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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS – UFMG
Programa de Formação de Conselheiros Nacionais
Curso de Especialização em Democracia Participativa, República e Movimentos Sociais
Acácio Zuniga Leite
EXPERIÊNCIAS DE DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL E O FORTALECIMENTO
DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
Brasília
2010
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS – UFMG
Programa de Formação de Conselheiros Nacionais
Curso de Especialização em Democracia Participativa, República e Movimentos Sociais
Acácio Zuniga Leite
EXPERIÊNCIAS DE DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL E O FORTALECIMENTO
DA DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
Monografia apresentada à Universidade Federal de
Minas Gerais como requisito parcial para a
conclusão do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu
em Democracia Participativa, República e
Movimentos Sociais.
Orientadora:
Dra. Luzia Costa Becker
Brasília
2010
AGRADECIMENTOS
Aos professores, às professoras, aos tutores e às tutoras do Curso de Formação de
Conselheiros Nacionais, por terem se empenhado em realizar um bom trabalho.
À minha orientadora, Prof. Dra. Luzia Becker, pela leitura cuidadosa e pelos
comentários e contribuições importantes no desenvolvimento do trabalho e no texto final.
Aos que participaram de alguma maneira deste trabalho, meu sincero agradecimento.
A esta força maior que fica além de minha compreensão e imaginação, ao sol e a lua
porque sem eles não existiria agricultura.
Às oportunidades que me possibilitaram estar onde hoje estou.
À família pelo suporte emocional, pelas risadas, pelas agonias, pelo amor e pela
compreensão ainda que doída nos momentos de ausência física e mental. Por compreenderem
que simplesmente sou assim.
Às famílias expandidas e amigos/as, por ensinar a compartilhar com naturalidade
ímpar os bens mais íntimos, pela refundação contínua de valores e por proporcionar a
vivência das profundezas das relações pessoais.
Ao movimento estudantil que me proporcionou a participação em diversos espaços de
organização e pela alegria de acreditar em um mundo melhor e mais justo para todos e todas.
Aos movimentos de luta pela terra, pela perseverança cotidiana e pela contribuição na
minha formação ética e moral.
Ao INCRA, por ser uma ótima e dura escola de dialética.
Aos grandes compositores da música brasileira, por traduzir em sons e palavras
sentimentos que eu não teria palavras para expressar.
Aos meus amigos e às minhas amigas mais conservadores/as, que me propiciam um
prazer imensurável de debater sobre a desigualdade social.
RESUMO
Esta monografia é uma análise, por meio de pesquisa documental e revisão bibliográfica, de
três experiências de políticas públicas com enfoque no desenvolvimento rural quanto ao
potencial de seus mecanismos de gestão como elementos potencializadores da participação
popular em contraponto aos espaços políticos tradicionais. O trabalho discute a importância
dos novos espaços institucionais de gestão para a estruturação de um novo enfoque de
desenvolvimento e compartilhamento do processo de decisão. Problematiza-se então a
efetividade dos espaços de gestão instituídos por meio dos Conselhos Municipais de
Desenvolvimento Rural, pelo Programa de Consolidação e Emancipação (Auto-
suficiência) de Assentamentos Resultantes da Reforma Agrária e pelo Programa
Territórios da Cidadania. Como resultado, verificou-se um avanço democrático nas
experiências analisadas e o potencial dos espaços públicos de se caracterizarem como fóruns
de discussão sobre o desenvolvimento inclusivo, abordando as desigualdades e articulando os
atores sociais.
Palavras-chave: desenvolvimento rural, participação, democracia, PAC/INCRA, CMDR,
Territórios da Cidadania
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 10
1 O DEBATE ATUAL DA DEMOCRACIA ..................................................................... 11
1.1 A CRISE DO MODELO HEGEMÔNICO DE DEMOCRACIA E O SURGIMENTO
DE NOVAS EXPERIÊNCIAS DEMOCRÁTICAS ........................................................ 11
1.2 DEMOCRACIA PARTICIPATIVA VERSUS DEMOCRACIA
REPRESENTATIVA ........................................................................................................ 13
1.3 EXPERIMENTALISMO DEMOCRÁTICO NO ESTADO BRASILEIRO .................... 14
2 O DEBATE ATUAL SOBRE DESENVOLVIMENTO .............................................. 16
2.1 DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL SUSTENTÁVEL E DEMOCRACIA ........... 16
2.2 DESENVOLVIMENTO RURAL ..................................................................................... 17
3 DIREITOS, DESIGUALDADES E CIDADANIA ....................................................... 20
4 ANÁLISE DE EXPERIÊNCIAS DE PARTICIPAÇÃO E
DESENVOLVIMENTO RURAL .................................................................................. 24
4.1 O PRONAF E A CRIAÇÃO DOS CONSELHOS MUNICIPAIS DE
DESENVOLVIMENTO RURAL SUSTENTÁVEL ....................................................... 24
4.1.1 A descrição do Programa .................................................................................................. 24
4.1.2 As avaliações realizadas: algumas ponderações ............................................................... 24
4.2 O INCRA E A EXPERIÊNCIA DO PROGRAMA DE CONSOLIDAÇÃO E
EMANCIPAÇÃO (AUTO-SUFICIÊNCIA) DE ASSENTAMENTOS DA
REFORMA AGRÁRIA .................................................................................................... 26
4.2.1 A formulação e implementação do Programa ................................................................... 26
4.2.2 Considerações sobre a experiência.................................................................................... 29
4.3 O PROGRAMA TERRITÓRIOS DA CIDADANIA E O DESENVOLVIMENTO
RURAL SUSTENTÁVEL ................................................................................................ 31
4.3.1 A formulação e implementação do Programa ................................................................... 31
4.3.2 Os avanços democráticos do experimento de gestão territorial participativa ................... 35
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................... 38
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 40
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 01 – Mapa dos 120 Territórios da Cidadania ............................................................. 34
LISTA DE TABELAS
Tabela 01: Pobreza por sexo, cor/raça – Brasil 1996 e 2006 ..................................................... 21
Tabela 02: Renda Média por sexo, cor/raça – Brasil 1996 e 2006 ............................................. 21
Tabela 03: Taxa de Escolaridade Líquida no Ensino Médio, por sexo, cor/raça – Brasil
1996 e 2006 .............................................................................................................. 21
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento
CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
CMDRs – Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural
CONDRAF - Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável
ESEB – Estudo Eleitoral Brasileiro
IDH – Índice de Desenvolvimento Humano
INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária
IPEA – Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
MDA – Ministério do Desenvolvimento Agrário
MDS - Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome
ONGS – Organizações Não Governamentais
PAC – Programa de Consolidação e Emancipação (Auto-suficiência) de Assentamentos
Resultantes da Reforma Agrária
PCA – Plano de Consolidação do Assentamento
PMDR – Plano Municipal de Desenvolvimento Rural
PRONAF – Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar
SDT/MDA – Secretaria de Desenvolvimento Territorial/Ministério do Desenvolvimento
Agrário
10
INTRODUÇÃO
A crise de representação da democracia tem gerado debates em diferentes setores
da sociedade, sendo hegemônico o descrédito nas instituições democráticas e a apatia
popular em relação à política. Avaliações de experiências participativas e representação
coletiva no país apontam para um movimento de renovação destes instrumentos de ação
política e indicam que a combinação destes gera uma sinergia positiva para a inovação de
práticas políticas (DAGNINO, 2002a; LÜCHMANN, 2007). Muitas dessas experiências de
renovação trazem a tona (e de maneira intrínseca) os debates sobre o modelo de
desenvolvimento, da questão ambiental, da cidadania, e de outros temas pouco discutidos com
efetividade nos espaços políticos tradicionais.
Considerando esse contexto de crise e de avanço de experiências de participação, o
presente trabalho busca analisar, com base em pesquisa e análise documental, bem como em
pesquisas realizadas por diferentes autores, o potencial dos mecanismos de gestão de três
experiências ditas participativas de políticas públicas com foco no desenvolvimento de
territórios rurais. Noutras palavras, a idéia é analisar o potencial de tais políticas para o
fortalecimento de uma cultura de participação popular e sua importância para a cristalização
de um novo enfoque de desenvolvimento e compartilhamento do processo de decisão.
No primeiro capítulo, faço uma discussão sobre o tema da democracia, ressaltando os
desafios colocados ao sistema representativo para os quais a participação societária nos
processos decisórios se apresentará como uma possibilidade de superação destes.
No segundo e terceiros capítulos, apresento uma discussão sobre o tema democracia
articulado aos temas do desenvolvimento e da cidadania. A partir do paradigma da
sustentabilidade, argumenta-se que os preceitos normativos da democracia são atualizados no
processo de desenvolvimento territorial, em específico, no processo de desenvolvimento de
territórios rurais.
