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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA FABIANO DOMINGOS BARCELLA O PAPEL DAS FIGURAS GEOMÉTRICAS A PARTIR DA PERSPECTIVA DE DAVID HUME PRESENTE NO TRATADO DA NATUREZA HUMANA Salvador 2013

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIAFACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

FABIANO DOMINGOS BARCELLA

O PAPEL DAS FIGURAS GEOMÉTRICAS A PARTIR DA PERSPECTIVA DE DAVID HUME PRESENTE NO TRATADO DA NATUREZA HUMANA

Salvador2013

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FABIANO DOMINGOS BARCELLA

O PAPEL DAS FIGURAS GEOMÉTRICAS A PARTIR DA PERSPECTIVA DE DAVID HUME PRESENTE NO TRATADO DA NATUREZA HUMANA

Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de licenciado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia.

Orientador: Prof. Dr. Abel Lassalle Casanave

Salvador2013

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FABIANO DOMINGOS BARCELLA

O PAPEL DAS FIGURAS GEOMÉTRICAS A PARTIR DA PERSPECTIVA DE DAVID HUME PRESENTE NO TRATADO DA NATUREZA HUMANA

Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de licenciado em Filosofia pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia.

Salvador, _____ de _____________ de 2013

Banca Examinadora

________________________________________________________

Prof. Dr. Abel Lassalle Casanave – orientador (FFCH – UFBA)

_______________________________________________________

Prof. Dr. Marco Aurélio Oliveira da Silva (FFCH – UFBA)

_________________________________________________________

Prof. Dr. João Carlos Salles Pires da Silva (FFCH – UFBA)

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RESUMO

Neste trabalho pretende-se analisar e interpretar as teses apresentadas por David Hume em seu Tratado da natureza humana concernentes à geometria euclidiana. O objetivo resume-se em observar que papel as figuras assumem no âmbito da filosofia da geometria do autor e que resultados advêm desse papel. O desenvolvimento da tarefa consiste em perceber de que modo o autor concebe a origem dos princípios fundamentais e de que modo explica e subscreve a exatidão das asserções de igualdade e a exatidão das asserções gerais presentes em Os Elementos de Euclides – o objeto de sua empiria. Na medida em que as figuras são assumidas como os objetos dos quais são extraídos os referidos princípios e às quais são dirigidas as mencionadas asserções, Hume reconhece que as faculdades dos sentidos e da imaginação constituem os critérios últimos aos quais devem ser submetidas todas as afirmações geométricas. Enfim, da limitação inerente à primeira das referidas faculdades advirá a verdadeira perfeição das igualdades geométricas, e, da liberdade inerente à segunda, a inexatidão das asserções gerais. Nos termos de Hume, o único erro da geometria consistiria na despropositada aspiração à perfeição absoluta expressa na generalidade de suas conclusões.

Palavras-chave: Figuras. Generalidade. Inexatidão.

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ABSTRACT

This work aims to analyze and interpret the theses submitted by David Hume in his Treatise of Human Nature concerning Euclidean geometry. The goal, in brief, is to observe the role that figures assume in the context of the author's philosophy of geometry and the results stemming from that role. The undertaking consists in grasping how the author envisages the origins of the fundamental principles and how he explains and supports the exactness of the assertions of equality and the exactness of general assertions made in Euclid's Elements – the object of his study. To the extent that the figures are taken to be the objects from which are extracted certain principles and to which are directed relevant assertions, Hume recognizes that the faculties of the senses and the imagination are the ultimate arbiter to which all geometric statements must be submitted. Finally, from the limitations inherent in the former of these faculties will emerge true perfection of geometrical equality, and from the freedom inherent in the latter, the inexactness of generalized assertions. Following Hume's analysis, the only error in geometry would be the unwarranted desire for absolute perfection expressed in the generality of its conclusions.

Keywords: Figures. Generality. Inexactness.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 8

2 A SENSIBILIZAÇÃO DAS IDEIAS: PRIMEIRA CONSIDERAÇÃO 102.1 A OBJEÇÃO À EXATIDÃO DAS ASSERÇÕES DE IGUALDADE

APRESENTADA NOS TERMOS DE UMA CONTRAPOSIÇÃO11

2.2 A SENSIBILIZAÇÃO DAS DEFINIÇÕES EUCLIDIANAS DE PONTO, RETA E SUPERFÍCIE E A VERDADEIRA PERFEIÇÃO ADVINDA DOS CRITÉRIOS ÚLTIMOS DOS SENTIDOS E DA IMAGINAÇÃO

13

2.3 O CRITÉRIO DE DAVID HUME: UMA SOLUÇÃO NOS TERMOS DA VERDADEIRA PERFEIÇÃO

15

3 OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA GEOMÉTRIA EUCLIDIANA E AS FIGURAS ENQUANTO OS OBJETOS DOS QUAIS SÃO EXTRAÍDOS

18

3.1 DEFINIÇÕES 183.2 POSTULADOS 203.3 NOÇÕES COMUNS 223.4 A DEMONSTRAÇÃO I.1 25

4 SEGUNDA CONSIDERAÇÃO SOBRE A SENSIBILIZAÇÃO DAS IDEIAS E A JUSTIFICAÇÃO DAS CONCLUSÕES GERAIS: AS FIGURAS QUA “LEMBRENTES” DE MUITAS OUTRAS IDEIAS PARTICULARES

29

5 O PAPEL DAS FIGURAS E A GENERALIDADE DAS VERDADES DEMONSTRADAS

34

5.1 A FILOSOFIA DA GEOMETRIA DE HUME E AS PROVAS INDIRETAS 35

6 CONCLUSÃO 42

REFERÊNCIAS 44

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1 INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho resume-se em observar, sem recorrer a bibliografias

secundárias, que papel as figuras empregadas por Euclides assumem no âmbito da filosofia da

geometria de David Hume e que resultados advêm desse papel. A discussão sobre o emprego

de figuras na geometria euclidiana é legítima na medida em que há dificuldades de ordem

lógica ou argumental a ele concernentes. Euclides não explica qual seria a relação entre os

princípios por ele enunciados e as figuras por ele empregadas nas demonstrações. Por

exemplo, na proposição inaugural de Os Elementos, Euclides propõe a construção de um

triângulo equilátero a partir de uma reta finita dada. São traçados dois círculos com centros

nas extremidades da referida reta que, por sua vez, serve como medida dos raios dos referidos

círculos. As fronteiras de ambos – suas circunferências – se intersectam em dois pontos: a

partir de um deles são traçadas duas novas retas que o ligam às extremidades da reta finita

dada e determinam a construção proposta. Uma vez que a reta dada é raio dos dois círculos e

que cada uma das retas traçadas é raio de cada um dos círculos, ambas são iguais àquela e

iguais entre si: há um princípio que afirma serem iguais entre si todas as retas que unem o

centro à circunferência de um círculo e outro que afirma que as coisas iguais à mesma coisa

são também iguais entre si. Pergunta-se, por exemplo: essa igualdade demonstrada seria

verdadeira à revelia da aparência das figuras traçadas ou sem essas sequer haveria os

princípios sobre os quais supostamente se apoiaria a verdade da conclusão?

No Tratado da natureza humana David Hume oferece uma filosofia da geometria cuja

ênfase reside em questões como essa e cuja legitimidade depende de sua propriedade de

explicar o que se encontra em Os Elementos – o objeto de suas considerações. Na medida em

que Os Elementos compõe-se de princípios enunciados e proposições demonstradas e que

Hume apresenta suas teses em meio 1) à objeção à exatidão expressa nas asserções de

igualdade e 2) à justificação da generalidade expressa nas verdades demonstradas, propõe-se

apresentar sua filosofia da geometria através da exposição dessas referidas objeção e

justificação e observar a legitimidade de suas teses através de sua aplicação a três provas

euclidianas acompanhadas dos princípios necessários para entendê-las.

Posto isso, optou-se por dividir o desenvolvimento do trabalho em quatro seções: as

duas primeiras encontram-se dedicadas à objeção acima mencionada e as duas últimas, à

justificação. De modo geral, na segunda seção (a primeira do desenvolvimento) ocupa-se com

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a análise do critério de Hume fundado no que ele chama de verdadeira perfeição: uma vez

que os princípios fundamentais da geometria são extraídos da aparência de figuras segundo os

critérios últimos dos sentidos e da imaginação, a exatidão expressa nas asserções de igualdade

jamais pode ultrapassar ou contradizer os limites dessas faculdades. Na terceira seção, por sua

vez, aplica-se as teses analisadas na segunda a uma demonstração euclidiana afim. Nas quarta

e quinta seções procede-se do mesmo modo, agora com relação à justificação das

generalidades: uma vez que a mente não é capaz de abarcar toda a gama de figuras

legitimamente imagináveis e semelhantes àquelas a que supostamente se estendem as

conclusões gerais, na quarta seção procura-se entender de que modo não há, para Hume,

verdades gerais que não estejam sujeitas à inexatidão. Da constatação de que a inexatidão da

generalidade resulta da mesma tese que justifica as asserções gerais, ocorre propor que no

contexto da filosofia da geometria do autor as figuras empregadas nas provas funcionariam

como “lembretes” de muitas outras aparências legítimas. Assim, 1) diante do propósito de

provar a verdade de uma proposição, a imaginação traria à mente figuras com inclinações e

dimensões adequadas, e, 2) diante do propósito de verificar a exatidão das verdades

demonstradas, figuras com aparências não adequadas. Na última seção que compõe o

desenvolvimento do trabalho pretende-se mostrar de que modo isso se passa considerando-se

duas demonstrações euclidianas.

A conclusão consiste em uma sugestão acerca da razão por que Hume teria deixado de

propor – no âmbito da generalidade geométrica – uma expressão análoga à 'verdadeira

perfeição' por ele proposta no contexto das asserções de igualdade. De modo sucinto,

enquanto as asserções que encontra impressas no objeto de sua empiria lhe permitem, Hume

opõe a sua interpretação a outras interpretações de Os Elementos – nos moldes de alguém que

explica o que Euclides teria feito; na medida em que encontra asserções literalmente

inconciliáveis com sua filosofia, o autor deixa de lado o esforço de fazê-las encaixar em suas

teses e passa a indicar algo a ser reparado na própria geometria euclidiana, levando em conta

a exatidão atribuída ao e esperada do conhecimento geométrico: David Hume teria, enfim,

oscilado entre fazer filosofia da geometria e fazer geometria.

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2 A SENSIBILIZAÇÃO DAS IDEIAS: PRIMEIRA CONSIDERAÇÃO

Hume afirma que “[…] as percepções da mente humana se reduzem a dois gêneros

distintos” (HUME, 2009, p. 19): impressões e ideias. Observa uma “[…] segunda divisão

entre nossas percepções”, sejam impressões sejam ideias: “[t]rata-se da divisão entre

SIMPLES e COMPLEXAS. Percepções simples…não admitem nenhuma distinção ou

separação. As complexas, são o contrário dessas, e podem ser distinguidas em partes” (idem,

p. 26). Em seguida salienta que “[…] todas as ideias e impressões simples se assemelham

umas às outras. E como as complexas se formam a partir delas […]”, conclui “[…] de um

modo geral que essas duas espécies de percepções são exatamente correspondentes” (ibidem,

p. 28). Essa conjunção constante prova “[…] que há uma dependência das impressões em

relação às ideias, ou das ideias em relação às impressões.” Por fim, mediante a constatação de

que “[…] [n]ossas ideias […] não produzem impressões correspondentes […] ” e que, no

entanto, “[…] vemos que qualquer impressão…é constantemente seguida por uma ideia que a

ela se assemelha […]”, Hume estabelece que “[…] nossas impressões são as causas de nossas

ideias, e não nossas ideias as causas de nossas impressões.” (ibidem, p. 28-29).

