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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA OS SENTIDOS DA FELICIDADE: UMA INTRODUÇÃO AO ESTUDO DA METAFÍSICA DA FELICIDADE E DA SABEDORIA DE VIDA EM SCHOPENHAUER DISSERTAÇÃO DE MESTRADO Anerson Gonçalves de Lemos Santa Maria, RS, Brasil. 2015

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

    CENTRO DE CINCIAS SOCIAIS E HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    OS SENTIDOS DA FELICIDADE:

    UMA INTRODUO AO ESTUDO DA METAFSICA DA FELICIDADE E DA

    SABEDORIA DE VIDA EM SCHOPENHAUER

    D I S S E R T A O D E M E S T R A D O

    Anerson Gonalves de Lemos

    Santa Maria, RS, Brasil.

    2015

  • OS SENTIDOS DA FELICIDADE:

    UMA INTRODUO AO ESTUDO DA METAFSICA DA FELICIDADE E DA

    SABEDORIA DE VIDA EM SCHOPENHAUER

    Anerson Gonalves de Lemos

    Dissertao apresentada ao Curso de Mestrado do Programa de Ps-Graduao em Filosofia,

    da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM, RS), como requisito parcial para obteno

    do grau de

    Mestre em Filosofia.

    Orientador: Prof. Dr. Flavio Williges

    Santa Maria, RS, Brasil

    2015

  • UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

    CENTRO DE CINCIAS SOCIAIS E HUMANAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM FILOSOFIA

    A comisso examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertao de Mestrado

    OS SENTIDOS DA FELICIDADE:

    UMA INTRODUO AO ESTUDO DA METAFSICA DA FELICIDADE E DA

    SABEDORIA DE VIDA EM SCHOPENHAUER

    elaborada por

    Anerson Gonalves de Lemos

    como requisito parcial para obteno do grau de

    Mestre em Filosofia

    COMISSO EXAMINADORA

    __________________________________________________

    Flavio Williges, Prof. Dr. (UFSM)

    (Presidente /Orientador)

    __________________________________________________

    Vilmar Debona, Prof. Dr. (UFRRJ)

    __________________________________________________

    Janyne Sattler, Prof. Dra. (UFSM)

    Santa Maria, 15 de outubro de 2015

  • Dedico esse trabalho aos meus avs, Maria Roslia e Manuel Moiss, (in memoriam) pela

    infncia mais feliz que se pode ter.

  • AGRADECIMENTOS

    Agradeo a minha esposa Elizngela Batista da Silva pelo amor e dedicao com que

    esteve ao meu lado nesse perodo desafiador da minha vida. Se no fosse pelo seu carinho e

    incentivo tudo teria sido muito mais difcil.

    Ao professor Flvio Williges, meu orientador, pelo acompanhamento paciente e

    dedicado das minhas atividades acadmicas. Sua presena e ensinamentos para mim

    significaram muito mais do que instrues sobre pesquisa e conhecimentos filosficos, mas

    foram tambm lies de humanidade e sabedoria de vida.

    minha famlia pelo apoio e incentivo incondicional que sempre dedicaram a mim,

    em especial a minha queridssima me Alzinete Lemos, ao meu pai Rafael Lemos e s minhas

    irms Ana Paula e Ana Rafaela. Essa conquista tambm de todos vocs.

    Aos queridos amigos Socorro Jatob e Hans Weiser que me acompanham de longa

    data em momentos bons e difceis, e aos meus amigos mais recentes do Sul Leandro Righi e

    Rudimar Barea. Sou muito grato a todos vocs pelas conversas filosficas, companheirismo e

    auxlio.

    Aos meus amigos e colegas de aulas Paulo de Toledo, Rubens Machado, Guilherme

    Freitas, Alessandra Lessa e Gustavo pela amizade e pelas discusses filosficas.

    Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico - CNPq pelo

    financiamento dessa pesquisa.

    Finalmente, agradeo a todos que de alguma forma contriburam para a realizao

    deste trabalho, pois certamente so mais do que eu posso incluir aqui.

  • Viver de modo feliz, meu irmo Glio, todos almejam, mas quando se trata de ver com

    nitidez o que torna feliz a vida, ento os olhos ficam ofuscados.

    Sneca

  • RESUMO

    Dissertao de Mestrado

    Programa de Ps-Graduao em Filosofia

    Universidade Federal de Santa Maria

    OS SENTIDOS DA FELICIDADE:

    UMA INTRODUO AO ESTUDO DA METAFSICA DA FELICIDADE E DA

    SABEDORIA DE VIDA EM SCHOPENHAUER

    Autor: Anerson Gonalves de Lemos

    Orientador: Prof. Dr. Flavio Williges

    Data e Local da Defesa: Santa Maria, 15 de outubro de 2015.

    O presente estudo consiste numa investigao sobre a noo de felicidade na filosofia de

    Schopenhauer. Pretendemos mostrar os diversos sentidos ou perspectivas de abordagem do

    conceito na filosofia de Schopenhauer nos dois mbitos fundamentais onde se desenvolve sua

    reflexo tica: no campo metafsico e no domnio prgmtico ou emprico-psicolgico. A

    anlise inicia expondo o carter diferenciado e complexo da filosofia moral

    schopenhaueriana, buscando preparar o caminho para expor os traos conceituais da

    abordagem de Schopenhauer, bem como os problemas que seu modelo metafsico de reflexo

    impe para o tratamento da felicidade. A exposio seguiu as seguintes etapas: em primeiro

    lugar, apresentamos a presena da questo da felicidade nas diversas etapas do

    desenvolvimento intelectual de Schopenhauer e explicitamos que sua anlise parte de um

    projeto implcito em sua tica, o qual consistiu em trazer a reflexo moral para as questes

    mais relevantes da vivncia humana, em seus diversos aspectos. Em segundo lugar,

    caracterizamos o delineamento estrutural das principais noes de felicidade

    schopenhaueriana a partir da perspectiva fundamental de sua filosofia, a saber, a metafsica.

    Essa parte prope uma base de compreenso do tema da felicidade por meio da discusso das

    questes metafsicas em seus desdobramentos epistemolgico, esttico e tico, e,

    posteriormente, a anlise das trs principais condies existencias que podem ser

    interpretadas como estados de felicidade: a felicidade comum ou terrena, a felicidade

    pura e a beatitude. Em terceiro lugar, apresentamos a segunda perspectiva fundamental de

    exposio da felicidade que corresponde ao aspecto prgmtico, desenvolvido na chamada

    eudemonologia de Schopenhauer. Nessa seo apresentaremos os pressuposto conceituais

    bsicos da filosofia prtica schopenhauriana que nortearam a reflexo sobre o tema. Os

    conceitos fundamentais foram explorados tanto por meio do dilogo de Schopenhauer com

    tradio da filosofia antiga, quanto buscando indicar as dificuldades tericas que a proposta

    de uma cincia ou sabedoria prudencial para a conduo da vida impe para Schopenhauer.

    Por fim, foi feita uma anlise de aspectos substanciais ou valorativos em torno dos elementos

    ou ingredientes da vida feliz e das propriedades psicolgicas da felicidade em conexo com as

    anlises de Schopenhauer nos Aforismos e alguns aspectos da psicologia moral

    contempornea. O ltimo captulo pretende ser, portanto, uma complementao da anlise

    emprico-psicolgica desenvolvida no terceiro, embora ali tambm seja dada nfase para

    algumas descobertas cientficas em torno da felicidade. O estudo das teorias contemporneas

    revelam as concluses de Schopenhauer sobre os elementos fundamentais da vida feliz e

    relao aspectos empirico-psicolgicos especficos.

    PALAVRAS-CHAVE: Felicidade, tica, Sabedoria de vida

  • ABSTRACT

    Masters Dissertation

    Post-Graduate Program in Philosophy

    Federal University of Santa Maria

    THE SENSES OF HAPPINESS: AN INTRODUCTION TO THE STUDY OF

    METAPHYSICS OF THE HAPPINESS AND WISDOM OF LIFE IN

    SCHOPENHAUER

    AUTHOR: Anerson Gonalves de lemos

    ADVISOR: Flavio Williges

    Defense Place and Date: Santa Maria, October 15 th, 2014.

    This study is a research on the notion of happiness in the philosophy of Schopenhauer. We

    intend to show the different meanings or perspectives of approach which this concept takes on

    Schopenhauer thoughts in two key areas where it develops its ethical reflection: in the

    metaphysical field and pragmatic or empirical-psychological domain. The analysis starts

    exposing the distinctive and complex character of the moral philosophy of Schopenhauer,

    seeking to pave the way to expose the conceptual features of his approach and the problems

    that its metaphysical reflection model imposes for treatment that theme. The exhibition obeys

    the following steps: first, we present the presence of the issue of happiness at various stages of

    the intellectual development of Schopenhauer and we make explicit that his analysis is based

    on an implicit project in its ethics, which was to bring moral reflection to the most relevant

    questions of human existence, in its various aspects. Secondly, we characterize the structural

    design of the main notions of Schopenhauerian happiness from the fundamental perspective

    of his philosophy, namely, metaphysics. This section sets forth an understanding of the basis

    of the theme of happiness through the discussion of metaphysical questions in their

    epistemological developments, aesthetic and ethical, and later, analysis of the three major

    existential conditions that can be interpreted as states of happiness: the common happiness or

    "earthly", "pure happiness" and holy bliss. Third, we present the second fundamental

    perspective of exposure of happiness that corresponds to the pragmatic aspect, developed by

    the so-called eudemonologia of Schopenhauer. In this section we present the basic conceptual

    premise of Schopenhauer's practical philosophy that guided the reflection on the subject. The

    fundamental concepts were explored both through Schopenhauers dialogue with tradition of

    ancient philosophy, and also seeking to enter the theoretical difficulties that the proposal of

    science or prudential wisdom for the conduct of life in the Aphorisms of Wisdom for Life

    places to Schopenhauer. Finally, an analysis of significant or evaluative aspects around

    elements or ingredients of the happy life and psychological properties of happiness in

    connection with the analysis of Schopenhauer in aphorisms and some aspects of

    contemporary moral psychology was made. The final chapter is intended as a supplement to

    the empirical-psychological analysis developed in the third, although there is also given

    emphasis to some scientific discoveries about happiness that agree and provide an empirical

    foundation for conceptual insights of Schopenhauer. The study of contemporary theories

    reveals that the conclusions of the philosopher on the fundamental elements of happy life and

    specific psychological.

    Keywords: Happiness, Ethics, Wisdom of life.

