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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
INSTITUTO DE LINGUAGENS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LINGUAGEM
DINAURA BATISTA DE PÁDUA
A POLÊMICA EM TORNO DO LIVRO DIDÁTICO
“POR UMA VIDA MELHOR”: (DES)CONSTRUINDO SENTIDOS
CUIABÁ-MT 2014
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DINAURA BATISTA DE PÁDUA
A POLÊMICA EM TORNO DO LIVRO DIDÁTICO “POR UMA VIDA MELHOR”: (DES)CONSTRUINDO SENTIDOS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso como exigência parcial para obtenção do título de Mestre em Estudos de Linguagem, sob a orientação da professora Dra. Simone de Jesus Padilha.
Área de Concentração: Estudos Linguísticos.
Linha de Pesquisa: Práticas Discursivas e Textuais – Múltiplas Abordagens.
CUIABÁ 2014
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Àqueles que me trouxeram a esta vida e - mesmo sem terem
frequentado uma sala de aula e nunca terem tido a
oportunidade e o prazer de ler um livro - me ensinaram, desde
a infância, a importância da leitura e da formação escolar: meu
pai, João Batista Filho (in memoriam) e minha mãe, Maria da
Silva Batista.
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AGRADECIMENTOS
A Deus, por me permitir esta caminhada em busca do conhecimento e da
qualificação profissional, pois sem Ele, nada em minha vida valeria a pena.
A minha família, por sempre acreditar na minha capacidade de ir além e por torcer
pela minha vitória.
Ao meu filho, Ruan Batista de Pádua, espelho do espelho que sou eu, por definir o
meu papel nesta terra.
Ao meu esposo, Rone Batista de Pádua, por me mostrar o caminho das Letras e me
ensinar a sonhar.
À minha querida orientadora, Professora Doutora Simone de Jesus Padilha –
professora, educadora, pesquisadora, amiga, parceira – que desde a graduação me
acolheu no grupo de monitoria em Estudos de Linguagem, plantando a semente da
pesquisa que hoje se concretiza. Muito grata pela amizade, dedicação, carinho,
paciência, conversas, discussões, apoio, orientações e ensinamentos sobre o
Círculo de Bakhtin; por me ajudar a dar os primeiros passos, sendo uma grande
companheira e guia nesta caminhada.
Ao Professor Doutor Adail Sobral, pela amizade sincera, mesmo que virtualmente, e
pelas valiosas orientações que qualificaram este trabalho. Muito grata pelo olhar
exotópico através do qual nos revelou outros fios dialógicos que haviam ficado pelo
caminho nesse grande novelo emaranhado de palavras e contrapalavras.
À Professora Doutora Maria Inês Pagliarini Cox, pela leitura atenta e pelas
excelentes contribuições que deram a este trabalho a qualidade de que carecia, nos
revelando o valor de cada capítulo desta construção dialógica.
À Universidade Federal de Mato Grosso, pela concessão do afastamento das
atividades laborais, sem a qual seria impossível a realização da pesquisa.
A todos os colegas de trabalho pela torcida e compreensão durante a minha
ausência, em especial, ao Luis Antonio, Bruno, Priscila e Valéria.
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Aos professores do Programa de Mestrado em Estudos de Linguagem, pelo apoio e
pela torcida durante a realização das atividades de pesquisa.
À Pró-Reitoria de Pós-Graduação da UFMT, em especial às servidoras Adriana,
Darlene e Élida, que nos auxiliaram com informações e orientações importantes
durante essa trajetória.
Aos funcionários da Secretaria do PPGEL, Wynne, Julianny e Nelson, pela
colaboração diária com nossas pesquisas.
À doce e tão querida Professora Doutora Maria Rosa, pelo carinho e amizade.
Aos colegas do Grupo de Pesquisa Relendo Bakhtin - Rebak, pelas interações que
edificaram nossas pesquisas.
Às amigas, Verônica e Viviane, pelas orientações cuidadosas no meu processo de
seleção para ingresso nesta Pós-Graduação.
À querida Shirlei, pela amizade franca, pelas conversas esclarecedoras sobre as
teorias do Círculo de Bakhtin e pela parceria no desenvolvimento deste trabalho.
Aos amigos que cultivei durante esta trajetória, pelo carinho, pelas conversas, pelas
trocas e pelas parcerias estabelecidas. Agradeço a vocês – Anderson, Angélica,
Camila, Diego, Eliana, Heloisa, Jean, Karla, Leny, Lucimeire, Mariana, Moisés,
Nádia, Neila, Paulo, Rosemary, Rosenil, Sebastiana, Sérgio, Suammy - por me
mostrarem o valor da amizade. Nossos encontros e desencontros, assim como
nossos confrontos, nos fizeram seres melhores, a cada vivência.
Aos amigos da graduação - Ardalla, Carla, Josilene, Michel, Rute e Sonymar -, que
estiveram presentes nesta trajetória, sempre torcendo.
Aos meus compadres queridos, Clélia, Vandelvan, Benedito e Timóteo, pela
presença constante em todos os momentos.
A minha querida amiga Waldirene, pela amizade plena, e à sua família, que me
adotou com tanto carinho desde 1994 - “A ETF tem gente de verdade!”.
A todos os Outros que me constituem o Sujeito que eu sou, a cada dia, Muito Grata.
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Além do espelho
Quando eu olho o meu olho além do espelho Tem alguém que me olha e não sou eu
Vive dentro do meu olho vermelho É o olhar do meu pai que já morreu
O meu olho parece um aparelho De quem sempre me olhou e protegeu
Assim como meu olho dá conselho Quando eu olho no olhar de um filho meu
A vida é mesmo uma missão A morte é uma ilusão Só sabe quem viveu
Pois quando o espelho é bom Ninguém jamais morreu
Sempre que um filho meu me dá um beijo Sei que o amor do meu pai não se perdeu
Só de olhar teu olhar sei seu desejo Assim como meu pai sabia o meu
Mas meu pai foi embora no cortejo E no espelho eu chorei porque doeu
Só que vendo o meu filho agora eu vejo Ele é o espelho do espelho que sou eu
A vida é mesmo uma missão A morte é uma ilusão Só sabe quem viveu
Pois quando o espelho é bom Ninguém jamais morreu
Toda imagem no espelho refletida Tem mil faces que o tempo ali prendeu
Todos têm qualquer coisa repetida Um pedaço de quem nos concebeu
A missão do meu pai já foi cumprida Vou cumprir a missão que Deus me deu Se meu pai foi o espelho em minha vida
Quero ser pro meu filho espelho seu
A vida é mesmo uma missão A morte é uma ilusão Só sabe quem viveu
Pois quando o espelho é bom Ninguém jamais morreu
(João Nogueira)
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RESUMO
Este trabalho tem por finalidade a elaboração de uma análise dialógica dos discursos que emergiram na esfera midiática por ocasião da polêmica do livro didático “Por uma vida melhor”, a qual teve seu início a partir de maio de dois mil e onze, tendo sido destaque em diversas emissoras de TV e Rádio, além de revistas, jornais, blogs e sites oficiais. Para tanto, buscamos embasamento na fundamentação teórico-metodológica presente nos construtos teóricos do Círculo de Bakhtin, a partir da concepção dialógica da linguagem, tendo em vista que a leitura desses textos revelou um intenso diálogo, em que, na visão bakhtiniana, um texto “respondia ao outro”, um texto era “contrarresposta” de outro, numa cadeia dialógica ininterrupta. A análise do corpus selecionado baseia-se no método sociológico para estudo da linguagem, por meio do qual situamos a esfera de produção, circulação e recepção desses discursos, descrevemos as especificidades e regularidades do gênero e evidenciamos estratégias linguísticas e enunciativas utilizadas para produção de sentidos nessas relações sociais, indicando para índices de valoração ética e política. Percebendo a linguagem como local privilegiado de interação entre sujeitos, a partir da análise empreendida, descrevemos e explicamos as práticas discursivas que se instauraram na esfera midiática por ocasião da polêmica, revelando as vozes presentes nessas relações enunciativas, identificando suas posições ideológicas frente ao evento. Os resultados de nossas análises apontam para marcas discursivas de um diálogo sem fim em torno da polêmica, por meio do qual vozes sociais oriundas de diferentes esferas (políticas, acadêmicas, cientificas, religiosas, e, sobretudo, do senso comum) valoram por meio da palavra. Essas vozes dialogam não apenas sobre o livro em si, mas sobre suas atitudes perante a língua e suas variações, o ensino de língua materna, a ciência linguística e o professor/pesquisador de Língua Portuguesa e, ainda, sobre a autora do livro, professora Heloísa Ramos, o governo federal, o Partido dos Trabalhadores, o Ministério da Educação e o Ministro Fernando Haddad. Esses diálogos são evidenciados por movimentos de aproximação ou distanciamento do discurso do outro e convocação de outras vozes. Entre as estratégias utilizadas pelos enunciadores nas formações enunciativas analisadas, destacamos: o uso de termos presentes em discursos anteriores, a fim de retomar ou dar novo sentido ao que foi dito; uso de pontuações, aspas, negritos, itálicos, parênteses; uso do discurso direto ou indireto; uso do verbo na voz passiva; mudanças de tempo verbal (futuro do pretérito) para colocar em dúvida um acontecimento, um fato social; uso de adjetivos e substantivos para caracterizar o outro de quem se fala; uso de memórias, como a professora do ensino fundamental, além de escritores renomados de nossa literatura clássica, como argumentos de autoridade, a fim de ganhar a credibilidade de seus leitores. Tais resultados apontam para a relevância do estudo das práticas discursivas construídas na esfera midiática, demonstrando as possibilidades heurísticas dos construtos teóricos bakhtinianos, sobretudo da concepção dialógica da linguagem.
Palavras-chave: Linguagem. Diálogo. Relações enunciativas. Posições ideológicas.
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ABSTRACT
This paper aims at developing a dialogical analysis of the discourses which emerged in the media sphere because of the controversy of the textbook "Por uma vida melhor", which had its beginning in May 2011, having been featured on various radio and TV stations, plus magazines, newspapers, blogs and official websites. To this end, we seek grounding in the theoretical-methodological basis present in the theoretical constructs of the Bakhtin Circle, from the dialogical conception of language, given that the reading of these texts revealed an intense dialogue, in which, in Bakhtin's view, a text "replied the other", a text was "response" of another, in an unbroken dialogical chain. The analysis of the selected corpus is based on the sociological method to the study of language, through which we place the sphere of production, circulation and reception of these discourses, describe the characteristics and regularities of the genre and highlight linguistic and enunciative strategies used to produce meanings in these social relations, indicating to ethical and political valuation. Realizing the language as a privileged site of interaction between subjects, from the analysis undertaken, we describe and explain the discursive practices that have established in the media sphere because of the controversy, revealing the voices in these enunciative relations, identifying their ideological positions in face of the event. The results of our analysis indicate discursive marks of an endless dialogue around the controversy, whereby social voices from different spheres (political, academic, scientific, religious, and above all, common sense) valuate through word. These voices dialogue not only on the book itself, but about their attitudes towards language and its variations, the first language teaching, the linguistic science, and the teacher/researcher of Portuguese Language and, also, about the book's author, Professor Heloisa Ramos, the federal government, the Workers' Party, the Ministry of Education and the Minister Fernando Haddad. These dialogues are evidenced by movements of approach or distancing from the speech of the other and the calling of other voices. Among the strategies used by the enunciators in the enunciative formations analyzed, we highlighted: the use of terms present in previous speeches, in order to resume or give new meaning to what was said; use of punctuation, quotes, bolds, italics, parentheses; use of direct or indirect speech; use of the verb in the passive voice; changes of tense (conditional tense) to cast doubt on an event, a social fact; use of adjectives and nouns to characterize the other of whom one speaks; use of memories, as the elementary school teacher, besides renowned writers of our classical literature, as arguments of authority, in order to gain the credibility of readers. These results point to the relevance of the study of discursive practices constructed in the media sphere, demonstrating the heuristic possibilities of Bakhtinian theoretical constructs, especially the dialogical conception of language. Keywords : Language . Dialogue. Enunciative relations. Ideological positions.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 13
Para início de conversa... ............................................................................................. 13
CAPÍTULO 1 ............................................................................................................. 19
LÍNGUA PORTUGUESA: BREVE PERCURSO HISTÓRICO ................................... 19
1.1 Português no Brasil: a língua do colonizador ....................................................... 19
1.2 O português como disciplina curricular ............................................................... 21
1.3 Políticas públicas para a educação ....................................................................... 26
1.4 Linguagem na escola: diferenças e deficiências ................................................. 31
CAPÍTULO 2 ............................................................................................................. 36
REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO ......................................................... 36
2.1 Concepção dialógica da linguagem ...................................................................... 37
2.2 Tecendo os fios do diálogo social ......................................................................... 41
2.3 Construção de sentidos e posições ideológicas .................................................. 46
2.4 O diálogo e suas vozes .......................................................................................... 51
2.5 Sobre conceitos e métodos .................................................................................... 55
CAPÍTULO 3 ............................................................................................................. 60
POR UMA ANÁLISE DIALÓGICA DE DISCURSOS ................................................. 60
3.1 Situando a esfera e os gêneros ............................................................................. 63
3.2 As vozes do G1 em diálogo ................................................................................... 66
3.3 Veja: “a dona do português” ................................................................................... 74
3.4 Palavras e contrapalavras ...................................................................................... 79
3.4.1 A batalha das ignorâncias .......................................................................... 83
3.4.2 “Coisa de petista” ....................................................................................... 85
3.4.3 Vozes guardadas na memória ................................................................... 88
CONSIDERAÇÕES FINAIS ...................................................................................... 94
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 99
ANEXOS ................................................................................................................. 103
Escrever é diferente de falar ...................................................................................... 103
Texto 1 .......................................................................................................................... 120
Texto 2 .......................................................................................................................... 122
Texto 3 .......................................................................................................................... 124
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Texto 4 .......................................................................................................................... 127
Texto 5 .......................................................................................................................... 129
Texto 6 .......................................................................................................................... 132
Texto 7 .......................................................................................................................... 139
Texto 8 .......................................................................................................................... 144
Texto 9 .......................................................................................................................... 146
Texto 10 ........................................................................................................................ 150
Texto 11 ........................................................................................................................ 152
Texto 12 ........................................................................................................................ 155
Texto 13 ........................................................................................................................ 157
Texto 14 ........................................................................................................................ 159
Texto 15 ........................................................................................................................ 161
Texto 16 ........................................................................................................................ 164
Texto 17 ........................................................................................................................ 167
Texto 18 ........................................................................................................................ 170
Texto 19 ........................................................................................................................ 172
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INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como mote a polêmica iniciada em maio de dois mil e onze
a respeito do livro didático “Por uma Vida Melhor”, distribuído pelo Ministério da
Educação (MEC) para turmas de Educação de Jovens e Adultos (EJA) em todo o
Brasil.
Em treze de maio daquele ano, uma emissora de televisão nacional divulgou
matéria em horário nobre com a seguinte manchete1:
A celeuma deu-se em torno de algumas sentenças retiradas do livro, e
utilizadas pela autora para comentar sobre o Preconceito Linguístico. São elas: “nós
pega o peixe”; “os menino pega o peixe” e “os livro ilustrado mais interessante estão
emprestado”. Retiradas do capítulo 1 do livro, intitulado "Escrever é diferente de
falar" (Anexo 1 deste trabalho) - que apresenta a proposta de ensino aos estudantes,
mostrando as diferenças entre a norma padrão, exigida pela gramática normativa, e
as variantes populares, utilizadas em situações mais informais –, tais sentenças
passaram a ser utilizadas, extraídas de seu contexto de produção, para difundir a
ideia de língua única típica da Rede Globo.
Nessa apresentação do livro, os autores propõem um ensino de língua
portuguesa partindo do “uso popular” do idioma, considerando as variedades do uso,
nos níveis fonéticos, morfológicos e sintáticos. Como podemos observar no recorte
abaixo:
1 http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2011/05/mec-defende-que-aluno-nao-precisa-seguir-algumas-
regras-da-gramatica-para-falar-de-forma-correta.html, acesso em 19/12/2013.
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Notamos que o título do capítulo em questão, “Escrever é diferente de falar”,
já revela a preocupação com o bom emprego da língua no registro formal, próprio da
escrita. A nossa leitura evidencia que o livro não propõe uma sobreposição da
linguagem oral sobre a linguagem escrita em qualquer circunstância. Porém,
observamos o cuidado dos autores em mostrar a importância de não se estigmatizar
os usos populares da língua, reconhecendo, em vez disso, a validade do seu
funcionamento.
O assunto foi destaque em diversas emissoras de TV e Rádio, além de
revistas, jornais, blogs e sites oficiais. Diferentes pontos de vista sobre a questão da
língua e sobre o ensino-aprendizado da língua materna vieram à tona. Foram
levantadas, ainda, muitas críticas ao governo federal, representado pelo Ministério
da Educação, e a uma das autoras do livro, Heloisa Ramos, professora aposentada
da rede pública de São Paulo que ministra cursos de formação para professores.
Sendo um assunto socialmente relevante, dada a sua repercussão, notamos
no debate que se instaurou com o livro “Por uma Vida Melhor” uma oportunidade de
investigação das formações enunciativas que constituíram a polêmica, uma vez que
a leitura desses textos revelou um diálogo bastante intenso, em que, na visão
bakhtiniana, um texto “respondia ao outro”, um texto era “contrarresposta” de outro,
numa cadeia dialógica ininterrupta.
Assim, surgiu a ideia de elaborar uma análise discursiva tomando tal material
como base, a fim de identificar vozes em diálogo (divergentes ou convergentes) e
suas posições ideológicas em relação ao evento, evidenciando ainda os recursos
linguísticos utilizados nessas formações enunciativas.
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Notamos que muito se tem discutido, em anos recentes, sobre o papel central
dos gêneros do discurso como objeto e instrumento de trabalho para o
desenvolvimento da linguagem na escola. Acerca disso, as Orientações Curriculares
para o Ensino Médio, ao traçar o perfil do aluno, destacam que:
Nesse trabalho de análise, o olhar do aluno, sem perder de vista a complexidade da atividade de linguagem em estudo, deverá ser orientado para compreender o funcionamento sociopragmático do texto – seu contexto de emergência, produção, circulação e recepção; as esferas de atividade humana (ou seja, os domínios de produção discursiva); as manifestações de vozes e pontos de vista; a emergência e a atuação dos seres da enunciação no arranjo da teia discursiva do texto; a configuração formal (macro e microestrutural); os arranjos possíveis para materializar o que se quer dizer; os processos e as estratégias de produção de sentido (2006, p. 32).
Nesse contexto, aspiramos buscar suporte nos estudos bakhtinianos,
pautando nossa leitura a partir de um exame atento da esfera de produção,
circulação e recepção dos textos selecionados, entendendo que:
os enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de
cada campo referido não só por seu conteúdo (temático), mas
também pelo uso da linguagem [...], acima de tudo, por sua
construção composicional (BAKHTIN, 2003, p. 261).
Pretendemos, portanto, a partir da leitura de uma seleção de textos, analisar
os diversos posicionamentos ideológicos - da mídia, da academia, dos órgãos
oficiais e do senso comum – acerca da discussão que se instaurou sobre o assunto
em pauta, considerando as apreciações valorativas das partes envolvidas nesses
diálogos.
Para isso, temos os seguintes objetivos:
1) Identificar as diferentes vozes presentes na esfera midiática por ocasião da
discussão instaurada com a divulgação do conteúdo/proposta do livro didático
“Por uma Vida Melhor”, buscando dados em notícias, artigos e colunas
assinadas (online).
2) Analisar os textos do corpus reunido, explorando as possibilidades de
mobilização da língua nessas formações enunciativas que revelem
apreciações éticas e políticas, com foco no dialogismo.
3) Contribuir com as discussões sobre as práticas discursivas, tendo como
base teórica a concepção dialógica da linguagem sob a perspectiva
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bakhtiniana, a partir da análise de discursos que circularam na mídia online ,
a respeito do livro didático.
Para alcançar tais objetivos, necessário se faz, primeiramente, elencar
algumas questões para alicerçar nossas reflexões:
1) Quais vozes podem ser percebidas no corpus reunido de textos sobre o
debate acerca do livro “Por uma vida melhor”?
2) De que forma esses textos dialogam entre si? A quem e/ou a que eles
respondem? Que recursos linguísticos utilizam para se posicionarem nesses
diálogos?
3) O que os textos analisados podem sugerir sobre a atitude dos colunistas,
comentaristas, blogueiros, perante a Língua Portuguesa, Ensino de LP,
Linguística e demais temas envolvidos na questão em debate?
A concepção dialógica da linguagem esclarece a construção da interação
discursiva na qual um discurso revela a existência de outros discursos em seu
interior, num jogo constante de influências e contestações, isto é, de encontros e
desencontros. Essa busca em elucidar um discurso com o auxílio de outro evidencia
as vozes constituintes do dialogismo, numa cadeia de ação mútua em que os
discursos mantêm relações de recepção e percepção de enunciados; e os sujeitos,
por meio de elementos sociais e históricos, conferem significados reais,
expressando pontos de vista sobre a realidade concreta.
Nessa perspectiva, iniciamos nosso primeiro capítulo com uma abordagem
sócio-histórica da constituição da Língua Portuguesa como língua nacional no Brasil,
e a constituição da Língua Portuguesa como disciplina curricular nas escolas
brasileiras, destacando os contextos que se refletiram nas principais mudanças
sociais que geraram os documentos que norteiam o atual currículo da disciplina. Por
fim, discutiremos o problema do fracasso escolar tratando ainda das diferenças
sociais e culturais que alimentam os preconceitos sobre o uso da língua.
No capítulo segundo traçamos nosso referencial teórico-metodológico a
partir da concepção dialógica da linguagem definida pelo Círculo de Bakhtin,
mobilizando alguns conceitos para nortearem esta investigação, com destaque para
discurso, enunciado, tema, significação, signo, ideologia, plurilinguismo,
plurivocalidade e exotopia.
O terceiro e último capítulo refere-se à análise do corpus por nós
selecionado. Por meio da leitura investida, evidenciaremos as diversas vozes que
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dialogam através desses discursos, os recursos linguísticos que utilizam para se
posicionarem ideologicamente, a quem essas vozes respondem nessas formações
enunciativas, pelo viés da concepção dialógica da linguagem.
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CAPÍTULO 1
LÍNGUA PORTUGUESA: BREVE PERCURSO HISTÓRICO
Pessanha (2004, p. 58) nos alerta que para conhecer conteúdos e entender
as práticas de ensino de determinada disciplina curricular, faz-se necessário, antes
de tudo, considerar as forças e os interesses sociais que envolvem suas histórias,
para então ousar propor mudanças ou adequações que atendam a novas
demandas.
Consonante a esse raciocínio, para dar início a este trabalho, percebemos a
necessidade de entender a formação da Língua Portuguesa como língua nacional no
Brasil e a constituição da Língua Portuguesa como disciplina curricular nas escolas
brasileiras, a fim de, a partir daí, estudar as diversas abordagens teóricas utilizadas
na elaboração dos documentos oficiais norteadores do ensino, e compreender os
rumos do ensino de Língua Portuguesa no atual contexto em que vivemos.
Ao final deste capítulo, apresentamos as leituras que empreendemos sobre
o problema do fracasso na/da escola, analisando as questões políticas e sociais em
torno desses tópicos, observando as diferenças e deficiências que geram os
preconceitos com relação não somente ao uso da língua, mas com relação àquele
que a usa, ao grupo social que esse sujeito representa.
1.1 Português no Brasil: a língua do colonizador
Se pensarmos a constituição da Língua Portuguesa no Brasil (ou em qualquer
outro país colonizado), perceberemos que a língua sempre foi utilizada como
instrumento de dominação. Os portugueses, por suas necessidades de contato com
os povos indígenas, a fim de estabelecer a exploração da colônia e, posteriormente,
dominar as nações que aqui viviam, trouxerem ao Brasil os Jesuítas para escolarizar
e catequizar os nativos. Tal empreendimento exigiu uma aproximação da língua
falada pelos índios, como que para participarem, para se integrarem àquele mundo,
para serem aceitos pelos selvagens, e depois, como nos mostra a história, impor a
sua língua como oficial, mantendo o seu domínio.
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Em face das relações entre as várias línguas faladas na colônia – o português
(trazido pelo colonizador), as línguas indígenas2 e o latim (que se estabeleceu com o
ensino secundário e superior dos jesuítas) -, surge outra língua, de base no tronco
Tupi, condensando várias línguas indígenas faladas no Brasil, chamada Língua
Geral do Grão-Pará.
Essa língua não portuguesa trazia interferências do português, e se constituía
de base indígena e marcas africanas. Era instrumento de comunicação entre leigos,
religiosos, senhores, escravos, índios, negros, mulheres e crianças, nas igrejas e
nas fazendas. Até a proibição de seu uso pelo Marquês de Pombal em 1758, a
língua geral era instrumento essencial de comunicação no cotidiano, utilizada como
meio de contato entre os nativos, os europeus e os negros escravos:
com a língua geral evangelizavam os jesuítas, nela escreveram peças dramáticas para a catequese; era ela que os bandeirantes falavam, com ela é que nomearam flora, fauna, acidentes geográficos, povoações; foi ela quase sempre a língua primeira das crianças, dos filhos tanto dos colonizadores quanto dos indígena (HOUAISS, 1985, p. 49, apud SOARES, 2004, p. 158).
A partir de 1758, em face da Reforma de Estudos inserida por Marquês de
Pombal em Portugal e suas colônias, a língua geral é terminantemente proibida,
passando a ser obrigatório o uso da Língua Portuguesa para patentear a dominação
lusitana sobre o Brasil. Essa reforma cria a primeira rede leiga de ensino, expulsa os
jesuítas, estabelece um ordenamento jurídico e administrativo, resultando numa
nova política linguística e cultural.
Assim, a partir da segunda metade do século XVIII, o português passa a ser a
língua nacional da Colônia, sobrepondo-se às demais, marginalizando-as. Isso se
explica pelo simples fato de que as línguas indígenas e africanas representam povos
escravizados, selvagens, primitivos, logo, povos sem voz. O Brasil colônia não tem
lugar para esses povos dominados, nem para suas vozes, nem para seus falantes. A
língua nacional deve ser a do colonizador. A língua do colonizador é a língua
legitimada nas relações sociais.
Esse fato histórico marcou definitivamente o fim de um processo que poderia ter definido outro destino linguístico para o Brasil. Daí por diante, a escolarização, o processo de urbanização crescente, a vinda da corte para o Brasil no início do século seguinte definiram a
2 Silva (2004, p. 49), lembrando que existem cerca de 1.500 línguas no território brasileiro (HOUAISS, 1985, p.
100), qualifica como glotocida esse processo histórico de contato entre línguas.
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língua portuguesa como a língua nacional e oficial (SILVA, 2004, p. 52).
Concomitante ao declínio da língua geral há o aumento do número de
portugueses no Brasil, falantes de diversos dialetos, oriundos de diferentes regiões
de Portugal. Essa nova Língua Portuguesa se constrói com marcas próprias,
processo natural a qualquer língua, pela interferência de línguas indígenas e
africanas que se encontraram com a portuguesa. Com o passar dos anos, apesar da
miscigenação cada vez mais crescente, “a ideologia aristocratizante do Brasil
Colônia passou ao Brasil independente e ainda predomina até hoje: teima-se em
desconhecer o Brasil pluriétnico, pluricultural, plurilíngue” (SILVA, 2004, p. 65).
1.2 O português como disciplina curricular
Soares (2004), ao traçar o percurso da constituição da disciplina “português”
no Brasil, observa, primeiramente, que, em cada período histórico, ela se define
pelas condições sociais, econômicas e culturais que influenciam a escola e o ensino,
pela natureza dos conhecimentos disponíveis e pela formação de professores.
A autora destaca que somente no fim do Império, nas últimas décadas do
século XIX, é que tal disciplina foi incluída no currículo escolar. Até então, a Língua
Portuguesa, melhor dizendo, o ler e o escrever em português, era utilizado apenas
como instrumento de alfabetização, não como disciplina curricular. Após, no ensino
secundário e superior, estudava-se a gramática da língua latina e a retórica.
Aqueles que tinham acesso a tais níveis escolares eram os oriundos das
classes privilegiadas, e que, logo, desejavam seguir os padrões educacionais da
época, que não valoravam a Língua Portuguesa como bem cultural capaz de se
estabelecer como disciplina curricular.
A Reforma Pombalina foi determinante para a estabilização da Língua
Portuguesa no Brasil e para a constituição e valorização do português como
disciplina curricular. Ao lado do ensino da língua, nas modalidades da leitura e
escrita, introduziu-se o ensino da gramática portuguesa, ainda que com um foco
predominantemente instrumental, isto é, como apoio para o estudo da gramática da
língua latina, a qual, assim como a retórica, persistiu como importante componente
curricular.
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Foi durante o século XIX, com a consolidação da disciplina do português na
escola e a exclusão do latim do sistema de ensino fundamental e médio, em face de
seu desprestígio social, que surgiram as primeiras (e numerosas) gramáticas da
Língua Portuguesa. E assim, embora tenha conquistado mais autonomia, a língua
permanece instituída como sistema de regras normatizado pela gramática.
Nesse mesmo período, a retórica passa a ser estudada pelo viés do uso nas
práticas sociais de comunicação, e não mais exclusivamente para fins eclesiásticos.
A poética, que antes era estudada dentro da retórica, ganha seu espaço e se
estabelece também como disciplina curricular. Somente no fim do Império as três
disciplinas (gramática, retórica e poética) passam a compor: o português. Mas, na
prática, até os anos 1940, nada mudou com relação ao ensino da disciplina, a qual
continuou a abranger as três áreas.
Além das inúmeras gramáticas, foram publicadas e distribuídas coletâneas de
textos. Até a década de 1950, esses materiais foram largamente utilizados em sala
de aula de Língua Portuguesa, cabendo ao professor a elaboração de análises,
comentários, questionários e exercícios a serem propostos aos seus alunos, a partir
desses materiais didáticos, os quais eram utilizados apenas como suporte e não
como guias.
Não havia à época faculdades de Letras, muito menos cursos de formação de
professores, e quem lecionava tais disciplinas eram os intelectuais oriundos das
elites sociais, geralmente formados em Filosofia ou Direito.
Lembremos, como já dissemos aqui, que apenas uma pequena parcela da
população brasileira da época, obviamente, os mais favorecidos financeiramente,
tinha acesso a essa educação. A fim de comprovar tal assertiva, Razzini (1992) nos
informa que até 1950, 51% da população brasileira com idade superior a 15 anos
não sabia ler e escrever. Isso demonstra que o acesso à escola e ao consumo de
bens culturais, como livros, revistas e jornais era legado apenas à pequena classe
dominante.
Entre os anos de 1950 e 1960, ocorrem no Brasil profundas modificações
sociais e culturais, levando a classe trabalhadora a reivindicar o acesso à educação
também para seus filhos. Tal mudança de público acarreta então mudanças de
conteúdo e disciplinas curriculares na escola, além de mudanças com relação às
funções e objetivos dessa instituição. Se a retórica, como arte do bem falar, era
ensinada aos filhos das classes dominantes para a manutenção de seu poder,
23
certamente não poderia ser ensinada a esses novos alunos que adentravam a
escola.
Iniciou-se uma corrida por recrutamento de professores, a fim de atender à
crescente demanda do alunado. Como consequência de tais transformações, o
professor de português passa a receber em seus manuais didáticos exercícios de
vocabulário, interpretação de textos, redação e gramática. A autonomia pela
condução da disciplina, antes legada aos professores (os quais, até então, em sua
maioria, eram formados em faculdades de Filosofia e Direito), a partir de então é
transmitida ao autor do livro didático, que, agora, contemplando gramática e texto,
passa a utilizar o texto como contexto para o ensino da gramática, seguindo, ainda,
a tradição do ensino jesuítico.
Com um recrutamento mais amplo e menos seletivo de profissionais
docentes, os quais já não têm mais autonomia no direcionamento do seu trabalho,
inicia-se um processo de depreciação da profissão e consequente reflexo no salário
dos professores e nas condições de trabalho, cada vez mais precárias. Tal realidade
leva o professor a conformar-se com a transferência da responsabilidade de
preparar aulas e exercícios ao livro didático. Somadas a isso, a ampliação de vagas
e consequente mudança nas características do alunado acarretaram sérios prejuízos
para as condições de ensino e de aprendizagem.
Em face da intervenção do governo militar em 1964, os anos de 1970
marcam mudanças nas disciplinas curriculares, em virtude da Lei nº5692/71 (Lei
de Diretrizes de Bases da Educação), que colocou a educação no contexto desse
governo, a serviço do desenvolvimento. Os anos de escolarização básica (1º
grau) passam de quatro para oito anos. Ampliam-se, cada vez mais, as
possibilidades de acesso à educação formal, que visava à inserção social do
indivíduo, isto é, a formação de cidadãos aptos para o mercado de trabalho a fim
de alavancar o desenvolvimento econômico do país.
Ao longo da década de 1970, a Teoria da Comunicação pautou o ensino de
Língua Portuguesa. O ensino assume, segundo Soares (2004), um caráter
utilitarista, e a disciplina de Português passa a se chamar Comunicação e Expressão
(séries iniciais do 1º grau), Comunicação em Língua Portuguesa (séries finais do 1º
grau) e Língua Portuguesa e Literatura Brasileira (2º grau).
Nesse contexto, a disciplina comporta elementos da teoria da comunicação,
em que ao aluno cabe o papel de emissor-receptor de códigos verbais e não-
24
verbais. A língua é concebida como instrumento de comunicação, em substituição à
concepção da língua como sistema de regras.
O objetivo do sistema de ensino é a formação de mão de obra, e o foco do
ensino do português é o expressar-se bem, desenvolver o uso da língua nas práticas
sociais. Como consequência, os livros didáticos passam a trazer textos publicitários,
quadrinhos, humor, a fim de ampliar o conceito de leitura, antes voltado mais para
recepção e interpretação de textos verbais, introduzindo os não-verbais. Além disso,
a oralidade passa a ser valorizada com a finalidade de desenvolver o uso da língua
em situações comunicacionais do cotidiano.
Faraco (2008, p. 186-187) comenta que, nesse período, ocorria a instalação
da primeira rede nacional de televisão no Brasil, época em que se repetia o bordão
“Quem não se comunica se trumbica”, pelo apresentador Chacrinha, fazendo ecoar
o discurso pedagógico legitimado pelo Estado. O autor afirma ainda que, mesmo a
gramática tendo um lugar acessório nos livros didáticos, o seu ensino continuou a
ser feito regularmente nas escolas, atitude justificada pela cobrança de tais
conhecimentos nos exame vestibulares.
Ao final da década de 1970, início de 1980, sob a influência da Linguística
Textual, o ensino do português se volta para os conhecimentos metalinguísticos,
destacando a coesão e a coerência como principais mecanismos para a elaboração
de um texto.
Em 1980, por determinação do Conselho Federal de Educação, a disciplina
volta a se chamar português em todos os níveis de ensino, em face dos avanços nas
áreas das ciências linguísticas.
Teorias linguísticas desenvolvidas pela Sociolinguística, Psicolinguística,
Pragmática, Linguística Textual e Análise do Discurso norteiam discussões acerca
do trabalho pedagógico referente ao ensino da língua. Destacamos a influência da
Sociolinguística, mostrando as diferenças dialetais que chegam à escola com a
democratização do ensino, exigindo uma nova atitude da escola para lidar com tais
variedades.