No quarto capítulo, analiso três experiências que objetivaram articular democracia
representativa e participativa com fins no desenvolvimento territorial sustentável. São elas: a
formação dos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural, iniciada em 1996 por força
de decreto; o Programa de Consolidação e Emancipação (Auto-suficiência) dos
Assentamentos Resultantes da Reforma Agrária (PAC), iniciado em 2001 por meio de
parceria do INCRA com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID); e o Programa
Territórios da Cidadania do governo federal, iniciado em 2008. Finalmente, faço algumas
considerações sobre o êxito dessas experiências para a promoção da democracia no país.
11
1 O DEBATE ATUAL DA DEMOCRACIA
1.1 A CRISE DO MODELO HEGEMÔNICO DE DEMOCRACIA E O SURGIMENTO DE
NOVAS EXPERIÊNCIAS DEMOCRÁTICAS
As concepções hegemônicas da teoria democrática surgiram na segunda metade do
século XX, relacionadas a três questões centrais: (i) a democracia como forma ou método
político para a constituição de governos (maiorias); (ii) a indispensabilidade da burocracia na
vida democrática em função da especialização das funções de administração e gestão do
Estado e; (iii) a inevitabilidade da representação em função da escala (SANTOS &
AVRITZER, 2002). Desta restrição no debate, percebe-se que o real sentido de
democracia foi sendo esvaziado e reduzido a um simples modelo de seleção de
representantes via voto, sem participação efetiva da sociedade civil organizada
(PEREIRA & CARVALHO, 2008).
O’Donnell (1997) mostra-se cético quanto à eficácia das eleições como
instrumento real de punição ou premiação de candidatos, de maneira que os mecanismos
eleitorais de accountability vertical podem não apresentar o resultado esperado. Segundo
o autor, isso se dá em função das condições que prevalecem hegemonicamente nas novas
poliarquias: sistemas partidários pouco estruturados, alta volatilidade de eleitores e
partidos, temas de política pública pobremente definidos e reversões políticas súbitas.
Não faltam exemplos no Brasil sobre as condições expostas.
Complementarmente, Paiva, Souza & Lopes (2004), em pesquisa que averiguou
indicadores específicos, baseados nos dados resultantes do Estudo Eleitoral Brasileiro
(ESEB) realizado em 2002, relacionados à atitude do público em relação à valorização da
democracia, suas instituições e seu funcionamento, verificaram uma situação paradoxal
entre participação efetiva e a simples delegação de poderes a um líder messiânico capaz
de resolver os problemas do Estado. Segundo a pesquisa realizada por eles, enquanto
“58% dos entrevistados optam pela participação da população em decisões importantes,
(...) 42% escolhem como melhor forma a atuação de um líder que ‘colocasse as coisas no
lugar”. Para Baquero (2003), a crise de legitimidade do sistema político brasileiro torna -
se evidente na percepção negativa e hostil dos cidadãos em relação aos partidos políticos,
aos agentes políticos e às instituições políticas.
Na contramão do modelo hegemônico de democracia, observa-se que experiências
participativas vêm estimulando o desenvolvimento e a incorporação de novos modelos
teóricos de democracia que ampliam a participação de novos atores e os espaços da política,
além de ajudar a resgatar os cidadãos para a esfera pública, dando outras respostas às questões
12
apresentadas. A questão que paira sobre todas essas experiências refere-se à soberania: é
possível substituir a elite minoritária que perpetua o comando das esferas públicas para
efetivação de um poder político para o bem comum?
Peruzzotti (s.d.) alerta que importantes setores da sociedade se negam a exercer
um papel meramente passivo, limitado à delegação eleitoral, e assumem uma atitude
ativa de supervisão permanente de seus representantes de maneira a garantir a
legitimidade do vínculo representativo, criando um mecanismo não institucional de
accountability vertical, denominado accountability social.
Anastasia & Nunes (2006) também comentam os problemas criados pelo método
representativo em substituição à democracia direta da polis grega: (i) à natureza dos laços
que unem representados e representantes; (ii) à capacidade de os primeiros vocalizarem
suas preferências perante os segundos e fiscalizarem e monitorarem suas ações e
omissões e; (iii) à vontade e à capacidade de os segundos efetivamente agirem em nome
dos cidadãos e na defesa de seus melhores interesses. Expostos estes conflitos, os autores
propõem que uma reforma da representação deve orientar-se para a consecução das
características mais afins ao consensualismo e deve referir-se: (i) à reforma do método de
formação dos órgãos decisórios; (ii) à reforma das regras de tomada de decisões,
incluindo o aperfeiçoamento dos instrumentos de accountability vertical e o
fortalecimento dos instrumentos para vocalização dos cidadãos perante os representantes;
(iii) à reforma da composição dos órgãos decisórios; (iv) à reforma do funcionamento, ou
da operação efetiva, das instituições políticas.
Considerando o exposto por Anastacia & Nunes (2006), Miguel (2005), com foco
na reforma da composição dos órgãos decisórios, apresenta inovações experimentais que
têm contemplado a heterogeneidade da sociedade civil e respeito às minorias como, por
exemplo, a aleatoriedade na escolha dos representantes ou a garantia de cotas para grupos
considerados prejudicados visando (i) tornar os governantes mais parecidos com os
governados, (ii) ampliar a pluralidade de vozes e perspectivas presentes nas esferas
decisórias, (iii) ampliar a força política de grupos tradicionalmente marginalizados e/ou
(iv) ampliar a rotatividade nos cargos decisórios, impedindo a cristalização de uma elite
política.
13
1.2 DEMOCRACIA REPRESENTATIVA VERSUS DEMOCRACIA PARTICIPATIVA
Historicamente, as percepções sobre participação e hegemonia social são um tanto
discrepantes e destoam da realidade atual. Comparato (2009) apresenta algumas dessas
leituras fortemente conservadoras do século XIX, sendo a primeira de 1811, de Hipólito José
da Costa (editor do Correio Braziliense) e a segunda de 1889, do Imperador Dom Pedro I:
Ninguém deseja mais do que nós as reformas úteis; mas ninguém aborrece
mais do que nós, que essas reformas sejam feitas pelo povo; pois
conhecemos as más consequências desse modo de reformar; desejamos as
reformas, mas feitas pelo governo; e urgimos que o governo as deve fazer
enquanto é tempo, para que se evite serem feitas pelo povo (COMPARATO,
2009, pg. 11).
Algumas Câmaras das Províncias do Norte deram instruções aos seus
Deputados, em que reina o espírito democrático. Democracia no Brasil!
Neste vasto, e grande Império, é um absurdo; e não é menor absurdo
pretenderem elas prescrever leis, aos que as devem fazer, cominando-lhes a
perda, ou derrogação de poderes, que lhes não tinham dado, nem lhes
compete dar (COMPARATO, 2009, pg. 11).
Essa concepção elitista e centralizadora do poder perpassou os diversos períodos
históricos no processo de formação da nação revelando-se ora com mais força, ora mais
suave. Num contexto mais atual, com o colapso do regime militar e o esgotamento do
autoritarismo, as conexões políticas com a estrutura social, modelo de desenvolvimento, tipo
de Estado e relação com a sociedade civil também sofreram abalos.
A partir da Constituição Federal de 1988, novas formas participativas têm ganhado
importância, abrindo novos canais institucionais de participação. Esta abertura simbolizou
uma cunha democrática numa estrutura altamente hierarquizada, dando importância aos
espaços de participação institucional.
Concomitantemente, diversas experiências de ampliação da democracia baseadas num
conjunto de concepções alternativas vêm sendo executadas em diversos países do mundo,
incluindo o Brasil, tanto na gestão do Estado em suas várias esferas, quanto em organizações
de representação da sociedade civil, incluindo aquelas que, atualmente, estão colocados à
margem do processo democrático, como os movimentos de luta pela terra. Não por acaso,
essas experiências são capitalizadas principalmente em virtude dos questionamentos acerca
das limitações e conflitos da concepção hegemônica de democracia.
Algumas dessas experiências de cunho democratizante vêm emergindo com intuito de
fortalecer o controle do Estado pela sociedade e de ampliar a noção de democracia, como
conselhos, fóruns, orçamentos participativos e plebiscitos (DAGNINO, 2002a), aumentando a
14
obrigatoriedade dos gestores públicos apresentarem seus atos e propostas de ação e
fortalecendo a accountability.
