados a um grupo

de referência podem ser usados para expressar identificação com esse

grupo.

10- A pesquisa acerca do estilo requer um desenho e metodologia próprios.

Tanto o modelo de Labov quanto o de Bell são considerados por Bortoni-Ricardo

(2006) para a elaboração do contínuo de monitoração estilística. Para a autora, na

análise da heterogeneidade do português brasileiro, observar o processo de

monitoração do estilo do falante é essencial. Ela defende que as posições de Labov

60

e de Allan Bell acerca do que determina a monitoração estilística podem ser

tomadas como complementares.

Com vistas à operacionalização do contínuo de monitoração estilística, Bortoni-

Ricardo (2006) assenta a questão definindo, com Labov, que monitoração é um

processo que demanda atenção e planejamento, cujo grau – maior ou menor – é

determinado, em grande parte, pelo tipo de interlocutor, como argumenta Allan Bell.

Desse modo, de acordo com a autora, um falante prestará mais atenção à sua

produção verbal, quando ele estiver, por exemplo, diante de um interlocutor

desconhecido de maior poder na hierarquia social ou ainda diante de um interlocutor

a quem ele deseje impressionar.

O contínuo de monitoração estilística, portanto, é usado para situar as interações

conforme elas sejam mais monitoradas ou menos monitoradas. A localização das

interações em dado ponto desse contínuo – se mais próximas do pólo de mais

monitoração ou do pólo de menos monitoração – deve considerar, segundo Bortoni-

Ricardo (2006), o grau de pressão comunicativa incidente sobre o falante. De acordo

com a autora, são vários os fatores que podem determinar o grau de pressão

comunicativa e, por conseguinte, o grau de atenção e planejamento conferidos pelo

falante à sua produção verbal. A acomodação do falante a seu interlocutor é tida

com um dos fatores mais importantes, dividindo espaço também com mais outros

três, a saber: o apoio contextual na produção dos enunciados, a complexidade

cognitiva envolvida na produção linguística e a familiaridade do falante com a tarefa

comunicativa que está sendo desenvolvida.

O contexto, como um fator que influencia o processo de monitoração estilística,

não diz respeito a um único aspecto. Na verdade, como afirma Macedo (2004, p.

59), “Inúmeros aspectos, tanto internos ao discurso, como relativos à situação social

em que este se realiza, podem ser rotulados como contexto”. A própria interação

verbal, desse modo, é que vai definir o que pode ser tomado como contexto. Duranti

e Goodwin (1992) defendem que para um evento de comunicação ser

apropriadamente interpretado ou descrito de modo relevante é preciso se atentar

para fenômenos que estão além do próprio evento (tais como, o ambiente cultural, a

situação de fala e os conhecimentos compartilhados entre os interlocutores), ou

mesmo para aspectos da própria fala que evoquem pressuposições específicas,

relevantes para a organização da interação subsequente. Assim, para os autores, o

61

contexto seria um frame que envolve o evento em análise e que fornece recursos

para a sua adequada interpretação.

Por esse viés, podem-se destacar duas categorias de contexto importantes para

o processo de monitoração estilística: o contexto sociocultural e o contexto

sociocognitivo. Para entender o primeiro tipo de contexto, pode-se recorrer

inicialmente à consensual afirmação de que existem comportamentos verbais e não

verbais considerados adequados para cada tipo de situação social. Como Erickson e

Shultz sustentam (2002, p. 217), produzir um comportamento social apropriado a

cada novo momento exige que “saibamos, primeiramente, em que contexto nos

encontramos e quando esses contextos mudam. Exige que se saiba também qual

comportamento é considerado apropriado em cada um desses contextos”.

De modo geral, esses diferentes contextos correspondem ao que a tradição

sociológica denomina domínios sociais, ou seja, os ambientes físicos onde a

interação entre as pessoas é baseada nos papéis sociais que elas assumem. Uma

vez que os papéis sociais são definidos por normas socioculturais, os

comportamentos verbais adequados a cada papel social é também

socioculturalmente definido. Dessa forma, pode-se dizer que há uma relação social e

historicamente estabelecida entre determinados domínios e papéis sociais e

determinadas variedades da língua, marcadamente variedades estilísticas.

Normalmente no domínio do lar, no desempenho de papéis sociais de pai,

mãe, filho etc., as pessoas tendem a adotar um estilo menos monitorado,

caracterizado, inclusive, pela informalidade. Por outro lado, em domínios políticos,

como a câmara de vereadores, por exemplo, o sujeito que desempenha o papel

social de líder político, de vereador tende a adotar um estilo mais monitorado,

caracterizado, nesse caso, pela formalidade. Desse modo, pode-se dizer que dentre

os elementos do contexto social, os domínios e os papéis sociais são também

grandes determinantes do grau de monitoração estilística de uma interação.

Por uma perspectiva sociocognitiva, por outro lado, muito mais do que a

consequência do ambiente físico ou da combinação de participantes de uma

interação, o contexto seria o resultado do que as pessoas fazem a cada instante da

interação e como elas o fazem. Nas palavras de Erickson e Shultz (2002, p. 217), o

contexto “consiste na definição, mutuamente compartilhada e ratificada, que os

participantes constroem quanto à natureza da situação em que se encontram, e, a

seguir, nas ações sociais que as pessoas executam baseadas em tais definições”.

62

Essa dinamicidade do contexto faz como que ele se altere de momento a momento,

resultando, inclusive, numa constante modificação nos papéis que os participantes

assumem ao longo interação. Para sinalizar essas constantes alterações contextuais

e como elas devem refletir na produção e interpretação das interações verbais, os

falantes recorrem normalmente às chamadas pistas de contextualização, que são

assim definidas por Gumperz (2002, p. 152):

as pistas de contextualização são todos os traços linguísticos que contribuem para a sinalização de pressuposições contextuais. Tais pistas podem aparecer sob várias manifestações linguísticas, dependendo do repertório linguístico historicamente determinado, de cada participante. (...) Embora tais pistas sejam portadoras de informação, os significados são expressos como parte do processo interativo.

Lançar mão de pistas de contextualização ou mesmo de outros recursos

relacionados à variação contextual – o que inclui a própria variação estilística – pode

ser uma estratégia exigida pelo próprio evento de comunicação e pelo nível de

conhecimento compartilhado entre os interlocutores. Sendo assim, se os

interlocutores tiverem um alto nível de conhecimento compartilhado, a tendência é

que sua interação seja mais contextualmente dependente, ou seja, eles não

precisarão ser tão explícitos nem tão precisos verbalmente. Se, no entanto, o nível

de conhecimento compartilhado entre os interlocutores for baixo, a tendência é que

a interação seja menos contextualmente dependente, necessitando assim de uma

maior explicitude e precisão vocabular. Assim, uma vez conscientes dessas

diferenças no processo interpretativo, os falantes deverão saber como e quando

monitorar mais ou menos sua produção verbal (Bortoni-Ricardo, 2006)

O grau de complexidade cognitiva é outro fator apontado por Bortoni-Ricardo

(2006) como responsável pela pressão comunicativa que o falante pode sofrer

quando de sua produção verbal. A monitoração estilística, como resultado da

pressão comunicativa, seria maior quanto mais cognitivamente complexa for a

execução de uma tarefa comunicativa. A explicação estaria na ideia de que tarefas

comunicativas que se realizam com instrumentos linguísticos já conhecidos pelo

falante exigem menos esforço cognitivo; enquanto que as que se realizam com

recursos linguísticos que o falante não domina completamente exigem bem mais

esforço cognitivo.

63

Tarefas comunicativas que poderiam figurar no quadro das que exigem um

grau de complexidade cognitiva maior seriam as voltadas para a solução de

problemas, ou seja, aquelas que são marcadas por terem um tema definido que se

estende por longos períodos, por serem usadas para transmitir conhecimentos ou

ideias factuais e por serem predominantes em domínios sociais públicos. As tarefas

comunicativas que poderiam figurar no quadro das que exigem um menor grau de

complexidade cognitiva, por sua vez, seriam as do tipo associacional, caracterizadas

por não possuírem um objetivo específico, por possuírem uma estrutura tópica de

relação mais frouxa, por serem determinadas pelos interesses imediatos dos

interlocutores e por serem mais predominantes nos domínios sociais íntimos e

privados. (McGuire & Lorch, 1968, apud Bortoni-Ricardo, 2006)

É possível, desse modo, associar os dois tipos de tarefas comunicativas (as

cognitivamente mais complexas e as menos complexas) com as duas categorias de

gêneros discursivos propostas por Bakhtin (1997): os gêneros discursivos primários

e os secundários. Por esse ponto de vista, os gêneros primários, relacionados mais

diretamente com a modalidade oral da língua e com as esferas do cotidiano e

constituídos em circunstâncias de uma comunicação verbal espontânea, exigiriam

menos esforço cognitivo para sua produção. A produção dos gêneros secundários,

por seu turno, exigiria bem mais esforço cognitivo, uma vez que são constituídos em

circunstâncias de uma comunicação cultural mais complexa, sendo normalmente

associados à modalidade escrita da língua e às esferas dos sistemas ideológicos

constituídos.

Um outro fator de grande influência, segundo Bortoni-Ricardo (2006), no grau

de pressão comunicativa incidente sobre o falante é sua familiaridade com rotinas

linguísticas específicas. Aspecto muito importante dentro da Etnografia da

Comunicação, rotinas linguísticas, de acordo com Saville-Troike (2003), são

enunciados ou sequência de enunciados fixos ou relativamente fixos que devem ser

considerados como unidades, visto que seu significado não advém da consideração

de cada um de seus segmentos, mas do seu conjunto. Exercendo uma função

primordialmente performativa, as rotinas linguísticas podem variar muito em

extensão, indo de uma única palavra (oi!) a frases (Como vai você?/ Tenha um ótimo

dia!) ou mesmo uma sequência complexa de sentenças. As rotinas linguísticas

também se caracterizam por poder ser enunciadas por uma única pessoa ou

64

requerer a cooperação entre duas ou mais pessoas, como é o caso de uma

sequência de saudações.

Tanto a produção quanto a interpretação de rotinas linguísticas requerem um

conhecimento cultural compartilhado entre os interlocutores, visto que geralmente

elas são culturalmente situadas, variando, portanto, de uma cultura para outra,

apesar de possíveis traços em comum.

Em sociedades complexas, como é o caso da brasileira, o número e a

variedade de rotinas linguísticas são muito grandes. No entanto, é também muito

grande a variação no conhecimento que os falantes possuem dessas rotinas,

sobretudo as ligadas à cultura de letramento, que normalmente são implementadas

na variedade culta da língua. Nesse caso, observa-se que quanto menor a

familiaridade do falante com determinada rotina linguística, maior será a pressão

comunicativa incidente sobre ele.

Em se tratando da sociedade brasileira, em que um número considerável de

indivíduos tem pouca familiaridade com rotinas linguísticas próprias da cultura de

letramento, é flagrante o desempenho desses falantes ser marcado por uma notável

insegurança linguística. Isso porque essas são tarefas que exigem um alto grau de

monitoração estilística e consequentemente a mobilização de recursos linguísticos e

comunicativos que muitas vezes esses falantes não têm à sua disposição.

De modo geral, pode-se dizer que são os eventos comunicativos que estão

situados mais próximos do polo de letramento no contínuo de oralidade-letramento

os que exigem, por parte dos falantes, uma maior monitoração estilística. Essa

exigência advém, em boa medida, do fato de grande parte dos eventos de

letramento caracterizar-se por ser menos dependentes contextualmente; por

exigirem mais esforço cognitivo; e por se constituírem de rotinas linguísticas cujo

conhecimento é de modo geral associado à escolarização e a um alto nível de

letramento.

Normalmente há uma identificação entre os estilos mais monitorados e um

maior grau de formalidade, o que não significa apenas o aumento na demanda de

mais atenção à forma linguística, mas também à demanda de uma maior

aproximação das convenções da variedade culta, sobretudo quando a monitoração

se dá no quadro de eventos comunicativos letrados. Sendo assim, indivíduos que

manejam com segurança estilos mais monitorados da língua são aqueles que

possuem um alto grau de letramento, ou seja, são aqueles que se encontram

65

inseridos numa cultura de leitura e escrita. Nesse sentido, é oportuna a observação

que Bagno (2007, p. 46) faz:

Uma pessoa que foi alfabetizada, mas não ultrapassou os primeiros anos da escola formal nem criou o hábito de ler e escrever com frequência, certamente não vai dispor dos mesmos recursos de monitoramento estilístico de alguém que cursou a universidade, tem bom desempenho no domínio da escrita, conhece as convenções dos diferentes gêneros textuais, maneja um vocabulário mais amplo e diversificado etc. O grau de letramento elevado também favorece, é claro, a produção de textos falados mais monitorados, em que uma pessoa tenta reproduzir na oralidade mais formal traços característicos dos gêneros textuais escritos mais monitorados.

Nesse panorama, em situações de comunicação onde a pressão

comunicativa esteja presente e, portanto, haja a exigência do uso de estilos mais

monitorados da língua, será o conhecimento da norma e não apenas o seu

reconhecimento o que garantirá ao falante um desempenho linguístico marcado pela

eficiência e segurança. A questão, no entanto, é que, dependendo dos atributos

socioculturais do indivíduo, bem como de seu grau de inserção na cultura de

letramento, o que lhe resta é somente o reconhecimento da norma, ou seja, o

conhecimento da sua existência, mas não necessariamente o seu domínio. Em tais

condições, a produção verbal do indivíduo pode mesmo ser marcada por uma

considerável insegurança linguística.

Esses dois estados aos quais um falante pode estar submetido quando em

situação de pressão comunicativa - a segurança e a insegurança linguísticas - são

assim explicados por Calvet (2002, p. 72):

Fala-se de segurança linguística quando, por razões sociais variadas, os falantes não se sentem questionados em seu modo de falar, quando consideram sua norma a norma. Ao contrário, há insegurança linguística quando os falantes consideram seu modo de falar pouco valorizador e têm em mente outro modelo, mais prestigioso, mas que não praticam.

Casos específicos de insegurança linguística são mais comuns em situações

em que há multilinguismo ou multidialetalismo e que pelo menos uma das línguas ou

um dos dialetos que convivem entre si goza de prestígio social. A comunidade de

fala brasileira, como vem sendo descrita, é exemplar nesse sentido, uma vez que

nela é possível identificar a existência de diferentes variedades que são avaliadas

socialmente de maneiras diferentes: uma delas é considerada de prestígio, enquanto

66

as outras, em diferentes graus e em diferentes contextos, são consideradas

estigmatizadas. Nesse cenário, o que se nota é que os falantes das variedades

estigmatizadas se sentem inseguros quando interagem em situações comunicativas

que exigem certo grau de monitoração estilística e, por conseguinte, o uso da

variedade de prestígio.

Para os falantes das variedades estigmatizadas, a manifestação objetiva da

insegurança linguística será tanto maior quanto maior for a distância entre o

reconhecimento da variedade de prestígio e o conhecimento que se tenha dela, ou

seja, entre o reconhecimento da norma e a capacidade de usá-la. Assim, havendo o

reconhecimento mas não necessariamente o conhecimento da norma, poderá ser

observada na produção verbal do falante uma considerável manifestação de

vigilância linguística, evidenciada por fenômenos como autocorreções e

hipercorreções. Ao discutir essa questão, Bourdieu (1994, p. 177) argumenta:

(...) é nas camadas superiores das classes populares e na pequena burguesia que a insegurança e, correlativamente, o alto grau de vigilância e censura atingem seu máximo. Com efeito, enquanto as classes populares estão colocadas diante da alternativa livre-falar (negativamente sancionada) ou silêncio, os membros da classe dominante, cujo habitus linguístico é a realização da norma ou a norma realizada, podem manifestar o desembaraço que lhes dá a segurança (estritamente oposta à insegurança) e a competência real a ela frequentemente associada. Já os pequenos-burgueses dedicam-se a uma busca ansiosa de correção que podem levá-los a ultrapassar os burgueses na tendência a utilizar as formas mais corretas e as mais rebuscadas.

Como resultado de uma grande flutuação estilística, de uma

hipersensibilidade às formas estigmatizadas usadas por eles mesmos, falantes

como os citados por Bourdieu acabam por recorrer ao fenômeno denominado

hipercorreção linguística. Bagno (2012, p. 954) assim descreve esse fenômeno:

Reconhecendo em seus próprios hábitos linguísticos formas que sofrem estigmatização por parte dos mais letrados e, para reagir a essa estigmatização, se apoderando de formas linguísticas que não pertencem à sua variedade específica, os falantes das camadas médias baixas passam a empregar essas formas “importadas” com maior frequência até que os falantes das camadas médias altas e altas. E, nesse aumento de frequência de uso, aplicam a regra recém-adquirida em contextos onde ela não se aplicaria, segundo a gramática normativa e/ou a gramática da variedade de maior prestígio.

67

Dois princípios cognitivos são apresentados por Bagno (2012) como

motivadores para que um falante recorra à hipercorreção linguística. Segundo o

autor, o primeiro princípio - usado mais por falantes de camadas médias baixas ou

com letramento insuficiente - consiste no seguinte: em contextos em que a exigência

seja por um estilo mais monitorado, entre uma forma A, habitual e espontânea, e

uma forma B, estranha à variedade linguística da pessoa, ela irá optar pela forma B.

O segundo princípio, por sua vez, presente também na atividade linguística de

falantes mais letrados, seria, segundo Bagno (2012), assim expresso: visando não

sofrer estigma de seus pares e, assim, preservar sua imagem, entre uma forma X, já

incorporada à gramática do português brasileiro, e uma forma Y, presente no padrão

normativo, a pessoa opta pela forma Y. Decorrente, portanto, de uma hipótese

errada que o falante realiza na tentativa de ajustar-se à norma-padrão, a

hipercorreção linguística, como assevera Calvet (2002), ocorre em duas situações:

quando o falante quer fazer crer que domina a língua legítima ou quando ele quer

fazer apagar a própria origem.

Muito comum em contextos de monitoração estilística, esse fenômeno pode

se dar nos vários níveis da língua, do fonológico ao sintático, entre outros. Couto

(2007) apresenta alguns exemplos de hipercorreção linguística que podem ser

considerados bem representativos, como os listados a seguir para os níveis

fonológico e sintático – em que as formas aspeadas correspondem à norma de

prestígio:

(a) púdico –“pudico”/ metropólita – “metropolita”

(b) ourelha – “orelha”/ feichar – “fechar”/ bandeija – “bandeja”/ carangueijo –

“caranguejo”

(c) malmita – “marmita”/ galfo – “garfo”/ melha – “meia”/ telha –“teia” (de

aranha)/ pilhor – “pior”

(d) O homem que se chama-se José. – “O homem que se chama José.”

(e) Não pode-se maltratar os animais. – “Não se pode maltratar os animais.”

(f) Darei-te um presente. – “Dar-te-ei um presente./Te darei um presente.”

(g) Ele não supunha, nem mesmo com todas as evidências, de que estava

sendo enganado. – “Ele não supunha, nem mesmo com todas as

evidências, que estava sendo enganado.”

(h) Haviam muitas pessoas na sala. – “Havia muitas pessoas na sala.”

68

O tipo de comportamento linguístico que um falante apresenta numa interação

verbal, se marcado pela segurança ou pela insegurança linguística, pode mesmo ser

relacionado a uma grande diversidade de fatores, tanto sociais quanto individuais.

Em se tratando da variação estilística, especificamente, a mobilidade e a liberdade

que um indivíduo tem para transitar entre estilos menos ou mais monitorados, são

determinadas, sem dúvida, pelo domínio que ele tem dos recursos comunicativos.

Assim, como afirma Bourdieu (1994), é a estrutura da relação objetiva entre as

posições que emissor e receptor ocupam na estrutura de distribuição do capital

linguístico e das outras espécies de capital que determina o que pode ser dito e a

maneira de dizê-lo numa dada circunstância.

69

3. METODOLOGIA

A Etnografia da Comunicação, como uma abordagem que estuda a linguagem

e a comunicação em seu contexto social, destaca-se por ser uma área cujas

pesquisas são marcadamente de caráter qualitativo. Tendo como escopo a

descrição da linguagem e da comunicação como aspectos constitutivos de uma

dada cultura, a Etnografia da Comunicação vale-se de contribuições teórico-

metodológicas tanto das Ciências Sociais – com destaque para a Antropologia –

quanto da Linguística.

Diferentemente de alguns dos estudos desenvolvidos em áreas como a

Sociologia e a Psicologia, os estudos etnográficos não visam o controle de variáveis

e a produção de resultados estatísticos. Como destaca Fasold (1990), o trabalho em

Etnografia da Comunicação, justamente devido à sua natureza etnográfica, visa

obter um entendimento global dos pontos de vista e valores de uma comunidade

como uma forma de explicar as atitudes e comportamentos de seus membros.

Informações desse tipo, como argumenta o autor, somente são alcançadas por meio

de uma compreensão profunda da comunidade pelo pesquisador.

Para alcançar os dados de que precisa em sua pesquisa, o etnógrafo da

comunicação tem à sua disposição não apenas um método, mas diversos.

Introspecção, observação-participante, observação, entrevista, etnosemântica,

etnometodologia e filologia são os sete métodos apresentados por Saville-Troike

(2003) para a coleta de dados em Etnografia da Comunicação. A escolha do método

adequado, segundo a autora, depende da relação do etnógrafo com a comunidade

de fala, do tipo de dado a ser coletado e da situação particular na qual o trabalho de

campo será desenvolvido. O que o pesquisador precisa ter em mente é que a

escolha do(s) método(s) deve ter como critério principal o potencial que o método

tem de colaborar na reunião de informações suficientes acerca da comunidade de

fala e dos fenômenos a serem enfocados.

A observação-participante e a introspecção são tidas como os dois métodos

mais importantes dentro dessa abordagem. Como o método usado desde longa data

pelos etnógrafos em geral, a observação-participante é o preferencial quando a

análise etnográfica recai sobre uma cultura a que o pesquisador não pertence. O

método de introspecção, por sua vez, é o recomendado quando o etnógrafo

70

pesquisa a sua própria comunidade, ou seja, quando ele visa analisar seus próprios

valores e comportamentos e de sua própria comunidade. Os métodos observação,

entrevista e filologia são considerados auxiliares em relação à observação-

participante e à introspecção, uma vez que com eles chega-se a informações

adicionais e relevantes para se explicar a comunidade de fala em estudo.