A polêmica quanto a ensinar ou não a gramática também surge nesse
contexto, em virtude do quase apagamento da gramática no livro didático. A
linguística desenvolve estudos sobre a descrição da Língua Portuguesa escrita e
falada. Uma nova concepção de língua como manifesta na enunciação se opõe ao
conceito de língua como instrumento de comunicação, considerando as relações
25
entre os sujeitos por meio da língua em suas práticas sociais, destacando ainda o
contexto de interação e as condições de produção e utilização da língua.
As aulas de português passaram a focalizar a aprendizagem do uso da
língua, organizando o ensino em consonância com o tripé das práticas de produção,
leitura e análise linguística.
A história nos mostra, ainda, que a abordagem que se faz do texto em sala de
aula de Língua Portuguesa vem se modificando. No início, como já vimos, o texto
era (e continua sendo, em muitos casos) utilizado apenas como mote para a
verificação de usos das regras gramaticais, sem nenhuma preocupação com a
atribuição de sentidos a partir da leitura, a qual, quando proposta, era apenas de
maneira silenciosa e individual, desprovida de qualquer necessidade de
compreensão, mas sim, como exercício da oralidade e memorização.
Posteriormente, chegaram ao livro didático os exercícios de leitura e interpretação
de textos, com sequências de perguntas para guiar a compreensão dos
alunos/leitores (GERALDI, 2006).
A concepção da língua como discurso passou a considerar aspectos sócio-
históricos, isto é, as condições de produção desses discursos. Logo, a atividade do
falante, incluindo aí as variações linguísticas, passa a ter vez, e não apenas o ensino
da gramática. Tal postura justifica-se pela mudança, como já relatamos, dos
destinatários desse ensino - agora, não mais os filhos de famílias privilegiadas, mas
inúmeros estudantes oriundos das camadas populares, os quais traziam para a sala
de aula uma ampla variedade linguística. Novas vozes que falam e escrevem
chegam à escola e querem ser ouvidas, e a escola precisa se instrumentalizar para
esse novo contexto, demandando novas posturas, novos conteúdos e novas
metodologias de ensino do português.
Para Soares (2004), os anos de 1980 e 1990 foram, para a disciplina de
português, de mudanças paradigmáticas geradas pela influência de conhecimentos
desenvolvidos nas Ciências Linguísticas, na Sociologia, na História e na
Antropologia, sobretudo quanto à leitura e escrita, gerando discussões acerca de
uma concepção de linguagem que direcionasse a prática pedagógica.
Em face dessas novas propostas e a fim de encontrar um enquadramento do
ensino de português por meio da fixidez na elaboração dos materiais didáticos, por
volta dos anos de 1990, com princípios na linguística da enunciação e do discurso,
os estudos da linguagem voltam-se para os gêneros do discurso, trazendo para a
26
sala de aula os elementos da constituição do gênero – conteúdo, estilo e forma
composicional, como veremos mais detalhadamente, no capítulo 2 desta
investigação.
1.3 Políticas públicas para a educação
Já vimos até aqui que os anos de 1970 e 80 foram de transformações sociais
e culturais que se refletiram na democratização do ensino e, por conseguinte, no
repensar de políticas educacionais.
Após um longo período de ditadura militar no país, consolida-se em 1988 uma
nova Constituição Federal, que traz mudanças educacionais, sobretudo
determinando o estabelecimento de conteúdos curriculares mínimos e comuns para
todo o país, além de alterações de políticas. Era preciso adequar a escola às
necessidades do mercado e preparar o trabalhador para corresponder aos padrões
do capital mundial, atendendo aos anseios do sistema capitalista em integrar os
países em desenvolvimento ao mundo globalizado.
Num momento de grande instabilidade econômica, o país se compromete
cada vez mais com os organismos internacionais - Unesco, Unicef, Banco Mundial,
Fundo Monetário Internacional – por meio de acordos de cooperação técnica e
financeira, que visam financiar projetos para a área de infraestrutura econômica,
passando, por conseguinte, a influenciar nas definições pertinentes às políticas
sociais e educacionais no Brasil (FONSECA, 1998).
Isso ocorre porque esses organismos passam a exigir melhores resultados na
educação brasileira, como contrapartida aos seus investimentos, tendo como foco
elevar o desenvolvimento econômico e social a um nível aceitável pelo mercado
internacional. Acerca das políticas educacionais instauradas no Brasil, em
decorrência desses acordos internacionais, Santos afirma que:
As políticas de educação implementadas em nosso país inseridas neste contexto são resultado das transformações decorrentes dos processos de reestruturação e manutenção do sistema capitalista mundial, consequência da internacionalização e globalização da economia e da utilização de medidas de ajustamento econômico e político de cunho neoliberal, privilegiando as relações de mercado em detrimento da vida social e da satisfação das necessidades básicas da população pobre, como educação, saúde, transporte, moradia, empregabilidade, entre outras, expressas pela minimização
27
do papel do Estado em suas funções de promoção e garantia da equidade social3.
Esse autor considera que tais ações têm produzido efeitos negativos em face
da ineficiência e ineficácia no enfrentamento dos problemas crônicos da educação
brasileira, como as altas taxas de evasão, reprovação, precariedade no ensino –
problemas esses que corroboram para a reprodução e manutenção das
desigualdades escolares e sociais.
Arruda (2010), em um levantamento histórico acerca das políticas públicas
para educação de jovens e adultos no Brasil, revela que a preocupação com o
analfabetismo remonta aos anos de 1950, mas apenas em 1964, em face do
empenho de estudantes, sindicatos e outros grupos, é que foi aprovado o Plano
Nacional de Alfabetização para o país. Em 1967, foi criado o MOBRAL – Movimento
Brasileiro de Alfabetização, destinado à população de 15 a 30 anos. Em 1971, a Lei
5692/71 reformula o ensino supletivo, ampliando as oportunidades educacionais
para os adultos e tratando ainda da formação de professores para o EJA.
Contudo, de acordo com o estudo da pesquisadora, é a partir da Constituição
Federal de 1988 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB (Lei
nº9394/96) que a Educação de Jovens e Adultos começa a obter maiores
conquistas, com programas educacionais específicos para tal modalidade, e
atendimento na rede pública de ensino. E, finalmente, em 1999, chegam às
instituições escolares os Parâmetros em Ação da Educação de Jovens e Adultos
para o Ensino Fundamental - PCN em Ação/EJA (BRASIL, 1999). Em 2000, delimita-
se a idade mínima para ingresso na educação de jovens e adultos aos 14 anos para
a etapa Fundamental do ensino, e 17 para o Ensino Médio. E em 2002, elabora-se a
proposta curricular para a EJA, que toma como referência os PCN (BRASIL, 1998) e
os PCNEM (BRASIL, 1999). Nesse mesmo período regulamenta-se o Exame
Nacional de Certificação de Competências de Jovens e Adultos (ENCCEJA), com o
objetivo de oferecer certificação de conclusão aos que não tiveram oportunidade de
cursar o ensino regular em idade certa.
A década de 1990 foi, então, de reformas educacionais geradas pela
aprovação da Lei de Diretrizes e Bases Nacionais 9.394/96, que teve como
3 (disponível em http://meuartigo.brasilescola.com/educacao/banco-mundial-gerenciamento-educacao-
brasileira.htm, acesso em 22/08/2013)
28
fundamento a integração da educação ao trabalho, a fim de desenvolver as
competências pertinentes às necessidades do desenvolvimento do país.
Sendo assim, o português, enquanto disciplina curricular, passa a ser
articulado e rearticulado pelas políticas públicas por meio da elaboração de diretrizes
para o ensino-aprendizagem, como os Parâmetros Curriculares Nacionais para o
Ensino Fundamental (1997 e 1998) e para o Ensino Médio (1999, 2001 e 2006), e
para avaliação e escolha de materiais didáticos, como o Programa Nacional do Livro
Didático - PNLD (1997), além da instituição de um Sistema de Avaliação da
Educação Básica – SAEB (1997).
O país precisava cumprir seus compromissos com os órgãos internacionais
que o financiavam. Para tanto, era necessário aumentar sua produtividade e tornar-
se mais competitivo nesse mercado globalizado. A educação, nessa perspectiva, a
fim de responder a esses anseios, passa a ser articulada com o objetivo de formar
cidadãos capazes de se ajustar às mudanças sociais que ocorrem numa sociedade
capitalista, cabendo à instituição escolar a responsabilidade pela preparação desses
sujeitos.
Nesse viés, os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa
(PCNLP, 1997) buscam orientar os professores de LP na condução de um ensino
além da gramática ou das tipologias e gêneros textuais, propondo uma articulação
do ensino em sala de aula ao cotidiano do aluno, ao uso da língua em suas práticas
sociais, a fim de oferecer a este aprendiz oportunidades de se tornar um cidadão
crítico e autônomo, capaz de articular seus discursos nas diversas esferas de
comunicação em que estabelece suas relações sociais. Em outras palavras, a
proposta é contrapor o ensino tradicional de língua materna, propondo um trabalho
efetivo com a linguagem voltado para as práticas sociais.
O documento, porém, apresenta sérios problemas de ordem conceitual,
revelando falta de compreensão por parte de seus elaboradores. Cunha (2004, apud
BARROS, 2008, p. 45-47) aponta para a confusão feita com alguns conceitos:
linguagem (oriundo do sócio-interacionismo) e código (oriundo do estruturalismo)
são utilizados como se fossem sinônimos; signo e sinal são usados
alternativamente, embora sejam distintos; não apresenta definição de gênero,
supondo que tal conhecimento seja partilhado, e apresenta texto, produto de
codificação e decodificação, contrário à proposta do sócio-interacionismo. Dessa
forma, lembra Barros (2008), embora tente propor uma inovação para o ensino de
29
língua materna, afastando-se do ensino tradicional, privilegia o uso do texto como
objeto de ensino da língua, reduzindo suas propostas a concepções estruturalistas.
Marinho (2007, p. 172), refletindo acerca do contexto de elaboração dos PCN,
comenta que tais propostas são o resultado de um processo iniciado em 1970, que
demandou inovações pedagógicas em face da democratização da escola, gerando
discussões na academia e sociedade civil, exigindo uma formalização por parte do
estado, isto é, foi um movimento “gestado numa relação entre os discursos da
vanguarda científica ou acadêmica e as políticas oficiais de produção curricular”
(idem, p. 174).
Nesse contexto, Motta-Roth (2008, p. 344-350) destaca que os PCNs
receberam influência tanto da teorização de Bakhtin – que, com base na concepção
dialógica, analisa a linguagem a partir das relações sociais de interação entre
sujeitos sócio-historicamente situados – e do Interacionismo sócio-discursivo – que
leva à análise da ação da linguagem por meio do texto, a partir de tipos de discurso
e sequências, mecanismos de textualização e mecanismos enunciativos. Logo,
considerando o papel central do gênero em sua formação, tal documento regulador
deveria se desenvolver processualmente, levando à prática, à discussão e ao
aperfeiçoamento contínuo.
Embora ainda pouco compreendidos e pouco empregados de fato nas
práticas de ensino nos dias atuais, os constructos teóricos de Bakhtin são muito
relevantes na redefinição do objeto de ensino de Língua Portuguesa no Brasil. A
teoria bakhtiniana da enunciação entende a língua como meio e produto de
interação entre sujeitos concretos, que produzem enunciados concretos, reais,
únicos e irrepetíveis, pois são irrepetíveis o tempo, o espaço e as condições de
produção de cada enunciado. O objeto de ensino-aprendizagem é o conhecimento
linguístico e discursivo, a partir do qual, por meio da linguagem, o sujeito participa
das práticas sociais.
Nesse viés, os PCN evidenciam uma latente necessidade de romper com a
tradição gramatical, que ensinava por meio da repetição de regras, buscando um
ensino fundado na dinamicidade da língua, como atividade de interação, na
construção permanente da língua viva.
O documento demonstra uma concepção de linguagem fundada na interação
social, a linguagem como produto e meio dessa interação, como podemos destacar
a seguir, acerca do caráter sócio-histórico da língua:
30
língua é um sistema de signos específico, histórico e social, que possibilita a homens e mulheres significar o mundo e a sociedade. Aprendê-la é aprender não somente palavras e saber combiná-las em expressões complexas, mas apreender pragmaticamente seus significados culturais e, com eles, os modos pelos quais as pessoas entendem e interpretam a realidade e a si mesmas (BRASIL, 1997, p. 20).
No mesmo caminho, o PNLD, cuja função é avaliar propostas pedagógicas
vinculadas à elaboração de materiais didáticos e programas de ensino, distancia-se
do que seria a escolha dos professores tradicionalistas e busca calçar seus critérios
nas pesquisas mais recentes e legitimadas pela ciência da linguística para o ensino
de Língua Portuguesa. Logo, assim como os PCNLP, o PNLD é orientado para o
foco nas práticas de usos da língua e pela reflexão sobre os usos, reafirmando
tendências como a diversidade textual e linguística como destaque para o ensino de
língua materna, intensificando, ainda, as possibilidades de ensino de gêneros orais e
escritos organizados por projetos ou sequências didáticas (BUNZEN, 2011, p. 905).
Kleiman (2008, p. 488-489) pondera que essas mudanças propostas ao
sistema educacional, sobretudo pela publicação dos documentos normativos aqui
destacados, criam uma incerteza que desestabiliza o professor, uma vez que trazem
novas exigências e deveres sem os concomitantes direitos, sendo que boa parte
desses profissionais desconhecem os avanços nos estudos linguísticos que
embasam tais documentos.
Em consonância, Faraco (2008, p. 195-196) destaca que, embora tenham
sidos formulados no intuito de inovar em termos de organização curricular e buscar
sintetizar uma concepção de ensino de língua materna aspirada por linguistas,
passados dez anos de sua vigência os parâmetros não tinham sido assimilados pela
escola e não se refletiam no cotidiano dela. Dentre as hipóteses levantadas pelo
autor está o fato de ser este um documento relativamente consistente, com excesso
de teorizações que fazem sentido na academia, mas pouco dizem para a maioria
dos professores.
A fim de tentar preencher essas lacunas e alcançar o sucesso na aplicação
dos parâmetros, em 2002 é publicado o documento intitulado Orientações
educacionais complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN+), que
detalha os objetivos, distribui atividades e conteúdos pelas diferentes séries,
explanando metodologias e critérios de avaliação. Já em 2006, o MEC publicou
31
também as Orientações Curriculares para o Ensino Médio (OCEM), incluindo um
capítulo voltado para a literatura.
Apesar das perspectivas apresentadas pelos documentos oficiais, referentes
ao relevante papel do sujeito na construção dialógica do discurso, com destaque
para a heterogeneidade linguística dos alunos, não é difícil encontrar hoje em sala
de aula práticas de ensino de português voltadas, ainda, para a tradição gramatical,
em detrimento de um trabalho mais reflexivo sobre a língua e suas possibilidades
discursivas.
Nesse contexto, é importante se mencionar que as chamadas Gramáticas Tradicionais tomam por base a língua, em uma de suas variedades, a padrão. E, na medida em que elegem a norma padrão, desprezam todas as outras. Nessa perspectiva, o ensino de Gramática leva ao apagamento e ao silenciamento das vozes que constituem as múltiplas variantes da língua portuguesa, em geral; e a brasileira, em particular. Ou seja, o trabalho com a gramática jamais deve se dar dissociado da realidade, e sim consistir em uma reflexão sobre textos reais (BARROS, 2008, p. 43-44, grifo da autora).
Podemos elencar inúmeras conjecturas acerca dos motivos pelos quais isto
ainda ocorre: falta de material de apoio ao trabalho com as variedades linguísticas
dos alunos, falta de formação continuada (e efetiva) dos professores no que
concerne aos avanços dos estudos linguísticos, precariedade na formação de alunos
de Letras, sobretudo em face da desvalorização da profissão e da proliferação dos
cursos rápidos e sem investimentos em pesquisa, para não mencionar os problemas
mais gerais que assolam a educação no país, como falta de infraestrutura mínima ao
funcionamento das escolas, salários aviltantes, o que gera dupla e/ou tripla jornada,
etc.
Face a isso, Faraco (2008, p. 196-198) vislumbra a necessidade de discutir as
formações de professores, a fim de garantir um melhor “domínio das práticas de
língua oral e escrita e um saber amplo, consistente e crítico sobre a língua”, mas,
além disso, é imperioso que se invista na carreira docente melhorando salários e
condições de trabalho.
1.4 Linguagem na escola: diferenças e deficiências
Apesar das proposições dos PCN e das orientações complementares - cujas
concepções são fundadas na valorização do sujeito discursivo e nas relações sociais
32
que este estabelece nas diversas esferas em que interage -, inúmeras pesquisas
têm demonstrado que a realidade do ensino, especificamente o de Língua
Portuguesa, não tem alcançado seus objetivos na totalidade – é o que revelam as
pesquisas instituídas pelo SAEB - Sistema de Avaliação da Educação Básica e PISA
- Programa Internacional de Avaliação de Alunos. Em outras palavras, as práticas de
ensino de Língua Portuguesa que as escolas brasileiras vêm promovendo não
favorecem a formação de cidadãos capazes de opinar, argumentar, participar
criticamente das práticas sociais.
Rojo (2009, p.13-21), ao tratar da exclusão e do fracasso escolar, destaca,
por meio de índices do IBGE, uma regressão nas taxas de analfabetismo no país
(entre 1872 e 2000, conforme o censo), porém, em face do crescimento
demográfico, nota-se um avanço considerável no número de analfabetos no mesmo
período.
Destaque-se que o censo de 1990 revelou que apenas 19% da população do
país possuía o ensino fundamental completo, e já no primeiro ano de escolaridade,
apenas 51% dos alunos eram aprovados.
Para tentar entender essas mazelas, relembremos que a instituição escolar,
como já vimos neste capítulo, por séculos se dedicou ao ensino restrito aos filhos
das classes financeiramente privilegiadas. Com a entrada, na segunda metade do
século XX, das classes populares na escola, começam as preocupações
institucionais com o fracasso escolar. O número de vagas na escola pública cresce,
mas muitas crianças, a maioria de classes populares, não conseguem permanecer
na escola. Logo, tal democratização do ensino, reflexo das lutas da classe
trabalhadora, resultou em avanços quantitativos e diversificação do alunado,
evidenciando, cada vez mais, a distância entre culturas e linguagens da elite e das
classes trabalhadoras.
Soares (2000) analisa que a escola pública, apesar de ter por objetivo a
democratização do saber, caminha a passos lentos no que diz respeito ao acesso à
educação pelas camadas mais populares. A autora comenta que o censo de 1980
revela que, naquele ano, mais de trinta por cento da população entre 7 e 14 anos
estava fora da escola, uma vez que os poucos que conseguiam ingressar logo saiam
por não conseguirem aprender, aumentando assim os índices de repetência e
evasão escolar. Dentre os principais motivos da evasão escolar estão os índices de
33
reprovação, fator determinante para levar o governo a instituir a política de ciclos e
progressão continuada a fim de garantir a permanência na escola.
Na tentativa de demonstrar possíveis justificativas para tal realidade, a autora
passa a discorrer sobre três vertentes ideológicas que podem ter influência na
maneira como encaramos esse fracasso: Ideologia do dom, Ideologia da deficiência
cultural e Ideologia das diferenças culturais.
De acordo com a Ideologia do dom, o fracasso do aluno estaria relacionado à
falta de condições básicas para a aprendizagem, isto é, às suas potencialidades
individuais. À escola caberia o compromisso de ajustar os alunos à sociedade, de
acordo com as suas aptidões, devendo o aluno se adaptar e responder às
oportunidades que a escola lhe oferece.
Para a Ideologia da deficiência cultural, as diferenças sociais teriam sua
origem nas diferenças de aptidão, de inteligência, isto é, apenas os alunos
inteligentes teriam acesso à ascensão social, e, da mesma forma, as desigualdades
sociais seriam responsáveis pelas diferenças de rendimento escolar.
Já para a Ideologia das diferenças culturais, o fracasso dos alunos das
camadas populares teria origem na postura discriminativa da escola em relação à
diversidade cultural, por valorizar somente a cultura das classes dominantes,
elegendo padrões culturais “certos” e “errados”, num processo de marginalização
cultural.
A pesquisadora destaca que a relação entre linguagem e cultura é
fundamental, uma vez que aquela é, ao mesmo tempo, produto e meio de expressão
desta. É também a linguagem o fator mais saliente nas conjecturas daqueles que
tentam justificar o fracasso escolar das camadas populares, uma vez que é o uso da
língua na escola que evidencia as diferenças entre grupos sociais, gerando
discriminações e fracassos. Basta lembrar o preconceito linguístico por que passa
quem se utiliza de variantes linguísticas estigmatizadas em suas relações
comunicativas. Nesse viés, entendemos que se a escola sempre privilegiou o ensino
à classe dominante, nada mais natural que privilegie também a sua cultura e a sua
língua.
Por outro lado, Soares (2000, p. 39) lembra que, conforme evidenciam a
antropologia e a sociolinguística, não existe língua mais complexa, mais simples,
mais expressiva ou mais rica que outra, uma vez que todas possuem suas
34
particularidades, são diferentes umas das outras, se adequam às necessidades e
características de sua própria cultura, e todas são instrumentos de comunicação.
A autora ressalta que, assim como ocorre com as línguas, cada dialeto e cada
registro atende às necessidades comunicativas dos falantes de determinado grupo
onde a fala ocorre, e não há teoria linguística que trate da superioridade de uma
variedade sobre a outra.
Acerca disso, Bagno (2007, p. 89) vem nos advertir sobre as questões
políticas e ideológicas que permeiam a eleição de um padrão linguístico. O autor
destaca que:
Nenhuma dessas línguas ou variedades foi escolhida por ser mais “bonita”, mais “lógica”, mais “exata”, mais “elegante”, mais “refinada” que outras. A escolha se fez por critérios exclusivamente políticos e ideológicos: quem está no poder vai querer impor o seu modo de falar a todo o resto da população.
Pensando nas relações de poder que permeiam o uso da língua, não é difícil
concordar com Bagno, se refletirmos sobre a imposição da língua do Príncipe
Português no Brasil, como discorremos no início deste capítulo. Podemos lembrar
que tal imposição ocorreu para demarcar a colônia e garantir a permanência do
domínio português sobre ela. E chegamos hoje às relações sociais estabelecidas
entre grupos que usam variedades diferentes dentro do mesmo território. Logo, a
língua é um produto sociocultural, meio de interação social e, no jogo político, é
utilizada como instrumento de poder, de coerção, de submissão, exclusão e
repressão de povos dominados, de classes sociais desfavorecidas.
De fato, segundo Soares, essas diferenciações refletem essas relações de
superioridade entre as variantes, as quais não são de cunho linguístico, mas de
cunho social. Trata-se de atitudes sociais que, a partir de valores sociais e culturais,
transformam as diferenças em deficiências, julgando os seus falantes e não apenas
a sua fala. Por fim, ela adverte que eliminar essas discriminações e desigualdades
não cabe especificamente ou somente à instituição escolar, mas à sociedade como
um todo, por meio de transformações na estrutura social, a fim de garantir igualdade
de condições de acesso, permanência e rendimento escolar (SOARES, 2000, p. 40-
65).
Reconhecemos, como a autora, o fato de que os conhecimentos e habilidades
aos quais temos acesso por meio da escola são instrumentos fundamentais de luta
contra as desigualdades econômicas e sociais. Mas temos que admitir que a escola
35
é também o centro de onde provêm divisões e diferenciações entre grupos, onde
nascem preconceitos e discriminações linguísticas e culturais. Desta forma, é
preciso que a escola assuma seu papel político diante de tal realidade, promovendo
um ensino mais eficiente, a fim de instrumentalizar essas camadas menos
favorecidas para que possam reivindicar por iguais condições de participação
cultural e política.
Em se tratando do uso da língua, especificamente, Soares (Op. Cit.) reflete
que, sendo a língua o principal instrumento de ensino e aprendizagem em todas as
áreas do conhecimento, além de instrumento básico de comunicação, é imperioso
que o professor tenha em mente a necessidade de uma constante articulação entre
variedades linguísticas e classe social na condução do ensino da língua materna.
Mais que científica e técnica, trata-se de uma questão política. É a partir dessa
relação que podemos construir um ensino mais eficiente, vinculado às condições
sociais e econômicas de uma sociedade de classes.
Nesse mesmo raciocínio, Silva (2004, p. 24-26) propõe um ensino de
língua materna que propicie, desde as séries iniciais, a convivência, valorização e
respeito à diversidade linguística, com o propósito de desenvolver a expressão oral
dos estudantes, evitando bloqueios na comunicação escrita e oral. Para a autora, a
fim de evitar avaliações de certo e errado, é necessário contrastar as variedades da
linguagem verbal em uso de forma a estimular adequações situacionais,
enriquecendo a expressão, a comunicação e a compreensão do mundo por meio
dos diversos meios de comunicação de que dispõe o homem. Dessa forma,
mostrando as potencialidades comunicativas da língua, pode-se aprimorar seu uso
de forma libertadora, tendo em mente a dinamicidade da língua.
Em se tratando de relações sociais que envolvem o uso da língua, o
próximo capítulo apresenta uma visão da língua fundada no diálogo entre sujeitos,
nas relações de alteridade que os envolvem, no desenvolvimento do sujeito e da
linguagem em face dessas relações. A concepção dialógica do Círculo de Bakhtin
traz os fundamentos teóricos e metodológicos que nortearam nosso olhar e nosso
fazer nesta pesquisa.
36
CAPÍTULO 2
REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO
Brait (2010, p. 9-31), em seu artigo sobre Análise e teoria do discurso na
perspectiva dialógica de Bakhtin, ao considerar os estudos realizados por esses
pesquisadores no conjunto de sua obra, argumenta que o Círculo motivou o
nascimento de uma teoria/análise dialógica do discurso - uma pesquisa embasada
na concepção de linguagem, de construção e produção de sentidos a partir de
relações discursivas entre sujeitos sócio-historicamente situados.
A autora sustenta tal argumentação a partir do que, segundo ela, seria a
primeira vez em que tal análise/teoria é proposta na obra do Círculo, no capítulo “O
discurso em Dostoiévski”:
Intitulamos este capítulo “O discurso em Dostoiévski” porque temos em vista o discurso, ou seja, a língua em sua integridade concreta e viva, e não a língua como objeto específico da Linguística, obtido por meio de uma abstração absolutamente legítima e necessária de alguns aspectos da vida concreta do discurso. Mas são justamente esses aspectos, abstraídos pela Linguística, os que têm importância primordial para os nossos fins. Por este motivo as nossas análises subsequentes não são linguísticas no sentido rigoroso do termo. Podem ser situadas na metalinguística, subentendendo-a como um estudo – ainda não constituído de disciplinas particulares definidas – daqueles aspectos da vida do discurso que ultrapassam – de modo absolutamente legítimo – os limites da Linguística. As pesquisas metalinguísticas, evidentemente, não podem ignorar a Linguística e devem aplicar os seus resultados. A Linguística e a Metalinguística estudam um mesmo fenômeno concreto, muito complexo e multifacético – o discurso -, mas estudam sob diferentes ângulos de visão. Devem completar-se mutuamente e não fundir-se. Na prática, os limites entre elas são violados com muita frequência (BAKHTIN, 2002 [1929], apud BRAIT, 2010, p. 11).
Nesse viés, para definir tal teoria, a pesquisadora destaca a Metalinguística e
a Linguística como disciplinas essenciais para tal atividade, uma vez que ambas
estudam o mesmo objeto, o discurso, sob aspectos distintos, que devem
complementar-se mutuamente. Isso significa que tal empreendimento é alcançado
tomando-se aspectos internos e externos ao discurso, caso contrário, não seria
dialógico.
Sem a intenção de propor categorias de análise que possam ser aplicadas
mecanicamente a qualquer texto em atividades de compreensão das formas de
37
produção de sentido, a autora reflete, ainda a partir de sua leitura de Problemas da
poética de Dostoiévisk, que:
O trabalho metodológico, analítico e interpretativo com textos/discursos se dá (...) herdando da Linguística a possibilidade de esmiuçar campos semânticos, descrever e analisar micro e macroorganizações sintáticas, reconhecer, recuperar e interpretar marcas e articulações enunciativas que caracterizam o(s) discurso(s) e indicam sua heterogeneidade constitutiva, assim como a dos sujeitos aí instalados. E mais ainda: ultrapassando a necessária análise dessa “materialidade linguística”, reconhecer o gênero a que pertencem os textos e os gêneros que nele se articulam, descobrir a tradição das atividades em que esses discursos se inserem e, a partir desse diálogo com o objeto de análise, chegar ao inusitado de sua forma de ser discursivamente, à sua maneira de participar ativamente de esferas de produção, circulação e recepção, encontrando sua identidade nas relações dialógicas estabelecidas com outros discursos, com outros sujeitos (BRAIT, 2010, p. 13, grifos nossos).
Em consonância, em outro estudo realizado pela autora mais recentemente,
intitulado Perspectiva dialógica (BRAIT, 2012, p. 9-29), ela argumenta que os
conceitos fundados pelos estudos do Círculo, além apoiar análises e interpretações
de manifestações da linguagem, oferecem ainda procedimentos teórico-
metodológicos para tais análises.
Agora apoiada em O problema do texto na linguística, na filosofia e em outras
ciências humanas, a pesquisadora revela que:
Bakhtin considera a Linguística e a Metalinguística, disciplinas encarregadas do estudo da língua, da linguagem, do discurso, como não excludentes, na medida em que texto/discurso/língua/linguagem se interpenetram constitutivamente. (...) Ali onde a Linguística vai encontrar significado, conjunto de potencialidades previstas na língua, por exemplo, a Metalinguística vai se defrontar com sentidos dependentes da situação, dos contextos, dos sujeitos produtores e receptores, das esferas de comunicação, dos discursos em confronto, das relações dialógicas (BRAIT, 2012, p. 17, grifos da autora).
Entendemos que o tipo de análise proposto por nós neste trabalho deve
considerar os textos selecionados em nosso corpus a partir do ponto de vista interno
(do significado inerente ao texto) e externo (do sentido inerente ao discurso), isto é,
do ponto de vista dialógico constitutivo da linguagem, como veremos mais adiante.
2.1 Concepção dialógica da linguagem
38
Não pretendemos tentar produzir um histórico das influências filosóficas que
colaboraram na construção dos conceitos da teoria bakhtiniana. Primeiro para não
incorrer em redundância, apenas relatando o que já foi amplamente discutido sobre
a obra, mas também, e sobretudo, porque já fomos contemplados por outros
pesquisadores do Círculo, como Sobral (2009), Faraco (2009), Brait (2009), Fiorin
(2006), e muitos outros, cujas publicações serviram também de base para este
trabalho. Logo, nosso intuito neste capítulo é demonstrar como as ideias do Círculo
podem contribuir para esta análise, especificamente, dos discursos produzidos, aqui
delimitados em nosso corpus, a partir da polêmica do Livro Didático “Por uma vida
melhor”.
Para tanto, discutiremos, primeiramente, o conceito de linguagem
apresentado em Marxismo e Filosofia da Linguagem. Nessa obra, os pesquisadores
russos fazem severas críticas ao que denominam de “objetivismo abstrato”,
rejeitando o estudo da língua como sistema, com estrutura fixa, argumentando que,
ao elaborar sua fala, o falante não enuncia pensando nas regras do sistema
linguístico que ele vai utilizar nessa empreitada, mas age a partir do contexto sócio-
histórico (no tempo e no espaço) do seu ato, no momento único do seu querer dizer,
na sua intencionalidade discursiva. Do mesmo modo, em contraponto ao que
denominam “subjetivismo idealista”, ponderam que a língua não pode ser
considerada mero fruto da criação individual, obra da criatividade do falante,
limitando-se a uma criação artística, pois é fruto da interação social, carregada de
ideologia. E, por ser social, ela é dinâmica, evolui no tempo e no espaço, porque o
sujeito evolui, isto é, a língua evolui porque atende a uma demanda social dos
falantes, “como uma corrente evolutiva ininterrupta” (BAKHTIN/VOLOSHINOV, 2010
[1929], p.93-113). Logo, considera a língua viva, fruto e semente das relações de
interação humana. Da mesma forma, rejeita o teoricismo, partindo do singular, do
irrepetível, do momento único, vivo, real, concreto. Para os pesquisadores, “a língua
não se transmite; ela dura e perdura sob a forma de um processo evolutivo.” Isso
quer dizer que o sujeito não recebe a língua pronta para ser usada, mas passa a
interagir por meio dela nas várias esferas de comunicação em que se relaciona
dialogicamente (idem, p. 111).
Bakhtin (2011[1952-1953], p. 276-278) define a oração como unidade da
língua em contraponto ao enunciado como unidade da comunicação discursiva, uma
vez que, enquanto o enunciado é delimitado pela alternância entre os sujeitos do
39
discurso, mantendo relação imediata com a realidade e com os enunciando alheios,
a oração tem natureza gramatical e fronteiras gramaticais.
Sobral (2008, p. 16), contribuindo para a compreensão do pensamento de
Bakhtin, esclarece que essa “concepção dialógica da linguagem” baseia-se na
atribuição de sentidos que são produzidos por meio da intersubjetividade das trocas
verbais em situações concretas de exercício da linguagem. Trata-se de uma
concepção centrada no sujeito, que é então um agente que produz enunciados (e
não frases/orações), num processo de intercâmbio linguístico nos atos verbais. Na
cadeia de enunciações, o locutor e o interlocutor têm o mesmo peso, uma vez que
cada enunciado é uma resposta, uma réplica a enunciações anteriores e posteriores.
A concepção de linguagem está, por assim dizer, fundada no diálogo, que tem como
caráter central a interação, por meio da qual os sujeitos atribuem sentidos ao que
dizem.
O autor enfatiza que o sentido é fruto da interação, a qual está fundada no
diálogo, que envolve o eu e o outro, a pergunta e a resposta. E lembra ainda que a
pergunta e a resposta podem ser feitas por um só sujeito, e mesmo a conversa
consigo mesmo é um diálogo, uma vez que “não há eu sem outro – nem outro sem
eu!” (idem, p. 21). Isso nos mostra que a interação é constitutiva da produção e
atribuição de sentidos; fora do diálogo, não há sentido. É no ambiente da vida
concreta que os sujeitos produzem enunciados, os quais respondem a perguntas
que surgiram antes e às que poderão surgir. A interação é base para a produção de
sentidos na relação entre sujeitos.
A fim de explanar melhor sobre essa concepção de linguagem do Círculo, o
pesquisador afirma que a situação pessoal, social e histórica dos participantes, e
ainda as condições materiais e institucionais envolvidas no intercâmbio verbal
interferem diretamente nas condições de interação. Em outras palavras, a relação
dialógica dos sujeitos discursivos é constituída por níveis de interação, os quais
estão presentes nas relações entre sujeitos em todas as suas práticas
comunicacionais, se articulando para que haja interação e, logo, produção de
sentidos. Sintetizamos esses níveis de interação da seguinte forma:
1) Intercâmbio verbal – refere-se à situação material da interação, à
presença dos interlocutores, ao ambiente físico e aos meios de
mediação da interação que podem alterar a produção e a recepção
40
do discurso (aula presencial, aula à distância ministrada por meio
virtual);
2) Contexto imediato – refere-se aos lugares (papeis) sociais, à posição
dos interlocutores, à imagem dos interlocutores, às formas de
interação social (o quê, a quem, em que momento, de que maneira);
o sujeito manifesta sua identidade de acordo com o outro diante do
qual está e da situação em que está envolvido;
3) Contexto social mediato – refere-se ao tipo de lugar em que ocorre a
interação e às exigências que esse lugar faz aos interlocutores
(grupos sociais, instituições formais e informais, etc);
4) Horizonte social e histórico mais amplo – refere-se à interação entre
culturas, entre gerações, entre tradições diferentes.