Para Carneiro (2000), accountability seria a capacidade de resposta e de punição
(answerability e enforcement), sendo que o desenvolvimento deste conceito depende do
amadurecimento da sociedade civil, pressupondo efetiva participação e vigilância da
sociedade sobre o Poder Público constituído. Miguel (2005) refere-se à accountability
como o controle que os poderes estabelecidos exercem uns sobre os outros
(accountability horizontal), mas, sobretudo, à necessidade que os representantes têm de
prestar contas e submeter-se ao veredicto da população (accountability vertical).
1.3 EXPERIMENTALISMO DEMOCRÁTICO NO ESTADO BRASILEIRO
Uma análise de experiências de participação democrática em diferentes países do
Hemisfério Sul que contém inovações de participação política, organizada por
Boaventura de Sousa Santos, aponta para (i) o reconhecimento da importância da
participação direta dos cidadãos, a partir de uma articulação entre Estado e sociedade
civil, para criação de espaços decisórios em combinação com mecanismos de democracia
liberal representativa, (ii) a percepção de que a prática democrática fortalece e valoriza
pedagogicamente a própria democracia, (iii) a importância de analisar as formas de ação
direta da sociedade civil e (iv) a existência de um conjunto de reivindicações mais amplo,
vinculado a temas culturais, identitários e de reconhecimento social e político (PEREIRA
& CARVALHO, 2008).
O espaço público de muitas das novas democracias está sendo gradualmente
ocupado por uma nova geração de associações civis, ONGs, movimentos sociais e
organizações da mídia organizadas em torno de uma política de accountability social
(PERUZZOTTI, s.d.). Segundo o autor, a accountability social se consolida como uma
nova forma de ação política da sociedade civil, englobando uma variedade de formas de
ação coletiva e de ativismo cívico que compartilham uma comum preocupação em
melhorar o funcionamento das instituições públicas. Dentro deste diverso leque de
formas associativas que integram os atores da política de accountability social, se
distinguem dois principais atores e formas de intervenção social:
a) os movimentos sociais conjunturais de setores sociais diretamente afetados
pelas ações estatais discricionárias; e
15
b) as associações civis altamente profissionalizadas e de caráter permanente.
Ainda, neste mesmo processo de transformação democrática, concepções de
desenvolvimento também estão inseridas, passando por processos de formação das vontades
coletivas e dos choques de interesses, numa tensão permanente entre tradição e mudança,
abordando também os princípios economicistas do desenvolvimento.
Argumenta-se que o desenvolvimentismo brasileiro é questionado pela
possibilidade de transformação, advinda do novo paradigma do desenvolvimento
sustentável, fonte de renovação dos preceitos democráticos, por basear-se em quatro
imperativos normativos ligados à esfera econômica, ambiental, cultural e social. No que
se refere à esfera socioeconômica, além da equidade social, a sustentabilidade do
desenvolvimento impõe a necessidade de manter fluxos regulares de investimentos, e
ainda a preocupação dominante nos planos de desenvolvimento tradicionais e à gestão
eficiente dos recursos produtivos. A sustentabilidade ecológica refere-se às ações para
evitar danos ao meio ambiente causados pelos processos de desenvolvimento.
Finalmente, a sustentabilidade cultural refere-se ao respeito que deve ser dado às
diferentes culturas e às suas contribuições para a construção de modelos de
desenvolvimento apropriados às especificidades de cada cultura e de cada local. Todas
essas dimensões implicam ainda a sustentabilidade política ligada à participação da
sociedade na gestão territorial (SACHS, 2002 apud BECKER: 2009, p. 43).
16
2 O DEBATE ATUAL DE DESENVOLVIMENTO
2.1 DESENVOLVIMENTO TERRITORIAL SUSTENTÁVEL E DEMOCRACIA
Para garantir a efetividade do princípio político da sustentabilidade do
desenvolvimento, há que se pensar em instâncias institucionalizadas de deliberação.
Dallabrida (2007), em trabalho que almeja contribuir com reflexões teóricas sobre a
gestão social dos territórios nos processos de desenvolvimento territorial, conceitua território
como
uma fração do espaço historicamente construída através das inter-relações
dos atores sociais, econômicos e institucionais que atuam neste âmbito
espacial, apropriada a partir de relações de poder sustentadas em
motivações políticas, sociais, ambientais, econômicas, culturais ou
religiosas, emanadas do Estado, de grupos sociais ou corporativos,
instituições ou indivíduos.
O autor ainda aborda o conceito de desenvolvimento territorial considerando a
dimensão material, que tem nos aspectos econômicos sua expressão maior, e a dimensão
imaterial, que aborda os aspectos culturais e o capital social, afirmando sua conceituação de
que o desenvolvimento territorial pode ser entendido como
um processo de mudança estrutural empreendido por uma sociedade
organizada territorialmente, sustentado na potencialização dos capitais e
recursos existentes no local, com vistas à dinamização econômica e à
melhoria da qualidade de vida de sua população.
Dallabrida (2007) também pondera que para que os direitos de participação possam ser
exercidos com eqüidade entre os diferentes atores territoriais é fundamental que sua
articulação ocorra através de procedimentos voluntários de conciliação e mediação através de
processos de concertação social (pactos territoriais), instituindo-os como norma no processo
de gestão do desenvolvimento.
Complementarmente, Evans (2003), situando um conjunto de estratégias de
desenvolvimento que utilizam sistemas institucionalizados de deliberação popular para a
alocação de bens coletivos, aborda as perspectivas alternativas de desenvolvimento propostas
por Amartya Sen e Dani Rodrik.
Sen, economista indiano ganhador do Prêmio Nobel de Economia em 1998, defende
que o desenvolvimento está essencialmente ligado às oportunidades que o Estado oferece à
população de fazer escolhas e exercer sua cidadania. As instituições deliberativas devem ser
centrais para qualquer conceituação de desenvolvimento, deixando de ser a renda o fator de
medida decisivo de desenvolvimento ou bem-estar, ainda que o desenvolvimento esteja
17
diretamente relacionado com a expansão das capacidades das pessoas para levarem o tipo de
vida que valorizam.
Rodrik, economista turco, defende que a democracia, conquanto não aumenta as taxas
globais de crescimento, aumenta a qualidade do crescimento, produzindo maior igualdade,
estabilidade e capacidade de recuperação.
Evans conclui, no estudo supracitado, que as instituições deliberativas devem ser
centrais para qualquer conceituação de desenvolvimento, pois parecem ser eficazes ao
engajarem a energia dos cidadãos comuns no processo de escolha social e aumentam a
disposição dos cidadãos de investir em bens públicos e melhorar a distribuição dos mesmos
bens. Além disso, para que os mecanismos de democracia deliberativa sejam viáveis, três
pressupostos devem estar presentes: (i) os cidadãos devem estar dispostos a participar das
oportunidades de tomada de decisão, (ii) as novas instituições devem ser capazes de se opor
aos processos hegemônicos das elites de utilizar o poder dentro das estruturas para viabilizar
suas demandas e (iii) deve haver eficiência econômica e limitações em relação à
redistribuição para que não haja a redução do crescimento de renda real.
O autor sugere ainda que sejam pensadas instituições políticas que provoquem e
agreguem conhecimento local e, por meio disso, ajudem a construir instituições melhores.
Nesse aspecto, as experiências brasileiras de orçamento participativo, conselhos temáticos de
políticas públicas e as próprias experiências de desenvolvimento e participação, estas últimas
apresentadas no próximo capítulo, revelam-se exemplos empíricos de tais propostas teóricas.
Celso Furtado, já iniciara esse debate de visualizar o desenvolvimento econômico
tanto em função das relações sociais quanto dos seus objetivos de modernização das
sociedades nacionais em seus trabalhos junto a Comissão Econômica para a América Latina e
o Caribe – CEPAL. De maneira vanguardista, também antecipou os debates sobre
desenvolvimento e meio ambiente (VIEIRA, 2005). Ambos se debruçam sobre a questão do
desenvolvimento desigual entre as regiões centrais e periféricas, sendo as regiões rurais as
mais prejudicadas no processo de modernização da nação brasileira.
2.2 DESENVOLVIMENTO RURAL
A discussão sobre a definição de rural é complexa e divergente em pontos específicos,
mas conforme expresso por Kageyama (2004) existem pontos de consenso na conceituação: o
rural é (i) diferente e maior que o agrícola, (ii) caracterizado pela pluriatividade (artesanato,
18
produção de alimentos, turismo etc) e multifuncionalidade (produtiva, ambiental, ecológica,
social etc), aspectos abordados como modo de vida e de trabalho que buscam consolidar
processos estruturais que viabilizem a sustentabilidade das comunidades rurais, (iii) formado
por uma baixa densidade populacional relativa e (iv) não há isolamento entre rural e urbano.