  • SUMRIO

    INTRODUO.................................................................................................11

    1 A FELICIDADE NO PERCURSO INTELECTUAL DE

    SCHOPENHAUER...........................................................................................16 1.1 A felicidade e os anos de formao filosfico-intelectual de Schopenhauer............... 17

    1.2 O Mundo como Vontade e Representao e a natureza da felicidade........................ 21

    1.3 Agir moral e felicidade no ensaio Sobre o Fundamento da

    Moral........................................................................................................................................24

    1.4 A felicidade nos Escritos Posteriores: os Parerga e

    Paralipomena...........................................................................................................................29

    2 A DIMENSO METAFSICA DA REFLEXO SOBRE A

    FELICIDADE....................................................................................................36 2.1 O ponto de vista metafsico e a felicidade.......................................................................38

    2.2 A chave de acesso ao mundo da Vontade: o corpo.........................................................39

    2.3 A identidade entre o mundo, a Vontade e a vida humana.............................................42

    2.4 O carter individual e sua imutabilidade.......................................................................45

    2.5 A vida humana enquanto fenmeno da Vontade, o valor objetivo da existncia e a

    felicidade..................................................................................................................................51

    2.6 Sobre as noes de felicidade na metafsica schopenhaueriana...................................55

    2.7 A felicidade terrena: a felicidade (Glck) enquanto satisfao e seu carter

    negativo.................................................................................................................................... 58

    2.8 A natureza da felicidade terrena a partir da metafsica de Schopenhauer.................58

    2.9 A felicidade pura (reine Glck) ou alegria esttica: a sublimao da Vontade...........60

    2.10 A felicidade enquanto beatitude (Seligkeit): negao da Vontade e

    Nirvana.....................................................................................................................................71

    2.11 A vivncia duradoura do estado de beatitude..............................................................73

    3 A DIMENSO PRTICA DA REFLEXO SOBRE A

    FELICIDADE....................................................................................................83 3.1 A presena e a justificao de uma tica prtica, direcionada vida

    feliz...........................................................................................................................................84

    3.2 A genealogia do conceito de razo prtica e seu uso prudencial............................. 90

    3.3 A felicidade relacionada constituio fsica, intelectual e excelncia

    moral........................................................................................................................................ 92

    3.4 O carter adquirido e a importncia do autoconhecimento na eudemonologia.... 98

    3.5 Os elementos fundamentais da eudemonologia e o resgate da sabedoria de vida

    presente no modelo antigo de filosofia

    moral......................................................................................................................................102

    3.6 A presena do pragmatismo aristotlico...................................................................105

    3.7 Os estoicos e a concepo de diettica psicolgica e ataraxia.....................................110

    4 A TEORIA DA FELICIDADE DE SCHOPENHAUER HOJE: UMA

    AVALIAO A PARTIR DA PSICOLOGIA MORAL

    CONTEMPORNEA..................................................................................... 123 4.1 A felicidade est em ns mesmos: a autossuficincia do sbio....................................127

    4.2 Mens sana in corpore sano.............................................................................................131

    4.3 Ter e Aparecer................................................................................................................ 135

    4.4 A dependncia que temos dos outros para sermos felizes.......................................... 136

    4.5 Aspectos psicolgicos da abordagem da felicidade de Schopenhauer....................... 140

  • CONSIDERAES FINAIS.......................................................................... 146

    REFERNCIAS...............................................................................................150 Apndice.................................................................................................................................157

  • 11

    INTRODUO

    Essa dissertao consiste numa apresentao introdutria do tratamento dedicado por

    Schopenhauer felicidade. Trata-se de um tema aparentemente inslito, uma vez que a

    filosofia schopenhaueriana muito mais conhecida por sua denncia das mazelas da

    existncia e dos sofrimentos do mundo do que propriamente pelo seu estudo da felicidade. A

    impresso de que no haveria como conciliar um sistema que sustenta que nossa existncia

    eivada de dores e sofrimentos com preocupaes sinceras com a felicidade humana , no

    entanto, uma falsa aparncia. Schopenhauer no s faz com que o tema da felicidade percorra

    toda sua obra, como dedicou ensaios especficos ao assunto. Assim, embora no seja comum

    associar sua filosofia idia de felicidade, inegvel a importncia desse conceito na filosofia

    schopenhaueriana. A ateno a essa presena estranha explica-se, por um lado, por razes

    histricas e ligadas s influncias intelectuais de Schopenhauer e, por outro, por seus prprios

    interesses filosficos. Quanto ao primeiro ponto, importante destacar que ele foi um grande

    leitor e apreciador de escritos sapienciais de diferentes tradies, como a filosofia clssica

    grega e romana, as filosofias renascentistas e modernas e sistemas filosficos do Oriente,

    sendo, de todos eles, no s um profundo leitor e conhecedor, mas tambm, em grande

    medida, um introdutor e divulgador. Nesse sentido, a felicidade no s foi um tema filosfico

    para Schopenhauer, mas tambm motivo de grande ateno e dedicao vinculadas a

    preferncias pessoais e de formao. A marca definitiva, contudo, da importncia do tema

    encontra-se na doutrina original e intuitiva que ele nos legou em diferentes escritos que

    abrangem boa parte de sua produo filosfica. Mas o que caracteriza a abordagem da

    felicidade de Schopenhauer? No que consistiu sua reflexo em torno desse assunto?

    Responderemos essa pergunta perseguindo duas orientaes gerais e distintas de

    anlise. A que se refere ao carter mais temtico ou filosfico, consistir na exposio de sua

    teoria propriamente dita. E a que estar voltada para as questes imanentes ao sistema de

    Schopenhauer e que impuseram restries ou respostas especficas para as questes presentes

    na primeira orientao.

    A nossa primeira linha geral de orientao para a anlise temtico-filosfica dessas

    questes girar em torno de qual teoria da felicidade Schopenhauer pretendeu desenvolver. H

    dois tipos fundamentais de teorias da felicidade na histria da filosofia:

  • 12

    Uma aquela que aborda a felicidade como uma noo valorativa, como o estudo das

    condies que fazem uma vida humana ser boa (eudaimonia), um exemplo de boa vida ou de

    bem-viver. Devemos essa orientao, sobretudo s investigaes tradicionais de Scrates,

    Plato e Aristteles, que depois foram ampliadas por outros filsofos antigos da Grcia e de

    Roma. O que importa filosoficamente nesse tipo de investigao conhecer o tipo de vida

    que, em ltima instncia, benfico para uma pessoa, que serve aos seus propsitos ou a torna

    melhor, tornando essa mesma vida digna ou valiosa (no sentido de ser uma vida vivida de

    acordo com o bom e melhor para um ser humano). A vida que conteria essas condies seria,

    ento, uma vida feliz, de significado e valor e, portanto, como diziam os antigos, seria uma

    vida de eudaimoinia ou felicidade. Nesse aspecto, dizer que somos felizes ou tivemos uma

    vida feliz significa o mesmo que assinalar que nossa vida foi constituda pelos bens

    fundamentais que compem uma vida plena do ponto de vista humano. nesse sentido que

    Aristteles fala que o homem que se dedica unicamente aos prazeres do corpo no feliz, pois

    uma vida feliz parece incluir outros tipos de bens humanos. Pensar a felicidade nesse sentido

    envolve pens-la como uma noo valorativa, pois o interesse seria identificar o tipo de coisas

    que devemos valorizar e cultivar para ter uma vida boa.

    A outra o debate filosfico tradicional em torno da felicidade que diz respeito

    felicidade como um estado ou condio psicolgica. H diferenas psicolgicas ou

    fenomenolgicas entre algum feliz e algum infeliz. Estar ou sentir-se feliz uma

    experincia ou estado mental com caractersticas especficas. Quais so elas? O que define,

    em termos psicolgicos, a felicidade? Trata-se de uma sensao de prazer? Um estado ou uma

    condio emocional geral? Um juzo que fazemos acerca de nossas vidas que as considera

    boas ou satisfatrias? Esse aspecto tem sido abordado exaustivamente na psicologia moral

    contempornea, mas tambm podemos encontrar a raiz desses debates nos textos clssicos da

    filosofia epicurista, estica e no prprio Aristteles.

    Tanto o sentido valorativo da felicidade quanto os aspectos psicolgicos visados esto

    presentes na abordagem de Schopenhauer. Sua investigao percorre esses dois sentidos, no

    havendo, muitas vezes, uma distino clara em torno do tipo de orientao que est sendo

    seguida. s vezes, Schopenhauer trata a felicidade como uma condio geral da vida, tal

    como transparece na subdiviso dos Aforismos para a sabedoria na vida, onde so

    investigados os tipos de bens que constituem a felicidade. s vezes, ele toma a felicidade

    como um estado psicolgico particular, especialmente quando equivale felicidade com estado

    de satisfao, alegria ou bem-estar. Nossa inteno nessa dissertao contemplar a

    abordagem dessas duas ordens de questes na constituio da teoria da felicidade.

  • 13

    A segunda orientao geral de anlise que seguiremos, de carter histrico-

    sistemtico e mais comumente discutida entre os intrpretes de Schopenhauer, aquela que

    procura entender as teses especficas sobre a felicidade defendidas por Schopenhauer em

    relao arquitetnica de sua filosofia ou, ainda, em relao estrutura interna de seu sistema

    filosfico. Nesse aspecto, percorreremos os dois pontos de vista presentes na abordagem de

    Schopenhauer: tanto o ponto de vista tico-metafsico (presente principalmente em suas

    primeiras obras) quanto o ponto de vista emprico-psicolgico, mais claramente exposto nos

    textos tardios.

    O conceito de felicidade abordado por Schopenhauer em O mundo como vontade e

    representao, no projeto (parcialmente elaborado nos Escritos Posteriores) de uma

    Eudemonologia, cujo desenvolvimento mais sistemtico encontra-se nos Parerga e

    Paralipomena, mais especificamente nos Aforismos para sabedoria de vida e em A arte de

    ser feliz. Procuraremos caracterizar os problemas internos abordagem filosfica da

    felicidade postos por essas diferentes obras e indicar, seguindo a literatura disponvel, as

    solues oferecidas para as dificuldades geradas por posies defendidas em suas diferentes

    obras e que tiveram efeitos importantes na sua teoria propriamente dita.

    O estudo do conceito de felicidade na concepo de Schopenhauer transitar por essas

    duas direes e domnios de investigao, onde procuramos mostrar de uma forma definida os

    seus contornos e suas relaes com outros conceitos fundamentais de sua tica, especialmente

    com a idia de sabedoria e bem-viver. Nosso objetivo, assim, foi colocar no somente as

    nuances do conceito de felicidade em evidncia e de seus percursos no pensamento de

    Schopenhauer, mas tambm mostrar por meio dele o carter e a atualidade de sua doutrina.