Os dois outros métodos listados, a etnosemântica e a etnometodologia, são

normalmente usados em estudos etnográficos bem específicos. Segundo Saville-

Troike (2003), o etnógrafo se utiliza da etnosemântica principalmente para descobrir

como a experiência é categorizada. Recolhe-se, para tanto, termos dos vários níveis

de abstração da língua dos informantes e se analisa sua organização semântica,

geralmente por meio de uma taxonomia ou análise componencial. Estudos acerca

da visão de medicina e cura de comunidades de fala indígenas, por exemplo, se

valem da etnosemântica. A etnometodologia, por seu turno, é geralmente usada

para estudos da interação conversacional, ou seja, estudos que, como afirma

Duranti (1988), focam, por exemplo, no papel da fala na criação do contexto, na

perspectiva dos participantes numa interação ou na natureza cooperativa da

comunicação verbal.

Como o objetivo dessa pesquisa foi descrever um evento de comunicação

específico, a Sessão Ordinária da Câmara, em suas regras culturais, interacionais e,

sobretudo, linguísticas, e analisar como essas regras são seguidas por seus

participantes, os métodos adotados foram, de certo modo, uma exigência do próprio

objetivo. Partindo da premissa metodológica de que o objeto da pesquisa impõe a

maneira de abordá-lo, julgou-se que a melhor maneira de se alcançar informações

suficientes para uma adequada descrição da Sessão Ordinária da Câmara e da

competência comunicativa por ela exigida seria através da combinação de três dos

métodos mais comuns em Etnografia da Comunicação: a observação-participante, a

entrevista e a filologia. Uma escolha que se justificou na medida em que cada um

desses métodos mostrava-se capaz de auxiliar na elucidação de importantes

aspectos do objeto em estudo.

O processo de investigação etnográfica formal teve início com a utilização do

método filológico, ou seja, recorreu-se inicialmente a fontes escritas que pudessem

fornecer informações relevantes acerca da estrutura e organização das

comunidades de fala de interesse para a pesquisa (as quais são, de certo modo,

imbricadas), assim como da situação comunicativa e dos eventos comunicativos.

71

Para levantar informações sociais, geográficas e econômicas de São Domingos –

BA (a comunidade de fala, nesse caso, mais abrangente), recorreu-se à base de

dados oferecida pelo IBGE, com ênfase nos dados provenientes de suas últimas

pesquisas, como o Censo 2010, por exemplo; recorreu-se também à Lei Orgânica

do Município de São Domingos – BA, de 27 de novembro de 2012, na qual se

encontra, entre outras questões, a regulamentação da organização da administração

municipal e da ordem econômica e social do município.

Importantes informações acerca da Câmara Municipal de São Domingos (a

comunidade, nesse caso, mais específica para a pesquisa) foram levantadas

também pelo método filológico, recorrendo-se tanto à Lei Orgânica do Município de

São Domingos quanto ao Regimento Interno da Câmara Municipal, de 18 de

dezembro de 2012. Especificamente no Regimento Interno encontram-se

regulamentadas questões como as atribuições da Câmara, sua composição, o papel

de seus participantes e as finalidades, estrutura e organização dos eventos que nela

se desenvolvem, como é o caso das Sessões em suas diversas categorias.

As características sociodemográficas dos sujeitos da pesquisa, ou seja, dos

membros da Câmara Municipal, foram levantadas por meio de entrevista.

Considerando critérios como controle do informante e uniformidade de estímulos

apresentados, o modelo adotado foi o de entrevista estruturada, visto que foram

feitas as mesmas perguntas para todos os informantes, perguntas previamente

definidas. Apesar de as entrevistas semiestruturadas e as não-estruturadas serem

mais comuns em estudos etnográficos, a opção pela entrevista estruturada se

justificou por ela, nesse caso, ter sido usada como um método auxiliar e pelo fato de

que o foco estava mais em dados objetivos dos participantes do que

necessariamente em atitudes e valores de cada um deles.

A entrevista aplicada com os nove (9) membros da Câmara Municipal era

composta de 30 questões, cujos temas abarcavam diferentes aspectos da inserção

social deles e das práticas socioculturais de que eles e suas famílias participam ou

tenham participado (cf. Apêndice A). Nesse sentido, foram feitas perguntas

relacionadas à escolaridade, origem geográfica, status social, bem como

relacionadas à participação deles em práticas sociais de oralidade e de letramento,

cujas respostas permitiram, por exemplo, a confirmação de que ali se encontravam

tanto sujeitos de origem urbana quanto de origem rurbana.

72

As Informações adquiridas por meio das entrevistas, como se verá, foram

ainda de grande utilidade para a explicação de aspectos ligados à participação de

cada um dos líderes políticos no evento comunicativo analisado (Sessão Ordinária

da Câmara), ao repertório linguístico-comunicativo deles e, de modo mais amplo, à

sua competência comunicativa.

Em relação à escolha do método predominante na pesquisa empreendida, é

preciso esclarecer porque a observação-participante se impôs. Se o foco da

pesquisa estivesse especificamente na comunidade de fala mais ampla, ou seja, na

cidade de São Domingos, o método mais adequado a ser adotado seria a

introspecção, visto ser o pesquisador um membro dessa comunidade de fala. No

entanto, como se está considerando a noção de comunidades de fala sobrepostas

(Saville-Troike, 2003), e, desse modo, focou-se numa comunidade de fala específica

entre as muitas possíveis (a Câmara Municipal), da qual o pesquisador não é

necessariamente um membro, o método mais adequado a ser adotado passou

mesmo a ser a observação-participante. A opção por observação-participante e não

apenas observação tem sua justificativa no fato de que, quando da pesquisa, o

pesquisador compunha um dos elementos da situação comunicativa e, por

conseguinte, do evento comunicativo, a saber, o auditório, que, de acordo com Bell

(1984), em sua teoria do audience design, é um elemento ratificado (na situação ou

no evento), exercendo, portanto, certa influência em seu desenvolvimento, mesmo

que de modo indireto.

Nesse sentido, como um membro do auditório, o pesquisador procedeu a uma

observação-participante de Sessões Ordinárias da Câmara. Com vistas a descobrir,

na prática, os elementos desse evento de comunicação, bem como a relação entre

esses elementos e as regras em jogo (linguísticas, interacionais e culturais), foram

acompanhadas e registradas em áudio 5 (cinco) Sessões Ordinárias, em datas

alternadas, ao longo de quatro meses da Sessão Legislativa Anual. Totalizando 10

horas de gravação, os dados foram transcritos na modalidade grafemática, de modo

a demonstrar da maneira mais fiel possível as formas linguísticas utilizadas pelos

participantes.

Como já apontado, o evento comunicativo alvo dessa pesquisa se insere em

duas comunidades de fala de tamanhos e características diferentes, porém

sobrepostas, imbricadas. Considerando conceituações de comunidade de fala como

as propostas por Gumperz (1968) e Saville-Troike (2003) – resumidamente,

73

agregado humano cuja interação se baseia numa série de conhecimentos

compartilhados, entre os quais o uso da língua – para essa pesquisa pôde-se fazer

um recorte de uma comunidade de fala maior, a cidade de São Domingos – BA, e

uma menor, a Câmara Municipal.

A cidade de São Domingos pode ser considerada como uma comunidade de

fala, visto que seus habitantes integram um grupo social cujos membros interagem

regularmente – ou potencialmente – através de uma mesma língua – a língua

portuguesa – e compartilha, de certo modo, princípios e regras básicas de interação,

valores e atitudes em relação à língua etc.

Como uma unidade social, São Domingos é uma pequena cidade localizada

no nordeste baiano, na região do semiárido. A 234 km da capital do estado,

Salvador, a cidade possui, segundo dados do Censo 2010 do IBGE, uma população

de 9.226 habitantes, dos quais 35,9% têm residência rural e 64,1% residência

urbana. A cidade, que se emancipou politicamente em 1989, possui, além da sede,

um distrito e cinco povoados.

Com um IDHM (Índice de Desenvolvimento Humano Municipal) medido em

0,640, em 2010, São Domingos tem um PIB per capita estimado em 5.355,27 reais.

A renda dos moradores provém basicamente do funcionalismo público (municipal e

estadual, principalmente), do comércio, da pecuária (bovinos, caprinos e ovinos), da

agricultura (feijão, milho, mandioca e, em maior proporção, o sisal) e de benefícios

previdenciários.

De acordo com o Censo realizado pelo INEP (Instituto Nacional de Estudos e

Pesquisas Educacionais) em 2012, o município possui 13 escolas de Ensino

Fundamental, sendo 10 municipais, 2 privadas e 1 estadual; 2 escolas de Ensino

Médio, ambas estaduais; e 7 pré-escolas, sendo 2 privadas e 5 municipais. A taxa

de analfabetismo da população de 15 anos ou mais, segundo dados do Censo 2010

do IBGE, é de 22,1%.

Pode-se dizer que São Domingos, como comunidade de fala, do mesmo

modo que outras tantas cidades pelo país, não tem uma população dividida em

apenas dois grupos, urbana e rural. Na verdade, se forem adotados os critérios

usados pela Antropologia Urbana, tais como definidos em Southall (1973), boa parte

da população poderá ser considerada rurbana, uma vez que residem em distritos ou

núcleos semirrurais. Essa parcela de falantes rurbanos tem como característica o

74

fato de terem, por exemplo, antecedentes rurais, de modo a preservar muito de sua

cultura rural, sobretudo no seu repertório linguístico.

Numa perspectiva micro, a comunidade de fala alvo dessa pesquisa foi a

Câmara Municipal de São Domingos, que, se ajustando bem ao conceito de

comunidade de fala proposto por Saville-Troike (1982) e ao de comunidade de

prática, proposto por Eckert e McConnel-Ginet (1998), é uma unidade social

produtiva para a pesquisa. Na Câmara Municipal, tem-se um grupo de pessoas que

interagem por meio de signos verbais e que até certo ponto compartilham regras

linguísticas, interacionais e culturais; um grupo que, como se verificará, é marcado,

inclusive, por sua heterogeneidade.

A Câmara de Vereadores de São Domingos, conforme seu Regimento Interno

(2012), é o órgão legislativo do município. Ela é composta pelos vereadores eleitos

de acordo com a legislação vigente e tem como funções: realizar fiscalização

contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial; realizar controle

político-administrativo; e realizar ações de assessoria e administração interna. A

composição desse órgão tem duração de quatro anos, sendo alterada ou renovada

quando das eleições municipais. Seu funcionamento se dá em quatro Sessões

Legislativas Anuais, que se dividem em dois períodos: um, de 15 de fevereiro a 30

de junho, e outro, de 01 de agosto a 15 de dezembro.

No contexto dessa pesquisa, o termo Câmara Municipal pode designar tanto a

comunidade de fala quanto a situação de comunicação. Como comunidade de fala,

ele tem, entre outras, as características listadas acima. Como situação de

comunicação – tomada como unidade de interação que abriga eventos de

comunicação e também de outros tipos – a Câmara Municipal tem suas próprias

regras e características. Como situação comunicativa, ela é constituída pelo

Plenário, que são os vereadores em exercício reunidos em local, forma e número

legal para deliberar. O Plenário da Câmara Municipal é, por sua vez, composto de

uma série de papéis sociais que podem ser desempenhados pelos seus membros,

tanto papéis permanentes, quanto temporários.

Além do papel de vereador, o essencial e anterior a qualquer outro, os

participantes da situação de comunicação Câmara Municipal podem se enquadrar

em algum dos papéis da Mesa Diretora, integrarem uma ou mais das comissões

existentes, além de poder ser líder ou representante partidário. Especificamente no

papel de vereador, o participante é tido como um agente político de mandato

75

legislativo municipal inviolável por suas opiniões, palavras e votos em seu exercício

e na circunscrição do município. Nesse papel, ele possui alguns direitos, entre os

quais se destacam:

oferecer proposições em geral, discutir e deliberar sobre qualquer

matéria em apreciação na Câmara e integrar o Plenário;

fazer uso da palavra;

integrar as comissões e representações externas e desempenhar

missão autorizada;

promover, perante quaisquer autoridades, entidades ou órgãos

federais, estaduais ou municipais os interesses públicos ou as

reivindicações coletivas da comunidade representada;

examinar processos, durante o expediente da Secretaria da Câmara

Municipal, solicitando, por escrito, a autorização do Presidente da

Mesa Diretora para a retirada daqueles;

solicitar autorização para utilizar a sala das sessões com a finalidade

de ouvir a comunidade sobre assuntos de interesse desta.

Ainda no papel de vereador, o membro dessa situação de comunicação tem,

entre outros, os seguintes deveres:

participar de todos os trabalhos relativos ao desempenho de seu

mandato;

dar, nos prazos regimentais, pareceres e votos, comparecendo às

reuniões das comissões a que pertencer e delas participe;

propor ou levar ao conhecimento da Câmara Municipal medidas que

julgar convenientes aos interesses do município e de sua população;

participar das Comissões Permanentes e Temporárias.

Como vereador, o membro dessa situação de comunicação está submetido

ainda a uma série de regras, o que inclui, por exemplo, a vedação de participação

em determinadas comunidades, como é caso das consideradas legalmente

incompatíveis com seu cargo. A sua destituição desse papel se dá por sua morte,

76

por renúncia ou por perda do mandato; no caso deste último, observando as

condições previstas em legislação, com destaque para o que prevê a Lei Orgânica

Municipal (2012), em seu art. 26, a saber: o não comparecimento, em cada período

legislativo anual, à terça parte das Sessões Ordinárias da Câmara Municipal,

efetivamente realizadas, ou ainda, o não comparecimento às Sessões

Extraordinárias para as quais seja devidamente convocado, salvo pelos motivos

previstos em lei.

Além do papel de vereador, o membro da Câmara Municipal pode compor a

Mesa diretora, desempenhando o papel de Presidente, de Vice-Presidente, de 1º

Secretário ou de 2º Secretário. A escolha de quais vereadores assumirão cada um

desses papéis se dá por meio de uma eleição interna. Com um mandato de dois

anos, conforme Lei Orgânica do Município (2012), a Mesa Diretora tem a função de

dirigir os trabalhos legislativos e os serviços administrativos. O Presidente da Mesa

Diretora é o representante da Câmara Municipal, quando esta se pronuncia

coletivamente, o supervisor de seus trabalhos e de sua ordem, e possui como

atribuições, entre outras:

dar cumprimento a todas as atribuições inerentes ao ato de dirigir,

disciplinar e orientar os trabalhos durante as Sessões, de acordo com o

Regimento Interno;

anotar, em cada documento ou Processo Legislativo, sua decisão ou a

do Plenário;

assinar e encaminhar correspondências referentes às deliberações de

proposições;

promulgar e publicar resoluções, decretos legislativos e leis;

manter controle da correspondência oficial da Câmara Municipal;

exercer outras atribuições ligadas ao funcionamento da própria Câmara

como instituição e à relação entre Poder Legislativo Municipal e Poder

Executivo.

Quanto ao Vice-Presidente da Mesa Diretora, é de sua competência substituir

o Presidente em suas ausências, impedimentos e licenças, assumindo as funções

legislativas do Presidente, na forma prevista pelo Regimento Interno.

77

No papel de 1º Secretário, o membro da Câmara tem, entre outras

atribuições, as seguintes:

proceder à chamada nominal para votações, quando determinado pelo

Presidente da Mesa Diretora;

assinar, com o Presidente da Mesa Diretora, as correspondências

referentes às deliberações de proposições;

ler os expedientes das Sessões;

efetivar a leitura da ata da Sessão anterior.

Ao 2º Secretário, por sua vez, cabe as mesmas atribuições listadas

anteriormente, porém sendo necessário exercê-las apenas quando em substituição

do 1º Secretário.

Os Vereadores também podem assumir o papel de membro de pelo menos

uma das comissões existentes na Câmara. Com o objetivo de estudar proposições,

emitir pareceres, realizar investigações ou representar a Câmara Municipal quando

for o caso, as comissões podem ser permanentes ou temporárias. No caso das

permanentes, são compostas por três membros (sendo um deles o Presidente) e, de

acordo com o Regimento Interno da Câmara Municipal (SÃO DOMINGOS–BA, 2012,

p. 41), têm as denominações:

I – Justiça, Legislação e Redação Final; II – Finanças e Orçamento; III – Desenvolvimento Urbano, Obras, Viação e Transporte; IV – Educação, Cultura e Desporto; V – Saúde; VI – Economia, Indústria, Comércio e Agricultura; VII – Defesa ao Consumidor e Segurança Pública; VIII – Água, Trabalho, Administração e Serviços Públicos; IX – Meio Ambiente; X – Direitos Humanos e de Defesa da Cidadania do Menor e do Idoso; XI – Comissão de Ética; XII – Comissão Permanente de Fiscalização.

As Comissões Temporárias são constituídas com finalidade especial ou de

representação e se extinguem com o término da Legislatura ou, antes dela, quando

atingidos os objetivos para os quais foram constituídas. Essas comissões podem ser

de três tipos: Especiais, de Inquérito e de Representação. Compostas de três

membros, as Comissões Especiais são constituídas por deliberação do Plenário por

78

meio de requerimento escrito de qualquer vereador e tem suas finalidades

especificadas no próprio texto do pedido. Compostas de cinco membros, as

Comissões de Inquérito são criadas com vistas a apurar determinado fato, mediante

a aprovação de requerimento subscrito por um terço dos membros da Câmara.

Compostas de número variável de membros, de acordo com o ato a ser realizado,

as Comissões de Representação são constituídas para representar a Câmara

Municipal em atos externos, por meio de designação pelo Presidente da Mesa

Diretora, advinda de sua própria iniciativa ou de requerimento escrito de qualquer

vereador, com aprovação do Plenário.

Na Câmara Municipal, os Vereadores também podem desempenhar os

papéis de Líder, Vice-Líder ou Representante de Partido. Os Vereadores cuja

representação partidária na Câmara seja igual ou superior a dois Vereadores são

agrupados por bancada partidária, para a qual são indicados um Líder e um Vice-

Líder. O partido representado na Câmara por um único Vereador possui, ao invés de

liderança, um Representante Partidário. São atribuições comuns tanto aos líderes

quanto aos representantes partidários, entre outras: fazer uso da palavra em defesa

da respectiva linha política e encaminhar a votação de qualquer proposição sujeita à

deliberação do Plenário.

Sendo uma situação de comunicação, a Câmara Municipal abriga

determinados eventos de comunicação, que possuem cada qual suas próprias

regras. Podem-se enumerar as Sessões da Câmara Municipal em suas seis

categorias: as Sessões Ordinárias, as Extraordinárias, as Solenes, as Preparatórias,

as Secretas e as Especiais; e ainda as Reuniões e as Audiências Públicas das

Comissões. Cada um desses eventos comunicativos, apesar de terem em comum

uma série de características, tem suas peculiaridades em seus fatores constitutivos

– a situação, os participantes, os propósitos, a sequência dos atos de fala, o tom

emocional, os instrumentos, as normas, os gêneros, entre outros apontados por

Hymes (1972b).

As Audiências Públicas podem ser realizadas pelas Comissões da Câmara

para instruir matéria legislativa em trâmite, bem como para tratar de assuntos de

interesse público relevante e relacionados à área de atuação da Comissão. Com a

participação de entidades da sociedade civil ou de populares, esse evento

comunicativo somente acontece mediante proposta de algum membro de

determinada comissão ou a pedido de interessados. As Reuniões das Comissões,

79

por sua vez, normalmente envolvem apenas os seus membros, e podem ser de

natureza ordinária, sendo realizadas semanalmente, em dia e horário determinados;

e de natureza extraordinária, mediante a convocação do seu presidente ou a

requerimento da maioria de seus membros. Essas reuniões acontecem no prédio

mesmo da Câmara Municipal e tem sua duração e caráter público ou secreto

determinados pelas comissões. O propósito essencial desses eventos é a

deliberação de proposições e discussão de assuntos pertinentes à comissão em

questão.

Cada um dos seis tipos de Sessões da Câmara possui suas regras

específicas, apesar de terem em comum determinadas características. O Regimento

Interno da Câmara (2012) estabelece que, para participar desses eventos, os

vereadores devem comparecer devidamente trajados, exigindo-se o uso de paletó e

gravata para os homens e traje similar para as mulheres. É estabelecido também

que, em regra, as sessões sejam públicas e sejam realizadas na Sala de Sessões

da Câmara Municipal, com exceção das Secretas e, se for o caso, das Solenes e

das Especiais. As Sessões da Câmara, conforme Regimento Interno (2012),

acontecem ao longo da Sessão Legislativa Anual. As únicas que podem acontecer

no período correspondente ao recesso parlamentar são as Sessões Extraordinárias.

Com exceção das Solenes e das Especiais, durante a realização das

Sessões, apenas se permite a permanência dos vereadores, dos funcionários

convocados pelo Presidente da Mesa Diretora, dos assessores de vereadores, de

autoridades e dos representantes credenciados dos meios de comunicação. A

participação dos cidadãos de modo geral é legalmente permitida, mas via de regra

apenas na condição de audiência, ou seja, é permitido que qualquer cidadão assista

às Sessões da Câmara Municipal, salvo se a natureza da sessão assim não permitir

(as Secretas, por exemplo) ou em situação regimentada. Nesse caso, pode-se dizer,

considerando os diferentes tipos de interlocutores classificados por Bell (1984), que

os cidadãos, nas Sessões da Câmara, classificam-se como auditors, uma vez que

eles são conhecidos dos membros das Sessões, são por eles ratificados, porém não

são necessariamente visados.

As Sessões Especiais, especificamente, de acordo com o Regimento Interno

da Câmara (2012), são realizadas com a finalidade de se ouvirem os problemas de

determinada comunidade. Elas podem acontecer com a presença de qualquer

número de vereadores, não têm uma duração definida e podem ser realizadas tanto

80

na Sala das Sessões da Câmara Municipal quanto em outro local, desde que assim

delibere o Plenário.

As Sessões Secretas são realizadas para apreciação de projetos de lei ou

outra proposição de honrarias. Sua realização é condicionada pelo reconhecimento,

por maioria do Plenário, da relevância do motivo para determinar o caráter secreto

da sessão. Essas sessões somente podem ser iniciadas com a presença da maioria

absoluta dos vereadores. Em regra, elas não têm duração determinada e acontecem

dentro de uma Sessão Ordinária, cujo andamento é suspenso, na forma regimental,

pelo Presidente da Mesa Diretora.