Essa definição atual do conceito de rural é essencial para o debate do desenvolvimento e do
papel das instituições públicas como indutoras deste processo, pois o desenvolvimento rural
consolida-se como um processo de múltiplos atores, espaços e características, que combinam
aspectos sociais e econômicos, dialogando com o defendido por Amartya Sen.
Porém, a modernização da agricultura brasileira viabilizou-se baseada na política de
incentivos fiscais focados em um setor privilegiado da sociedade. A oferta de crédito,
incentivos fiscais e comerciais, pesquisa e assistência técnica, e condições políticas favoráveis
propiciaram o aumento da produção e da produtividade no meio rural brasileiro, sem interferir
na estrutura agrária baseada no latifúndio (BERGAMASCO et al, 1999; CARDIM et al, s.d.),
processo que ficou conhecido como “modernização conservadora”.
Concomitantemente, o modelo de extensão rural desenvolvido no Brasil, a partir da
década de 40, tratou o agricultor como um grande “depósito”, onde as tecnologias são
inseridas sem uma análise social profunda. As tecnologias e os anseios dos produtores não
eram discutidos quando se tratava das questões relacionadas à modernização da agricultura e a
intervenção do estado (PALAFOX, 2001). O ambiente produtivo era visto, tratado e
anunciado como uniforme. Além disso, a tecnologia passou a ser o verdadeiro sujeito no
mundo rural, restando ao agricultor o mero papel de objeto, eliminando sua liberdade.
Na contramão da modernização conservadora, que mostra seu recorte de privilégio às
elites rurais, a abordagem participativa para o desenvolvimento agrícola vem sendo
reconhecida crescentemente por diversos segmentos atuantes no tema do desenvolvimento
rural. Entender e potencializar o processo de construção do conhecimento dos agricultores
familiares deve ser a condição primeira para o rompimento da verticalidade dos processos
metodológicos convencionais e a constituição de uma abordagem efetivamente participativa
voltada para a geração e difusão de tecnologias (HOCDÉ, 1999).
Dialogando com um outro modelo, mais democrático de desenvolvimento rural, os
agricultores podem aportar muito à pesquisa formal. Adicionalmente à esfera de atuação dos
pesquisadores, os agricultores experimentadores estão integrados em suas comunidades, o que
facilita a difusão de suas experiências e resultados, numa nova perspectiva onde os
agricultores busquem a participação dos pesquisados e extensionistas. Valendo-se dessas
19
oportunidades, o processo de universalização da cidadania no campo ganha um pouco mais de
força no processo interativo e de troca de saberes.
20
3 DIREITOS, DESIGUALDADES E CIDADANIA
Vivemos em uma sociedade marcada por desigualdades sociais, frutos do processo
histórico e cultural de construção da sociedade brasileira, tanto no meio rural quanto no
meio urbano, onde os espaços públicos foram apropriados pelo interesse privado de algumas
elites. Diversos são os campos onde as desigualdades e os processos discriminatórios
afloram. Alguns exemplos são a distribuição de terras, a saúde, educação e moradia.
Os exemplos supracitados são direitos básicos garantidos pela Constituição
Federal de 1988 que, porém, não se encontram consolidados até o momento como
direitos providos amplamente pelo Estado.
Comparato (2009, pg. 6) esclarece que
por trás do direito oficial, composto pela constituição, pelas leis, as normas
editadas pelo Poder Executivo e os precedentes judiciais, existe sempre outro
ordenamento encoberto, fundado na estrutura de poderes dominantes na
sociedade e legitimados pela mentalidade social (...) vigorando um direito
não escrito, cuja função consiste em proteger os interesses dos grupos sociais
dominantes.
O mesmo autor ressalta que, portanto, quando o direito oficial não se opõe ao
interesse das classes dirigentes, ele é tido e proclamado como o único legitimo. Porém,
surgindo mínima contradição entre normas e o poder que as classes dominantes exercem
na sociedade para que se legitime e consagre o status tradicional. A afirmação de direitos
historicamente refletiu o interesse de grupos específicos da sociedade que construíram
interesses privados como se fossem interesses da coletividade.
O regime é controlado por setores privilegiados, acentuando a desigualdade e a
exclusão social (BAQUERO, 2003). Desta forma, compreende-se que as desigualdades
socioeconômicas e a dificuldade de acesso aos direitos não afetam a população brasileira
de maneira homogênea. Um bom exemplo de desigualdade no país por região é a
pesquisa realizada pelo IPEA propondo a relação de cor/raça e gênero com escolaridade,
pobreza e renda demonstradas nas tabelas abaixo:
21
Tabela 01: Pobreza por sexo, cor/raça – Brasil 1996 e 2006 (em %)
Fonte: IPEA (2008)
Tabela 02: Renda Média por sexo, cor/raça – Brasil 1996 e 2006 (em %)
Fonte: IPEA (2008)
Tabela 03: Taxa de Escolaridade Líquida no Ensino Médio, por sexo, cor/raça – Brasil
1996 e 2006 (em %)
Fonte: IPEA (2008)
A falsa isonomia consolidada no senso comum esconde uma sistemática dominação do
rico sobre o pobre, do homem sobre a mulher, do branco sobre o negro, do produtor sobre o
22
consumidor. Os dados acima expostos apontam que não existe equidade social entre homens e
mulheres e nem entre negros/as e brancos/as.
A diversidade brasileira tão divulgada e elogiada fica dessa maneira limitada na sua
existência, dado que as mulheres e a população negra se encontram oprimidas, limitando
qualquer possibilidade ampla de defesa de direitos de identidade ou de laços étnicos e
culturais. A origem dessa opressão está no patriarcado e no racismo, ambos presentes no
nosso Estado e na sociedade civil de maneira extremamente mascarada, hegemonizando o
discurso do senso comum de uma democracia racial ainda que não da igualdade de gênero.
Ainda, podemos identificar que, conforme as tabelas 01 e 02, a pobreza tenha
diminuído no período analisado, prevalece uma enorme desigualdade regional no país,
retratada nas polarizações urbano versus rural e Centro-sul versus Norte/Nordeste.
Portanto, diversas demandas da sociedade para promover o desenvolvimento
sustentável e a universalização da cidadania são excluídas por não entrarem na pauta de
discussão política dessas elites hegemônicas: como, por exemplo, o preconceito racial, o
acesso à saúde e à educação de qualidade, a violência doméstica e a reforma agrária.
Para romper com este paradigma preso a mecanismos cognitivos e culturais da
exclusão, é necessário politizar dimensões do privado para universalizar direitos – se o
privado não for posto em visibilidade no ambiente público, os processos de ocultação
continuarão limitando a ampliação da cidadania e a universalização de direitos – e formular
políticas públicas diferenciadas, tanto para as áreas rurais quanto para as regiões Norte e
Nordeste do país, dado que esses espaços foram colocados a margem do processo de
desenvolvimento nacional.
Algumas experiências de discussão e de deliberação pública vêm sendo construídas a
partir da constatação da necessidade da existência de espaços públicos, onde estas múltiplas
minorias se manifestem e sejam ouvidas, como as conferências temáticas, os conselhos e
fóruns de políticas públicas, potencializando, de fato, a democratização do poder e
universalização de direitos. Isso se consolida no reconhecimento das pluralidades e no
respeito às diferenças, assim como nas diversas dimensões da cidadania, apresentando uma
oportunidade cada vez maior de aproximar atores sociais diversos e potencializando a
radicalização dos direitos democráticos.
Sob esta perspectiva, passo a analisar alguns espaços públicos de participação e
deliberação criados a partir da iniciativa do Estado em promover o desenvolvimento rural
sustentável e, portanto, um tipo de desenvolvimento que promova a equidade social, a
23
prudência ecológica, o reconhecimento e a inclusão cultural e, finalmente, a participação
social na formulação, implementação e monitoramento das políticas públicas territoriais.
24
4 EXPERIÊNCIAS DE PARTICIPAÇÃO E DESENVOLVIMENTO RURAL
4.1 O PRONAF E A CRIAÇÃO DOS CONSELHOS MUNICIPAIS DE
DESENVOLVIMENTO RURAL
4.1.1 Descrição do Programa
Através do Decreto nº 1.946 de 1996, que criou o Programa Nacional de
Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), surgiram os Conselhos Municipais de
Desenvolvimento Rural. Já no artigo 2º do Decreto define-se que a implementação do
Programa está alicerçada em uma “estratégia da parceria entre os Governos Municipais,
Estaduais e Federal, a iniciativa privada e os agricultores familiares e suas organizações”.
Uma das exigências estipuladas pelo governo federal para o repasse de recursos para a
promoção do desenvolvimento rural sustentável era que se criasse na localidade o Conselho
Municipal de Desenvolvimento Rural.