    Conforme se ver, no cremos que seria correto conceber a filosofia da felicidade de

    Schopenhauer como um teoria conceitual unvoca, no sentido de apresentar uma abordagem

    organizada em torno de uma nota caracterstica central da felicidade. Ao contrrio, o que se

    ver o que poderamos chamar de uma abordagem da felicidade que explora mltiplos

    sentidos, cuja unidade temtica a apreenso dessa aspirao humana fundamental, mas cuja

    unidade semntica ampla e engloba diferentes direcionamentos de abordagem explorados na

    trajetria filosfica de Schopenhauer. A imagem da felicidade como uma aspirao onde

    mltiplos sentidos esto entrelaados nos pareceu ser, assim, aquela que melhor captura sua

    rica abordagem. De maneira preliminar, podemos resumir esses mltiplos sentidos nos

    seguintes pontos:

  • 14

    1- Do ponto de vista da metafsica da existncia, a felicidade identificada por um

    conjunto de estados ou condies que implicam a afirmao e negao da vontade. Esses

    estados so encontrados em diferentes graus e foram caracterizados por Schopenhauer como

    felicidade terrena, felicidade pura e beatitude.

    2- No domnio prtico, prazer, desejo e dor so fundamentais para compreender a

    felicidade. A satisfao (ou o gozo do prazer) tomada como negativa por emergir de uma

    supresso da dor. com base nesse raciocnio que Schopenhauer afirma: S a carncia, isto

    , a dor nos dada imediatamente (SCHOPENHAUER, 2005, p. 411). Assim, no o gozo

    dos prazeres a condio necessria para a felicidade, mas sim a ausncia de dor. O caminho

    para evitar a dor na conduo da vida envolve autarquia e independncia, a capacidade do

    sbio de bastar-se a si mesmo, evitando o aprisionamento pelas paixes e desejos ilimitados e

    sabedoria prtica para as escolhas e decises.

    3- A caracterizao da felicidade como negao da dor tambm revela aspectos

    psicolgicos importantes reconhecidos por Schopenhauer como um estado de contentamento

    ou jovialidade que esto associados com a idia de bem-estar, alegria e prazer, mas no se

    resumem a eles.

    A apresentao do percurso que conduz a essas concluses gerais foi organizada em

    quatro captulos, os quais resumiremos a seguir.

    No captulo inicial, faremos uma anlise das questes mais importantes da trajetria

    intelectual de Schopenhauer e do desenvolvimento de sua filosofia no que se refere

    abordagem do tema felicidade. Como se pode ver, trataremos inicialmente de questes mais

    introdutrias que incluem, entre outros assuntos, o interesse do pensador pela felicidade

    enquanto questo filosfica, a abordagem desse tema nas suas obras mais importantes e a

    elaborao de sua eudemonologia (ou seja, sua teoria da felicidade). Entretanto, por meio

    da discusso dessas questes e de seus desdobramentos, tambm iniciaremos uma base para o

    aprofundamento dos conceitos schopenhauerianos e para nos familiarizar mais com o carter

    e as singularidades da sua investigao moral na qual estaro inseridas as vrias facetas da sua

    concepo de felicidade. Algumas questes com esse mesmo intuito sero discutidas no

    Apndice I da dissertao, tendo como tema o pessimismo schopenhaueriano, o que nos ajuda

    a pensar a questo da felicidade pelo seu reverso e que pode ser assim considerada como

    complementar ao primeiro captulo.

    No segundo captulo, discutiremos a primeira perspectiva fundamental da discusso da

    felicidade no pensamento de Schopenhauer, isto , o ponto de vista metafsico. Portanto, o

    caminho que nos conduzir ao esclarecimento da questo nesse mbito o prprio cerne da

  • 15

    filosofia schopenhaueriana, ou seja, o que se convencionou chamar de sua metafsica da

    Vontade. Nossa exposio neste decurso segue os passos do filsofo na exposio do que ele

    considera ser a viso mais elevada do mundo e da vida humana, a qual perpassa toda a

    realidade, mostrando-a de vrios pontos de vista. A concluso dessa parte da discusso

    consistir na anlise das trs principais noes de felicidade proposta por Schopenhauer, que,

    por sua vez, aparecem como desdobramento dos vrios aspectos da sua metafsica.

    No terceiro captulo, trataremos a outra perspectiva que adotamos como fundamental

    na reflexo sobre a felicidade na filosofia de Schopenhauer, ou seja, a viso do tema de um

    ponto de vista emprico-psicolgico contido na discusso da vida feliz como uma questo

    prtica. Nesse ponto do texto, nos concentraremos em apresentar e discutir os principais

    elementos da teoria da felicidade schopenhaueriana, o que ser feito em dois momentos

    distintos: primeiramente analisaremos a eudemonologia enquanto uma reflexo tica paralela

    e complementar metafsica da moral discutida e explanaremos os conceitos bsicos

    pressupostos na sua elaborao, a saber, as noes de razo prtica enquanto arte prudencial,

    noo de carter adquirido e autoconhecimento e a excelncia entre o carter e a felicidade

    individual. Posteriormente apresentaremos os elementos fundantes da eudemonologia

    schopenhaueriana, o que ser feito por meio de um dilogo com duas das principais

    influncias e inspiraes do filsofo nesse campo, que so a tica aristotlica e a estoica.

    No ltimo captulo, apresentaremos uma anlise focada em dois aspectos

    fundamentais da teoria da felicidade de Schopenhauer: tanto do ponto de vista valorativo

    quanto do ponto de vista psicolgico. Do ponto de vista valorativo, interessamo-nos em

    analisar as teses de Schopenhauer frente psicologia moral contempornea. O estudo dessas

    teorias revela que as concluses de Schopenhauer sobre a moderao dos desejos e o

    temperamento pessoal encontram apoio em estudos realizados na psicologia social e moral. A

    negao do convvio social, da amizade e do afeto para a felicidade tem sido, contudo,

    contestada. Tambm procuramos, nesse captulo, contemplar as consideraes de

    Schopenhauer sobre o prazer, a alegria e a jovialidade com as principais teorias psicolgicas

    atuais da felicidade. O resultado dessa explorao foi indicar que Schopenhauer parece

    defender um modelo misto da felicidade, que inclui satisfao e um estado global positivo.

  • 16

  • 17

    1 A FELICIDADE NO PERCURSO INTELECTUAL DE

    SCHOPENHAUER

    Embora Schopenhauer seja um autor majoritariamente conhecido por sua epistemologia

    de vis kantiano e por ter desenvolvido uma metafsica da vontade focada no sofrimento e nas

    mazelas da existncia, um estudo mais detido revela, nos distintos estgios de seu processo de

    formao educativa, um interesse por aquilo que poderia ser chamado de uma filosofia

    prtica, uma filosofia com implicaes imediatas para a conduo da vida, enquanto sua

    produo filosfica propriamente dita expe, lado a lado, uma clara articulao entre

    preocupaes metafsicas e ticas, particularmente com a condio do eu e a moralidade,

    sabedoria e felicidade. Nesse primeiro captulo, nos propomos a introduzir o percurso da

    felicidade seguindo as contribuies que suas obras foram fornecendo para a anlise desse

    tema. Nossa pretenso ser mostrar, em grande medida, um panorama dos textos em que a

    questo da felicidade foi abordada de modo mais duradouro e da forma como Schopenhauer

    concebeu a tarefa da filosofia. Isso nos ajudar a tornar mais claros os pontos de difcil

    elucidao em sua abordagem.

    1.1 A felicidade e os anos de formao filosfico-intelectual de

    Schopenhauer

    A compreenso da relevncia da felicidade e do tema da sabedoria de vida na filosofia

    de Schopenhauer atestada nos diferentes estgios ou perodos de sua trajetria intelectual.

    Alguns desses estgios tm uma importncia mais perifrica e outros so centrais. Os

    elementos centrais encontram-se em suas obras, mas alguns poucos aspectos de sua vida

    podem ser elencados aqui para iniciar nossa abordagem do tema.

    Schopenhauer iniciou seus estudos em Hamburgo, onde pretendia seguir uma

    formao para o mundo dos negcios, na esteira da bem-sucedida carreira de seu pai Heinrich

    Schopenhauer, um rico e influente comerciante da liga hansetica. Isso fez com que sua

    formao fosse marcada pelo direcionamento para o esprito do comrcio que, como lembra

  • 18

    o seu bigrafo ingls William Wallace, no necessita de conceitos supremos, mas de

    princpios de mdio alcance, regras de sabedoria prtica, advindas do conhecimento do

    mundo (WALLACE, 1988, p. 41-42; traduo nossa). Conforme poderemos ver no terceiro e

    quarto captulo, Schopenhauer parece ter sido bastante influenciado pelo pragmatismo de sua

    formao inicial, pois conservou um vivo interesse para com o aperfeioamento terico de

    questes da vida prtica, como revelam seu gosto pela leitura e estudo de livros de mximas

    de autores como La Rouchefoucauld e Balthazar Gracian, dentre outros. Schopenhauer

    tambm recebeu, em seus anos de formao, uma educao que envolvia um contato estreito

    com os clssicos, num estilo de formao humanstica, o qual merece ser mencionado aqui

    como uma possvel influncia para um modelo de filosofia que reserva lugar para

    preocupaes com sabedoria, conduo da vida e felicidade, onde os autores discutidos so

    clssicos como Plato, Aristteles, Sneca e outros estoicos, alm de epicuristas, cnicos e

    renascentistas1.

    , contudo, a partir do momento em que Schopenhauer comea a moldar sua prpria

    filosofia que encontramos explicitados os primeiros elementos centrais que constituiro sua

    teoria da felicidade, onde essas influncias ocasionais perdero espao para sua filosofia da

    felicidade propriamente dita.

    A formao filosfica mais especializada de Schopenhauer se iniciou em Gttingen e

    se completou em Berlim, no auge das filosofias idealistas de Fichte e Hegel. Schopenhauer

    foi, como homem de sua poca, um autor que comps o quadro das filosofias absolutistas da

    Alemanha ps-Kant. J nesse perodo em Berlin, Schopenhauer manifesta a inteno de

    desenvolver um modelo de filosofia unitria que envolveria num s sistema a tica e a

    metafsica. Ele escreve em seu dirio: Sob minhas mos e muito mais dentro de meu esprito,

    est crescendo uma obra, uma filosofia que dever transformar a tica e a metafsica em uma

    nica disciplina (SCHOPENHAUER apud SAFRANSKI, 2011, p. 273). Esse propsito geral

    e ambicioso, que aparece em outros escritos, foi mais tenazmente perseguido naquela que veio

    a ser sua obra filosfica crucial: O Mundo como Vontade e Representao2 que o trabalho

    1Como explica Wallace, a educao nos clssicos gregos, latinos e renascentistas segue uma diretriz poltica da

    poca de formao de Schopenhauer, que, sob a orientao de estadistas como Wilhelm Von Humboldt,

    propunha um modelo grego como ideal de formao tanto moral, como religioso e intelectual (WALACE,

    1988, p. 56; traduo nossa). O prprio filsofo era defensor do modelo de educao que ele recebera, como

    mostra a sua observao em A arte de envelhecer que diz: Nos ginsios no se deveria ensinar nenhuma

    literatura alem antiga, como os Nibelungos e outros poetas da Idade Mdia etc. Embora essas questes sejam

    muito singulares e at valham a leitura, no contribuem para formar o gosto e roubam o tempo que cabe

    literatura clssica. Se vs, nobres alemes, colocardes no lugar dos clssicos gregos e romanos as pobres e

    antigas rimas alems, estareis educando ningum mais que mandries (SCHOPENHAUER, 2012b, p. 116). 2 Obras como a tese de 1813 Da qudrupla raiz do princpio de razo suficiente, so emblemticas em relao ao fato de que a tica o leitmotiv da filosofia de Schopenhauer, pois, mesmo quando se ocupa com questes

  • 19

    mais importante produzido por Schopenhauer nesse perodo e, segundo ele, de toda sua vida3.

