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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
FACULDADE DE DIREITO
BRUNO BARBOSA DA COSTA
SEGURANÇA SANITÁRIA: FORNECIMENTO DE FOSFOETANOLAMINA
SEM REGULAMENTAÇÃO DA ANVISA A PACIENTES COM CÂNCER
FORTALEZA
2016
BRUNO BARBOSA DA COSTA
SEGURANÇA SANITÁRIA: FORNECIMENTO DE FOSFOETANOLAMINA
SEM REGULAMENTAÇÃO DA ANVISA A PACIENTES COM CÂNCER
Monografia apresentada ao Curso de
Direito da Universidade Federal do
Ceará como requisito parcial para
obtenção do Título de Bacharel em
Direito.
Orientador: Profa. Dra. Theresa Rachel
Couto Correia.
FORTALEZA
2016
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará
Biblioteca UniversitáriaGerada automaticamente pelo módulo Catalog, mediante os dados fornecidos pelo(a) autor(a)
C87s Costa, Bruno Barbosa da. Segurança sanitária : fornecimento de fosfoetanolamina sem regulamentação da Anvisa a pacientes comcâncer / Bruno Barbosa da Costa. – 2016. 61 f. : il. color.
Trabalho de Conclusão de Curso (graduação) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Direito,Curso de Direito, Fortaleza, 2016. Orientação: Profa. Dra. Theresa Rachel Couto Correia.
1. Direito à Saúde. 2. Medicamentos. 3. Segurança sanitária. 4. Vigilância sanitária. 5.Fosfoetanolamina. I. Título. CDD 340
BRUNO BARBOSA DA COSTA
SEGURANÇA SANITÁRIA: FORNECIMENTO DE FOSFOETANOLAMINA SEM
REGULAMENTAÇÃO DA ANVISA A PACIENTES COM CÂNCER
Monografia apresentada ao Curso de Direito
da Universidade Federal do Ceará como
requisito parcial para obtenção do Título de
Bacharel em Direito.
Orientador: Profa. Dra. Theresa Rachel Couto
Correia.
Aprovada em: ____/____/_______.
BANCA EXAMINADORA
________________________________________
Profa. Dra. Theresa Rachel Couto Correia (Orientadora)
Universidade Federal do Ceará - UFC
_________________________________________
Profa. Dra. Beatriz Rêgo Xavier
Universidade Federal do Ceará - UFC
_________________________________________
Prof. Dr. William Paiva Marques Júnior
Universidade Federal do Ceará - UFC
A Deus,
Aos meus pais, Francisco Antônio Albino da
Costa e Maria de Fátima Barbosa Lima,
À Isabel C. Barbosa Lima (in memoriam).
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente a Deus, criador que me amou primeiro e durante toda
minha vida tem revelado seu amor e misericórdia infinita. Sua providência é revelada a cada
novo dia e protege minha família a todo instante. Sem sua bênção esse trabalho e toda a
trajetória até ele jamais teriam sido possíveis.
Ao meu pai, Francisco, que diante das dificuldades e injustiças da vida sempre
buscou o caminho do trabalho, da honestidade e da fé e que fez da própria vida um sacrifício
em prol da minha educação e formação humana.
À minha mãe amada, Fátima, por ser exemplo de ser humano, fonte constante dos
valores e virtudes que tomo para a vida; pela paciência na educação; pelos conselhos; pelo
carinho; e por ser minha maior e melhor professora.
Aos meus avós maternos, Anísio e Juliana, pelo exemplo de vida humilde e santa;
pelos ensinamentos; pelos momentos inesquecíveis proporcionados na infância.
À minha avó paterna, Lurdes, por todo o carinho e pela força de viver.
À Maria Caroline, por ser minha companheira nos bons e maus momentos.
À professora Theresa Rachel, por ter aceitado o convite para orientar este trabalho
e por todas as dicas e conselhos prestados com paciência e serenidade.
Ao professor William, pela inesgotável paciência e alegria no trato.
À professora Beatriz, por despertar meu interesse ao Direito do Trabalho e pelo
respeito absoluto aos alunos dentro e fora da sala de aula.