A criação do PRONAF foi a primeira experiência nacional com intenção de promover
a participação social e estava diretamente ligada a uma política que objetivava integrar o
poder público municipal com os agricultores familiares na elaboração, acompanhamento e
fiscalização da execução de um Plano Municipal de Desenvolvimento Rural – PMDR,
instrumento este que deveria nortear a aplicação dos recursos do PRONAF no município.
4.1.2 As Avaliações Realizadas: algumas ponderações
Duarte & Mattei (2005) realizaram, a pedido do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Rural Sustentável – CONDRAF, estudos sobre as experiências de gestão
social para o desenvolvimento rural, com foco nos Conselhos Municipais de
Desenvolvimento Rural e constataram que apesar da heterogeneidade de situações expressa
nos CMDRs nas diversas regiões do país, foram observados muitos pontos de convergência
negativos, descritos abaixo:
Pequena articulação entre cooperativas, sindicatos, associações e outras formas
de organização dos agricultores no âmbito dos conselhos municipais;
Desconhecimento do funcionamento e o papel dos CMDRs junto aos
produtores;
Visão do CMDRs como uma instância burocrática, cuja maior serventia é a
obtenção de recursos do Governo Federal, especificamente no que diz respeito
ao programa PRONAF Infraestrutura e Serviços municipais;
25
Existência restrita à homologação das decisões do executivo municipal, sem
qualquer articulação maior entre os agentes e/ou atores sociais locais,
descaracterizando as perspectivas iniciais desses conselhos;
Coordenação dos conselhos fortemente concentrada nas mãos dos prefeitos ou
de seus representantes, ocasionando preocupações de que os conselhos têm
servido para legitimar interesses do poder local à revelia das necessidades e
posições assumidas pelas organizações dos agricultores familiares, sendo este
fato ainda mais relevante nos casos de municípios periféricos e isolados;
Embora os agricultores participem das discussões, notou-se um comportamento
quase padrão de funcionamento dos CMDRs, os quais assumem um caráter
apenas consultivo;
Falta capacitação aos membros dos CMDRs e baixa interação entre estes, que
não sabem sequer o papel que devem desempenhar nos conselhos;
As ações propostas nos planos de trabalho dificilmente transcendem a esfera
agrícola;
O grau de articulação entre as secretarias e órgãos públicos relacionados aos
programas de desenvolvimento rural, nas três esferas de governo, ainda é
muito precário;
Conforme exposto por Abramovay (2001), a criação dos CMDRs foram estritamente
relacionadas com o recebimento de recursos públicos dos municípios por parte do governo
federal, sendo que a maioria dos Conselhos reúne-se apenas por convocação da prefeitura ou
do órgão de extensão rural, processo denominado pelo autor, de falha de transferência
institucional – problematizando que o risco da existência do conselho como mera formalidade
é inerente ao processo de descentralização.
Já Oliveira (2004) analisou sete CMDRs no estado de São Paulo e averiguou que estes
conselhos não conseguem instituir-se como um instrumento para o desenvolvimento local por
não constituírem-se como espaços legítimos de participação e concertação social. O autor
chegou a essa conclusão devido às conformações institucionais dos CMDRs que tendem a
reproduzir os esquemas de dominação político locais.
Conforme argumenta Teixeira (2007), a partir da análise da Política Nacional do
Idoso, o caráter democratizante ou de colaboração dos conselhos de políticas não está
colocado, a priori, mas sim dependente da correlação de forças que se estabelecem na
26
sociedade civil e política, esbarrando na vontade do poder público e suas relações com as
elites hegemônicas.
Por outro lado, Dagnino (2002b) problematiza que as avaliações freqüentemente
negativas que permeiam os estudos de caso sobre as experiências de participação da sociedade
civil podem indicar que os parâmetros dessas avaliações receberam forte influência das
expectativas geradas na construção desses encontros entre a sociedade civil e o Estado. A
autora esclarece que “atribuir indiscriminadamente aos espaços de participação da sociedade
civil o papel de agentes fundamentais na transformação do Estado e da sociedade (...) pode
nos levar inexoravelmente à constatação do seu fracasso”.
Mesmo assim, vale aqui apresentar um ponto positivo importante, encontrado na
avaliação “Institucionalidade para Gestão Social do Desenvolvimento Rural Sustentável”
realizada por Duarte & Mattei (2005). Segundo esses autores, em praticamente todos os
CMDRs, a composição é paritária entre as esferas do governo e da sociedade civil o que
revela, pelo menos no que concerne às regras do jogo, a partilha do poder político na
formulação das políticas públicas.
Cabe ainda ponderar que a criação dos CMDRs foi de alguma forma, uma experiência
pioneira e que as críticas e avaliações sobre o conjunto de elementos que tornariam a relação
no CMDRs politicamente mais inclusiva e virtuosa foram sendo incorporadas em
experiências posteriores, como veremos nas experiências analisadas nas duas próximas
seções.
4.2 O INCRA E A EXPERIÊNCIA DO PROGRAMA DE CONSOLIDAÇÃO E
EMANCIPAÇÃO (AUTO-SUFICIÊNCIA) DE ASSENTAMENTOS DA REFORMA
AGRÁRIA
4.2.1 A Formulação e a Implementação do Programa
A negociação de um programa de desenvolvimento de assentamentos da reforma
agrária, nos moldes de experiências anteriores de organização social de entidades
representativas de pequenos agricultores e desenvolvimento rural do Banco
Interamericano de Desenvolvimento (BID) na América Latina, como o Nueva
Institucionalidad Rural iniciou em meados de 1998, concomitante à elaboração da nova
proposta de reforma agrária e desenvolvimento agrário, denominada “Agricultura
Familiar, Reforma Agrária e Desenvolvimento Local para um Novo Mundo Rural”,
27
marco teórico de todas as ações implementadas na fase tardia do governo Fernando
Henrique Cardoso (1998-2002).
A principal visão política apresentada pela proposta “Agricultura Familiar,
Reforma Agrária e Desenvolvimento Local para um Novo Mundo Rural”, posteriormente
conhecida somente como “Novo Mundo Rural”, era a igualdade entre assentados e
agricultores familiares, construída apenas pela concessão dos investimentos básicos nos
assentamentos. Nesta lógica, os assentamentos existentes, e os que seriam criados,
deviam possuir um mecanismo de desligamento do INCRA, que se daria pela satisfação
de três condições básicas, quais sejam, os serviços topográficos realizados, a
infraestrutura viária existente e as famílias com condições habitacionais satisfatórias.
O Programa de Consolidação e Emancipação (Auto-suficiência) de Assentamentos
Resultantes da Reforma Agrária – PAC foi instituído a partir de um acordo firmado no
ano 2000 entre o INCRA e o BID como um programa piloto de gestão compartilhada que
busca a participação direta dos agricultores assentados na elaboração, planejamento e
implementação de projetos com o objetivo de desenvolver o assentamento. Buscou-se na
implementação deste projeto de desenvolvimento promover o empoderamento das
famílias assentadas através de um processo participativo na execução de ações no campo
social, de infra-estrutura e de produção.
O PAC foi implantado em sete estados brasileiros, com atuação em 75
assentamentos. O objetivo inicial do Programa foi atuar na implementação de ações no
âmbito de infra-estrutura produtiva, organização social e assistência técnica que
promovam a estes assentamentos a sua autonomia com relação ao apoio do INCRA. Para
isso, cada assentamento teria disponível um investimento complementar de
aproximadamente R$ 10.000,00 (dez mil reais) por família, ultrapassando muitas vezes a
ordem de R$ 2.000.000,00 (dois milhões de reais) por assentamento, sugerindo o
potencial de investimentos do Programa.
O sucesso (ou fracasso) da execução do Programa em cada assentamento esteve
ancorado em um tripé: (i) a gestão compartilhada dos recursos, depositados em conta
bancária bloqueada podendo ser movimentada apenas por autorização do INCRA junto
ao Banco do Brasil; (ii) a elaboração de um Plano de Consolidação do Assentamento
(PCA) de forma participativa e com base no desenvolvimento de sistemas produtivos
sustentáveis que agreguem as áreas social, ambiental, produtiva, econômica e
organizacional, propiciando as famílias assentadas a oportunidade e capacidade de
28
influenciar diretamente na formação de agendas e prioridades para a ação pública, neste
caso, o orçamento do INCRA; e (iii) a contratação de equipes de assistência técnica,
social e ambiental com intuito de auxiliar na execução do Plano de Consolidação do
Assentamento e de trabalhar a organização, motivação e mobilização das famílias
assentadas para a execução do PCA.