    O livro foi concludo em 1818 e foi publicado somente em 1819. Na obra magna de

    Schopenhauer, geralmente aludida simplesmente como O Mundo, j est encerrado o que h

    de mais essencial da cosmologia e antropologia metafsica schopenhauerianas, cujas

    concluses colocam a felicidade humana em bases muito restritas, as quais tero impacto para

    a conceituao da felicidade em obras posteriores, especialmente em Parerga e

    Paralipomena, a ltima obra publicada pelo filsofo.

    As obras posteriores a O Mundo, embora considerveis em nmero, foram vistas por

    ele basicamente como acrscimos ao que foi apresentado em 1819, de modo que, mesmo em

    textos tardios, especialmente os textos onde a felicidade, prudncia e sabedoria prtica so

    temas centrais, as teses defendidas em O Mundo constituem um pano de fundo irrevogvel.

    Alm do propsito de integrar tica e metafsica, consta desse perodo intelectual um fato

    marcante para nossos interesses. Os anos de 1813 e 1814 que marcam as ltimas temporadas

    de Schopenhauer em Weimar e a sua transferncia para Dresden foi o perodo em que ele

    entrou em contato com a filosofia oriental por meio de Friedrich Majer4, fato, que, como

    explica Volpi, marca o incio de uma intensa aproximao de nosso autor com a sabedoria

    oriental e que contribuiria para uma concepo de filosofia no apenas como saber terico,

    mas tambm como forma de vida e exerccio espiritual; no apenas como puro conhecimento,

    mas tambm como ensinamento sapiencial e sabedoria prtica (VOLPI, 2001, p. 10). De

    fato, uma viso de mundo e uma concepo de filosofia como um saber plenamente

    identificado com a vivncia e o agir individual como as que so descritos por Schopenhauer

    talvez fosse algo mais prximo da proposta do pensamento oriental, ou da filosofia grega

    antiga e dos clssicos latinos com os quais ele tinha tanta intimidade , do que a filosofia

    moral de seus contemporneos. Isso parece se confirmar no seu interesse em incorporar a

    sabedoria dos antigos na proposta da arte de ser feliz, como uma proposta tica no somente

    epistemolgicas ou estticas, ele sempre conduz suas reflexes por um vis tico ou de uma forma que o

    envolva. As preocupaes com o carter e a motivao, que tantas implicaes produzem em relao

    moralidade da ao, como em relao felicidade, so muito presentes nesse texto. Um outro exemplo desse fato

    a obra Da vontade na natureza [Ueber den Willen in der Natur], escrita bem mais tarde, em 1836. Naquela

    ocasio, ele analisou os avanos nos diversos ramos da cincia da poca em um esforo de confirmao das suas

    teses filosfico-metafsicas, enquanto tambm encerra suas reflexes analisando as implicaes ticas

    relacionadas s questes analisadas. 3 Em uma carta enviada a Goethe, juntamente com o primeiro exemplar de O mundo como vontade e

    representao, Schopenhauer escreve: Esta obra no bem o fruto de minha estada em Dresden. , de certo

    modo, o produto de minha vida inteira, pois creio que no produzirei coisa melhor ou mais consistente para o

    futuro (SCHOPENHAUER apud WEISSMANN, 1980, p. 73). 4 Cf. SAFRANSKI, Schopenhauer e os anos mais selvagens de filosofia, 2011, p. 368.

  • 20

    voltada para a moralidade da conduta (a ao boa ou virtuosa), mas tambm considerando as

    condies existenciais do indivduo humano e voltada para o bem-viver. Encontramos

    evidncias desses interesses nos escritos desse perodo com base em anotaes de seus

    cadernos. Uma das passagens mais famosas nesse sentido aquela onde ele anota: O

    princpio de Aristteles de seguir em todas as coisas a via mediana se adapta mal ao princpio

    moral para o qual o formulou: mas poderia ser facilmente a melhor regra geral de sabedoria, o

    melhor caminho para ser feliz. (SCHOPENHAUER apud VOLPI, 2001, p. 11). Como ele

    sustenta aqui, o meio-termo aristotlico pode no ser adequado para entender a virtude, mas

    suficientemente bom para a conduo prudencial da vida, para uma vida da sabedoria e

    felicidade. Ou seja, notamos j nessa altura da trajetria intelectual de Schopenhauer, onde

    temas gnosiolgicos e metafsicos parecem dominar a cena, a preocupao em reunir

    anotaes para a construo de uma cincia que ele chamou de Eudemonismo ou

    Eudemonologia (Eudaimonologie). O termo eudemonologia, que provavelmente foi

    cunhado por ele, foi traduzido por Volpi como equivalente a doutrina da felicidade5, a qual

    o filsofo italiano publica em nossa poca com o ttulo de A arte de ser feliz (Die Kunst,

    glcklich zu sein)6. Por essa expresso, d-se a entender claramente que Schopenhauer no

    considera avesso aos seus interesses filosficos mais genunos a constituio da filosofia

    como um sistema de conhecimento capaz de integrar preocupaes metafsicas com interesses

    prticos na forma de uma cincia ou arte de viver que ele, ento, nomeia de Eudemonologia.

    Por meio dessa observao, torna-se claro tambm que ele distingue entre a anlise do agir

    humano em suas relaes intersubjetivas (enquanto busca interpret-lo e relacion-lo ao

    significado moral do mundo o mbito denominado por ele de a moral em sentido mais

    estrito [die Moral im engern Sinne] (SCHOPENHAUER, 2014b, p. 317)), e o estudo do agir

    enquanto este visa o bem-estar individual por meio da sabedoria de vida, o qual estaria

    5 Cf. VOLPI, Franco. Apresentao. In: SCHOPENHAUER, Artur. A arte de ser feliz. So Paulo: Martins

    Fontes, 2001c, p. 16. Convm esclarecer aqui o uso que Schopenhauer faz de termos derivados do termo grego

    para felicidade eudaimonia. O termo eudemonologia (Eudemonologie) j foi explicado acima, e se torna claro

    pela traduo de Volpi como teoria da felicidade, ou seja, uma doutrina que examina as condies e

    possibilidade da vida feliz. O termo Eudemonismo, por sua vez, utilizado por ele em dois sentidos: o primeiro

    deles praticamente como sinnimo eu eudemonologia, como explica Fonseca na nota explicativa de O mundo:

    (Eudemonstica) refere-se palavra grega eudaimonia, que significa felicidade, prosperidade, boa fortuna.

    Como doutrina, o Eudemonismo se baseia na opinio de que a felicidade o objetivo da vida humana

    (FONSECA, 2014a, p. 544). O segundo sentido utilizado por Schopenhauer para se referir s doutrinas ticas

    como ocorre em geral com a filosofia moral antiga que, segundo ele, identificam virtude com felicidade (Cf,

    Schopenhauer, 2005, p.147), conforme explicaremos tambm no primeiro tpico do terceiro captulo. 6 Esse texto uma das mais recentes publicaes dos escritos de Schopenhauer publicados postumamente, o qual

    resulta da reconstituio da eudemonologia segundo o plano original traado pelo pensador alemo, a partir dos

    escritos dispersos entre o seu esplio. Trabalho realizado pelo filsofo italiano Franco Volpi, publicado na

    Alemanha no ano 2000, e no Brasil no ano seguinte.

  • 21

    inserido assim em um sentido mais amplo de sua tica. Voltaremos a abordar esse ponto no

    captulo III.

    Para o entendimento da teoria da felicidade, a obra fundamental de Schopenhauer de

    1819 (O Mundo) relevante, pois apresenta o ponto de partida das dificuldades enfrentadas

    para a elaborao de uma teoria da felicidade, tal como ele confessa no incio do ensaio

    Aforismos para a sabedoria da vida. Vejamos o ncleo central dessas dificuldades no tpico a

    seguir.

    1.2 O Mundo como vontade e representao e a natureza da felicidade

    O Mundo caracterizado pela tese geral de que a realidade essencialmente

    governada por uma vontade cega que, no plano do comportamento humano observvel, se

    traduz na forma do egosmo e da dor que estamos necessariamente fadados a experimentar.

    Essa tese no implica a negao da felicidade ou estados de satisfao (num sentido

    fenomnico), mas implica que os estados positivos, de felicidade, sejam apenas estados

    empricos de suspenso temporria da dor; so supresses da dor, mas no condies

    permanentes ou prolongadas de satisfao. Dessa forma, a existncia de experincias positivas

    no evidncia da falsidade da tese metafsico-pessimista que O Mundo pretende provar. Por

    outro lado, essa caracterizao preliminar e restritiva da felicidade no deve nos levar ao

    extremo de supor que haja uma interdio filosfica injustificada, por assim dizer. Ela deriva

    da concepo de filosofia de Schopenhauer, uma concepo que foi constituda a partir de

    uma simultnea incorporao e rejeio de aspectos importantes da filosofia de Kant. Na

    filosofia de Schopenhauer, o homem um ser governado por paixes e apetites, no mais das

    vezes, apetites cegos como impulsos de sobrevivncia e persistncia na vida. O mundo e a

    existncia no consistem num espao frio, aberto a amplas racionalizaes. um espao de

    conflito e luta incessante (e de dor e sentimento, portanto). E essa perspectiva se coloca em

    oposio direta ao formalismo que Schopenhauer reconhecia na filosofia transcendental

    kantiana, sua principal influncia depois de Plato. Tomando a vontade metafsica como

    fundamento do mundo, Schopenhauer faz do sofrimento universal e da dor da existncia o

    ponto de partida da filosofia. Ele queria uma filosofia que pudesse expressar o homem inteiro,

  • 22

    com seus pensamentos, mas tambm com o papel preponderante do corao, do sentimento na

    vida. Vale citar aqui duas passagens centrais que expem essa concepo:

    Assim como a arte e a poesia, ela [a filosofia] tem que ter a sua fonte na apreenso

    intuitiva do mundo. E embora a cabea deva ficar em cima, no se deve proceder na

    filosofia com tanto sangue frio, de tal modo que, no final o homem todo, com o

    corao e a cabea, no viesse ao e no fosse inteiramente abalado. Filosofia no

    nenhum exemplo de lgebra. Por isso, disse Vauvenargues: les grandes penses

    viennent du coeur (SCHOPENHAUER, 2010, p. 36).