Os estudos do Círculo de Bakhtin nos esclarecem que a língua/linguagem tem
seu conceito estabelecido a partir da dinamicidade, do inacabamento, do vir a ser,
pois ela é constituída no movimento dialógico, nas relações sociais e nas trocas
discursivas efetuadas mediante constantes processos de interação entre sujeitos,
nas inúmeras esferas de atividade humana em que se relacionam. Esses sujeitos
apreendem sentidos e organizam seus enunciados a partir desses movimentos de
constantes diálogos. O outro, nessa perspectiva, tem papel fundamental nessa
construção de sentidos, uma vez que ele não é passivo, ele responde ativamente
ocupando uma posição responsiva em relação ao interlocutor. Os sentidos são
atribuídos e percebidos a partir de atitudes responsivas dos sujeitos nas relações
sociais; atitudes que ocorrem a partir de níveis diferenciados de compreensão, a
qual só é possível se os interlocutores compartilharem de um conhecimento comum
do contexto social e histórico em torno do objeto do discurso.
Bakhtin/Voloshinov (2010[1929]) esclarecem o processo da compreensão, por
meio do qual o sujeito, em contato com o enunciado do outro, busca
correspondência em enunciados próprios para então elaborar sua resposta.
Contrapomos à palavra do outro inúmeras palavras nossas, e “quanto mais
numerosas e substanciais forem [essas palavras], mais profunda e real é a nossa
compreensão” (Idem, p. 137). E é nesse processo que a significação se realiza na
palavra, por meio da interação entre os interlocutores.
A esse respeito, podemos ver ainda, em Bakhtin (2011[1952-1953], p. 272),
que o falante, ao elaborar seu enunciado, o faz na intenção de uma compreensão
41
ativa de seu interlocutor; o falante deseja ser compreendido e leva em conta a
reação presumida do outro. Da mesma forma, toda compreensão é ativamente
responsiva e denota uma fase de preparação para uma resposta, que pode ser uma
concordância, uma objeção, uma sinalização, uma pergunta, até mesmo o silêncio.
A partir do sistema linguístico disponível aos interlocutores, eles elaboram
suas respostas e contrarrespostas, denotando o nível de compreensão acerca do
discurso do outro. Daí o papel fundante do dialogismo na construção da linguagem,
pois se responde tanto a algo que já foi dito quanto ao que se espera que vai ser
dito, antecipando uma resposta. E nesse movimento contínuo, os interlocutores vão
edificando a linguagem, totalmente ligada ao uso real em situações específicas do
agir humano.
Para Bakhtin, a compreensão passiva é apenas um momento de abstração do
ato de compreensão ativamente responsiva. O outro, portanto, tem papel ativo
nessa cadeia de comunicação.
Em suma, a língua é um organismo vivo que se constitui nas relações de
interação social entre sujeitos que dialogam nas várias esferas das atividades
humanas em que se relacionam. Da mesma forma, podemos pensar que os sujeitos
são constituídos sócio-historicamente por meio dessas relações e das trocas
discursivas que estabelecem, em movimentos de infinitas possibilidades de
encontros e desencontros.
2.2 Tecendo os fios do diálogo social
Para nomear esse processo-produto da interação verbal dada por meio do
diálogo constituído a partir das relações sociais, Bakhtin define o enunciado. Para o
filósofo, a interação social é a realidade na qual a linguagem é fundada, sendo
então, a partir da comunicação verbal, materializada em enunciados concretos, que
são demandados pelas relações entre sujeitos situados no tempo e no espaço em
uma situação de comunicação única, real, concreta, irrepetível.
Uma vez que surge na sociedade, num dado momento, único e irrepetível,
numa situação distinta de interação entre sujeitos, momento singular na existência,
conclui-se que o enunciado tem uma estabilidade provisória, pois, se mudarmos
alguma das condições de produção, seu sentidos e alterará, pois se instala de forma
42
diferente, dependendo dessas condições dadas pela interação (tempo, lugar,
sujeitos envolvidos, situação imediata e mediata, estrutura social, cultura...).
Trata-se, portanto, de um evento social, não de uma abstração; é um
elemento da comunicação discursiva que estabelece relação indissociável com a
realidade da vida; é concreto, fruto dos atos de fala estabelecidos nas relações
dialógicas entre interlocutores concretos; é unidade real da comunicação discursiva,
pois:
O enunciado existente, surgido de maneira significativa num determinado momento social e histórico, não pode deixar de tocar os milhares de fios dialógicos existentes, tecidos pela consciência ideológica em torno de um dado objeto de enunciação, não pode deixar de ser participante ativo do diálogo social (BAKHTIN, 2002 [1934-1935], p. 86).
Mais que os fatores linguísticos que regem o enunciado, a situação
extraverbal que o envolve é extremamente relevante, compreendendo três fatores:
“1) o horizonte espacial comum dos interlocutores (...), 2) o conhecimento e a
compreensão comum da situação por parte dos interlocutores, e 3) sua avaliação
comum dessa situação”. Logo, o enunciado concreto envolve os interlocutores como
co-participantes do discurso, uma vez que estes devem conhecer, entender e avaliar
a situação extraverbal de comunicação, o contexto (VOLOSHINOV & BAKHTIN,
1926, p. 4-6).
O discurso é um conceito subentendido na natureza da concepção dialógica
da linguagem como interação, está relacionado ao querer dizer, ao projeto
discursivo, aos efeitos de sentidos produzidos por meio da interação, ou seja, fora
da vida, o discurso perde sua significação. Já o enunciado é a unidade discursiva
desse querer dizer, sendo constituído a partir de uma interação entre os sujeitos
envolvidos, utilizando-se das formas da língua para imprimir o verbal e o extraverbal,
o texto e o contexto, mediante as condições pragmáticas em que é produzido; e a
enunciação, ao nosso ver, é o processo/atividade de produção, é o ato de proferir
um enunciado.4
4 Conforme nota de rodapé na primeira página do texto Os Gêneros do Discurso, em Estética da Criação Verbal,
Bakhtin não faz tal distinção em sua obra. O autor utiliza para ambos o mesmo termo, Viskázivanie, que significa ato de enunciar, de exprimir, transmitir pensamentos, sentimentos, etc. em palavras (BAKHTIN, 2011, [1952-1953], p. 261)
43
Vimos em Bakhtin (2011[1952-1953], p. 275) que os limites de cada
enunciado concreto se dá pela alternância dos sujeitos do discurso. Todo enunciado
tem um princípio e um fim, um antes e um depois. O falante termina o seu enunciado
para dar voz ao seu interlocutor, à sua compreensão ativamente responsiva. O
interlocutor responde ao perceber a conclusão do enunciado, ao notar que pode
articular uma resposta. Essa alternância cria limites nos enunciados nas diversas
situações de comunicação.
Padilha (2009), analisando trechos da canção Resposta, de Samuel Rosa e
Nando Reis, reflete acerca dessa construção de enunciados e, falando da interação
verbal inerente à elaboração de respostas e das trocas discursivas denotadas
palavras próprias e palavras alheias, esclarece que:
É claro que quando pedimos respostas pedimos também aceitação, quando damos resposta, demonstramos aceitação ou não. Mas, nesse momento, da resposta, os versos já deixam de ser só meus e passam a ser seus e meus, nossos. A linguagem, em suas múltiplas manifestações, nos serve para que possamos dar respostas ao mundo, ao outro, e quando o fazemos, fazemos também com o outro, com a palavra alheia que tornamos palavra própria (2009, p. 104, grifo da autora).
Da mesma forma, Sobral (2008, p. 49) acrescenta que os
enunciados/discursos são o produto do processo de intercâmbio linguístico entre
sujeitos (interlocutores), considerando o processo de produção, a circulação, a
recepção. Dessa forma, a atribuição de sentido está interligada ao processo de
produção. Trata-se de um processo contínuo, uma vez que a concretização dos
sentidos se dá numa circunstância histórica e social, isto é, sujeitos diferentes, em
momentos diferentes, lugares e circunstâncias diferentes, criam/renovam sentidos
diferentes a um mesmo enunciado. Isso significa que o enunciado é concreto, uma
vez que se dá numa relação concreta entre sujeitos concretos. O enunciado se
concretiza a partir da existência de uma situação comum aos sujeitos envolvidos no
processo de enunciação, os quais precisam conhecer tal situação e estarem de
acordo na compreensão e avaliação de tal situação.
Esse autor finaliza sua análise defendendo que não há discursos sem
contextos e sem sujeitos, uma vez que os discursos vêm a existir por meio de
apreensões de sentidos atribuídas por sujeitos em situações reais de comunicação,
ou seja, a produção do discurso nasce da ação dos sujeitos envolvidos em uma
interação, os quais carregam consigo um projeto enunciativo e um tom avaliativo,
44
conferindo perguntas e respostas que se alternam no projeto discursivo e, por fim, o
discurso é entendido, então, como unidade de sentido e não como mera soma de
frases.
Bakhtin (2011[1959-61/1979], p. 312), em O problema do texto na Linguística,
na Filologia e em outras ciências humanas, ressalta que a atitude humana é um
texto em potencial, o qual pode ser entendido a partir de um contexto dialógico. O
texto, apreendido aqui como enunciado, dotado de entonação e expressividade,
representa um estilo, uma visão de mundo, um contexto ou contextos, nele há duas
vozes, dois sujeitos. Assim, mesmo a oração mais complexa pode se repetir um
número ilimitado de vezes e de forma igual, mas, como enunciado, não se repete
jamais, é sempre nova, mesmo que seja uma citação. Isso porque a cada vez que
se repete, o enunciado muda de lugar e de função na cadeia discursiva.
Na forma de enunciado, um texto é sempre outro, é sempre novo; quando
reiterado, quando repetido, nunca é o mesmo, em face dos outros textos com os
quais já dialogou, em face dos outros textos que já ajudou a construir, em virtude
dos novos sentidos que podemos atribuir a ele a cada vez que o retomamos, pois
nós também somos outros. “Quando o texto se torna nosso conhecimento podemos
falar de reflexo do reflexo. A compreensão de um texto sempre é um reflexo do
reflexo. Um reflexo através do outro no sentido do objeto refletido” (BAKHTIN,
2011[1959-61/1979], p. 319).
O filósofo revela que dois enunciados que tocam o mesmo tema/objeto, ainda
que não se conheçam, ao serem confrontados em um plano de sentido, passam a
estabelecer uma relação dialógica entre si. Já os elementos da língua dentro de um
sistema linguístico ou mesmo dentro de um texto não podem estabelecer relações
dialógicas. Somente o enunciado possui relação com a realidade social, com os
outros enunciados que compõem determinado campo da comunicação discursiva e
o sujeito que fala, a língua apresenta apenas as possibilidades dessas relações. É a
partir da relação com a realidade que valores como justiça, falsidade, verdade,
beleza, bondade são dados aos enunciados; tais valores não podem tornar-se objeto
da linguística, pois, conforme Bakhtin/Volochinov,
Na realidade, não são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis, etc. a palavra está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos
45
àquelas que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida (2010[1929], p. 98-99).5
Considerando que os enunciados estão vinculados a situações concretas de
comunicação entre participantes situados em determinado campo de atividade
humana, sentimos necessidade de falar das formas de manifestação/materialização
desses enunciados nessas práticas sociais que envolvem os atos de produção das
enunciações. Estamos nos referindo aos gêneros do discurso, um conceito por meio
do qual Bakhtin trata das condições e finalidades de cada esfera como reflexo
norteador na escolha do conteúdo (tema), estilo (recursos lexicais, gramaticais, etc)
e forma composicional (estrutura) do enunciado, dados pelo caráter da interação
social entre os participantes do processo de enunciação (MOLON & VIANNA, 2012,
p. 8).
Nessa perspectiva, são as esferas de atividade humana, lugar onde se dão as
práticas sociais, os responsáveis pela elaboração de seus tipos relativamente
estáveis de enunciados, chamados Gêneros do Discurso, com conteúdo temático,
estilo de linguagem e forma composicional que correspondem às especificidades de
cada campo. E, uma vez que são diversas as possibilidades de atividades humanas,
a lista de gêneros discursivos é também inesgotável (2011[1952-1953], p. 262).
Em face dessa heterogeneidade dos gêneros discursivos, Bakhtin
(2011[1952-1953], p. 263) categoriza, de acordo com seu nível de complexidade, os
gêneros em primários e secundários. Os gêneros primários são os menos
elaborados, mais flexíveis, ocorrem nas situações de comunicação imediata, no
cotidiano dos falantes, conjecturam com mais rapidez as mudanças sociais,
podendo se manifestar tanto em linguagem oral quanto escrita – conversa entre
amigos nas redes sociais, diálogo entre colegas no corredor da escola, lembretes
entre colegas de trabalho, etc. Os gêneros secundários são construídos nas esferas
de comunicação culturalmente mais elaboradas, complexas e desenvolvidas, se
apresentando, predominantemente, em linguagem escrita – romances, novelas,
contos, editais, portarias, ofícios, reportagens, documentários, etc.
SANTOS (2011, p. 38) ressalta a natureza social dos gêneros como sua
característica fundamental, uma vez que estão vinculados às esferas da
comunicação verbal e se orientam dialogicamente por meio das interações sociais
entre sujeitos socialmente situados nas esferas de atividade humana.
5 Acerca da Ideologia, na perspectiva dialógica, trataremos mais atentamente na seção 2.3.
46
Falamos por meio de enunciados concretos, os quais adquirem estabilidade
relativa na materialização do gênero do discurso, cujo conteúdo temático, estilo e
forma composicional atendem à demanda social de uma esfera específica de
produção verbal. Dito de outra forma, todo gênero é um tipo de enunciado, que é
relativamente estabilizado dado sua forma composicional, conteúdo e estilo de
linguagem, definidos pela sua esfera de circulação e da relação entre os falantes;
todo enunciado pertence a um gênero, porém, ao contrário deste, que possui relativa
estabilidade, o enunciado é sempre atualizado, dado o contexto de interação
discursiva entre os falantes.
Nesse mesmo viés, em seu ensaio Discurso na vida e discurso na arte
(1926), Bakhtin/Voloshinov se dedicam a um estudo da linguagem situada no
cotidiano e da linguagem na criação literária. Para os pesquisadores, a linguagem
fora da relação com a vida social perde totalmente sua significação, uma vez que
quando produzimos enunciados estamos muito mais focados nas avaliações e
assimilações que causarão do que nas estruturas verbais (linguísticas) que o
compõem. Nesse sentido, o extraverbal, isto é, o evento da vida em que o discurso é
elaborado exerce papel determinante na construção de sentido. A situação concreta
de uso da linguagem é essencial para a significação. Fora da vida social, o discurso
é nada mais que um conjunto de elementos linguísticos.
2.3 Construção de sentidos e posições ideológicas
Em Marxismo e Filosofia da Linguagem, Bakhtin e Voloshinov definem a
relação entre o tema e o enunciado, demonstrando que ambos são concretos,
únicos e irrepetíveis. O tema reflete o instante do acontecimento da enunciação,
abarcando o enunciado, que é dotado de significação. A significação, por sua vez,
refere-se aos elementos idênticos, reiteráveis e mobilizados a partir do tema.
O tema é um sistema de signos dinâmico e complexo, que procura adaptar-se adequadamente às condições de um dado momento da evolução. O tema é uma reação da consciência em devir ao ser em devir. A significação é um aparato técnico para a realização do tema (BAKHTIN/VOLOCHINOV, 2010[1929], p. 134, grifo do autor).
Considerando que a significação refere-se, como vimos, ao repertório
linguístico a ser utilizado de acordo com nossas intenções discursivas, podemos
47
inferir que são os contextos, isto é, as situações envolvendo a enunciação que vão
imprimir novos sentidos; daí a instabilidade da significação, como já dissemos
anteriormente. A cada encontro entre sujeitos numa relação de interação (contexto),
a significação se renova, por isso, é tida como um estágio anterior à capacidade
construir sentidos, é apenas potencial, e só se realiza num tema, pois este denota
um sentido concreto, contextual, ligado à situação real de comunicação, utilizando-
se dos recursos da língua (dicionário) para realizar a enunciação.
A significação comporta as formas fixadas da língua, e o tema abarca a
interação, o contexto em que essas formas são utilizadas e, sendo assim, tema e
significação são mobilizados no processo de enunciação. Porém, cabe analisar que,
embora a significação preceda ao tema, por estar instituída em um sistema
linguístico, ela é dependente do tema para existir, uma vez que sem um tema, sem
um contexto, uma situação de comunicação, não há significação. Como conjunto de
elementos verbais e extraverbais que se manifestam na interação verbal, o tema
mobiliza as formas da língua para produzir os sentidos da enunciação, sendo, então
dependente da significação.
Ao contrário da significação, o tema é dinâmico, está ligado à designação de
sentidos que nascem na interação dialógica, e, novos contextos criam novos temas;
daí a dinamicidade da língua para o Círculo. Acerca da relevância desse conceito,
Bakhtin revela que:
O tema do sujeito que fala tem um peso imenso na vida cotidiana. Ouve-se, no cotidiano, a cada passo, falar do sujeito que fala e daquilo que ele fala. Pode-se mesmo dizer: fala-se no cotidiano sobretudo a respeito daquilo que os outros dizem – transmitem-se, evocam-se, ponderam-se, ou julgam-se as palavras dos outros, as opiniões, as declarações, as informações; indigna-se ou concorda-se com elas, discorda-se delas, refere-se a elas, etc (BAKHTIN, 2002 [1934-1935], p. 139).
Em cada contexto, a cada interação social, cada um de nós toma para si
posições diferentes em relação aos mesmos fatos, aos mesmos enunciados. Isso
significa que cada sujeito (o eu e o outro) é prenhe de valores e crenças, que são
formados a partir dessas interações ao longo da vida. Por conseguinte, essas
interações influenciam nossa singularidade, como seres únicos que somos, nossas
ações e nossos enunciados, isto é, influenciam diretamente a maneira como
respondemos aos fatos da realidade social – ao que chamamos de posição
ideológica.
48
Porém, mesmo sendo únicos e singulares, organizamos esses enunciados
em direção ao outro, aguardamos sua aprovação, sua resposta. Articulamos nossas
ações e nossos enunciados a partir de enunciados anteriores, isto é, nos
apropriamos dos enunciados dos outros para elaborar o nosso enunciado, sempre, e
ainda, na expectativa da resposta que ele causará no outro, num ciclo ininterrupto de
comunicação.
Essas apropriações (de enunciados anteriores) executadas pelo sujeito na
elaboração de seu enunciado revelam uma certa seleção de signos ideológicos a
serem utilizados no seu querer dizer, na direção de suas intenções discursivas. Isso
porque, voltamos a frisar, o sujeito é um ser social, concreto, e responde ao outro
nas suas interações sociais, em tempos e espaços definidos, únicos e irrepetíveis.
Neste sentido, Bakhtin (Idem, p. 135-136) nos revela que o sujeito falante é um
ideólogo e suas palavras são sempre um ideologema, uma vez que uma linguagem
representa sempre um ponto de vista, está direcionada a um motivo ideológico e
ocupa uma posição ideológica.
A palavra é um fenômeno ideológico em virtude de sua orientação para o
social, isto é, está sempre direcionada a alguém, a um interlocutor, logo está sempre
carregada de intenções (Ibdem, p. 31-37). Sob esse viés, todo signo é constituído
dialogicamente nas coerções estabelecidas dentro das esferas sociais em que estes
são acreditados e desacreditados, instituídos e destituídos, ou seja, os signos são
ideologizados a partir da sua circulação em determinada esfera, e são selecionados
mediante a intenção do sujeito falante. Na ânsia de uma resposta futura do outro, o
sujeito mobiliza os signos, dialógica e ideologicamente, mediante as relações sociais
nas quais interagem, dando vida à linguagem. Então, como é construída no social, a
ideologia não vive dentro da consciência do ser humano, mas na atmosfera dos
acontecimentos em que esse a mobiliza.
Em Discurso na vida e discurso na arte, Bakhtin/Volochinov falam sobre o
presumido da enunciação, destacando o papel do dito e o não dito no processo de
atribuição de sentidos. O não dito refere-se à apreciação valorativa do ouvinte, isto
é, à axiologia. Ponzio (2008, p. 93) completa que “o que se presume são vivências,
valores, programas de comportamento, conhecimentos, estereótipos, etc.”, ou seja,
o presumido nasce no social, nas relações familiares, de trabalho, acadêmicas,
religiosas. Isso quer dizer que a compreensão do sujeito sobre determinado
enunciado está condicionada ao seu contexto de vida; sua valoração vincula-se à
49
amplitude e diversificação de suas relações sociais (nas esferas de atividade
humana).
De acordo com os estudos do Círculo, o termo ideologia não pode ser
confundido com a ideia de falsa consciência ou instrumento de manipulação ou
alienação, ocultação da verdade. Para muito além disso, os estudiosos do Círculo
concebem a noção de ideologia ligada à produção imaterial de determinadas esferas
de atividades humanas, à tomada de posição do sujeito relacionada àquilo que ele
acredita, guiada àquilo que ele conhece, dentro de determinado campo. Logo,
entendemos ideologia como interpretação da realidade social, a qual é expressa por
meio de signos em espaços sociais situados historicamente.
Concluímos que o signo constitui-se numa resposta dada em relação a algo
que foi dito, a partir da compreensão atribuída a esse querer dizer, isto é, o sujeito
produz os signos observando a significação e o tema relacionados ao discurso
proferido dentro de uma situação (social e histórica). O signo ideológico está
vinculado ao meio em que é produzido.
Em consonância, Ponzio (2008, p. 109) traz sua contribuição a este respeito
ao comentar que o signo é sempre ideológico por revelar um ponto de vista
valorativo, uma tomada de posição diante de um contexto situacional dado, isto é,
“onde está presente o signo está também a ideologia”. O pesquisador destaca que
o que diferencia o signo do objeto ou fenômeno natural é que ele faz parte de um
processo de interação social e reflete um ponto de vista ideológico, isto é, é formado
a partir de vínculos sociais.
Para Bakhtin, o termo ideologia está ligado tanto aos sistemas
superestruturais (política, direito, religião, arte, conhecimento científico), ou seja, à
Ideologia Oficial, quanto aos diferentes substratos da consciência individual, à
ideologia do Cotidiano, ou não oficial. Nesse contexto, para Ponzio:
Os signos ideológicos refletem – “refratam” - a realidade segundo projeções de classe diferentes, e em contraposição a elas, as quais tentam manter as relações sociais de produção, inclusive quando as mesmas se convertem em um obstáculo para o desenvolvimento das forças produtivas ou, ao contrário, propõem-se como instrumento de luta e de crítica do sistema. (2008, p. 116)
E, nesse viés, Ponzio alega que a forma ideológica do signo é a expressão de
interesses sociais, a qual confere sua importância, consistência, duração e
circulação.
50
O autor busca fundamento, novamente, em Marxismo e Filosofia da
Linguagem, para falar dos fios ideológicos mobilizados na tessitura das tramas das
relações sociais nos diversos campos de atividade humana. O material signico
registra as novas formas ideológicas elaboradas a partir de mudanças sociais em
organização nos sistemas ideológicos, isto é, a consciência coletiva mantém uma
relação interdependente entre estrutura e superestrutura, pois,
A realidade ideológica é uma superestrutura situada imediatamente acima da base econômica. A consciência individual não é o arquiteto dessa superestrutura ideológica, mas apenas um inquilino do edifício social dos signos ideológicos (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2010 [1929], p.36).
O vídeo O Bonde das Garotinhas dançando Bonde das Maravilhas6 postado
no Facebook na atualidade nos fez refletir sobre questões de crenças e valores que
constituem as diferentes posições ideológicas disseminadas na sociedade.
Os questionamentos oriundos de tal publicação foram:
Kkkkkk.... Fazer quadradinho de 8 é fácil! Quero ver chegar no Ensino Médio sem engravidar. #sojesusnacausa
podiam tirar da preparação para o sexo e colocar numa escola de atletismo, ou ginástica olímpica.
pois é, agora funk é "cultura"... então acho q pode, né?! muita dó dessas crianças que, ao que tudo indica, perderam a inocência... acredito q a pergunta n é "chegarão ao ensino médio?", mas "aprenderão a ler e a escrever?" Em minha opinião, (... )
Esses comentários dos nossos amigos virtuais nos levaram a refletir sobre a
questão da alienação. Existe alienação? O sujeito bakhtiniano responde ativamente
ao seu outro e ao mundo que o rodeia, como já comentamos na conceituação de
linguagem. Pensando assim, inferimos que se trata então de uma questão de
escolhas. O sujeito escolhe alienar-se, uma vez que responde ativamente aos
apelos comerciais veiculados na mídia das grandes massas. O sujeito precisa
consumir. Não se limita a consumir aquilo que pode pagar. Consome mais do que
pode produzir. Quem não for produtivo não tem valor no mundo contemporâneo.
A ideologia nasce em determinado lugar social e serve a um propósito social,
com finalidades específicas, pois:
6 Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=c6essEHcyvg
6, acesso em 16/05/2013.
51
A realidade ideológica é uma superestrutura situada imediatamente acima da base econômica. A consciência individual não é um arquiteto dessa superestrutura ideológica, mas apenas um inquilino do edifício social dos signos ideológicos (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 2010 [1929], p.36).
Certamente que, em se tratando de grandes meios de produção, tais objetivos
se prestam a aumentar os lucros das empresas que anunciam na mídia. Mulher
precisa ser bonita, magra, bem maquiada, usar salto alto, roupas justas e curtas, ter
cabelo liso e loiro. Não interessa ao capital que a mulher seja politizada. A modinha
da vez é o funk veiculado na novela global, isso é comercial, isso é sucesso, para
algumas pessoas. Essas pequenas garotinhas tiveram acesso ao funk, não à
ginástica olímpica, não aos livros; ou, se tiveram acesso, escolheram aquilo que lhes
parecia mais interessante.
Sobral (2008, p. 41) observa que o tema dos gêneros está ligado aos recortes
ideológicos que fazemos da realidade, uma vez que os sentidos são atribuídos nas
relações concretas de interação entre sujeitos. O social é povoado de confrontos
entre grupos, que articulam a linguagem, o discurso, a partir de suas necessidades
sociais. Assim, a linguagem é um fenômeno ideológico, e o signo participa
integralmente do comportamento comunicativo dos sujeitos nos campos e atividades
sociais em que interagem, estando sujeito a avaliações ideológicas, refletindo e
refratando a realidade social. Logo, a ideologia é parte integrante da atribuição de
sentidos.
2.4 O diálogo e suas vozes
Lembremos, como já foi dito, que o princípio da alteridade postula que o
sujeito só se define como tal a partir de sua relação social com o outro, isto é, ele
age e elabora seus atos em direção ao seu outro, logo, a própria constituição do
sujeito é fundada no dialogismo – seu pensamento, sua visão de mundo, sua
consciência, ou seja, sua identidade se constitui nas relações dialógicas com o
outro.
É também por meio do diálogo que o ser humano adquire a sua linguagem, é
no contato com o outro que surgem as primeiras palavras de uma criança e não a
partir dos dicionários. Por fim, o sujeito desenvolve sua linguagem, seus atos, seus
discursos a partir de seu contato dialógico com o mundo que o cerca, nas relações
52
sociais que estabelece nas várias esferas em que atua, interagindo com os seus
vários outros.
Já discutimos na seção anterior que todo enunciado se constitui numa relação
dialógica que prevê, ao menos, dois outros enunciados, dois sujeitos, duas visões de
mundo.
Vimos também que os sujeitos se alternam nesse diálogo, enunciando de
maneira conclusiva em turnos alternados, e assim, cada ação de cada falante gera,
a partir de uma compreensão ativa, uma atitude responsiva ao enunciado anterior,
que pode ser uma réplica, uma resposta, uma pergunta, uma contraposição, uma
aquiescência. E nesse movimento dialógico, a realidade social vai se construindo o
tempo todo, se transformando, se modificando, é sempre inacabada, inconclusa. É
nesse tom que Bakhtin mostra que os sujeitos não trocam orações (unidade da
língua), mas trocam enunciados (unidade real da comunicação discursiva).
Dessa forma, Bakhtin demonstra que os enunciados não são indiferentes uns
aos outros, eles se conhecem, se refletem em ecos e ressonâncias por estarem
interligados na esfera de comunicação discursiva em que são elaborados, pois:
O discurso vivo e corrente está imediata e diretamente determinado
pelo discurso-resposta futuro: ele é que provoca esta resposta,
pressente-a e baseia-se nela. Ao se constituir na atmosfera do “já
dito”, o discurso é orientado ao mesmo tempo para o discurso-
resposta que ainda não foi dito, discurso, porém, que foi solicitado a
surgir e que já era esperado. Assim é todo diálogo vivo (BAKHTIN,
2002 [1934-1935], p. 89).
Como resposta a enunciados que o precederam, dentro de um determinado
campo de atividade humana, o enunciado pode se organizar a partir de enunciados
de outros sobre o mesmo tema, por meio de respostas, polemizações, repetições,
seleção de expressões, tonalidade. “A expressão do enunciado nunca pode ser
entendida e explicada até o fim levando-se em conta apenas o seu conteúdo
centrado no objeto e no sentido” (BAKHTIN, 2011[1952-1953], p. 297).
Nesse sentido, tomamos o plurilinguismo como forma específica de
constituição dialógica do discurso. Para tanto, encontramos apoio em O discurso no
romance (BAKHTIN, 2002 [1934-1935]), publicado em Questões de literatura e
estética: a teoria do romance (BAKHTIN, 2002 [1975]). Tal conceito refere-se ao
pluralismo constitutivo da linguagem, o que vai além das variações de uma língua
(originadas por regiões geográficas, idade, escolaridade, etc.). Para Bakhtin
53
(...) todas as linguagens do plurilinguismo, qualquer que seja o princípio básico de seu isolamento, são pontos de vista específicos sobre o mundo, formas da sua interpretação verbal, perspectivas específicas objetais, semânticas e axiológicas. Como tais, todas elas podem ser confrontadas, podem servir de complemento mútuo entre si, oporem-se umas às outras e se corresponder dialogicamente (BAKHTIN, 2002[1934-35], p. 98).
Nessa direção, Bakhtin define a plurivocalidade, a qual se refere às vozes
discursivas que permeiam a construção dialógica de um discurso, pois, em Bakhtin
(2002 [1934-1935], p.88), temos que todo discurso é orientado dialogicamente, em
direção ao seu objeto, o discurso se encontra com os discursos de outrem,
participando com eles de uma interação viva, contrapondo, impondo, acrescentando,
acreditando e desacreditando. Isso quer dizer que nesse movimento de réplica entre
o “já dito” e o “devir” muitas vozes outras são convocadas a participar da construção
do discurso.
Pensando assim, inferimos que todo enunciado nunca é o primeiro, estando
sempre povoado de vozes dos outros e aberto a respostas futuras. Nessa visão,
toda voz humana está relacionada a várias vozes, se constitui através de vozes
anteriores e na direção de vozes’ posteriores, ou seja, nenhum falante é criador
primeiro/único daquilo que diz, pois:
(...) o objeto está enredado pelo discurso alheio a seu respeito, ele é ressalvado, discutido, diversamente interpretado e avaliado, ele é inseparável da sua conscientização social plurívoca. (BAKHTIN, 2002[1934-35], p. 132).
Constatamos, então, que o enunciado é uma concentração de vozes
discursivas, as quais criam um pano de fundo por meio do qual o sujeito tenta
sobrepor a sua voz, na previsão de uma nova réplica que venha a sustentar o seu
discurso. Acerca dessa relação dialógica, Bakhtin destaca que “o locutor penetra no
horizonte alheio de seu ouvinte, constrói a sua enunciação no território de outrem,
sobre o fundo aperceptivo do seu ouvinte” (2002[1934-1935], p. 91). Isso significa
que o enunciado corrente se volta para o objeto e para os enunciados dos outros,
gerando atitudes responsivas ao já dito e novas contribuições ao tema. Então,
passamos à produção do nosso enunciado, definindo-o como resposta e ainda,
antecipando possíveis respostas a ele, articulando-o de maneira a influenciar uma
atitude responsiva favorável ao nosso ponto de vista. Para tanto, é necessário
considerar as concepções e convicções do interlocutor, sua visão de mundo, seu
conhecimento sobre o tema, seus pré-conceitos, etc. O destinatário tem papel
54
essencial na elaboração do discurso do falante, tanto quanto ao conteúdo temático,
como ao estilo de linguagem e a estrutura composicional do enunciado.
Sobral (2008, p. 19-24), em consonância, destaca o discurso como arena de
enfrentamentos entre vozes, uma vez que, em face da presença do outro, não
podemos admitir a existência de um discurso monológico. O autor destaca que “o
simples fato de alguém enunciar algo como “a verdade” já pressupõe a existência de
alguma outra “verdade” possível”, isto é, para defender sua posição é imperioso
correlacioná-la à posição do outro, ou a outras posições.
A esse respeito, Bakhtin (2002 [1934-1935], p. 86) diz que quando
produzimos um enunciado acerca de determinado objeto, encontramos esse objeto
já contestado, elucidado, analisado de diferentes formas. Esse objeto se torna então
palco de encontro com opiniões diversas, visões de mundo diferentes, correntes,
teorias, apreciações, entonações... E é nesse diálogo tenso que emergem
interações complexas, formando um novo discurso.
Logo, nenhum discurso é produzido no vazio, todo discurso é direcionado a
alguém, mesmo que esse outro seja o próprio sujeito discursivo, mesmo que seja
um ser imaginário. Em seu projeto enunciativo, o falante não pensa e nem tem
consciência de todas as vozes presentes em seu discurso, que, embora atravessado
pelos discursos de outros, destaca sempre a voz do locutor corrente, o qual não
perde sua individualidade.
A diversidade de linguagens encontradas dentro de uma mesma língua é
explicada ao considerarmos as inúmeras vozes sociais encontradas nessas
linguagens. Essas vozes se atravessam, se completam, se aproximam e se
distanciam, dependendo de vários fatores (tempo, espaço, sujeitos, contextos).
Bakhtin (2002 [1934-1935], p. 74) fala em dialetos, jargões profissionais, linguagens
de gerações familiares, linguagens de momentos, de lugares, transitórias, que
possuem estruturas e finalidades próprias a determinados contextos.
Pensando assim, percebemos a linguagem como composta de variedades,
que se dão nas fronteiras entre vozes sociais, entre momentos de interação, entre
movimentos dialógicos, definidos através de forças centrípetas (de hegemonia, de
centralização, de limitação, de priorização de um grupo privilegiado em detrimento
dos demais, determinando que uma língua, um visão de mundo, se sobreponha às
demais) e forças centrífugas (descentralizadoras, que admitem outras linguagens,
outras vozes, outras ideologias, considerando a dinâmica da vida real a partir da
55
diversidade) em conflito. Portanto, numa pesquisa sobre a linguagem, como a que
nos propomos neste trabalho, é imperioso considerar e entender as tensões entre
essas duas forças, a fim de não incorrer numa abordagem monológica do objeto
estudado (BAKHTIN 2002 [1934-1935], p. 82-83).