Os planos abrangiam o financiamento de infraestrutura (construção e conservação
de estradas de acesso, sistemas elétricos, saneamento, escolas primárias, creches, centros
comunitários e postos de saúde com mobiliário e equipamentos; armazenagem agrícola e
agroindustrial, recuperação de solo, proteção ambiental, captação e adução de água para
irrigação e demarcação topográfica) e assistência técnica e treinamento destinado a
cooperativas e associações nas áreas relacionadas com os projetos de investimento
(produção, processamento, comercialização, desenvolvimento empresarial e comunitário,
proteção e gestão ambientais).
Além dos princípios já apresentados, outro elemento presente na metodologia do
Programa e diretamente ligado à gestão compartilhada é a obrigatoriedade de
contrapartida dos investimentos realizados pelo INCRA, seja pela prefeitura (nos casos
de escolas, estradas, postos de saúde e creches) ou pelas famílias assentadas, podendo
esta ocorrer na forma de mão-de-obra ou materiais.
Para a execução das obras e serviços previstos no Plano, o recurso disponível
ficava aplicado até que houvesse algum gasto decorrente de um certame licitatório,
promovido diretamente pela associação dos assentados. O INCRA acompanhava os
processos de aquisição/contratação, que eram conduzidos pelos assentados, dentro das
limitações de ambos.
Anualmente, eram debatidas as prioridades para o próximo ano com vistas a
demandar recursos do orçamento do INCRA. Neste rumo, o próprio PCA começou a ser
questionado, pois manter a participação das comunidades durante a implantação dos planos se
revelou um desafio bem maior que o de fazer o plano em si. Paulatinamente foi se
construindo a necessidade de sua revisão, vislumbrando o conceito de um plano vivo apto a
ser revisado após cada etapa, pois a comunidade que fez o plano, não pode mais ser
considerada igual quando o implanta, pois ela aprende e evolui a cada ação e o plano não.
29
4.2.2 Considerações sobre a experiência
O PAC foi a primeira experiência do INCRA de planejamento orgânico e
execução baseada na participação massiva e dispersão institucionalizada do poder de
decisão sobre o orçamento público da autarquia, ou seja, o órgão reconhecendo
institucionalmente a carência dos assentamentos de reforma agrária, convalidando um
plano elaborado pelas famílias para a melhoria das condições de vida delas próprias e
garantindo o instrumento de execução do plano em questão (convênio tripartite entre
INCRA, Prefeitura Municipal e entidade representativa das famílias assentadas).
Anastasia & Inácio (2006) comentam que uma vez definidas as regras do jogo
democrático é preciso identificar e analisar os conjuntos dos interesses e das capacidades
em interação, com vistas a avaliar se as regras inclusivas e igualitárias da democracia
estão sendo praticadas em contextos que garantam patamares aceitáveis de igualdade de
condições.
No caso do PAC, a gestão compartilhada prescinde de uma capacidade de gestão
das associações representativas das famílias assentadas, dado que a proposta de execução
dos convênios repassava uma série de responsabilidades para a Associação, até então de
função da máquina burocrática (realização de licitações, fiscalização das obras, medição
de serviços e atesto de notas fiscais), além da provisão de contrapartida por parte das
famílias assentadas.
Desta maneira, o INCRA buscou fomentar a formação e capacitação de comissões
de licitação e de acompanhamento e fiscalização, procedimento que teve êxito relativo.
Se por um lado, estas ações diminuem a presença do órgão público na fiscalização direta
das ações, repassando a obrigação para a sociedade civil, por outro, maximiza o processo
de accountability horizontal dentro do assentamento, dando inclusive poderes para a
comissão de acompanhamento e fiscalização refutar serviços realizados.
Conforme identificado nas entrevistas ex-gestores nacionais e na própria vivência que
realizei na execução do Programa, as alterações e ajustes foram muitas vezes demandados em
função da própria dinâmica social e produtiva dos assentamentos. Tais propostas, vindas da
base, demonstravam claramente o processo de amadurecimento social das famílias assentadas,
pois estas estavam discutindo e deliberando sobre o próprio futuro como sujeitos que são. Não
seria justo não citar que diversas vezes algumas demandas esbarraram numa leitura tecnicista
e/ou legalista dentro da autarquia, assim como ocorreram casos em que as demandas não se
apresentavam legítimas ou definidas conforme previsto no Regulamento Operativo do
30
Programa, ou seja, construída de maneira coletiva e aprovada em assembléia geral. Não foram
raros também os casos de tentativa do poder municipal realizar alterações nos planos. Tais
tentativas oscilaram desde a pressão nos gabinetes até a presença de representantes das
prefeituras nas assembléias dos assentados, tentando hegemonizar esses espaços. Diversos
foram as situações em que as prefeituras, que devem arcar com a operação e manutenção das
obras que fossem de responsabilidade deste nível de poder, notadamente as estradas e os
serviços básicos, não cumpriram com suas obrigações previstas, apontando conflitos no
fortalecimento da relação institucional dos assentamentos com as administrações públicas
municipais para a articulação de ações conjuntas.
Não se pode deixar de comentar que a descentralização da gestão, por diversas
vezes, tem se apresentada polêmico aos olhares mais conservadores e menos
transparentes dentro da administração pública. Porém, tal modelo tem apresentado bons
resultados no âmbito do PAC, que vão, conforme indicado pelos relatórios de execução
do Programa (BRASIL, 2009), desde (i) a economia de recursos na execução de obras e
serviços, (ii) o aumento da participação social nos processos de tomada de decisão para
as políticas do assentamento, (iii) o avanço na organização social das famílias, que
passam a pautar a administração pública em busca de investimentos sociais nos
assentamentos. Ressalta-se que a previsão da gestão dos recursos pela comunidade
atendida era altamente inovadora, e sob vários aspectos ainda é.
Efetivamente, alguns aprendizados estão evidentes para os ex-gestores
entrevistados: as famílias assentadas passam a cobrar mais o Poder Público
(principalmente as prefeituras, vereadores e deputados estaduais/federais) para a
execução de benfeitorias nos assentamentos. O accountability vertical passa a ser
demandado com mais intensidade e propriedade pelas famílias assentadas. É visível
também o aumento na participação de assentados e assentadas em Conselhos Municipais
de políticas públicas, qualificando o acesso aos processos decisórios.
Desta forma, a participação e a mobilização gerada pela execução do Plano de
Consolidação apresenta-se como um substrato potencial para diminuir o espaço entre as
elites que detém o poder formal e o povo. O acompanhamento destas experiências
permitiu comprovar que o amadurecimento das comunidades é catalisado pela gestão dos
recursos. Relatos de técnicos do INCRA que acompanhavam as licitações realizadas
pelas comunidades normalmente incluíam a boa surpresa de ver com que afinco os preços
31
e serviços a serem contratados eram negociados, e com que eficiência a fiscalização do
fornecimento acontecia.
Apesar de todo caráter democrático do Programa ancorado no desenvolvimento
pela participação, adaptada local e regionalmente, a sombra do Novo Mundo Rural
sempre permeou as discussões sobre a pertinência do Programa, de maneira que uma
metodologia inovadora e arrojada baseada na gestão compartilhada de recursos públicos
aplicados em conformidade com um plano de desenvolvimento participativo muitas vezes
tendeu a se transformar simplesmente em uma ferramenta para acelerar a emancipação de
assentamentos rurais baseada na presença de condições estruturais mínimas.
Finalizando, o INCRA em geral carece de espaços democráticos de gestão,
herança de seu histórico assistencialista e clientelista. Esta carência aflora principalmente
nas políticas relacionadas à estruturação e ao desenvolvimento dos assentamentos. A
experiência do PAC demonstra que é possível realizar uma gestão democrática e
participativa na reforma agrária, potencializando o processo de emancipação social das
famílias assentadas. Nas palavras do então diretor executivo do Programa, Roberto Kiel,
entrevistado na elaboração deste trabalho,
a discussão de um projeto, a decisão de uma prioridade, uma prestação de contas
votada, tudo gerava um impacto no envolvimento, mas também mudava algo nas
próprias pessoas. Era assim que a construção de um centro comunitário, quase
sempre com trabalho voluntário na contrapartida, ia muito além de sua utilidade,
pois para além de um espaço físico, criava um espaço de realização das liberdades.
São numeráveis, de tão poucas, as experiências de políticas públicas que
conseguiram romper com o economicismo do desenvolvimento, sem perder o rumo
prático da materialização da melhoria das condições de vida. O PAC é uma delas,
pois conseguiu desconstruir seu indicador inicial de renda monetária, e investir
esforços para a criação de novos indicadores, focados na qualidade de vida, meio
ambiente, renda agrícola, organização social etc., que podem ser propostos, como
metodologia, para qualquer iniciativa de combate à pobreza, à fome e à destituição
social.