Com propósitos bem específicos, as Sessões Preparatórias são realizadas,

quando da instalação da Legislatura, para se eleger os componentes da Mesa

Diretora e para se indicar ou eleger os membros das Comissões Permanentes e

representantes da Câmara perante os órgãos criados por leis especiais. Essas

sessões, de acordo com o Regimento Interno, somente poderão ter início com a

presença da maioria absoluta dos vereadores e também não possuem uma duração

determinada, sendo sua suspensão condicionada à aprovação da maioria absoluta

dos seus membros.

As Sessões Solenes são realizadas para a instalação da Legislatura e posse

da Mesa Diretora ou para comemorações ou homenagens especiais. Para esse

último propósito especificamente, a realização de uma dessas sessões precisa ser

convocada pelo Presidente da Mesa Diretora ou por requerimento de algum

vereador, aprovado pelo Plenário. Podendo ser realizadas com qualquer número de

membros e com duração indeterminada, podem mesmo acontecer durante a

realização de uma Sessão Ordinária, com a devida aprovação dos vereadores. É

estabelecido em Regimento Interno que nesses eventos sejam executados o Hino

Nacional Brasileiro, o Hino do Estado da Bahia e o Hino Municipal.

Tendo a possibilidade de acontecer em qualquer hora ou dia da semana, as

Sessões Extraordinárias são convocadas em caso de urgência e interesse público.

Com duração determinada de uma hora, nela somente se pode deliberar sobre

matéria determinada em convocação. A sequência dessas sessões é a de,

primeiramente, o despacho das matérias objeto da convocação, e, em seguida, a

apreciação das matérias constantes da pauta da ordem do dia. Essas sessões

podem ser suspensas ou prorrogadas, em consonância com o Regimento Interno.

81

Como o foco de interesse dessa pesquisa, as Sessões Ordinárias, entre as

outras cinco categorias, são as que acontecem em maior número ao longo da

Sessão Legislativa Anual. Esses eventos comunicativos são realizados em dia e

hora prefixados em Regimento Interno e possuem interessantes características.

Pode-se apontar como uma de suas características, comum também às outras

categorias de sessão, a heterogeneidade de seus participantes. Alguns deles

possuem antecedentes rurais e são provenientes de comunidades em que práticas e

eventos de letramento não são necessariamente predominantes; outros possuem

antecedentes urbanos e são provenientes de comunidades onde o número de

eventos e práticas de letramento é considerável.

Pode-se dizer que o trabalho etnográfico empreendido com a combinação da

filologia, da entrevista e da observação-participante teve como finalidade um

entendimento holístico do evento comunicativo Sessão Ordinária da Câmara,

considerando os aspectos relevantes da linguagem utilizada pelos seus

participantes, bem como a sua inserção nesse evento, como se verá nas análises

constantes das sessões seguintes. Um trabalho de descrição e interpretação

etnográfica que precisou percorrer instâncias de dimensões diversas, indo das

comunidades de fala foco da pesquisa, passando pela situação de comunicação até

chegar ao evento propriamente dito, com todas as suas peculiaridades. Um trabalho

que, considerando que a linguagem e a comunicação integram o sistema cultural de

uma comunidade, tenta contribuir para o entendimento da tão importante relação

entre linguagem, cultura e sociedade.

82

4. O EVENTO DE COMUNICAÇÃO SESSÃO ORDINÁRIA DA CÂMARA

A Sessão Ordinária da Câmara de Vereadores é o evento comunicativo mais

frequente entre todos os que acontecem na Câmara Municipal de São Domingos –

BA. É um evento que apresenta uma série de peculiaridades que o distinguem das

Sessões Extraordinárias, das Sessões Solenes, das Sessões Secretas e das

Sessões Especiais, muito embora compartilhe com essas outras alguns de seus

elementos constitutivos. Os participantes e parte da situação, por exemplo, são

comuns aos outros eventos, porém, os propósitos, a sequência dos atos de fala, o

tom emocional, os instrumentos, as normas e os gêneros, tais como definidos por

Hymes (1972b), são bem específicos.

Como um evento de comunicação orientado por regras codificadas em

Regimento Interno, a Sessão Ordinária possui fronteiras claramente definidas e uma

configuração de seus elementos relativamente previsível. Mesmo que nem todos os

detalhes nem todas as regras envolvidas estejam expressos em documentos, a

interação que acontece nesse evento segue um padrão específico, o que inclui, por

exemplo, o uso da linguagem verbal e não verbal, o uso de rotinas linguísticas, de

padrões rítmicos, entonativos etc. O conhecimento da natureza e configuração do

evento comunicativo, bem como a habilidade de operar com as regras e padrões

formal ou tacitamente estabelecidos são determinantes do desempenho de cada um

dos membros da Câmara Municipal.

Um dos elementos rigidamente estabelecidos para o evento Sessão Ordinária

é a sua situação (setting/scene). O Regimento Interno prefixa o local, o dia e a hora

em que esse tipo de sessão deve acontecer. O prédio da Câmara Municipal, que fica

na sede da cidade de São Domingos, é o local determinado para a realização das

Sessões Ordinárias, mais especificamente na sala de sessões. Essa sala é

organizada de modo a acomodar tanto os vereadores quanto a audiência. Assim, os

trabalhos legislativos nessa sessão ocorrem em um espaço delimitado, composto

basicamente de uma grande mesa na qual se acomodam os membros da mesa

diretora (o presidente e o 1º secretário, normalmente); duas bancadas, onde se

dispõem os outros sete vereadores, de acordo com o partido ou coligações de que

fazem parte; e um púlpito, onde são proferidos os discursos, pronunciamentos,

votações, entre outras atividades verbais orais. Em um espaço distinto, também

83

claramente delimitado, ficam dispostos assentos, nos quais podem se acomodar o

público em geral para assistir as atividades da Sessão Ordinária.

Ao longo do ano, há dois períodos dentro dos quais as Sessões Ordinárias

podem ser realizadas, de 15 de fevereiro a 30 de junho e de 01 de agosto a 15 de

dezembro, ou seja, dentro do período denominado Sessão Legislativa Anual.

Diferentemente das outras sessões, para as Sessões Ordinárias, o dia e a hora já

são previamente fixados, o que torna desnecessária a convocação dos vereadores a

cada reunião. O Regimento Interno determina que as Sessões Ordinárias sejam

realizadas semanalmente às terças-feiras, em regra, podendo, porém, ser também

realizadas em qualquer outro dia entre segunda e sexta-feira, em horário de

expediente da Câmara Municipal, desde que seja feita convocação prévia por Edital

de que tenha conhecimento todos os vereadores, servidores e cidadãos em geral. À

época em que foram acompanhadas as Sessões Ordinárias, elas de fato

aconteceram às terças-feiras, sempre com início previsto para as 19 h e término às

21 h. Dependendo das circunstâncias e das ações em desenvolvimento, como se

verificou, as sessões podiam ter duração superior ou inferior às duas horas

previstas.

Considerando os papéis sociais que cada um dos membros da Câmara

Municipal desempenha nas Sessões Ordinárias, pode-se chegar, como propõe

Saville-Troike (2003), a uma adequada descrição de seus participantes

(participants). Antes de tudo, é preciso destacar que esse é exatamente o elemento

principal que permite caracterizar o evento Sessão Ordinária como tipicamente

heterogêneo. Uma heterogeneidade advinda, nesse caso, das diferentes

características socioculturais exibidas por cada um dos vereadores que compõe a

câmara. Provenientes de diferentes áreas da cidade – povoados, distritos e da

própria sede – e com diferentes graus de inserção na cultura urbana e de

letramento, os participantes do evento em foco têm em seus perfis parte

considerável da explicação de seu desempenho linguístico-comunicativo.

São vários os papéis que os integrantes da Câmara Municipal podem

desempenhar: vereador, membro da mesa diretora, membro de uma ou mais das

comissões existentes e de líder ou representante partidário. No desenvolvimento do

evento Sessão Ordinária, especificamente, pode-se destacar como relevantes os

papéis de presidente e 1º secretário da Mesa Diretora e o de vereador propriamente

dito. Desse modo, entre os nove membros, os papéis são assim distribuídos: sete

84

vereadores (essencialmente com esse papel), um presidente e um 1º secretário,

ambos da mesa diretora (sendo esses últimos papéis sobrepostos ao de vereadores,

naturalmente). Nesses papéis, como já se destacou, os participantes têm uma série

de atribuições que vão desde atividades relacionadas ao exercício mesmo de

legislar até tarefas precisamente comunicativas, com destaque para as atividades

realizadas no púlpito, como proferir discursos.

Se se considerar as combinações possíveis dos participantes do evento

Sessão Ordinária, observa-se que, além dos membros legalmente constituídos (em

seus papéis específicos), tem-se ainda, e também com grande relevância, o

auditório. Uma vez que, em regra, essas sessões são públicas, qualquer pessoa,

desde que convenientemente trajada, pode integrar o auditório e, assim, assistir o

trabalho dos membros da Câmara de Vereadores e, por conseguinte, influenciar,

mesmo que indiretamente, em seu desenvolvimento, da maneira como defende Bell

(1984), em sua teoria do Audience Design. Ainda na condição de audiência, podem-

se apontar os ouvintes de uma das rádios comunitárias da cidade, que fazia a

transmissão das Sessões Ordinárias. Tanto o auditório presente na sala de sessões

da câmara quanto os ouvintes da rádio são – além dos próprios colegas vereadores

– constantemente referenciados nos atos de fala que acontecem ao longo de todo o

evento, como se pode verificar nos trechos a seguir:

(1) ACF: G, presidente desta casa, colegas vereadores, vereadora GV, estudantes, professores, aqui nos honramos com as suas presenças. Gostaria de agradecer (...)

(2) GVSA: (...) Eu quero é:: seu presidente, colegas vereadores, aqui... agradecer de coração por essa oportunidade que a vossa excelência tem me concedido aqui e quero... é:: dizer a vocês que venha sempre nesse auditório, venha a essa casa da cidadania, venha nos ajudar, quero dizer a vocês que fico feliz e volte sempre a essa casa e que Deus dê uma boa noite a todos vocês.

No papel de presidente da mesa diretora, quando da pesquisa, estava o

vereador GAC, que à época tinha 51 anos e o Ensino Médio completo. Apesar de

estar morando na sede do município, ele nasceu e morou durante muitos anos na

zona rural, em uma fazenda chamada Novo Amparo, e no povoado São Pedro. De

acordo com o vereador, além de atividades legislativas, ele também é produtor rural.

Ele diz que ao longo da vida trabalhou como balconista e como fiscal de segurança.

GAC relata que durante a infância tinha em casa alguns materiais de leitura, como

85

cartilhas e livros de histórias. Conta que tanto ele quanto sua família utilizam a

leitura principalmente para se informar e para adquirir conhecimentos. Segundo ele,

atualmente tem em casa diversos materiais de leitura, sobretudo relacionados à sua

atividade profissional, tais como livros de leis. O vereador GAC revela que o tipo de

material que lê com mais frequência no seu dia a dia são jornais; e que o que

costuma escrever são atas, projetos de lei e correspondências. Ele avalia que

normalmente não tem dificuldades nessas tarefas de leitura e escrita. O vereador

conta ainda que se mantém informado sobre assuntos da atualidade através da

imprensa, ou seja, pela TV, rádio e internet. Ele enfatiza que tem bastante interesse

por atividades como palestras e cursos das mais diversas áreas e que sua

participação política já se deu também em outras esferas além do poder legislativo,

tendo, inclusive, integrado a diretoria de uma associação comunitária.

No papel de 1º secretário da mesa diretora estava o vereador AJRN, 54 anos,

Ensino Médio completo. Segundo ele, ao longo da vida teve apenas residência

urbana, tendo morado, além de São Domingos, nas cidades de Retirolândia e de

Serrinha (ambas na mesma região). Por ocasião da pesquisa, AJRN disse que sua

única ocupação era a de membro da Câmara Municipal, mas que ao longo de sua

vida já desenvolveu outras atividades profissionais, entre as quais ele destaca a de

professor e a de secretário municipal de educação. O vereador conta que desde a

infância tem tido contato com livros, tendo começado a ler gibis e literatura infanto-

juvenil, em especial livros de Monteiro Lobato. Ele diz que atualmente costuma ler

romances e jornais, tanto para se informar quanto para se distrair. Ele avalia que

não tem dificuldades com atividades de leitura e escrita, pelo menos para as tarefas

que precisa realizar no dia a dia, como as relacionadas à sua atividade profissional.

AJRN diz que se utiliza da TV, da internet e de jornais impressos para se manter

informado e que tem grande interesse em participar de atividades sociais como

eventos religiosos e eventos políticos. O vereador destaca que sua atividade política

ultrapassa a sua inserção na Câmara Municipal. Ele revela já ter sido membro e

colaborador de diversas associações comunitárias da cidade, chegando, inclusive, a

exercer papéis como o de presidente e também de vice-presidente.

De origem urbana, o vereador WFRC, 36 anos, além de São Domingos, já

morou na capital do estado, Salvador. Antes de se tornar um dos membros da

Câmara Municipal, ele diz ter desenvolvido uma série de atividades profissionais,

entre as quais as de auxiliar de escritório, auxiliar administrativo e de gerente

86

administrativo-financeiro. Por ocasião da pesquisa, ele disse que, juntamente com a

função de vereador, desempenha as funções de microempresário e de produtor

rural. Filho de um político e empresário que foi muito influente na região, ele relata

ter tido desde a infância contato com livros diversos, principalmente literatura. Ele diz

que nos últimos tempos tem recorrido à leitura essencialmente para se informar,

sobretudo por meio de jornais. Considera que não possui dificuldades com leitura e

escrita e que lança mão dessas atividades no dia a dia para tarefas do seu trabalho

e quando do uso da internet, em redes sociais, por exemplo. Quanto à sua

participação em atividades sociais e políticas, o vereador destaca que muito o

interessa eventos cujo assunto seja o mundo rural; que já foi presidente de uma

associação e que no momento estava desempenhando a função de vice-presidente

do Clube de Campo São Domingos, um clube recreativo da cidade.

Sendo a única mulher a integrar a Câmara Municipal, a vereadora GVSA

tinha, à época, 46 anos e Ensino Superior completo. Tendo ao longo de toda a vida

apenas residência urbana, além de São Domingos, ela diz já ter morado em outras

cidades da região (Conceição do Coité, Valente e Nordestina). Quando da pesquisa,

ela disse estar exercendo apenas a função de vereadora, estando afastada da sua

última atividade profissional, a de técnica de enfermagem. GVSA conta que seus

pais estudaram somente até a 1ª série do Ensino Fundamental. Ela recorda que

durante a infância os materiais de leitura que tinha em casa eram um dicionário e

alguns livros infantis. A vereadora admitiu que costuma ler bem pouco, se

restringindo, os seus materiais de leitura, a documentos referentes ao seu trabalho

na câmara e a alguns livros da área de saúde. Avalia que não tem dificuldades com

leitura e escrita, mas que normalmente recorre a essas atividades estritamente para

fins profissionais. Ela conta ainda que raramente frequenta bibliotecas e que o meio

pelo qual se mantém informada dos assuntos da atualidade é através de telejornais.

A vereadora diz que costuma participar de cursos na área de saúde, mas que nunca

fez parte de entidades como associações, cooperativas e outras.

Outro participante do evento Sessão Ordinária da Câmara é o vereador ACF,

60 anos, Ensino Fundamental completo. Além de membro do Poder Legislativo

Municipal, ACF disse ser comerciante e já ter sido motorista. Sua origem pode ser

considerada rurbana, visto que morou, como ele mesmo conta, boa parte da vida, no

distrito de Santo Antônio. O vereador diz não recordar de ter tido à sua disposição

materiais de leitura durante a infância. Ele avalia, no entanto, que hoje não tem

87

problemas com atividades de leitura e escrita e que lê jornais e revistas sempre que

pode e que normalmente usa a escrita para fazer registros relacionados ao seu

comércio. O vereador admite que não tem o hábito de frequentar nem bibliotecas

nem livrarias. Ele diz ter muito interesse por noticiários da TV, do rádio e da internet.

Quanto à sua participação política, conta que é membro de uma das associações de

sua comunidade.

Também do distrito de Santo Antônio, EOC é mais um participante de origem

rurbana. Quando da pesquisa, ele tinha 59 anos e Ensino Fundamental completo.

Além de vereador, EOC diz que é pecuarista, tendo sido essa sua principal atividade

profissional ao longo da vida. Ele recorda que durante a infância tinha em casa à sua

disposição livros e revistas. Hoje em dia ele diz ter dificuldades em tarefas que

envolvem a leitura e a escrita, mas que normalmente lê revistas e jornais e que usa

a escrita para fazer registro de compromissos. Ele afirma que raramente frequenta

bibliotecas e livrarias e que não usa internet. Ainda afirma que tem interesse por

atividades como cursos e palestras, principalmente quando o assunto é política; e

que já foi membro de uma das associações comunitárias de seu povoado.

FLSF é outro membro da Câmara Municipal proveniente do distrito de Santo

Antônio, sendo, portanto, de origem rurbana. O vereador, à época, tinha 44 anos e

Ensino Médio completo. Concomitante à sua atividade de legislador municipal, ele

diz ser comerciante. Ele lembra que durante a infância tinha em casa à sua

disposição livros e revistas. Hoje em dia, segundo ele, seus materiais de leitura são

a bíblia e jornais e revistas. O vereador avalia que não tem dificuldades com tarefas

que envolvem a leitura e a escrita. Esta última, especificamente, ele diz se utilizar

principalmente para fins burocráticos do dia a dia, como preencher fichas e

cadastros pessoais. A bibliotecas e livrarias ele afirma ir raramente. Em relação à

sua participação em eventos e entidades sociais e políticas, o vereador diz que tem

bastante interesse por atividades nas quais o assunto seja política e que já exerceu

a função de secretário de uma associação do distrito de Santo Antônio.

Proveniente de um povoado chamado Ouro Verde, o participante EMD tinha

49 anos e Ensino Fundamental incompleto. Além de vereador, EMD disse ser

trabalhador rural e já ter sido motorista e comerciante. Com pais com o mesmo nível

de escolaridade, ele recorda que em sua infância tinha em casa à sua disposição

livros de histórias infantis. O vereador afirma ter dificuldades em tarefas que

envolvem a leitura e a escrita. Apesar disso, ele diz que lê jornais e revistas para se

88

informar e que faz registros escritos de assuntos pessoais como listas e contas a

pagar. O vereador afirma ainda que nunca frequentou bibliotecas nem livrarias e que

raramente ouve rádio ou acessa a internet. Sua principal fonte de informação ele diz

ser mesmo a TV. Ele conta ainda que participa de uma associação comunitária

apenas na condição de sócio e que dificilmente participa de atividades como

palestras, oficinas, cursos. Segundo o vereador, somente participa desses tipos de

evento quando acontecem na própria Câmara Municipal, ou seja, no exercício de

sua função legislativa.

O vereador EFL completa o conjunto dos membros da Câmara Municipal.

Com 56 anos e Ensino Fundamental completo, EFL tem também origem rurbana,

sendo proveniente de um povoado chamado Morro Branco. No momento da

pesquisa, ele estava morando na sede do município. Ele diz que, além de vereador,

trabalha também como produtor rural. EFL diz que seus pais foram alfabetizados

havia pouco tempo e que lembra que na sua infância o único material de leitura que

tinha em casa eram cartilhas. O vereador avalia que às vezes tem dificuldade com a

leitura, mas que isso não o impede de ler jornais para se informar. Ele avalia

também que não tem dificuldades com a escrita, afirmando que recorre a essa

atividade normalmente para fazer registro de informações relacionadas às suas

funções profissionais. O vereador conta que não frequenta bibliotecas nem livrarias

e que não usa a internet. Diz que na TV costuma assistir a telejornais

principalmente. Conta ainda que sempre que tem oportunidade participa de eventos

ligados à agricultura e à mecânica de automóveis, que são, segundo ele, áreas que

despertam muito o seu interesse. O vereador informa também que é membro de

uma cooperativa rural, no papel de vice-presidente.

Apesar de terem em comum o fato de serem todos são-dominguenses, cada

um dos participantes do evento comunicativo Sessão Ordinária da Câmara Municipal

possui características socioculturais peculiares, o que, aliás, só atesta o caráter

heterogêneo desse evento. Utilizando-se das informações mais objetivas, pode-se

chegar, em relação aos vereadores, ao seguinte quadro:

89

A reunião dos vereadores em Sessão Ordinária tem, de modo geral, o

propósito (end) de desenvolver atividades legislativas da competência municipal.

Sendo assim, alguns de seus objetivos são: encaminhar, analisar e, quando for o

caso, deliberar acerca de proposições de natureza diversa; apresentar e discutir

assuntos julgados como de interesse da coletividade. Objetivos esses alcançados

por meio das ações que se desenvolvem ao longo das duas horas de duração

previstas para a sessão.

A sequência dos atos de comunicação (act sequence) que acontece na

Sessão Ordinária da Câmara Municipal é dividida em quatro períodos distintos,

assim denominados: Pequeno Expediente, Grande Expediente, Ordem do Dia e

Explicações Pessoais. A reunião propriamente dita, de acordo com o Regimento

Interno, somente pode ser iniciada quando e se estiver presente 1/3 (um terço) dos

membros da Câmara Municipal, ou seja, quando estiver constituído o quórum. Uma

vez verificado o quórum, é estabelecido regimentalmente que a sessão seja aberta

pelo presidente da mesa diretora com a expressão “Em nome de Deus, declaro

abertos os trabalhos da presente sessão”, o que de fato acontece, somente com

pequenas variações. Logo após as Explicações Pessoais (último período de atos

comunicativos), a sessão é normalmente encerrada, também pelo presidente, com a

frase “Nada mais havendo a tratar, declaro encerrados os trabalhos da presente

sessão”.

Vereador Escolaridade Origem Geográfica

ACF Ensino Fundamental Completo Rurbano

EFL Ensino Fundamental Completo Rurbano

EMD Ensino Fundamental Incompleto Rurbano

EOC Ensino Fundamental Incompleto Rurbano

GAC Ensino Médio Completo Rurbano

FLSF Ensino Médio Completo Rurbano

AJRN Ensino Médio Completo Urbano

GVSA Ensino Superior Completo Urbano

WFRC Ensino Superior Incompleto Urbano

90

Com duração prevista de vinte minutos, o período denominado Pequeno

Expediente abriga uma sequência de atos de comunicação realizados pelo

presidente da mesa diretora, pelo 1º secretário e pelos demais vereadores.