Quando falamos em vozes sociais, lembramos de representações sociais, em
linguagens específicas de determinados campos de atividade humana, chegando
até os jargões profissionais; podemos assim estratificar a língua dos profissionais do
direito, dos vendedores, dos políticos, dos padres, dos funkeiros, dos rappers, dos
sertanejos, do pescador ribeirinho... A língua revela quem fala, não apenas pela
articulação de recursos linguísticos, mas pelas formas com que esses discursos são
elaborados e materializados. Segundo Bakhtin,
Todas as palavras evocam uma profissão, um gênero, uma tendência, um partido, uma obra determinada, uma pessoa definida, uma geração, uma idade, um dia, uma hora. Cada palavra evoca um contexto ou contextos, nos quais ela viveu sua vida socialmente tensa; todas as palavras e formas são povoadas de intenções (2002 [1934-1935], p. 100)
Considerando, então, que toda a linguagem é constituída a partir de relações
dialógicas, e que por meio disso ressoam vozes sociais, não podemos restringir o
conceito de plurilinguismo apenas a variedades da língua; mais do que isso, o
plurilinguismo constitui o diálogo entre discursos e a plurivocalidade refere-se às
vozes discursivas arquitetadas na construção dos discursos.
Pensamos no processo de construção de sentidos que permeia o movimento
de vir a ser do discurso em constituição, isto é, em como se dão os movimentos
dialógicos entre as vozes que elaboram o discurso construído, sempre na
perspectiva do inacabamento, da renovação constante da construção discursiva.
Falamos da articulação de recursos linguísticos na construção de enunciados a fim
de gerar novos sentidos ao já dito em enunciados anteriores, corroborando, ainda,
para novas formações enunciativas que façam coro ao discurso corrente.
2.5 Sobre conceitos e métodos
Nosso olhar se volta, então, para a teoria que conduz o processo de análise.
E buscamos em “O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências
humanas” (BAKHTIN 2011[1959-61/1979]) as releituras acerca das relações de
56
sentido entre os enunciados. Entendemos que, se o sentido se inscreve em vozes
discursivas, a linguagem somente tem vida na comunicação dialógica, dito de outra
forma, atribuímos sentido somente por meio do outro, precisamos do outro para
significar, não há compreensão fora da relação dialógica.
O texto é, para Bakhtin, o ponto de partida para uma pesquisa em ciências
humanas, independente de quais sejam os objetivos da pesquisa. A condução da
pesquisa se dá nas relações dialógicas entre os textos e no interior de um texto, e
sendo cada texto único, individual, o autor lembra que a verdadeira essência do
texto se desenvolve na “fronteira de duas consciências, de dois sujeitos” (idem, p.
308 a 311).
No processo de leitura investido por nós nesta pesquisa, tal fronteira se dá
entre o querer dizer do sujeito-autor e o vir a ser do sujeito-leitor, entre o projeto
discursivo do autor e a atribuição de sentidos pelo leitor. Nesse sentido, Bakhtin
defende que:
Ver e compreender o autor de uma obra significa ver e compreender outra consciência, a consciência do outro e seu mundo, isto é, outro sujeito (“Du”). Na explicação existe apenas uma consciência, um sujeito; na compreensão, duas consciências, dois sujeitos. (...) Em certa medida, a compreensão é sempre dialógica (BAKHTIN (2011[1959-61/1979]), p. 316, grifos do autor).
Nessa perspectiva, ao assumirmos a teoria enunciativa discursiva como
norteadora de nossas leituras, admitimos, para todas as atividades que envolvem a
pesquisa, considerar as relações de alteridade entre sujeitos e, por que não, entre
sujeitos e o objeto de pesquisa, pois, quando lemos, não lemos palavras, lemos
visões de mundo, pontos de vista.
É preciso considerar, ainda, que o sujeito se constitui pelo olhar do outro,
numa relação de alteridade fundante do diálogo, logo, e da mesma forma, a
linguagem se constitui e se desenvolve por meio das relações sociais entre os
sujeitos. Pensando assim, cabe explanar o papel fundamental do conceito de
exotopia para nosso processo de seleção e análise do corpus.
Com base nessa concepção dialógica, em que os discursos estão totalmente
povoados de discursos outros, anteriores a ele, e são construídos ainda na previsão
de uma réplica vindoura, antecipando-a, podemos inferir que produzimos novos
sentidos a partir de nossa visão de mundo, por meio da imersão no espaço do outro,
no campo de visão do outro, uma vez que nos constituímos por meio dele. Logo,
57
temos no movimento exotópico atividade essencial para a produção estética, devido
a essas articulações de aproximação e distanciamento entre os olhares. Cada olhar
reflete um ponto de vista diferente, único, irrepetível, se revelando diretamente na
produção de sentidos.
Duas pessoas podem olhar o mesmo objeto, mas cada um, de seu lugar,
sócio-historicamente situado, terá sua apreciação valorativa diferenciada acerca do
objeto contemplado. Isso implica acentuações valorativas diferenciadas aos signos
ideológicos utilizadas na construção de cada enunciado. O outro dá o acabamento
necessário ao eu, por meio do seu excedente de visão, do seu lugar único, situado
fora do eu.
O excedente de visão se funda nessa diferença, considerando, no
acabamento, as concepções teóricas de cada um. Sendo assim, a exotopia é
inerente ao processo de compreensão e, por conseguinte, condição fundamental
para a produção do conhecimento em ciências humanas.
O termo exotopia refere-se, especificamente, à criação estética e de
pesquisa, ao trabalho do artista ou pesquisador na elaboração de sua obra a partir
de análise de um objeto específico.
Do ponto de vista do enunciado, exotopia refere-se ao sentido de se situar
em um lugar exterior, em ciências humanas, ao texto do pesquisado e o texto do
pesquisador. Para esclarecer, Amorim (2006, p. 102) destaca:
A criação estética ou de pesquisa implica sempre um movimento duplo: o de tentar enxergar com os olhos do outro e o de retornar à sua exterioridade para fazer intervir seu próprio olhar: sua posição singular e única num dado contexto e os valores que ali afirma.
Na pesquisa em ciências humanas, o pesquisador analisa o trabalho de
outrem acerca de determinado assunto e tenta perceber o olhar de seu pesquisado
sobre aquele determinado objeto, voltando ao seu “lugar exterior” para elaborar o
seu texto (criação estética) sobre o que ele conseguiu captar em sua pesquisa.
Trata-se então da diferença entre dois olhares, entre dois pontos de vista. Nesse
momento, a fim de sintetizar o que vê, o pesquisador utiliza-se de seus valores, suas
perspectivas, suas impressões, sua formação, para discorrer acerca do que viu.
Em consonância, em Metodologia das Ciências Humanas, Bakhtin
(2011[1974-79]) afirma que o objeto das ciências humanas é o ser expressivo e
58
falante, cujo sentido e significado é inesgotável, considerando que este ser não
coincide consigo, mas se revela, se constitui no horizonte do outro.
Nesse ensaio, o autor esclarece, ainda, que, ao contrário das ciências exatas
– onde o conhecimento é produzido de forma monológica, em que um sujeito
contempla uma coisa, emitindo um enunciado sobre ela -, em ciências humanas:
Qualquer objeto do saber (incluindo o homem) pode ser percebido e conhecido como coisa. Mas o sujeito como tal não pode ser percebido e estudado como coisa porque, como sujeito e permanecendo sujeito, não pode tornar-se mudo; consequentemente, o conhecimento que se tem dele só pode ser dialógico (BAKHTIN, 2011[1974-79], p. 400).
Nossos estudos nos permitem afirmar que, no processo de leitura, ao tentar
alcançar o querer dizer do autor, estamos fazendo um movimento exotópico de
tentar enxergar com os olhos do autor, tentar saber o que o autor quis dizer no seu
discurso e depois reproduzir, voltar ao nosso ser único, ao nosso lugar situado
sócio-historicamente, para tentar reproduzir a partir dos nossos valores o que nós
entendemos do querer dizer do autor. Então, o processo de exotopia está
diretamente relacionado à atividade de leitura, e, por conseguinte, à pesquisa em
ciências humanas.
Nesse viés, considerando a constituição e a evolução da língua/linguagem e
do próprio sujeito por meio das relações sociais dialógicas que estes estabelecem
em tempos e espaços situados, Bakhtin/Voloshinov (2009[1929], p. 129) propõem
uma ordem metodológica para o estudo da língua, definida como método
sociológico, o qual é composto de três estágios:
1) As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições
concretas em que se realiza, isto é, a formação de sentidos a partir do tema e das
esferas de comunicação humana;
2) As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação
a interação verbal, ou seja, ao gênero discursivo;
3) O exame das formas da língua na sua interpretação linguística habitual,
isto é, a constituição do enunciado concreto.
Para Santos (2011, p. 48), o método sociológico organiza categorias textuais
de forma a definir uma ordem de relevância entre elas, a partir da qual, a
pesquisadora infere que o discurso é que significa o texto, e não o contrário.
59
Nessa perspectiva, passamos à análise do corpus selecionado para esta
investigação. Já vimos que as vozes representam os sujeitos falantes nos discursos.
Falamos, ainda, que essas vozes abarcam visões de mundo, apreciações
valorativas, pontos de vista, os quais revelam o lugar em que esses sujeitos se
situam. Sabemos também que essas vozes anteriores também estão povoadas de
outras vozes e a elas respondem. Nossa empreitada, então, se baseia na
investigação desses sujeitos discursivos, dos lugares que habitam, das vozes
anteriores a elas, a quem destinam suas falas, por que são elaboradas, que lugares
sociais representam. Nosso olhar vai para os discursos que constituem discursos, e
não apenas a realidade imediata que os envolvem. Pretendemos, a partir do
presente, refletir sobre passado em direção ao futuro.
60
CAPÍTULO 3
POR UMA ANÁLISE DIALÓGICA DE DISCURSOS
Pretendemos, neste capítulo, evidenciar os diálogos que se estabeleceram
entre os discursos selecionados por nós por ocasião da polêmica do Livro Didático
“Por uma Vida Melhor” e, ainda, demonstrar como esses discursos são arquitetados,
no movimento de refração de discursos anteriores e antecipação de discursos
futuros.
Nesta perspectiva, organizamos uma investigação de natureza qualitativa, de
cunho documental e bibliográfico, gerando dados por meio de análise de textos que
circularam na mídia por ocasião da polêmica do livro didático “Por uma vida melhor”,
a fim de, após leitura e seleção do corpus coletado em notícias, artigos e colunas
assinadas online, elaborar uma análise de discursos baseada no diálogo entre os
sujeitos que se fizeram participantes nessa polêmica, desde o senso comum às
colunas mais prestigiadas da mídia.
Para tanto, consideramos os Estudos de Bakhtin e seu Círculo e trabalhos de
pesquisadores de sua obra, a partir da concepção dialógica da linguagem, uma vez
que, para Bakhtin (1997, p. 108), “a língua não se transmite; ela dura e perdura sob
a forma de um processo evolutivo contínuo”. Logo, consideramos em nossas leituras
as relações de alteridade em que são elaborados os discursos, pois entendemos
que é por meio das relações comunicativas entre sujeitos que a língua entra na vida,
num intenso e cíclico movimento de encontros e desencontros.
Na visão bakhtiniana, isso significa que todo discurso é elaborado a partir de
discursos anteriores a ele e, ainda, se constituem na expectativa de uma resposta
futura. Logo, o discurso prevê, antecipa suas possíveis respostas, já em sua fase de
elaboração (BAKHTIN, 2002[1934-35], p. 89). É preciso destacar ainda o contexto
de produção dos discursos, ou seja, o fundo dialógico que o influencia em seu
projeto discursivo
Nessa perspectiva, para delimitar o corpus - tendo em vista a vastidão de
textos que já havíamos coletado nesses dois anos após o início da discussão acerca
do livro didático “Por uma vida melhor” -, iniciamos a leitura atenta de cada um
desses textos, com a missão de encontrar fios discursivos que ligassem uns aos
61
outros, caracterizando as relações dialógicas entre eles, por meio da identificação de
semelhanças e diferenças, respostas e contrarrespostas, encontros e desencontros.
Sendo assim, selecionamos os textos que melhor evidenciam essas
características que desejamos analisar, isto é, os textos em que mais facilmente
podemos identificar as vozes, isto é, as reações ao evento, e que melhor evidenciam
as suas posições ideológicas expressas por meio de suas formações enunciativas.
Organizamos nosso corpus da seguinte maneira:
NºOrdem Gênero Data de publicação
Autor/Veículo Título
Texto 1 Notícia 13/05/2011 Redação do Jornal Nacional/G1
MEC defende que aluno não precisa
seguir algumas regras da gramática
para falar de forma correta
Texto 2 Artigo assinado
17/05/2011 Alexandre Garcia/G1
Aboliu-se o mérito e agora aprova-se a frase errada para não constranger
Texto 3 Notícia 18/05/2011 Redação do G1 em Brasília
MEC não vai recolher livro com erros de concordância, diz Haddad
Texto 4 Notícia 31/05/2011 Robson Bonin, G1 em Brasília
Haddad chama de 'injustiça crassa' críticas a livro didático do MEC
Texto 5 Notícia 31/05/2011 Robson Bonin, G1 em Brasília
Ministro da Educação compara críticas a livro do MEC a fascismo
Texto 6 Coluna assinada
17/05/2011 Augusto Nunes/Veja
A dona do português
Texto 7 Coluna assinada
14/05/2011 Reinaldo Azevedo/Veja
Livro didático faz a apologia do erro: exponho a essência da picaretagem teórica e da malvadeza dessa gente
Texto 8 Artigo assinado
18/05/2011 O Estado de S. Paulo/O estadão
A pedagogia da ignorância
Texto 9 Artigo assinado
20/05/2011 Nathália Goulart/ Veja
As lições do livro que desensina
Texto 10 Artigo assinado
20/05/2011 Gaudêncio Torquato/ Estadão
A “espertocracia” educacional
Texto 11 Coluna assinada
22/05/2011 Augusto Nunes/ Veja
Os aiatolás do idioma insistem na vigarice lucrativa e levam mais um troco do escritor Deonísio da Silva
Texto 12 Artigo Assinado
19/05/2011 Carlos Alberto Faraco/ Gazeta do povo
Polêmica vazia
Texto 13 Artigo Assinado
25/05/2011 Luis Nassif/ Filosomidia
O escândalo do livro que não existia
Texto 14 Artigo Assinado
24/05/2011 Cristóvão Tezza/ Gazeta
O poder do erro
62
do povo
Texto 15 Artigo Assinado
29/05/2011 Sérgio Fausto/ Estadão
Educação para o debate
Texto 16 Coluna Assinada
15/05/2011 Reinaldo Azevedo/Veja
Eles odeiam é a civilização!
Texto 17 Artigo Assinado
16/05/2011 Hélio Schwartsman/ Folha de S. Paulo
Uma defesa do “erro” de português
Texto 18 Artigo Assinado
23/05/2011 Marcos Bagno/ O Globo
Outra opinião: uma falsa polêmica
Texto 19 Artigo Assinado
19/05/2011 Ana Cássia Maturano/G1
Opinião: Enquanto escrita exige rigor, linguagem oral é mais solta
Nesse processo de seleção de corpus, procuramos evidenciar que os
discursos são elaborados sócio-histórica e ideologicamente, circulando de forma
ininterrupta nas diversas esferas da comunicação verbal, renovando-se
constantemente. A cada novo contexto a acentuação da palavra se modifica,
demonstrando sua natureza ideológica, pois sua significação depende do contexto
de produção, circulação e recepção.
Temos claro, conforme estudamos capítulo 2 desta investigação, que todo
enunciado é dirigido a alguém, a outros enunciados, se posicionando em relação a
esses seus outros, na intenção de obter uma resposta que venha a apoiar o discurso
corrente.
Torna-se imperioso, ainda, vislumbrarmos os recursos linguísticos utilizados
para retomar e antecipar outros discursos, os quais denotam a relação entre os
mesmos, evidenciando os posicionamentos ideológicos do sujeito que fala e as
representações marcadas pelas vozes discursivas - quem enuncia, de que lugar
enuncia, para quem enuncia - a fim de demonstrar os diálogos nessas construções
enunciativas.
Ao revelarmos tempos, espaços e sujeitos, inevitavelmente trabalharemos os
valores atribuídos ao objeto dos discursos e, ainda, os projetos discursivos inseridos
em cada enunciado proferido. Considerando que grande parte desses enunciados
configuram discursos antagônicos, apontando para índices de valoração, não
podemos deixar de utilizar, para tal análise, o conceito de ideologia cunhado pelo
Círculo de Bakhtin, ao considerar que sua definição refere-se a toda tomada de
posição do homem em face de seus reflexos e interpretações da realidade social.
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3.1 Situando a esfera e os gêneros
Apoiados no método sociológico de pesquisa proposto por Bakhtin, conforme
já explicitamos no capítulo anterior, é imperioso iniciar nossas leituras considerando,
primeiramente, a esfera onde floresceu tal discussão, manifestada por meio dos
gêneros notícia, artigo e coluna assinada (cujos exemplares foram coletados na
internet para a constituição do corpus).
Explicitar a esfera de comunicação é imprescindível para a compreensão do
texto, pois a ela estão vinculados os processos de produção, circulação e recepção
do gênero. Mais importante ainda, entendendo a esfera de comunicação discursiva,
entendemos os diversos posicionamentos ideológicos aos quais esses textos estão
vinculados, uma vez que a utilização da língua é realizada por meio de enunciados
(orais e escritos) que refletem as finalidades de uma esfera de atividade humana,
pois
Cada enunciado é pleno de ecos e ressonâncias de outros enunciados com os quais está ligado pela identidade da esfera de comunicação discursiva. (...) É impossível alguém definir sua posição sem correlacioná-la com outras posições. Por isso, cada enunciado é pleno de variadas atitudes responsivas a outros enunciados de dada esfera da comunicação discursiva (BAKHTIN, 2011 [1952-1953], p. 297, grifos nossos).
Rodrigues (2001, p. 74-80), ao definir as especificidades da esfera
jornalística, procura não limitar tal definição aos meios de reprodução e difusão, isto
é, às suas mídias, simplesmente. A autora cita alguns fatores que corroboraram na
consolidação da esfera, situando as condições sócio-ideológicas relacionadas a seu
processo histórico de formação: “a revolução burguesa contra a aristocracia e o
poder absoluto, a sua ascensão ao poder; a queda da censura prévia, exercida
pelos Estados nacionais e pela Igreja; o processo de alfabetização em larga escala,
que viabilizou a leitura de jornais.” É a partir dessa conjuntura que a imprensa
adquiriu algum valor social, sobretudo no âmbito político e financeiro, dada a
necessidade de circulação de informações e opiniões de forma periódica. Segundo a
autora, o jornalismo impresso só se consolidou a partir do século XVII, na Alemanha.
Por fim, Rodrigues exibe uma definição dessa esfera reportando-se aos
princípios da teoria bakhtiniana:
64
Numa síntese, pode-se dizer que o objeto da esfera jornalística se constitui no horizonte de acontecimentos, fatos, conhecimentos e opiniões da atualidade, de interesse público. Nesse contexto, sua função sócio-ideológica se caracteriza por fazer circular (interpretar, "traduzir") periódica e amplamente as informações, conhecimentos e pontos de vista da atualidade e de interesse público, "atualizando" o nível da informação da sociedade (ou de grupos sociais particulares) (RODRIGUES, 2001, p. 81).
Considerando o seu processo de formação (vinculado a áreas financeiras e
políticas) e, ainda, o papel marcante da esfera jornalística na formação da opinião
pública, concordamos com a autora em relação à não existência de verdadeira
objetividade nos textos oriundos dessa esfera, nem mesmo no gênero notícia, pois a
própria escolha das pautas a serem noticiadas já remete a uma valoração. A
neutralidade é uma característica que a própria esfera se atribui para garantir a
credibilidade de seus leitores, segundo a autora.
Em nosso caso específico, sentimos necessidade de falar da esfera midiática
em vez de esfera jornalística, por entender a amplitude de seu alcance – mídia
impressa, radiofônica, televisiva, digital - que abrange não somente as produções de
jornalistas, mas de publicitários, especialistas e pesquisadores de áreas específicas,
educadores e intelectuais, além de reservar espaço nessas produções para os
receptores desses discursos, como veremos mais à frente na coluna de Augusto
Nunes/Veja, por exemplo.
Comparada com o jornalismo impresso, a mídia televisiva, por ser mais rápida
e, ainda, por atingir a todos os níveis sociais da sociedade, leva vantagem, pautando
os temas abordados nos jornais impressos, radiofônicos e na internet (mídia na qual
coletamos nossos dados). Acerca disso, a autora elenca algumas características do
jornal televisivo que têm sido incorporadas ao jornalismo impresso: “primeira página
semelhante a uma tela de televisão, extensão reduzida dos textos, uso excessivo de
títulos chocantes, prioridade do local sobre o internacional etc” (idem, p. 84).
Podemos destacar, da mesma forma, o vínculo que os jornais televisivos e
impressos mantêm com a internet. A maioria deles, se não todos, possui um portal
na rede mundial de computadores, onde são disponibilizadas as informações
divulgadas na TV, para leituras posteriores. Vale destacar que todos os textos
coletados para esta pesquisa possuem acesso livre na internet, dado o seu alcance
e a rapidez. A velocidade da informação é mais rápida a cada dia, tendo como
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grande suporte as redes sociais na internet e as novas tecnologias dos aparelhos
celulares e outros equipamentos que registram e divulgam materiais em tempo real.
Podemos refletir, a partir da pesquisa de Rodrigues, que as relações de poder
entre mídia, economia e política são cada vez mais estreitas, em face do avanço
tecnológico, responsável pela velocidade da informação. Basta considerarmos o
espaço cada vez maior para as propagandas comerciais (TV, rádio, mídia impressa,
internet), sem contar os grandes grupos de investidores no mercado de redes de
acesso à informação. Não há como negar que a esfera midiática está subordinada
aos interesses de mercado, porta voz de grupos econômicos e políticos que querem
difundir suas ideias e vender seus produtos.
Nosso corpus, como já dito, compreende textos produzidos em gêneros
notícia, artigo assinado e coluna assinada. Embora esses gêneros possam se
aproximar pela estrutura composicional um tanto estabilizada pela esfera, se
diferenciam pela abordagem do conteúdo temático e pelo estilo de linguagem.
A notícia objetiva uma interação com o seu leitor a partir do relato de um
acontecimento relevante na realidade social, realçando os impactos que tal fato
pode gerar. Porém, devemos destacar que, embora tenha a função de apenas
divulgar um fato, esse gênero revela intenções do veículo em que é publicado, ao
considerarmos o contexto sócio-histórico do momento de sua divulgação. Em outras
palavras, a estrutura do gênero possui certa estabilidade, porém, sua organização
se define pelo querer dizer de seu enunciador (o autor imediato e o veículo de
comunicação que representa).
Já o artigo e a coluna assinada tendem a partir de uma notícia para chamar a
atenção do leitor para o seu ponto de vista acerca das influências que um
determinado fato/objeto pode trazer à sociedade, buscando levar o seu leitor a se
posicionar, claro, em consonância com o seu discurso. Assim, esses gêneros
funcionam para levar informação sobre um fato da realidade social, frisando o
impacto deste sobre a sociedade, seguindo para uma apreciação valorativa de tal
fato.
É importante frisar que o artigo, na maioria das vezes, é escrito por
especialistas, pesquisadores ou estudiosos de determinadas áreas específicas, os
quais são convidados pelo veículo de comunicação para participarem
opinativamente de um debate publicando um artigo. Já a coluna refere-se a uma
seção de um jornal ou revista, de responsabilidade de um colunista, geralmente um
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jornalista, que, periodicamente, emite opiniões acerca de variados assuntos ligados
a fatos relevantes da sociedade, sobretudo na área da economia e política.
Fazendo uma leitura cuidadosa de algumas notícias selecionadas para esta
análise – veiculadas, sobretudo na internet, por ocasião da polêmica do livro didático
“Por uma vida melhor” -, percebemos claramente que tais discursos estabelecem
posições definidas sobre o tópico ora em pauta, dado o movimento das vozes que
são convocadas por tais autores na elaboração desses discursos, pois:
Em todos os domínios da vida e da criação ideológica, nossa fala
contém em abundância palavras de outrem, transmitidas com todos
os graus variáveis de precisão e imparcialidade. Quanto mais
intensa, diferenciada e elevada for a vida social de uma coletividade
falante, tanto mais a palavra do outro, o enunciado do outro, como
objeto de uma comunicação interessada, de uma exegese, de uma
discussão, de uma apreciação, de uma refutação, de um reforço, de
um desenvolvimento posterior, etc, tem peso específico maior em
todos os objetos do discurso (BAKHTIN, 2002[1934-35], p. 139).
Nessa perspectiva, para a análise dialógica de discurso a que nos propomos
nesta investigação, partimos da esfera de comunicação em que esses discursos
emergem, nos atentando aos movimentos de construção de sentidos que envolvem
aspectos inerentes à forma composicional, conteúdo temático e estilo de linguagem
empregados nessas formações enunciativas, a fim de evidenciar valorações dadas
pelos sujeitos que interagem nessas relações comunicativas.
3.2 As vozes do G1 em diálogo
Não podemos negar que a mídia, de uma maneira geral, é um dos maiores
instrumentos de formação de opiniões de uma sociedade (se não o maior), que,
neste contexto investigado, desempenha um papel doutrinador ao defender um
português puro, fundado nas gramáticas normativas, marginalizando, assim, as
variedades populares e insistindo em manter e reforçar o caráter normativo
disseminado no senso comum de língua correta ou incorreta. Exemplo disso é o
sucesso do investimento da Rede Globo no quadro Soletrando do programa do
Luciano Huck. Trata-se de uma competição entre estudantes da educação básica
que considera apenas a formação da palavra dicionarizada, não passando de um
jogo de memorização que, como faz muito sucesso no exterior, foi copiado no Brasil.
67
Nesse contexto, a Rede Globo, inaugurando a polêmica em nível nacional,
através de seus jornais televisivos de maior visibilidade – Jornal Nacional (Texto 1) e
Bom dia Brasil (Texto 2) -, deflagra a celeuma utilizando recursos linguísticos que
demonstram a grandiosidade e a gravidade do problema pautado por eles. Vejamos:
(Texto 1)7
(Texto 2)8
7 Disponível em: http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2011/05/mec-defende-que-aluno-nao-precisa-
seguir-algumas-regras-da-gramatica-para-falar-de-forma-correta.html, acesso em 03/10/2013.
68
Sabemos que o enunciado quase meio milhão de alunos é muito diferente de
484.195 alunos. Mas, daquele modo, o impacto é bem maior. Passa-se o sentido de
que o problema é grande, imenso, gigantesco, com proporções nunca vistas,
convocando o leitor a uma tomada de posição diante da gravidade do
acontecimento, incitando a opinião pública à polêmica. É visível aqui, também, a
presença autoral do veículo de comunicação, que objetiva ampliar a polêmica,
alimentando a posição ideológica de que o português é uma língua única, fundada
na rigidez dada pela gramática.
Para tornar mais evidente esse aspecto, observemos a relação existente
entre três enunciados constituídos no gênero notícia, publicados no site G1. O
primeiro deles, publicado em 18/05/2011, não possui assinatura, os demais,
publicados em 31 do mesmo mês, são de autoria de Robson Bonin.
(Texto 3)9
Texto 410
8 Disponível em: http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2011/05/aboliu-se-o-merito-e-agora-aprova-se-
frase-errada-para-nao-constranger.html, acesso em 03/10/2013 9 Disponível em: http://g1.globo.com/educacao/noticia/2011/05/mec-nao-vai-recolher-livro-com-erros-de-
concordancia-diz-haddad.html, acesso em 01/10/2013.
69
Texto 511
Considerando a ordem cronológica em que tais recortes estão organizados,
notamos que o tom condenatório da emissora em relação às possibilidades de
variações de uso da língua é muito mais evidente nos Textos 1 e 2, pois, com o
passar dos dias, em face da repercussão da notícia e do crescimento do debate, a
valoração dada ao livro em questão, feita pelo enunciado nos títulos das notícias
veiculadas no site, sofre algumas alterações: livro com erros de concordância (Texto
3); livro didático do MEC (Texto 4); e livro do MEC (Texto 5).
Ainda podemos destacar que, embora a primeira notícia revele, logo no título,
que o livro contém erros de concordância – MEC não vai recolher livro com erros de
concordância, diz Haddad (Texto 3) -, nas outras duas publicações, o site é mais
cauteloso.
Na segunda notícia, o subtítulo traz: Livro do MEC distribuído a escolas
aceitaria erros de concordância (Texto 4).
Já na terceira, tal informação é publicada apenas dentro do texto, e não no
título ou subtítulo. Vejamos:
10
Disponível em: http://g1.globo.com/educacao/noticia/2011/05/haddad-chama-de-injustica-crassa-criticas-livro-didatico-do-mec.html, acesso em 01/10/2013. 11
Disponível em:, http://g1.globo.com/educacao/noticia/2011/05/ministro-da-educacao-compara-criticas-livro-do-mec-fascismo.html, acesso em 01/10/2013.
70
(Texto 5)
Notemos a mudança do tempo verbal na constituição linguística dos
enunciados da segunda e terceira notícia veiculada (futuro do pretérito – aceitaria,
permitiria) como um indício de distanciamento da polêmica, como que querendo
deixar para outros a oportunidade de julgar a questão da veracidade dos fatos.
Essa modificação na valoração dada ao livro pode ser justificada pelo avanço
nas discussões que envolveram a polêmica, apontando para discursos contra e a
favor da proposta pedagógica defendida pelos autores da obra. Seria uma forma de
evidenciar a neutralidade do veículo de comunicação neste debate.
Nesse mesmo contexto, destacamos a seguir a plurivocalidade caracterizada
por citações diretas e indiretas presentes nos enunciados como outra estratégia de
que o enunciador dispõe para se aproximar e se distanciar de opiniões de seus
outros.
Atentemo-nos para a convocação de forma mais indireta da voz do Ministro
da Educação (representante do governo federal e responsável pela distribuição do
livro), distanciando-se deste com o objetivo de demonstrar imparcialidade no debate.
Vejamos:
(Texto 3)
71
(Texto 4)
(Texto 5)
Por outro lado, notemos que quando o enunciador se reporta a críticos do
livro o faz de forma mais direta, num movimento de aproximação do discurso deste:
(Texto 3)
No recorte acima, o discurso da Academia Brasileira de Letras é incorporado
ao discurso do locutor, num movimento de aproximação, demonstrando o
nivelamento ideológico entre essas vozes. A ABL é convocada muito
apropriadamente para endossar o discurso do G1 nessa notícia (Texto 3 - MEC não
vai recolher livro com erros de concordância, diz Haddad). Essa publicação ainda
traz uma breve descrição de COMO O MEC ESCOLHE OS LIVROS DIDÁTICOS.
No Texto 4 (Haddad chama de ‘injustiça crassa’ críticas a livro didático do
MEC), o G1 traz um link (saiba mais) para a notícia anterior (Texto 3). E o Texto 5
(Ministro da Educação compara críticas a livro do MEC a fascismo), publicado no
72
mesmo dia do Texto 4, traz um link (saiba mais) para as duas notícias veiculadas
anteriormente.
Embora mais cauteloso quanto à valoração dada ao livro nos títulos,
observamos logo no início dessas duas últimas publicações o mesmo enunciado
sendo retomado:
(Texto 4)
(Texto 5)
Ao retomar o enunciado anterior (veiculado no mesmo dia, pelo mesmo autor,
no mesmo veículo de comunicação), o locutor reforça o discurso de que o livro está
sendo criticado por diversos setores da sociedade, e não pela mídia. Logo, o
autor/veículo se projeta no discurso como um porta-voz da sociedade, a fim de
convocar essas vozes para apoiarem o seu discurso, convocando o leitor potencial
do site para apoiar seu posicionamento, respondendo ativamente a ele, se
posicionando. Mais uma vez, o enunciador tenta se mostrar neutro no debate,
demonstrando ao seu leitor que ele, como cidadão, deve também se posicionar
diante da discussão, como fazem os “diversos setores da sociedade”.
A segunda notícia revela ainda que Haddad também convoca outras vozes
para apoiar seu discurso:
73
(Texto 4)
Por meio do excerto acima, o G1 tenta demonstrar que, ao contrário de seus
oponentes, Haddad não agrega diversos setores da sociedade, citando apenas
alguns artigos de jornal, educadores e entidades de ensino. Um destaque muito
oportuno para fragilizar o discurso do Ministro da Educação, logo, do governo
federal, e, por conseguinte, do governo do PT.
Vale refletir que, pela tradição, o purismo linguístico é uma ideologia
compartilhada tanto para “direita” quanto pela “esquerda”, logo, com certeza, as
críticas seriam as mesmas se o governo fosse do PSBD.
Nesse viés, atentemos para o fato de que tal celeuma se deu logo no início da
gestão da presidente Dilma Roussef. Nesse contexto em que se completam oito
anos da primeira gestão do PT na presidência do país e em que pela primeira vez
uma mulher ocupa tal cargo, a polêmica do livro didático “Por uma vida melhor”
representa uma boa oportunidade para engrossar as fileiras de críticas ao partido.
É o que podemos notar ao analisar o Texto 5, onde o jornalista destaca o que
chama de “troca de farpas” entre o Ministro da Educação Fernando Haddad (PT) e o
Senador Álvaro Dias (líder do PSDB no Senado).
Texto 5
Nessa luta política travada entre o ministro e o senador, o enunciador da
notícia mantem-se distanciado por meio das citações indiretas (afirmou Haddad,
afirmou Dias, questionou Dias, afirmou Haddad) e, para por fim ao debate, conferiu a
última palavra ao presidente da Comissão de Educação do Senado, Roberto
Requião (PMDB):
74
(Texto 5)
Sem mais considerações, ao final, o jornalista traz um resumo (Injustiça
crassa) da notícia publicada no mesmo dia (Texto 4 – Haddad chama de ‘injustiça
crassa’ críticas a livro didático do MEC). E, mais uma vez, o enunciador tenta
demonstrar a imparcialidade do site G1 que, segundo ele, agregaria em suas
notícias vozes de vários grupos e representações sociais, deixando que o leitor
atribua sentidos e tire suas próprias conclusões.
3.3 Veja: “a dona do português”
Nesta seção, com o intento de demonstrar as manifestações das vozes
discursivas que se posicionam acerca do tema discutido, a partir da concepção
dialógica da linguagem, trazemos à tona uma publicação do colunista Augusto
Nunes, publicada no site da revista Veja em 17/05/2011, conforme abaixo:
Texto 612
12
Disponível em: http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/sanatorio-geral/a-dona-do-portugues/, acesso em 01/10/2013.