As duas faculdades encarregadas de repetirem as impressões em ideias são a memória

e a imaginação. Em uma espécie de função intermediária entre impressões e ideias, a

memória conserva na ideia um grau considerável da impressão, ainda que sua principal

função seja preservar a ordem e a posição entre as ideias mesmas. A imaginação, por outro

lado, “[…] pode separar todas as ideias simples, e uni-las novamente da forma que bem lhe

aprouver.” Mediante esta “[…] liberdade que tem a imaginação tem de transpor e

transformar suas ideias” (HUME, 2009, p. 34) Hume percebe que “[…] seria impossível que

as mesmas ideias simples se reunissem de maneira regular em ideias complexas (como

normalmente fazem), se não houvesse […] alguma qualidade associativa pela qual uma ideia

naturalmente introduz outra.” Distingue três “[…] qualidades que dão origem a tal associação

[…] a saber: SEMELHANÇA, CONTIGUIDADE no tempo e no espaço, e CAUSA e

EFEITO” (Idem, p. 34-35) – das quais, para este trabalho, importam sobretudo as duas

primeiras:

Está claro que, no curso de nosso pensamento e na constante circulação de nossas ideias, a imaginação passa facilmente de uma ideia a qualquer outra que seja semelhante a ela; tal qualidade, por si só, constitui um vínculo e

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uma associação suficientes para a fantasia. É também evidente que, como os sentidos, ao passarem de um objeto a outro, precisam fazê-lo de modo regular, tomando-os em sua contiguidade uns em relação aos outros, a imaginação adquire, por um longo costume, o mesmo método de pensamento, e percorre as partes do espaço e do tempo ao conceber seus objetos. (HUME, 2009, p. 35)

Com relação à terceira, destaque-se sua função enquanto qualidade associativa – i.e.,

destaque-se que, no contexto deste trabalho, não são eventos o que estão em jogo, mas tão

somente um aspecto da conjunção constante entre impressões e ideias em que essas sempre

são antecedidas por aquelas.

De modo geral, a objeção e a solução subsequentemente abordadas advêm da

aplicação dessa ampla sensibilização das ideias – i.e., da vinculação dos princípios e das

demais asserções geométricas às figuras das quais seriam extraídos os primeiros e às quais se

refeririam as últimas. Em suma:

Como o critério último para essas figuras não é senão o dos sentidos e da imaginação é absurdo falar de qualquer perfeição que ultrapasse a capacidade de julgamento dessas faculdades. Pois a verdadeira perfeição de algo consiste em sua conformidade com seu critério // Os primeiros princípios fundamentam-se na imaginação e nos sentidos; a conclusão, portanto, jamais pode ultrapassar e menos ainda contradizer essas faculdades. (HUME, 2009, p. 78 // 80)

2.1 A OBJEÇÃO À EXATIDÃO GEOMÉTRICA APRESENTADA NOS TERMOS DE UMA CONTRAPOSIÇÃO

A objeção de Hume à exatidão geométrica pode ser expressa nos termos da seguinte

contraposição: não havendo exatidão nas impressões, não pode haver exatidão nas asserções

a elas referidas. O autor constrói sua argumentação a partir de observações acerca 1) do

objeto a ser medido, 2) do instrumento a ser empregado; e, 3) do critério de medição

envolvidos nas determinações das exatidões em questão:

Quando dois números se relacionam de tal forma que cada unidade de um corresponde sempre a uma unidade do outro, afirmamos que eles são iguais. Por falta de um critério de igualdade semelhante aplicável à extensão que a geometria dificilmente pode ser considerada uma ciência perfeita e infalível […] Restam, portanto, a álgebra e a aritmética como as únicas ciências em que podemos elevar uma série de raciocínios a qualquer nível de

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complexidade, e ainda assim preservar uma perfeita exatidão e certeza. Aqui estamos de posse de um critério preciso que nos permite julgar acerca da igualdade e proporção dos números. E, conforme esses números correspondam ou não a tal critério, determinamos suas relações, sem possibilidades de erro. (HUME, 2009, p. 99)

Dentre a gama de informações presentes nesse excerto, percebe-se que Hume: 1)

reconhece a possibilidade de se preservar uma perfeita exatidão e certeza no que se refere à

igualdade e à proporção; 2) afirma que essas perfeitas exatidão e certeza dependem de um

critério que permite relacionar dois números de tal forma que à cada unidade de um

corresponda sempre uma unidade do outro; e somente 3) acredita não haver um critério

semelhante aplicável à extensão.

Hume entende que da impressão de retas finitas se obtém a mesma ideia de extensão

que se obtém mediante a impressão de um objeto qualquer. Para o autor, os pontos

geométricos são perfeitamente similares às unidades últimas dos objetos do curso ordinário da

experiência – de modo que duas retas finitas seriam iguais na medida em que se pudesse fazer

com que cada ponto de uma correspondesse a cada ponto da outra. Porém, na medida exata

em que as menores partes dessas retas são indiscerníveis, é impossível proceder com a

referida correspondência: seja a extensão finita ou infinitamente divisível, “[...] percebemos

que o acréscimo ou a subtração de uma dessas partes minúsculas não é discernível nem pela

aparência dos corpos nem pela medição” (HUME, 2009, p. 75). Torna-se evidente que a

igualdade geométrica não pode depender da enumeração das partes, à diferença do critério

aplicável à álgebra e à aritmética. A razão, afinal, é bastante simples: o paradigma da exatidão

presta-se a números ao passo que a geometria ocupa-se com a extensão. A referida

independência é a primeira condição que será observada por Hume em seu critério.

Saliente-se que a referida objeção estende-se às avaliações de retidão das retas. Para

Hume, a dificuldade concernente à determinação da medida do comprimento de uma reta

finita é a mesma concernente à determinação de sua retidão. O autor coloca as ideias de reta e

plano ao lado das ideias de igualdade e desigualdade (maior e menor): “[...] concebidas

segundo nosso método usual, as ideias mais essenciais à geometria – a saber, igualdade e

desigualdade, reta e plano – estão longe de ser exatas e determinadas” (HUME, 2009, p. 78).

Para perceber o que o leva a reduzir as dificuldades inerentes às avaliações humanas

de retidão ao caráter indiscernível das mínimas partes da extensão, basta observar o que

caracteriza a retidão na definição euclidiana de linha reta e perceber que essa definição

participa da definição de plano: “[l]inha reta é a que está posta por igual com os pontos sobre

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si mesma” e “[s]uperfície plana é a que está posta por igual com as retas sobre si mesmas”

(EUCLIDES, 2009, p. 97). ” Apesar de evidente, é importante acrescentar acerca da ideia de

desigualdade que desigual é tudo aquilo que não é igual. Antes de prosseguir para o critério

proposto por Hume, importa salientar a razão que o leva a tratar os elementos da geometria à

semelhança dos objetos da experiência ordinária.

2.2 A SENSIBILIZAÇÃO DAS DEFINIÇÕES EUCLIDIANAS DE PONTO, RETA E SUPERFÍCIE E A VERDADEIRA PERFEIÇÃO ADVINDA DOS CRITÉRIOS ÚLTIMOS DOS SENTIDOS E DA IMAGINAÇÃO

Ainda que a divisibilidade ou indivisibilidade infinita das partes mínimas da ideia de

extensão seja irrelevante para a determinação da exatidão – uma vez que em ambos os casos a

enumeração é inviável – importa considerar o que Hume diz acerca da questão na medida em

que intenciona legitimar, através dos princípios enunciados por Euclides, a tese de que os

elementos da geometria constituem-se de partes mínimas e indivisíveis. Ademais, a segunda e

última condição a ser contemplada pelo critério por ele proposto decorre dessa tese.

O fundamento da tese de Hume encontra-se no curso habitual da experiência e as

referidas definições euclidianas lhe servirão, sobretudo, de argumento matemático contra

matemáticos (certamente não contra Euclides – de cujas definições se serve para afirmar sua

tese) que afirmam ser infinitamente divisível a ideia de extensão. O contexto é o de uma

discussão filosófica sobre a origem da referida ideia, de cujo argumento interessa apenas

salientar que Hume vê expressa nas definições dos três elementos que compõem todas as

figuras geométricas a compreensão sensível que Euclides tinha acerca deles.

Em poucas palavras: caso as ideias fossem infinitamente divisíveis, seriam

indistinguíveis; se indistinguíveis, inseparáveis; se inseparáveis, contraditórias com o curso

habitual da experiência onde é clara, distinta e natural a separação que se experimenta entre os

objetos. Em termos geométricos:

Uma superfície se define como um comprimento e uma largura sem profundidade; uma linha, como um comprimento sem largura nem profundidade; um ponto, como aquilo que não possui nem largura, nem comprimento, nem profundidade. É evidente que tudo isso é ininteligível se nos baseamos em qualquer outra suposição que não seja a de que a extensão se compõe de pontos ou átomos indivisíveis. De que outro modo uma coisa

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poderia existir sem comprimento, sem largura ou sem profundidade? (HUME, 2009, p. 68.)

Hume afirma que as ausências 1) de espessura expressa na definição de superfície

(“[e] superfície é aquilo que tem somente comprimento e largura”); 2) de largura na definição

de linha (“[e] linha é comprimento sem largura”); e 3) das três dimensões expressa na

definição de ponto (“[p]onto é aquilo de que nada é parte” (EUCLIDES, 2009, p. 97))

indicam a subscrição de Euclides à indivisibilidade dessas três ideias enquanto condição

indispensável para as demonstrações geométricas: a falta desses limites impossibilitaria a

distinção das extremidades das retas (pontos), das fronteiras das figuras planas (linhas) e das

faces dos sólidos (superfícies):

Um sólido é limitado por uma superfície; uma superfície é limitada por uma linha; uma linha é limitada por um ponto. Ora, afirmo que, se as ideias de ponto, linha ou superfície não fossem indivisíveis, ser-nos-ia impossível sequer conceber esses limites. Mas já que, de fato, deve haver algo que limite a ideia de toda qualidade finita, e como essa ideia-limite não pode ela mesma consistir em partes ou ideias inferiores (pois senão a última de suas partes é que limitaria a ideia e assim por diante) isso é uma prova clara de que as ideias de superfícies, linhas e pontos não admitem certas divisões – as de superfícies, não admitem divisão na profundidade; as de linhas, na largura e na profundidade; e as de pontos, em nenhuma dimensão. (HUME, 2009, p. 70.)

A partir da observação de que, com essas três definições, Euclides propunha a

indivisibilidade das três ideias fundamentais da geometria, Hume afirma que 1) os elementos

da geometria euclidiana são figuras sensíveis e que, 2) “[p]or essa razão, raramente ou nunca

consideramos tal enumeração como critério de igualdade ou desigualdade” (HUME, 2009, p.

72). Do fato das figuras geométricas assemelharem-se a objetos da percepção ordinária

resulta, por sua vez, uma nova exigência para que um critério seja aplicável à geometria: não

bastará que o critério não seja o da enumeração, será necessário que seja condizente com os

critérios últimos dos sentidos e da imaginação.