Aos amigos da graduação, Renan, Ciro, João Paulo, Anísio, Gabriel, Marília,
Marjorie e Cícero pelo carinho e por toda a ajuda prestada nos momentos difíceis.
Ao Colégio Mauro Bezerra, na pessoa de Maura Bezerra, por toda a educação
adquirida; pela formação cristã; pelo tratamento respeitoso e amoroso; pelos valores
transmitidos; pelas experiências; e pelas oportunidades oferecidas.
À Mariella Pittari, por todos os conselhos e correções; e por proporcionar a
melhor experiência de estágio possível.
Ao Escritório Santana, Maia e Pessoa, pela confiança e oportunidade; e por
permitir a vivência real da advocacia.
Aos parceiros do sagrado futebol, Igor Oliveira (Igovisck) e Junior Barbosa pelos
momentos mais alegres e descontraídos.
A humanidade de hoje, se conseguir conjugar
as novas capacidades científicas com uma
forte dimensão ética, [...] será capaz de
eliminar os fatores de poluição, de assegurar
condições de higiene e de saúde adequadas,
tanto para pequenos grupos como para vastos
aglomerados humanos [...] com a condição de
que prevaleça a ética do respeito pela vida e a
dignidade do homem [...].
São João Paulo II
RESUMO
O trabalho investiga a possibilidade de fornecimento de fosfoetanolamina sintética pelo
Estado a pacientes com câncer antes de registrada pela Anvisa. Foram analisados os diversos
conceitos de saúde até a definição mais moderna. Em seguida, foi abordada a proteção
internacional e nacional do direito à saúde até a promulgação da Constituição Federal de 1988
e a criação do Sistema Único de Saúde. Nesse contexto, avaliaram-se os deveres e limitações
do Estado nas ações e serviços de saúde pública diante do mínimo existencial e da reserva do
possível e a intervenção do Poder Judiciário na efetivação do direito fundamental à saúde.
Ademais, a segurança sanitária foi abordada como obrigação a ser seguida pelo Estado e
particulares nos direitos e deveres respectivos. No mesmo sentido a necessidade da ética
sanitária no cuidado da saúde e a legislação para incorporação foram averiguadas para
analisar a necessidade de registro de novas substâncias antes da autorização para o uso. Por
fim, um breve histórico da fosfoetanolamina foi apresentado seguido da análise das decisões
nos tribunais e posicionamento das entidades de saúde, vigilância e pesquisa quanto a seu uso
como medicamento e alternativas para o fornecimento.
Palavras-chave: Direito à Saúde. Medicamentos. Segurança Sanitária. Vigilância Sanitária.
Fosfoetanolamina.
RESUMEN
El trabajo investiga la posibilidad de suministro de fosfoetanolamina sintética por el Estado
para los pacientes con cáncer antes del registro por la Anvisa. Los diversos conceptos de salud
fueron analizados a la definición más moderna. A continuación, se presentó con a la
protección internacional y nacional del derecho a la salud hasta la promulgación de la
Constitución de 1988 y la creación del Sistema Único de Salud. En este contexto, se
evaluaron los deberes y limitaciones de las acciones del Estado y los servicios de salud
pública en la cara de un mínimo existencial y la reserva posible y la intervención del poder
judicial en la aplicación del derecho fundamental a la salud. Además, la seguridad de la salud
se ha abordado en la obligación de ser seguido por el Estado y los particulares en sus derechos
y obligaciones. En el mismo sentido la necesidad de la ética para la salud en la atención
sanitaria y la legislación para su incorporación se investigaron para analizar la necesidad de
registro de nuevas sustancias antes de la autorización para su uso. Por último, una breve
historia de fosfoetanolamina se presentó seguida por el análisis de las decisiones de los
tribunales y el posicionamiento de las autoridades sanitarias, la vigilancia y la investigación
en cuanto a su uso como medicina y las alternativas a la oferta.
Palabras clave: Derecho a la salud. Medicamentos. Seguridad de la Salud. Vigilancia
Sanitaria. Fosfoetanolamina .