    A filosofia nunca pode fazer mais nada alm de interpretar e explicar o que tem

    mo, ou seja, converter em um conhecimento claro, racional e abstrato a essncia do

    mundo, aquilo que in concreto, isto , como sentimento, expressa-se intuitivamente

    a cada um de ns (SCHOPENHAUER apud SAFRANSKI, 2011, p. 398).

    A filosofia kantiana no oferecia esse tipo de alternativa de apreenso do concreto e do

    sentimento do mundo. E embora Schopenhauer tenha avanado na direo da introduo de

    elementos impulsivos do mundo humano, nomeadamente a vontade metafsica, o preo a ser

    pago por ele foi restringir o espao para uma filosofia afirmativa ou positiva, no sentido de

    admitir que nossa existncia pudesse ser compreendida como uma fonte de felicidade

    permanente. Seu retrato mais sombrio, no entanto, reserva um espao para a ideia de

    felicidade. Pretendemos nos acercar dessa idia aos poucos e sua explicitao completa

    envolver todo esse estudo. De todo modo, o primeiro passo nessa direo pode ser dado

    indicando o lugar do O Mundo na teoria da felicidade. Comecemos pela pretenso

    schopenhauriana de avanar para alm do formalismo, na direo de uma filosofia de carter

    mais concreto e existencial.

    A nfase na vontade irracional, operada em O Mundo, faz com que o eu filosfico

    em jogo na filosofia schopenhaueriana no seja conscincia pura, o ponto mais alto a que

    pode ser elevado todo o uso do entendimento, como disse Kant. Na filosofia de Kant, o eu

    emprico um complemento, mas de pouco valor para o rigor do pensamento filosfico.

    Como assevera Safranski, quando empreendida a crtica da razo, esses fatos

    habitualmente no so tomados em considerao: o prazer, a intensidade, a alegria de viver

    que estiveram associados ao descobrimento de um Eu capaz de compor e instalar o mundo

    (SAFRANSKI, 2011, p. 209). Schopenhauer pretende desenvolver em O Mundo uma

    valorizao do vivido, da experincia sentida, do corao, o que o leva a explorar com mais

    afinco o que estaria para alm dos limites de um eu que procede ao estudo crtico da

  • 23

    filosofia representacional: a coisa em si. Ele pretende alcanar esse resultado atravs da

    retomada da noo de coisa em si kantiana concebida como vontade e que permitir preservar

    o impulso humano e livrar a filosofia da ausncia de vida que ele reconhecia como o grande

    problema da magistral obra filosfica de Kant. Se a vida vontade, vontade afirmativa, ento

    uma filosofia que se estabelece atravs do estudo das condies da experincia e onde o eu

    aparece como o registro inexorvel da fundao do mundo, por sua atividade constitutiva e

    organizativa via faculdade da imaginao, esse mesmo eu lgico puro pode oferecer uma

    estruturao lgico-cognitiva da realidade, mas no pode expressar o aprisionamento

    promovido pela vontade (tornando-nos refns de desejos contnuos e insaciveis) e os

    domnios mais elevados da experincia humana onde essa vontade onipotente no impera: a

    redeno ou absolvio da vida. Para Schopenhauer, o reconhecimento da vontade vivencial

    abre caminho para um novo tipo de verdade e de filosofia, no prevista no sistema crtico

    kantiano. A pretenso da filosofia schopenhaueriana foi buscar uma verdade filosfica que

    no era tanto um corpo de julgamentos adequados realidade, porm uma maneira de

    conduzir a prpria existncia. Schopenhauer concebeu ento a filosofia como uma inspirao

    capaz de trazer salvao7. Esse mesmo tema da filosofia como um caminho para alm do

    aprisionamento e desesperana que ele via apresentados por Kant, aparece como uma ideia

    anterior a publicao de O mundo, ou seja, a noo de conscincia melhor. A salvao

    buscada e sintetizada na expresso conscincia melhor permite explicar o tipo de

    reestruturao do campo filosfico que Schopenhauer pretendeu realizar. Safranski (2011) o

    descreve nos seguintes termos:

    Um estado de arrebatamento: abandono do espao, abandono do tempo, abandono

    do eu, submerso total em uma viso. um estado de paz e o que se contempla o

    que nos deixa em paz. Mas o mundo somente pode ser contemplado desta maneira

    quando no necessrio defender dentro dele os interesses da prpria

    autoafirmao, quando, ao menos por um instante, nos tornamos completamente

    livres de objetivos, de pesar utilidades e de querer exercitar qualquer domnio.

    Durante esses instantes, ns ficamos livres dos indignos impulsos da vontade,

    festejamos o Sabbath, isto , o descanso dos trabalhos forados da vontade e a

    roda de xion (uma roda em chamas que gira eternamente) se detm; por breves

    instantes gozamos a beatitude da contemplao livre da vontade (SAFRANSKI,

    2011, p. 397).

    7 Schopenhauer descobre, num perodo posterior, essa inspirao existencial em Kant, especialmente na sua

    abordagem das antinomias, onde o prprio sujeito aparece como fenmeno e noumenon ao mesmo tempo.

    Deixaremos esse ponto inabordado aqui.

  • 24

    Este o instante da verdadeira atividade metafsica como algo vivenciado; no um

    trabalho conceitual, mas um abandono, uma sesso, uma quebra de toda a atividade. Onde

    antes havia um formalismo do eu isolado em si mesmo e estruturando a experincia,

    Schopenhauer v um movimento quase sempre incessante da Vontade, na luta interior da

    vontade, e a sua filosofia a arte destinada a apreender os movimentos, ou de um abraar

    desse mpeto, juntamente com seus contentamentos e descontentamentos, ou cessao da

    experincia, seu xtase e fuga do mar onduloso da vontade, um sentido de experincia

    libertadora. em vista dessa dimenso vivencial da prpria filosofia que a felicidade ser

    tematizada numa variedade de sentidos que apontam, no seu conjunto, para formas de

    ultrapassamento do limitado e finito para uma superao que no incondicionada, mas

    propiciada magicamente pela prpria Vontade. Se o homem enquanto vontade vive em

    sofrimento e sob o peso de seus limites, preciso lembrar que as barreiras da vontade tambm

    podem ser humanamente rompidas. As primeiras lies de Schopenhauer sobre a felicidade

    so, nesse sentido, chamar ateno para uma gradao que envolve a experincia de satisfao

    terrena do preenchimento do querer e os seus limites estreitos, a libertao temporria da

    fruio do belo e, por fim, o arrebatamento e xtase bem-aventurado do aquietar-se

    prolongado da Vontade, conforme examinaremos no captulo II. Assim, ainda que o modelo

    filosfico inaugurado em O Mundo oferea dificuldades e uma base restrita para a concepo

    da felicidade, que aparecer doravante definitivamente marcada pela negatividade, enquanto a

    dor representaria a positividade (a felicidade a negao da dor), Schopenhauer no deixa de

    retratar aspectos relevantes do conceito, que, posteriormente, sero ajustados com uma teoria

    pragmtica que operar no mbito indiferente das concluses negativas presentes no domnio

    metafsico.

    1.3 Agir moral e felicidade no ensaio Sobre o Fundamento da Moral

    Depois de O Mundo, os desdobramentos mais relevantes para o entendimento da

    felicidade em Schopenhauer esto nos seus escritos sobre a moral em sentido mais estrito8 e

    8 Segundo a indicao de Schopenhauer (2014b, p. 317), esse tema foi tratado na obra Os dois problemas

    fundamentais da tica, que, por sua vez, compe-se de dois textos que foram escritos isoladamente. O primeiro

    deles foi a dissertao Da liberdade da vontade [Ueber die freiheit des Willens], escrita para um concurso

    promovido pela Sociedade Cientfica de Drontheim, na Noruega; e o segundo o ensaio Sobre o fundamento da

    moral [Ueber das Fundament der Moral] na ocasio do concurso promovida pela Academia Real Dinamarquesa

  • 25

    nos escritos eudemonolgicos. Comecemos pelos primeiros, mais especificamente pelo ensaio

    Sobre o Fundamento da Moral. A presena do tema da felicidade nesta obra se d em relao

    a alguns aspectos fundamentais da reflexo sobre moralidade que so, em primeiro lugar, a

    maneira peculiar como Schopenhauer encara a discusso tica, em que os afetos humanos

    assumem o papel preponderante nas aes e no seu valor moral; em segundo lugar, na

    discusso do estatuto da felicidade nas relaes intersubjetivas e, em terceiro lugar, na anlise

    da excelncia moral como um elemento importante para a eudemonologia e da sua relevncia

    para a obteno da felicidade individual.

    Esse ltimo aspecto tem passado despercebido na anlise da eudemonologia porque

    ele mencionado uma nica vez nos Aforismos9. No nos deteremos sobre ele agora, pois

    trataremos dessa questo no captulo III, onde apresentaremos a teoria da felicidade

    schopenhaueriana, mesmo porque a base para compreenso do papel da excelncia moral em

    propiciar felicidade ser fornecida em parte pela discusso que apresentaremos a seguir, e, em

    parte, pela exposio metafsica do captulo II. Daremos seguimento aqui a presena do tema

    da felicidade no ensaio Sobre o Fundamento da Moral a partir dos dois primeiros aspectos

    mencionados acima. A anlise dos mesmos mostrar que, nesta obra, se acentua ainda mais a

    tentativa de afastar a filosofia e o comportamento moral em particular de uma tendncia

    abstrata e puramente terica. Contra as tendncias filosficas da poca, Schopenhauer

    reconhece, como veremos, o fundamento da moralidade num impulso humano fundamental.

    A orientao vivencial prpria do mundo como vontade faz a tica de Schopenhauer

    presente em O Mundo, mas, mais especificamente no texto Sobre o Fundamento da Moral,

    assumir configuraes menos ou nada deontolgica, menos interessada em deveres e

    obrigaes, dependentes de imperativos categricos ou valores absolutos. A tica de

    Schopenhauer foi construda sobre a base de um mundo cru, de uma humanidade despida,

    sem nenhum tipo de regulao divina e tlos exterior, a no ser a prpria vontade que se

    autoconstitui afirmativamente e egoisticamente. Como escreveram Gagnebin e Giacia:

    Por causa disso, para evitar o dio e o desprezo pelo homem, um princpio moral

    realista e autntico no deve fundar-se na dignidade, mas nos sofrimentos humanos,

    em suas penas, angstias, carncias, mazelas, tal como, alis, o faz o amor gape dos

    de Cincias de Copenhague. No discutiremos a primeira dissertao diretamente, como o faremos em relao

    segunda, mas somente na medida em que as questes relacionadas a felicidade presentes nela apaream no

    decorrer dos temas abordados. 9 Cf. SCHOPENHAUER, Arthur. Aforismos para sabedoria de vida. Trad. Jair Barbosa. So Paulo: Martins

    Fontes, 2006, p. 48.