Da imaginação pode advir tanto um critério fictício quanto um critério legítimo,

contudo, as meras ficções advindas do primeiro não podem tornar o segundo imperfeito. (É

como se Hume distinguisse o que se poderia chamar de verdadeira imaginação do que se

poderia chamar de mera imaginação.) Quer dizer: a descoberta de qualquer imperfeição no

critério proposto não pode residir no fato da imaginação ultrapassar de modo ilegítimo as

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ideias de retidão e igualdade expressas nos instrumentos e técnicas de medição

apropriadas(os), sob pena de tornar-se mera imaginação:

Porque, como a própria ideia de igualdade é a de uma aparência particular corrigida por justaposição ou por uma medida comum, a noção de qualquer correção além daquela para a qual possuímos instrumentos ou uma técnica apropriada é uma mera ficção da mente. (HUME, 2009, p. 75.)

Com isso fica estabelecido que 1) não se pode dizer que a geometria seja imperfeita

devido ao caráter sempre aperfeiçoável dos instrumentos e técnicas de medição disponíveis: a

limitação dos sentidos mostra que a verdadeira perfeição é assim; e que, do mesmo modo, 2)

não se pode dizer que seja imperfeita devido ao fato de serem “imperfeitas” as impressões:

precisamente esse fato mostra que a outra “perfeição” é, no contexto da filosofia da geometria

de Hume, mera imaginação; i. e, ficção.

2.3 O CRITÉRIO DE DAVID HUME: UMA SOLUÇÃO NOS TERMOS DA VERDADEIRA PERFEIÇÃO

Na medida em que a “[…] verdadeira perfeição de algo consiste em sua conformidade

com seu critério” (HUME, 2009, p. 78). E que esse, no caso, não pode apenas independer da

enumeração das partes últimas, mas precisa coadunar-se com a ideia de igualdade – advinda

dos critérios últimos a pouco elencados, Hume propõe um critério misto – composto pelo

frouxo e natural reconhecimento das desigualdades evidentes acompanhado da comparação

dos objetos com um mesmo instrumento ou com uma mesma medida comum:

Vemos portanto que, concebidas segundo nosso método usual, as ideias mais essenciais à geometria – a saber, igualdade e desigualdade, reta e plano – estão longe de ser exatas e determinadas. Não apenas somos incapazes de dizer, no caso de haver algum grau de dúvida, se tais figuras particulares são iguais, se tal linha é uma reta, ou tal superfície um plano; tampouco somos capazes de formar uma ideia firme e invariável daquela proporção ou dessas figuras. Temos de continuar recorrendo ao julgamento fraco e falível que produzimos baseados na aparência dos objetos, e que corrigimos por meio de um compasso ou de uma medida comum. E se supusermos que é possível fazer qualquer outra correção, esta será uma correção inútil ou imaginária. Seria vão recorrer ao lugar comum, invocando uma divindade cuja onipotência permitisse formar uma figura geométrica perfeita e desenhar uma linha reta sem nenhuma curva ou inflexão. Como o critério último para

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essas figuras não é senão o dos sentidos e da imaginação é absurdo falar de qualquer perfeição que ultrapasse a capacidade de julgamento dessas faculdades. Pois a verdadeira perfeição de algo consiste em sua conformidade com seu critério. (HUME, 2009, p. 78.)

Perceba-se que o emprego de uma medida comum significa abandonar a

enumerabilidade das partes últimas. A igualdade deixa de depender da enumeração e passa a

ser vista, percebida, senão de chofre, através de técnicas e instrumentos de medição: um

compasso e uma régua funcionam como a verdadeira transcrição das definições em que

comparece a ideia em questão e ler as asserções de igualdade supondo qualquer exatidão que

ultrapasse a precisão desses instrumentos é deixar-se levar por “[...] uma mera ficção da

mente” (HUME, 2009, p. 75). Enquanto referidas a tais medidas comuns, as definições

deixam de ser fictícias – e, na medida em que isso significa bem compreendê-las, deixam de

ser necessárias:

Há muitos filósofos que se recusam a apontar um critério de igualdade, afirmando, em vez disso, que basta apresentar dois objetos iguais para que tenhamos uma noção correta dessa proporção. Sem a percepção dos objetos, dizem eles, qualquer definição é infrutífera; e quando percebemos os objetos não temos mais necessidade de definições. Concordo plenamente com esse raciocínio; e afirmo que a única noção útil de igualdade ou desigualdade deriva da aparência una e global, bem como da comparação entre objetos particulares. (HUME, 2009, p. 73-74.)

Hume reconhece que seu critério é imaginário afinal de contas a medida comum e

externa não iguala de fato as retas finitas. Porém, não é fictício; mais que isso: é o único não

fictício caso se leia as definições de ponto, linha e superfície como ele as lê. Enfim, nos

termos do autor:

Quando, portanto, a mente se habitua a esses juízos e às suas correções e descobre que a mesma proporção que faz com que duas figuras tenham perante nossos olhos aquelas aparências que chamamos de igualdade também faz que elas correspondam uma à outra, bem como a uma medida comum de comparação, nós formamos uma noção mista de igualdade. Mas não nos contentamos com isso…Percebemos que o acréscimo ou a subtração de uma dessas partes minúsculas não é discernível nem pela aparência dos corpos nem pela medição. E, como imaginamos que duas figuras antes iguais não podem continuar iguais após essa subtração ou esse acréscimo, fazemos a suposição de um critério imaginário de igualdade que possa corrigir com exatidão tanto as aparências desses corpos como o processo de medição, reduzindo inteiramente as figuras a essa proporção. Tal critério é claramente

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imaginário. Porque, como a própria ideia de igualdade é a de uma aparência particular corrigida por justaposição ou por uma medida comum, a noção de qualquer correção além daquela para a qual possuímos instrumentos ou uma técnica apropriada é uma mera ficção da mente, tão inútil quanto incompreensível. Entretanto, embora esse critério seja somente imaginário, a ficção é muito natural. // [A] imaginação, quando envolvida em uma cadeias de pensamentos, tende a dar continuidade a ela mesmo na falta de seu objeto; e, como uma galera posta em movimento pelos remos, segue seu curso sem qualquer novo impulso. Afirmei ser essa a razão pela qual, após considerar diversos critérios aproximados de igualdade, e corrigi-los uns pelos outros, passamos a imaginar, para essa relação, um critério tão correto e exato que não é possível o menor erro ou variação. (HUME, 2009, p.74-75 // 231.)

Quanto à inexatidão atribuída por Hume à geometria – assunto dileto da quarta seção

a ser tratado nos termos de uma aspiração à perfeição absoluta concernente à exatidão da

generalidade geométrica – atente-se para os objetos sobre os quais versam as asserções de

igualdade: linhas retas não permitem variações legítimas em sua aparência1. Por enquanto, a

“[…] liberdade que tem a imaginação de transpor e transformar suas ideias” encontra-se, por

um lado, constrita à aparência unívoca de linha e, por outro, à verdadeira ideia de igualdade.

1 Por exemplo, é possível imaginar diversas aparências legítimas de um triângulo por simples alterações nas inclinações entre os lados que os compõem. O que dizer de diversas aparências de uma linha reta?

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3 OS PRINCÍPIOS FUNDAMENTAIS DA GEOMETRIA EUCLIDIANA E AS FIGURAS ENQUANTO OS OBJETOS DOS QUAIS SÃO EXTRAÍDOS

Para uma melhor compreensão das teses de Hume, propõe-se verificar o que se passa

com uma demonstração euclidiana de igualdade considerada a partir de sua perspectiva em

contraste com uma concepção formal atual da geometria baseada na obra do matemático

Beppo Levi2. Antes de passar à referida demonstração, porém, parece indispensável proceder

com uma breve e geral exposição da interpretação de Levi concernente às definições, aos

postulados e às noções comuns, ao lado de uma incipiente tentativa de caracterizar esses

mesmos princípios fundamentais a partir do que as considerações de Hume permitem supor.

Importa salientar que a abordagem que se segue constringe-se a aspectos da geometria plana

de Euclides.

3.1 DEFINIÇÕES

Euclides divide Os Elementos em treze livros. No início do Livro I encontra-se uma lista

de 23 definições às quais são acrescentadas novas listas no início de cada livro subsequente –

à exceção dos livros VIII, XI e XIII. As definições abaixo elencadas prestam-se a duas

finalidades: servem como exemplos aos quais se referir durante a subsequente exposição e

constituem a lista necessária para a boa compreensão da posterior demonstração. A segunda

finalidade, por sua vez, determina a seleção oferecida.

1. Ponto é aquilo de que nada é parte.

2. E linha é comprimento sem largura.

3. E extremidades de uma linha são pontos.

4. E linha reta é a que está posta por igual com os pontos sobre si mesma.

13. E fronteira é aquilo que é extremidade de alguma coisa.

14. Figura é o que é contido por alguma ou algumas fronteiras.

15. Círculo é uma figura plana contida por uma linha, em relação a qual todas as retas que a 2 .Beppo Levi, nascido em Turin, em 1875, foi um dois mais importantes matemáticos de sua geração, destacando-se em particular por seus trabalhos em geometria e teoria da medida.

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encontram, a partir de um dos pontos postos no interior da figura, são iguais entre si.

16. E o ponto é chamado centro do círculo.

19. Figuras retilíneas são as contidas por retas, por um lado, triláteras, as por três, e, por outro,

quadriláteras, as por quatro, enquanto multiláteras, as contidas por mais de quatro retas.

20. E, das figuras triláteras, por um lado triângulo equilátero é o que tem os três lados iguais,

e, por outro lado, isósceles, o que tem só dois lados iguais, enquanto escaleno, o que tem os

quatro lados desiguais. (EUCLIDES, 2009, p. 97-98.)

A particularidade da interpretação de Hume consiste no lugar central que as figuras

ocupam no interior de sua proposta. Importa lembrar Hume entende a indivisibilidade

expressa nas definições de ponto, linha e superfície como indicações de que Euclides tratava

as figuras geométricas à semelhança dos objetos dos quais advém a ideia de extensão.

Enquanto objetos da percepção, por sua vez, a verdadeira perfeição das igualdades entre

figuras não pode residir na enumeração das partes e não pode ser contrária aos critérios

últimos dos sentidos e da imaginação. Acima se viu que da sensibilização das ideias advém a

interpretação das referidas definições nos termos de ideias-limite da ideia de extensão: ao

deparar-se com as definições de Euclides, Hume transpõe-nas para o curso habitual da

experiência com a intenção de torná-las inteligíveis.

Beppo Levi propõe uma descrição inicial das definições euclidianas que é bastante

condizente com o princípio da sensibilização das ideias:

Traduz-se por “definições” a palavra que no texto é ὄροι. G. Vacca e F. Enriques notam que a tradução literal seria “confins, balizas” e propõem a versão “termos”…[E]ssas são palavras de significado material, objetivo, utilizadas com significado transposto…As balizas têm servido em todos os tempos para estabelecer limites, mas também para estabelecer sinais, para servir de guia. Os termos, materialmente, não podem ser senão confins; mas, literariamente, são palavras de significado determinado e preciso, algo propriamente como definições...Não parece absurdo supor que se trate simplesmente, na intenção do autor, de algo como um pequeno vocabulário para se entender com o leitor sobre o uso e o significado de determinados termos não pertencentes à língua comum...Euclides, de fato, nunca se refere a uma definição como expressão da verdade de algo necessário para levar a cabo uma demonstração. (LEVI, 2008, p. 95-96.)