4.3 O PROGRAMA TERRITÓRIOS DA CIDADANIA E O DESENVOLVIMENTO
RURAL SUSTENTÁVEL
4.3.1 A Formulação e Implementação do Programa
Em uma recente ação do governo federal, foi instituído por decreto de 25 de fevereiro
de 2008 o Programa de Territórios da Cidadania com intuito de priorizar, de maneira
planejada e integrada, ações de diversas políticas públicas em regiões com baixo índice de
desenvolvimento humano, garantindo assim a superação da pobreza, o atendimento às
necessidades básicas de cidadania da população e a aceleração de processos que ampliem as
32
oportunidades de geração de renda de maneira desconcentrada numa estratégia de
desenvolvimento territorial sustentável.
Originariamente, o Programa Territórios da Cidadania adveio da reflexão interna no
governo sobre a dificuldade do estado dialogar com os “diferentes rurais” e da política de
territórios rurais elaborada pela Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT/MDA) em
2003. Os territórios rurais se caracterizaram como espaço de gestão formado por um conjunto
de municípios unidos pelo mesmo perfil econômico e ambiental que tenham identidade e
coesão social e cultural, possuindo uma organização (colegiado territorial) que trabalhou num
primeiro momento a elaboração de um Plano de Desenvolvimento Territorial com
participação popular.
Cabe ressaltar que já na elaboração do 2º Plano Nacional de Reforma Agrária em
2003, foi consolidada no âmbito do INCRA e do MDA a importância da territorialidade como
elemento de planejamento e gestão que apresenta melhor potencial de viabilizar avanços e no
planejamento e na execução de políticas públicas no campo da reforma agrária e
desenvolvimento rural.
Conforme artigo 2º do decreto instituinte, o Programa objetiva “promover e acelerar a
superação da pobreza e das desigualdades sociais no meio rural, inclusive as de gênero, raça
e etnia” contemplando (i) a integração de políticas públicas com base no planejamento
territorial, (ii) a ampliação dos mecanismos de participação social na gestão das políticas
públicas de interesse do desenvolvimento dos territórios (iii) a ampliação da oferta dos
programas básicos de cidadania, (iv) a inclusão e integração produtiva das populações pobres
e dos segmentos sociais mais vulneráveis, tais como trabalhadoras rurais, quilombolas,
indígenas e populações tradicionais e (v) a valorização da diversidade social, cultural,
econômica, política, institucional e ambiental das regiões e das populações.
Para a definição dos Territórios da Cidadania, foram utilizados os seguintes critérios:
(i) ser um dos Territórios Rurais definidos pelo MDA, (ii) baixo IDH, (iii) alta concentração
de agricultores familiares e assentados da Reforma Agrária, (v) alta concentração de
populações quilombolas e indígenas, (vi) número de beneficiários do Programa Bolsa
Família, (vii) número de municípios com baixo dinamismo econômico, (viii) organização
social e (ix) pelo menos um território por estado da federação.
O Programa aglutina ações de dezenove ministérios e atende atualmente 120
territórios, 1.830 municípios (32,9% do total do país) milhões de habitantes (22,9% do 41,9,
total do País) milhão de famílias de agricultores familiares (45,4% do total do País) 1,8, 509,
33
mil famílias de assentados reforma agrária (64,8% do total do País) e 209,5 mil famílias de
pescadores (53,6% do total do País), beneficiados com 180 ações de governo separadas em
sete temas: (i) ações fundiárias, (ii) apoio à gestão territorial, (iii) direitos e desenvolvimento
social, (iv) educação e cultura, (v) infra-estrutura, (vi) organização sustentável da produção e
(vii) saúde, saneamento e acesso à água.
Conforme disposto no portal do Programa Territórios da Cidadania , para o conjunto
dos 60 territórios beneficiados em 2008, foram previstas 180 ações e investimentos de R$
12,7 bilhões. Até 31 de Dezembro de 2009 o Portal da Cidadania recebeu informações sobre a
execução de 162 ações e a execução de R$ 9,9 bilhões). Já para o conjunto dos 120 territórios
beneficiados em 2009, foram previstas 203 ações e investimentos de R$ 24,9 bilhões. Até 31
de Dezembro de 2009 o Portal da Cidadania recebeu informações sobre a execução de 184
ações e a execução de R$ 19,5 bilhões.
A Matriz de 2010, ainda não consolidada, conta com uma previsão de investimentos
de R$ 27 bilhões.
Buscando trabalhar novas institucionalidades, o Programa é gerido por três instâncias
(ciclo de gestão), citadas e descritas abaixo:
Comitê Gestor Nacional, formado por Secretários Executivos ou Secretários
Nacionais de todos os Ministérios/Secretarias que compõem o Programa, com
a competência de aprovar diretrizes, adotar medidas para execução do
programa, avaliar o Programa, aprovar relatórios de gestão, definir de novos
territórios etc;
Comitê de Articulação Estadual, órgão de caráter consultivo e propositivo,
formado por representantes dos órgãos federais, órgãos estaduais e até dois
representantes das prefeituras de municípios incluídos nos territórios, com a
responsabilidade de apoiar a organização e mobilização dos colegiados,
fomentar a articulação e integração das diversas políticas públicas nos
territórios, acompanhar a execução do Programa, auxiliar na divulgação do
Programa no estado e apresentar sugestões de novos territórios e de ações;
Colegiado Territorial, formado paritariamente por representantes das três
esferas de governo e da sociedade em cada território, com o papel de dar ampla
divulgação sobre as ações do Programa, identificar demandas locais para o
órgão gestor priorizar o atendimento (de acordo com critérios, sistemas de
gestão pré-estabelecidos, especificidades legais e instâncias de participação
34
existentes), promover a interação entre gestores públicos e conselhos setoriais,
contribuir com sugestões para qualificação e integração de ações, sistematizar
as contribuições para o Plano Territorial de Ações Integradas e exercer o
controle social do Programa.
Figura 01: Mapa dos 120 Territórios da Cidadania
Segundo Bonnal (2008, p. 3) a experiência dos Territórios da Cidadania,
trata-se, para o Estado, de concentrar seus esforços em áreas marcadas por uma
situação de pobreza rural aguda, para induzir um processo de desenvolvimento
econômico e social acelerado. Sendo assim, a estratégia corresponde a um
processo de territorialização das políticas públicas, que por sua vez remete a
dois fenômenos bem diferentes: a desconcentração da ação pública e a
descentralização do processo de governança.
Definidos os territórios e a previsão do Orçamento Geral da União, os colegiados
territoriais debatem a Matriz Territorial Anual, ou seja, o conjunto de políticas oferecidas pelo
Estado, os recursos disponíveis em cada ação e as necessidades prioritárias de acordo com o
previsto no Plano de Desenvolvimento Territorial.
Desta forma, as decisões tomadas no espaço territorial devem ser viabilizadas com o
apoio do Comitê de Articulação Estadual e monitoradas por todos os atores do ciclo de
gestão.
35
4.3.2 Os Avanços Democráticos do Experimento de Gestão Territorial Participativa
Inicialmente, o fato de toda a discussão da criação do Programa ter sido gerida pela
Casa Civil de Presidência da República, a partir da construção do Ministério do
Desenvolvimento Agrário, demonstra que existe vontade política para a constituição de uma
nova relação do Estado com a população, dialogando com a melhoria da participação
institucional e com o encadeamento de políticas públicas.
Santos & Avritzer (2002) apontam três teses para o fortalecimento da democracia
participativa: (i) o fortalecimento da demodiversidade, baseado na inexistência de motivação
para a democracia assumir uma única forma e na importância da deliberação pública ampliada
para o adensamento da participação; (ii) o fortalecimento da articulação contra-hegemônica
entre o local e o global, com intuito de garantir que experiências alternativas bem sucedidas se
expandam de forma a se consolidarem como alternativas ao modelo hegemônico e (iii) a
ampliação do experimentalismo democrático já que, segundo os autores, novas experiências
bem sucedidas se originaram de novas gramáticas sociais nas quais o formato da participação
teve origem experimental.
A proposta metodológica de gestão do Programa Territórios da Cidadania está imersa
nesta combinação sinérgica e apresenta um elemento central e pioneiro de planejamento
participativo do desenvolvimento territorial, abordando o método de formação dos órgãos
decisórios e as regras de tomada de decisões, dialogando, portanto, com a proposta de
Santos & Avritzer (2002) de ampliar o experimentalismo democrático. Segundo os autores,
novas experiências bem sucedidas se originaram de novas gramáticas sociais nas quais o
formato da participação teve origem experimental.