Inicialmente, com o objetivo de abrir os trabalhos, é facultada a algum dos presentes

à sessão a realização da leitura de algum trecho bíblico. Em seguida, tem-se uma

série de leituras feitas pelo 1º secretário. Primeiro ele lê em voz alta a ata da sessão

ordinária anterior, que é submetida à discussão e aprovação pelos vereadores. O 1º

secretário ainda faz a leitura das matérias e correspondências recebidas pela mesa

diretora e que são consideradas do interesse do Plenário, e a leitura das

proposições, que são encaminhadas e despachadas. Nesse primeiro momento, os

demais vereadores podem participar através de um breve pronunciamento com

duração média de 5 minutos, encerrando desse modo os atos comunicativos desse

primeiro período da Sessão Ordinária.

O Grande Expediente é o segundo e maior período destinado aos atos de

comunicação na Sessão Ordinária. Sua duração máxima é de 40 minutos. Esse é o

espaço reservado para que os vereadores possam exercer seu papel de oradores.

Esse é o momento em que eles podem se dirigir à tribuna para proferir um discurso

com assunto de sua livre escolha ou de interesse da coletividade, ou ainda, para

encaminhar e justificar proposições de alguma das naturezas previstas em

legislação interna.

Com exceção do presidente da mesa diretora, os 8 (oito) vereadores podem

se inscrever com a antecedência exigida, para fazer uso da palavra no Grande

Expediente. Como são 40 minutos destinados a esse período, em regra cada

vereador tem o tempo de 5 minutos para discursar, podendo ser prolongado para até

mais, se porventura nem todos os vereadores tiverem se inscrito.

Dentro do Grande Expediente, precisamente em sua parte final, é previsto, no

Regimento Interno da Câmara, que se pode destinar o tempo para dois fins

específicos: para comemorações de alta significação nacional, estadual ou

municipal, ou para recepcionar autoridades ou pessoas convidadas. Essa situação,

no entanto, por ser excepcional, é sempre condicionada à disponibilidade de tempo

e à deliberação do Plenário.

O período seguinte de atos comunicativos da Sessão Ordinária é denominado

Ordem do Dia. Com duração prevista de 20 minutos, é nesse período que se dão as

ações mais burocráticas e mais intimamente relacionadas ao processo legislativo.

91

Tendo uma sequência de atos variável, na Ordem do Dia, os vereadores,

observando os papéis que eles desempenham na Câmara, podem: solicitar o

destaque de requerimentos constantes da pauta; realizar despachos de

requerimentos; apreciar matérias constantes da pauta e requerimentos com pedido

de urgência; e encaminhar e despachar proposições e pareceres.

Nesse sentido, é exatamente no período da Ordem do Dia em que as

proposições são discutidas e votadas, de acordo com sua natureza, como previsto

em Regimento Interno. As discussões sempre se iniciam após o presidente da mesa

diretora fazer a leitura da súmula constante da pauta e se encerra quando não há

mais oradores ou mesmo quando findo o tempo destinado à Ordem do Dia. Sendo a

ação naturalmente seguinte à discussão, a votação é a manifestação da vontade

deliberativa de cada um dos vereadores. Uma vez que as exigências legais sejam

atendidas, entre as quais o quórum, a votação acontece em alguma de suas

modalidades possíveis: simbólica, nominal ou secreta.

Na votação pelo processo simbólico, o presidente da mesa diretora solicita

que os vereadores favoráveis à matéria em apreciação permaneçam sentados,

procedendo, em seguida, à contagem dos votos e à enunciação do resultado. Na

votação pelo processo nominal, o presidente convoca os vereadores um a um, os

quais devem responder com um “sim” ou um “não”, conforme sejam a favor ou

contra a proposição em votação. Os votos são anotados pelo 1º secretário e o

resultado é enunciado pelo presidente. Na votação secreta, por sua vez, os

vereadores assinalam seu voto em uma cédula rubricada pelo presidente da sessão

e a depositam em uma urna. Apurados os votos pelo 1º secretário, o presidente

enuncia então o resultado.

Quando a votação se dá pelo processo simbólico ou nominal, o vereador que

assim o desejar pode justificar o seu voto. Nesse caso, finda a votação de

determinada proposição, ele pode apresentar verbalmente os motivos que o levaram

a manifestar-se contrário ou favoravelmente à proposição votada.

Os atos comunicativos que acontecem na Ordem do Dia e o modo como eles

se organizam são determinados pela pauta da ordem do dia, seguindo a ordem de

preferência das proposições estabelecida em Regimento Interno. Desse modo, a

cada nova sessão, um novo arranjo na Ordem do Dia, permanecendo fixos apenas o

tempo de duração (20 minutos) e os passos deliberativos.

92

O quarto e último grupo de atos comunicativos a compor a Sessão Ordinária

da Câmara Municipal é denominado de Explicações Pessoais. Possuindo duração

máxima e improrrogável de 40 minutos, esse período é também reservado para que

os vereadores façam uso da palavra. Com tempo de 5 minutos, o vereador inscrito,

do mesmo modo que no Grande Expediente, se dirige à tribuna para proferir

discurso sobre assuntos pertinentes ao interesse e conhecimento dos cidadãos do

município. A particularidade das Explicações Pessoais é que nela, diferentemente do

Grande Expediente, os vereadores já não podem encaminhar e justificar

proposições. Ao final do período das Explicações Pessoais, o presidente da mesa

diretora tem à sua disposição 10 minutos para fazer o uso da palavra, após o que

ele dá a sessão como encerrada, fechando, assim, a sequência dos atos

comunicativos constitutivos do evento Sessão Ordinária.

Em grande medida, por ser um evento permeado por rígidas regras, a Sessão

Ordinária é marcada pelo tom emocional (key) da seriedade. Fasold (1991) afirma

que certos tons emocionais dos eventos comunicativos podem ser intimamente

associados a outros aspectos da comunicação. No caso específico da Sessão

Ordinária, o tom sério pode ser justificado, por exemplo, pela rígida sequência dos

atos de fala e pelas normas de interação e interpretação previstas, as quais, como

se verá, visam à objetividade, à formalidade e à solenidade. Quando o regimento

interno determina que durante os debates os vereadores devam evitar as conversas

em tom que dificultem os trabalhos; quando determina a ordem e a duração dos

discursos dos vereadores; quando determina, inclusive, o que pode e o que não

pode ser dito durante a sessão, tem então estabelecido o caráter sério, formal do

evento.

Na parte do Regimento Interno que trata do decoro parlamentar, tem-se

também, de certo modo, a indicação do key da Sessão Ordinária. Reforça-se a

natureza formal do evento quando, por exemplo, preveem-se medidas disciplinares

como a censura para os vereadores que praticarem atos tais como: perturbar a

ordem das sessões; usar, em discurso ou proposição, de expressões que atentem

ao decoro parlamentar, como as que configurem crimes contra a honra ou

contenham incitamento à prática de crimes; e praticar ofensas físicas ou morais no

edifício da Câmara Municipal ou desacatar, por atos ou palavras, outro vereador, a

mesa diretora ou comissão ou respectivos membros.

93

Outro fator que também indica o tom de seriedade, formalidade das Sessões

Ordinárias são os trajes recomendados para o uso dos vereadores durante o evento.

É regimentado que os homens usem paletó e gravata e que as mulheres usem traje

similar. Hymes (1972b) explica que a sinalização do tom emocional de um evento

pode ser feita por aspectos verbais como, por exemplo, um piscar de olhos, um

gesto, a postura, acompanhamento musical e, inclusive, pelo estilo de roupa usado

pelos participantes. Sendo assim, uma vez que é formal o traje recomendado, é de

se esperar que o próprio tom emocional do evento também seja de igual modo

formal, sendo a presença de outros tons emocionais, como os de brincadeira e

alegria, incomuns e/ou condicionados ao tratamento de determinados assuntos, ou

seja, sempre como desvios do tom predominante.

Assim como outros eventos de comunicação, a Sessão Ordinária tem suas

próprias normas de interação e interpretação (norms). As normas regimentais

estabelecem explicitamente regras relacionadas ao funcionamento dos debates, das

deliberações de proposições, ou de modo geral, as regras de uso da linguagem

verbal. Especificamente no que tange aos debates durante a sessão, o Regimento

Interno coloca que devem ocorrer em ordem e solenidade próprias da dignidade do

legislativo, de modo a indicar qual comportamento deve ser adotado pelos

vereadores: “Durante os debates, os vereadores deverão permanecer em seus

lugares, vedadas as conversas em tom que dificulte os trabalhos” (SÃO

DOMINGOS, 2012, p. 128).

Em relação à inscrição e uso da palavra durante a Sessão Ordinária, é

estabelecido quando e como devem ser feitos. O uso da palavra pode ser feito, de

acordo com o Regimento Interno, no Grande Expediente, no espaço destinado às

Explicações Pessoais e na discussão de cada proposição, uma única vez em cada

um desses períodos. Para tanto, o vereador, ao chegar ao plenário, precisa realizar

sua inscrição, para o Grande Expediente ou para as Explicações Pessoais, perante

o 1º secretário da mesa diretora. A concessão da palavra, por sua vez, se dá

seguindo rigorosamente a ordem cronológica e numérica de inscrição.

Quando convocado para fazer uso da palavra é dado ao vereador o direito de

declinar da oportunidade ou ainda de ceder o uso da palavra a outro, de modo a não

haver necessidade de alterar a ordem cronológica e numérica da inscrição. Quando

da discussão de proposição constante da pauta da ordem do dia, a preferência para

94

o uso da fala é dada em regra ao autor da proposição, ou quando esta tiver mais de

um autor, é dada a preferência ao primeiro signatário.

O Regimento Interno da Câmara Municipal apresenta uma lista de finalidades

para as quais os vereadores podem fazer o uso da palavra durante as sessões,

entre as quais se destacam:

I – para retificar ou impugnar ata;

II – para discutir proposição em debate;

III – para justificar e encaminhar proposições;

IV – para solicitar ou prestar esclarecimentos;

V – para fazer comunicações importantes;

VI – para tratar de assuntos urgentes e de relevante interesse público;

VII – para justificar seu voto;

VIII - para encaminhar votação.

Há ainda um controle do tempo de uso da palavra durante as sessões. Em

regra, o vereador pode falar durante 5 ou 3 minutos, a depender do gênero

discursivo em questão. Sendo assim, ele tem 5 minutos para discutir projetos,

pareceres contrários da Comissão de Justiça, Legislação e Redação Final,

recebimento de denúncias, discutir pedidos de informações, requerimentos

constantes da pauta ou de seu anexo, ou relativos a outras proposições principais.

Ele tem até 3 minutos nos outros casos previstos em Regimento Interno.

Quando estiver no uso da palavra é regimentalmente proibido ao vereador:

desviar-se da matéria em debate; falar sobre matéria vencida; usar de linguagem

imprópria; ultrapassar o prazo que lhe competir; deixar de atender as advertências

do presidente da mesa diretora; e pedir a contagem do tempo que lhe competir,

permanecendo em silêncio.

O orador, nesse sentido, pode ter seu discurso interrompido tanto pelo

presidente da mesa diretora quanto por algum de seus colegas vereadores. O

presidente, especificamente, pode interrompê-lo para votação de requerimento de

prorrogação da Ordem do Dia, para emitir advertência por infringência de

dispositivos regimentais e ainda para atender a Questão de Ordem. Essa última

circunstância é a única em que o vereador orador pode ter seu discurso interrompido

também por seus colegas. A Questão de Ordem, na verdade, é toda dúvida

95

levantada em plenário quanto à preterição ou aplicação do Regimento Interno,

podendo ser aplicada em qualquer fase da sessão. Para ter efeito, esta deve ser

objetiva, claramente formulada e indicar com precisão as disposições regimentais

que se pretenda elucidar, e ainda deve referir-se a matéria tratada na ocasião.

Outra norma explícita de interação que se aplica às Sessões Ordinárias é o

aparte. Esse é um recurso de intervenção breve e oportuna para colaboração,

indagação, esclarecimento ou contestação ao pronunciamento do vereador que

estiver com a palavra. O aparte somente pode ser realizado com solicitação de

algum vereador e permissão do orador. Ele não é permitido quando direcionado à

palavra do presidente da mesa diretora na direção dos trabalhos, bem como quando

o orador não o permitir tácita ou expressamente. Não é permitido também aparte em

paralelo ou cruzado e ainda por ocasião de encaminhamento de votação ou

justificativa de voto, ou quando o orador estiver suscitando Questão de Ordem.

Entre orais e escritos, a Sessão Ordinária da Câmara abriga vários gêneros

(genres). Eles aparecem ao longo do evento como gêneros autônomos ou

integrando os discursos que os vereadores proferem em algum dos quatro períodos

de atos comunicativos da sessão. Assim, tanto podem ser lidos, em se tratando de

gêneros previamente escritos, como podem ser elaborados no momento mesmo da

fala, com ou sem o apoio de um texto escrito. Entre os gêneros escritos e que são,

portanto, lidos durante a sessão estão, por exemplo, a ata da sessão anterior, as

correspondências recebidas pela mesa diretora e algumas proposições. Entre os

gêneros orais, por sua vez, estão, por exemplo, o discurso proferido pelos

vereadores em tribuna, no Pequeno Expediente, no Grande Expediente e nas

Explicações Pessoais (discurso, aliás, que não possui um rótulo específico); os

debates e algumas das proposições.

Na verdade, sob o rótulo de proposições tem-se uma série de gêneros. O

Regimento Interno define proposição como toda matéria sujeita à deliberação do

plenário ou da mesa diretora. Os gêneros listados como sendo proposições são:

projetos, requerimentos, pedidos de informação, recursos das decisões do

presidente da mesa diretora, substitutivos e emendas, vetos, pareceres e outros atos

de natureza análoga ou semelhante. Os substitutivos e emenda e os pareceres,

especificamente, são considerados espécies de proposições acessórias, em relação

às outras.

96

Como gêneros de grande importância dentro da Sessão Ordinária, os projetos

são objetos de leitura, análise, discussão e votação, podendo ser de quatro

diferentes tipos. O primeiro tipo de projeto é o de Emenda à Lei Orgânica do

Município e é destinado a regular as suas matérias, podendo inclusive alterar o seu

texto. O segundo tipo é o de Lei Ordinária, cuja finalidade deve ser a de regular as

matérias de competência do município. O terceiro tipo é o Decreto Legislativo, que

se destina a regular as matérias de exclusiva competência da Câmara Municipal, as

quais tenham efeito externo. O quarto tipo é o de Resolução, cujo objetivo é regular

matérias de competência privativa da Câmara Municipal, as quais tenham efeitos

internos.

Sendo um gênero que pode ser tanto oral quanto escrito, o requerimento é

definido como todo pedido feito ao presidente da mesa diretora, por vereador ou por

comissão, sobre assunto de expediente ou questões gerais acerca dos trabalhos

das sessões. Esse gênero discursivo pode aparecer no discurso dos vereadores na

tribuna e são, em regra, decididos e/ou atendidos pelo presidente da mesa diretora

ou pelo plenário ou pela mesa diretora (o presidente juntamente com o 1º

secretário), sempre dependendo do tipo de solicitação feita. Os objetos de

requerimento, por seu turno, podem ser de diversos tipos, como, por exemplo,

solicitação do uso da palavra ou desistência dela, solicitação de prorrogação da

Ordem do Dia, solicitação de manifestação de pesar, solicitação de convocação de

urgência para tramitação de proposição, entre outras.

O parecer é outro gênero também presente na Sessão Ordinária, sobretudo

em momentos de deliberação. Ele é um pronunciamento por escrito de alguma das

comissões permanentes acerca de matéria submetida a seu exame. O parecer é

normalmente lido pelo 1º secretário da mesa diretora. Em regra, é um documento

que contém duas partes distintas: a primeira, um relatório, no qual consta uma breve

exposição da matéria em exame; a segunda, o voto do relator, devidamente

fundamentado, sobre a conveniência da aprovação ou rejeição total ou parcial da

matéria examinada.

Levando em conta o fato de que o evento Sessão Ordinária da Câmara reuni

atos comunicativos que envolvem textos escritos, alguns mais outros menos, pode-

se afirmar que ele é um evento bem representativo da cultura de letramento.

Observa-se que em determinados momentos, o vereador precisa realizar, em voz

alta especificamente, a leitura de documentos ou redigidos por ele mesmo ou por

97

outrem. Essa, aliás, é uma tarefa atribuída principalmente aos membros da mesa

diretora. O 1º secretário, por exemplo, é o responsável por ler para os seus colegas

a ata da sessão anterior, as correspondências recebidas pela câmara e

consideradas relevantes para o plenário, e as proposições.

De modo geral, os vereadores precisam lançar mão também da escrita

constantemente, mesmo que seja previamente à realização do próprio evento. Uma

vez que boa parte das proposições deve ser escrita, os vereadores precisam

elaborar com antecedência os requerimentos, os projetos e alguns dos pedidos de

informação e, assim, não apenas encaminhá-los à mesa diretora, mas também fazer

uso deles, mesmo que indiretamente, em seus discursos proferidos no Pequeno

Expediente, no Grande Expediente ou em outros momentos. Além das proposições,

outro texto escrito que normalmente permeia o discurso proferido pelos vereadores

na tribuna é o que eles mesmos denominam de esboço legislativo, anotações que

eles costumam fazer para orientar suas falas. Assim, ora mais ora menos, os atos

comunicativos desenvolvidos ao longo da Sessão Ordinária são mesmo, de algum

modo, permeados por um texto escrito.

Nessa perspectiva, considerando a noção de letramento em nível individual,

tal como definida por Soares (2003, 2012), para que o vereador desempenhe a

contento suas funções, ele precisa dispor de um conjunto mínimo de habilidades de

leitura e escrita. Uma vez que ele lida geralmente com a elaboração, análise e

votação de leis e também com outros documentos, é de se esperar que quanto mais

próximo estiver situado o membro da câmara do polo letrado, no contínuo que é o

letramento em nível individual, maior tende a ser sua desenvoltura nas atividades

que ele precisa realizar no e para o evento em questão.

A Sessão Ordinária da Câmara, desse modo, pode ser classificada como um

evento de letramento, nos moldes como proposto por Heath (1983), uma vez que

nele a escrita compõe ou ajuda a compor a interação entre os participantes e os

processos e estratégias de interpretação. Sendo assim, em sua configuração, tem-

se um conjunto de ações, comportamentos que podem ser denominados, seguindo

Street (1984), de práticas de letramento.

Tomando a metodologia dos contínuos elaborada por Bortoni-Ricardo (2006,

2009) para a análise do português brasileiro, é possível situar o evento Sessão

Ordinária da Câmara no contínuo de oralidade-letramento em um ponto próximo ao

polo de letramento, visto que os atos comunicativos que nele se desenvolvem em

98

sua maioria podem ser considerados como práticas de letramento. É preciso

destacar, no entanto, que “não existem fronteiras bem marcadas entre os eventos de

oralidade e de letramento. As fronteiras são fluidas e há muitas sobreposições”

(BORTONI-RICARDO, 2009, p. 62). Sendo assim, o fato de a Sessão Ordinária ser

considerada um evento de letramento não significa que nele não haja atos

comunicativos estritamente de oralidade. A classificação que se faz de um evento

como de oralidade ou como de letramento tem como critério, antes de tudo, o

predomínio de um tipo ou de outro de prática de uso da língua.

99

5. A LINGUAGEM DA SESSÃO ORDINÁRIA DA CÂMARA: O ESTILO DOS LÍDERES POLÍTICOS

Dos elementos que, de acordo com Hymes (1972b), constituem um evento de

comunicação, os instrumentos (instrumentalities) são os que estão mais

estritamente relacionados à lingua. Tanto os canais quanto as formas de fala são

considerados os instrumentos de um evento. Assim, no processo de análise de um

evento comunicativo, deve-se levar em conta se a mensagem é transmitida na

modalidade oral, escrita ou em alguma outra; deve-se levar em conta também em

qual língua, em qual variedade, em qual estilo se desenvolve o evento.

No caso específico da Sessão Ordinária da Câmara Municipal, nota-se que as

mensagens são transmitidas predominantemente na modalidade oral. Do Pequeno

Expediente, passando pelo Grande Expediente e pela Ordem do Dia até chegar às

Explicações Pessoais, observa-se que praticamente todos os atos comunicativos se

realizam de modo oral, muito embora a escrita esteja o tempo inteiro presente. Os

participantes se utilizam de atas, projetos, requerimentos, pareceres, etc. ao longo

da sessão, porém o fazem de modo a permear a interação entre eles, ou seja, os

textos escritos normalmente são lidos em voz alta ou utilizados como pauta de suas

elocuções. Desse modo, a interação propriamente dita entre os vereadores se dá

oralmente, numa oralidade letrada, é preciso destacar.

O fato de predominar uma oralidade letrada na Sessão Ordinária – o que é,

em grande medida, uma influência dos gêneros que ali circulam – já dá grandes

sinais de qual seja a variedade e o estilo da língua a serem considerados nesse

evento como adequados. Além disso, a análise de outros elementos como o tom

emocional e as normas de interação e interpretação também ajudam a construir uma

ideia do que se configura como adequação linguística para o evento.

Como já apontado, pode-se considerar a Sessão Ordinária como um evento

de letramento, haja vista a considerável presença da escrita no decorrer das

interações. Os textos escritos, nos variados gêneros, que os vereadores elaboram

com antecedência e que eles leem em voz alta ou que usam apenas para orientar

suas falas, são construídos recorrendo-se às regras linguístico-textuais da variedade

padrão da língua. Por natural influência, os textos orais que os vereadores precisam

100

construir ao longo da sessão, em geral, se caracterizam justamente por reproduzir

traços próprios dos gêneros textuais escritos mais monitorados e mais formais.