Porém, logo em seguida sugere que – com suas definições – Euclides pretendia

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instaurar uma espécie de fronteira entre o físico e o conceitual: “[…] mais que indivisibilidade

física […]” com a definição de ponto Euclides: “[…] queria afirmar a impossibilidade

conceitual de lhe aplicar a noção de partes.” Propõe uma comparação com as definições de

unidade e de número que se encontram no Livro VII de Os Elementos: “[u]nidade é aquilo

segundo o qual cada uma das coisas existentes é dita uma” e “número é a quantidade de

unidades” (EUCLIDES, 2009, p. 269). Levi, então, indica que nessas definições desaparece

“[…] todo o traço material que transparecia na palavra “partes” e [que] Euclides não titubeia

em atribuir o papel de predicado a uma determinação puramente funcional, o que permite que

algo possa ser conceito na qualidade de decisão da inteligência, mas não possa ser coisa.

[Grifo meu.]” Afirma que “poderíamos, então, interpretar a definição de “ponto” como

expressão da “[…] característica da geometria euclidiana […]” que residiria “[…]

precisamente […] em se imporem limitações nos conceitos e nas formas de raciocínio para

escapar dos limites do empirismo” (LEVI, 2008, p.98-99).

Quanto ao comparecimento do termo partes na definição de ponto e sua ausência nas

definições de número e unidade, porém, as teses de Hume permitem afirmar que – exatamente

por essas últimas se referirem a números – é que Euclides teria se abstido de nelas empregar o

termo partes. Ademais, e não menos importante, chamaria a atenção para o fato de que nas

noções comuns, onde Euclides estabelece o modo como se identificam a igualdade e a

desigualdade, é a palavra coisa que ele emprega.

3.2 POSTULADOS

À semelhança do que se disse acerca das definições elencadas no início do tópico

anterior, os postulados que se seguem também prestam-se a uma dupla função: servem de

exemplos dos princípios cujas caracterizações estão em questão e são indispensáveis para o

desdobramento da demonstração subsequente. No início do Livro I são listados 5 postulados

que – à diferença do que se passa com a definições – constituem a lista completa de que se

necessita para proceder com todas as demonstrações presentes nos treze Livros de Os

Elementos.

1. Fique postulado traçar uma reta de todo ponto até todo ponto.

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3. E, com todo centro e distância, descrever um círculo. (EUCLIDES, 2009, p. 98.)

Pode-se dizer que, nos termos de Hume, ao lado da definição 15 – onde se encontraria

definida a ideia da figura círculo – o postulado 3 indicaria o modo como se obtém um círculo

qualquer: pela descrição de uma linha com um centro e distância através, supõe-se, de um

compasso enquanto instrumento a ser utilizado. O mesmo se passaria com relação à definição

de linha reta e o postulado 1: obtém-se uma reta traçando-a de um ponto até outro ponto.

Para Hume, por exemplo, duas linhas traçadas com uma mesma régua a partir do centro até a

circunferência de um círculo descrito com um mesmo compasso são iguais por terem sido

construídas com o emprego de instrumentos iguais e medida comuns.

Levi interpreta os postulados como princípios que expressariam existência e

unicidade. A exposição da tese do autor divide-se em três momentos distintos: primeiramente,

afirma que os termos traçar e descrever, presentes nos postulado 1 e 3, significam um “fazer”

que “[…] evidentemente...tem sentido existencial, intelectivo [...]”; subsequentemente, propõe

traduzir esse “fazer” pela expressão “existe e é único”: “[…] [e]xiste e é único o segmento

que une dois pontos quaisquer” e “existe e é única a circunferência em um plano dado, com

centro dado e por um ponto dado no plano” (LEVI, 2008, p. 103); e, finalmente, propõe que

se interprete o termo “existe” por “pode-se”:

Com a enunciação dos postulados, entendemos que Euclides quis esclarecer o “existe” como “pode-se”. Mas, qualquer que seja a palavra, pede que o leitor tenha refletido bastante para conceber – e considerar sem contradição – os conceitos enunciados, com as propriedades que lhes são atribuídas...Para ajudar a linguagem com o desenho, esses conceitos poderão, em cada caso, ser representados por figuras, e isso justifica o “pode-se”. Mas está sempre compreendido que a afirmação do geômetra não se refere à imagem física, e sim ao conceito mental que com ela se quer representar [...] Fica assim definido o significado de construir. [Grifos meus.] (LEVI, 2008, p. 104-105.)

Para Levi, duas retas finitas são iguais quando o texto afirmar que são raios de um

mesmo círculo, independentemente da construção – que pode ou não ser feita – e a despeito

de qualquer aparência de igualdade entre os traços que comporiam essa passível

representação de conceitos mentais. Nesse caso, costuma-se dizer serem iguais por definição.

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3.3 NOÇÕES COMUNS

Quanto às duas noções comuns abaixo elencadas, saliente-se que apenas a primeira é

indispensável para o bom entendimento da demonstração subsequente: todas as outras serão

empregada apenas na elucidação do contraste entre as caracterizações fornecidas por Hume e

por Levi. À semelhança do que se passa com os postulados, no início do Livro I Euclides

apresenta uma lista completa das noções comuns de que se necessita para todas as provas

presentes nos treze Livros de Os Elementos.

1. As coisas iguais à mesma coisa são também iguais entre si.

2. E, caso sejam adicionadas coisas iguais a coisas iguais, os todos são iguais.

3. E, caso de iguais sejam subtraídas iguais, as restantes são iguais.

7. (4.) E as coisas que se ajustam um à outra são iguais entre si. [Grifo meu.]

8. (5.) E o todo [é] maior do que a parte. (EUCLIDES, 2009, p. 99.)

Antes de passar à caracterização de Levi acerca das noções comuns, dois breves

esclarecimentos se fazem necessários tendo em vista a boa compreensão das citações

subsequentemente empregadas. O primeiro refere-se à dupla numeração referente às duas

últimas noções comuns acima elencadas. Levi chama a atenção para o fato de haver “[…]

deturpações nas transcrições […] quanto ao número das proposições agrupadas sob esse

título, o qual, ainda nas de maior credibilidade, varia entre 5 e 9, sendo muito maior em

outras”: Irineu Bicudo3 lista 9, Beppo Levi, 5. O segundo esclarecimento diz respeito à

tradução da noção comum grifada em itálico: Bicudo traduz ὄλον por (coisas que) se ajustam;

Levi, por (coisas) coincidentes – de acordo com a tradução inglesa de Heath (1908).

Levi afirma que as noções comuns elencadas por Euclides referem-se à igualdade entre

figuras: seriam princípios lógico-geométricos especificamente dirigidos às determinações de

igualdades geométricas. Primeiramente, afirma que “[…] uma análise completa dessas

proposições à luz da crítica moderna…oferece algumas dificuldades por causa da

indeterminação dos vocábulos”, salientando que “[...] [e]ntre as relações geométricas,

distinguimos pelo menos duas para as quais Euclides usa a mesma palavra, igualdade: as que 3 Tradutor da edição de Os Elementos de que são extraídos os excertos empregados neste trabalho.

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chamamos de congruência e equivalência” (LEVI, 2008, p. 109). Subsequentemente, deixa

subentendido que essas duas relações geométricas coadunam-se com sua perspectiva na exata

medida em que “[…]a noção de igualdade lógica […] tem algo em comum com os

significados precedentes […]”: enquanto princípio lógico referido à figuras, “[a] noção 1

pode ser aplicada indiferentemente a cada uma dessas interpretações.” Estende sua tese às

demais noções, afirmando que “[…] a 2 e a 3, supondo-se conhecido o conceito de igualdade,

podem expressar algo das operações de somar e subtrair” e que … “[n]a 5, por fim, devemos

ver nada mais que uma definição da palavra parte como correlativa às palavras somar e

subtrair que aparecem nas noções 2 e 3” (idem). A noção 4, porém, “[…] introduz pela

primeira vez na linguagem geométrica a palavra ''coincidir''…a que mais deve atrair nossa

atenção” (LEVI, 2008, p. 109-110); destaque-se: não a atenção de Hume. Acerca da igualdade

por justaposição ou coincidência referida na noção comum 7 (4), diz Levi:

Constata-se […] que os casos nos quais a consideração do movimento rígido parece se apresentar como a interpretação mais imediata do texto euclidiano são absolutamente contados – não mais que dois ou três…Deveríamos acreditar que só de vez em quando, forçado pela necessidade, Euclides rompe a ordem lógica que é quase a razão de ser de sua geometria? E que o faz sem avisar o leitor? (LEVI, 2008, p. 110.)

Sua explicação evidencia a razão da supra aludida atribuição de existência e unicidade

aos postulados euclidianos. As noções comuns comparariam todos as linhas traçadas (retas e

círculos) com linhas completamente determinadas pelos postulados – a despeito de qualquer

traço material:

Não podemos esquecer que, para Teeteto e para Sócrates, a geometria era contemplação que se valia do desenho como auxílio, da mesma maneira como utilizamos os símbolos matemáticos. E é por isso que, do desenho, ela não podia utilizar, por exemplo, o traçado de curvas por movimento contínuo, e sim unicamente aquelas linhas (retas e círculos) cujas propriedades estavam completamente determinadas pelos postulados, independentemente do traço material. (LEVI, 2008, p. 111.)

A partir de sua perspectiva, “Euclides, para combater o empirista que dizia ‘medimos’

[…] devia realizar a igualdade por meio de uma construção estática, uma figura permanente

que assegurasse toda a operação, ainda que fosse só na imaginação”. Levi também faz alusão

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ao círculo como instrumento “[…] que permite efetuar a construção […] mas não o círculo

materialmente traçado pelo movimento […] de um compasso qualquer, e sim o círculo que o

postulado 3 pede que seja concedido existir com qualquer centro e por qualquer ponto [grifos

meus]” (LEVI, 2008, p. 115). Sua explicação acerca das noções comuns, enfim, aproxima as

figuras aos símbolos matemáticos: à semelhança da aritmética – em que a aparência dos

números não entra em questão na exatidão das igualdades, também a aparência das linhas

geométricas seria, para ele, irrelevante.

Hume, por sua vez, não está disposto a abrir mão do fato de que “[…] na geometria,

arte pela qual determinamos as proporções das figuras […] os primeiros princípios são

sempre extraídos da aparência geral dos objetos” (HUME, 2009, p. 99). O autor afirma que

“[n]ossa razão deve ser considerada uma espécie de causa, cujo efeito natural é a verdade…”

e declara que “[…] minha intenção [...] é apenas sensibilizar o leitor para a verdade de minha

hipótese: […] que a crença é mais propriamente um ato da parte sensitiva que da parte

cogitativa de nossa natureza” (HUME, 2009, p. 217). Sugere-se que as noções comuns seriam

(ao lado das definições que descrevem as figuras e dos postulados que apresentam o modo

como se as obtêm) os princípios que propriamente situariam as figuras geométricas entre os

objetos da experiência ordinária.