Conforme observado por Dagnino (2002a, 2002b), o retrato da participação emerge
vinculado a uma multiplicidade de fatores, entre eles o peso das matrizes culturais, que
evidenciam as contradições e fragmentações no processo de construção democrática,
combinando avanços, estagnações e até mesmo retrocessos. Como elemento importante do
Programa, diversos territórios beneficiados possuem entidades organizadas que
participam de redes (PETERSEN & SILVEIRA, 2002) que tem colocado em questão,
assim como proposto por Celso Furtado (1974 apud VIERA, 2005), o mito do
desenvolvimento que conduz apenas a modernização (no caso, de cunho altamente
conservador) e a adoção de padrões de consumo mais sofisticados sem fundamentos
econômicos sólidos.
36
As entrevistas realizadas para elaboração deste trabalho com os gestores públicos do
MDA e MDS e com representantes da sociedade civil participantes dos Colegiados
Territoriais em dois Territórios da Cidadania (Sisal/BA e Central/RS) demonstram satisfação
em relação ao aumento da efetividade das ações constantes nas matrizes territoriais,
principalmente em relação as atividades do Ministério da Saúde, embora num primeiro
momento houve-se dificuldade de interlocução entre as instâncias decisórias do Sistema
Único de Saúde e os Colegiados Territoriais.
Como retrato importante do avanço democrático, alguns deputados colocaram suas
emendas parlamentares a favor dos Colegiados Territoriais, empoderando ainda mais o
processo participativo de definição do orçamento.
Porém, um primeiro fator de impacto negativo, já apresentado na experiência de
execução do PAC, está na dificuldade dos gestores municipais aceitarem a descentralização
do processo decisório do seu gabinete para o espaço público, gerando verdadeiras crises.
Baquero (2003) explica que mesmo com instituições políticas poliárquicas, o país ainda não
conseguiu reverter seus padrões tradicionais de autoritarismo e práticas populistas e Dagnino
(2002b) comenta que as continuidades autoritárias e conservadoras que reproduzem a
exclusão na sociedade brasileira estão longe de estarem confinadas no aparato do Estado,
respondendo a interesses enraizados na sociedade civil. A autora esclarece que o autoritarismo
social e as visões hierárquicas e excludentes da sociedade e da política pública dificultam o
funcionamento dos espaços públicos, conforme observado na efetivação dos Colegiados
Territoriais.
Por mais que o Comitê Articulação Estadual realize o papel de trabalhar junto com o
Colegiado Territorial para a viabilização dos projetos, em muitos momentos as prefeituras
apresentam posições diametralmente opostas ao definido nas Matrizes Territoriais. Uma
possível saída para este problema seria a institucionalização dos Comitês Territoriais, como
unidades gestoras do orçamento que independesse das prefeituras para a execução das ações
definidas.
Outro problema encontrado para o efetivo encadeamento de políticas públicas reside
na heterogeneidade de procedimentos dentro do Governo para definir critérios para a alocação
de recursos. Muitos órgãos trabalham com paradigmas de desenvolvimento diversos ou ainda
com mecanismos de planejamento ancorados em uma burocracia ultra-especializada,
desconsiderando os benefícios dos mecanismos de participação decisória. Um desses
exemplos é o Ministério dos Transportes, que não participa do Programa com suas ações em
37
que pese o passivo existente relativo às estradas rurais no país e a grande demanda das
populações rurais, exposta nos Planos de Desenvolvimento Territoriais, para a melhoria nos
sistemas viários.
Finalizando, a institucionalização dos Colegiados Territoriais com poder deliberativo
concretiza um verdadeiro avanço, garantindo o espaço de debate e decisão públicos,
incorporando o conjunto da população no processo de deliberação e tomada de decisão e
controle de agenda, sendo este último, um dos fatores apontados por Miguel (2003) para
garantir um modelo representativo inclusivo.
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pereira & Carvalho (2008), em trabalho que mapeia o pensamento de Boaventura de
Sousa Santos, explicita que estamos vivendo um momento de transição de um paradigma
dominante (firmado pela ciência moderna, sociedade patriarcal, produção capitalista,
consumismo, democracia autoritária e desenvolvimento excludente) para um conjunto de
paradigmas em construção e que “ainda não sabemos exatamente o que vem a ser”. Neste
aspecto, conceitos como o de “comunidades sustentáveis”, desenvolvimento endógeno e as
políticas públicas com foco na redução de desigualdades com recortes de gênero, raça e
território vem ganhando espaço na sociedade como um todo.
A crise da democracia evidencia a necessidade de uma reforma ampla do Estado para
que este possa abarcar a heterogeneidade do campo privado que vem aflorando no campo
público (afloramento este que emerge da democratização dos espaços públicos e da expansão
da cidadania pela incorporação de diferentes diferenças).
Segundo Guimarães (s.d.), pensar a superação do subdesenvolvimento requer
abordar quatro dimensões da “refundação republicana”, quais sejam, (i) a refundação
ético-política, (ii) a reconstrução do setor público, (iii) a democratização dos
fundamentos da nossa democracia política e (iv) revisão das bases históricas da relação
do Brasil com o centro capitalista. Das dimensões apresentadas, a democratização dos
fundamentos da democracia política é a qual tem sido frontalmente abordada por novas
experiências de gestão democrática, como as enfocadas neste trabalho.
Embora os gestores públicos ainda não tenham consolidado uma prática de
participação democrática na gestão das políticas públicas governamentais, as conquistas
garantidas através dos mecanismos de accountability social são de enorme importância. Essas
alterações, ainda que experimentais, nas estruturas organizativas e deliberativas do Estado
sobre o orçamento público no espaço rural tem desencadeado um processo de consolidação de
outra figura da representação, como explicitado por Lüchmann (2007), baseado em interesses
gerais e na complementaridade entre participação e representação.
Da mesma maneira, é possível concluir que existe uma evolução democrática nas
políticas analisadas: os CMDRs apresentaram um viés frágil de participação, tendo sido
fortemente manipulados pelo poder público municipal; a experiência do PAC, apesar do
caráter inovador em relação a gestão financeira, ficou muito restrita ao espaço delimitado
dos assentamentos de reforma agrária e; os Territórios da Cidadania apresentam uma
abrangência de ações públicas maior e contempla um espaço geográfico mais amplo,
39
assim como apontam para um espaço de concertação com grande potencial para viabilizar
diálogos efetivos tanto entre representações da sociedade civil entre si quanto destas com
as esferas do poder público.
Ainda, as experiências dos CMDRs, do PAC e do Programa Terrítórios da
Cidadania, em que pese qualquer falha ou dificuldade de implementação, estão no escopo
de políticas públicas democráticas de desenvolvimento baseadas (i) em novas relações
econômicas focadas na segurança alimentar, (ii) no crescimento com distribuição de
renda de modo a garantir a dignidade e a reprodução social das famílias agricultoras, (iii)
no estabelecimento de novas tradições de cultura política, eliminando o coronelismo e as
tradições político-eleitorais e (iv) o acesso a produção, tecnologia adequada e
universalização de direitos e princípios civilizatórios básicos, dialogando com a
construção de novos paradigmas. Em especial, ressalto que o Programa Territórios da
Cidadania, segue alguns dos preceitos normativos da sustentabil idade do
desenvolvimento, ou seja, (i) busca por meio dos seus mecanismos de gestão garantir
junto ao estado um fluxo de investimentos em diversas áreas, (ii) trabalha buscando uma
gestão eficiente de recursos com transparência e controle social e (iii) fomenta o debate
sobre o modelo de produção agrícola e inclusão da mulher e dos jovens nos processos
produtivos e de deliberação.
Não restam dúvidas que alicerçadas na democratização da democracia, essas
experiências com foco em novos paradigmas de desenvolvimento tem ganhado fôlego e
incorporado importantes setores da sociedade civil.
Os desafios colocados e os avanços obtidos nas políticas analisadas mostram que para
além do debate orçamentário ou um catálogo de ações, os espaços institucionais de
participação devem se caracterizar como fórum público de discussão sobre o desenvolvimento
inclusivo, abordando as desigualdades e unificando os atores sociais.
Neste contexto, a aproximação de grupos que até então não partilhavam dos mesmos
espaços de articulação viabiliza um diálogo de diversidade de interesses e valores (diálogo
intercultural), podendo criar identidades coletivas, empoderando as entidades de
representação e transversalizando/interseccionando os direitos pleiteados, chegando a torná-
los indivisíveis em alguns casos. Não se trata de universalismo abstrato, mas de
reconhecimento do cotidiano dos diversos sujeitos na construção de caminhos para uma
política emancipatória.
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