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Fluxograma 1 Etapas para registro de medicamento junto à Anvisa ................. 41
Quadro 1 Resultados apresentadas pelo Grupo de Pesquisa da USP .......... 50
Quadro 2 Resultados apresentadas pelo Grupo de Trabalho do MCTI ...... 51
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABC Academia Brasileira de Ciências
AMB Associação Médica Brasileira
ANVISA Agência Nacional de Vigilância Sanitária
CEP Comitê de Ética e Pesquisa
CIENP Centro de Inovação e Ensaios Pré-Clínicos
CONEP Comissão Nacional de Ética e Pesquisa
CONITEC Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS
CONSINCA Conselho Consultivo do Inca
DCI Denominação Comum Internacional de Medicamentos
FDA Food and Drug Administration
INAMPS Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social
INCA Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva
INPI Instituto Nacional de Propriedade Intelectual
IQSC Instituto de Química de São Carlos
LASSBIO Laboratório de Avaliação e Síntese de Substâncias
MCTI Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação
NPDM Núcleo de Pesquisa e Desenvolvimento de Medicamentos
OMS Organização Mundial da Saúde
ONU Organização das Nações Unidas
PIDCP Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos
PIDESC Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais
RENAME Relação Nacional de Medicamentos Essenciais
STF Supremo Tribunal Federal
SUS Sistema Único de Saúde
USP Universidade de São Paulo
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ................................................................................................... 13
2 DIREITO À SAÚDE: PROTEÇÃO NACIONAL E INTERNACIONAL .... 14
2.1 Proteção à Saúde no âmbito internacional ....................................................... 15
2.1.1 Conceito de saúde e sua proteção pela OMS ..................................................... 15
2.1.2 A saúde na Declaração Universal dos Direitos Humanos .................................. 18
2.2 A Saúde na Constituição Federal de 1988 e o SUS ........................................... 20
2.3 Reserva do possível e mínimo existencial ......................................................... 22
2.4 Judicialização da saúde ...................................................................................... 27
3. SEGURANÇA SANITÁRIA: ASPECTOS ÉTICOS E JURÍDICOS ............ 31
3.1 Direito Sanitário ................................................................................................... 34
3.2 Ética Sanitária ..................................................................................................... 37
3.3 Assistência terapêutica e incorporação de novos medicamentos .................... 40
4 FOSFOETANOLAMINA: CONTROLE JURISDICIONAL ......................... 43
4.1 Histórico ............................................................................................................... 43
4.2 A fosfoetanolamina nos tribunais ....................................................................... 44
4.3 Necessidade de pesquisas para comprovação dos efeitos anticancerígenos .... 47
4.4 Lei nº 13.269/2016 ................................................................................................ 51
4.5 Utilização como suplemento ................................................................................ 54
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 56
REFERÊNCIAS ................................................................................................... 58
13
1. INTRODUÇÃO
Num Estado Democrático de Direito sua proteção é constituinte fundamental do
conceito de dignidade da pessoa humana compondo o rol dos direitos fundamentais. No
Brasil, a Constituição Federal de 1988 estabeleceu em seu artigo 196 a saúde com um direito
de todos e dever do Estado.
Nesse sentido, as dificuldades enfrentadas na concretização desse direito tem
levado ao debate a intervenção judicial na tutela da saúde. No tema, as principais discussões
versam sobre a interferência e separação dos poderes ou sobre o conflito entre o mínimo
existencial e a reserva do possível. Nessa última contenda, questões como o fornecimento de
tratamentos não cobertos pelo SUS ou com valores excessivamente onerosos discutem o
limite da obrigação do Estado nos serviços de saúde.
Diante da resposta positiva do Poder Judiciário em favor dos cidadãos, surge o
problema das decisões determinando o fornecimento de medicamentos em fase experimental
ou sem eficácia comprovada a pacientes contrariando a legislação sanitária nacional.
Em 2014 a fosfoetanolamina ganhou destaque nacional em virtude da grande
demanda de pacientes com câncer pleiteando seu fornecimento pelo Estado. A despeito de não
haver registro da substância no órgão de vigilância sanitária, a Anvisa, milhares de decisões
favoráveis foram concedidas embasadas pelo direito à saúde.