É bem provável que a formalidade característica dos gêneros orais e dos

gêneros escritos que circulam na Câmara advenha, em grande parte, do próprio tom

emocional da sessão. Como observado, o tom formal, solene já começa no próprio

traje dos vereadores – que é, inclusive, estabelecido regimentalmente. É de se

esperar, desse modo, que a linguagem a ser adotada pelos vereadores siga

igualmente esse padrão. Além disso, as próprias normas de interação e

interpretação – e não apenas as regimentalmente expressas – orientam os

participantes a conduzirem seu comportamento verbal de modo formal, de modo

objetivo. A determinação dos fins para os quais a palavra pode ser usada durante as

sessões é bem representativa nesse sentido, uma vez que nem todos os assuntos,

nem mesmo todas as formas de abordagem são permitidas. É também um indicativo

do caráter formal do evento, e, por conseguinte, da própria linguagem a ser nele

adotada, o fato de a duração e a ordem das elocuções dos vereadores serem

estritamente delimitadas, controladas, exigindo deles, portanto, o mínimo de

planejamento de suas falas, tanto na forma quanto no conteúdo.

Nesse sentido, considerando que a Sessão Ordinária agrega gêneros escritos

e orais monitorados e marcadamente formais, pode-se afirmar que a variedade da

língua tida como adequada para o evento é mesmo a urbana culta, em seu estilo

mais monitorado, especificamente. A justificativa para tanto se encontra no fato de

que convencionalmente os chamados eventos de letramento são, em geral,

conduzidos na variedade culta da língua, bem como no fato de que as práticas

sociais mais formais exigem de seus participantes o uso de estilos mais

monitorados.

A formalidade do evento e a grande presença de gêneros escritos são, de

fato, fortes motivos para a determinação de uso da variedade urbana culta da língua

portuguesa, no entanto, é preciso destacar que a exigência de essa variedade ser

mais monitorada se justifica ainda em fatores que vão além do tom emocional do

evento, de suas normas de interação e interpretação e mesmo de sua inserção

numa cultura urbana e de letramento. O alto grau de pressão comunicativa a que os

participantes da Sessão Ordinária estão submetidos é um fator determinante para

que eles, em sua produção verbal, redobrem seu grau de atenção e planejamento,

isto é, para que eles monitorem seu estilo linguístico com mais intensidade.

101

Bortoni-Ricardo (2006) argumenta que o falante monitora mais ou menos o

seu estilo considerando vários fatores, entre os quais ela destaca: a acomodação do

falante a seu interlocutor (audience design); o apoio contextual na produção dos

enunciados; a complexidade cognitiva envolvida na produção linguística; e a

familiaridade do falante com a tarefa comunicativa que está sendo desenvolvida. No

caso específico das Sessões Ordinárias da Câmara, observando cada um desses

quatro fatores, percebe-se que estão configurados de modo a exigir que os

participantes empreendam uma maior monitoração do seu estilo.

Estar diante de um interlocutor desconhecido, de maior poder na hierarquia

social ou mesmo diante de um interlocutor a quem se queira impressionar é uma

situação que inegavelmente se configura como de grande pressão comunicativa

para um falante, uma vez que ele precisará monitorar mais o seu estilo. Nesse

processo, que Allan Bell (1984, 2001) denomina de Audience Design, são as

características dos ouvintes que determinam o comportamento verbal dos falantes,

com destaque para o seu estilo. Assim, escolhas como a da variedade da língua (se

uma variedade rural, rurbana ou urbana), bem como de um estilo mais monitorado

ou menos monitorado terão suas explicações, em grande medida, no tipo de

interlocutor que se tenha diante de si.

Os vereadores da Câmara Municipal de São Domingos têm como audiência

para os seus discursos diferentes interlocutores, com diferentes papéis e ocupantes

de diferentes posições na hierarquia da situação comunicativa, no entanto, todos

eles têm em comum o fato de terem o poder de exercer influência no processo de

monitoração estilística. Considerando apenas um dos quatro tipos de interlocutores

descritos por Bell (1984), o addressee – que se caracteriza por ser conhecido,

ratificado e visado pelo falante – tem-se no evento em questão pelo menos quatro

representantes: o presidente da mesa diretora, os vereadores, o público presente no

auditório da câmara e os ouvintes da rádio que transmitia as sessões. Como

hierarquicamente o presidente da mesa diretora é a figura de maior poder na

situação comunicativa, sempre que a fala é para ele direcionada, nota-se um certo

cuidado na escolha do tom empregado, geralmente cerimonioso, e do tratamento

dispensado, usando por exemplo, expressões como “excelentíssimo senhor

presidente”, “senhor presidente” e “seu presidente”.

Mesmo que em menor grau – se comparado ao presidente da mesa diretora –

os outros vereadores também são tratados cerimoniosamente, chegando, em alguns

102

momentos, a se saudarem com expressões como “excelentíssimos senhores

vereadores” ou “nobres colegas vereadores”. Desse modo, tanto o presidente

quanto os vereadores entre si, são considerados interlocutores de igual ou de maior

poder na hierarquia de papéis ali possíveis de desempenhar, o que, de certo modo,

resulta em considerável pressão comunicativa.

Sendo também addressees dos discursos dos vereadores, o público presente

no auditório da Câmara e os ouvintes da rádio exercem sobre o vereador/locutor

influência direta. Compondo esses dois grupos de interlocutores estão os cidadãos

de modo geral, os cidadãos do município, ou seja, os sujeitos que estão ali sendo

representados por cada um dos vereadores. Desse modo, por uma questão de

respeito ou mesmo para delimitar perante essa audiência o seu papel de membro do

Poder Legislativo Municipal ou ainda para tentar impressionar esses interlocutores,

fazendo-os crer que conseguem se investir bem no papel a eles delegado, os

vereadores podem optar por imprimir o traço de mais monitorado ao seu estilo.

Como um fator que exerce grande influência no processo de monitoração

estilística, o apoio do contexto na produção verbal pode ser muito variável, a

depender da natureza da interação em questão. O contexto, nesse caso, pode ser

tomado tanto em sentido sociocultural quanto em sentido sociocognitivo. No primeiro

sentido, a Sessão Ordinária encaixa-se no domínio social político, tendo como

característica marcante o fato de ser público e formal. Sendo um dos eventos que

toma lugar na Câmara Municipal de Vereadores, ela é bem representativa da cultura

urbana e de letramento.

O contexto, no sentido sociocognitivo, consiste, segundo Erickson e Shultz

(2002), na definição que os participantes constroem ao longo de uma interação

quanto à natureza da situação em que se encontram e nas ações que eles realizam

baseando-se em tais definições. Esse tipo de contexto normalmente é expresso, no

processo interativo, pelo que Gumperz (2002) chama de pistas de contextualização.

Quando, por exemplo, um falante altera o seu estilo, quando usa de determinados

traços prosódicos, quando opta por certas expressões pré-formuladas ou mesmo

quando adota algumas palavras e estruturas sintáticas, ele está construindo ou

modificando um contexto.

Ao longo de todo o evento, os vereadores lançam mão de pistas que afirmem

que o contexto no qual eles estão inseridos é o político e que delimitem o papel

social por eles desempenhado. Sendo assim, seja no Pequeno Expediente, no

103

Grande Expediente, na Ordem do Dia ou nas Explicações Pessoais, os participantes

– mesmo com desempenhos notadamente diferentes – mostram-se empenhados em

empregar a morfossintaxe da variedade de prestígio, em empregar um léxico que se

relacione ao exercício político e em usar determinadas rotinas linguísticas para

construir os discursos que proferem.

Esses contextos sociocultural e sociocognitivo identificados para a Sessão

Ordinária da Câmara caracterizam-se por ser resultantes da relação entre o

ambiente político propriamente dito e as ações verbais e não verbais que cada um

dos vereadores realiza. Considerando que os membros da Câmara têm origens e

características relativamente distintas entre si, bem como o fato de que essa

heterogeneidade se estende também para a audiência deles (o auditório da Câmara

e os ouvintes da rádio), pressupõe-se que o conhecimento que eles compartilham

entre si esteja em um nível que não dispense que em suas elocuções eles sejam

verbalmente explícitos e precisos. O fato de ser esse um evento público endossa

ainda mais essa observação, uma vez que os vereadores não podem esperar, como

alerta Bortoni-Ricardo (2006), que suas convenções comunicativas não

verbalizadas, próprias do seu grupo primário de relações, sejam compreendidas por

outros. Assim, pode-se afirmar que a Sessão Ordinária é, de fato, um evento pouco

dependente contextualmente, o que significa que seus participantes precisam

demonstrar flexibilidade no seu repertório estilístico, ou seja, que precisam recorrer a

uma maior monitoração de seu estilo.

Grande pressão comunicativa e, por consequência, maior demanda de

monitoração estilística, também podem ser verificados quando as tarefas

comunicativas do evento envolvem um alto grau de complexidade cognitiva. No caso

da Sessão da Câmara, pode-se afirmar que a tarefa comunicativa mais

cognitivamente complexa são os discursos que os vereadores proferem no Pequeno

Expediente, no Grande Expediente e nas Explicações Pessoais. Durando

normalmente de 3 a 5 minutos cada um, esses discursos, além de serem o momento

em que o turno de fala disponível aos vereadores é maior, se caracterizam por terem

assuntos definidos, em geral assuntos de interesse e conhecimento dos cidadãos do

município.

Utilizando-se da definição dada por McGuire & Lorch (1968, apud Bortoni-

Ricardo, 2006, p. 65), pode-se dizer que os discursos que os vereadores proferem

na tribuna da Câmara enquadram-se no modo interacional de solução de problemas,

104

típico de quadros de interação mais formais. As outras tarefas comunicativas que se

realizam durante a sessão, por sua vez, são menos complexas cognitivamente. Atos

como ler em voz alta a ata da sessão anterior e as correspondências recebidas,

votar e alguns outros certamente não demandam o mesmo grau de atenção e

planejamento que os discursos de tribuna, por exemplo.

Uma vez que a pressão comunicativa é maior quando dos discursos de

tribuna – numa comparação com os demais atos – será, portanto, em sua execução

que se tornará mais flagrante a possível diferença de desempenho no que tange à

monitoração estilística. Como para executar atos comunicativos de maior esforço

cognitivo é preciso recorrer a um estoque de conhecimento linguístico-interacional

específico, será o domínio desses conhecimentos um ponto determinante – para a

Sessão Ordinária significa, por exemplo, o domínio da variedade urbana culta.

Bem relacionado com esse último fator está a familiaridade com rotinas

linguísticas específicas, como igualmente determinante do grau de pressão

comunicativa e do nível de monitoração do estilo. As rotinas linguísticas da Sessão

Ordinária são notadamente próprias da cultura de letramento e estão estritamente

ligadas ao seu conjunto de atos comunicativos. Algumas dessas rotinas são de

algum modo previstas regimentalmente – ou em forma ou em conteúdo – como é o

caso das expressões que devem ser usadas para iniciar e encerrar o evento. Outras

tantas – a maioria – apesar de não serem expressas em regimento, são

convencionadas pelo uso dos participantes. O discurso proferido em tribuna, por

exemplo, tem rotinas como: uma saudação cerimoniosa aos membros da mesa

diretora (presidente e 1º secretário), aos vereadores, ao auditório presente e aos

ouvintes da rádio; a recorrência ao longo do discurso ao vocativo, de modo a deixar

claro a quem as afirmações, indagações são direcionadas, se para o presidente da

Câmara ou para outros membros do evento; um fechamento igualmente

cerimonioso.

Como grande parte das rotinas a que os vereadores precisam recorrer ao

longo da sessão é implementada na variedade culta da língua, pode-se dizer que

quanto maior o conhecimento dos recursos dessa variedade, maior tenderá a ser a

familiaridade com as rotinas linguísticas necessárias. Por esse viés, numa situação

comunicativa que tem como característica marcante a heterogeneidade de seus

integrantes, é de se esperar uma considerável variação no conhecimento das rotinas

linguísticas. Assim, a pressão comunicativa sobre os falantes, com base nesse fator,

105

pode ser maior ou menor – e, portanto, ele precisará monitorar seu estilo mais ou

menos – de acordo, por exemplo, como seu grau de inserção na cultura de

letramento.

Os quatro fatores sugeridos por Bortoni-Ricardo (2006) como relevantes para

se aferir o grau de pressão ou estresse comunicativo sobre o falante foram

identificados no evento Sessão Ordinária numa configuração capaz de influenciar

fortemente o processo de monitoração estilística. Para se acomodar ao seu tipo de

audiência, os vereadores precisam monitorar o seu estilo. Para se adequar ao

contexto sociocultural e sociocognitivo da Câmara Municipal, as produções verbais

dos vereadores têm pequeno apoio contextual, razão pela qual precisam ser mais

monitoradas. Alguns atos comunicativos que os vereadores precisam realizar, em

especial os discursos em tribuna, envolvem grande complexidade cognitiva, o que

faz surgir a necessidade de eles se monitorarem estilisticamente. Em razão da

pequena ou grande familiaridade que tenham com as rotinas linguísticas

necessárias ao longo da sessão, os vereadores também terão que monitorar o seu

estilo. Sendo assim, não resta dúvida de que, sendo a Sessão Ordinária um evento

de alto grau de pressão comunicativa, seja uma de suas características

proeminentes a grande demanda por monitoração estilística.

O modo como cada um dos participantes da Sessão Ordinária da Câmara

atenderá a essa demanda que o evento faz por monitoração estilística tem relação

direta com a competência comunicativa de cada um, a qual, de acordo com

Gumperz (1972), envolve a habilidade de selecionar, num conjunto de expressões

gramaticalmente corretas, as formas apropriadas, segundo as normas sociais de

dado encontro. Para o caso específico do evento em análise, as formas

consideradas apropriadas seriam, como já observado, as da variedade de prestígio,

cujo acesso para a maioria da população ainda é limitado, por uma série de razões.

A precisão de qual comportamento linguístico-comunicativo é tido como

apropriado para determinado evento de comunicação é essencial na análise da

competência comunicativa de um indivíduo. Além do que é apropriado, Hymes

(1972a) propõe ainda a observação do que é formalmente possível, do que é viável

e do que é de fato realizado. Nesse trabalho, o interesse recai sobre as noções de

adequação e de viabilidade. Na aplicação desse último conceito, observa-se, além

de fatores como recursos perceptuais e limitação da memória, um outro, proposto

por Bortoni-Ricardo (2006): o conjunto de recursos linguísticos à disposição dos

106

falantes. Nesse sentido, segundo a autora, “se um falante não tiver acesso a

recursos linguísticos necessários para a implementação de um certo ato de fala,

como, por exemplo, vocabulário ou padrões retóricos específicos, seu ato de fala se

torna inviável” (BORTONI-RICARDO, 2006, p. 62).

Interessa aqui, portanto, verificar como um grupo heterogêneo de líderes

políticos viabilizam atos comunicativos num evento que exige o uso da variedade

urbana culta e, ao mesmo tempo, alto grau de monitoração estilística. Uma vez

conscientes do comportamento linguístico-comunicativo considerado apropriado

para a Sessão Ordinária, os vereadores têm como tarefa essencial viabilizar o seu

discurso. Observando o comportamento linguístico-comunicativo de fato realizado,

foi possível categorizar os participantes do evento em dois grupos: um no qual a

equação adequação-viabilidade se mostra incompleta, como consequência da

insegurança linguística exibida pelos seus integrantes; e outro, no qual essa

equação pode ser considerada completa, graças à segurança linguística que seus

integrantes exibem. Dados representativos de ambos são a seguir analisados.

5.1 Insegurança Linguística, Adequação e Viabilidade

Para parte dos vereadores da Câmara Municipal de São Domingos (ACF,

EFL, EMD, EOC, FLSF e GVSA), viabilizar os atos comunicativos ao longo da

Sessão Ordinária parece não ser uma tarefa tão simples. Por um lado eles

conseguem se moldar às certas exigências linguístico-comunicativas do seu papel

social, como no emprego de traços prosódicos e para-linguísticos próprios do

domínio político; por outro lado, no entanto, como falantes de variedades populares

do português e aparentemente com acesso limitado às regras da norma culta, esses

seis líderes demonstram ser afetados por uma considerável dose de insegurança

linguística. Assim, na tentativa de viabilização de uma produção verbal oral

adequada ao evento comunicativo, eles lançam mão de dois notórios recursos: a

combinação de estilos, de modo a usar recursos linguísticos de sua variedade

vernacular no lugar de recursos da norma culta sobre os quais não têm domínio; e o

uso de hipercorreções, de modo a tentar se aproximar ao máximo das regras da

norma de prestígio, usando regras imperfeitamente aprendidas.

No quadro do recurso à combinação de estilos, os falantes, ao lado de regras

da norma culta, usam de modo recorrente regras próprias de sua variedade, a

107

rurbana. Os dados revelam que, nesse processo, algumas regras fonológicas e

morfossintáticas se destacam, como se pode conferir no item seguinte. São traços

linguísticos, conforme Bortoni-Ricardo (2006, 2009), ou descontínuos ou, mesmo

sendo graduais, não são produtivos em estilos formais da norma urbana culta, a

considerada adequada para a Sessão Ordinária.

5.1.1 O uso de regras linguísticas de variedades do português popular

Algumas regras linguísticas características de variedades do português

popular brasileiro (entre as quais se incluem as variedades rurais e rurbanas) são

recorrentes no estilo monitorado dos seis vereadores que integram esse grupo

marcado pela insegurança linguística e pelo acesso limitado às regras da variedade

culta em seu estilo monitorado. Destaca-se entre todo o conjunto de regras

utilizadas com frequência considerável por esses líderes políticos duas regras

fonológicas e duas morfossintáticas: a vocalização do /λ/, o apagamento do ditongo

resultante de inserção de glide, a concordância nominal de número e a concordância

verbo-nominal.

O primeiro traço linguístico a ser considerado, nessa direção, é a vocalização

de /λ/, tida como uma das características mais marcantes das variedades rurais e

rurbanas do português brasileiro contemporâneo. Nos trechos de elocuções a

seguir, dá-se destaque a esse aspecto fonológico:

(4) EFL: (...) quero, senhor presidente, dizer, que tive com o prefeito no sábado oiano as estrada... ele também preocupado porque viu que o mandato dele tá precisano ajeitar as estrada...pedi a ele que visse o mais rápido possível essa situação e até ele dizia que tá com um projeto pra comprar duas caçamba pra gente fazer um meioramento nas estrada (...)

(5) ACF: (...) Eu gostaria, senhor presidente, de solicitar do seu prefeito também essa saída, seu presidente... de:: a saída da rua até chegar em... na... cooperativa... que ele faça uma passage moiada que tá o perigo maior do mundo (...)

(6) EOC: (...) quero também... já falei aqui também por diversas vez... que coloque um aparei de raio-x no hospital da sede e também uma ultrassonografia, um aparei de ultrassonografia para a nossa... para o nosso povo humilde não precisar ir pra Valente, pagar uma passage, perder uma até mei dia pra poder ir em busca de um inzame desse (...)

A regra de vocalização da lateral /λ/ é aplicada às quatro palavras

destacadas: oiano, meioramento, moiada e aparei, cujos usos correspondentes na

norma culta são, respectivamente: olhando, melhoramento, molhada e aparelho. A

108

regra, como se vê, é amplamente utilizada por esses vereadores, apesar do grande

estima a que está sujeita, principalmente em contextos mais formais. À cerca desse

fenômeno linguístico, é interessante a observação que faz Bortoni-Ricardo (2011, p.

195):

A vocalização do fonema lateral alvéolo-palatal é um claro estereótipo caipira na cultura dominante no Brasil. Em comunidades rurbanas de fala, provavelmente tem o status de “marcador estereotipado”, i. e., é uma variável diagnóstica do substrato rural dos falantes, possível de alternância estilística e ainda, dependendo do grau de influência da cultura dominante na comunidade, é um tópico de comentário.

Especificamente na palavra aparei, além da vocalização da lateral alvéolo-

palatal, coocorre uma outra regra também produtiva nas variedades rurais e

rurbanas: o apagamento do ditongo resultante de inserção de glide. Bortoni-Ricardo

(2011) explica que os ditongos formados por / j /, seguidos por uma vogal - como na

palavra “ideia” – representam um caso peculiar de redução. Segundo a autora, na

pronúncia padrão, um glide é inserido antes da vogal que segue ao ditongo, o que

resulta numa sequência de dois ditongos: /i’dɛja/ : /i’dɛjja/ “ideia”. Ela diz que, em seu

conjunto de dados do português rural e rurbano, esse ditongo segue dois padrões de

redução. Em alguns casos ele é monotongado, o que bloqueia a inserção de glide,

resultando para a palavra “ideia”, por exemplo, a realização /i’dɛa/. Em outros, o que,

segundo ela, é mais frequente, o ditongo crescente obtido com a inserção do glide é

apagado, desse modo: /’ʃejju/ : /’ʃej/ “cheio”.

De acordo com Bortoni-Ricardo (2011), essa regra de redução do ditongo é

produtiva nas variedades rurais e rurbanas, justamente como consequência da regra

de vocalização da consoante lateral palatal /λ/ e também da consoante nasal palatal

/ñ/. Assim para o caso de palavras como aparei (aparelho) e rebain (rebanho), o

processo é assim explicado:

Vocalização Inserção de glide apagamento do ditongo

/apa’ɾeλu/ : /apa’ɾeju/ : /apa’ɾejju/ : /apa’ɾej/

Vocalização Inserção de glide apagamento do ditongo

/xɛ’bãñu/ : /xɛ’bã u/ : / xɛ’bã u/ : / xɛ’bã /

109

Representando diferentes níveis de estratificação, o apagamento do ditongo

resultante de inserção de glide é mesmo uma regra muito usada por alguns dos

vereadores. Assim como em “aparelho” – como visto acima – a aplicação dessa

regra a outras palavras também pode ser verificada, como é o caso de “rebanho” e

“meio”, destacadas nos trechos de fala seguintes:

(7) EFL: (...) quero dizer às vossas excelências... que hoje está se criano em São Domingos um novo programa, um programa da Cidadania Rural, onde nós vamos ter técnicos para levar até as fazenda meioramento genético, vamo ter um acompanhamento de veterinário, onde vai acompanhar os seus rebain... é:: que a gente veja... é:: o desenvolvimento nas região rurais com os animais sadio, onde a gente hoje enfrentamos grandes problema do rebain bovino (...)

(8) ACF: (...) senhor presidente... tem ota coisa mínima... as aula começou e o ônibus tá vino de lá pra cá pegano os aluno naqueles ponto e o ônibus para no mei da pista (...)