  • 26

    evangelhos. Nessas condies, a tica de Schopenhauer consiste numa tentativa de

    resgatar a validade da conscincia moral num regime de imanncia, privado do

    horizonte do sagrado e do otimismo das filosofias da histria: a moralidade continua

    a ser pensada por ele como o aguilho da censura, do remorso e da angstia da

    conscincia, como sentimentos voltados contra o ser (esse) de todos e cada um de

    ns e, de modo algum, contra nosso agir (GAGNEBIN; GIACOIA JUNIOR, 2014,

    p. 367).

    A moralidade para ele a descoberta de nosso ser prprio, a vontade e sofrimento, que

    se manifesta em nossas volies e aes. Compaixo (mitleid) o nome do sentimento que

    revela a face humana e moral da Vontade. A compaixo a fonte da moralidade, pois ela

    torna-nos capazes de ver no outro nosso prprio sofrimento, suprimindo o egosmo e o

    isolamento do eu, colocando-nos dentro do domnio moral. Nesse ponto, Schopenhauer

    concorda com Kant. Ele admitia o postulado kantiano de que a moralidade incompatvel

    com qualquer forma de eudemonismo, ou seja, incompatvel com qualquer ao motivada

    pela satisfao de algum prazer ou desejo. Por outro lado, contra Kant, ele denunciou aquilo

    que chamava das moralidades fundadas no enfadonho dever. Schopenhauer pretendeu

    defender o estabelecimento de uma moral fundamentada na experincia da vida e argumenta

    que a moralidade baseia-se no sentimento de compaixo e no num princpio racional. Ele

    expe, de modo um tanto jocoso, esse ponto dizendo:

    Pois a moral tem a ver com a ao efetiva do ser humano e no com castelos de

    cartas apriorsticas, de cujos resultados nenhum homem faria caso em meio ao

    mpeto da vida e cuja ao, por isso mesmo, seria to eficaz contra a tempestade das

    paixes quanto a de uma injeo para um incndio (SCHOPENHAUER, 2001b, p.

    52).

    Assim, embora Schopenhauer aceite a posio kantiana segundo a qual a moralidade

    deve ser distinguida do autointeresse no bem-estar ou felicidade e negue que a moralidade

    seja um meio para alcanar a prpria felicidade, de modo que uma ao moral se e somente

    se for inteiramente separada de motivos auto interessados, Schopenhauer admite a existncia

    de uma ao moral baseada num princpio no-racional, um impulso, emoo ou sentimento

    de compaixo pelo outro10. Como ele diz, para o filsofo, resta apenas para a descoberta do

    10Quem nos diz que h leis s quais nossas aes devem submeter-se? Quem vos diz que deve acontecer o que nunca acontece? O que vos d o direito de antecip-lo e logo impor uma tica na forma legislativo-imperativa

    como a nica para ns possvel? Digo, contrapondo-me a Kant, que em geral tanto o tico quanto o filsofo tem

    de contentar-se com a explicao e com o esclarecimento do dado, portanto com o que que acontece realmente,

    para chegarem ao seu entendimento, e que eles a tm muito que fazer, muito mais do que foi feito desde h sculos at hoje (SCHOPENHAUER, 2001b, p.23).

  • 27

    fundamento da tica o caminho emprico, a saber, o de investigar se h em geral aes s

    quais temos de atribuir autntico valor moral e, alm disso, indicar o impulso prprio que

    move o homem a aes deste tipo. (SCHOPENHAUER, 2001b, p.119). Esse fundamento

    no ser a razo pura e nenhum processo abstrato, nem Deus, mas um processo imediato e

    intuitivo11.

    O processo intuitivo fundante da ao moral a compaixo, um estado de

    identificao altrusta com o outro. Por conseguinte, no que diz respeito a tica, ela ter que

    mostrar como possvel, dada a negao de alternativas racionalistas, que o egosmo

    instaurado pela vontade seja superado. O problema central de sua doutrina encontrar um

    estado que nos coloque em contato com o outro e que seja inteiramente altrusta. O motivo

    ltimo de fazer ou no fazer uma coisa exclusiva e precisamente centrado em aliviar o

    sofrimento do outro (SCHOPENHAUER, 2001a, p. 143). Vejamos o raciocnio que

    conduziu a essa concluso.

    Enquanto coisas em si, tudo vontade cega, irracional, buscando afirmao. Assim, a

    individuao ou distino entre pessoas fruto de nossa viso ou apreenso do mundo como

    representao. Como coisas em si, seres humanos no so indivduos, mas apenas parte de

    um impulso ou vontade que quer afirmar-se cada vez mais. A nossa natureza como vontade

    permanece oculta, mas temos conhecimento de nossa essncia volitiva pelos efeitos: o

    egosmo, o pessimismo e o sofrimento enfatizado por Schopenhauer. A lgica metafsica da

    realidade uma lgica cruel e triste. Como vontade, o homem no tem nenhuma motivao

    para agir de modo altrusta, para evitar o sofrimento e o dano. Embora todos vivam em

    circunstncias dramticas, no h espao, confiando nos mecanismos da vontade, para

    anulao do sofrimento. Schopenhauer reconhece, no entanto, impulsos em nossa natureza

    oriundos da vontade, que nos colocam como que de fora do domnio dessa fora. Um desses

    impulsos que se assemelham a um estado mental de abertura ao sofrimento mtuo a

    compaixo. A compaixo permite reconhecer a condio de padecimento universal, de

    sofrimento generalizado dos homens. Um corao compassivo, ao reconhecer que o outro

    tambm sofre e que todos so vontade, age no benefcio do outro e gera a moralidade. A

    moralidade , assim, uma forma de transcendncia da vontade possibilitada por uma atitude

    compassiva diante dos outros; enquanto forma de transcendncia, ela promove o altrusmo.

    11A autntica bondade de disposio, a virtude desinteressada e a pura nobreza no se originam do conhecimento abstrato, embora sem dvida se originem do conhecimento, a saber, de um conhecimento imediato

    e intuitivo que no pode ser adquirido ou eliminado via raciocnios (SCHOPENHAUER, 2001b. p. 470).

  • 28

    Ao colocar em cena a compaixo, Schopenhauer esboa uma posio metafsico-moral

    que resulta numa recomendao de recolhimento e compaixo para com aqueles que, como

    ns prprios, padecem do sofrimento. Partindo da tica da compaixo presente no ensaio

    Sobre o Fundamento da Moral de Schopenhauer, esta no possui um sentido prtico de

    conduo ao bem-viver ou felicidade proporcionada pelo preenchimento do querer, mas, na

    medida em que aponta caminhos para a fuga da vontade e para experincias de

    compartilhamento e ateno amorosa aos outros, abre caminho para uma concepo da ao

    moral no orientada por mximas, mas focada no sofrimento humano universal e nas nossas

    alternativas de superao do mesmo: transparece atravs da compaixo que a significao

    tica de nossa conduta e a negao da vontade de vida esto fortemente entrelaadas; ambas

    se originam do mesmo tipo de conhecimento, de onde brota toda bondade, amor, virtude e

    nobreza de carter. A tica da compaixo no prescreve ou ensina como tomar decises, mas

    explicita os pressupostos de toda a moralidade. O homem compassivo, que rompeu a cadeia

    do egosmo, est muito prximo de uma condio realmente almejvel, uma vez que ele

    reconhece em todos os seres o prprio ntimo, o seu verdadeiro si-mesmo, e desse

    modo tem de considerar tambm os sofrimentos infindos de todos os viventes como

    se fossem seus: assim, toma para si mesmo as dores de todo mundo; nenhum

    sofrimento lhe estranho [...]. V, para onde olha, a humanidade e os animais

    sofredores. V um mundo que desaparece. E tudo isso lhe agora to prximo

    quanto para o egosta a prpria pessoa (SCHOPENHAUER, 2005, p. 481).

    A unificao entre o eu individual e os outros seres (aqueles passveis de sofrimento,

    os animais e os seres humanos) o instante criador da compaixo. Esse momento de

    reconhecimento metafsico depende da suspenso do princpio de individuao. Janaway

    descreve esse momento afirmando que a vontade encena uma rebelio final contra a sua

    prpria funo essencial e cancela a sua prpria capacidade de agir (JANAWAY, 2003,

    p.09). Alm disso, a compaixo no envolve o processo de racionalizao, isto , ela

    essencialmente preconceitual e intuitiva: O que pode mover a bons atos, a obras de amor,

    sempre e to-somente o CONHECIMENTO DO SOFRIMENTO ALHEIO, compreensvel

    imediatamente a partir do prprio sofrimento e posto no mesmo patamar deste

    (SCHOPENHAUER, 2005, p. 477).

    Assumindo a base pessimista em O Mundo, Schopenhauer sustenta que uma ao

    moral quando a ltima razo para uma ao ou omisso est direta e exclusivamente

    vinculada ao bem-estar ou mal-estar de alguma outra pessoa que dela participa passivamente.

    (SCHOPENHAUER, 2001b, p. 134). Deste modo, a ao moral s se constituiu quando o

  • 29

    agente toma para si o bem-estar ou alvio do sofrimento de outra pessoa como sendo

    diretamente o seu prprio motivo (SCHOPENHAUER, 2001b, p. 133). Como afirma

    Schopenhauer: aqui, portanto, nesta participao imediata que no se apoia em nenhuma

    argumentao, nem dela precisa, que est a nica clara origem da caridade.

    (SCHOPENHAUER, 2001b, p.160). Essa concluso mostra que a compaixo um estado

    psicolgico imediato, intuitivo, mas tambm intencionalmente direcionado para o alvio do

    sofrimento e que pressupe, ao mesmo tempo, que o agente moral seja capaz de se identificar,

    numa ligao de proximidade, com o outro.

    O texto Sobre o Fundamento da Moral, embora no se proponha a analizar a noo

    felicidade no sentido mais comum desse conceito ou seja, a felicidade enquanto

    preenchimento do querer ilustra um projeto ampliado de reflexo filosfica que foi

    desenvolvido por Schopenhauer. Ele se ajusta, nesse sentido, inteiramente com os

    pressupostos de O Mundo e revela uma proposta rigorosa de entender nossa condio moral

    atravs de mecanismos experienciais efetivos como a compaixo, que representa um estado

    diferente daquele de afirmao cego do querer. Tomamos esse direcionamento como essencial

    para fornecer a base da teorizao da felicidade, uma vez que amplia o entendimento de nossa

    natureza, trazendo as emoes para dentro da tica; como veremos; essa perspectiva tambm

    ser encontrada na obra que mais trouxe fama Schopenhauer: os Parerga e Paralipomena;

    sobre o destrinchar dessa questo que nos debruaremos no prximo tpico.