75
O título da coluna, “Sanatório Geral”, demonstra claramente o intento de
ridicularizar os enunciadores dos discursos veiculados neste site. Em uma pequena
apresentação na parte superior direita da página (vide imagem acima), encontramos
a seguinte comprovação para esta nossa afirmação: “Com palavras e imagens, esta
página tenta apressar a chegada do futuro que o Brasil espera deitado em berço
esplêndido. E lembrar aos sem-memória o que não pode ser esquecido”.
Nesse viés, seria esse o local onde os desmemoriados brasileiros
encontrariam uma cura para a sua amnésia. A estratégia de trabalho do colunista se
funda em primeiro apresentar entre aspas o discurso de outrem, para, então, a partir
dele, tecer o seu próprio comentário, por meio do qual satiriza o discurso de origem,
provocando e convocando outras vozes para que se façam presentes no espaço
reservado a comentários que o site disponibiliza. Acerca desse movimento, Bakhtin
esclarece que:
O polemista inescrupuloso e hábil sabe perfeitamente que fundo
dialógico convém dar às palavras de seu adversário, citadas com
fidelidade, a fim de lhes alterar o significado. (...) é muito fácil tornar
cômica a mais séria das declarações. (...) o grau de influência mútua
do diálogo pode ser imenso (BAKHTIN, 2002 [1934-35], p. 141).
O colunista lança comentários provocativos, a fim de despertar novos
comentários de seu público (internautas) que venham a reafirmar sua posição,
dando respaldo e credibilidade à sua opinião, o que realmente ocorre, como
veremos logo mais, na análise dos comentários gerados a partir de tal publicação.
O título do post, “A dona do português”, ironiza o sujeito do discurso anterior,
neste caso, a Professora Heloisa Ramos, coautora do livro didático “Por uma Vida
Melhor”, sugerindo que ela se acha a dona da língua nacional e, logo, detém todos
os direitos reservados e poderia, então, fazer o que bem entendesse com o ensino
da disciplina em seu material didático. Além disso, podemos notar que o colunista
encerra seu discurso com a mesma pretensão, ao enunciar que “especialistas em
linguística têm o direito de ensinar errado sem que ninguém mais abra a boca”,
ridicularizando a autora e a ciência linguística.
Os recortes abaixo demonstram atitudes responsivas muito próximas, porém,
oriundas de lugares diferentes. Vejamos:
1. … Embora a incompetência queira administrá-la, não consegue. Qualquer aleijado mental sabe que a educação no Brasil é coisa fora de plano...
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2. Agora, implantar no ensino público os “conhecimentos” dele, é holocausto educacional.
3. Como dizem: a ignorância petista está oficializada em nosso país. É mais uma vitória para o PT e uma derrota para a decência. Confesso, de todos os erros que eu pensei que esse governo fosse cometer, nunca imaginei que ele chegaria tão baixo! OREMOS...
4. Com certeza está grande especialista será convidada a participar do Ministerio da Pesca da grande ministra especialista em caçar sapo no lago Paranoa, Edeli Salvatti, que frase linda, NÓS PEGA O PEIXE
5. Um recado assim ói: “Ói, turma, num deu pra esperá Aduvido que isso, num faz mar, num tem importância, Assinado em cruz porque não sei escrever”
6. Exatamente, é para especialistas de verdade, e não ideólogas medíocres como essa professora de picaretagem.
7. É com tristeza que assistimos a este festival de ignorância oficialista. Ignorantes ilustrados é o que são estes “mestres”, “doutores” ou o que mais se arroguem. Que estes pseudoprofessores saibam que títulos não garantem verdadeira cultura civilizatória e a sabedoria se nutre mais da reflexão íntima do que da arrogância fruto do esforço bruto.
8. Para um amador, até que ficou mais ou menos, mais pra menos do que pra mais…
9. Graças a Deus minha santa professora jamais vai permitir em lecionar com base nesta versão profana da gramática portuguesa. Oremos!
10. Acho que o livro é bem coerente com nível da educação pública no Brasil. Ou estou errado?
11. Essa “muié”, pelo que vejo, é uma usina de sandices. Não só escreve como também fala muita besteira.
12. Ou seja: qualquer um que criticar a ideia de jirico de Heloísa Ramos e não for especialista na área pode sofrer de preconceito acadêmico.
13. Ue… Para falar assim nao preciso do MEC, da escola e nem dos livros… PS. e este teclado alemao, sem acentos, serve!
14. ... pois estou desatualizada depois de 60 anos quero aprender a nova língua portuguesa senão a MESTRA da burrice essa tal de Heloísa Ramos vai debochar de “migo.”
15. Fora com a incompetência professoral dentro da UNFRN. Pobre alunos potiguare, né não, fesora.
16. Gentalha!
17. aí não; “nós pega o peixe”, e outras barbaridades, a musa do PT, a Ideli Salvati, já pronuncia há muito tempo!
18. A Heloisa não foi presa ainda????
19. DE QUANTO TERA SIDO O VALOR DO MIMO?
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20. … porque em relação ao idioma, não conseguiu emplacar o reducionismo petista, neo-albanês, aperfeiçoado em cuba, que pretende um dia, quem sabe?, (...) se comunicam em dilmês ou lulês (...) mais uma alquimia petista pra vender livros encalhados. essa tese da cultura curupira deve ter rendido pra lá de cinco milhões… então, está explicado.
21. Conclusão simples: A gramática que estão tentando instituir aos nossos pobres jovens do ensino público é a palavra falada do mentor da atual presidente (...)”.É a forma mais covarde e vil de coaptar os incautos para o seu bando, como se o analfabetismo fosse condição primordial para ser alguém na vida.
22. Mas nem o pessoal do PT participativo pode opinar? O Menas e a Metralha instalada na Pensão Alvorada terá teriam muito a contribuir…
23. Isso a alguns anos atrás vcs os ptralhas chamavam de DITADURA, (...)
24. A moça está fazendo uma auto-crítica e pedindo prá sair. Vamos deixar ela ir embora.
25. E outra… com gente como essa, tem que fazer como Olavo de Carvalho e mandar pra p… q… p…!!
26. Caro Augusto Nunes, boa noite. Caro amigo, longe de mim ser preconceituoso mas eu acho que, no máximo, e com muita boa vontade, essa senhora pode ser é dona de padaria. Do português, jamais!
27. Alguém tem que dizer pra essa burra (inconseqüente, prepotente e, no mínimo, petralha) que falar errado é ERRADO!!!
28. Os burros fazem e desfazem este país. Uma hora dessas, não terá mais “concerto”.
29. Vamos ouvir o que diz a especialista e todos teremos uma vida melhor, como anuncia o título de seu livro: sem regência, concordância, ortografia, gramática, prosódia ou prosopopeia.
30. Agora todo mundo pode falar como o palanqueiro chefe.
Como podemos notar nos trechos em destaque, não localizamos nenhum
comentário em defesa do livro ou da professora Heloisa Ramos. Os leitores da
coluna Sanatório Geral seguem o posicionamento ideológico de seu idealizador,
compartilhando opiniões firmes acerca da polêmica. Esses enunciadores reafirmam
sua posição conservadora em relação ao uso da língua e sua descrença na
educação no Brasil. Suas escolhas lexicais apontam para valoração que assumem
diante da polêmica. Utilizam termos como incompetência, burrice, holocausto
educacional, ignorância, entre outros; debocham, confundem e ironizam, (prosódia
ou prosopopeia).
O governo do PT aparece em grande parte dos comentários como o
responsável pela realização de um ensino descompromissado com as formas
prestigiadas de Língua, respaldado na Gramática Normativa, vista por esses como a
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porta de entrada para um futuro promissor aos jovens estudantes. Para tanto,
destacamos os termos ignorância petista, vitória para o PT, reducionismo petista,
dilmês ou lulês, alquimia petista. E, para encerrar, temos o comentário 30: Agora
todo mundo quer falar igual ao palanqueiro chefe.
Tal posicionamento parece querer demonstrar que o retrato da educação no
Brasil vem ao encontro da ideia de que o presidente Lula não possui escolaridade
suficiente para ocupar tal cargo e, logo, a educação não é mesmo prioridade na
gestão do PT. Tal situação seria um reflexo da suposta falta de proposição do
governo.
Vimos ainda o discurso religioso, em que os comentaristas pedem orações
para resolver as contendas em relação ao que chamam de absurdo. Destacamos:
derrota para a decência, oremos, versão profana da gramática portuguesa.
Em grande parte dos comentários, testemunhamos ataques diretos à
coautora do livro e à sua formação acadêmica, o que dá a entender que tais
internautas são profundos conhecedores da ciência linguística, a ponto de
acreditarem que a língua é a própria gramática normativa tradicional, se resumindo a
um conjunto de regras. Destacamos: ideólogas medíocres, professora de
picaretagem, pseudoprofessores, títulos não garantem verdadeira cultura
civilizatória, amador, usina de sandices, ideia de jirico, MESTRA da burrice,
incompetência professoral, gentalha.
A observação dos enunciados nos revela uma mobilização geral dos
envolvidos em função de um empreendimento: atingir a credibilidade da autora do
livro, desqualificando o seu trabalho e a ciência que o valida, a linguística. Isso é
comprovado pelas vozes discursivas que refletem esferas como política e religiosa,
e o senso comum, de uma forma geral, apontando para índices discursivos de
acusações.
Tais avaliações revelam desconhecimento linguístico por parte desses
enunciadores, que defendem em seus discursos que a língua está na gramática, o
que não está lá não existe, é erro. Isso reforça a posição ideológica do senso
comum, presentes em basicamente todos os discursos contra o livro, de que as
variedades populares são versões corrompidas de uso da língua.
É importante ressaltar que esses internautas estão revestidos por uma
armadura que garante o seu anonimato, pois, para comentar, não é necessário fazer
79
um registro oficial, nem divulgar foto, apenas cadastra-se um nome e e-mail, que
podem ser facilmente forjados, como podemos ver abaixo:
Vale destacar, ainda, que, contrariando as posições ideológicas difundidas na
publicação, nessa imagem, o veículo de comunicação revela uma outra posição
quanto ao uso da língua ao admitir comentários “com erros de português” em suas
publicações.
3.4 Palavras e contrapalavras
As leituras empreendidas nos textos de nosso corpus evidenciam a existência
de dois grandes grupos participantes do debate acerca do livro didático “Por uma
vida melhor”: um grupo defensor da proposta pedagógica da obra e um grupo
contrário.
O primeiro grupo foi formado por professores pesquisadores em estudos
linguísticos, representantes da entidade responsável pela produção do livro,
representantes governamentais e outras diversas instituições ligadas à educação.
De uma maneira geral, este grupo tenta desconstruir o discurso da mídia, e, para
isso, tenta recuperar os contextos de produção dos enunciados que, retirados do
livro, estavam sendo utilizados como mote da polêmica. Eles ainda recorrem aos
documentos que regulam o ensino de língua materna e que abonam a proposta do
livro didático em questão, esclarecendo o que é a Sociolinguística.
O grupo contrário se desdobrou em outros três subgrupos: 1) contra os
produtores do livro – professora Heloisa Ramos, ONG Ação Educativa; 2) contra os
80
linguistas e as teorias que validam o discurso do livro - ciência linguística, mais
especificamente a sociolinguística; 3) contra o governo federal – representado pelo
PT, MEC, Fernando Haddad – por permitir a distribuição do livro.
Nesta seção investiremos na demonstração das relações dialógicas que se
evidenciam em formações enunciativas empreendidas pelos dois grupos, os prós e
os contras da polêmica, revelando os fios dialógicos que interligam essas produções
por meio de estilos de linguagem apropriadamente utilizados para a produção de
sentidos.
Entre os discursos contrários ao livro, podemos destacar alguns estilos que
apontam muito claramente para a valoração atribuída pelo grupo em pequenos
recortes destacados de algumas publicações, por meio dos quais observamos os
títulos e notamos que esses enunciadores utilizam-se criativamente de adjetivos e
substantivos para desqualificar o objeto do discurso e conseguir o apoio dos seus
leitores.
Texto 7 - Reinaldo Azevedo/Veja, em 14/05/2011
13
Texto 8 - O Estadão, em 18/05/2011
14
Texto 9 - Nathália Goulart/Veja, em 20/05/2011
15
13
Disponível em: http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/livro-didatico-faz-a-apologia-do-erro-exponho-a-essencia-da-picaretagem-teorica-e-da-malvadeza-dessa-gente/, acesso em 03/10/2013. 14
Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,a-pedagogia-da-ignorancia,720732,0.htm, acesso em 03/10/2013. 15
Disponível em: http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/as-licoes-do-livro-que-desensina, acesso em 03/10/2013.
81
Texto 10 - Gaudêncio Torquato/O Estadão, em 22/05/2011
16
Texto 11 - Augusto Nunes/Veja, em 22/05/201117
A leitura dos recortes acima denota que seus enunciadores não reconhecem
as formas das variedades linguísticas como resultado dos usos da língua pelos
falantes, isto é, como nascida no social, cultural e histórico; revelando uma postura
estática, que vê a língua como acabada e independente da ação dos sujeitos
falantes sobre ela e vê a gramática como uma lei que deve ser seguida, mesmo se
contestada. Além disso, esses comentários sugerem a existência de uma possível
articulação política por trás da questão do livro, uma manobra bastante rentável por
meio da qual algumas pessoas estivessem sendo beneficiadas financeiramente.
Já entre as manifestações a favor da proposta pedagógica do livro,
destacamos as publicações do professor e pesquisador Carlos Alberto Faraco, no
Jornal A Gazeta do Povo, em 19/05/2011, do professor e pesquisador Marcos
Bagno, no Jornal O Globo, em 23/05/2011 e do jornalista Luiz Nassif, em artigo
publicado no blog Filosomidia, em 25/05/2013 (e republicado em outros veículos).
Vejamos:
Texto 12 – Carlos Alberto Faraco, em 19/05/201118
16
Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,a-espertocracia-educacional,722417,0.htm, acesso em 03/10/2013. 17
Disponível em: http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/tag/por-uma-vida-melhor/, acesso em 03/10/2013. 18
Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/conteudo.phtml?id=1127433&tit=Polemica-vazia, acesso em 03/10/2011.
82
Texto 18 - Marcos Bagno/O Globo, em 23/05/201119
Texto 13 - Luis Nassif/Filosomidia, em 25/05/201120
Podemos observar uma relação muito evidente entre as caracterizações do
livro que “desensina” (Texto 9 - Nathália Goulart/Veja) e o livro “que não existe”
(Texto 13 - Luis Nassif/Filosomidia). Nassif responde não somente a esta, mas a
várias alegações de que o livro ensina a falar errado, demonstrando que a polêmica
não procede, tendo em vista as inverdades divulgadas pela crítica e a própria
natureza do livro. Para comprovar a improcedência da polêmica, Nassif argumenta
que o tal livro, objeto da celeuma, nunca existiu, isto é, trata-se de um factoide criado
pela mídia.
Da mesma forma, Faraco caracteriza a polêmica como “vazia”, e Bagno como
uma “falsa”, ambos apontando para a falta de fundamento da discussão, tendo em
vista que a questão sociolinguística de que trata o livro em seu capítulo “Escrever é
diferente de falar” atende aos parâmetros curriculares nacionais desde 1998.
Nathália Goulart (Texto 9 – recorte acima), por outro lado, encara tais
parâmetros como “uma doutrina” segundo a qual a norma padrão seria “um fardo”
para o aluno e as variedades linguísticas, uma imposição social. Tal atitude revela
desconhecimento de base linguística por parte da enunciadora, considerando que a
concepção de linguagem que norteia tal documento tem base no social, nas
situações comunicativas nas quais os sujeitos se relacionam, e não a imposição de
uma variação sobre a norma.
19
Disponível em: http://oglobo.globo.com/in/outra-opiniao-uma-falsa-polemica-2900444, acesso em 31/10/2011 20
Disponível em: http://filosomidia.blogspot.com.br/2011/05/o-escandalo-do-livro-que-nao-existia.html, acesso em 03/10/2013.
83
3.4.1 A batalha das ignorâncias
Uma forma de incluir outras vozes discursivas é retomar algum termo utilizado
em um enunciado anterior para, numa nova construção enunciativa, dar-lhe uma
acentuação diferenciada, reforçando ou contrariando a anterior, ou seja, pode-se
reconstruir ou desconstruir o discurso anterior articulando termos utilizados no
próprio discurso, dando-lhe nova significação, configurando um novo tema. A este
respeito, Bakhtin reflete que:
A linguagem não é um meio neutro que se torne fácil e livremente a propriedade intencional do falante, ela está povoada ou superpovoada de intenções de outrem. Dominá-la, submetê-la às próprias intenções e acentos é um processo difícil e complexo (BAKHTIN, 2002[1934-35], p. 100, grifos do autor).
Nesse viés, um fio discursivo bastante explorado é o termo ignorância,
recorrente em inúmeras enunciações que permeiam a polêmica, tanto de um lado
como de outro, mas com acentuações distintas, como podemos observar a seguir:
Texto 7 - Reinaldo Azevedo/Veja, em 14/05/2011
Texto 8 - O Estado de S. Paulo, em 18/05/2013
Texto 10 - Gaudêncio Torquato/Estadão, em 22/05/2011
Para os críticos do livro, ignorantes são os que abonam a política educacional
que pretende ensinar os alunos a falar “errado”. Esses enunciadores revelam uma
84
visão da língua baseada s regras de formação de frases e palavras e não na
adequação do uso do discurso de acordo com a relação interlocutiva.
Já para o grupo de apoio, ignorantes são os que desconhecem a ciência
linguística e os parâmetros que norteiam o ensino de língua materna desde 1998;
são ainda os que acusam o livro a partir do que ouviram falar sem ao menos ler a
obra.
Essa movimentação da palavra ignorância – retomada inúmeras vezes, com
acentuações diferenciadas, definidas pelo querer dizer do sujeito que fala - revela
um intenso e tenso diálogo entre essas formações enunciativas. Mais que uma
palavra, temos neste exemplo um signo ideológico, cujo valor se dá no processo de
comunicação, a partir das intenções dos interlocutores e do contexto de uso, pois,
cada vez que o termo é mobilizado, forma-se um novo tema e uma nova
significação, refletindo um novo ponto de vista, uma nova visão de mundo, uma nova
apreciação valorativa. Os sentidos que o termo ignorância assumem dependem do
processo de comunicação e das relações sociais dos interlocutores dentro do
contexto.
Texto 12 - Carlos Alberto Faraco/Gazeta do Povo, em 19/05/2011
Texto 14 - Cristóvão Tezza/Gazeta do Povo, em 24/05/2011
21
Texto 15 - Sérgio Fausto/Estadão, em 29/05/2011
22
21
Disponível em: http://www.gazetadopovo.com.br/colunistas/conteudo.phtml?id=1129095&tit=O-poder-do-erro, acesso em 07/10/2013. 22
Disponível em: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,educacao-para-o-debate,725367,0.htm, acesso em 07/10/2013.
85
Os três recortes acima apontam para movimentos de refração de discursos
anteriores, dado o avanço do debate em torno do livro, que busca levar o leitor a
perceber que a ignorância está exatamente naqueles que criticam o livro, em face de
seu desconhecimento, tanto a ciência linguística quanto do contexto de sua inserção
nos documentos que regulam o ensino de língua materna.
Como vimos no capítulo 2 desta investigação, o outro desempenha um papel
fundamental na construção de sentidos, os quais são atribuídos a partir de atitudes
responsivas dos sujeitos nas relações comunicativas. Isso significa que cada um é
responsável pela maneira como responde/age em relação ao outro, sendo que esta
resposta/ato é resultante de outras relações comunicativas com outros ao longo de
sua existência.
Porém, tendo claro que a expressão do sujeito que fala é resultado da sua
compreensão da expressão do outro, e que a compreensão só é possível se os
interlocutores compartilharem de um conhecimento comum do contexto social e
histórico em torno do objeto do discurso, concluímos que, neste debate, cada sujeito
fala de um lugar específico. Os interlocutores não compartilham horizontes comuns,
logo, apresentam níveis diferenciados de compreensão, o que resulta em formações
enunciativas antagônicas. Esta plurivocalidade presente no diálogo é representada
pela maneira como o discurso alheio entra no discurso próprio, formando discursos
com várias vozes, as quais refletem outras vozes com as quais esses sujeitos
estabelecem relações.
3.4.2 “Coisa de petista”
Outro exemplo que demonstra claramente essas relações dialógicas e
ideológicas nessas formações enunciativas é uso de rótulos políticos presentes na
maioria dos discursos selecionados nesta pesquisa. Além dos exemplos citados nas
seções anteriores, podemos citar inúmeras ocorrências, tanto nos discursos de
apoio quanto nos discursos de repúdio ao livro. Vejamos:
86
Texto 11 - Augusto Nunes/Veja, em 22/05/2011
Texto 7 - Reinaldo Azevedo/Veja, em 14/05/2011
Texto 16 - Reinaldo Azevedo/Veja, em 15/05/2011
23
É importante destacar aqui a produtividade da adjetivação em “ismo” e “enta”,
em petismo, neoesquerdismo, pobrismo, sindicalentas. O sufixo “ismo” é utilizado
para adicionar um novo sentido à palavra-raiz (geralmente de base adjetiva ou
substantiva), muito utilizado para rotular ou classificar um indivíduo como
pertencente a uma doutrina, orientação política ou filosófica, etc. Já o sufixo “enta”,
em sindicalentas, utilizado para adjetivação neste contexto, parece tornar o termo
um tanto pejorativo, remetendo, por exemplo, a “mulambenta”, “nojenta”,
“intriguenta”...
23
Disponível em: http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/eles-odeiam-e-a-civilizacao/, acesso em 07/10/2013.
87
Notemos que o termo ignorante foi substituído pelo sinônimo apedêuta (que
significa “desprovido de conhecimento acadêmico”, no caso). Enquanto na Coluna
de Augusto Nunes (Texto 11) o escritor Dionísio da Silva declara que o presidente
Lula tudo pode, inclusive gerir o uso ou as normas da língua nacional, Reinaldo
Azevedo (Texto 7 e 16), em consonância, aponta para uma possível questão
histórica na formação ideológica do PT que teria levado o partido a se tornar
patologicamente representante de uma esquerdopata-sindical, a qual, segundo ele,
odeia a civilização e, por conta disso, estaria mobilizando poderes para libertar o
povo da opressão burguesa.
Na sequência, observemos como os discursos dos grupos em defesa do livro
respondem a tais apontamentos sob o tema da luta política ora instaurada.
Texto 17 - Helio Schwartsman/Folha de São Paulo, em 16/05/201124
.
Texto 18 - Marcos Bagno/O Globo, em 23/05/2011
Aqui, Bagno vai buscar nas proposições de outrem, pelo uso de aspas, o fio
dialógico para tecer seu discurso, respondendo a seus outros que tal pedagogia foi
proposta durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, derrubando a denúncia
de que seria “coisa de petistas”, buscando assim evidenciar a falsidade da polêmica.
24
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/916634-uma-defesa-do-erro-de-portugues.shtml, acesso em 07/10/2013.
88
Assim como Bagno, Hélio Schwartsman, classifica os enunciadores que se
pronunciaram sobre a intenção oculta do livro em propagar a língua do Lula e
difundir a ideologia petista, utilizando adjetivações marcadas pelos sufixos ados e
idos, como espevitados, outros, comedidos, na tentativa de desqualificar o discurso
de outrem.
Esses dois enunciadores apontam claramente para uma aparente manobra
política de grupos que se utilizam da polêmica em questão para tentar desacreditar o
governo do PT, logo, podemos inferir que os discursos veiculados na Coluna de
Augusto Nunes e de Reinaldo Azevedo (Textos 11, 7 e 16, anteriormente
comentados) são agora objetos dos discursos de Bagno e Schwartsman, pois estes
estão avaliando as noções e posições daqueles sobre a polêmica em questão, num
diálogo muito evidente.
3.4.3 Vozes guardadas na memória
O uso de memórias pessoais também é um recurso utilizado para atrair
aliados, gerando novas construções enunciativas que configurem apoio às posições
ideológicas do enunciador. O jornalista Alexandre Garcia e a psicopedagoga Ana
Cassia Maturano convocaram, como argumentos de autoridade, suas professoras
das séries iniciais do ensino fundamental para autenticarem suas opiniões. Trata-se
de uma tentativa de sensibilizar o leitor, fazendo-o recordar de como o ensino era
melhor em tempos remotos, tentando evidenciar uma involução no sistema
educacional brasileiro e, especificamente, no ensino de língua materna, como
resultado das pesquisas linguísticas que geraram esse novo conceito sobre o uso da
língua portuguesa.
Texto 2 - Alexandre Garcia/G1, em 17/05/2011
89
Texto 19 - Ana Cássia Maturano/G1, em 19/05/2011
25
É importante destacar que as duas publicações pertencem ao mesmo veículo
de comunicação, o G1. Basicamente, os dois enunciadores elaboram uma pequena
autobiografia para demonstrar como as aulas de gramática foram importantes para
que alcançassem sucesso pessoal e profissional.
É importante observar nessas leituras, também, a maneira como o autor do
enunciado se projeta no seu discurso, onde ele se inclui, por que se inclui em
determinado espaço. Isso é possível por meio da observação dos pronomes
utilizados, um recurso linguístico muito recorrente em artigos e colunas assinadas,
os quais denotam movimentos de aproximação e afastamento de posições
ideológicas.
Neste caso específico, os dois autores se colocam como cidadãos comuns
(se aproximando de seus leitores) que cresceram e ajudaram o país a crescer por
meio de suas profissões e, logo, de seu poder como contribuintes, porque
estudaram e aprenderam a utilizar a língua de forma correta, como exigia a
professora do primário.
A voz da psicopedagoga é de grande relevância para o veículo de
comunicação que, como estratégia para obter mais credibilidade em sua posição
frente à polêmica, convoca como participantes pessoas de fora da esfera midiática
que possuam alguma autoridade para discutir determinado assunto, a fim de
endossar o seu discurso.
Maturano puxa o fio discursivo do jornalista ampliando o peso da memória por
meio de um revozeamento que dá nova acentuação às lembranças da professora de
quinta série, reforçando o discurso do jornalista acerca do polêmico livro.
Na sequência, a autora afirma não ter entendido o porquê desse capítulo que
gerou a polêmica, intitulado “Escrever é diferente de falar”. Porém, em seguida,
25
Disponível em: http://g1.globo.com/vestibular-e-educacao/noticia/2011/05/opiniao-enquanto-escrita-exige-
rigor-linguagem-oral-e-mais-solta.html, acesso em 03/10/2013.
90
traduz exatamente a proposta do capítulo, ou seja, ela entendeu sim. Isso demostra
que, para sustentar sua posição ideológica, a autora se trai, apontando para uma
confusão no processo argumentativo.
Texto 19 - Ana Cássia Maturano/G1, em 19/05/2011
Na sequência, Maturano reafirma sua visão purista da língua e utilitarista da
educação, comentando que a escola serve para fazer os alunos crescerem
profissionalmente. Demonstra que entendeu a proposta do capítulo em pauta, mas
acha que tal discussão não deveria ser levada para a sala de aula, para o livro
didático, pois isso estaria incentivando os alunos a falarem errado, e falar “errado”
indicaria falta de educação.
A autora segue os passos de Alexandre Garcia, que argumenta que o
conhecimento serve para vencer na vida, libertar o aluno para se tornar um eleitor e
um contribuinte consciente, capaz de fazer o país crescer, como podemos observar
nos recortes abaixo.
Texto 19 - Ana Cássia Maturano/G1, em 19/05/2011
91
Texto 2 - Alexandre Garcia/G1, em 17/05/2011
O professor Deonísio da Silva (via Augusto Nunes, em 22/05/2013) e o
jornalista Gaudêncio Torquato (também em 22/05/2011), para defenderem um
discurso tradicionalista e um ensino erudito da Língua Portuguesa, enveredam
literatura brasileira adentro e recorrem a Machado de Assis e Rui Barbosa – muito
mais por terem sido fundadores da Academia Brasileira de Letras do que pelo
conjunto de suas obras, as quais guardam estilos muito distintos, sobretudo quanto
ao uso da língua.
Texto 10 - Gaudêncio Torquato/Estadão, em 20/05/2011
Texto 11 - Augusto Nunes/Veja, em 22/05/2011
92
Notemos que os dois artigos foram publicados no mesmo dia, em veículos
diferentes. Os dois configuram posicionamentos idênticos com relação ao livro em
questão, caracterizando-o como uma afronta ao bom e velho português tradicional,
corroborando com os demais jornalistas do meio, como vimos até agora.
Machado de Assis e Rui Barbosa representam o fio discursivo que vincula
esses dois artigos, constituindo argumentos de autoridade conferidos para indicar a
forma correta da língua, legitimando a visão fechada baseada apenas em fontes
gramaticais. Essas autoridades são trazidas para o discurso para validá-lo,
convencendo seu leitor a se aliar ao enunciador em suas posições ideológicas.
Façamos um aparte para comentar o preconceito revelado nas vozes dos dois
enunciadores ao descreverem essas personalidades históricas. Machado de Assis,
mesmo tendo sido preto, pobre, epilético, gago, etc, conseguiu, de modo
impressionante (na visão para esses autores), se tornar um gênio de nossa
literatura. Ele “venceu todos os preconceitos”, mas seus comentadores ainda não. Já
Rui Barbosa é qualificado, antes de tudo, como um homem de “baixa estatura”,
como se tal característica pudesse impedi-lo de ter se tornado tão importante figura
de nossa literatura e, ainda, da política nacional.
Por fim, podemos destacar que em todos os textos selecionados para análise,
os estilos empreendidos para concretizar as linguagens utilizadas apontam para a
avaliação do sujeito em relação ao outro, determinando a forma como esse sujeito
se projeta, quais suas expectativas e como ele convoca outras vozes para aderirem
à sua ideia. Tais movimentos demonstram a dinamicidade da língua em uso e sua
constituição discursiva, isto é, o jogo entre tempo e espaço, social e histórico
tecendo ideologicamente a enunciação, pois:
O prosador utiliza-se de discursos já povoados pelas intenções sociais de outrem, obrigando-os a servir às suas novas intenções, a servir ao seu segundo senhor. Por conseguinte, as intenções do prosador refratam-se e o fazem sob diversos ângulos, segundo o caráter sócio-ideológico de outrem, segundo o reforçamento e a objetivação das linguagens que refratam o plurilinguismo (BAKHTIN,
2002 [1934-35], p. 105, grifos do autor).
Nessa perspectiva, evidenciamos que - em virtude da influência constante de
discursos anteriores e futuros na construção dos enunciados analisados - não é
possível, jamais, nessas investigações dialógicas, percebermos apenas uma
93
possibilidade de atribuição de sentidos, pois se trata de vozes que se revozeiam
constantemente, interligando o dito e o não dito, o passado e o presente.
94
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao chegar ao final desta pequena e intensa jornada, nosso sentimento é de
querer continuar. Temos consciência de que dois anos é um tempo bastante curto
para desenvolver tudo o que almejamos quando de nosso ingresso no programa de
mestrado.
Neste espaço dedicado à reflexão acerca de tudo o que foi pesquisado e
realizado durante nosso percurso científico, cabe-nos situar que nossas análises
foram empreendidas a partir dos construtos teóricos firmados pelo Círculo de
Bakhtin, sobretudo no que tange às relações dialógicas e ideológicas que permeiam
as formações enunciativas na constituição dos discursos, isto é, na produção de
sentidos, considerando que nossa investigação está inserida na linha de pesquisa
Práticas Textuais e Discursivas: Múltiplas Abordagens.
Em nossa trajetória de pesquisa, a partir da concepção dialógica da
linguagem, alguns conceitos mereceram maior atenção em suas redefinições de
modo a servir à nossa análise. Destacamos a relevância do conceito de
plurivocalidade, que nos esclarece acerca das “polêmicas” vozes discursivas e, logo,
vozes sociais que se fazem presentes no debate. E, como não podia deixar de ser,
lidando com vozes de sujeitos que se relacionam por meio de discursos, deparamo-
nos com o conceito de ideologia, uma vez que lidamos com apreciações valorativas,
com pontos de vista, com visões de mundo em nossas análises, considerando que:
Não há sentido fora da diferença, da arena, do confronto, da
interação dialógica, e assim como não há um discurso sem outros
discursos, não há eu sem outro, nem outro sem eu (SOBRAL, 2008,
p. 20).
O nosso foco principal no tratamento dispensado ao corpus selecionado foi a
busca de marcas discursivas que apontassem para o diálogo existente na
elaboração dos enunciados, evidenciado pela mobilização de recursos linguísticos
utilizados nessas formações enunciativas, num movimento entre passado, presente
e futuro, buscando discursos ditos e não ditos na construção do querer dizer do
autor. Tais marcas foram trazidas à tona no processo de análise empreendido por
nós neste trabalho, por meio do qual propomos um novo olhar, um olhar exotópico,
lançado de um lugar único onde nos situamos sócio-historicamente em relação ao
evento em questão, para expor nosso excedente de visão.
95
Dessa forma, convém retomar as nossas perguntas de pesquisa para
vislumbrar as respostas que perseguimos durante nosso percurso.
1) Quais vozes podem ser percebidas no corpus reunido de textos sobre o
debate acerca do livro “Por uma vida melhor”?
Todos os enunciadores dos textos analisados apresentaram seus pontos de
vista acerca de várias questões que foram levantadas durante o debate em questão,
revelando: suas atitudes perante a língua materna e suas variações, o ensino de
língua materna, a ciência linguística e o professor/pesquisador de Língua
Portuguesa; suas avaliações sobre a professora Heloísa Ramos, o governo federal,
o Partido dos Trabalhadores, a presidente Dilma, o ex-presidente Lula, o Ministério
da Educação, o Ministro Fernando Haddad.
Acerca dessas questões, várias vozes sociais se destacaram marcadamente,
em face do discurso explorado por seus enunciadores, apontando para a esfera
política, religiosa, acadêmica, científica, com predomínio de discursos que apontam
para o senso comum (qualificamos como oriundos do senso comum os termos
utilizados de uma maneira generalizada, os quais não remetem especificamente a
uma instância social).
Essas vozes são percebidas pelas reações dos enunciadores ao evento em
questão. Destacamos as marcas discursivas que denunciam as possíveis vozes
presentes nos discursos selecionados:
Esfera política: holocausto educacional, ignorância petista, DE QUANTO
TERA SIDO O VALOR DO MIMO?, reducionismo petista, dilmês ou lulês (...)
mais uma alquimia petista, Agora todo mundo pode falar como o palanqueiro
chefe.
Esfera religiosa: derrota para a decência, OREMOS, versão profana da
gramática portuguesa.
Esfera acadêmica/científica: para validar seus posicionamentos, os veículos
de comunicação contam com o apoio de alguns profissionais da área
acadêmica/científica, os quais são convocados para apresentarem suas
opiniões em alguns artigos.
Senso comum: incompetência, aleijado mental, ideólogas medíocres como
essa professora de picaretagem, festival de ignorância oficialista,
96
pseudoprofessores,, arrogância, amador, usina de sandices, MESTRA da
burrice, incompetência professoral, Gentalha!
2) De que forma esses textos dialogam entre si? A quem e/ou a que eles
respondem? Que recursos linguísticos utilizam para se posicionarem nesses
diálogos?
O diálogo entre os discursos é percebido pela forma como os enunciadores
convocam outras vozes para fazerem coro em seu discurso. Os papéis sociais que
os sujeitos dessas vozes convocadas desempenham e os posicionamentos que eles
trazem para o discurso corrente é uma estratégia muito utilizada na produção de
sentidos e na convocação de novos discursos de apoio ao discurso corrente.