Ainda na seara do uso de regras características de variedades rurais e

rurbanas no discurso monitorado dos vereadores, merece destaque casos de

concordância nominal e de concordância verbal. São essas duas regras da língua

bem representativas da variação linguística, inclusive da variação estilística.

A concordância nominal é uma das regras variáveis do português brasileiro

que se pode usar para distinguir diferentes variedades, entre elas as estilísticas.

Souza Campos e Rodrigues (2002) afirmam que a concordância nominal é um fato

gramatical que implica harmonia formal em pelo menos dois elementos flexionáveis

de um sintagma nominal. Em se tratando de concordância nominal de número,

especificamente, as autoras dizem preferir falar em indicação formal de pluralidade e

não em concordância nominal, visto que, em tese, a dita harmonia pode mesmo não

acontecer.

A indicação formal de pluralidade em todos os elementos flexionáveis do

sintagma nominal é uma das marcas características dos estilos mais monitorados

das variedades urbanas de prestígio. Analisando esse fenômeno nos dados do

NURC, Souza Campos e Rodrigues (2002) concluem que os falantes cultos tendem

a aplicar as regras de pluralização preconizadas pela gramática normativa,

sobretudo em elocuções formais. Desse modo, a tendência é a marcação

redundante do plural no sintagma nominal, assim: “Todas as câmaras do estado”.

Em oposição aos estilos monitorados da variedade urbana de prestígio, nas

outras variedades da língua, a tendência é que a indicação formal de pluralidade em

um sintagma nominal se dê apenas no seu primeiro elemento, evitando, assim, a

110

chamada redundância. Bortoni-Ricardo (2009) defende que essa regra se

caracteriza por ser um traço gradual, visto que ela aparece no polo rural do contínuo,

mas também nas comunidades rurbanas e urbanas. Apesar de ser uma regra

espraiada entre os falantes, ela, no entanto, não goza de prestígio em eventos

comunicativos letrados, em que a variedade urbana culta em seu estilo monitorado é

a considerada adequada, como é o caso das Sessões Ordinárias.

Os seis vereadores desse grupo, na realização dos atos comunicativos

marcadamente monitorados na Sessão Ordinária, fazem largamente uso da regra de

concordância nominal em que apenas o primeiro elemento do sintagma nominal

recebe a marca formal de pluralidade, como se vê abaixo:

(9) EOC: (...) Em Santo Antoin realmente tá faltano água esses três dia e o pessoal tá se bateno pela água, que a água é vida, portanto falo ao prefeito... veja o que faz aí pelo pessoal... que volte a ter água os oito dia da semana (...)

(10) GVSA: (...) Eu acredito que tudo tem que ter reeleição, mesmo porque acredito... aqui tem só três novato, vereadores a primeira vez... me perdoe os demais mas a maioria já tem três, quatro mandato (...)

(11) FLSF: (...) Senhor presidente... é:: nesse momento eu quero parabenizar e agradecer a presença do tenente L, onde tive a oportunidade de está com ele ontem aqui na cidade de São Domingos, onde ele está se preocupano muito com esses evento que vai acontecer aqui neste mês, esses evento que são as festa junina (...)

(12) EMD: (...) Quero pedir a ele que ele mande confeccionar as farda do pessoal que trabalha na área da limpeza pública o mais rápido possível... tá chegano os festejo junino, pessoal vai trabalhar... que ele veja isso (...)

(13) EFL: (...) Senhor presidente... eu fico feliz quando vejo os colega vereador cobrano, reivindicando os direito, fiscalizano e fazeno nova legislação... que é o nosso dever... é fiscalizar e legislar... e isso sim é o dever do vereador (...)

(14) ACF: (...) a gente se incomoda, senhor presidente, de vim uma quantia de seis mil reais todo mês, pa asfaltar as estrada, cascalhar as estrada... e não é pa passar a máquina não, tapear com uma maquinazinha... é pa encascaiamento (...)

No que diz respeito à concordância verbal, é preciso, antes de tudo, destacar

que essa é uma regra variável reveladora da heterogeneidade do português

brasileiro. De modo geral, o português brasileiro é caracterizado pela simplificação

dos paradigmas flexionais verbais, fenômeno morfofonêmico e morfossintático que,

de acordo com Mattos e Silva (2002), tem relação sintática e semântica com a

seleção do pronome sujeito. Segundo a autora, convivem no Brasil, em um extremo,

111

o paradigma histórico pleno, referente a seis pessoas (três do singular e três do

plural), ou seja, o encontrado em textos literários e nas gramáticas escolares; e, no

outro extremo, o paradigma em que a oposição se reduz entre a primeira pessoa e

as outras, sem distinção número-pessoal. Entre um extremo e outro do contínuo,

conforme Mattos e Silva (2002), estão os paradigmas de quatro pessoas e o de três

pessoas. O verbo votar no presente do indicativo, por exemplo, seria, nesses quatro

paradigmas, assim representados:

1º Paradigma – Eu voto; Tu votas; Ele/Ela vota; Nós votamos; Vós votais;

Eles/Elas votam;

2º Paradigma – Eu voto; Você/Ele/Ela vota; Nós votamos; Vocês/Eles/Elas

votam;

3º Paradigma - Eu voto; Você/Ele/Ela/A gente vota; Vocês/Eles/Elas votam

4º Paradigma – Eu voto; Você/Ele/Ela/Vocês/Eles/Elas/A gente/Nós vota.

O segundo paradigma (o de quatro pessoas) caracteriza-se pela perda das

marcas de 2ª pessoa na morfologia verbal. Essa configuração, segundo Lucchesi

(2006), é decorrente de mudanças de pauta dos pronomes pessoais do português

brasileiro, a saber, a substituição do pronome vós pelo pronome vocês –

praticamente consolidada em todo o território brasileiro – e a substituição do tu pelo

você, que também é majoritária no Brasil.

No terceiro paradigma (o de três pessoas), além da perda das marcas de 2ª

pessoa, tem-se também como característica a perda da marca de 1ª pessoa do

plural. A explicação para esse fenômeno, de acordo com Lucchesi (2006), está no

processo de substituição do pronome nós pelo a gente, motivado pelo processo de

gramaticalização que esta expressão nominal sofreu, adquirindo a função de

pronome pessoal sujeito, processo que ganhou força, segundo Lucchesi (2006), ao

longo do século XX. O autor assevera que essa configuração do terceiro paradigma

de conjugação foi responsável por praticamente eliminar todas as distinções de

pessoa do português brasileiro, visto que os morfemas verbais de primeira pessoa

só ocorrem no presente, pretérito perfeito e futuro do presente do indicativo, e que a

marca de número, feita por meio do morfema plural – m, se enfraquece, já que não

figura mais na primeira pessoa do plural.

112

O quarto paradigma, em que se verifica somente a oposição entre a primeira

pessoa e as outras, é característico das variedades populares do português

brasileiro, entre as quais se podem incluir as rurais e as rurbanas. Segundo Lucchesi

(2006), especificamente no quadro dessas variedades, podem-se encontrar ainda

outros paradigmas de conjugação, quais sejam: Eu voto; Você/Tu/Ele/Ela vota;

Nós/A gente vota, votamo(s); Vocês/Eles/Elas vota(m).

Nesse caso, constituem-se como regras variáveis entre essas variedades a

concordância com a 1ª, a 2ª e a 3ª pessoas do plural. Para a primeira pessoa, a

desinência número-pessoal pode ser realizada como /mu/ ou ser simplesmente

suprimida, realizando-se, portanto, como uma forma não marcada; em se tratando

da variedade rural, a variante /mu/ geralmente coocorre com a mudança da vogal

temática (/a/ >/e/) nos pretéritos da primeira conjugação, resultando em formas

como: nós falemu; nós andemu; nós paremu Observa-se ainda que quando o sujeito

de 1ª pessoa do plural usado é o a gente, ele pode também ocorrer com a forma

verbal marcada de 1ª pessoa do plural, resultando em formas como: a gente

falamos; a gente andamos; a gente paramos (Bortoni-Ricardo, 2011).

Especificamente para a 2ª e a 3ª pessoas do plural, a variação que se verifica se dá

entre a presença ou ausência do morfema de plural – m.

O processo de redução da morfologia verbal de pessoa e número na

formação das normas populares do português brasileiro, como argumenta Lucchesi

(2006), não pode ser explicado pelos mesmos processos atribuídos aos 2º e 3º

paradigmas apresentados acima, ou seja, pelo processo de substituição dos

pronomes pessoais, haja vista que a redução na flexão verbal, entre as variedades

populares, ocorre mesmo quando se mantém em uso os pronomes tu e nós. Para o

autor, a explicação encontra-se no processo de transmissão irregular desencadeado

pelo contato entre línguas, ou seja, no processo de aquisição precária do português

por índios aculturados e escravos africanos e no processo de socialização e

nativização desse modelo defectivo de segunda língua entre seus descendentes

endógamos e mestiços.

Na condição de falantes de uma variedade do português popular brasileiro, os

vereadores desse grupo empregam com considerável frequência no seu discurso

monitorado durante a Sessão Ordinária formas verbais próprias dos últimos

paradigmas apresentados. No caso das 1ª, 2ª e 3ª pessoas do plural, nota-se a

preferência pela aplicação de determinadas regras de concordância verbal. Quando

113

o sujeito de 1ª pessoa do plural é expresso, por exemplo, por a gente, verifica-se

que eles alternam entre a forma não marcada do verbo – que é também comum em

outros paradigmas – e a forma com a marca desinencial de número-pessoal, que,

por sua vez, também ocorre com a supressão do /s/ da desinência (/mus/>/mu/):

(15) ACF: (...) tamos preocupado é com essas obra inacabada, que dinheiro vem, dinheiro vem e ninguém vê terminar as obra... então a gente vamos se incomodar a vida toda... num vamos deixar de bater na tecla... nessa tecla nunca na vida, enquanto num terminar as obra a gente temos que bater. Um boa noite a todos.

(16) EFL: (...) Já pedi aqui nessa tribuna que:: o secretário de transporte fizesse umas visita nos distrito, nos povoado e que priorizasse aquelas localidade onde se pega os aluno e traz pras nossa cidade, e precisa sim ser feita, que a gente estamo aqui é pra cobrar, mas a gente tamo sim pra fiscalizar, porque a gente tem que saber que a nossa função aqui é fiscalizar e legislar e é por isso que eu quero pedir ao secretário que reveja essa situação (...)

Com a 2ª pessoa do plural, a concordância adotada com frequência por esse

grupo de líderes políticos mostrou-se também variando entre as opções dos

paradigmas de conjugação verbal próprios das variedades populares, mesmo o

evento comunicativo sendo, conforme analisado, formal e exigindo, portanto, o uso

de formas dos paradigmas das variedades cultas mais monitoradas. Desse modo,

tem-se a combinação do pronome vocês ou com uma forma verbal sem desinência

número-pessoal ou com uma realização específica dessa desinência, em se

tratando de determinados verbos, em determinados tempos verbais, como se vê nos

trechos de fala abaixo, do vereador EFL, quando ele se dirige à população do

munícipio:

(17) EFL: (...) tenho certeza que vocês merece, que vocês precisa, porque eu tenho certeza que vocês merece sim um emprego digno... que venha a dar sustento à família de vocês... porque eu tenho certeza que essa preocupação dos vereadores aqui quer sim ver todos vocês trabalhando (...)

(18) EFL: (...) me recordo muito bem onde existe uma lei que aquele que vota merece se votado e qualquer um de vocês pode assumir aqui essa cadeira... então por que vocês não pode fazer uma prova do Reda com um nível onde vocês estudaro? (...)

Em (17) os verbos precisar e merecer têm como sujeito o pronome de

segunda pessoa do plural vocês e são conjugados seguindo um dos paradigmas das

variedades populares, ou seja, sem os ditongos nasais /ãũ/ e /ẽ /, que

corresponderiam, nesse caso, às desinências número-pessoais para cada um dos

verbos, respectivamente. Em (18), por sua vez, verifica-se que o verbo estudar é

utilizado com a marca desinencial, no entanto a ela é aplicada a regra fonológica de

desnazalização e monotongação do ditongo /ãũ/, de modo que ele é realizado como

114

/u/; regras que, apesar de se constituírem como traços graduais no português

brasileiro, possuem uma estigmatização média, segundo Head (1981, apud

BORTONI-RICARDO, 2011, p. 68), sobretudo em contextos formais e de alta

monitoração estilística, como é o caso da Sessão Ordinária.

No que se refere à concordância verbal com a 3ª pessoa do plural, há casos

semelhantes ao que se observa para a 2ª pessoa do plural. Ora os verbos usados

pelos vereadores não apresentam marcas desinenciais de pessoa e de número ora

são aplicadas as regras de desnazalização e de monotongação aos ditongos que

constituem as desinências número-pessoais de alguns verbos, o que se verifica

independente de ser expresso pronominalmente (eles/elas) ou por meio de um

sintagma nominal equivalente. Nesse sentido, os excertos a seguir, de elocuções de

alguns dos vereadores, são bem representativos:

(19) EMD: (...) Quero dizer que toda administração sempre tem algum problema e quero pedir a Deus que nos dê força a nós, dê força aos nosso adversário pra que eles veja de perto a nossa grande vitória e meu boa noite.

(20) ACF: (...) Senhor prefei/... Senhor presidente, eu gostaria também, senhor presidente... eu gostaria de dizer... foi falado aqui há pouco nessa tribuna que os vereadores se incomoda, muitas vezes, de ver obra... Os colegas do PMDB não incomoda de ver obra não... Eu quero ver obra e mais obra em São Domingos (...)

(21) EMD: (...) Quero dizer que:: todos os prefeito que passaro por a administração dessa cidade dero sua parcela de contribuição, mas também não poderia deixar de dizer e agradecer a Deus por ter dado força e saúde à população são-dominguense e ao prefeito por o trabalho que tem feito nos último cinco ano (...)

(22) ACF: (...) Isso é um absurdo... A pobrezinha ficou com tanta vergonha que voltou sem a feira dela. Eles dero às duas pessoa que tava com ela e num dero a ela, porque simplesmente ela num votou no prefeito... Isso é ABSURDO (...)

5.1.2 O uso de hipercorreção

A tentativa de se mostrar ao mínimo os traços característicos de suas

variedades (rurais ou rurbanas, por exemplo), quando em situação de alto grau de

monitoração estilística, faz parte do esforço de falantes de variedades menos

prestigiadas de “fazer crer que se domina a língua legítima ou fazer apagar a própria

origem” (CALVET, 2002, p. 77-78). Desse processo, motivado por uma forte

insegurança linguística, pode resultar, como afirma Calvet (2002), uma restituição

115

exagerada das formas prestigiosas, ou seja, pode resultar no fenômeno da

hipercorreção.

A produção verbal dos líderes políticos ora analisada, cuja característica

marcante é ser estilisticamente monitorada, revela flagrantes fenômenos de

hipercorreção. Entre as hipercorreções identificadas como mais frequentes,

destacam-se duas: o uso indiscriminado de onde e o emprego do relativo o qual.

São usos que, como se poderá verificar, não correspondem aos da variedade

urbana de prestígio, que se configura, nesse caso, como o modelo de referência.

Nos estilos mais monitorados da variedade de prestígio, a palavra onde tem

uma função normalmente bem definida: a de pronome/advérbio de lugar. Outras

funções, no entanto, são alocadas à palavra onde por alguns dos vereadores, no

esforço de viabilização de um discurso monitorado:

(23) EFL: (...) Senhor presidente, eu quero parabenizar nosso amigo V por ter feito um ofício e passado aqui p’esta casa, entregando ao senhor presidente... e tenho certeza que essa situação, V, vai ser resolvida, onde eu vi o presidente lendo, onde pediu o uniforme para o jovem, onde tá tendo uma escolinha e precisa sim ser resolvido essa questão... eu também, seu presidente, quero aqui neste momento parabenizar o professor JC, onde fez uma reunião conosco, onde tratou de um projeto, o Reda, onde foi muito polêmico (...)

(24) EFL: (...) quero pedir, senhor presidente, ao prefeito, onde ele venha resolver a situação de Morro Branco... eu tenho certeza que o prefeito vai resolver aquela situação (...)

À primeira vista, o que mais se destaca em relação à palavra onde nos

trechos de fala apresentados é a quantidade de vezes que ele aparece; só no

primeiro trecho são seis vezes. Acrescido a isso está ainda a generalização de

funções que o onde desempenha. Ora é empregado como uma conjunção

explicativa (“... onde vi o presidente lendo...”), ora como uma conjunção integrante

(“... onde ele venha resolver a situação do Morro Branco...”). No entanto, no mais

das vezes, a generalização se dá entre os relativos, uma vez que ele é usado tanto

para retomar pessoas (“... onde fez uma reunião conosco...”,“ ... onde tá tendo uma

escolinha...”) quanto situações (“... onde tratou de um projeto...”, “... onde foi muito

polêmico...”).

O uso generalizado do onde, como recurso de coesão sequencial, de

marcador discursivo, também pode ser verificado nos trechos de discurso de tribuna

do vereador FLSF reproduzidos abaixo:

116

(25) FLSF: (...) Quero aproveitar aqui a oportunidade também e parabenizar nossa amiga R pelo evento que tive o prazer de participar na sua escola, a décima sétima consecutiva, onde ganhou o nome de Arraiá da I F, onde tive o prazer de ver todos os alunos, seus pais, professores e todo aquele povo que estava presente naquela festa (...)

(26) FLSF: (...) quero te parabenizar, prefeito, pelas obras que está trazendo para esse município, principalmente para o meu distrito de Santo Antônio, onde estou muito alegre hoje por ter visto a planta da praça de Santo Antônio, onde foi pedida pelo vereador F (...)

Do modo como é empregado, esse recurso, além de ser um fenômeno

evidente de hipercorreção, é também a indicação de um domínio incompleto das

convenções dos estilos orais mais monitorados.

O emprego do pronome relativo o qual (e suas flexões) também foi

identificado entre as elocuções monitoradas dos vereadores como um relevante

fenômeno de hipercorreção. Como um nítido índice de insegurança linguística, esse

pronome é amplamente utilizado em uma grande variedade de funções, que

geralmente diferem dos seus usos mais comuns na variedade de prestígio, qual

sejam: “quando o verbo da oração adjetiva é transitivo indireto e seu complemento é

recuperado pelo pronome relativo, combinado com preposição regida pelo verbo”

(BAGNO, 2012, 969) e “para evitar ambiguidade quando existem dois antecedentes

para um mesmo pronome relativo, caso em que se emprega o qual para indicar que

o pronome se refere ao antecedente mais próximo” (BAGNO, 2009, 49-50). O

primeiro caso pode ser assim exemplificado: “O projeto no qual votamos é muito

importante para a cidade”. O segundo uso, assim: “Na mesa diretora, temos o

presidente e o secretário, o qual faz a leitura da ata e das correspondências.”.

É preciso destacar, nesse ponto, que, mesmo nas variedades urbanas cultas,

esses empregos de o qual são raros, estando reservados a interações mais formais

e letradas. Na verdade, em muitas situações em que se usa o qual, também se

poderia usar o relativo que, sem prejuízo nem sintático nem semântico nem de

qualquer outro nível. Assim, o exemplo dado acima também poderia ser assim

construído: “O projeto em que votamos é muito importante para a cidade.”.

Entre os variados usos de o qual nas elocuções monitoradas desse grupo de

vereadores, encontra-se ele sendo usado em funções sintáticas as mais diversas,

menos na de objeto indireto.

117

Nestes três trechos de fala, o relativo o qual aparece sendo empregado

equivocadamente na função de sujeito, mesmo não havendo nenhuma possibilidade

de ambiguidade no contexto:

(27) GVSA: (...) quero brevemente encerrar as minhas palavras dizendo que nesta casa tramita um projeto, senhor presidente, o qual propõe uma mudança no regimento de reeleição para presidente da Câmara (...)

(28) GVSA: (...) gostaria de em nome do Partido Democratas solicitar e pedir do:: Poder Executivo que esse mês saia atualizado o salário mínimo (...) pela manhã fui abordada por alguns profissionais, alguns servidores públicos, os quais estão pedindo que o Poder Executivo pague o retroativo (...) (29) GVSA: (...) Boa noite a todos... serei breve hoje... acredito que não há sessão melhor, pois estamos recebendo a graça conjunta, o qual estava fazendo muita falta (...)

Do mesmo modo, nestes outros trechos, o qual desempenha

desnecessariamente a função sintática de complemento nominal e de adjunto

adverbial, respectivamente:

(30) EFL: (...) Senhor presidente, eu quero, neste momento, pedir... é:: ao secretário de obras, o qual já fiz uma indicação aqui... que revesse... é:: aquela... aquele... riacho que liga a rua Santo Antônio à Alcides Carneiro (...)

(31) GVSA: (...) Quero aproveitar e dizer, vereador VF... que nunca esquecerei de que você simplesmente interpretou a lei como eu interpretei e assim nessa casa me defendeu de alguma situação, o qual vocês sabem que eu estava correta (...)

Em algumas ocorrências, o uso de o qual, além de se configurar em um

emprego sintaticamente equivocado, ainda aparece com o gênero e o número

diferentes do nome que retomam, sendo empregado na forma masculina e singular,

indiscriminadamente. Em (29), por exemplo, apesar de referir-se ao sintagma

nominal a graça conjunta - feminino, portanto - o relativo aparece sem a flexão de

gênero; o mesmo que se observa em (31), em que o relativo é usado no masculino,

mesmo retomando o nome feminino situação.

Opções alternativas ao relativo o qual, que, inclusive, poderiam ser usadas

com adequação nas situações acima - como é o caso de quem ou de que – parecem

mesmo não ser empregadas. Bagno (2009) argumenta que uma das razões para se

ter tantas produções verbais onde o relativo o qual é usado a todo momento e

indiscriminadamente está na obsessiva prescrição que o ensino tradicional faz de

que se deve evitar a repetição de que. Segundo ele, em vez de oferecer opções de

estruturas sintáticas que possam reduzir o uso do que – que exerce múltiplas

118

funções e é de uso inevitável – tudo o que se sugere é a substituição do que por o

qual, resultando, assim, em numerosos usos equivocados desse relativo.