Enfim, à guisa de consideração final dessas incipientes caracterizações dos princípios

fundamentais da geometria euclidiana, supõe-se que Hume se manisfestaria nos seguintes

termos frente a interpretações semelhantes às de Levi:

É comum os matemáticos afirmarem que as ideias de que se ocupam possuem uma natureza tão refinada e espiritual que não podem ser concebidas pela fantasia, devendo antes ser compreendidas por uma visão pura e intelectual, acessível apenas às faculdades superiores da alma…Para destruir esse artifício, porém, basta-nos refletir acerca daquele princípio sobre o qual insistimos com tanta frequência: que todas as nossas ideias são copiadas de nossas impressões. Dele podemos imediatamente concluir que, uma vez que todas as impressões são claras e precisas, as ideias, que são delas copiadas, devem ter essa mesma natureza, e só por uma falha de nossa parte poderiam conter algo tão obscuro e intrincado. Uma ideia, por sua própria natureza, é mais fraca e pálida que uma impressão. Mas, sendo igual a ela em todos os demais aspectos, não pode conter grandes mistérios. Se sua fraqueza a torna obscura, cabe a nós remediar tal defeito tanto quanto possível, mantendo a ideia firme e precisa. Enquanto não o fizermos, é vão pretender raciocinar e filosofar. (HUME, 2009, p. 68.)

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3.4 A DEMONSTRAÇÃO I.1

É hora de verificar o que se passa com uma demonstração euclidiana de igualdade

considerada a partir das caracterizações procedidas no tópico anterior. Escolheu-se a

proposição I.1 em cuja notação o algarismo romano refere-se ao número do Livro de Os

Elementos enquanto o arábico, à proposição demonstrada: I.1 é a demonstração inaugural dos

Elementos. Em I.1 Euclides propõe:

Construir um triângulo equilátero sobre a reta limitada dada.

C

D A B E

com a distância BA, o círculo ACE, e a partir do ponto C, no qual os círculos se cortam, até os

pontos A, B, fiquem ligadas as retas CA, CB.

E como o ponto A é o centro do círculo CDB, a AC é igual à AB; de novo, como o

ponto B é centro do círculo CAE, a BC é igual à BA. Mas a CA foi também provada igual à

AB; portanto, cada uma das CA, CB é igual à BA. Mas a CA foi também provada igual à AB;

portanto cada uma das CA, CB é igual à AB. Mas as coisas iguais às mesmas coisas são

também iguais entre si; portanto, também a CA é igual à CB, portanto as três, CA, AB, BC

são iguais entre si.

Portanto, o triângulo ABC é equilátero e foi construído sobre a reta limitada dada AB;

o que era preciso fazer.

Ao deparar-se com a demonstração I.1 encontra-se, por um lado, imagens com letras

(A, B, C, D, E) e, por outro, um texto com termos referidos a essas letras. Ainda que as

Seja a reta limitada AB. É preciso, então,

sobre a reta AB construir um triângulo

equilátero.

Fique descrito, por um lado, com o centro

A, e, por outro lado, com a distância AB, o

círculo BDC, e, de novo, fique descrito,

por um lado, com um centro B, e, por outro

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imagens e os nomes não sejam familiares, as letras são e servem de ligação entre aquelas e

esses. De acordo com a perspectiva de Hume, colocados lado a lado nomes e objetos, cumpre-

se toda a função das definições. (Recorde-se: “[s]em a percepção dos objetos…qualquer

definição é infrutífera; e quando percebemos os objetos não temos mais necessidade de

definições.”)

No início da prova, o que se tem é apenas uma reta limitada AB: é certo que não há

com o que compará-la antes da construção das outras duas retas. Percebidos os objetos, passa-

se para a construção da figura de acordo com a estratégia apresentada no texto da prova: a

partir das considerações de Hume, a certeza da igualdade provém tão somente das técnicas e

instrumentos empregados na própria construção da figura – ou seja, a igualdade resulta

demonstrada por causa do emprego de uma mesma medida comum na construção de ambos

os lados faltantes. O triângulo equilátero identificado ao lado do texto da prova aparece

circunscrito em meio à intersecção de dois círculos “estranhos” ao enunciado da

demonstração. O emprego desses círculos pode ser visto como a estratégia escolhida pelo

raciocínio, cujas construções encontram-se autorizadas pelo postulado 3. Dos dois círculos

traçados com centro em cada uma das extremidades da reta dada (pontos A e B) e tendo-a

como medida comum, surgem duas intersecções. Uma delas é marcada com o ponto C. O

postulado 2, então, possibilita o traçado de ambos os lados (CA e CB) que circunscrevem as

duas fronteiras que, por sua vez, determinam o triângulo que era preciso construir. Feito isso,

é hora de afirmar haver-se feito o que era preciso fazer: construir um triângulo equilátero

ABC sobre a limitada dada AB.

A prova de que são iguais os três lados do triângulo construído apoia-se na noção

comum 1: “[a]s coisas iguais à mesma coisa são também iguais entre si”. No texto da prova

afirma-se que “…cada uma das CA, CB é igual à AB. Mas as coisas iguais às mesmas coisas

são também iguais entre si; portanto, também a CA é igual à CB, portanto as três, CA, AB,

BC são iguais entre si.” Enfim, a certeza de que são iguais entre si, para Hume, deve-se ao

fato de ambos os círculos terem sido traçados a partir de uma mesma medida comum (a reta

AB) através de um instrumento que a conservou invariável: é uma igualdade por construção.

Caso, por mais impensável que seja, dessa construção resultassem lados dissemelhantes, não

haveria, para Hume, relações entre definições, postulados e noções comuns capazes de

determiná-los iguais: caso se repetisse diversas vezes a demonstração I.1, por exemplo, e

sempre se obtivesse triângulos com lados visivelmente desiguais, de que modo se os saberia

iguais? Porém, a impossibilidade de pensar algo assim não advém dos princípios, mas das

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impressões. Já se disse: “[…] minha intenção […] é apenas sensibilizar o leitor para a verdade

de minha hipótese: […] que a crença é mais propriamente um ato da parte sensitiva que da

parte cogitativa de nossa natureza.”

De acordo com a leitura de Levi, recorde-se que duas retas finitas são iguais quando o

texto afirmar que são raios de um mesmo círculo, independentemente da construção – que

pode ou não ser feita – e a despeito de qualquer aparência de igualdade entre os traços que

comporiam essa passível representação de conceitos mentais: “[p]ara ajudar a linguagem com

o desenho, esses conceitos poderão, em cada caso, ser representados por figuras…[m]as está

sempre compreendido que a afirmação do geômetra não se refere à imagem física, e sim ao

conceito mental que com ela se quer representar...independentemente do traço material.” O

diagrama abaixo expressa de modo sensível suas concepções:

Evidencia-se, por um lado, que em interpretações semelhantes à de Levi a perfeição

absoluta justifica-se pelo caráter dispensável do que é “imperfeito” – do traço material das

figuras4: “[…] a geometria era a contemplação que se valia do desenho [das figuras] como

auxílio, da mesma maneira como utilizamos os símbolos matemáticos […]”, onde as “[…]

propriedades estavam completamente determinadas pelos postulados, independentemente do

traço material”; e que, por outro, na leitura de Hume, sem figuras sequer haveria geometria:

elas são os objetos dos quais são extraídos todos os princípios da geometria; os objetos

através de cujas construções o raciocínio estabelece suas conclusões; e os objetos aos quais

são referidas todas as asserções geométricas. Assim, com relação à exatidão concernente às

figuras geométricas, Hume estabelece que:

4 Haveria uma outra forma de “justificar” a irrelevância da perfeição dos diagramas: os aspectos exatos (retidão das retas e circularidade dos círculos) encontrar-se-iam completamente determinados pelas afirmações textuais: AB, BC e CB seriam linhas retas tão somente porque o texto da prova afirmaria que são. (cf. MANDERS, 1995.)

A igualdade dos lados AB, AC e BC é

estabelecida pela aplicação da noção comum 1 aos

lados do triângulo enquanto raios de um círculo

completamente definido (definição 15) e único

(postulado 3); quer dizer, encontra-se perfeitamente

assegurada pela substituição das imagens físicas por

conceitos mentais. À diferença da igualdade afirmada

por Hume, aqui tem-se uma igualdade por definição.

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Como o critério último para essas figuras não é senão o dos sentidos e da imaginação é absurdo falar de qualquer perfeição que ultrapasse a capacidade de julgamento dessas faculdades. Pois a verdadeira perfeição de algo consiste em sua conformidade com seu critério // Os primeiros princípios fundamentam-se na imaginação e nos sentidos; a conclusão, portanto, jamais pode ultrapassar e menos ainda contradizer essas faculdades. (HUME, 2009, p. 78 // 80.)

Na próxima seção, pretende-se entender em que consiste a inexatidão atribuída por

Hume à geometria. Recorde-se do que foi destacado no último parágrafo da seção anterior: no

contexto das determinações de retidão e igualdade de linhas a imaginação esteve constrita a

uma única aparência legítima de seu objeto.

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4 SEGUNDA CONSIDERAÇÃO SOBRE A SENSIBILIZAÇÃO DAS IDEIAS E A JUSTIFICAÇÃO DAS CONCLUSÕES GERAIS: AS FIGURAS QUA “LEMBRETES” DE MUITAS OUTRAS IDEIAS PARTICULARES

Nesta seção ocupa-se da inexatidão concernente à generalidade geométrica. De modo

geral, essa inexatidão resulta da mesma tese que a justifica. Para entender de que modo isso se

passa, é preciso perceber que no contexto da filosofia da geometria do autor, uma figura

empregada em uma prova geométrica funciona como um “lembrete” de muitas outras

aparências legítimas dessa mesma figura, trazidas à mente pela imaginação de acordo com os

propósitos do raciocínio. De acordo com as considerações de Hume, diante do propósito de

provar a verdade de uma proposição, a imaginação traz à mente aparências adequadas,

porém, diante do propósito de verificar a exatidão das conclusões gerais, dispõe aparências

não adequadas. O caráter adequado destas muitas outras particulares lembradas consiste em

figurarem com dimensões, distâncias e inclinações que permitem 1) seu reconhecimento

enquanto aparências legítimas da particular empregada e 2) a mensurabilidade – a partir dos

instrumentos de medição disponíveis – das partes e regiões de que são formadas e que são

aludidas na verdade asserida. Na medida em que as particulares prontamente evocadas na

imaginação pela figura qua “lembrete” constituem os crivos das verdades gerais, a

generalidade dessas asserções torna-se tão inexata quanto o são as dimensões, inclinações e

distâncias a partir das quais as partes e regiões das particulares lembradas deixam de se

prestar à medição.

A generalidade geométrica encontra-se vinculada às observações acerca das ideias

abstratas apresentadas pelo autor na última seção da primeira parte do Livro I do Tratado da

Natureza Humana. A questão central concernente às referidas ideias “[…] a saber, se são

concebidas pela mente como gerais ou particulares […]” é inspirada em “[...] uma das

maiores e mais valiosas [sc. descobertas] feitas recentemente na república das letras [...]”,

qual seja: “[...] que as ideias gerais não passam de ideias particulares que vinculamos a um

certo termo...que lhes dá um significado mais extenso e que, quando a ocasião o exige, faz

com que evoque outros indivíduos semelhantes a elas” (HUME, 2009, p. 41) – creditada, por

Hume, à George Berkeley. De modo geral:

Como a ideia abstrata de homem representa todos os tamanhos e todas as qualidades possíveis, conclui-se que ela só será capaz de fazer isso se representar ao mesmo tempo todos os tamanhos e todas as qualidades

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possíveis, ou então se não representar nenhum tamanho ou qualidade particular. Ora, a primeira proposição tendo sido considerada absurda, porque implicaria uma capacidade infinita da mente, costumou-se inferir que a segunda seria a correta – e por isso se supôs que nossas ideias abstratas não representam nenhum grau particular de quantidade ou de qualidade. O que tentarei mostrar, contudo, é que essa inferência é errônea…mostrando que, muito embora a capacidade da mente não seja infinita, podemos formar de uma só vez uma noção de todos os graus possíveis de quantidade e qualidade, de uma maneira tal que, embora imperfeita, possa ao menos servir a todos os propósitos da reflexão e do diálogo. (HUME, 2009, p. 42.)