É necessária, pois, a análise legal e axiológica da possibilidade de obrigar o
Estado a fornecer tratamento em descumprimento às normas sanitárias. Nesse aspecto, o
estudo histórico e internacional do direito à saúde e seu desenvolvimento no Brasil são
fundamentais para estabelecer os fundamentos constitucionais em que se apoia o
entendimento favorável ao fornecimento. Do mesmo modo, as problemáticas anteriores
envolvendo o direito à saúde serão abordadas como pressupostos para averiguação da questão
específica envolvendo a obrigatoriedade o registro.
Ademais, far-se-á uma distinção entre direito à saúde e direito sanitário buscando
estabelecer os limites do Estado e dos indivíduos em suas obrigações e direitos. Além disso, a
dimensão ética do direito sanitário será estudada na tentativa de estabelecer critérios para a
limitação do acesso aos medicamentos sem autorização da Anvisa.
Por fim, as decisões judiciais, o posicionamento das entidades de saúde, ciência e
pesquisa e as soluções alternativas de uso da fosfoetanolamina serão apresentados com
objetivo de averiguar a possibilidade de fornecimento da substância.
14
2. DIREITO À SAÚDE: PROTEÇÃO NACIONAL E INTERNACIONAL
O direito à saúde é consequência do direito à vida e da dignidade da pessoa
humana e sua proteção é também a defesa daqueles. Não se pode falar em direito à vida, sem
que se garanta o acesso ou o direito à saúde1.
A palavra saúde deriva do termo latino salus (salutis) que significa, em tradução
livre: salvação, conservação e segurança da vida. A saúde busca conservar a vida, bem maior
de todo ser humano e direito primeiro do qual decorrem todos os outros direitos. Disso, é
possível concluir que o direito à saúde é o direito à proteção da vida. O dicionário Michaelis2
define a palavra “saúde” da seguinte forma:
sf (lat salute) 1 Bom estado do organismo, cujas funções fisiológicas se vão fazendo
regularmente e sem estorvos de qualquer espécie. 2 Qualidade do que é sadio ou
são. 3 Vigor. 4 Força, robustez. 5 Disposição física, estado das funções orgânicas do
indivíduo. 6 Disposição ou estado moral do indivíduo. 7 Bem-estar físico,
econômico, psíquico e social (conceito moderno). 8 Brinde ou saudação que se faz
bebendo à saúde de alguém. S. intercadente: a que apresenta alternativas de melhor
ou pior. S. pública: arte e ciência que trata da proteção e melhoramento da saúde da
comunidade, pelo esforço organizado dos poderes públicos e que inclui a Medicina
preventiva e diversas formas de assistência social.
As definições do dicionário apresentam a saúde em sua dupla face: como
condição sã e de bem-estar do indivíduo ou coletividade e como serviço prestado pelo estado
(saúde pública). Uma vez que não é possível ao estado garantir corpos perfeitamente
saudáveis aos indivíduos, o segundo sentido (serviços e ações públicas) caracteriza de modo
mais razoável a saúde enquanto prestação a ser exigida do estado.
Para Castro (2005), a saúde engloba todo um conjunto de preceitos e regras de
higiene que visam cuidar das funções biológicas do corpo e prevenir de doenças preservando
a saúde, enquanto que no caso em que a saúde esteja fragilizada, os medicamentos são os
principais responsáveis pela recuperação do estado sadio do indivíduo3. Nesse sentido, o
direito à saúde teria duas faces: a preservativa e a protetiva.
1 MARTINS, Sergio Pinto. Direito da Seguridade Social. 35ª ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 544.
2Michaelis: Dicionário de Português on-line. Editora Melhoramentos, 2009. Disponível em: <
http://michaelis.uol.com.br/moderno/portugues/index.php?lingua=portugues-portugues&palavra=sa%FAde>.
Acesso em: 26 maio 2016. 3 CASTRO, Henrique Hoffmann Monteiro de. Direito Público subjetivo à saúde: conceituação, previsão legal
e aplicação na demanda de medicamentos em face do Estado-membro. Disponível em:
<http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/direito-p%C3%BAblico-subjetivo-%C3%A0-sa%C3%BAde-
conceitua%C3%A7%C3%A3o-previs%C3%A3o-legal-e-aplica%C3%A7%C3%A3o-na-demanda-de-med>.
Acesso em: 28 maio 2016.