Do mesmo modo que o onde, o relativo o qual também é usado por alguns

dos vereadores com outras funções, tais como a de reorganizador do discurso. Nos

dois trechos de fala seguintes, os vereadores GVSA e EMD empregam o pronome o

qual na função de mero conectivo, numa tentativa de organização do discurso que

vai sendo elaborado:

(32) EMD: (...) O ônibus da saúde que roda levano o pessoal pra Salvador, Feira de Santana... pa fazer exame... tá acontecendo um problema, o qual fui abordado nessa segunda-feira por duas pessoas...deixaro de levar um rapaz pa fazer exame ni Feira de Santana (...)

(33) GVSA: (...) Queria neste momento dizer o meu muito obrigada a secretária de Ação Social, S T... o secretário de Educação, J M... o secretário de Saúde, I N por o apoio que deu ao curso que teve esse fim de semana com o corpo de bombeiros, a brigada voluntária de Camaçari... em nome também do diretor do CEEP – Semiárido, nosso C, nos quais passamos o final de semana, sábado e domingo, o dia todo, fazendo um trabalho educativo de como se prevenir e dar socorro no caso de acidente (...)

5.1.3 Perfil sociocultural e insegurança linguística

Desempenhar papéis em domínios sociais cujo funcionamento se dá por meio

da variedade urbana de prestígio, pode mesmo ser uma tarefa nada fácil para quem

o acesso a essa variedade, por uma série de razões, foi e é restrito. Em meio a um

sentimento de insegurança, esse tipo de falante precisa então recorrer a estratégias

que o ajudem a viabilizar suas tarefas comunicativas. No caso dos seis vereadores

desse grupo, a combinação de variedades estilísticas e o recurso à hipercorreção

foram estratégias que se destacaram, no esforço de adequação à linguagem do

evento.

Certamente, a demonstração de insegurança linguística nesse que é

predominantemente um evento de letramento, está associada ao perfil sociocultural

do falante e à sua relação com a cultura letrada. No contínuo rural-urbano, dos seis

vereadores, cinco estão situados numa zona intermediária, ou seja, tem origem

rurbana; e um está situado no polo urbano. A partir da metodologia proposta por

Bortoni-Ricardo (2006, 2009), a maioria dos vereadores desse grupo é classificada

como rurbana, já que eles ou residem em distritos e núcleos semirrurais, que estão

submetidos à influência urbana, ou então, mesmo residindo em ambiente urbano,

tem origem rural, de modo a preservar muitos de seus antecedentes culturais,

119

notadamente o repertório linguístico. ACF, EOC e FLSF, por exemplo, são

residentes do distrito de Santo Antônio. EMD é morador do povoado rural de Ouro

Verde. EFL, por sua vez, apesar de morar na sede do município, é proveniente de

uma de suas comunidades rurais, Morro Branco. Sendo o único membro desse

grupo que não é classificado como rurbano, a vereadora GVSA é considerada

urbana porque ao longo de toda a vida ela teve apenas residência urbana,

chegando, inclusive a morar na sede de outros municípios da região.

Para esse grupo de vereadores cujo discurso monitorado é marcado pela

insegurança linguística, a escolaridade se mostra um fator importante, porém não

uniforme entre eles, visto que, de modo geral, se encontravam em pontos distintos

do processo de escolarização. EMD e EOC não haviam completado o Ensino

Fundamental. EFL e ACF, por sua vez, tinham essa etapa da Educação Básica

concluída. Os outros dois vereadores, FLSF e GVSA, são os que possuíam maior

escolarização no grupo: o primeiro com Ensino Médio completo e a segunda, Ensino

Superior completo, sendo esta última, portanto, a mais escolarizada entre todos os

vereadores.

A partir de pesquisas sobre letramento, Soares (2003, p, 111) chega à

conclusão de que “quanto mais longo o processo de escolarização, quanto mais os

indivíduos participam de eventos e práticas escolares de letramento, mais bem

sucedidos são nos eventos e práticas sociais que envolvem a leitura e a escrita”.

Desse modo, é de se esperar que o processo de escolarização exerça uma

influência efetiva no domínio de variedades urbanas de prestígio. Para os

vereadores em questão, no entanto, que apresentam níveis de escolaridade

diferentes e habilidades de monitoração estilística até certo ponto semelhantes, a

influência da escolarização pode ser observada de modos diferentes. Para os que

não completaram a Educação Básica, a razão da insegurança linguística pode estar

exatamente no relativamente pequeno tempo de contato com o letramento escolar.

Para os que tiveram mais anos de escolarização, por sua vez, pode-se apontar

como razão da insegurança linguística, entre outras, a incipiente qualidade desse

letramento, o que pode ser resultado, por exemplo, da ainda comum educação

linguística tradicional oferecida pelas escolas.

Ao lado dos fatores origem geográfica e nível de escolaridade, o fator

envolvimento com práticas letradas na vida cotidiana se mostrou também relevante

para explicar a inserção dos seis vereadores nesse grupo. A partir de aspectos

120

como atividades profissionais desempenhadas ao longo da vida, uso da leitura e da

escrita no dia a dia e participação sociopolítica, observou-se o quanto esses líderes

políticos estão inseridos na cultura de letramento, e, por conseguinte, o quão eles

são impelidos a monitorar seu estilo, a recorrer à variedade de prestígio da língua.

Considerando que no âmbito do trabalho algumas atividades lidam mais

outras menos com práticas letradas, foram observadas quais profissões os

vereadores já haviam exercido e/ou estavam exercendo, a fim de verificar se nesse

âmbito havia demandas, por exemplo, de habilidades de monitoração estilística. O

que se notou foi que, quanto a esse aspecto, havia certa uniformidade entre todos

eles, incluindo os dois mais escolarizados. Atividades profissionais ligadas ao meio

rural, como a agricultura e a pecuária foram as que os vereadores EFL, EOC e EMD

disseram desempenhar, atividades, portanto, cujo desenvolvimento não envolve

necessariamente práticas letradas. Profissionalmente, os vereadores FLSF e ACF

tinham em comum o fato de serem ambos pequenos comerciantes. No caso de

GVSA, por ocasião da pesquisa estava exercendo apenas a função de vereadora,

mas até então tinha como principal atividade profissional a de técnica de

enfermagem. Em relação às ocupações desses três últimos vereadores, pode-se

dizer que, apesar de demandarem determinadas competências letradas, não exigem

deles precisamente, por exemplo, o uso de estilos linguísticos mais monitorados,

mais formais.

Os hábitos de leitura e de escrita que os seis líderes políticos revelaram ter

em seu cotidiano também se mostraram esclarecedores do grau de inserção em

práticas letradas. A bibliotecas e livrarias, por exemplo, eles disseram que raramente

ou nunca vão. Eles são unânimes em dizer que se utilizam da escrita ou para fins

profissionais (o que inclui, com destaque, as demandas do próprio papel de

vereadores) ou burocráticos (a exemplo de preenchimento de cadastros e registro

de compromissos). Jornais e revistas foram os materiais de leitura que eles disseram

utilizar. Os vereadores EFL, EMD e EOC admitiram ter certa dificuldade com

atividades que envolvem leitura e escrita. GVSA, especificamente, admitiu que lê

muito pouco e que o pouco que lê se restringe a documentos ligados a seu trabalho

na Câmara ou seu trabalho de técnica de enfermagem.

No que diz respeito à participação sociopolítica desse grupo de vereadores há

que se observarem algumas questões interessantes. A vereadora GVSA conta que

nunca fez parte de entidades como associações, cooperativas, etc., mas que

121

costuma participar, como ouvinte, de palestras e cursos, principalmente na área de

saúde. Os vereadores ACF, FLSF, EOC EMD disseram já terem participado de

associações comunitárias na condição de sócios, chegando FLSF a exercer a

função de secretário. EFL, por seu turno, disse que na ocasião estava exercendo,

concomitante à função de vereador, a de vice-presidente de uma cooperativa rural.

5.2 Segurança Linguística, Adequação e Viabilidade

O estilo monitorado dos outros três vereadores (AJRN, GAC e WFRC)

apresenta traços que revelam que os aspectos de adequação e viabilidade de suas

competências comunicativas correspondem bem às exigências do evento

comunicativo Sessão Ordinária da Câmara. Exibindo segurança linguística em suas

elocuções nos diferentes atos comunicativos que desenvolvem, esse grupo de

vereadores demonstrou dominar suficientemente não apenas os aspectos

prosódicos e para-linguísticos próprios do papel de líder político, mas também regras

do estilo monitorado da variedade urbana culta, que é notadamente o estilo de

referência no evento.

Nesse sentido, a adequação e a viabilidade para esse caso, podem ser

avaliadas pelo uso das mais diversas estratégias comunicativas e regras

linguísticas. Assim, opta-se aqui por analisar mais detidamente o uso que esse

grupo de vereadores faz de duas regras variáveis: a concordância nominal de

número e a concordância verbo-nominal. Uma seleção que se justifica na medida

em que são fenômenos morfossintáticos que exibem considerável variação na

comunidade de fala brasileira como um todo, sendo suas diferentes variantes

representativas de diferentes variedades, sobretudo estilísticas.

5.2.1 O uso de regras linguísticas da variedade urbana culta

No que tange à concordância verbal, como já discutido, sabe-se que é regra

geral e produtiva da variedade urbana culta do português brasileiro, a concordância

do verbo com o sujeito. É preciso destacar, no entanto, que, assim como de outras,

é característica dessa variedade a simplificação do sistema flexional dos verbos.

Desse modo, pode-se afirmar que dois dos quatro paradigmas de conjugação verbal

apresentados por Mattos e Silva (2002) dizem respeito à variedade urbana culta

122

monitorada: o paradigma de 4 pessoas e o paradigma de 3 pessoas, ambos

provenientes, segundo Lucchesi (2006) do processo de substituição de pronomes

pessoais no português brasileiro. Assim, devido à substituição do pronome vós pelo

pronome vocês e do tu por você, tem-se o seguinte paradigma: Eu trabalho;

Você/Ele/Ela trabalha; Nós trabalhamos; Eles/Elas trabalham. E devido à

substituição do pronome nós por a gente, tem-se o paradigma: Eu trabalho;

Você/Ele/Ela/A gente trabalha; Vocês/Eles/Elas trabalham.

Nessa direção, em um dos paradigmas das variedades urbanas de prestígio,

o sujeito de 1ª pessoa do plural é expresso por a gente e o verbo que com ele

concorda não apresenta a marca desinencial de plural; e no outro paradigma, o

sujeito de 1ª pessoa é expresso pelo pronome nós e, assim, o verbo que com ele

concorda exibe a desinência plural – /mus/. Com a 2ª e a 3ª pessoas do plural, tanto

em um paradigma quanto em outro, os verbos apresentam normalmente a

desinência número-pessoal, expressa ou por vogal nasal ou por ditongos nasais.

Nas elocuções dos três vereadores desse grupo, observa-se que há

preferência pela utilização das regras de concordância verbo-nominal do paradigma

de quatro pessoas pronominais. Desse modo, sendo o sujeito de 1ª pessoa plural

preferencial o pronome nós, tem-se que os verbos empregados concordam com o

pronome, de modo a apresentar a desinência número-pessoal, como se pode vê nos

exemplos a seguir:

(34) WFRC: (...) nós nos preocupamos, senhor presidente, nesse momento, com a situação de algumas ruas da nossa cidade, senhor presidente... porque, senhor presidente, é:: nós observamos no final do ano... do fim para o início do ano... nós nos surpreendemos com algumas placas, senhor presidente... algumas placas na cidade.... é:: fazendo propaganda de muitas obras, elas do governo federal, senhor presidente, como calçamento, que nós sabemos que é uma obra do governo federal (...)

(35) GAC: (...) É só entrar no saite da empresa e ver que ela está trabalhando com inúmeras câmaras e prefeituras, essa empresa... então, nós esperamos que faça o processo com a maior lisura possível, com transparência, é isso que nós esperamos. A intenção nossa é fazer jus àquele que se dedique, àquele que se esforce... Nós não temos aqui como satisfazer a vontade de todos, já que nós sabemos que só possui quatro vagas (...)

(36) AJRN: (...) Nós... vereadores da bancada pepista... tanto eu quanto NF quanto F... acompanhamos o prefeito pra tentar de já, de imediato, ainda esse ano... implantar essa indústria que possa ir valorizano essa atividade que é importante e que se associa também com o sisal. Eu queria dizer que nessa mesma data nós estivemos lá na SEINFRA... lá onde tá o nosso líder maior, nosso amigo JL, secretário de infraestrutura (...)

123

Em (34), (35) e (36), nota-se que todos os verbos que se relacionam com o

sujeito de 1ª pessoa do plural (preocupar-se, observar, surpreender-se esperar, ter,

saber, acompanhar e estar) estão concordando em número e pessoa com seus

sujeitos, apresentando, portanto, a forma marcada. Assim, seguindo a regra da

variedade de prestígio, os vereadores WFRC, GAC e AJRN demonstram segurança

ao usar essa variante da concordância verbo-nominal.

No que diz respeito à concordância verbo-nominal com a 2ª pessoa do plural,

é preciso destacar que entre esses três vereadores há uma peculiaridade: o

pronome vocês normalmente não é utilizado como índice de 2ª pessoa.

Provavelmente como resultado de um esforço de adequação a um estilo mais

monitorado, os interlocutores são tratados de modo cerimonioso, não importando se

sejam eles os colegas vereadores ou os membros do auditório. Assim são

empregados no lugar de vocês, os pronomes de tratamento os senhores/ as

senhoras, como se pode verificar nestes trechos:

(37) WFRC: (...) os moradores daquela rua enfrentaram muitas dificuldades, senhor presidente, tiveram que sair de suas casas, senhor presidente, porque a água invadiu suas casas, senhor presidente... tá lá... eu estive lá agora de tardezinha.. espero que os senhores também passem... vão ver com seus próprios olhos a população é:: se atormentando com medo da chuva, senhor presidente (...)

(38) AJRN: Inicialmente, volto à tribuna desta casa cidadã, dessa casa legislativa... Quero agradecer a Deus pela saúde e por estar vivendo esse momento de chuvas em nosso município. Quero aqui saudar o excelentíssimo senhor presidente, os colegas vereadores, colega vereadora G, os ouvintes da emissora de rádio, às senhoras e os senhores que nos assistem no auditório dessa casa, aos servidores dessa casa (...)

Pode-se perceber em (37) e (38) que os verbos cujos sujeitos são exatamente

os índices de 2ª pessoa do plural senhores e senhoras apresentam todos eles as

marcas de pessoa, conformando-se, assim, à concordância própria da variedade

urbana de prestígio.

No caso da concordância verbo-nominal com a 3ª pessoa do plural, verifica-se

também uma grande preferência pelas formas correspondentes à variedade de

prestígio, quais sejam: as que apresentam a desinência –m ou ditongo nasal. Os

três vereadores mostram em suas elocuções na Sessão Ordinária uma preocupação

constante em usar formas verbais plurais de 3ª pessoa quando o sujeito é eles/elas

ou sintagmas nominais equivalentes, como revelam os seguintes dados – que são

exemplos de uma constante:

124

(39) WFRC: (...) A Cecília Carneiro... essa rua é a que está no fundo da Agrotan, da Bahia Mantas...

esse assunto que nós já questionamos, que já teve indicação nossa, que se desse uma prioridade, no ano passado, a essas ruas... mas eu não sei se isso é perseguição política, porque lá é:: está estabelecida uma indústria... indústria essa que pertence a meu tio JVC... não sei se é por isso que as pessoas que construíram suas casas ao redor dessa indústria estão sendo prejudicadas por mera perseguição política, senhor presidente, e nós não podemos aceitar isso, não podemos... lá se carrega caminhão, se carrega pra... de mantas, gera emprego, senhor presidente, traz renda pro município... e os caminhões chegam nas ruas e quebram as redes de esgoto (...)

(40) GAC: (...) Infelizmente essa emenda constitucional que os nossos parlamentares federais aprovaram em Brasília afetou sobretudo as câmaras do porte de São Domingos... mas temos que nos adequar, trabalhar com os pés no chão, dentro da realidade daquilo que temos como receita (...)

(41) AJRN: (...) Acredito que é possível fortalecer mais ainda as atividades rurais que existem em nosso município, não somente o sisal nem somente o leite, mas também tem a apicultura... tem a psicultura... tem a avicultura e muitas outras atividades que podem ser assistidas pelo município, acompanhadas (...)

Em se tratando da concordância nominal de número, têm-se então um outro

fenômeno morfossintático que se configura como grande diferenciador de

variedades, sobretudo estilísticas. Como já discutido na sessão anterior, a indicação

formal de pluralidade em todos os elementos flexionáveis de um sintagma nominal

representa, nessa seara, uma regra produtiva dos estilos mais monitorados da

variedade urbana culta (Souza Campos & Rodrigues, 2002). Uma vez que a

alternativa dessa regra (a indicação formal de pluralidade de um sintagma apenas

no seu primeiro elemento flexionável) é considerada como um traço gradual da

língua, seu uso demanda mesmo não apenas conhecimento, mas também

consciência de seu valor estilístico.

Sendo a Sessão Ordinária um evento que exige de seus participantes grande

monitoração estilística, o uso da opção mais monitorada dessa regra variável pode

ser tomado como relevante índice de adequação e viabilidade. Nesse quesito,

observa-se que os três vereadores desse grupo fazem uso desse recurso estilístico

de modo seguro.

O vereador WFRC, por exemplo, tenta dar a todo momento às suas

produções verbais nos variados atos comunicativos da Sessão Ordinária um tom

formal. Para tanto, ele lança mão de regras como a de concordância nominal

redundante, própria da variedade de prestígio:

(42) WFRC: (...) Isso não pode ser uma promessa, senhor presidente, isso não pode ser uma promessa... até porque nós sabemos que muitas vezes é:: a justiça muitas vezes deixa a desejar em algumas situações e esperamos que nessa os servidores públicos estejam com a razão e que eles possam se ressarcidos do seu prejuízo, senhor presidente (...)

125

Todos os elementos flexionáveis dos sintagmas nominais plurais, nesse

trecho, apresentam a marca de pluralidade. Assim, o vereador pluraliza tanto os

determinantes quanto os núcleos dos sintagmas, o que demonstra que ele não

apenas conhece a regra como também reconhece o seu valor sóciossimbólico no

contexto em que está inserido.

Os outros dois vereadores, GAC e AJRN, também exibem um domínio dessa

regra altamente representativa dos discursos mais monitorados. Os sintagmas

nominais plurais usados nos trechos de fala seguintes apresentam uma harmonia

formal em todos os seus elementos flexionáveis:

(43) GAC: (...) Antes de passarmos aqui para os oradores dessa noite, as inscrições dos nossos nobres vereadores, registrar a presença do bispo J e do bispo S, que muito nos honram com vossas presenças aqui em nossa casa... eles são representantes da:: da:: Associação Evangélica, né... e mais uma vez nos honram com suas valiosas presenças. (...)

(44) AJRN: (...) Quanto à questão que é muito debatida nessa casa, muito discutida... eu tive a oportunidade de conversar hoje com o chefe do poder executivo sobre o plano de desenvolvimento de recuperação das estradas vicinais. Nós temos conhecimento que São Domingos tem... entre as estradas principais e trechos de estradas vicinais a quantidade de aproximadamente trezentos e vinte e cinco quilômetros. É preciso que exista um planejamento estratégico que possa contemplar todas as estradas do nosso município e eu acredito que esse governo tem capacidade, tem compromisso e que vai conseguir realmente recuperar todas as estradas do município (...)

5.2.2 Perfil sociocultural e segurança linguística

A análise do estilo monitorado desse grupo de vereadores revela que eles se

mostram familiarizados com as rotinas linguísticas que são demandadas pelo

evento. A postura, os gestos, a entoação assertiva, o uso de léxico e construções

próprias do discurso político, bem como a acomodação às regras de interação e

interpretação são algumas das diversas pistas que mostram o quão integrados

esses líderes políticos estão à Sessão da Câmara. É preciso destacar, no entanto,

que além de demonstrar domínio de estratégias e recursos interacionais, AJRN,

GAC e WFRC também exibiram domínio satisfatório de regras linguísticas típicas da

variedade urbana letrada, o que os permitiu a viabilização de produções verbais

marcadas, sobretudo, pela adequação. A segurança linguística demonstrada em

todos os atos de comunicação de que participaram pode ser associada às peculiares

características socioculturais de cada um desses vereadores.

126

Dos três líderes políticos desse grupo, dois têm origem urbana e um origem

rurbana. WFRC, ao longo da vida, além da sede de São Domingos, chegou a morar

na capital do estado. AJRN morou em São Domingos e em outras cidades da região.

GAC, apesar de, por ocasião da pesquisa, estar morando na sede do município, é

proveniente de um dos povoados da cidade, São Pedro.

O nível de escolaridade dos vereadores desse grupo pode ser apontado como

um fator determinante da competência comunicativa exibida, apesar de não

isoladamente. Todos eles têm em comum o fato de terem completado a Educação

Básica. Indo um pouco mais além, WFRC chegou a começar um curso superior, mas

não o concluiu. Os anos de escolarização que esses falantes tiveram a oportunidade

de ter parecem ter influenciado no processo de aquisição de conhecimentos e

habilidades interacionais, culturais e, sobretudo, linguísticas. O observado domínio

de variantes de prestígio de regras variáveis, de estratégias retóricas e pragmáticas

e de vocabulário diversificado, próprio de produções verbais de menor apoio

contextual, podem ser devidos ao contato que tiveram com o letramento escolar ao

longo de toda a Educação Básica.

Apesar de aparentemente o fator escolaridade ter uma forte influência na

aquisição de competências letradas por parte desses vereadores, um outro fator se

mostrou ainda mais relevante: o envolvimento com práticas letradas na vida

cotidiana. Um fator considerado a partir dos parâmetros: atividades profissionais

desempenhadas ao longo da vida, uso das atividades de leitura e escrita no dia a dia

e participação sociopolítica. Por esses parâmetros, percebe-se que os três

vereadores têm um forte envolvimento com práticas letradas na vida cotidiana.