Hume afirma que “[…] quando encontramos uma semelhança entre diversos objetos

que se apresentam a nós com frequência, aplicamos a todos eles o mesmo nome, não obstante

as diferenças que possamos observar em seus graus de quantidade e qualidade […]” (HUME,

2009, p. 44). Quanto ao que permite aplicar-se um mesmo nome a diversos objetos, na medida

em que “[é] impossível explicar as causas últimas de nossas ações mentais […]”, o autor

afirma que “[…] o método mais apropriado para fornecer uma explicação satisfatória desse

ato da mente é apresentar […] exemplos […]” bastando, enfim, “[…] sermos capazes de dar

uma explicação satisfatória com base na experiência e por analogia” (idem, p. 45). Salienta,

por fim, que […] antes de esses hábitos terem se tornado inteiramente perfeitos, talvez a

mente não possa se contentar em formar a ideia de apenas um indivíduo […] mas deva, […]

em lugar disso, percorrer diversos deles, a fim de compreender seu próprio sentido, bem como

o âmbito do conjunto que ela pretende exprimir pelo termo geral (HUME, 2009, p. 46):

Para determinar o sentido da palavra figura, podemos percorrer em nossa mente as ideias de círculos, quadrados, paralelogramos, triângulos de diferentes tamanhos e proporções, sem necessariamente nos fixar em apenas uma imagem ou ideia. Seja como for, o certo é que, sempre que empregamos um termo geral, formamos a ideia de indivíduos; que raramente, ou nunca, conseguimos esgotar a ideia desses indivíduos; e que aqueles que restam só são representados mediante o hábito, pelo qual os evocamos sempre que uma situação presente o exige. Tal é, portanto, a natureza de nossas ideias abstratas e de nossos termos gerais; e é dessa maneira que resolvemos o paradoxo anterior, a saber, que algumas ideias são particulares em sua natureza, mas gerais pelo que representam. Uma ideia particular torna-se geral quando a vinculamos a um termo geral – isto é, a um termo que, por uma conjunção habitual, relaciona-se com muitas outras ideias particulares, evocando-as prontamente na imaginação. (HUME, 2009, p. 46.)

No âmbito de uma demonstração geométrica, as ideias particulares tornam-se ideias

gerais pela vinculação das figuras aos termos descritos pelas definições. Para visualizar de que

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maneira se dá essa vinculação, basta recordar-se do modo como funcionam as letras

impressas na imagem da demonstração I.1 apresentada no contexto da seção anterior. Na

medida em que “[u]ma ideia particular torna-se geral quando a vinculamos a um termo geral”

e que todas as imagens empregadas nas demonstrações geométricas encontram-se vinculadas

à definições, segue-se que no âmbito das provas geométricas todas as ideias particulares são

(tornadas) gerais. A subsequente citação indica o que significa uma ideia particular torna-se

geral:

Assim, a ideia de um triângulo equilátero de uma polegada de altura pode servir para falarmos de um figura, de uma figura retilínea, de uma figura regular, de um triângulo e de um triângulo equilátero. Todos esses termos, portanto, se fazem acompanhar da mesma ideia; mas, como são usualmente aplicados a uma extensão ora maior ora menor, eles suscitam seus hábitos próprios, mantendo assim, a mente de prontidão para que não forme qualquer conclusão contrária a nenhuma das ideias comumente por eles compreendidas. (HUME, 2009, p. 44.)

Perceba-se, por um lado, que a quantidade uma polegada de altura evidencia tratar-se

de uma ideia particular de triângulo (quantitativamente determinada) e que, por outro, a

extensão ora maior ora menor evidencia em que sentido ela se torna uma ideia geral: ela

funciona como um “lembrete” que, a partir de sua vinculação a termos gerais, dispõe “[…]

muitas outras ideias particulares…prontamente na imaginação” (HUME, 2009, p.46). Essas

duas observações mostram de que modo Hume entende a generalidade de uma ideia geral – o

que, por sua vez, mostra de que modo o autor justifica a generalidade das conclusões

geométricas: o emprego de figuras qua “lembretes” permite que as verdades demonstradas

sejam gerais sem que a prova deixe de ser feita com o emprego de ideias particulares: é certo

que “[t]odas as ideias abstratas são, na realidade, apenas ideias particulares, consideradas sob

um certo ângulo; mas, sendo vinculadas a termos gerais, tornam-se capazes […]” qua figuras-

lembretes “[…] de representar uma grande diversidade, e de compreender objetos que,

embora semelhantes em alguns aspectos particulares, são, em outros aspectos, bastantes

diferentes uns dos outros” (HUME, 2009, p. 60). Ademais, assim também se mostra de que

modo Hume entende ser errônea a inferência de “[…] que nossas ideias abstratas não

representam nenhum grau particular de quantidade ou de qualidade.”

Posto isso, é hora de observar em que consiste a inexatidão da generalidade

geométrica reconhecida pelo autor. Para tanto, basta observar que as “[…] muitas outras

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ideias particulares […]” lembradas funcionam como crivos da verdade da conclusão na exata

medida em que mantêm, “[…] assim, a mente de prontidão para que não forme qualquer

conclusão contrária a nenhuma […]” (HUME, 2009, p. 44) delas:

Pois uma das questões mais extraordinárias da presente questão é o fato de que, se por acaso formamos um raciocínio que não concorda com uma ideia individual produzida pela mente, e acerca da qual raciocinamos, o costume que a acompanha…sugere imediatamente qualquer outro indivíduo. Assim, se mencionamos a palavra triângulo e formamos a ideia de um triângulo equilátero particular que lhe corresponda, e se depois afirmamos que os três ângulos de um triângulo são iguais entre si, os outros casos individuais de triângulos isósceles e escalenos, que a princípio negligenciamos, imediatamente se amontoam à nossa frente, fazendo-nos perceber a falsidade dessa proposição, que, entretanto é verdadeira em relação à ideia que havíamos formado. (HUME, 2009, p. 45.)

Uma breve consideração desse excerto ao lado do que se disse anteriormente parece

suficiente para mostrar ser por uma mesma razão que as conclusões geométricas são tanto

gerais quanto “[…] nunca chega[m] a atingir uma total precisão e exatidão” (HUME, 2009, p.

99). Adiante-se que as conclusões são gerais e verdadeiras por serem provadas com o

emprego de ideias particulares lembretes de muitas outras ideias particulares e que,

exatamente por essa razão, “[…] jamais pode nos proporcionar uma segurança quando se trata

de examinar a prodigiosa minúcia de que a natureza é capaz.” (Idem).

Diante do propósito de provar uma proposição geométrica, dado que “[…] (n)ada é

mais admirável que a rapidez com que a imaginação sugere suas ideias, apresentando-as no

instante mesmo em que elas se tornam necessárias ou úteis…e que simplesmente

escolhêssemos as mais adequadas aos nossos propósito” (HUME, 2009, p. 48), escolhe-se

uma particular-lembrete com aparência adequada ao propósito de provar. Dada a mesma

“[…] rapidez com que sugere suas ideias, apresentando-as no instante mesmo em que se

tornam necessárias ou úteis […]” e posto que os crivos da verdade das conclusões são as

“[…] muitas outras ideias particulares […]” evocadas prontamente na imaginação pela

particular-lembrete, perceba-se que diante da tarefa de manter “[…] a mente de prontidão

para que não forme qualquer conclusão contrária a nenhuma das ideias […] compreendidas”

ou da tarefa de “[…] perceber a falsidade [da] proposição, que, entretanto é verdadeira em

relação à ideia que havíamos formado”, a imaginação é convocada a formar particulares

legítimas não adequadas. Supõe-se que a maneira mais interessante de completar a

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caracterização das particulares inadequadas seria examiná-las no âmbito de uma

demonstração; o que, ademais, permitiria ver de que modo são inexatas as conclusões gerais:

esses são os objetivos diletos da primeira das duas provas apresentadas na próxima seção.

Nos parágrafos finais das duas seções anteriores chamou-se atenção para a constrição

da imaginação no âmbito das determinações de igualdade aludindo-se, sobremaneira, à

aparência unívoca das linhas em jogo. Percebe-se, afinal, de que modo a inexatidão

geométrica deve-se às diversas aparências legítimas de uma mesma figura: no contexto da

generalidade a imaginação encontra-se com a já mencionada “[…] liberdade que tem […] de

transpor e transformar suas ideias.”

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5 O PAPEL DAS FIGURAS E A GENERALIDADE DAS VERDADES DEMONSTRADAS

Nesta seção pretende-se mostrar um caso que evidencia, nos termos da perspectiva de

Hume, a inexatidão que marca a geometria. A demonstração escolhida é a I.15: Caso duas

retas se cortem, fazem os ângulos no vértice iguais entre si. Para o propósito que se tem em

vista, basta transcrever a parte inicial do texto da prova, a figura apresentada por Euclides e a

conclusão (verdade demonstrada):

A

D E C

B

De acordo com o que se disse na seção anterior, diante da generalidade asserida na

conclusão de I.15 a imaginação põe-se a dispor todas as ideias particulares de duas retas que

se cortam, com o propósito de manter, “[…] assim, a mente de prontidão para que não forme

qualquer conclusão contrária a nenhuma […]” delas. Dado que “[…] (n)ada é mais admirável

que a rapidez com que sugere suas ideias, apresentando-as no instante mesmo em que elas se

tornam necessárias ou úteis […] aos nossos propósitos” (HUME, 2009, p. 48), sugere-se que

ela bem poderia dispor as duas seguintes retas concorrentes:

F G

H J(?) I

Perceba-se que a generalidade da verdade demonstrada em I.15 é exata na medida em

que o referido vértice é discernível; i.e., na medida em que, por sua vez, é exata a proposição

“[…] de que duas retas não podem ter um segmento em comum. Se examinarmos essas ideias,

porém, veremos que elas sempre supõem uma inclinação sensível das duas linhas, e que,

quando o ângulo formado por elas é extremamente pequeno, não possuímos nenhum critério

de reta que seja tão preciso a ponto de nos assegurar da verdade dessa proposição” (HUME,

Cortem-se, pois, as retas AB, CD no ponto E; digo

que, por um lado, o ângulo sob AEC é igual ao sob DEB, e,

por outro lado, o sob CEB, ao sob AED...

Portanto, caso duas retas se cortem, fazem ângulos no

vértice iguais entre si; o que era preciso provar.