    1.4 A felicidade nos Escritos Posteriores: os Parerga e Paralipomena

    As consideraes eudemonolgicas so desenvolvidas em sua forma definitiva nos

    Parerga e Paralipomena (ornatos e suplementos) que so coletneas de textos filosficos

    sobre diversos temas publicados em 1851, que, como explica Schopenhauer, so acrscimos

    exposio sistemtica da sua filosofia 12. Esses textos, entretanto, no se encontram to

    rigidamente presos lgica e ordem de exposio do seu sistema metafsico, como esto os

    temas tradados no tomo I e tomo II (Complementos) de O mundo. Assim, encontramos nos

    textos dos Parerga um espao aberto e a ocasio para o desenvolvimento da discusso

    12 Cf. SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e como representao, Tomo I. Traduo Jair

    Barbosa. So Paulo: Unesp, 2005, p. 39.

  • 30

    substantiva sobre o agir prudencial, sabedoria de vida e sobre os limites e possibilidades da

    felicidade enquanto afirmao da Vontade13, que j haviam sido apresentados de forma

    introdutria respectivamente nos pargrafos 16 do tomo I e no pargrafo correspondente do

    tomo II, assim como nos pargrafos 57 e 58 do tomo I de O mundo. Nos Parerga, portanto,

    encontramos finalmente o desenvolvimento mais especfico da reflexo sobre o aspecto

    prtico da felicidade. Essas questes aparecem em parte nos captulos 26 e 28 dos Parerga,

    correspondentes discusso Sobre a educao e as Consideraes psicolgicas que, como o

    ttulo indica, apresenta um exame emprico de questes como o carter, a conduta e os

    sentimentos que encerram desdobramentos fundamentais para a noo de felicidade em seu

    aspecto pragmtico. Todavia, as discusses referentes parte prtica da tica de

    Schopenhauer assume um formato definivo nos Parerga e Paralipomena, particularmente nos

    Aforismos para a sabedoria de vida, onde o ncleo das preocupaes no ser mais voltado

    para as configuraes fundamentais da moralidade, seja em sentido metafsico ou emprico. A

    filosofia tardia de Schopenhauer aposta na ao prtica propriamente dita, na sabedoria da

    ao. Essa dimenso de direcionamento da ao, de saber como viver e como agir, permanece

    em suspenso tanto em O mundo como vontade e representao quanto no ensaio Sobre o

    Fundamento da Moral. Como ele mesmo diz,

    A ltima parte de nossa considerao proclama a si mesma como a mais sria de

    todas, pois concerne s aes do homem, objeto que afeta de maneira imediata cada

    um de ns e a ningum pode ser algo alheio ou indiferente. Nesse sentido, a parte

    seguinte da nossa considerao, de acordo com o modo comum de as pessoas se

    expressarem, poderia chamar-se filosofia prtica, em contraste com a parte terica

    tratada at agora. Na minha opinio, contudo, toda filosofia sempre terica, j que

    lhe sempre essencial manter uma atitude puramente contemplativa, no importa o

    quo prximo seja o objeto de investigao, e sempre inquirir, em vez de prescrever

    regras. Tornar-se prtica, conduzir a ao, moldar o carter: eis a pretenses antigas

    que uma inteleco mais perspicaz far por fim a filosofia abandon-las

    (SCHOPENHAUER, 2005, p. 353).

    Uma das coisas que Schopenhauer pretende deixar claro com essa afirmao que, em

    se tratando da tica em sentido mais estrito, a possibilidade de uma interveno prtica mais

    remota, uma vez que para esse fim se exigiria uma modificao no carter, o que, segundo

    ele, seria algo absolutamente impossvel. Entretanto, em relao instruo para que se possa

    13 Como observa Spierling, na eudemonologia admitida expressamente a perspectiva da afirmao da vontade

    de viver (SPIERLING, 2010, p. 168; traduo nossa). Da mesma forma o faz Chevitarese que afirma que a

    proposta eudemonolgica de Schopenhauer destaca a possibilidade de uma afirmao consciente da vontade de

    vida, uma proposta de aprender a lidar com aquilo que se , sugerindo, portanto, do ponto de vista emprico, o

    exerccio da liberdade de ser o que se . (CHEVITARESE, 2012, p. 167; grifos do autor).

  • 31

    conquistar a felicidade possvel, a margem para o emprego de certo grau de pragmatismo

    maior, pois haveria, segundo o filsofo, a possibilidade de ajustar a conduta, seja por meio

    autoconhecimento, seja pelo nosso conhecimento sobre as coisas e sobre o mundo. assim

    que, segundo ele, o nosso saber adquirido com a vivncia segue retificando-se cada vez mais

    no curso da vida, embora em graus muito diferentes (SCHOPENHAUER, 2005, p. 381).

    Alm disso, a eudemonologia no exige que o carter seja modificado, mas um

    autoconhecimento, uma vez que quanto mais adequamos nossa conduta ao nosso carter

    inato, mais satisfeitos e felizes estaremos. , portanto, nesse espao aberto ao pragmatismo

    que atua na teoria schopenhaueriana da felicidade.

    Os Aforismos conservam esse direcionamento prtico inclusive na sua forma. Como

    observa Abbagnano, a exemplo do que se v na arte mdica antiga em que os preceitos so

    apresentados em forma de aforismos, Schopenhauer conserva na palavra (aforismos) o seu

    significado de mxima ou regra para dirigir a atividade prtica do homem (ABBAGNANO,

    2007, p. 21).

    O livro dos Aforismos est constitudo por seis captulos, com uma introduo, uma

    explicao da diviso fundamental, trs captulos sobre os bens e um capitulo (V) sobre

    mximas e preceitos. Durante todo o livro dedicado aos bens necessrios felicidade,

    Schopenhauer desenvolver sua teoria da felicidade abordando trs partes: 1) o que algum :

    portanto, a personalidade no sentido mais amplo. Nessa categoria, incluem-se a sade, a fora,

    a beleza, o temperamento, o carter moral, a inteligncia e o cultivo. 2) O que algum tem:

    portanto, propriedade e posse em qualquer sentido. 3) O que algum representa: por essa

    expresso, como se sabe, compreende-se o que algum na representao de outros, portanto,

    propriamente como vem a ser representado por eles. Consiste, por conseguinte, nas opinies

    deles a seu respeito, e divide-se em honra, posio e glria. O captulo V, de Exortaes e

    mximas, dividido em mximas gerais e em mximas que concernem nossa conduta em

    relao a ns mesmos, aos outros e, por fim, ao curso do mundo e o destino

    (SCHOPENHAUER, 2006, p. 139). De fato, Schopenhauer compreende que a forma de

    mximas curtas, facilmente assimilveis e abordando assuntos diversos, corresponde mais

    adequadamente a sua finalidade de conduzir o indivduo felicidade diante das adversidades

    da vida do que uma composio prosaica como aquela que predomina na filosofia moral

  • 32

    clssica, inadequado para eudemonologia14. A sua explicao sobre a forma apropriada de

    lidar com as questes pessoais pode se estender a sua opo por essa forma de composio:

    os casos e acontecimentos que nos dizem respeito aparecem e se entrecruzam

    isoladamente, sem ordem nem relao uns com os outros, no mais vivo contraste e

    sem nada em comum, a no ser justamente o fato de se relacionarem conosco. Dessa

    maneira, para corresponder a esses casos e acontecimentos, nossos pensamentos e

    cuidados tm igualmente de estar desligados uns dos outros (SCHOPENHAUER,

    2006, p. 188).

    Encontramos essa mesma observao na mxima 21 de A arte de ser feliz e, como

    mostra Volpi, ela consta nos manuscritos Foliant escrito entre 1826 e 182815; o que nos d

    outra informao importante sobre os Aforismos, a saber, o fato de que esse texto no foi

    escrito de modo contnuo, mas rene notas de vrios anos de estudo dos clssicos, assim

    como de suas experincias de vida16. Volpi mostra ainda que grande parte do contedo dos

    Aforismos extrado das anotaes do projeto original da eudemonologia que,

    complementadas com desenvolvimentos posteriores, so estruturadas por Schopenhauer em

    uma ordem de assuntos, que so inspirados em obras clssicas como, por exemplo, a tica

    aristotlica e a epicurista.

    Alm da influncia da tica antiga, os Aforismos tambm receberam, particularmente

    na subdiviso referente s mximas e exortaes, a influncia de humanistas do Renascimento

    (Maquiavel e Grcian) e dos moralistas franceses (La Rouchefoucald e Chamford,

    especialmente). No ser possvel, nesse estudo, seguir toda essa linhagem de autores

    importantes e pouco tematizados nos estudos de tica e sabedoria na contemporaneidade.

    Cabe, como indicao introdutria das influncias intelectuais vinculadas ao estudo da

    felicidade nos Aforismos, indicar o sentido fundamental da sabedoria de vida concebida como

    aforismos e mximas, tal como a concebeu Schopenhauer. Vale explorar, nesse sentido,

    algumas caractersticas do Orculo Manual ou Arte da Prudncia de Balthazar Gracin.

    14 Schopenhauer critica o que ele chama de um esboo de eudemonologia por Aristteles exatamente pela forma

    de composio. Ele diz: um esboo de eudemonologia oferecido por Aristteles (Retrica, I, 5). O texto

    constitui um verdadeiro modelo de discusso prolixa e prosaica, como se fosse da autoria de Christian Wolff

    (SCHOPENHAUER, 2001c, p. 04). 15 Cf. VOLPI, Franco. Apresentao. In: SCHOPENHAUER, Arthur. A arte de ser feliz. So Paulo: Martins

    Fontes, 2001, p. 16-17. 16 Como afirma Safranski (2011, p. 158), Schopenhauer utiliza quase que literalmente as observaes de Fernow

    (um amigo de sua me) em relao deciso do filsofo de continuar ou no em Hamburgo, nos Aforismos.

    Safranski no menciona de qual passagem se trata, mas, pela semelhana mencionada por ele, possvel que seja

    o tpico 48 das parneses [exortaes] e mximas.

  • 33

    O Manual de Gracin, tambm conhecido como A arte da Prudncia, foi publicado

    em 1647. Os contedos e esprito do texto derivam da influncia da viso humanista do

    Renascimento, especialmente no desenvolvimento da virtude cvica explorada por Maquiavel.