As experiências de trabalho que cada um dos três líderes políticos teve até

então têm em comum o fato de serem, de algum modo, relacionadas à cultura

urbana e de letramento. WFRC, até chegar a desempenhar a função de vereador,

passou por uma série de atividades profissionais, entre as quais se destacam a de

auxiliar de escritório, a de auxiliar administrativo e a de gerente administrativo-

financeiro. AJRN, antes de ser vereador, foi professor e até secretário municipal de

educação de São Domingos. No caso de GAC, a experiência de trabalho dentro da

cultura urbana e de letramento que mais se destaca é exatamente a de vereador,

uma vez que, por ocasião da pesquisa ele acumulava a experiência de quatro

mandatos consecutivos no Poder Legislativo Municipal. Em todas essas funções

desempenhadas pelos vereadores, pode-se afirmar que estão presentes tarefas

127

burocráticas e rotinas que envolvem não apenas o uso da leitura e da escrita, mas

também do próprio estilo linguístico monitorado.

Autoavaliando-se, GAC, WFRC e AJRN dizem não terem dificuldades em

tarefas que envolvem a leitura e a escrita. Segundo eles, lançam mão dessas duas

atividades no seu dia a dia com bastante frequência. À leitura dizem recorrer para se

informar, adquirir conhecimentos e se distrair; à escrita, para realizar tarefas

relacionadas ao trabalho, principalmente. Os relatos deles apontam que ler e

escrever são mesmo práticas frequentes no cotidiano de cada um deles.

A participação sociopolítica desses três vereadores também contribui para o

seu grau de envolvimento em práticas letradas. Com grande experiência em

organizações como associações comunitárias, os três afirmaram já ter

desempenhado alguma função como a de diretor, vice-diretor ou secretário. Nesse

âmbito, eles têm em comum ainda o declarado interesse e a frequente participação

em eventos como reuniões, cursos, palestras, de temas os mais variados.

Nesse sentido, percebem-se como relevantes para a explicação do

desempenho linguístico-comunicativo dos vereadores desse grupo os fatores, além

da origem urbana, o nível de escolaridade e o envolvimento em práticas letradas na

vida cotidiana. Assim, pode-se afirmar que a competência comunicativa por esses

vereadores exibida é mesmo fruto de, entre outros fatores, a combinação entre

letramento escolar e letramento social, que, como bem assinala Soares (2003, p.

111):

[...] embora situados em diferentes espaços e em diferentes tempos, são parte dos mesmos processos sociais mais amplos, o que explicaria por que experiências sociais e culturais de uso da leitura e da escrita proporcionadas pelo processo de escolarização acabam por habilitar os indivíduos à participação em experiências sociais e culturais de uso da leitura e da escrita no contexto social extraescolar.

É possível afirmar, pois, que o lugar que o sujeito ocupa na sociedade bem

como a relação que ele tem com as práticas de linguagem são determinantes da sua

competência comunicativa e, portanto, do seu desempenho linguístico-comunicativo

nas variadas situações e eventos de comunicação de que participa. Assim, em

eventos de letramento, um desempenho marcado pela segurança é, sem dúvida,

128

tributário de um intenso convívio com os padrões típicos da cultura urbana e letrada,

seja no ambiente escolar, seja nas práticas do cotidiano.

129

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Na notável cadeia de mudanças sociais que o Brasil tem experimentado nos

últimos anos, destacam-se as alterações ocorridas no sistema de estratificação

social. A mobilidade ascendente entre alguns estratos sociais tem sido cada vez

mais uma realidade. Um dos interessantes efeitos desse processo é que um amplo e

diverso conjunto de papéis sociais tem passado a estar à disposição de um número

cada vez maior de sujeitos.

Os papéis sociais do domínio político podem ser considerados bem

representativos no que diz respeito ao acesso de diferentes estratos da sociedade.

Graças ao processo – ainda em andamento – de democratização política que se

observa no país, cargos do Poder Executivo e do Poder Legislativo, nas diferentes

esferas, têm sido ocupados por sujeitos com perfis sociais os mais diversos. A

homogeneidade de outrora em relação aos ocupantes desses cargos (membros da

classe dominante, provenientes da cultura urbana e letrada) tem cedido lugar a uma

heterogeneidade digna de nota.

Na esfera municipal, por exemplo, o Poder Legislativo abriga em geral um

heterogêneo conjunto de membros. Homens e mulheres, tanto de origem rural

quanto de origem urbana, com níveis de escolaridade e com background

sociocultural o mais diverso, normalmente desempenham juntos o papel de

vereadores, ou seja, de representantes de sua comunidade, de seu bairro, enfim, de

sua cidade. Um cenário, portanto, onde se tem a combinação e interação de sujeitos

de diferentes perfis submetidos a um conjunto único e peculiar de regras culturais,

interacionais e linguísticas.

Foi considerando esse fértil e interessante cenário que se empreendeu uma

pesquisa etnográfica na Câmara Municipal de Vereadores de São Domingos, com

vistas a descortinar como de fato se constitui essa heterogeneidade e quais os seus

efeitos. Assim, a descrição de um dos eventos comunicativos da Câmara Municipal,

a Sessão Ordinária, era o objetivo desse empreendimento, de modo a verificar, entre

outros aspectos, a linguagem ali em uso. Para tanto, procedeu-se aos seguintes

passos: descreveram-se os elementos constitutivos mais importantes da Sessão

Ordinária, analisou-se a competência comunicativa do heterogêneo conjunto de

vereadores, focalizando na habilidade de variação estilística e verificou-se a relação

130

entre os diferentes perfis socioculturais dos participantes do evento e seu

desempenho linguístico.

A Sessão Ordinária, como o evento de comunicação de interesse para a

pesquisa, foi reconhecida como o mais frequente e mais importante entre os eventos

que acontecem na situação comunicativa Câmara Municipal. A descrição dos

elementos da Sessão Ordinária foi feita a partir do acrônimo proposto por Hymes

(1972b) SPEAKING, em que cada letra corresponde a um elemento do evento: S –

situação, P – participantes, E - (ends) objetivos, A – (act sequence) sequência dos

atos de fala, I – instrumentos, N – normas de interação e interpretação e G –

gêneros discursivos.

De fato, entre todos os elementos que constituem a Sessão Ordinária, dois se

apresentaram como as principais razões para se considerar esse como um evento

marcado pela heterogeneidade: os participantes e os instrumentos. No primeiro,

encontra-se a origem do caráter heterogêneo da Sessão, uma vez que se considere

a variedade dos perfis dos seus membros. No segundo, encontram-se os efeitos da

heterogeneidade, considerando o diverso desempenho linguístico-comunicativo dos

participantes.

Naturalmente, os efeitos da heterogeneidade da Sessão Ordinária poderiam

também ser verificados em outros elementos, além dos instrumentos. O

acompanhamento da sequência de atos de fala, a obediência às normas de

interação e interpretação e a desenvoltura nos gêneros utilizados durante o evento

poderiam igualmente ser alvo de análise e, assim, revelarem-se como instâncias

onde a diversidade dos participantes pudesse ter efeito. No entanto, considerando o

escopo da pesquisa, julgou-se que os instrumentos seriam o elemento em que a

heterogeneidade fosse mais claramente expressa, o que não se mostrou um

equívoco.

Levando em conta os atributos socioecológicos dos vereadores, eles foram

situados em dois pontos do contínuo de urbanização: no rurbano (ACF, EFL, EMD,

EOC, FLSF e GAC) e no urbano (AJRN, GVSA e WFRC). Reunidos sob a

denominação de rurbanos estavam os líderes políticos provenientes de distritos e

povoados da cidade. Sob a denominação de urbanos estavam os nascidos e

residentes na sede do município.

O atributo escolaridade também se mostrou como fonte de diversidade entre

os falantes, variando entre Ensino Fundamental incompleto (EMD e EOC), Ensino

131

Fundamental completo (ACF e EFL), Ensino Médio completo (AJRN, GAC e FLSF),

Ensino Superior incompleto (WFRC) e Ensino Superior completo (GVSA). O

posicionamento em distintos pontos do processo de escolarização mostrou-se um

intrigante aspecto na apreciação da competência comunicativa exibida por cada um

deles.

Outro fator que se revelou relevante para a pesquisa e, assim, determinante

do caráter diverso do grupo de vereadores foi o envolvimento em práticas letradas

no cotidiano. A fim de averiguar o quanto esse fator resulta em diversidade,

analisaram-se as atividades profissionais desempenhadas por cada um deles ao

longo da vida, o uso da leitura e da escrita no dia a dia e participação sociopolítica

deles. Da análise de cada um desses itens restou evidente que, de modo geral, os

líderes políticos possuem, de fato, graus distintos de inserção na cultura letrada.

Como suposto, o lugar onde toda essa heterogeneidade identificada entre os

participantes do evento pôde reverberar com expressividade foi exatamente na

linguagem. Partindo do pressuposto de que, mesmo possuindo perfis os mais

distintos, os líderes políticos se veem submetidos a um conjunto único de regras,

dos elementos que compõem a competência comunicativa da comunidade de fala

Câmara Municipal de Vereadores, o conhecimento linguístico mostrou-se um

aspecto interessante, em especial a habilidade de operar com a variação estilística

da língua.

Da análise do elemento instrumentos do evento comunicativo pôde-se

constatar a modalidade de língua predominante, bem como a variedade linguística

não só predominante mas também apropriada. Levando em consideração que boa

parte dos atos comunicativos é realizada oralmente, mas com maior ou menor apoio

em textos escritos (atas, projetos, requerimentos, entre outros), verificou-se que no

evento predomina uma oralidade letrada.

Para se apreender qual variedade linguística seria a considerada apropriada à

Sessão Ordinária, levou-se em conta o grau de formalidade do evento, a presença

de gêneros escritos e o grau de monitoração estilística demandado. A variedade

urbana culta em seu estilo mais monitorado foi identificada como a mais adequada

ao evento, visto que nele predomina um tom rigidamente formal; visto que circulam,

em grande quantidade, gêneros discursivos escritos mais formais; e que ele agrega

um conjunto de fatores que incitam a uma maior monitoração estilística.

132

É exatamente no processo de acomodação do heterogêneo grupo de

vereadores à linguagem considerada apropriada que se encontra um dos pontos

mais intrigantes observados. Visto que no Brasil a variedade urbana letrada, em seu

estilo mais monitorado, é um bem simbólico cuja distribuição entre os cidadãos é tão

desigual quanto a dos bens materiais, não é de se estranhar que desigual seja a

acomodação dos diferentes líderes à linguagem considerada apropriada à Sessão

Ordinária.

Com base na tensão existente entre o reconhecimento e o conhecimento da

variedade linguística tida como adequada ao evento, bem como nos efeitos que

dessa tensão resultam, os vereadores foram categorizados em dois grupos: o dos

linguisticamente inseguros e o dos linguisticamente seguros. Conforme o grupo ao

qual estiveram integrados, eles lançavam mão de determinadas estratégias, visando

viabilizar uma produção verbal pautada pela adequação, objetivo esse alcançado em

maior ou menor grau, dependendo das estratégias utilizadas. Como falantes de

variedades rurbanas ou urbanas, mas não necessariamente a letrada, os

participantes da Sessão Ordinária apresentaram-se seguros ou inseguros

linguisticamente, em função do domínio que tinham de regras características da

variedade urbana letrada mais monitorada.

Nesse sentido, pode-se apontar que a insegurança linguística exibida por seis

(ACF, EFL, EMD, EOC, FLSF e GVSA) dos nove vereadores é motivada, em grande

medida, pelo fato de seu repertório linguístico não dispor suficientemente dos

recursos comunicativos usados na viabilização de estilos monitorados da variedade

urbana letrada. Assim, nas produções verbais desse grupo de vereadores duas

tendências até certo ponto opostas foram verificadas, em se tratando da aplicação

de regras variáveis da língua. De um lado, como resultado provável do

desconhecimento das variantes de prestígio, os falantes valem-se de variantes de

seu próprio vernáculo, ou seja, utilizam-se do que Bortoni-Ricardo (2006, 2009)

denomina de traços descontínuos – o que aqui se consideram as variantes que não

caracterizam a variedade apropriada ao evento e, por conseguinte, podem ser alvo

de estigma no contexto em questão. Do outro lado, como resultado provável de uma

aprendizagem não efetiva das variantes de prestígio, os falantes valem-se de regras

que eles julgam pertencer à variedade culta da língua, porém numa frequência

exagerada e em contextos inadequados, ou seja, eles acabam recorrendo ao

fenômeno da hipercorreção linguística.

133

A identificada segurança linguística do grupo formado pelos outros três

(AJRN, GAC e WFRC) dos nove vereadores pode, por sua vez, ser atribuída à

disponibilidade em seus repertórios linguísticos dos recursos comunicativos de que

eles necessitavam para viabilizar suas produções verbais na Sessão Ordinária.

Desse modo, em suas elocuções, foi possível observar a aplicação segura e

adequada das variantes de prestígio de relevantes regras variáveis, uma evidência

de que a habilidade de variação estilística para eles não se configura como um

entrave no que diz respeito ao desempenho do papel de líder político.

Quando se analisa a relação entre os perfis socioculturais dos nove

participantes da Sessão Ordinária e suas habilidades de variação estilística – que

integra a competência comunicativa de cada um deles – percebe-se que são os

fatores origem geográfica, nível de escolaridade e envolvimento em práticas letradas

no cotidiano os mais determinantes para a inclusão de cada um deles no grupo dos

linguisticamente seguros ou dos linguisticamente inseguros. Em relação à origem

geográfica, a questão mais relevante que se pode apontar é que cada uma das

categorias construídas para os vereadores foi ocupada praticamente por completo

por falantes com posicionamento comum no contínuo de urbanização. Na categoria

da insegurança linguística, cinco dos seis membros têm origem rurbana. Na

categoria da segurança linguística, dois dos três membros têm origem urbana. Os

vereadores que em cada uma das categorias não compartilham da mesma origem

geográfica dos demais – GVSA (urbana) e GAC (rurbano) - têm nos outros dois

fatores a explicação para integrarem o grupo de que fazem parte.

Partindo do princípio de que o acesso e a incorporação da variedade urbana

letrada têm grande influência do processo de escolarização, ou seja, do letramento

escolar, pôde-se perceber que, em linhas gerais, mais anos de escolarização pode

significar um domínio mais eficiente da variedade de prestígio, muito embora isso

dependa da qualidade e efetividade desse letramento. Sendo assim, para a maioria

dos vereadores que foram categorizados no grupo dos linguisticamente inseguros

(ACF, EFL, EMD e EOC), o fato de não terem concluído a Educação Básica e,

portanto, de terem tido um tempo menor de envolvimento com o letramento escolar,

pode ser mais uma das explicações para seu desempenho linguístico. Para os dois

vereadores desse grupo que divergem dos demais nesse aspecto (FLSF tinha

Ensino Médio Completo e GVSA, Ensino Superior Completo), o fator nível de

escolaridade só pode ser considerado como explicação, na medida em que o

134

letramento escolar a que tiveram acesso tenha sido para eles pouco eficiente. Em se

tratando do grupo marcado pela segurança linguística, o eficiente desempenho na

acomodação do seu estilo ao considerado apropriado no evento pode, por exemplo,

ser explicado, a partir do fator escolarização, pela combinação de mais anos de

escolaridade (Ensino Médio completo e Ensino Superior incompleto) e grande

eficiência do letramento escolar.

O fator envolvimento em práticas letradas no cotidiano foi, por sua vez, o mais

determinante para se explicar a inserção de cada um dos vereadores em um grupo

ou outro. De modo geral, foi possível perceber que todos os líderes políticos que

apresentaram dificuldades para viabilizar elocuções monitoradas na variedade

urbana letrada foram aqueles cuja participação em práticas letradas no dia a dia era

menor. Os que revelaram um maior engajamento nesse tipo de atividade em seu

cotidiano, por seu turno, foram exatamente os que se mostraram seguros na

implementação da variedade estilística considerada apropriada ao evento. Assim,

pode-se dizer que as atividades de letramento social em que o participante se

envolve, embora não isoladamente, têm considerável influência no desempenho de

determinados papeis sociais típicos da cultura urbana e de letramento, como é o

caso do de líder político.

Nessa direção, deve-se concluir que a explicação para inserção dos

vereadores no grupo dos linguisticamente seguros ou linguisticamente inseguros

somente pode ser encontrada na combinação dos três fatores apresentados. Desse

modo, a insegurança linguística observada pode ser explicada por uma das

seguintes combinações: 1 - origem rurbana + baixa escolaridade + pouca eficiência

do letramento escolar + pequena inserção em práticas da cultura letrada; 2 - origem

urbana + alta escolaridade + pouca eficiência do letramento escolar + pequena

inserção em práticas da cultura letrada. Da segurança linguística, por sua vez,

pode-se apontar como explicação as seguintes combinações: 1 - origem urbana +

alta escolaridade + grande eficiência do letramento escolar + grande inserção na

cultura letrada; 2 - origem rurbana + alta escolaridade + grande eficiência do

letramento escolar + grande inserção na cultura letrada.

Dessas combinações, depreende-se que há uma hierarquia entre os fatores

para se explicar o desempenho linguístico dos líderes políticos da Câmara Municipal

de São Domingos. Observa-se que o fator envolvimento em práticas letradas no

cotidiano mostrou-se como o mais importante, seguido do fator origem geográfica e

135

do fator escolaridade. Nesse sentido, pode-se afirmar que o tipo de relação entre o

letramento escolar e o letramento social é determinante para a efetividade do

domínio da variedade urbana de prestígio, ou seja, é da combinação efetiva desses

dois tipos de letramento que se constrói a competência comunicativa necessária

para desempenhar o variado conjunto de papéis sociais à disposição dos mais

variados sujeitos.

De todo esse cenário, o que se pode concluir é que a Sessão Ordinária da

Câmara Municipal de Vereadores de São Domingos, em sua heterogeneidade

linguístico-cultural, é mesmo um evento de comunicação representativo da

contemporânea configuração da sociedade brasileira. Reunindo participantes com

distintas origens socioculturais e que, portanto, possuem distintas competências

comunicativas, o evento os submete a um conjunto rígido e único de regras, entre as

quais se destaca a exigência de adaptação às convenções da variedade urbana

letrada e monitorada, a que um número ainda reduzido de cidadãos tem acesso. O

que a análise de um evento como esse é capaz de revelar de mais contundente é

que não basta democratizar o acesso a domínios sociais outrora impenetráveis, a

situações e eventos comunicativos nunca antes abertos à heterogeneidade, é

preciso que ao mesmo tempo se democratizem também o acesso aos bens

simbólicos – com destaque para a variedade de prestígio - que permitam a

participação efetiva desses novos integrantes na cultura urbana e de letramento.

136

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141

APÊNDICE

142

APÊNDICE A – Roteiro para entrevista com os membros da Câmara Municipal de

Vereadores de São Domingos – BA.

1. Qual o seu nome completo?

____________________________________________________________________

2. Qual a sua idade?

____________________________________________________________________

3. Qual o seu grau de instrução?

____________________________________________________________________

4. Em qual localidade do município você mora atualmente?

____________________________________________________________________

5. Em qual(is) localidade(s) você já morou ao longo da vida?

____________________________________________________________________

__________________________________________________________________

6. Além de vereador, você exerce alguma outra atividade profissional atualmente?

Qual?

____________________________________________________________________

__________________________________________________________________

7. Quais atividades profissionais você exerceu ao longo da vida?

____________________________________________________________________

____________________________________________________________________

_________________________________________________________________

8. Em qual classe social você se enquadra?

( ) A – Renda familiar acima de 20 salários mínimos (14.500 ou mais)

( ) B – Renda familiar entre 10 e 20 salários mínimos ( de 7.250,00 a 14.499,99)

( ) C – Renda familiar entre 4 e 10 salários mínimos (de 2.900,00 a 7.249,99)

( ) D – Renda familiar entre 2 e 4 salários mínimos (de 1.450,00 a 2.899,99)

( ) E – Renda familiar de até 2 salários mínimos (até 1.449,00)

143

9. Qual o grau de instrução de seus pais?

____________________________________________________________________

__________________________________________________________________

10. Que tipo de material você costuma ler no dia a dia?

____________________________________________________________________

____________________________________________________________________

__________________________________________________________________

11. Quais tipos de material de leitura você tinha em casa durante a infância?

____________________________________________________________________

_________________________________________________________________

12. Normalmente você usa a leitura para qual finalidade (estudar, se distrair, se informar

etc.)?

____________________________________________________________________

____________________________________________________________________

__________________________________________________________________

13. Sua família normalmente usa a leitura para qual finalidade?

____________________________________________________________________

____________________________________________________________________

__________________________________________________________________

14. Com que frequência você lê jornais e/ou revistas?

____________________________________________________________________

15. Que tipo de material escrito você tem em casa?

____________________________________________________________________

__________________________________________________________________

16. Você tem livros em casa? Aproximadamente quantos?

____________________________________________________________________

17. Você costuma escrever algo no seu dia a dia? O que exatamente?

____________________________________________________________________

__________________________________________________________________

144

18. Você costuma fazer leitura em voz alta? De que tipo de material?

____________________________________________________________________

_________________________________________________________________

19. Você tem alguma dificuldade em tarefas que envolvem a leitura?

____________________________________________________________________

_________________________________________________________________

20. Você tem alguma dificuldade em tarefas que envolvem a escrita?

____________________________________________________________________

__________________________________________________________________

21. Você costuma ajudar os familiares ou amigos em tarefas escolares?

____________________________________________________________________

__________________________________________________________________

22. Com que frequência você frequenta bibliotecas?

___________________________________________________________________

23. Com que frequência você vai a livrarias?

____________________________________________________________________

24. Com que frequência você assiste TV? Qual seu tipo de programa preferido?

____________________________________________________________________

__________________________________________________________________

25. Com que frequência você ouve rádio? Qual seu tipo de programa preferido?

_______________________________________________________________

_______________________________________________________________

26. Com que frequência você usa a internet? Que tipo de site você mais acessa?

____________________________________________________________________

__________________________________________________________________

27. Quais equipamentos eletrônicos você costuma usar no seu dia a dia?

145

____________________________________________________________________

__________________________________________________________________

28. Como você se mantém informado sobre os assuntos da atualidade?

____________________________________________________________________

____________________________________________________________________

_________________________________________________________________

29. Você costuma participar de atividades como cursos, oficinas, palestras etc.? Quais

assuntos ou quais áreas mais lhe interessam?

____________________________________________________________________

____________________________________________________________________

_________________________________________________________________

30. Você participa ou já participou de alguma entidade como associação, cooperativa,

sindicato etc.? Desempenha ou já desemprenhou alguma função nessa(s)

entidade(s)? Qual(is)?

____________________________________________________________________

____________________________________________________________________

____________________________________________________________________

_________________________________________________________________