É nessa convocação de vozes que podemos evidenciar a relação interlocutiva
do enunciador com o seu outro, pois é um recurso por meio do qual ele avalia seu
outro, se aproximando ou se distanciando dele. Isso pode ser feito pelo uso de
pontuações, aspas, negritos, itálicos, parênteses, uso do discurso direto ou indireto,
uso do verbo na voz passiva, etc.
O uso do tempo verbal (futuro do pretérito) na construção linguística dos
enunciados também é um artifício bastante utilizado para colocar em dúvida um
acontecimento, um fato social.
Os adjetivos e substantivos são bastante utilizados pelos enunciadores para
caracterizar o outro de quem se fala, desqualificando ou enaltecendo as suas
virtudes, a fim de convocar leitores para apoiarem suas apreciações valorativas.
Outro aspecto recorrente nos textos analisados é a repetição de expressões
já utilizadas por outros enunciadores, muitas vezes para retomar e reforçar uma
ideia, outras para dar novo sentido ao termo.
Alguns colunistas e comentaristas trazem à tona vozes guardadas na
memória, como a professora do ensino fundamental, além de escritores renomados
de nossa literatura clássica, como exemplos do bem falar e do bem ensinar a língua,
a fim de ganhar a credibilidade de seus leitores.
3) O que os textos analisados podem sugerir sobre a atitude dos colunistas,
comentaristas, blogueiros, perante a Língua Portuguesa, Ensino de LP,
Linguística e demais temas envolvidos na questão em debate?
97
Evidenciamos, em nossas análises, que os críticos do livro didático “Por uma
vida melhor”, em sua totalidade, acreditam que a Língua Portuguesa é a gramática
normativa em si, está fundada na norma prescritiva do bem falar e do bem escrever.
Professam o purismo linguístico como ideologia. Acreditam que a fala deve ser o
reflexo da escrita, e vice-versa. Para tanto, defendem um ensino de língua materna
erudito, prescritivo, que privilegie textos rebuscados, obras clássicas renomadas.
Percebemos, ainda, a visão utilitarista sobre a educação, a qual é encarada como
forma de ascensão social por meio do trabalho.
A linguística não é encarada por esse grupo como uma ciência válida. Aliás, o
que encontramos, em muitos discursos, é a ridicularização tanto da ciência
linguística como dos professores que investem nesse tipo de pesquisa.
As vozes presentes nos discursos observados nesta pesquisa se afastam e
se aproximam por meio de citações diretas e indiretas, endossando ou colocando
em dúvida a credibilidade de quem falou antes ou de quem ainda pode vir a se
pronunciar sobre o livro em questão, construindo e desconstruindo sentidos,
acentuando ou dando nova significação ao que foi dito.
Por fim, empreendemos nossa análise com foco no dialogismo, apontando
para a dimensão sócio-histórica, para os contextos onde sujeitos se relacionam,
interagem, se desenvolvendo e desenvolvendo linguagens, ligados através de
tempos e espaços situados, pertinentes ao processo de produção, circulação e
recepção dos discursos. E se falamos de relações entre sujeitos, pensamos também
nos aspectos linguísticos que refletem as posições ideológicas trazidas por esses
sujeitos para dentro e para fora do seu querer dizer; e ainda, da mesma forma,
pensemos nas posições ideológicas que impulsionam o leitor a atribuir sentidos
sobre o querer dizer daquele que fala. São essas as relações, para dentro e para
fora (contexto), para trás e para frente (tempo), de um lado para o outro (espaço),
que envolvem os sujeitos que falam, que leem, que constroem, descontroem e
reconstroem sentidos o tempo todo, em todos os lugares, em todos os contextos.
Logo, é preciso considerar a esfera de comunicação em que o texto/discurso
foi produzido, as regularidades do gênero e, por fim, os aspectos linguísticos, de
forma crítica, politizada, libertadora.
Pensar a linguagem como dialógica - constituída nas relações sociais entre
sujeitos e constituinte do próprio sujeito - nos ajuda a refletir sobre as atitudes e
responsibilidades do homem contemporâneo diante das práticas discursivas que
98
circulam na sociedade, seja na mídia ou em outras esferas de comunicação.
Possibilita, ainda, o entendimento de que essas formações enunciativas resultam de
um processo que abarca várias posições ideológicas, várias vozes que compõem
axiologicamente os diálogos do enunciado com seus outros na produção de
sentidos, compreendendo que as palavras não são apenas palavras, mas
articulações que mobilizam visões de mundo que constituem o sujeito, que
direcionam a sua maneira de responder e agir aos fatos da realidade social.
Uma análise que considere o dialogismo pertinente ao processo de produção
de enunciados leva à compreensão de relações sociais que definem a condução das
ideias imprimidas na materialidade linguística, leva a uma viagem além da palavra
propriamente dita, leva a questionamentos, a reflexões e, por conseguinte, a novas
ideias, a novos discursos, a novas realidades... leva à mudança social.
O sentido se dá pela interação verbal entre sujeitos (neste caso específico,
entre autor e leitor) numa relação de interlocução, de diálogo entre esses sujeitos
interlocutores e entre as vozes constitutivas do discurso (texto lido, no caso). Dessa
forma, ler não é simplesmente decifrar códigos pertencentes a uma língua, é
dialogar com palavras próprias e palavras alheias, oriundas de leituras de discursos
anteriores.
É preciso investir em atividades de leitura que nos tornem capazes de
perceber os aspectos linguísticos articulados na elaboração do texto, sim; mas, para
além disso, que nos faça enxergar mais que materialidade linguística, que nos faça
compreender criticamente os discursos reiterados pelos enunciados. Pois, quando
lemos formamos nossos próprios valores, enviesamos nosso olhar, esclarecemos
interrogações e criamos outras, aprendemos a valorar, a produzir, a agir e reagir no
fazer humano de que tanto carece nossa sociedade.
99
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103
ANEXOS
Escrever é diferente de falar
104
105
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120
Texto 1
http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2011/05/mec-defende-que-aluno-nao-precisa-
seguir-algumas-regras-da-gramatica-para-falar-de-forma-correta.html
Edição do dia 13/05/2011
13/05/2011 21h06 - Atualizado em 13/05/2011 21h42
MEC defende que aluno não precisa seguir algumas regras da gramática para falar de
forma correta
O livro de português distribuído pelo Ministério da Educação defende que a maneira como
as pessoas usam a língua deixe de ser classificada como certa ou errada e passe a ser
considerada adequada ou inadequada.
Um livro de português distribuído pelo Ministério da Educação (MEC) para quase meio
milhão de alunos defende que a maneira como as pessoas usam a língua deixe de ser
classificada como certa ou errada e passe a ser considerada adequada ou inadequada,
dependendo da situação.
Na semana em que o Jornal Nacional tem discutido os maiores problemas do Brasil na
educação, os argumentos da autora do livro e as reações que provocaram estão na
reportagem de Júlio Mosquéra.
A defesa de que o aluno não precisa seguir algumas regras da gramática para falar de forma
correta está na página 14 do livro “Por uma vida melhor”. O Ministério da Educação aprovou
o livro para o ensino da língua portuguesa a jovens e adultos nas escolas públicas.
Ele apresenta a frase: "Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado", com a
explicação: "Na variedade popular, basta que a palavra ‘os’ esteja no plural". "A língua
portuguesa admite esta construção".
121
A orientação aos alunos continua na página 15: "Mas eu posso falar 'os livro'?". E a resposta
dos autores: "Claro que pode. Mas com uma ressalva, ‘dependendo da situação a pessoa
corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico’”.
Heloísa Ramos, uma das autoras do livro, disse que a intenção é mostrar que o conceito de
correto e incorreto deve ser substituído pela ideia de uso adequado e inadequado da língua.
Uso que varia conforme a situação. Ela afirma que não se aprende o português culto
decorando regras ou procurando o significado de palavras no dicionário.
“O ensino que a gente defende e quer da língua é um ensino bastante plural, com diferentes
gêneros textuais, com diferentes práticas, diferentes situações de comunicação para que
essa desenvoltura linguística aconteça”, declarou ela.
O Ministério da Educação informou em nota que o livro “Por uma vida melhor” foi aprovado
porque estimula a formação de cidadãos capazes de usar a língua com flexibilidade. Segundo
o MEC, é preciso se livrar do mito de que existe apenas uma forma certa de falar e que a
escrita deve ser o espelho da fala.
O Ministério da Educação disse que a escola deve propiciar aos alunos jovens e adultos um
ambiente acolhedor no qual suas variedades linguísticas sejam valorizadas e respeitadas,
para que os alunos tenham segurança para expressar a "sua voz".
A doutora em sociolinguística Raquel Dettoni concorda que é preciso respeitar o falar
popular, que não pode ser discriminado. Mas ela enfatiza que a escola tem um objetivo
maior, que é ensinar a língua portuguesa que está nas gramáticas.
“Se a escola negligencia em relação a este conhecimento, o aluno terá eternamente uma
lacuna quando ele precisar fazer uso disso no seu desempenho social. Nós não podemos
desconsiderar que a função social da escola, com relação ao ensino de língua portuguesa, é -
em princípio - prioritariamente ensinar os usos de uma norma mais culta”, destacou.
O Ministério da Educação informou ainda que a norma culta da língua portuguesa será
sempre a exigida nas provas e avaliações.
122
Texto 2
http://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2011/05/aboliu-se-o-merito-e-agora-aprova-se-
frase-errada-para-nao-constranger.html
Edição do dia 17/05/2011
17/05/2011 08h34- Atualizado em 17/05/2011 15h55
Aboliu-se o mérito e agora aprova-se a frase errada para não constranger
Alexandre Garcia comenta o livro de português, abonado pelo MEC, que defende que não
há o errado na língua portuguesa, mas o inadequado.
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Na semana passada, foi distribuído para quase meio milhão de alunos um livro de português
que defende um novo conceito sobre o uso da língua portuguesa. Não teria mais certo ou
errado, e sim adequado ou inadequado, dependendo da situação. O Ministério da Educação
esclareceu que a norma culta da língua portuguesa será sempre a exigida nas provas e
avaliações.
Quando eu estava no primeiro ano do grupo escolar e falávamos errado, a professora nos
corrigia, porque estava nos preparando para vencer na vida. É notório que o conhecimento
liberta, forma eleitores e contribuintes conscientes, gente que cresce e faz o país crescer.
É notório que o conhecimento vem pela educação na escola, em casa e na vida. E é óbvio
que a raiz de tudo está na capacidade de se comunicar, na linguagem escrita que transmite e
difunde o conhecimento e o pensamento. Isso é o que diferencia o homem dos outros
animais.
A educação liberta e torna a vida melhor, nos livra da ignorância, que é a condenação à vida
difícil. Quem for nivelado por baixo terá a vida nivelada por baixo.
123
Pois, ironicamente, esse livro se chama “Por uma vida melhor”. Se fosse apenas uma
questão linguística, tudo bem, mas faz parte do currículo de quase meio milhão de alunos. E
é abonado pelo Ministério da Educação. Na moda do politicamente correto, defende-se o
endosso a falar errado para evitar o preconceito linguístico.
Ainda hoje, todos viram o chefão do FMI algemado. Aqui no Brasil, ele não seria algemado
porque não ofereceria risco. No Brasil, algemas constrangem os detidos. Aqui, os alunos
analfabetos passam automaticamente de ano para não serem constrangidos. Aboliu-se o
mérito e agora aprova-se a frase errada para não constranger.
A Coreia saiu arrasada da guerra através de duas ou três décadas de educação rígida. A
China, que há poucos anos estava atrás do Brasil, sabe onde está indo a razão de 10% ao ano
do PIB: com educação rígida, tradicional, competitiva e premiando o mérito. Aqui, estamos
apontando para o sentido contrário.
124
Texto 3
http://g1.globo.com/educacao/noticia/2011/05/mec-nao-vai-recolher-livro-com-erros-de-
concordancia-diz-haddad.html
18/05/2011 17h28- Atualizado em 18/05/2011 17h28
MEC não vai recolher livro com erros de concordância, diz Haddad
Livro para ensino de jovens e adultos fala sobre uso da linguagem popular.
Ministro afirma que recolher material seria censura.
Do G1, em Brasília
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O ministro da Educação, Fernando Haddad, afirmou nesta quarta-feira (18) que o governo
não vai mandar recolher o livro "Por uma Vida Melhor", que contém erros de concordância.
"Já foi esclarecido que as pessoas que acusaram esse livro não tinham lido. Uma pena que as
pessoas se manifestaram sem ter lido", afirmou Haddad, segundo a Agência Estado, após
encontro com parlamentares na Câmara dos Deputados.
O Ministério da Educação (MEC) distribuiu o livro pelo Programa Nacional do Livro Didático
para a Educação de Jovens e Adultos. Na publicação, os autores dizem que o uso da
linguagem popular é válida ainda que com erros de concordância. No livro, são usadas as
frases "nós pega o peixe" e "os menino pega o peixe". O MEC distribuiu o livro pelo
Programa Nacional do Livro Didático para a Educação de Jovens e Adultos a 484.195 alunos
de 4.236 escolas do país.
125
COMO O MEC ESCOLHE OS LIVROS DIDÀTICOS
Inscrição das editoras
O edital que estabelece as regras para a inscrição do livro didático é publicado no
Diário Oficial da União e disponibilizado no sítio do FNDE na Internet. O edital também
determina o prazo para a apresentação das obras pelas empresas detentoras de
direitos autorais.
Triagem
Para analisar se as obras apresentadas se enquadram nas exigências técnicas e físicas
do edital, é realizada uma triagem pelo Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado
de São Paulo (IPT).
Avaliação
Os livros selecionados são encaminhados à Secretaria de Educação Básica do MEC,
responsável pela avaliação pedagógica. A secretaria escolhe os especialistas para
analisar as obras, conforme critérios divulgados no edital. Os especialistas elaboram as
resenhas dos livros aprovados, que passam a compor o guia de livros didáticos.
Guia de livros
O MEC disponibiliza o guia do livro didático no site do Fundo Nacional de
Desenvolvimento da Educação (FNDE) e envia o mesmo material impresso às escolas
cadastradas no Censo Escolar.
Escolha
Diretores e professores das escolas analisam e escolhem as obras que serão utilizadas.
A escola faz o pedido dos livros ao FNDE que, por sua vez, encomenda a compra às
editoras.
Distribuição
A distribuição dos livros é feita diretamente pelas editoras às escolas, por meio de um
contrato entre o FNDE e os Correios. Os livros chegam às escolas entre outubro e o
início do ano letivo.
Em entrevista à rádio CBN, Haddad afirmou que o MEC não tem ingerência sobre a escolha
do livro didático. “O catálogo é composto pelas universidades públicas brasileiras e vai para
a internet para que as escolas escolham", disse.
Segundo o ministro, “se houve lisura no processo, os parecerem foram convergentes para
catalogar aquele livro, a escola escolheu com liberdade a obra. O ministério só pode tomar
providência se o exemplar entregue for diferente do que foi escolhido. Caso contrário o
ministério está impedido que pode ser considerado censura." O ministério garante a lisura
dos procedimentos, mas não posso vetar uma abordagem metodológica como o programa
de livro para jovens e adultos.”
126
A Academia Brasileira de Letras (ABL) discorda da decisão do MEC. Em nota, a ABL afirmou
que “todas as feições sociais do nosso idioma constituem objeto de disciplinas científicas,
mas bem diferente é a tarefa do professor de língua portuguesa, que espera encontrar no
livro didático o respaldo dos usos da língua padrão que ministra a seus discípulos, variedade
que eles deverão conhecer e praticar no exercício da efetiva ascensão social que a escola
lhes proporciona.”
Os autores da Coleção Viver, Aprender da Editora Global, afirmam em nota publicada no site
da editora que o capítulo "Escrever é diferente de falar", chama a atenção para algumas
características da linguagem escrita e para a norma culta, também conhecida como norma
de prestígio. "Pretende defender que cabe à escola ensinar as convenções ortográficas e as
características da variedade linguística de prestígio justamente porque isso é valorizado no
mundo do trabalho, da produção científica e da produção cultural. E ainda que o domínio da
norma de prestígio não se dá de um dia para o outro, mas de modo gradual, constante e
pela intensa prática e reflexão sobre seus usos."
127
Texto 4
http://g1.globo.com/educacao/noticia/2011/05/haddad-chama-de-injustica-crassa-criticas-
livro-didatico-do-mec.html
31/05/2011 11h17- Atualizado em 31/05/2011 11h59
Haddad chama de 'injustiça crassa' críticas a livro didático do MEC
Livro do MEC distribuído a escolas aceitaria erros de concordância.
‘Regra geral, o livro precisa ser lido para ser criticado’, disse Haddad.
Robson BoninDo G1, em Brasília
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Ministro Fernando Haddad ao lado do presidente
da comissão de Educação do Senado, Roberto
Requião (PMDB-PR) (Foto: Geraldo Magela /
Agência Senado)
O ministro da Educação, Fernando Haddad, classificou de “injustiça crassa” as críticas
realizadas por diferentes setores da sociedade a um livro didático distribuído pelo governo
nas escolas que permitiria erros de concordância. Durante reunião na Comissão de
Educação, Cultura e Esporte do Senado na manhã desta terça-feira (31), ele voltou a afirmar
que a maioria das pessoas que atacaram o livro sequer tinham lido o objeto da polêmica.
"Acompanhei com muita atenção o debate em torno dessa questão na imprensa, saúdo o
debate que foi feito, mas confesso que me assustei um pouco no início da discussão. E me
assustei por uma razão muito simples: a maioria das pessoas que se manifestaram
inicialmente declararam, posteriormente, que não haviam lido o livro objeto da polêmica”,
afirmou Haddad.
128
O Ministério da Educação (MEC) distribuiu a 484.195 alunos de 4.236 escolas o livro "Por
uma Vida Melhor", que permitiria erros de concordância, pelo Programa Nacional do Livro
Didático para a Educação de Jovens e Adultos (PNLD-EJA). Nele, os autores afirmam que o
uso da língua popular - ainda que com seus erros gramaticais - é válido, permitindo frases
como "nós pega o peixe" ou "os menino pega o peixe".
saiba mais
MEC não vai recolher livro com erros de concordância, diz Haddad
Para Haddad, o livro “não faz o que os críticos dizem que ele faz [acolhe erros de
concordância]”. “O livro parte de uma realidade comum aos adultos que voltam à escola e
traz o adulto para a norma culta por meio de exercícios que pede ao estudante que faça a
tradução da linguagem popular para a norma culta.”
Adotando um tom de certo rancor em relação às críticas direcionadas ao MEC, Haddad
criticou os intelectuais que apresentaram opiniões sobre a obra antes mesmo de conhecê-la:
“Regra geral, o livro precisa ser lido para ser compreendido e eventualmente criticado.”
Haddad mencionou artigos de jornal, manifestações de educadores e entidades de ensino
favoráveis ao livro.
Haddad acusou os críticos de “pinçarem” uma frase e “descontextualizarem” o debate: “Foi
uma frase que foi pinçada e totalmente descontextualizada para denegrir. Recebemos
dezenas de manifestações de especialistas, de professores, de ex-reitores e de associações
dizendo que o que se fala sobre esse livro não corresponde à verdade.”
129
Texto 5
http://g1.globo.com/vestibular-e-educacao/noticia/2011/05/ministro-da-educacao-
compara-criticas-livro-do-mec-fascismo.html
31/05/2011 13h04 - Atualizado em 31/05/2011 13h18
Ministro da Educação compara críticas a livro do MEC a fascismo
‘Diferença entre Hitler e Stalin é que Stalin lia os livros’, afirmou ministro.
Segundo Haddad, criticar um livro sem ler a obra seria postura ‘fascista’.
Robson Bonin Do G1, em Brasília
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Ministro Fernando Haddad ao lado do presidente
da comissão de Educação do Senado, Roberto
Requião (PMDB-PR) (Foto: Geraldo Magela /
Agência Senado)
O ministro da Educação, Fernando Haddad, classificou nesta terça-feira (31) de uma
“postura de viés fascista” as críticas de diferentes setores da sociedade a um livro didático
distribuído pelo governo nas escolas, que permitiria erros de concordância.
Haddad defendia, durante reunião da Comissão de Educação do Senado, a decisão do
Ministério da Educação (MEC) de distribuir a 484.195 alunos de 4.236 escolas o livro "Por
uma Vida Melhor" pelo Programa Nacional do Livro Didático para a Educação de Jovens e
Adultos (PNLD-EJA). Nele, os autores afirmam que o uso da língua popular - ainda que com
seus erros gramaticais - é válido, permitindo frases como "nós pega o peixe" ou "os menino
pega o peixe". Para o ministro da Educação, a maioria dos críticos sequer havia lido a obra.
saiba mais
Haddad chama de 'injustiça crassa' críticas a livro didático do MEC
MEC não vai recolher livro com erros de concordância, diz Haddad
130
Foi depois de ser provocado pelo líder do PSDB, Alvaro Dias (PR), que Haddad fez um
paralelo entre Hitler e Stalin para afirmar que a diferença entre os dois ditadores estaria na
postura de Stalin com os livros.
“Estamos vivendo um período de involução, uma situação stalinista e agora adotando uma
postura mais de viés fascista que é criticar um livro sem ler. A diferença entre Hitler e Stalin
é que Stalin lia os livros antes de fuzilar os inimigos”, afirmou Haddad.
Pouco antes da fala do ministro da Educação, o líder do PSDB traçou um paralelo da
polêmica do livro didático do MEC com uma corrente do Partido Comunista russo, que teria
tentado introduzir no regime stalinista um nova linguagem que substituísse a forma culta.
“Esta questão [das formas de linguagem aceitas no livro do MEC] é complexa, mas encontra
paralelo em outros tempos. Faço referencia à corrente do Partido Comunista russo, quando
Stalin chegou ao poder, que tentou introduzir uma nova língua do partido no país e o
próprio Stalin não permitiu esta língua que sepultaria a norma culta. Não estou
estabelecendo paralelo, mas a verdade é que há aí uma corrente de forma direta ou indireta
induzindo para tentativa de se adotar uma nova linguagem popular”, afirmou Dias.
Depois das referências de Haddad ao fascismo, o líder do PSDB no Senado ainda questionou
o ministro sobre os motivos que teriam levado o ministério se recusar a enviar cópias do
polêmico livro ao Senado.
“Já que o ministro fez uma referência ao fascismo, gostaria de saber o porquê de o
ministério negar aos senadores as cópias do livro. O ministério negou, a Comissão de
Educação não recebeu e a própria editora negou cópia ao Senado. Vossa Excelência queria
que nós lêssemos todo o livro sem ter acesso a ele?”, questionou Dias.
Haddad rebateu Dias afirmando que o ministério havia distribuído mais de dois mil
exemplares da obra.
Diante da troca de farpas entre Dias e Haddad, o presidente da Comissão de Educação do
Senado, Roberto Requião (PMDB-PR), pediu a palavra para afirmar que o fascismo não
censurava obras literárias. “O fascismo se limitava, de forma inteligente, a censurar
duramente os panfletos e os textos curtos”, argumentou Requião.
'Injustiça crassa'
Haddad classificou ainda de “injustiça crassa” as críticas realizadas por diferentes setores da
sociedade sobre a obra. "Acompanhei com muita atenção o debate em torno dessa questão
na imprensa, saúdo o debate que foi feito, mas confesso que me assustei um pouco no início
da discussão. E me assustei por uma razão muito simples: a maioria das pessoas que se
manifestaram inicialmente declararam, posteriormente, que não haviam lido o livro objeto
da polêmica”, afirmou Haddad.
131
Para Haddad, o livro “não faz o que os críticos dizem que ele faz [acolhe erros de
concordância]”. “O livro parte de uma realidade comum aos adultos que voltam à escola e
traz o adulto para a norma culta por meio de exercícios que pede ao estudante que faça a
tradução da linguagem popular para a norma culta.”
132
Texto 6
http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/sanatorio-geral/a-dona-do-portugues/
17/05/2011 às 17:33 \ Sanatório Geral
A dona do português
“Por que, em educação, todo mundo acha que conhece os assuntos e pode falar com
propriedade? Esse assunto é complexo, é para especialistas”.
Heloísa Ramos, autora do livro “Por uma Vida Melhor”, que deverá incluir na próxima edição
o subtítulo “Nós pega o peixe”, avisando que especialistas em linguística têm o direito de
ensinar errado sem que ninguém mais abra a boca.
30 Comentários
1. Elvio Antunes de Arruda
22/05/2011 às 13:43
Da para se notar que Educação é coisa complexa, e para inteligentes… Embora a
incompetência queira administrá-la, não consegue. Qualquer aleijado mental sabe
que a educação no Brasil é coisa fora de plano, o resto é pura dissimulação, apenas
um bom negócio.
2. antonio carlos guhl
18/05/2011 às 8:57
Aguentar as divulgações do Lula “dando” palestras ainda passa(é só tomar gardenal
duplo que já ajuda).
Agora, implantar no ensino público os “conhecimentos” dele, é holocausto
educacional.
Só está faltando o “ex-cara” entrar para a Academia Brasileira de Letras, receber o
título de PHD pela Universidade de Harvard e finalmente, ser eleito Papa.
3. João Gustavo
18/05/2011 às 8:06
Como dizem: a ignorância petista está oficializada em nosso país. É mais uma vitória
para o PT e uma derrota para a decência. Confesso, de todos os erros que eu pensei
133
que esse governo fosse cometer, nunca imaginei que ele chegaria tão baixo!
OREMOS³³³³, OREMOS²²²²², OREMOS³²³²³²!!!
4. Roberto Santana
18/05/2011 às 7:08
Com certeza está grande especialista será convidada a participar do Ministerio da
Pesca da grande ministra especialista em caçar sapo no lago Paranoa, Edeli Salvatti,
que frase linda, NÓS PEGA O PEIXE
5. EDSON GANDARELA
18/05/2011 às 5:04
Samba do Arnesto Adoniran Barbosa
O Arnesto nos convidou pra um samba, ele mora no Brás
Nós fumos não encontremos ninguém
Nós voltermos com uma baita de uma reiva
Da outra vez nós num vai mais
Nós não semos tatu!
No outro dia encontremo com o Arnesto
Que pediu desculpas mais nós não aceitemos
Isso não se faz, Arnesto, nós não se importa
Mas você devia ter ponhado um recado na porta
Um recado assim ói: “Ói, turma, num deu pra esperá
Aduvido que isso, num faz mar, num tem importância,
Assinado em cruz porque não sei escrever”
.
NOIS DEDICA ESTA OBRA PRIMA, A HELOISA RAMOS.
.
NOSSOS CUMPRIMENTOS AO GÊNIO, ADONIRAN BARBOSA,,O NOSTRADAMUS
BRASILEIRO………………..
6. Sérgio
18/05/2011 às 1:15
134
Exatamente, é para especialistas de verdade, e não ideólogas medíocres como essa
professora de picaretagem.
7. Vivaldi Cunha Filho
17/05/2011 às 23:26
É com tristeza que assistimos a este festival de ignorância oficialista. Ignorantes
ilustrados é o que são estes “mestres”, “doutores” ou o que mais se arroguem. Que
estes pseudoprofessores saibam que títulos não garantem verdadeira cultura
civilizatória e a sabedoria se nutre mais da reflexão íntima do que da arrogância fruto
do esforço bruto. Que me perdoe a senhora Heloísa Ramos, mas seu soneto está
desafinado. Estudei Linguística o suficiente para afirmar em alto e bom som que a
senhora está errada. Sua proposição está equivocada, seus pressupostos são falsos, a
senhora não é uma cientista e está violando os preceitos da língua e da ciência.
Trata-se de uma ótima oportunidade para uma autoavaliação e para cultivar a
humildade inerente às grandes almas. Retrate-se, por favor, pelo bem de nossa (e de
sua) história.
8. João Gustavo
17/05/2011 às 23:12
Para um amador, até que ficou mais ou menos, mais pra menos do que pra mais…
http://jornalismoinfocus.blogspot.com/2011/05/as-cronicas-de-dilmatopia-bruxa-
da.html
9. João Gustavo
17/05/2011 às 23:08
Bom… depois dizem que o Brasil caminha rumo ao desenvolvimento… ah, e esqueci
de mencionar: que se investe “maciçamente” na educação… Graças a Deus minha
santa professora jamais vai permitir em lecionar com base nesta versão profana da
gramática portuguesa. Oremos!
10. João Gustavo
17/05/2011 às 22:58
Acho que o livro é bem coerente com nível da educação pública no Brasil. Ou estou
errado?
135
11. O Brasil na zona
17/05/2011 às 21:59
Essa “muié”, pelo que vejo, é uma usina de sandices. Não só escreve como também
fala muita besteira.
12. André Bm
17/05/2011 às 21:43
Ou seja: qualquer um que criticar a ideia de jirico de Heloísa Ramos e não for
especialista na área pode sofrer de preconceito acadêmico.
13. gerson
17/05/2011 às 21:31
Ue…
Para falar assim nao preciso do MEC, da escola e nem dos livros…
PS. e este teclado alemao, sem acentos, serve!
14. M.A.S.
17/05/2011 às 21:04
Quer dizer que agora posso falar:”menas,previlégio,comprimentar uma pessoa,nóis
foi, nois viu,nóis pega,ceis vão,etc”que bacana vou matricular novamente no pré-
primário começar tudo de novo, pois estou desatualizada depois de 60 anos quero
aprender a nova língua portuguesa senão a MESTRA da burrice essa tal de Heloísa
Ramos vai debochar de “migo.”
15. Té Carvalho
17/05/2011 às 20:19
Mas nós abre a boca no mundo pra acabá cum essa maracutaia, sô. Fora com a
incompetência professoral dentro da UNFRN. Pobre alunos potiguare, né não, fesora.
16. Law
17/05/2011 às 20:15
136
Gentalha!
17. Marcos
17/05/2011 às 20:09
Caro Augusto,
aí não; “nós pega o peixe”, e outras barbaridades, a musa do PT, a Ideli Salvati, já
pronuncia há muito tempo!
18. gaúcha indignada
17/05/2011 às 19:55
A Heloisa não foi presa ainda????
19. LIMA
17/05/2011 às 19:39
AUGUSTO.
DE QUANTO TERA SIDO O VALOR DO MIMO?
20. f tavares, na resistência
17/05/2011 às 18:25
- dessa vez a canalha analfabeta pode regozijar-se, porque é no portuga da esquina
mesmo que essa dona se especializou… porque em relação ao idioma, não conseguiu
emplacar o reducionismo petista, neo-albanês, aperfeiçoado em cuba, que pretende
um dia, quem sabe?, ver nivelar por baixo o índice de alfabetização no país. assim,
todos falarão errado e então eles, que já se comunicam em dilmês ou lulês pra tratar
assuntos oficiais e combinações indecifráveis, passarão a entender-se num idioma
ininteligìvel, entre o zurro e o mugido… mais uma alquimia petista pra vfender livros
encalhados. essa tese da cultura curupira deve ter rendido pra lá de cinco milhões…
então, está explicado.
21. Carl
17/05/2011 às 18:15
Conclusão simples:A gramática que estão tentando instituir aos nossos pobres jovens
do ensino público é a palavra falada do mentor da atual presidente e um
137
absurdo.Tomara que nos próximos 500 anos não apareça outro senhor para nos
envergonhar e nivelar os brasileiros por baixo,como fez o tal “EX”.É a forma mais
covarde e vil de coaptar os incautos para o seu bando,como se o analfabetismo fosse
condição primordial para ser alguém na vida.Lamentável e triste o que fizeram e
continuam a fazer com o nosso país nos últimos oito anos,e quem sabe quando vão
parar?Vamos pensar Brasileiros antes que alguém desta laia queira simular pensar
por nós.
22. chorei antes de nascer
17/05/2011 às 18:14
Mas nem o pessoal do PT participativo pode opinar? O Menas e a Metralha instalada
na Pensão Alvorada terá teriam muito a contribuir…
23. marina silva
17/05/2011 às 18:07
Isso a alguns anos atrás vcs os ptralhas chamavam de DITADURA,agora na ditadura
ptralha o único direito que nos restou foi pagar vossas contas e de ficar caladinho
aturando toda classe de idiotia de vossas excelencias.De verdade nunca conheci uma
DITADURA tao dura porque ao menos na ditabranda militar a educaçao e a saúde era
de boa qualidade e nao ensinava nem ao mais pobre cidadao da naçao a falar errado!
24. catson aruak
17/05/2011 às 18:04
A moça está fazendo uma auto-crítica e pedindo prá sair. Vamos deixar ela ir embora.
25. Ricardo
17/05/2011 às 17:59
E outra… com gente como essa, tem que fazer como Olavo de Carvalho e mandar pra
p… q… p…!!
26. Mauro Pereira
17/05/2011 às 17:59
138
Caro Augusto Nunes, boa noite.
Caro amigo, longe de mim ser preconceituoso mas eu acho que, no máximo, e com
muita boa vontade, essa senhora pode ser é dona de padaria. Do português, jamais!
27. Ricardo
17/05/2011 às 17:57
Alguém tem que dizer pra essa burra (inconseqüente, prepotente e, no mínimo,
petralha) que falar errado é ERRADO!!!
28. Heitor
17/05/2011 às 17:52
Os burros fazem e desfazem este país. Uma hora dessas, não terá mais “concerto”.
29. Marilze
17/05/2011 às 17:46
Tudo bem, gente. Vamos ouvir o que diz a especialista e todos teremos uma vida
melhor, como anuncia o título de seu livro: sem regência, concordância, ortografia,
gramática, prosódia ou prosopopeia. E atenção: sem dar palpites em educação, pois
o assunto é para especialistas.
30. Jose Francisco Santoro
17/05/2011 às 17:44
Agora todo mundo pode falar como o palanqueiro chefe.Afinal, êle chegou onde
chegou falando assim,porque alguém deveria se preocupar em aprender?? Vamos
todos ¨tomá umas cachaça¨.
139
Texto 7
http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/livro-didatico-faz-a-apologia-do-erro-exponho-
a-essencia-da-picaretagem-teorica-e-da-malvadeza-dessa-gente/
Reinaldo Azevedo
Análises políticas em um dos blogs mais acessados do Brasil
14/05/2011às 4:35
Livro didático faz a apologia do erro: exponho a essência da picaretagem teórica e da
malvadeza dessa gente
Escrevi, posts abaixo, um primeiro texto sobre um livro de língua portuguesa chamado “Por
Uma Vida Melhor”, que faz a apologia do erro, embora uma das autoras tente negar o óbvio.
Demonstrarei a fraude intelectual e técnica em que se sustenta a tese daqui a pouco.
Começo este texto pelo óbvio: o nome é péssimo. “Por Uma Vida Melhor” pode ser título de
livro de medicina, de religião e de auto-ajuda, mas não de língua. Gabriel Chalita, que me lê
com enorme prazer secreto, vai pensar: “Esse nome me pertence”, enquanto escreve seu
437º volume sobre filosofia criativa, depois de mandar mais uma carta fofa para o padre
Fábio de Melo, aquele que canta e encanta.
Terá certamente uma vida melhor o aluno que dominar o instrumental da norma culta da
língua, contra o qual o livro se posiciona abertamente. Assim, esse “instrumento didático”
que conta com o endosso do MEC, se algum efeito tiver, será no sentido de piorar a vida do
estudante; na melhor das hipóteses, contribui para mantê-lo na ignorância.