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2009, p. 99). “Assim, se mencionamos […]” que duas retas que se cortem, fazem ângulos no

vértice iguais entre si e formamos a ideia das retas AB, CD cortando-se no ponto E, os outros

casos de retas concorrentes – tal como o caso das FG, HI cortando-se no “ponto” J – “[…] que

a princípio negligenciamos, imediatamente se amontoam à nossa frente, fazendo-nos perceber

a falsidade dessa proposição, que, entretanto é verdadeira em relação à ideia que havíamos

formado” (HUME, 2009, p. 45). Enfim, as particulares lembretes AB, CD e as muitas outras

em que o vértice é perceptível mostram em que sentido a I.15 é uma proposição verdadeira e

geral, enquanto as FG, HI por elas lembradas constituem, por sua vez, um caso claro de

aparências legítimas não adequadas ao propósito de provar a verdade da mencionada

proposição, i.e., deixam claro de que modo é inexata a generalidade asserida.

Saliente-se, por sua vez, que nos termos da leitura formal de Levi, a sobreposição

sensível das linhas não constituiria problema: a generalidade da conclusão encontra-se

garantida por sua interpretação do termo traçar presente no postulado 2. Ora, na medida em

que, para ele, “[…] está sempre compreendido que a afirmação do geômetra não se refere à

imagem física, e sim ao conceito mental que com ela se quer representar” e que, em sua

leitura, com o postulado 2 Euclides queria afirmar que “[…] [e]xiste e é único o segmento que

une dois pontos quaisquer”, dever-se-ia, enfim, interpretar “[…] como fenômenos físicos os

resultados nem sempre concordantes da comparação das afirmações lógico-geométricas com

os dados da experiência” (LEVI, 2008, p. 153).

Diante do contraste entre com as concepções de Levi percebe-se que a falibilidade da

exatidão geométrica nos termos de Hume conecta-se à relevância que as figuras assumem na

filosofia da geometria do autor: da afirmação de que “[o]s primeiros princípios […] da arte

pela qual determinamos as proporção das figuras fundamentam-se na imaginação e nos

sentidos […]”, segue-se que “[…]a conclusão, portanto, jamais pode ultrapassar e menos

ainda contradizer essas faculdades”. Torna-se explícita, afinal, a razão por que […] ela [sc. a

geometria] jamais erraria se não aspirasse a uma perfeição absoluta” (L1 P2 S4 §17): sua

inexatidão dever-se-ia de fato a uma limitação inerente aos critérios últimos dos sentidos e da

imaginação dos quais – recorde-se – advém a verdadeira perfeição.

5.1 A FILOSOFIA DA GEOMETRIA DE HUME E AS PROVAS INDIRETAS

As duas demonstrações apresentadas até aqui (I.1 e I.15) são ditas diretas – onde, de

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modo geral, a partir de um antecedente (hipótese) sucederam-se construções inter-

relacionadas com asserções textuais que provaram um consequente (conclusão). Em uma

prova indireta, também de modo geral, frente ao antecedente e ao consequente inicialmente

enunciados, propõe-se uma alternativa que nega o segundo. O desenvolvimento da prova

conduz a uma contradição entre uma noção comum e o que aparece na figura a partir das

construções desenvolvidas segundo a referida alternativa – contradição que, por fim, leva a

reafirmar o consequente inicialmente proposto.

As demonstrações euclidianas por reductio parecem tornar mais evidentes as

dificuldades de ordem lógica ou argumental referentes ao papel que as figuras exercem nas

demonstrações euclidianas. Nesta subseção propõe-se 1) indicar algumas dificuldades que

uma leitura formal nos termos de Levi encontra frente à III.6, uma prova por reductio, 2)

observá-la a partir das teses de Hume e 3) tecer algumas considerações acerca da natureza das

provas indiretas em geral a partir dos dois pontos de vista.

Abaixo segue a descrição literal de III.6 – cuja boa compreensão exige o acréscimo de

uma nova definição e de uma nova noção comum às elencadas na segunda seção:

Definição III.3: Círculos, que ao se tocarem não se cortam, são ditos ser tangentes entre si;

Noção comum 8: E o todo [é] maior do que a parte.

Caso dois círculos tangenciem-se, não será deles o mesmo centro.

Tangenciem-se, pois, os dois círculos ABC, CDE no ponto C; digo que não será deles o

mesmo centro. Pois, se possível, seja o F, e fique ligada a FC, e fique traçada através, ao

acaso, a FEB.

Portanto, caso dois círculos tangenciem-se, não será deles o mesmo centro; o que era

preciso provar.

Como, de fato, o ponto F é centro do círculo ABC, a FC é igual à

FB. De novo, como o ponto F é centro do círculo CDE, a FC é

igual à FE. Mas também a FC foi provada igual à FB; portanto,

também a FE é igual à FB, a menor à maior; o que é impossível.

Portanto, o ponto F não é o centro dos círculos ABC, CDE.

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Uma breve observação acerca do enunciado de III.6 e da particular lembrete

apresentada é suficiente para reconhecer uma dificuldade concernente a essa prova. Quando

vista de um ponto de vista formal, a proposição III.6 parece desnecessária tendo em vista o

postulado 3.

Euclides apresenta os dois círculos ABC e CDE que se tangenciam no ponto C. A

alternativa que conduz ao que é impossível inicia-se na terceira linha do texto: propõe-se que

F seja o centro de ambos. Ainda que o enunciado da demonstração não informe que um dos

círculos é interno ao outro, poder-se-ia – a partir de um ponto de vista formal – convencer-se

de que o texto da prova acompanhado das definições 14, 15 e 16 elencadas na seção 3 seriam

suficientes para evidenciar a referida relação de interioridade: supostamente, seria evidente

que a fronteira de um dos círculos (sua circunferência) seria interna à do outro; caso contrário,

a prova seria um nonsense na medida exata em que não haveria como aventar a possibilidade

de que fossem colapsáveis (coincidíveis ou ajustáveis) os dois centros. Exatamente aí, porém,

iniciar-se-ia a dificuldade que se intenciona indicar: a mesma razão que permitiria concluir

que um círculo é interno ao outro – qual seja, a possibilidade de que sejam colapsáveis –,

provaria a preponderância das aparências dos dois círculos sobre o postulado 3; i.e., indicaria

ser insustentável a interpretação proposta por Levi acerca desse postulado, exposta na seção

3. Com a intenção de melhor fundamentar essa afirmação, importa reapresentar sua

argumentação.

Na ocasião da seção 3 viu-se que Levi interpreta os postulados como princípios que

expressariam existência e unicidade; constatou-se de que modo o autor define o significado

do termo construir. Primeiramente, o autor afirma que os termos traçar e descrever, presentes

nos postulado 1 e 3, significam um “fazer” que “[…] evidentemente...tem sentido existencial,

intelectivo [...]”; subsequentemente, propõe traduzir esse “fazer” pela expressão “existe e é

único”: “[…] [e]xiste e é único o segmento que une dois pontos quaisquer” e “existe e é única

a circunferência em um plano dado, com centro dado e por um ponto dado no plano” (LEVI,

2008, p. 103); e, finalmente, propõe que se interprete o termo “existe” por “pode-se”:

Com a enunciação dos postulados, entendemos que Euclides quis esclarecer o “existe” como “pode-se”. Mas, qualquer que seja a palavra, pede que o leitor tenha refletido bastante para conceber – e considerar sem contradição – os conceitos enunciados, com as propriedades que lhes são atribuídas...Para ajudar a linguagem com o desenho, esses conceitos poderão, em cada caso, ser representados por figuras, e isso justifica o “pode-se”. Mas está sempre compreendido que a afirmação do geômetra não se refere à imagem física, e sim ao conceito mental que com ela se quer representar [...] Fica

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assim definido o significado de construir. (LEVI, 2008, p. 104-105.)

Posto isso, das constatações de que são tangentes e de que um é interno ao outro, seguir-se-ia

– necessariamente – que os círculos teriam dois centros e duas distâncias.

Enfim, por um lado, levando-se em conta a leitura de Levi concernente ao postulado 3,

conclui-se ser um despropósito uma demonstração tal como III.6; e, por outro, levando-se em

conta o fato de que Euclides apresenta a referida demonstração, conclui-se que a interpretação

de Levi torna-se insustentável. Caso essa breve análise esteja correta, restaria interpretar o

termo descrever presente no postulado 3 como um fazer em sentido lato; i.e., esse princípio

permitiria obter-se um círculo qualquer pela descrição de uma linha com um centro e

distância – distância cuja igualdade entre aquele e a linha descrita asserida na definição 15

seria, ademais, garantida pelo emprego de uma medida comum que a conservasse ao longo do

traçado.

A possibilidade de que sejam colapsáveis os centros dos dois círculos somente é possível

se o postulado 3 for visto como uma espécie de regra que autoriza e indica como obter

círculos cujos traçados seriam, por sua vez, os objetos próprios da demonstração a serem

comparados segundo as finalidades e estratégias da prova por meio das noções comuns – à

semelhança do modo como são comparados os objetos do curso ordinário da experiência.

Ademais, na medida em a prova indireta III.6 explicita a preponderância da aparência dos

círculos descritos com relação ao círculo cujas propriedades estariam completamente

determinadas pelo postulado 3 independentemente do traço material, ela também funciona

como objeção à interpretação formal de que as determinações de igualdade obtidas pelo

emprego das noções comuns seriam advindas da comparação de todas as linhas traçadas (retas

e círculos) com linhas completamente determinadas pelos postulados. Sendo assim, a verdade

demonstrada em III.6 dependeria exclusivamente da possibilidade de serem visíveis as

diferenças entre os comprimentos das FE e FB – o que, por fim, coincidiria com a

subsequente leitura que se supõe coerente com as teses de Hume.

Na medida em que Euclides dispõe dois círculos visivelmente não concêntricos, a

demonstração mostraria em que sentido a conclusão é “perfeita”; na medida em que Euclides

generaliza a conclusão demonstrada, III.6 explicitaria em que sentido é “imperfeita”. Por um

lado, a perfeição da verdade demonstrada estaria assegurada pela disposição da particular-

lembrete, i.e., estaria atrelada a círculos visivelmente excêntricos – à semelhança dos dispostos

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por Euclides; por outro, estaria limitada pela generalização da conclusão, i.e., sujeita à

imaginação que poderia dispor dois outros (particulares-lembrados) círculos tangentes com

distâncias (raios) cuja diferença fosse suficientemente pequena para a qual “[…] não

possuímos [possuiríamos] nenhum critério…que seja [fosse] tão preciso a ponto de nos

assegurar da verdade […]” generalizada – ou seja, de sua exatidão.

Uma vez que a exatidão de III.6 dependeria de que fosse perceptível a diferença entre

os raios dos círculos em questão (i.e., dependeria da adequabilidade das particulares

consideradas), III.6 mostraria por que “[j]á observei que [na] geometria, arte pela qual

determinamos as proporção das figuras […] [o]s primeiros princípios são sempre extraídos da

aparência geral dos objetos; e essa aparência jamais pode nos proporcionar uma segurança

quando se trata de examinar a prodigiosa minúcia de que a natureza é capaz” (HUME, 2009,

p. 99). Vista sob esse aspecto, enfim, a prova por reductio em questão justificaria as razões de

“[…] minha intenção…[de] apenas sensibilizar o leitor para a verdade de minha hipótese: […]

a crença é mais propriamente um ato da parte sensitiva que da parte cogitativa de nossa

natureza” (HUME, 2009, p. 216-217).

Quanto à natureza das provas indiretas em sentido geral, parece que a questão somente

vem ao caso em virtude do estatuto conferido aos postulados e às noções comuns nos moldes

daquele conferido por Levi; ou seja, parece que o autor – que de fato procura determinar a

natureza dessas provas – somente precisa fazê-lo na medida em que desafiam sua própria

concepção acerca dos referidos princípios. As dificuldades que encontra na tarefa de explicá-

la evidenciam-se por sua própria pena.