    A filosofia do Renascimento veiculou, atravs da apropriao de concepes realistas do fazer

    poltico advindas principalmente de Ccero, um modelo de sabedoria poltica de carter

    prudencial. Maquiavel foi o grande expoente e formulador desse modelo de poltica como

    virtude prtica e operativa, a qual se exerceria sobre o material humano indcil,

    caracterizados por foras humanas (os poderosos e o povo) em contnuo conflito e

    alimentando propsitos de mtua submisso. No Prncipe, um tratado poltico que segue o

    modelo da literatura dos espelhos17, ou seja, um texto onde o prncipe deveria, tal qual um

    espelho, examinar se seu prprio carter e aes seguem o modelo proposto, Maquiavel se

    dispe a oferecer um modelo de atuao na esfera do Estado, da guerra e do tratamento com

    os cidados. Uma conseqncia importante do modelo maquiaveliano dirigido conduta do

    Prncipe foi instalar uma clara distino entre as razes de Estado e a moralidade privada, o

    que favoreceu o desenvolvimento de uma verso cortes ou privada da tradio dos espelhos,

    um conjunto de idias que pretendia justificar as preocupaes caratersticas de impulsionar o

    corteso (o grupo de nobres conselheiros admitidos na vida da corte) e assegurar-lhe a

    possibilidade de sucesso em seus vrios empreendimentos. O teor realista de abordagem da

    poltica promovido por Maquiavel originou, ento, uma literatura de base psicolgica

    emprica que consistiu na anlise do funcionamento da vida na corte e de observao emprica

    do comportamento humano, focada no estudo das motivaes da ao e da forma de

    influenciar e obter favores na vida social, o qual parece culminar nas Mximas e Reflexes de

    La Rouchefoucauld. Essa arte envolvia observar as pessoas, uma arte de tratar as pessoas e

    uma auto-disciplina. O texto mais famoso (talvez nunca superado), desse modelo de sabedoria

    corts foi escrito pelo jesuta espanhol Balthazar Gracin. Gracin preservou uma dimenso

    de elevao humana no modelo de santidade do sbio18, mas conservou igualmente a imagem

    maquiaveliana de uma vontade humana mal intencionada e hostil em nossas aes, tal como

    fica claro no esprito de sua mxima: A vida do homem milcia contra a malcia do

    17 Cf. SKINNER, Quentin. As fundaes do Pensamento Poltico Moderno. So Paulo: Companhia das Letras,

    1998. 18 Que o sbio baste a si mesmo. Ele era todas as suas coisas, e, levando a si, levava tudo. Se um amigo

    universal basta para fazer Roma e todo o resto do universo, que cada um seja esse amigo de si mesmo, e poder

    viver sozinho. Quem lhe poder fazer falta, se no h maior conceito nem maior gosto que o seu? Depender de si apenas, que felicidade suprema semelhar a entidade suprema. Quem puder passar assim sozinho nada ter de

    bruto, mas muito de sbio e tudo de Deus (GRACIN, 1996, p. 92).

  • 34

    homem. Como veremos na discusso no captulo III e IV, Schopenhauer encontrou nas

    mximas de Gracin inspirao, especialmente para o modelo da autarquia do sbio, mas

    tambm no elogio da discrio social e da certeza da falsidade e malcia da vida em

    sociedade. A parte final dos Aforismos (Diviso V) de Schopenhauer assemelha-se muito

    forma do Manual por sua conciso e exatido. O livro de Gracin contm 300 mximas,

    escritas de maneira condensada, como um orculo no que tem de sentencioso e conciso

    sobre o viver e proporciona conhecimento de orientaes prticas baseadas na natureza

    humana e geralmente tem um sentido ou humor imperativo, enquanto os aforismos de

    Schopenhauer so mais descritivos. De todo modo, Schopenhauer foi um grande admirador

    do Orculo Manual de Gracin, traduziu-o para o alemo e escreveu acerca dele:

    uma pequena obra-prima no gnero, susceptvel de se tornar o manual de todos

    aqueles que vivem no grand monde, em particular os jovens que esto em busca de

    felicidade. Para eles, A arte da prudncia, oferece antecipadamente um ensinamento

    que eles s obteriam depois de longa experincia. Uma nica leitura , com toda a

    evidncia, insuficiente. E este livro feito principalmente para desempenhar o papel

    de um verdadeiro companheiro de toda a vida (SCHOPENHAUER, apud MASSON

    1996, p. 01).

    A indicao de Schopenhauer do valor universal do livro para o grand monde, mostra

    um movimento de dupla inspirao: se, por um lado, ele segue os antigos em conceber a

    felicidade e sabedoria como dependentes de uma arte da auto-moderao, de esprito

    distanciado frente s dores e sofrimentos, ele tambm segue os renascentistas e seus

    desdobramentos no sculo XVI e XVII, onde a sabedoria e felicidade passam tambm a ser

    encarados como uma arte mundana, uma virtude que exige vigilncia interior e estratgia,

    para pensar cada passo e avaliar seus resultados. O sbio tem que controlar a si mesmo,

    observar a si mesmo, suas foras. O eu do sbio revela, assim, um misto de ateno exterior e

    de autoconhecimento interior, frequentemente alimentada pela reflexo, pela meditao sobre

    si. nesse sentido, tambm, que as Mximas e Reflexes de La Rouchefoucauld e Chamford

    foram relevantes para ele.

    Vemos, assim, que as instrues sapienciais dos Aforismos, que conserva

    propositadamente o ponto de vista emprico-pragmtico, colocam filosoficamente um conflito

    ou contrassenso difcil de resolver: a conciliao da sabedoria prtica e felicidade anunciada

    nos Aforismos e herdeira da tradio humanista antiga e do renascimento, com o ponto de

    vista metafsico expresso em O Mundo, onde a existncia caracterizada como incompatvel

    com a felicidade mundana. Schopenhauer pretende solucionar esse conflito atravs de uma

  • 35

    acomodao. Ele considera que a suposio de que podemos ser felizes est baseada num

    erro inato. Mas a impossibilidade de uma felicidade positiva ou metafsica no implica a

    negao de uma reflexo sobre a felicidade termos prticos. O pressuposto metafsico no o

    impede, assim, de desenvolver uma teoria da felicidade com forte apelo para o eu, que

    envolve pensar sobre si mesmo e a vida num sentido de autocuidado e de autotransformao.

    Se no h felicidade cotidiana em sentido genuno, h uma arte de conduzir a vida do modo

    mais agradvel e feliz, ou seja, possvel fundar um saber constitudo de instrues para uma

    existncia menos infeliz. So os conceitos fundamentais dessas duas abordagens que

    examinaremos a partir de agora.

  • 36

  • 37

    2 A DIMENSO METAFSICA DA REFLEXO SOBRE A

    FELICIDADE

    Conforme procuramos ilustrar no primeiro captulo, a abordagem da felicidade no

    sistema de Schopenhauer pressupe como uma primeira tarefa esclarecer o quadro terico no

    interior do qual essa noo aparece. Esse quadro terico envolve entender a concepo

    particular que Schopenhauer sustentou acerca da natureza da filosofia, sobretudo a partir da

    influncia da filosofia kantiana, prolongando a tradio da filosofia transcendental na direo

    daquilo que seus intrpretes qualificaram como uma hermenutica da existncia ou ainda

    uma metafsica hermenutica19. No caso da felicidade, essa abordagem metodolgica

    particular tem efeitos notrios, principalmente na nfase numa filosofia mais atenta s

    condies reais da existncia e da rejeio de um otimismo irrealista em torno da vida,

    conforme caracterizado no Apndice I desse trabalho. Partindo dessa suposio, pretendemos

    avanar nesse captulo na caracterizao da anlise da felicidade de Schopenhauer, levando

    em conta as condies internas oriundas de sua filosofia metafsica para o estudo da

    felicidade. Essa anlise nos levar a compreender a viso geral da vida decorrente do modelo

    metafsico assumido, sua tentativa de superar a metafsica lgico-formal de Kant na direo

    de um modelo filosfico mais atento ao mundo vivido, ao homem e seus temores e angstias,

    bem como outros dois pontos fundamentais: o determinismo prtico e a teoria do carter.

    Nessa direo, veremos que a felicidade no ser um tema secundrio, mas relevante desde os

    primrdios da filosofia de Schopenhauer e que a essncia da abordagem da felicidade presente

    nos escritos tardios pressupe teses defendidas na metafsica do Mundo. A tarefa desse

    segundo captulo ser, assim, analisar os conceitos filosficos que estruturam o pano de fundo

    da abordagem da felicidade em toda a obra de Schopenhauer, explorando, em particular, a

    dimenso metafsica da felicidade.

    A abordagem da felicidade nos escritos metafsicos de Schopenhauer envolve duas

    noes ou direes de anlise distintas: uma abordagem metafsica, em que a felicidade

    19 A denominao metafsica hermenutica apresentada por Spierling (2010, p. 24), enquanto que hermenutica da existncia sugerida por Birnbacher (2006, p. 177) e fenomenologia da moral proposta

    por Philonenko (1989, p. 234). Carvalho (2012), em seu artigo Schopenhauer: Cosmologia como hermenutica

    da Representao, apresenta uma interpretao enfatizando esses aspectos singulares da metafsica de

    Schopenhauer.

  • 38

    (Glck) por um lado pode ser descrita como preenchimento do querer ou afirmao da

    Vontade metafsica e, por outro, envolve uma quebra do domnio ou fora da mesma,

    envolvendo uma teoria da felicidade pura (reine Glck) e negao da vontade ou beatitude

    (Seligkeit). Ao lado dessa abordagem metafsica, Schopenhauer tambm contempla uma

    concepo prtica ou pragmtica da felicidade como racionalidade ou sabedoria prudencial.

    Essa concepo est presente nos textos tardios do filsofo.

    2.1 O ponto de vista metafsico e a felicidade

    No incio dos Aforismos, Schopenhauer prope uma teoria da felicidade a partir de

    uma filosofia prtica ou arte prudencial. Ali lemos a seguinte nota:

    Aqui desconsidero completamente o ponto de visa tico-metafsico, superior e mais

    verdadeiro, afasto o julgamento que dele deriva sobre o decurso da vida humana e

    sustento inteiramente o ponto de vista emprico da conscincia natural

    (SCHOPENHAUER, 2001c, p. 03).

    Essa observao apresenta duas possibilidades de concepo da noo de felicidade

    em relao a nossa condio existencial: a primeira que resulta de uma viso tico-metafsica;

    e a segunda, a qual ele denomina de um ponto de vista emprico da conscincia natural.

    Para que possamos esclarecer sistematicamente cada uma dessas noes de felicidade e outras

    questes relativas s mesmas, analisaremos cada um desses pontos de vista. Comecemos pelo

    ponto de vista metafsico.

    A perspectiva tico-metafsica, qualificada por Schopenhauer como superior e mais

    ver