Onde está a fraude intelectual do negócio? Sim, é um negócio! Abaixo, segue reproduzida
uma página do livro em que os autores defendem porque é perfeitamente aceitável dizer e,
fica claro!, escrever: “Os livro ilustrado mais interessante estão emprestado“. Leiam.
Raramente vi uma vigarice intelectual em estado tão puro. Volto em seguida (se a leitura
estiver difícil, clique na imagem que ela será ampliada).
140
O que vai acima é só uma conversa mole descrevendo por que, para usar a linguagem
técnica, o “emissor” conseguiu transmitir uma “mensagem” eficiente. Ocorre que o
fenômeno da comunicação e, por conseqüência, da cultura vai, e tem de ir, muito além da
141
simples eficiência. Ora, comunicamo-nos o tempo todo por códigos que não são verbais. Um
simples arquear de sobrancelhas diz muito mais, a depender do contexto – como bem
sabem todos aqueles que têm filhos adolescentes – do que um discurso articulado em
palavras. Nem por isso a escola vai se ocupar agora de decodificar esses sistemas pessoais de
comunicação.
Uma coisa é explicar por que uma mensagem fora do padrão formal da língua funciona;
outra, diferente, é atestar a sua validade como uma variante da língua. Não dá! Português
não é inglês, por exemplo. Na nossa língua, os adjetivos têm flexão de gênero e número, e os
verbos, de número. Quem dominar com mais eficiência esse instrumental terá vantagens
competitivas vida afora. O que esses mestres estão fazendo, sob o pretexto de respeitar o
universo do “educando”, como eles dizem, é contribuir para mantê-lo na ignorância.
Uma das autoras, Heloisa Ramos, concedeu uma entrevista ao iG e demonstrou que tem
talento para humorista involuntária. Ela nega que o livro faça a apologia do erro e afirma:
“Esse capítulo é mais de introdução do que de ensino. Para que ensinar o que todo mundo
já sabe?” Boa pergunta, minha senhora! Pra que ensinar alguém a falar errado se todo
mundo já sabe fazê-lo por conta própria, não é mesmo? Sem contar que o erro, convenham,
não tem norma, certo? Cada um fica livre para cometê-lo à sua maneira.
Dona Heloísa tenta negar o que seu livro explicita. Acima, nas suas páginas, lê-se com clareza
inequívoca: “É importante que o falante de português domine as duas variantes e escolha
a que julgar adequada à sua situação de fala”.
Faço a pergunta de sempre de Didi Mocó? “Cuma???” Ao que Mussum emendaria: “Só no
forévis do povo!!!” Bons tempos em que falar errado era norma entre os “Os Trapalhões”!
Huuummm… Diga aí, professora: quando é que o erro é mais adequado do que o acerto?
A mestra segue com seu talento para o humorismo na conversa com o iG:
“Não queremos ensinar errado, mas deixar claro que cada linguagem é adequada para
uma situação. Por exemplo, na hora de estar com os colegas, o estudante fala como
prefere, mas, quando vai fazer uma apresentação, ele precisa falar com mais formalidade.
Só que esse domínio não se dá do dia para a noite, então a escola tem que ter currículo
que ensine de forma gradual” .
Uau! Entendi a preocupação. Fico cá a imaginar os estudantes se martirizando, na conversa
com os colegas, preocupados em empregar a norma culta, muitas vezes ensinada com o
brilho que sabemos, tendo como instrumento didático um livro como “Por Uma Vida
Melhor”… De resto, como diria a doutora, por que contestar o que ninguém afirmou? Quem
é que disse que o domínio da norma culta vai se dar do dia pra noite?
Pra que escola?
142
Escola é lugar de formalização do conhecimento, segundo o padrão culto, sim, senhor! Como
teria dito o próprio artista, para que se possa pintar como Picasso aos 70 anos, é preciso
saber pintar como Rafael aos 5, entenderam? O leitor sabe que este escriba mesmo mescla a
tal norma culta ao uso informal e sem gravata da língua. Para que se chegue a ter um estilo,
uma escrita pessoal, é preciso que se tenha o domínio do instrumental técnico.
Ninguém precisa de professor, minha senhora, para se comunicar de modo eficiente com os
seus pares. Fosse assim, os analfabetos morreriam à míngua; fosse assim, Brasil afora, a
nação estaria esfaimando. Os professores existem justamente para lembrar que a norma
culta existe, que ela é importante, que, à diferença de servir à discriminação, é uma
corretora de diferenças e de desigualdades.
Nem Paulo Freire…
Lá vou eu mexer com uma das divindades brasileiras – como se divindades humanas me
constrangessem… Nem Paulo Freire ousou tanto na estupidez militante. Ele foi o criador de
um método de alfabetização de adultos que se pretendia revolucionário. A partir do
chamado “universo do educando”, de uma palavra que remetesse a um objeto ou realidade
que fizesse parte do seu cotidiano, iniciava-se a alfabetização, que corresponderia, na
verdade, a um processo de conscientização política que conduziria à libertação. Libertação
do quê? De muita coisa, mas basicamente da tirania do capital.
Tratava-se um “bobajol” formidável, mas se diga uma coisa ao menos em defesa de Paulo
Freire: sempre defendeu o uso da norma culta. Naqueles bons tempos, as esquerdas ao
menos acreditavam na alfabetização do povo – para fazer revolução, claro!, mas
acreditavam.
O neoesquerdismo do miolo mole, na sua fase de apologia do pobrismo, desistiu dessa
bobagem. Esses vigaristas intelectuais estão certos de que o povo desenvolveu valores que
lhe são próprios, que o distinguem da chamada “cultura da elite”. E deve ser respeitado por
isso. A chegada do Apedeuta ao poder, com a sua compulsão de fazer a apologia da
ignorância, parece dar razão prática a essa estupidez. Até parece que a complexa equação
econômica em que se meteu o petismo, tendo de conservar os fundamentos do governo
anterior, foi comandada por prosélitos do analfabetismo. Não foi! Ao contrário! Quem
cuidou da operação foram pessoas com sólida formação intelectual.
Dona Heloísa, uma deslumbrada com o “povo”, não sabe quão reacionária está sendo; não
tem idéia do autoritarismo que está na base de sua teoria. Não quero usar o exemplo
pessoal. Mas sei de gente que se livrou da pobreza extrema apenas porque conseguia
dominar determinados códigos de uma cultura que não seria própria àquela faixa de renda.
143
Pessoas que desrespeitam os pobres fazem de sua pobreza uma cultura alternativa. Gente
decente reconhece o valor intrínseco de certas conquistas – como o domínio da norma culta
da língua – e luta para que o acesso a esse código seja um direito de todos.
Ouvido, o MEC defendeu a adoção da obra como um dos livros de referência. Alguém aí se
surpreendeu? Para encerrar: tentamos saber por que a nossa escola é tão ruim. A vertente
esquerdopata-sindical vai acusar a falta de recursos e os baixos salários dos professores. Não
ganham bem, mas, dada a realidade brasileira, também não ganham tão pouco. Não
importa! Dêem um salário milionário à categoria, e não sairemos do pântano enquanto
valores como o que orientam a estupidez acima forem influentes. Um dos fatores que
conduziram o ensino brasileiro ao desastre que aí está foi a substituição do conteúdo pelo
proselitismo, trabalho conduzido pelas esquerdas “sindicalentas” da educação.
Texto publicado originalmente às 19h25 desta sexta
144
Texto 8
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,a-pedagogia-da-ignorancia,720732,0.htm
A pedagogia da ignorância 18 de maio de 2011 | 0h 00
- O Estado de S.Paulo
Ao anunciar que o Ministério da Educação (MEC) não recolherá o livro didático com erros gramaticais distribuído a 485 mil estudantes, o ministro Fernando Hadad voltou a ser protagonista de confusões administrativas. Depois das trapalhadas que cometeu na aplicação do Exame Nacional do Ensino Médio em 2009 e 2010, agora ele afirma que não pode interferir no conteúdo das publicações adquiridas pelo Programa Nacional do Livro Didático nem julgar o que é certo ou errado em matéria de português, cabendo-lhe apenas decidir o que é "adequado" em política pedagógica.
Com isso, embora tenha por diversas vezes prometido melhorar a qualidade do ensino fundamental, Haddad, paradoxalmente, endossou a pedagogia da ignorância. Produzido por uma ONG e de autoria da professora Heloísa Ramos, o livro Por uma vida melhor defende a supremacia da linguagem oral sobre a linguagem escrita, admitindo que "é certo falar errado". Corrigir o erro é "preconceito". A tese não é nova, já foi rechaçada pela Academia Brasileira de Letras e sempre foi duramente criticada nas faculdades de pedagogia. Além disso, o livro do MEC que admite erro de português não é uma obra de linguística, mas uma publicação pedagógica. Não foi escrito para linguistas, mas para quem precisa de um bom professor de português para ler, falar e escrever de modo correto - condição básica para que se possa emancipar culturalmente.
"Não tem de se fazer livros com erros. O professor pode falar na sala de aula que temos outra linguagem, a popular. Os livros servem para os alunos aprenderem o conhecimento erudito", diz a professora Míriam Paura, do Programa de Pós-Graduação em Educação da UERJ. "Uma coisa é compreender a evolução da língua, que é um organismo vivo. A outra é validar erros grosseiros. É uma atitude de concessão demagógica. É como ensinar tabuada errada. Quatro vezes três é sempre doze, seja na periferia ou no palácio", afirma o escritor Marcos Vilaça, presidente da ABL.
Sem argumentos para refutar essas críticas, o MEC alegou que a aquisição do livro Por uma vida melhor foi aprovada por "especialistas", com base em parecer favorável de docentes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, e afirmou que o edital para a aquisição de livros didáticos enfatiza a importância de "novos tipos de reflexão sobre o funcionamento e as propriedades da linguagem em uso" e da "sistematização dos conhecimentos linguísticos correlatos mais relevantes". Isso dá a medida da falta de rigor do processo de escolha, que "desperdiça dinheiro público com material que emburrece, em vez de instruir", como diz a procuradora da República Janice Ascari.
A autora do livro politizou a discussão. "No tempo em que só a elite ia para a escola, talvez a norma culta bastasse. Hoje, com o acesso da classe popular, a formação tem de ser mais
145
ampla. Nosso livro é direcionado para aquele que pode ter sido discriminado por falar errado", disse ela. Em outras palavras, exigir a correção de linguagem é ser preconceituoso. A reação foi imediata. "É um absurdo esse paternalismo condescendente de não corrigir erros gramaticais. Com isso, consolida-se o conceito de coitadinho, pernicioso e prejudicial ao desenvolvimento dos cidadãos. Qualquer um pode cometer os barbarismos linguísticos que quiser, mas deve saber que eles só se sustentam dentro de um contexto e têm preço social", diz a escritora Ana Maria Machado, doutora em Linguística e Semiologia, integrante da ABL e ganhadora do Prêmio Hans Christian Andersen - o Nobel da literatura infantil.
Como o País tem um padrão de ensino reconhecidamente baixo, o que se deveria esperar do MEC é um mínimo de responsabilidade na escolha dos livros didáticos distribuídos na rede pública. Ao impor a pedagogia da ignorância a pretexto de defender a linguagem popular, as autoridades educacionais prejudicam a formação das novas gerações.
É por isso que um grupo de membros do Ministério Público, liderado pela procuradora Janice Ascari, anunciou que processará o MEC por "crime contra a educação".
146
Texto 9
http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/as-licoes-do-livro-que-desensina
Educação
20/05/2011 - 20:31
Língua portuguesa
As lições do livro que desensina
'Por Uma Vida Melhor' é exemplo de doutrina difundida há décadas na educação
brasileira, segundo a qual a norma culta é um fardo ao qual devemos nos curvar por
imposição social, e não pelos benefícios que ela propicia
Nathalia Goulart
Sala de aula de escola estadual do Rio de Janeiro (Eduardo Martino/Documentography)
Menas era o nome de uma exposição aberta ao público no ano passado, no Museu da Língua
Portuguesa, em São Paulo. As paredes do museu exibiam variações da língua portuguesa
falada em diversas regiões do país, além de textos que explicitavam as grandes diferenças
entre o idioma praticado nas ruas e a norma culta – aquela apresentada nos livros de
gramática. A exposição procurava demonstrar que há vários contextos de fala e que o errado
em um contexto não necessariamente impede que as pessoas se comuniquem de maneira
bem sucedida em outros.
147
Leia mais:
Augusto Nunes: A indignação dos brasileiros sensatos
Sobre Palavras: Moderação numa hora dessas?
Por Uma Vida Melhor é o nome de um livro didático, a esta altura já de triste fama, escrito a
várias mãos sob coordenação da ONG Ação Educativa, adotado pelo Ministério da Educação
(MEC) e distribuído a 4.236 cursos de Educação de Jovens e Adultos (EJA) espalhados pelo
país. A certa altura, baseado na eventual pergunta de um aluno a seu professor, o livro
afirma: "Eu posso falar 'os livro'? Claro que pode." Depois de ensinar a seus alunos que eles
podem falar errado, o professor é orientado a apontar as “sanções” a que o estudante está
sujeito se utilizar uma construção como "os peixe": "Fique atento porque, dependendo da
situação, você corre o risco de ser vítima de preconceito linguístico." E emenda: "A classe
dominante utiliza a norma culta principalmente por ter maior acesso à escolaridade e por
seu uso ser um sinal de prestígio."
Tanto a exposição quanto o livro representam uma linha de pensamento nascida há 50 anos,
fruto do trabalho do americano William Labov, da Universidade da Pennsylvania, que se
debruçou sobre as variedades populares do inglês utilizadas em diferentes regiões e por
grupos sociais distintos. A sociolinguística – esse é o nome da disciplina – busca uma
abordagem científica das línguas, mais descritiva do que normativa. Ela procura entender
cada variação de um idioma, e por isso passa ao largo das questões de certo e errado. A
sociolinguística pode render uma mostra informativa – e divertida – como Menas. Ela
também leva estudantes universitários de português e pedagogia a reflexões importantes
sobre a maneira como as pessoas utilizam a linguagem em diferentes lugares e estratos
sociais. Mas, utilizada de maneira torta num livro didático como Por Uma Vida Melhor, e
misturada a um blá-blá-blá ideológico sobre “preconceito” e “classes dominantes”, essa
abordagem é nada menos que um desatino, propagando a ideia de que a norma culta e a
educação formal são fardos aos quais as pessoas devem ser curvar por imposição social, e
não pelos benefícios que elas propiciam.
Os estudos de Labov começaram a influenciar pesquisadores brasileiros no início dos anos
1970, quando estudos de sociolinguística surgiram nas principais universidades do Brasil. O
primeiro grande projeto produzido por essas instituições, entre elas a Universidade de São
Paulo (USP) e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foi o Nurc, sigla de Norma
Urbana Culta. Munidos de gravadores portáteis, pesquisadores foram às ruas de cinco
capitais para registrar pela primeira vez a fala de brasileiros e, a partir daí, deduzir as normas
cultas do português falado. Para isso, foram ouvidos jovens filhos de pais brasileiros, com
ensino superior completo. Concluiu-se que até mesmo entre os "estudados" a fala divergia
da norma culta.
A teoria sociolinguística começou a se infiltrar no sistema educacional brasileiro a partir da
década de 1980. A influência coincide com a expansão do ensino básico, uma das causas da
queda da qualidade do sistema público, segundo vários especialistas. Em 1988, a nova
Constituição da República tornou lei a universalização do ensino básico: a partir de então,
148
toda criança deveria frequentar a escola. As instituições, habituadas a letrar uma parcela da
população oriunda de famílias instruídas, viram chegar aos bancos escolares filhos de
famílias pobres e de baixo nível de escolarização formal. Naturalmente, desconheciam as
regras básicas da gramática.
Ataliba de Castilho, linguista da Universidade de São Paulo (USP) e um dos defensores das
teorias da sociolinguística, resume o que acontecer a seguir: “Foi levada para a sala de aula a
ideia de que o professor se aproxima do aluno e estimula seu aprendizado na medida em
que é capaz de entender e aceitar as variações linguísticas presentes em cada discurso.” Por
isso, insistir que frases como “nós pega peixe” estão erradas seria contraproducente,
servindo apenas para afastar ainda mais o professor do aluno. “É preciso esclarecer, porém,
que a sociolinguística não defende que a norma culta seja renegada pelas escolas. É dever da
escola ensinar a variante culta escrita”, diz Castilho, autor da Gramática do Português
Falado, obra que normatiza a variante oral culta da língua portuguesa. A obra, a maior
gramática da variante oral de uma língua já feita, levou duas décadas para ser concluída e
contou com a colaboração de cerca de meia centena de estudiosos, todos coordenados pelo
linguista da USP.
Finalmente, em 1998, as ideias apresentadas por Labov e desenvolvidas por pesquisadores
brasileiros foram incorporadas pelo estado, ao serem incluídas nos Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN), do MEC, um conjunto de diretrizes que pretende orientar professores e
autores de material didático – daí, nasceu, por exemplo, um instrumento de desensino
como Por Uma Vida Melhor. Era apenas a versão nacional de uma prática que já se fazia em
nível estadual desde a década anterior. Em São Paulo, na década de 1980, o governador
Franco Motoro já havia convidado docentes da Unicamp a orientar professores paulistas. O
objetivo: fazer com que os docentes aceitassem as variações presentes na fala de seus
alunos. Atualmente, inúmeros estudos com esse viés orientam centros de pesquisa pelo
país, entre elas a Universidade Federal da Bahia (UFBA), responsável pela elaboração de um
Atlas Linguístico do Brasil, e a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que capitaneia
o Censo Linguístico, que procura refazer os passos do Nurc, registrando tanto a norma culta
quanto a popular.
Que o assunto seja tema de pesquisa acadêmica e subsídio para a formação de professores
não se discute. Choca, contudo, que chegue aos ouvidos de estudantes que vão à escola
justamente para aprender aquilo que a rua não lhes oferece: a norma culta, com toda a
riqueza que ela oferece. "Esse não é um tema que deve ser levado para a sala de aula, seja
para crianças, seja para adultos em fase de alfabetização", diz Miriam Paura, educadora da
Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). "A escola tem por objetivo fazer a instrução
correta. É dever do professor explicar aos alunos as diferenças entre o falar e o escrever,
entre a norma culta e as variações populares. Mas explicar não é dizer que tal forma deva
ser reproduzida."
Não bastasse confundirem os alunos, as aulas para desaprender também podem confundir o
professor. Ninguém mais ignora o fato de que a qualidade do corpo docente brasileiro é
irregular. "Um docente despreparado pode interpretar tal livro de maneira equivocada", diz
149
Paura. É possível que um mestre bem qualificado entenda que deve-se deixar o
desensinamento de lado e ater-se às regras gramaticais apresentadas no livro – sim, no
restante da obra, as normas estão lá. Outro professor menos informado, porém, pode ficar
em dúvida sobre a pertinência de corrigir seus alunos, e a correção é um processo
fundamental do aprendizado. "Saber até onde a norma popular é aceitável é um tema
delicado e exige preparo por parte do profissional. Tudo isso faz com que um material
didático que dê margem para múltiplas interpretações seja um risco."
Neste ano, todo o Brasil sofrerá com a falta de mão de obra qualificada, informa pesquisa do
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Alguns brasileiros, contudo, sofrerão mais.
"Quem não domina a norma culta do português tem dificuldades para brigar por uma vaga,
seja ela de que tipo for", afirma Antônio Carminhato, presidente do Grupo Soma de recursos
humanos. Outra pesquisa, divulgada pela Confederação Nacional das Indústrias (CNI),
revelou que a falta de qualificação atinge sete em cada dez empresas consultadas. A solução
do problema, segundo a entidade, é simples: "A educação básica é a base do processo da
formação de profissionais qualificados." Vale para a indústria, para o comércio, para a
agricultura... É difícil supor, portanto, que o papel da norma culta seja apenas retirar o
brasileiro da alça de mira do preconceito. No século XXI, frequenta-se a escola e aprende-se
o que é correto para deixar o Brasil do século XIX para trás e ingressar no mundo moderno,
complexo e exigente.
Leia mais:
Augusto Nunes: A indignação dos brasileiros sensatos
Sobre Palavras: Moderação numa hora dessas?
150
Texto 10
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,a-espertocracia-educacional,722417,0.htm
A ''espertocracia'' educacional
22 de maio de 2011 | 0h 00
Gaudêncio Torquato - O Estado de S.Paulo
Machado de Assis, mulato, gago e epilético, um dos mais ilustrados e respeitados cultores do
idioma pátrio, conseguiu de modo exemplar unir o erudito ao popular. Em seus irretocáveis
escritos, ensinava que a democracia deixa de ser uma coisa sagrada quando se transforma
em "espertocracia" - "o governo de todos os feitios e de todas as formas". Já de Rui Barbosa,
pequena estatura, advogado, diplomata, político e jornalista, cujo nome está inscrito nos
anais da história do Direito internacional, pode-se extrair uma singela lição de seu celebrado
patrimônio intelectual: "A musa da gramática não conhece entranhas". Pois bem, esses dois
curtos arremates dos renomados mestres de nossa língua escrita e falada vêm a calhar neste
momento em que a perplexidade assoma ante a barbaridade, patrocinada pelo Ministério da
Educação (MEC), de uma "nova gramática", cuja autora assim ensina: "Os livro ilustrado mais
interessante estão emprestado", como frase adequada à linguagem oral, está correta ao ser
usada em certos contextos.
Para o grande Rui, a letra da gramática não entra em curvas e evita estratagemas. E o
aforista Machado puxa a orelha dos "espertocratas", aqueles que bagunçam ao escrever tal
como falam, usando todos os feitios e formas. E arremata de maneira cortante: "A primeira
condição de quem escreve é não aborrecer". Aborrecimento é o que não falta quando
vemos "sábios pareceristas", contratados pelo MEC, exibindo o argumento: seja na forma
"nós pega o peixe" ou "nós pegamos o peixe", o pescado estará na rede. Se assim é, ambas
estão corretas. Para dar mais voltas no quarteirão da polêmica, a pasta da Educação alega
que não é o Ministério da Verdade. Donde se conclui que um doidivanas qualquer, desses
que se encontram no feirão das ofertas gramaticais estapafúrdias, pode vir a propor um
texto sobre a História do Brasil sem nexo, com figurantes trocados e português estropiado.
Basta receber o imprimatur de outra figura extravagante que seja docente de Português
para ser adotado nas escolas. Com esse arranjo, o pacote educacional tem condições de
receber o endosso da instância mais alta da educação no País para circular nas salas de aula.
Esse é o caminho percorrido pelo acervo didático que faz a cabeça da estudantada.
Analisemos as questões suscitadas pela obra Por uma Vida Melhor, a começar pela
indagação filosófica que se pinça do título da série. Terá uma vida melhor o estudante que se
obriga a aprender numa gramática alternativa, onde a "norma popular" se imbrica à norma
culta? Ou, para usar a expressão da professora Heloisa Ramos, autora do livro, sofrem os
alunos que escrevem errado "preconceito linguístico"? Primeiro, é oportuno lembrar que,
151
mesmo concordando que a língua é um organismo vivo, evolutivo, não se pode confundir
uma coisa com a outra, a forma oral e a norma escrita. Cada compartimento deve ser posto
em seu devido lugar. Quem troca uma pela outra ou as junta na mesma gaveta gramatical o
faz por alguma intenção, algo que ultrapassa as fronteiras linguísticas. E é nesse campo que
surgem os atores, aqui cognominados de doidivanas. Mais parece um grupo que considera a
língua instrumento para administrar preconceitos, elevar a cidadania e o estado de espírito
dos menos instruídos. Como se pode aduzir, embute-se na questão um viés ideológico, coisa
que se vem desenvolvendo no País na esteira de um populismo embalado com o celofane da
demagogia.
Ora, os desprotegidos, os semianalfabetos, os analfabetos funcionais, enfim, as massas
ignaras não serão elevadas aos andares mais altos da pirâmide se lhes for dada apenas a
escada do pseudonivelamento das regras do idioma. Esta é, seguramente, um meio de
ascensão social. Mas seus usuários precisam entender que a chave do elevador está
guardada nos cofres normativos. Igualmente, as vestimentas, os modos e costumes, a teia
de amigos, as referências profissionais são motores dessa escalada. Por que, então, os
doidivanas da cultura e da educação investem com tanta força para elevar a linguagem
popular ao patamar da norma culta? Não entendem que são objetos diferentes? Por que
tanto esforço para defender uma feição que valida erros grosseiros? Não há outra resposta:
ideologização. Imaginam o uso da língua como arma revolucionária. O sentimento que
inspira os cultores da ignorância só pode ser o de que para melhorar a autoestima e ter uma
vida melhor a população menos alfabetizada pode escrever como fala. Como se a gramática
normativa devesse ser arquivada para dar lugar à gramática descritiva. Sob essa abordagem,
sorver a sopa fazendo barulho, à moda dos nossos bisavós, também poderia ser
recomendável...
As concessões demagógicas que se fazem em nome de uma "educação democrática" apenas
reforçam a estrutura do atraso que abriga o ensino público básico do País, responsável pelo
analfabetismo funcional que atinge um terço da população. Avolumam-se os contingentes
de jovens de 9 a 14 anos que, além de não saberem interpretar um texto, se restringem ao
exercício de copiar palavras sem entender o seu significado. Os copistas constituem os
batalhões avançados da "revolução" empreendida pela educação brasileira. Pior é constatar
que os "revolucionários" creem firmemente que a escalada social deve continuar a ser
puxada pela carroça do século 17, fechando os olhos à "mobralização" da universidade. E
assim, passada a primeira década do século 21, no auge das mudanças tecnológicas que
cercam a Era da Informação, emerge um processo de embrutecimento do tecido social.
Alicerçado pela argamassa de escândalos, desprezo às leis, violência desmesurada,
promessas não cumpridas.
O grande Rui bem que profetizara: "A degeneração de um povo, de uma nação ou raça
começa pelo desvirtuamento da própria língua".
152
Texto 11
http://veja.abril.com.br/blog/augusto-nunes/tag/por-uma-vida-melhor/
Coluna do Augusto Nunes
Com palavras e imagens, esta página tenta apressar a chegada do futuro que o Brasil espera
deitado em berço esplêndido. E lembrar aos sem-memória o que não pode ser esquecido.
Por uma vida melhor
22/05/2011 às 13:20 \ Direto ao Ponto
Os aiatolás do idioma insistem na vigarice lucrativa e levam mais um troco do escritor
Deonísio da Silva
A Ação Educativa, irmandade que congrega a turma que acha que falar errado está certo,
divulgou uma Nota Pública em que agradece “o apoio da comunidade científica e
dos especialistasno ensino da língua” ao livro “Por uma vida melhor”, também conhecido
como “Nós pega o peixe”. Ainda grogues com a vigorosa reação dos brasileiros sensatos,
os aiatolás do idioma resolveram fazer de conta que ganharam a briga para não perder o
acesso aos cofres do MEC, que publica essas lucrativas vigarices com o patrocínio
involuntário dos que pagam impostos. Vejam a nota que viola o artigo 171 do Código
Penal. E leiam em seguida outro merecidíssimo corretivo aplicado pelo escritor e professor
Deonísio da Silva. Assim será até que a turma que deseduca aprenda que o dever de um
professor é ensinar. (AN)
NOTA PÚBLICA
Alguns dias depois do início da polêmica em torno de uma frase retirada da obra “Por uma
vida melhor”, o debate ganha argumentos mais qualificados na imprensa. Autores como
Marcos Bagno (UnB), Sírio Possenti (Unicamp), Carlos Alberto Faraco (UFPR), Magda Soares
Becker (UFMG) e tantos outros vieram a público se posicionar sobre a polêmica, que
classificaram como “falsa” e “vazia”.
Com exceção de alguns que insistem em insinuar que o livro “ensina errado”, parece ter
ficado claro à opinião pública que o objetivo da obra é ensinar a norma culta, sim, mas a
partir da consideração de variantes populares do idioma que o adulto traz consigo ao chegar
à escola. Em outras palavras, o livro mostra a frase “Nós pega” para, em seguida, ensinar a
forma “Nós pegamos”. Infelizmente, ao pinçar apenas a primeira parte, a notícia publicada
em um blog de política do IG e reproduzida por outros veículos não trazia elementos de
contextualização a seus leitores.
Lamentamos a postura de alguns parlamentares que se apropriaram da discussão de
maneira superficial e usam o episódio para atacar opositores e criar novas falsas polêmicas.
Como corretamente publicou a Folha de S. Paulo (18/5), o livro segue as normas dos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), vigentes desde 1997.
153
Sabemos que o debate público é fundamental para promover a qualidade e equidade na
educação, e reafirmamos nossa disposição em participar de toda discussão nesses termos.
RESPOSTA DE DEONÍSIO DA SILVA
1) No ensino fundamental e médio há a disciplina Linguística? Não! Os professores são
pagos para ensinar Português!
2) Vamos conceder, apenas para argumentar, que o livro em questão ensine Linguística.
Por que o MEC deveria comprar cerca de 500 000 exemplares desse título para distribuir
em todas as escolas do ensino fundamental e médio? Linguística é matéria dos Cursos de
Letras!
3) Muitos dos professores que defendem esses crimes de lesa-língua estão apavorados com
a reação da sociedade. Para defender o que defendem, ganham bolsas de CNPQ, do CNPQ
do B, de outras financiadoras de projetos etc. Enfim, para tudo há dinheiro público, nossa
carga tributária é inversamente proporcional às posições do Brasil nas classificações de
educação e cultura: os tributos estão lá em cima, os serviços prestados, lá embaixo!
4) Esses professores são dispensados de trabalhos nas universidades, onde deveriam dar
mais aulas, justamente para “pesquisar” isso! Se só fazem isso, ganham muito mais do que
valem! Se depois de tantos anos chegaram ao português de analfabetos, o que fizeram
esses anos todos? Pesquisa? Bem, decerto não é à toa que até Stálin meteu-se com
Linguística e ensino de russo! Sim, o Stálin é autor de um livro de Linguistica! Por que
ignoram na bibliografia o colega? Medo? De quê? O Céline é fascista, eu abomino o
fascismo, qualquer fascismo, mas a-do-ro os romances dele!
5) Há uma questão de fundo na qual, ao que saiba, ninguém tocou. Ou, se tocou, não li os
artigos. Eles querem falar mal de Fernando Henrique Cardoso, que escreve melhor do que
eles. Uma vez, FHC escorregou num “propiamente” e eles caíram de pau, mas Lula pode
tudo, é um 007 que tem licença para matar a pauladas a língua portuguesa, a lógica, a
coerência, a coesão, o estilo, o bom gosto etc, onde quer que os encontre! E quando o
apedeuta fala, para muitos deles, como a célebre doutora, tudo se ilumina!
6) Por que defendem uma língua que não usam? Ascenderam socialmente com a língua
que defendem? Não! Por que negam o mesmo direito aos outros? Machado – preto, pobre,
epiléptico, gago etc – venceu todos os preconceitos, menos o de quem ainda não leu o
gênio! Um dia desses o Moacir Japiassu demonstrou que um deles confundiu OC I, 1093,
indicando a Obra Completa (de Machado de Assis), com um texto de Osório Cochat, e
estranhou a falta de intimidade do professor com Machado de Assis e sua inabilidade ou
pressa em consultar bibliografias.
7) É raro um professor vir a público para reforçar a norma culta. É mais frequente que
venha para espinafrar quem defenda os bons costumes na língua e para justificar que cada
um deve escrever como lhe apraz, seja canela ou sassafrás. Mas não praticaram as
transgressões gramaticais que tanto defendem para obter seus títulos e serem aprovados
em provas e entrevistas que os qualificaram para ensinar em escolas e universidades, do
contrário teriam sido reprovados.
154
8 ) Há uma sede do público por aprender língua portuguesa. Não é por acaso que grandes
jornais e grandes empresas procuram ter em seus quadros referências solares da técnica e
da arte de escrever. Profissionais como Sérgio Nogueira no sistema Globo; Pasquale Cipro
Neto, na Folha de S.Paulo; Cláudio Moreno, no jornal Zero Hora; Dad Squarisi, no Correio
Braziliense. Português é difícil? Dad Squarisi nasceu no Líbano e hoje ensina os brasileiros a
escrever: sua coluna “Dicas de Português” é publicada em 15 jornais.
Enfim, se há quem se esmere tanto em cuidar, isso é sintoma de que escolas e
universidades estão falhando em outra técnica e em outra arte: a de ensinar. É por isso
também que muitos jovens inteligentes abandonam os professores no meio do caminho e
desistem dos cursos que faziam e vão trabalhar ou aprender em outro lugar, pois têm mais
o que fazer do que ouvir besteiras!
Tags: Ação Educativa, Deonísio da Silva, ensino, idioma livro, lingua
portuguesa,nota, ONG, Por uma vida melhor
155
Texto 12
http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/conteudo.phtml?id=1127433&tit=Polemica-vazia
Polêmica vazia
Publicado em 19/05/2011 | CARLOS ALBERTO FARACO
O desvelamento da nossa cara linguística tem incomodado profundamente certa intelec-
tualidade. A complexidade da realidade parece que lhes tira o ar e o chão
Corre pela imprensa e pela internet uma polêmica sobre o livro didático Por uma vida
melhor, da coleção Viver, aprender, distribuída pelo Programa Nacional do Livro Didático
(do MEC) para escolas voltadas à Educação de Jovens e Adultos (EJA). Segundo seus
críticos, o livro, ao abordar a variação linguística, estaria fazendo a apologia do “erro” de
português e desvalorizando, assim, o domínio da chamada norma culta.
O tom geral é de escândalo. A polêmica, no entanto, não tem qualquer fundamento. Quem
a iniciou e quem a está sustentando pelo lado do escândalo, leu o que não está escrito,
está atirando a esmo, atingindo alvos errados e revelando sua espantosa ignorância sobre
a história e a realidade social e linguística do Brasil.
Pior ainda: jornalistas respeitáveis e até mesmo um conhecido gramático manifestam
indignação claramente apenas por ouvir dizer e não com base numa análise criteriosa do
material. Não podemos senão lamentar essa irresponsável atitude de pessoas que têm a
obrigação, ao ocupar o espaço público, de seguir comezinhos princípios éticos.
Se o fizessem, veriam facilmente que os autores do livro apenas seguem o que recomenda
o bom senso e a boa pedagogia da língua. O assunto é a concordância verbal e nominal –
que, como sabemos – se realiza, no português do Brasil, de modo diferente de variedade
para variedade da língua. Há significativas diferenças entre as variedades ditas populares e
as variedades ditas cultas. Essas diferenças decorrem do modo clivado como se constituiu a
sociedade brasileira. Ou seja, a divisão linguística reflete a divisão econômica e social em
que se assentou nossa sociedade, divisão que não fomos ainda capazes de superar ou, ao
menos, de diminuir substancialmente.
Muitos de nós acreditamos que a educação é um dos meios de que dispomos para
enfrentar essa nossa profunda clivagem econômica e social. Nós linguistas, por exemplo,
defendemos que o ensino de português crie condições para que todos os alunos alcancem
o domínio das variedades cultas, variedades com que se expressa o mundo da cultura
letrada, do saber escolarizado.