Na medida em que não se ocupa com a III.6, mas com a I.27, propõe-se apresentar as

observações gerais que tece acerca da natureza dessa última, com a finalidade de evidenciar

seu fadado esforço. Nas páginas 154-155 de seu Lendo Euclides, Beppo Levi procura explicar

a natureza de uma demonstração indireta através de uma relação lógica que ele aponta e

afirma existir entre I.27 e o postulado 5:

O postulado 5 tem, com relação à proposição I.27, exatamente a função de proposição inversa, e podemos pensar que esta consideração valesse como justificativa para sua aceitação, do mesmo modo como os empiristas modernos acham conveniente afirmar a origem experimental dos postulados…É importante, pelo contrário, ter a segurança (e não apenas a convicção) da independência do postulado euclidiano no sentido de que…temos bem o direito de construir nossa geometria em cima da afirmação da verdade do postulado…e de fundamentar sobre ela a teoria dos instrumentos físicos,

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interpretando como fenômenos físicos os resultados nem sempre concordantes da comparação das afirmações lógico-geométricas com os dados da experiência. [Grifo meu]. (LEVI, 2008, p. 153-154.)

O trecho posterior ao grifo indica o esforço de Levi para sustentar sua visão lógico-

geométrica de Os Elementos frente à sua própria subscrição da justificativa proposta pelos

empiristas modernos: I.27 apenas reafirmaria a intuição humana expressa no postulado 5, a

despeito da própria demonstração cujo único sentido por ele mesmo subscrito consistiria em

afirmar a origem do postulado. Em última instância, sua argumentação parece querer dizer

que Euclides teria forjado provas desnecessárias tão somente para justificar os postulados

diante, supõe-se, de empiristas antigos – uma vez que Euclides estaria certo de que os

referidos princípios expressavam algo como a geometria da intuição humana. Ainda que,

apesar dessas dificuldades, essa justificação fosse aceita, destaque-se que ela não se prestaria

para explicar a natureza de III.6. Para percebê-lo, basta observar em que consiste a inversão

entre a demonstração I.27 e o postulado 5.

O postulado 5 afirma “[sc. fique postulado que], caso uma reta, caindo sobre duas retas,

faça ângulos interiores e do mesmo lado menores que dois retos, sendo prolongadas as duas

retas ilimitadamente, encontrarem-se no lado no qual estão os menores que dois retos”

(EUCLIDES, 2009, p. 98); quer dizer: se as retas não se encontram, os ângulos interiores e do

mesmo lado não são menores que dois retos. A proposição I.27, por seu turno, afirma que

“[c]aso uma reta, caindo sobre duas retas, faça ângulos alternos iguais entre si, as retas serão

paralelas entre si” (Idem, p. 119); quer dizer, afirma exatamente o mesmo que o princípio: se

as retas não se encontram (Euclides apresenta duas retas paralelas), os ângulos não são

menores que dois retos (de fato, o enunciado da proposição afirma que são iguais). Euclides

chega ao absurdo supondo que as paralelas se encontram em um dos lados e,

subsequentemente, esgota as impossibilidades de que o princípio não seja verdadeiro ao dizer

que “[…] o mesmo será provado […]” (EUCLIDES, 2009, p. 119) com relação ao outro lado.

A razão por que a justificativa dirigida à prova por reductio I.27 não se aplica à III.6

consistiria, enfim, no fato de que para haver uma inversa, seja contrapositiva ou conversa,

deve haver uma afirmação condicional, como é o postulado 5, mas não o postulado 3. Fica

evidente que a relação lógica por ele apontada não constitui uma boa explicação.

Levi, já se disse, não aborda outra prova por reductio. Porém, parece certo que ao

deparar-se com a III.6 e munido de sua tese, dirigir-se-ia ao postulado 3 – postulado que,

afinal, refere-se a círculos. Caso estejam corretas as considerações aqui apresentadas, enfim,

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percebe-se que o autor precisaria pensar em outra alternativa explicativa. Além disso, dada a

suposta diferença de natureza que se observaria já entre III.6 e I.27, poder-se-ia supor que

determinar a natureza das provas por reductio em geral seria o mesmo que determinar a

natureza de cada uma delas; o que, em última instância, não seria outra coisa senão analisar

provas cuja diferença não seria de natureza, mas de estratégia – caso se queira. Posto isso, a

questão da natureza das provas indiretas se deslocaria para o âmbito da pergunta pela natureza

das provas geométricas em geral, a despeito da estratégia empregada com vistas nas

proposições a serem demonstradas.

Quanto às possíveis críticas concernentes ao fato de se ter deixado de lado a natureza

das provas,

[d]ir-se-á provavelmente que meu raciocínio é irrelevante, e que eu explico somente a maneira como os objetos afetam os sentidos, sem dar conta de sua natureza e operações reais…Respondo a essa objeção confessando-me culpado, e admitindo que minha intenção nunca foi penetrar na natureza dos corpos ou explicar as causas secretas de suas operações…No momento, contento-me em conhecer perfeitamente a maneira como os objetos afetam meus sentidos e as conexões que eles mantêm entre si, até onde a experiência disso me informa…[em] explicar tão somente a natureza e as causas de nossas percepções, ou seja, de nossas impressões e ideias. (HUME, 2009, p. 91-92.)

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6 CONCLUSÃO

Deseja-se, à guisa de conclusão, sugerir a razão por que Hume não propõe, no âmbito

das generalizações, uma expressão análoga à 'verdadeira perfeição' por ele proposta no

contexto das expressões de exatidão – mas, ao invés disso, no contexto das verdades gerais

reconhece e sustenta uma deficiência que marca a geometria nos termos de uma equivocada

aspiração à perfeição absoluta. Com a apresentação dessa sugestão, ademais, pretende-se

esclarecer uma incoerência que se insinua na argumentação de Hume.

Na segunda seção, ficou estabelecido que 1) não se poderia atribuir imperfeição ao

caráter sempre aperfeiçoável dos instrumentos e técnicas de medição disponíveis uma vez

que a limitação dos sentidos mostraria que a verdadeira perfeição seria assim; e que 2) não se

poderia atribuir imperfeição ao fato de serem “imperfeitas” as impressões na medida em que

precisamente esse fato mostraria que a outra “perfeição” seria, no contexto da filosofia da

geometria de Hume, mera imaginação; i. e, ficção. Constrita à verdadeira perfeição advinda

da ideia de igualdade, a imaginação não podia ultrapassar a limitação dos sentidos sob pena

de envolver-se “[…] em uma cadeia de pensamentos […] ” e “[…] dar continuidade a ela

mesmo na falta de seu objeto […] como uma galera posta em movimento pelos remos […]”:

Hume afirma “[…] ser essa a razão pela qual, após considerar diversos critérios aproximados

de igualdade, e corrigi-los uns pelos outros, passamos a imaginar, para essa relação, um

critério tão correto e exato que não é possível o menor erro ou variação” (HUME, 2009,

p.231). Salientou-se, por fim, que a única deficiência da geometria viria à tona na terceira

seção nos termos de uma aspiração à perfeição absoluta concernente à generalidade

geométrica.

Na quarta seção, por sua vez, observou-se que a limitação da generalidade deveu-se

exatamente aos mesmos critérios últimos dos sentidos e da imaginação: viu-se de que modo a

disposição das retas de I.15 apontava a falibilidade da generalidade propriamente por não se

dispor de “[…] nenhum critério de reta…tão preciso a ponto de nos assegurar da verdade

dessa proposição.” Enfim, a incoerência inicialmente referida se insinua na medida em que

Hume sustenta essa limitação como uma verdadeira imperfeição ou deficiência que, em

última instância, deve-se à verdadeira perfeição por ele estabelecida.

Hume pode dirigir a objeção concernente às fictícias exatidões a arbitrárias

interpretações matemáticas de Os Elementos: na medida exata em que nos Elementos – o

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objeto de sua empiria – não se encontra qualquer asserção que não permita não fazê-lo, o

autor pode afirmar que as igualdades euclidianas seriam como as suas igualdades – i.e.,

interpretáveis nos termos de sua verdadeira perfeição. Porém, de fato, não pode fazer o

mesmo com relação à generalidade: encontra literais afirmações gerais impressas no

Elementos de Euclides – que, enfim, interpreta como uma deficiência nos termos de uma

equivocada aspiração à certeza completa. Ou seja, enquanto no âmbito da exatidão das

igualdades o autor objeta outras interpretações de Os Elementos opondo-lhes a sua nos

termos de uma procedente e literal interpretação das asserções euclidianas, no âmbito da

generalidade o autor deixa de lado tanto as outras interpretações quanto não empreende

qualquer esforço de interpretar a aludida aspiração – de fazê-la encaixar em suas teses – para

fornecer uma crítica direta àquilo que encontra em Os Elementos.

A referida aparência de incoerência adviria, afinal, de uma postura ambígua de Hume,

que oscilaria entre fazer filosofia da geometria e fazer geometria e que, precisamente diante

das generalizações das conclusões, o autor, ao invés de propor alguma especulação que as

explicasse (tal como dizer que seria natural ou evidente para Euclides que as generalidades se

referiam a figuras com inclinações adequadas à semelhança das figuras dispostas nas

demonstrações, etc.) teria deixado indícios da proposta que nunca teria efetivamente

apresentado: sugere-se que caso Euclides tivesse apresentado todas as suas conclusões nos

moldes da conclusão de I.1 (“[p]ortanto, ‘o’ triângulo ABC é equilátero e foi construído sobre

‘a’ reta limitada dada AB; o que era preciso fazer [grifos meus]”), Hume teria podido fechar o

ciclo de suas considerações, opondo a possíveis interpretações afeitas a generalidades

absolutas, um termo tal como ‘verdadeira generalidade’ – o que, ademais, não quereria dizer

que as conclusões seriam meramente particulares, mas que seriam extensíveis tão somente a

todas as ideias particulares semelhantes às copiadas das figuras qua “lembretes”, ou seja, a

todas àquelas que se apresentassem com inclinações, distâncias e dimensões adequadas.

A caracterização das particulares qua “lembretes” esclarece de que modo a verdadeira

perfeição torna inexata a generalidade tanto no âmbito das verdades demonstradas quanto no

âmbito dos primeiros princípios: na medida em que 1) as particulares prontamente evocadas

na imaginação pelas particulares qua “lembretes” constituem os crivos da exatidão de ambos

os gêneros de asserções gerais, e, na medida em que 2) a capacidade da mente não é infinita,

segue-se sempre possível que ideias legítimas e inadequadas a princípio negligenciadas se

amontoem à nossa frente fazendo-nos perceber a falsidade da proposição, que, entretanto era

verdadeira em relação à particular inicialmente considerada (HUME, 2009).

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REFERÊNCIAS

EUCLIDES. Os Elementos. Trad. Irineu Bicudo. Editora UNESP. São Paulo, 2009.

HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Trad. Déborah Danowski. Editora UNESP. São Paulo, 2009.

MANDERS, K. Diagram-Basead geometric Pratice. In: P, Mancosu. The Philosophy of Mathematical Practice. Oxford: Oxford University Press, p. 65-79, 2008.

LEVI, Beppo. Lendo Euclides: a matemática e a geometria sob um olhar inovador. Editora Civilização Brasileira. Rio de Janeiro. 2008.