Para alcançar esse objetivo, é indispensável informar os alunos sobre o quadro da variação
linguística existente no nosso país e, a partir da comparação das variedades, mostrar-lhes
os pontos críticos que as diferenciam e chamar sua atenção para os efeitos sociais
corrosivos de algumas dessas diferenças (o preconceito linguístico – tão arraigado ainda na
156
nossa sociedade e que redunda em atitudes de intolerância, humilhação, exclusão e
violência simbólica com base na variedade linguística que se fala). Por fim, é preciso
destacar a importância de conhecer essa realidade tanto para dominar as variedades
cultas, quanto para participar da luta contra o preconceito linguístico.
É isso – e apenas isso – que fazem os autores do livro. E não somente os autores desse
livro, mas dos livros de português que têm sido escritos já há algum tempo. Subjacentes a
essa direção pedagógica estão os estudos descritivos da realidade histórica e social da
língua portuguesa do Brasil, estudos que têm desvelado, com cada vez mais detalhes, a
nossa complexa cara linguística.
Desses estudos nasceu naturalmente a discussão sobre que caminhos precisamos tomar
para adequar o ensino da língua a essa realidade de modo a não reforçar (como fazia a
pedagogia tradicional) o nosso apartheid social e linguístico, mas sim favorecer a
democratização do domínio das variedades cultas e da cultura letrada, domínio que foi
sistematicamente negado a expressivos segmentos de nossa sociedade ao longo da nossa
história.
O desvelamento da nossa cara linguística, porém, tem incomodado profundamente certa
intelectualidade. A complexidade da realidade parece que lhes tira o ar e o chão. Preferem,
então, apegar-se dogmática e raivosamente à simplicidade dos juízos absolutos do certo e
do errado. Mostram-se assim pouco preparados para o debate franco, aberto e
desapaixonado que essas questões exigem.
Carlos Alberto Faraco, linguista, foi professor de Português e reitor da UFPR.
157
Texto 13
http://filosomidia.blogspot.com.br/2011/05/o-escandalo-do-livro-que-nao-existia.html
quarta-feira, 25 de maio de 2011
O escândalo do livro que não existia
"Durante dias e dias o país inteiro discutiu uma miragem, um não-fato, algo que não
existia. E na discussão se leu de tudo, analistas com julgamentos definitivos sobre a
questão, acadêmicos soltando sentenças condenatórias, jornalistas atirando flechas na
miragem. E tudo em cima de uma nuvem, uma sombra, um ectoplasma que nunca existiu.
Poucas vezes na história contemporânea se viu manifestação tão atrasada do que seja
opinião pública latino-americana. Parecia mais um daqueles contos do realismo fantástico de
um Garcia Marques, uma parábola familiar de Julio Cortazar.
Refiro-me a esse episódio sobre o suposto livro que ensinaria as crianças a ler a escrever
errado.
Esse livro, sobre o qual tantas mentes brilhantes despejaram esgoto puro, não existe.
Inventaram um livro com o mesmo nome, com a mesma autora e imputaram a ele um
conteúdo inexistente no livro original.
O livro massacrado não defendia a norma "inculta". Apenas seguia recomendações do
Ministério da Educação, em vigor desde 1997, de não desprezar a fala popular. Era uma
recomendação para que os jovens alfabetizados, que aprendem a falar corretamente, não
desprezem pessoas do seu próprio meio, que não tiveram acesso à chamada norma culta.
158
No entanto um país que aspira a ser potência, conduzido por um tipo de jornalismo típico de
países atrasados, caiu de cabeça na interpretação de que o livro ensinava a escrever errado.
Criado o primeiro tumulto, personagens ilustres caíram de cabeça na versão vendida. O país
inteiro repetiu a ficção criada, as melhores cabeças da mídia de massa embarcando em uma
canoa furada, apenas repetindo o que ouviram falar.
Sem que um só tivesse ao menos lido o capítulo, deram o que lhes era pedido: condenações
do livro e da autora, pela discutível vantagem de saírem em jornais e programas de TV...
dizendo bobagens.
De repente, uma professora séria foi achincalhada, ofendida, tornando-se inimigo público,
merecendo longos minutos no Jornal Nacional.
Episódio semelhante ocorreu alguns anos atrás com uma professora de psicologia que
fazia pesquisas sobre "redução de danos" – um tipo de política de saúde visando ensinar os
viciados a não se matarem. Foram apontadas – ela e sua orientadora de 68 anos – como
traficantes em blogs de esgoto de portais de grande visibilidade. Depois, essa acusação
leviana repercutida no Jornal Nacional.
Em alguns setores, o país vive momentos de trevas, de um atraso similar ao macartismo
americano dos anos 50, como se toda a racionalidade, lógica, valores da civilização tivessem
sido varridos do mapa. E tudo debaixo do álibi de uma luta política implacável, que
ideologiza tudo, transforma qualquer fato em campo de batalha, escandaliza qualquer coisa,
fuzila qualquer pessoa em nome de uma guerra que já não tem rumo, objetivo. É como um
exército de cruzados voltando das batalhas perdidas e destruindo tudo o que veem à sua
frente apenas porque aprenderam a guerrear, a destruir e, sem guerras pela frente,
praticassem o rito da execução sumária por mero vício."
Luis Nassif . AdVivo
25 mai 2011
159
Texto 14
http://www.gazetadopovo.com.br/colunistas/conteudo.phtml?id=1129095&tit=O-poder-
do-erro
Cristovão Tezza
O poder do erro
Publicado em 24/05/2011 | [email protected]
Eu não queria escrever sobre esse tema, por esgotamento. Mas tenho lido tanta bobagem,
com o tom furibundo das ignorâncias sólidas, sobre o livro didático que “ensina errado”,
que não resisto a comentar. É impressionante como observações avulsas, sem contexto,
eivadas de um desconhecimento feroz tanto do livro em si como de seu pressuposto
linguístico, podem rolar pelo país como uma bola de neve, encher linguiça de jornais,
revistas e noticiários e até mesmo estimular o “confisco” do material pela voz de políticos.
Instituições de alto coturno, como a Academia Brasileira de Letras, manifestaram-se contra
o horror de um livro didático que “ensina errado”. Até o presidente do Congresso, o
imortal José Sarney, tirou sua casquinha patriótica. A sensação que fica é de que há uma
legião de professores pelo Brasil afora obrigando alunos a copiar no caderno as formas do
160
dialeto caipira, com o estímulo homicida do MEC (de qualquer governo – seria o fim da
picada politizar o tema). Sim a educação brasileira vai muito mal, mas estão errando
obtusamente o foco.
O que essa cegueira coletiva mostra, antes de tudo, é o fato de que a linguística – a
primeira ciência humana moderna, que se constituiu no final do século 18 com o objetivo
de compreender a evolução das línguas – não entrou no senso comum. As pessoas,
letradas ou não, sabem mais sobre Astronomia do que sobre o funcionamento das línguas,
mas imaginam o contrário. Eis uma cartilha básica, nos limites da crônica: toda língua, em
qualquer parte do mundo e em qualquer ponto da história, é um conjunto de variedades;
uma dessas variedades, em algum momento e em algumas sociedades, ganhou o estatuto
da escrita, que se torna padrão, é defendida pelo Estado e é o veículo de todas
informações culturais de prestígio; há diferenças substanciais entre as formas da oralidade
e as formas da escrita (são gramáticas diferentes, com diferentes graus de distinção); a
passagem da oralidade para a escrita é um processo complexo que nos faz a todos
“bilíngues” na própria língua. Pedagogicamente, dar ao aluno a consciência das diferenças
linguísticas e de suas diferentes funções sociais é um passo fundamental para o
enriquecimento da sua formação linguística.
É função da escola promover o domínio da forma padrão da escrita, estimular a leitura e o
acesso ao mundo letrado, e tanto melhor será essa competência quanto mais o aluno
desenvolver a percepção das diferenças gramaticais da oralidade e da vida real da língua.
Ora, todo livro didático de português minimamente atualizado reserva um capítulo ao
tópico da variedade linguística e ao papel da língua padrão dentro do universo das
linguagens cotidianas. Num país de profundos desníveis sociais como o Brasil, o
reconhecimento da diferença linguística é o passo primeiro para o pleno acesso à escrita e
sua função social. Será isso tão difícil de entender?
161
Texto 15
http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,educacao-para-o-debate,725367,0.htm
Educação para o debate
29 de maio de 2011 | 0h 00
Notícia
Sergio Fausto - O Estado de S.Paulo
Disseram que o livro Por uma Vida Melhor estaria autorizando o desrespeito generalizado às
regras da concordância e abolindo a diferença entre o certo e o errado no emprego da língua
portuguesa. Tudo isso com o beneplácito do MEC.
A celeuma ganhou os jornais nas últimas semanas. Foi motivada por um trecho no qual se
afirma que o aluno pode dizer "os livro". Parece a senha para um vale-tudo na utilização da
língua. Não é, mas assim foi lido.
Não conheço a autora nem sou educador, embora vínculos de família me tenham feito
conviver com educadoras desde sempre. Escolhi comentar o caso não apenas porque se
refere a um tema importante, mas também porque exemplifica um fenômeno frequente no
debate público. Tão frequente quanto perigoso.
O procedimento consiste na desqualificação de ideias sem o mínimo esforço prévio de
compreendê-las. Funciona assim: diante de mero indício de convicções contrárias às minhas,
detectados em leitura de viés ou simples ouvir dizer, passo ao ataque para desmoralizar o
argumento em questão e os seus autores. É a técnica de atirar primeiro e perguntar depois.
A vítima é a qualidade do debate público.
Existem expressões, e mesmo palavras, que têm o condão de desencadear essa reação de
ataque reflexo. Há setores da opinião pública para os quais a simples menção à privatização
é motivo para levar a mão ao coldre. No caso em pauta, o gatilho da celeuma foi a expressão
"preconceito linguístico" para qualificar a atitude de quem estigmatiza o "falar errado" da
linguagem popular. Houve quem aventasse a hipótese de que o livro visasse à justificação
oficial dos erros gramaticais do ex-presidente Lula. Um despropósito.
Dei-me ao trabalho de ler o capítulo de onde foram extraídas as "provas" do suposto crime
contra a língua portuguesa. Chama-se Escrever é diferente de falar, título que já antecipa
uma preocupação com o bom emprego da língua no registro formal, típico da escrita. São
algumas páginas. Nada que um leitor treinado não possa enfrentar em cerca de 10 ou 15
minutos de leitura atenta. Se a fizer sem prevenção, constatará que o livro não aceita a
162
sobreposição da linguagem oral sobre a linguagem escrita em qualquer circunstância, como
chegou a ser escrito.
Ao contrário, no capítulo em questão, a autora busca justamente marcar a diferença entre a
norma culta, indispensável na escrita formal, e as variantes populares da língua, admissíveis
na linguagem oral. Não se exime ela do ensino das regras. Mas, em vez de recitá-las, vale-se
da técnica da reescrita. Há uma seção particularmente interessante sobre o uso da
pontuação. Vale a pena citar uma passagem: "(...) uma cuidadosa divisão em períodos é
decisiva para a clareza dos textos escritos. A língua oral conta com gestos, expressões,
entonação de voz, enquanto a língua escrita precisa contar com outros elementos. A
pontuação é um deles".
Noves fora um certo ranço ideológico, aqui e ali, o livro é de bom nível. Trabalho de gente
séria, que merece crédito. E um pouco mais de respeito. Fica o testemunho: a ONG
responsável pela obra tem entre seus dirigentes, se a memória não me trai, profissionais
responsáveis, no passado, por um dos melhores cursos de Educação para Jovens e Adultos
da cidade de São Paulo, o supletivo do Colégio Santa Cruz.
É justamente a esse público que o livro se dirige. Ele é formado por alunos que estão
travando contato com a norma culta da língua mais tarde em sua vida. Nesse contato tardio,
frequentemente se envergonham do seu falar. Emudecem. Reconhecer a legitimidade do
repertório linguístico que carregam é condição para que possam aprender. Não se trata de
proteger esse repertório das convenções da norma culta, para supostamente preservar a
autenticidade da linguagem popular. Isso, sim, seria celebração da ignorância. E populismo.
O livro não ingressa nesse terreno pantanoso.
O que está dito acima se aplica também às crianças quando iniciam o processo de
alfabetização. Sabe-se que o primeiro contato com a norma culta da língua é crucial para o
desempenho futuro do aluno como leitor e escritor. Sabe-se igualmente que a absorção da
norma culta é um longo processo. O maior risco é o de bloqueá-lo logo ao início, marcando
com o estigma do fracasso escolar os primeiros passos do aprendizado. No início dos anos
1980, mais de 60% dos alunos eram reprovados na primeira série do ensino fundamental, o
que se refletia em altas taxas de evasão escolar. Embatucavam no contato com as primeiras
letras (e as primeiras operações aritméticas). Melhoramos desde então? Sim, as taxas de
repetência, defasagem idade/série e evasão escolar diminuíram. Parte da melhora se deve à
adoção da progressão continuada, outra presa fácil da distorção deliberada, pois passível de
ser confundida com a aprovação automática.
Não aprendemos, ainda, porém, como assegurar a qualidade desejada no aprendizado da
língua. Mas há sinais de vida. O desempenho dos alunos em Português vem melhorando, em
especial no primeiro ciclo do ensino fundamental, conforme indicam avaliações nacionais e
163
internacionais, ainda que mais lentamente do que seria desejável e necessário. A verdade é
que o desafio é enorme: não faz muitos anos que as portas da educação fundamental se
abriram para todos e a escola passou a ter de ensinar ao "filho do pobre" - dezenas de
milhões de crianças - a norma culta da língua, que seus pais não dominam.
Há muita discussão e aprendizado a serem feitos para vencer esse desafio. É ótimo que
todos queiram participar. Mas é preciso educar-se para o debate. Isso implica desde logo
dar-se ao trabalho de conhecer o tema em pauta e ter a disposição de entender o ponto de
vista alheio antes de desqualificá-lo. Sem querer ser pedante, é o que dizia Voltaire, séculos
atrás: "Aprendi a respeitar as ideias alheias, a compreender antes de discutir, a discutir antes
de condenar". Todo mundo ganha com isso.
DIRETOR EXECUTIVO DO iFHC, É MEMBRO DO GACINT-USP
E-MAIL: [email protected]
164
Texto 16
http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/eles-odeiam-e-a-civilizacao/
Reinaldo Azevedo
Análises políticas em um dos blogs mais acessados do Brasil
15/05/2011 às 7:17
Eles odeiam é a civilização!
Escrevi ontem um post post sobre o livro didático de língua portuguesa “Por Uma Vida
Melhor” — não, não é a 539ª obra de Gabriel Chalita. Como ficou evidenciado, trata-se de
um repto contra a norma culta. Seus autores sustentam que “é importante que o falante de
português domine as duas variantes e escolha a que julgar adequada à sua situação de
fala”. Uma das variantes é o “erro”. Assim, tem-se que, para esses valentes, há situações em
que ele é preferível ao acerto. Só se esqueceram de considerar que, afinal de contas, cada
usuário da língua pode errar à sua maneira.
Alguns bobalhões, achando que sou do tipo que se intimida com o fácil falar difícil, vêm me
“informar” — vontade de gargalhar! — sobre os modernos estudos da “sociolingüística” (a
minha ainda com trema), que eu teria ignorado no meu comentário. Essa gente vive na
bolha de plástico de certos grupelhos universitários e está convicta de que, de fato, conhece
o mundo. Quem não partilha de sua mesma loucura estaria desinformado. Qual é, manés?
Conheço muito bem esse debate. Não tentem misturar as estações.
Uma coisa é entender por que a fala “inculta” do povo —• e ninguém, com efeito, se
expressa perseguido por um manual de gramática — é eficiente, funciona, comunica; outra,
diferente, é sugerir que as variantes são só uma questão de escolha e que a norma culta é
uma imposição do preconceito lingüístico, determinado — não se fala o nome, mas está
subjacente — pela luta de classes. Trata-se de uma tolice, de uma falsa questão.
Um certo Jair afirma: “O autor [eu!!!] deveria, antes de sair enaltecendo a norma culta,
perceber quantas vezes deixa de dizer os ‘s’ nos plurais ou os ‘r’ nos verbos no infinitivo,
para ver como funciona isso de ‘falar errado’. Mais: preconceito deste tipo é, para mim, tão
detestável quanto o racial ou o de gênero.” Coitado do Jair — ou coitados dos alunos do Jair!
Ele não entendeu nada! Eu exalto, sim, a norma culta como uma necessidade… normativa,
se me permitem a tautologia. Ninguém defende que o sujeito tenha cassados seus direitos
constitucionais por falar ou escrever errado.
165
A questão não diz respeito a direitos, energúmenos!, mas a oportunidades. Em qualquer
lugar do mundo — Brasil, Cuba ou Suécia —, o pleno domínio da língua oficial acaba
selecionando pessoas para determinadas atividades. Vale até para a China, que tem o
mandarim como o idioma da administração do estado. Assegurar aos estudantes — que já
falam e escrevem segundo os ditames de seus próprios erros e pautados por ignorâncias
específicas — que os níveis de linguagem são equivalentes e que se está diante de uma
questão de escolha corresponde a uma mentira, que será desmentida pela vida. Ocupar uma
única aula que seja com esta bobagem, em vez de lhe ensinar análise sintática, constitui um
crime contra a educação.
A quem interessa esse debate sobre preconceito lingüístico, níveis de linguagem, eficiência
da comunicação e afins? Aos estudantes? Não! Isso é, e deve ser, preocupação de
especialistas, inclusive os do ensino. Se um professor consegue identificar os erros mais
freqüentes de seus alunos — tendo a norma culta como referência —, se consegue
caracterizá-los, entender a sua natureza, então se torna certamente mais fácil ensinar a, vá
lá, língua oficial.
O país vive um fenômeno terrível. A escola era um privilégio, expressão óbvia da injustiça
social, o que condenava o país ao atraso. Era para poucos, mas, sabe-se, eficiente naquele
pequeno universo. A necessária massificação trouxe consigo a perda da qualidade. Uma
escola universalizada é necessariamente ruim? Não! Mas, para ser boa, precisa operar com
critérios muito rígidos de seleção de mão-de-obra e de avaliação de desempenho dos
professores •— além, obviamente, de contar com infra-estrutura adequada. Não temos
nada disso.
A “democratização” do ensino só faz sentido e só será útil aos mais pobres se estes puderem
ter acesso aos códigos da cultura que ditam as escolhas relevantes que se fazem no país.
Ninguém nega que os milhões de brasileiros que se apropriam da língua à sua maneira
sabem se comunicar e até descobrem modos muito criativos de fazê-lo. Mais: sabem os
especialistas que a mais errada expressão de uma língua conserva intocada a sua estrutura
profunda. Mesmo o discurso dos loucos obedece a certas regras. Levar esse debate à sala de
aula é uma tolice, uma perda de tempo, uma estupidez.
Uma das marcas históricas do Brasil é a unidade lingüística — e sempre soubemos lidar
bastante bem com as diferenças, sem que prosélitos tenham de transformá-las numa teoria
do poder. Ainda hoje, quando especialistas mundo afora pensam as condições objetivas dos
países do BRIC (Brasil, Rússia, Índia e China), essa unidade distingue positivamente o nosso
país. Ah, não se de depender dos autores do livro “Por Uma Vida Melhor”. Para eles, o
ensino da língua portuguesa se confunde com uma imposição de classe.
Não deveríamos estar expostos a essa picaretagem, mas estamos. Chegamos a esse debate
miserável depois de três décadas de militância ativa do petismo nas universidades e nas
166
escolas. Já escrevi aqui outro dia e reitero: nem se pode dizer que foi o velho marxismo que
fez isso com a inteligência brasileira. Essa boçalidade, acreditem, nem mesmo marxista é. O
antigo comunismo conjugava com a sua vocação homicida a crença num novo homem, que
desfrutaria dos bens da civilização quando se libertasse da opressão dos burgueses e
aristocratas. Essa gente que hoje dá as cartas na educação tem um ódio muito mais perverso
e devastador do que o ódio de classe: ela odeia é a civilização propriamente dita..
Para essa canalha, o homem se perdeu definitivamente quando passou a andar com a
coluna ereta. A partir daquele momento, estava destinado a devastar a natureza e a criar
normas, inclusive as da linguagem, que só serviriam à opressão.
Por Reinaldo Azevedo
167
Texto 17
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/916634-uma-defesa-do-erro-de-
portugues.shtml
HÉLIO SCHWARTSMAN
16/05/2011 - 19h19
Uma defesa do "erro" de português
O pessoal pegaram pesado. Da esquerda à direita, passando por vários amigos meus, a
imprensa foi unânime em atacar o livro didático "Por uma Vida Melhor", de Heloísa Ramos.
O suposto pecado da obra, que é distribuída pelo Programa do Livro Didático, do Ministério
da Educação, é afirmar que construções do tipo "nós pega o peixe" ou "os livro ilustrado
mais interessante estão emprestado" não constituem exatamente erros, sendo mais bem
descritas como "inadequadas" em determinados "contextos".
Os mais espevitados já viram aí um plano maligno do governo do PT para pespegar a
anarquia linguística e destruir a educação, pondo todas as crianças do Brasil para falar
igualzinho ao Lula. Outros, mais comedidos, apontaram a temeridade pedagógica de dizer a
um aluno que ignorar a concordância não constitui erro.
Eu mesmo faria coro aos moderados, não fosse o fato de que, do ponto de vista da
linguística --e não o da pedagogia ou da gramática normativa--, a posição da professora
Heloísa Ramos é corretíssima, ainda que a autora possa ter sido inábil ao expô-la.
Acredito mesmo que, excluídos os ataques politicamente motivados, tudo não passa de um
grande mal-entendido. Para tentar compreender melhor o que está por trás dessa confusão,
é importante ressaltar a diferença entre a perspectiva da linguística, ciência que tem por
objeto a linguagem humana em seus múltiplos aspectos, e a da gramática normativa, que
arrola as regras estilísticas abonadas por um determinado grupo de usuários do idioma
numa determinada época (as elites brancas de olhos azuis, se é lícito utilizar a imagem
consagrada pelo ex-governador de São Paulo Claúdio Lembo). Podemos dizer que a segunda
está para a primeira assim como a pesquisa da etiqueta da corte bizantina está para o
estudo da História. Daí não decorre, é claro, que devamos deixar de examinar a etiqueta ou
ignorar suas prescrições, em especial se frequentarmos a corte do "basileus", mas é
importante ter em mente que a diferença de escopo impõe duas lógicas muito diferentes.
Se, na visão da gramática normativa, deixar de fazer uma flexão plural ou apor uma vírgula
entre o sujeito e o predicado constituem crimes inafiançáveis, na perspectiva da linguística
nada disso faz muito sentido. Mas prossigamos com um pouco mais de vagar. Se os
linguistas não lidam com concordâncias e ortografia o que eles fazem? Seria temerário
responder por todo um ramo do saber que ainda por cima se divide em várias escolas rivais.
168
Mas, assumindo o ônus de favorecer uma dessas correntes, eu diria que a linguística está
preocupada em apontar os princípios gramaticais comuns a todos os idiomas. Essa ideia não
é exatamente nova. Ela existe pelo menos desde Roger Bacon (c. 1214 - 1294), o "pai" do
empirismo e "avô" do método científico, mas foi modernamente desenvolvida e
popularizada pelo linguista norte-americano Noam Chomsky (1928 -).
Há de fato boas evidências em favor da tese. A mais forte delas é o fato de que a linguagem
é um universal humano. Não há povo sobre a terra que não tenha desenvolvido uma,
diferentemente da escrita, que foi "criada" de forma independente não mais do que meia
dúzia de vezes em toda a história da humanidade. Também diferentemente da escrita, que
precisa ser ensinada, basta colocar uma criança em contato com um idioma para que ela o
adquira quase sozinha. Mais até, o fenômeno das línguas crioulas mostra que pessoas
expostas a pídgins (jargões comerciais normalmente falados em portos e que misturam
vários idiomas) acabam desenvolvendo, no espaço de uma geração, uma gramática
completa para essa nova linguagem. Outra prova curiosa é a constatação de que bebês
surdos-mudos "balbuciam" com as mãos exatamente como o fazem com a voz as crianças
falantes.
O principal argumento lógico usado por Chomsky em favor do inatismo linguístico é o
chamado Pots, sigla inglesa para "pobreza do estímulo" ("poverty of the stimulus"). Em
grandes linhas, ele reza que as línguas naturais apresentam padrões que não poderiam ser
aprendidos apenas por exemplos positivos, isto é, pelas sentenças "corretas" às quais as
crianças são expostas. Para adquirir o domínio sobre o idioma elas teriam também de ser
apresentadas a contraexemplos, ou seja, a frases sem sentido gramatical, o que raramente
ocorre. Como é fato que os pequeninos desenvolvem a fala praticamente sozinhos, Chomsky
conclui que já nascem com uma capacidade inata para o aprendizado linguístico. É a tal da
Gramática Universal.
O cientista cognitivo Steven Pinker, ele próprio um ferrenho defensor do inatismo, extrai
algumas consequências interessantes da teoria. Para começar, ele afirma que o instinto da
linguagem é uma capacidade única dos seres humanos. Todas as tentativas de colocar
outros animais, em especial os grandes primatas, para "falar" seja através de sinais ou de
teclados de computador fracassaram. Os bichos não desenvolveram competência para, a
partir de um número limitado de regras, gerar uma quantidade em princípio infinita de
sentenças. Para Pinker, a linguagem (definida nos termos acima) é uma resposta única da
evolução para o problema específico da comunicação entre caçadores-coletores humanos.
Outro ponto importante e que é o que nos interessa aqui diz respeito ao domínio da
gramática. Se ela é inata e todos a possuímos como um item de fábrica, não faz muito
sentido classificar como "pobre" a sintaxe alheia. Na verdade, aquilo que nos habituamos a
chamar de gramática, isto é, as prescrições estilísticas que aprendemos na escola são o que
há de menos essencial, para não dizer aborrecido, no complexo fenômeno da linguagem.
169
Não me parece exagero afirmar que sua função é precipuamente social, isto é, distinguir
dentre aqueles que dominam ou não um conjunto de normas mais ou menos arbitrárias que
se convencionou chamar de culta. Nada contra o registro formal, do qual, aliás, tiro meu
ganha-pão. Mas, sob esse prisma, não faz mesmo tanta diferença dizer "nós vai" ou "nós
vamos". Se a linguagem é a resposta evolucionária à necessidade de comunicação entre
humanos, o único critério possível para julgar entre o linguisticamente certo e o errado é a
compreensão ou não da mensagem transmitida. Uma frase ambígua seria mais "errada" do
que uma que ferisse as caprichosas regras de colocação pronominal, por exemplo.
Podemos ir ainda mais longe e, como o linguista Derek Bickerton (1925 -), postular que
existem situações em que é a gramática normativa que está "errada". Isso ocorre quando as
regras estilísticas contrariam as normas inatas que nos são acessíveis através das gramáticas
das línguas crioulas. No final acabamos nos acostumando e seguimos os prescricionistas,
mas penamos um pouco na hora de aprender. Estruturas em que as crianças "erram" com
maior frequência (verbos irregulares, dupla negação etc.) são muito provavelmente pontos
em que estilo e conexões neuronais estão em desacordo.
Mais ainda, elidir flexões, substituindo-as por outros marcadores, como artigos, posição na
frase etc., é um fenômeno arquiconhecido da evolução linguística. Foi, aliás, através dele
que os cidadãos romanos das províncias foram deixando de dizer as declinações do latim
clássico, num processo que acabou resultando no português e em todas as demais línguas
românicas.
A depender do zelo idiomático de meus colegas da imprensa, ainda estaríamos todos
falando o mais castiço protoindo-europeu.
Não sei se algum professor da rede pública aproveita o livro de Heloísa Ramos para levar os
alunos a refletir sobre a linguagem, mas me parece uma covardia privá-los dessa
possibilidade apenas para preservar nossas arbitrárias categorias de certo e errado.
Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de
Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve na versão impressa da Página A2
às terças, quartas, sextas, sábados e domingos e às quintas no site.
170
Texto 18
http://oglobo.globo.com/in/outra-opiniao-uma-falsa-polemica-2900444
OUTRA OPINIÃO: Uma falsa polêmica
MARCOS BAGNO
Publicado:23/05/11 - 0h00
Atualizado:23/05/11 - 0h00
A discussão em torno do livro didático "Por uma vida melhor" nos revela, para começar, a
patente ignorância que impera nos nossos meios de comunicação a respeito de língua e de
ensino de língua. Ignorância porque o tratamento da variação linguística, como fenômeno
inerente a toda e qualquer língua humana, está presente no currículo educacional há pelo
menos quinze anos, desde que foram publicados, em 1997, os Parâmetros Curriculares
Nacionais, na primeira gestão do professor Paulo Renato à frente do Ministério da Educação.
Esse dado factual já deixa evidente que a acusação de que "isso é coisa de petistas" que
querem "ensinar a falar errado como o Lula" não tem o menor fundamento, a não ser, de
novo, a cabal ignorância dos que a pronunciam. Ao fazer tanto alarde em torno de algo que
para os educadores é uma prática já consolidada, essa falsa polêmica, na verdade, é mero
pretexto para os que se empenham em reunir mais munição para desacreditar o governo da
presidente Dilma Rousseff: os mesmos que, amparados pela grande mídia (comprometida
até as entranhas com os interesses das elites de um país campeão mundial das
desigualdades), tornaram a última campanha presidencial um desfile de mentiras grotescas.
Por isso, é melhor procurar em outro canto, porque aqui a "culpa" não é deste governo, mas
vem de muito antes.
O mais chocante nesse caso é a facilidade leviana com que muitas pessoas têm abordado a
questão. Só de terem ouvido falar do caso, elas se acham suficientemente municiadas para
fazer comentários. Muitas deixam evidente que nunca viram a cor do livro didático
mencionado e que falam da boca para fora, inspiradas única e exclusivamente em suas
crenças e superstições sobre o que é uma língua e o que significa ensiná-la. Dizer que o livro
"ensina a falar errado" é uma inverdade sem tamanho. O livro apenas quer fazer o trabalho
honesto de apresentar a seus usuários a realidade do português brasileiro em suas múltiplas
variedades. Será que vamos ter de excluir dos livros de História toda menção à escravidão
porque hoje é "errado" promover o trabalho escravo? Ao abordar a escravidão o livro de
História por acaso está "ensinando" alguém a escravizar outros seres humanos?
Muitos bons resultados têm sido obtidos na educação de jovens e adultos quando, como
preparação do terreno para ensinar a eles as normas prestigiadas de falar e de escrever, lhes
mostramos que seu próprio modo de falar não é absurdo nem ilógico, mas tem uma
gramática própria, segue regras tão racionais quanto as que vêm codificadas pela tradição
normativa. Aliás, as regras das variedades populares são, muitas vezes, bem mais racionais
do que as regras normatizadas. Criando-se assim um ambiente acolhedor e culturalmente
171
sensível, o aprendizado da tão reverenciada "norma culta" se torna menos traumático do
que sempre foi.
O repúdio ao tratamento da variação linguística na sala de aula é, como sempre, o secular
repúdio que nossas elites sempre têm manifestado contra tudo o que "vem de baixo" e
contra todo esforço de democratização efetiva da nossa sociedade.
MARCOS BAGNO é linguista, escritor, tradutor e professor do Instituto de Letras da
Universidade de Brasília.
172
Texto 19
http://g1.globo.com/vestibular-e-educacao/noticia/2011/05/opiniao-enquanto-escrita-
exige-rigor-linguagem-oral-e-mais-solta.html
19/05/2011 08h00 - Atualizado em 19/05/2011 08h00
Opinião: Enquanto escrita exige rigor, linguagem oral é mais solta
Livro 'Por uma Vida Melhor' traz erros de concordância e causa polêmica.
Apesar das diferentes possibilidades, escola deve ensinar norma culta.
Ana Cássia Maturano Especial para o G1
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Algumas situações na vida da gente ficam marcadas. Recordo-me de uma professora de
português da quinta série que pregava uma coisa muito importante que jamais foi
esquecida. Ensinando a língua para seus alunos, cobrava deles que falassem correto, até
porque eram muito jovens e estavam lá para aprender algo além do que já sabiam.
Nunca, porém, esquecia de fazer a ressalva de que jamais deveríamos fazer chacota
daqueles que falavam errado, principalmente os mais velhos – muitos deles não tinham tido
a oportunidade de frequentar a escola e aprender a falar da maneira como é ensinado lá.
Essa lição nunca foi esquecida. Ela foi mais lembrada por esses dias quando surgiu a
polêmica em torno do livro didático “Por uma Vida Melhor”, da ONG Ação Educativa. Esse
livro é voltado para jovens e adultos e foi distribuído pelo MEC. Em um de seus capítulos,
173
defende a ideia de que todas as formas de falar são válidas, como por exemplo “Os livro
ilustrado mais interessante estão emprestado.”
Não ficou bem claro o porquê desse capítulo. Isso permite refletir sobre a questão de como
se fala e de como se escreve. Falar e escrever são duas formas de expressar aquilo que se
pensa. A escrita não é a transcrição da fala, mas elas têm muitas coisas em comum. Por
vezes, são idênticas.
Porém, a linguagem oral é mais solta – a espontaneidade e o regionalismo têm mais espaço.
Na escrita as coisas são diferentes. É necessário um rigor maior com a norma culta.
saiba mais
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Mãe tem como desafio não realizar todos os desejos do filho
Na comunicação pela fala, tem-se toda uma possibilidade de se fazer entender através de
gestos e expressões. Ela é direta. Com a escrita não. Temos que usar uma maneira única
para que a comunicação realmente aconteça. Se cada um for escrever de um jeito diferente,
dificilmente algo será comunicado. Assim, faz-se necessário ter uma forma oficial. Ela vale
para a fala e a escrita, mas é mais rígida com a segunda.
Talvez seja essa a ideia que o livro quisesse passar. Ora, dirão muitos, o importante é se
expressar. Não importa como. Sem dúvida. Expressar-se e se fazer entender, para que não
fique um diálogo de surdos. Então precisa haver uma proximidade do discurso entre aquele
que fala/escreve com o que ouve/lê.
Mas não devemos nos esquecer que apesar das diferentes possibilidades, a escola deve
sempre ensinar a norma culta. Essa é sua obrigação. Acredito que ninguém vai para a escola
para aprender aquilo que já sabe ou continuar falando errado. Uma coisa é aceitar o modo
próprio de um aluno se expressar, outra é permitir-lhe o acesso aquilo que é comum para os
mais estudados: falar e se expressar corretamente.
Até porque as pessoas vão para a escola para progredirem profissionalmente, socialmente,
pessoalmente. Se não, iam procurar outra coisa para fazer. Determinadas coisas não
precisam ser ensinadas em livros. Como, por exemplo, que o modo de uma pessoa falar,
bem distante da norma culta, é correta, mas que pode haver um preconceito de outros por
causa disso.
Isso tem que ser experienciado pelo professor no seu dia a dia, para que seu aluno, seja
criança ou adulto, se sinta bem e tranquilo para se expressar. Acolher seu aluno como ele se
apresenta para então lhe mostrar como é a regra da fala e escrita.
174
Não dá para defender o falar errado e nem ensinar isso. O que apenas mostraria a falta de
educação de um povo. Um dos aspectos de sua identidade e ponto de união é sua língua.
(Ana Cássia Maturano é psicóloga e psicopedagoga)