15
A primeira seria referente a uma ação do Estado voltada para a coletividade,
através de medidas de segurança como as ações de fiscalização e vigilância sanitária com fim
de preservar o estado de saúde coletivo e eliminar ou controlar riscos e fatores potencialmente
danosos. Já a proteção teria aplicação direta ao indivíduo e envolveria desde a prevenção,
passando pelo tratamento e a recuperação da saúde através do acesso a tratamentos e
medicamentos prestados pelo Estado. A administração pública seria responsável, portanto,
pelas ações coletivas e individualizadas de cuidados com a saúde.
Esses conceitos atuais nasceram, sobretudo, após a Segunda Guerra Mundial, o
que marcou determinantemente seus preceitos básicos como a universalidade do acesso à
saúde, igualdade entre os indivíduos, programas voltados ao controle de epidemias, políticas
públicas de saúde e responsabilidade dos estados no fornecimento de tratamentos.
Apresentam-se a criação da Organização Mundial da Saúde - OMS em 1948 e a
Declaração Universal dos Direitos Humanos adotada pela Organização das Nações Unidas no
mesmo ano. Desde então se passou a exigir dos estados uma prestação positiva em relação à
saúde e demais direitos da coletividade.
Com efeito, o que se assistiu durante o século XX e mais acentuadamente no
século atual é o fortalecimento das normas de garantias dos direitos fundamentais (em
especial os direitos sociais). Houve a superação da previsão meramente programática para
uma aplicação plena e imediata, muito embora sua eficácia seja por vezes garantida mediante
intervenção do Poder Judiciário na esfera de atuação da administração pública, o fenômeno da
judicialização da saúde.
2.1. Proteção à Saúde no âmbito internacional
Internacionalmente, as ações de proteção à saúde como política pública adotada
pelos Estados tem representado uma preocupação crescente. Assim também, a integração e
cooperação das nações diante das crises causadas pela economia, desastres naturais ou
epidemias representam um avanço e conscientização da necessidade de cuidar do bem-estar
dos povos. No século atual é certo que o direito à saúde ganhará destaque nos debates
internacionais. Nesse contexto, as organizações de saúde e direitos humanos exercem papel
fundamental na criação de normas e acordos para promoção da saúde.
2.1.1. Conceito de saúde e sua proteção pela OMS
16
A Organização Mundial de Saúde (OMS), entidade representante de 194 Estados-
membros, subordinada à Organização das Nações Unidas (ONU) tem como principal função a
direção e coordenação da ação sanitária internacional. No preâmbulo de sua constituição
define saúde como “estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente
ausência de afeções e enfermidades4”. Isso revela que não basta apenas o estado de ausência
de doenças, mas também a situação afirmativa de bem-estar individual e social.
Nas últimas décadas as diversas cartas, documentos e declarações assinadas pelos
países corroboram a ideia de uma ampliação do conceito de saúde5 abrangendo também o
bem-estar econômico, do trabalho, dentre outras condições como paz, habitação, educação,
etc. A Carta de Ottawa (1986) aponta a saúde como “um conceito positivo, que enfatiza os
recursos sociais e pessoais, bem como as capacidades físicas. Assim, a promoção da saúde
não é responsabilidade exclusiva do setor saúde, e vai para além de um estilo de vida
saudável, na direção de um bem-estar global6”. Isso se deve ao desenvolvimento industrial,
crescimento do consumo, maior acesso aos bens e serviços, globalização, velocidade de
informação e integração entre as nações. Como exemplo, a crise econômica em um país é
sentida quase que instantaneamente por outros países de modo que o papel da economia na
vida cotidiana das cidades é cada vez maior. Nesse sentido, a Declaração de Santafé de
Bogotá (1992) foi elaborada com o compromisso de “impulsionar o conceito de saúde
condicionada por fatores políticos, econômicos, sociais, culturais, ambientais, de conduta e
biológicos, e a promoção da saúde como estratégia para modificar estes fatores
condicionantes7”. As questões da proteção ambiental e do desenvolvimento sustentável
também passaram a integrar o conjunto de ações e políticas contidas no conceito de saúde
mais moderno.
Além disso, em países subdesenvolvidos a escassez de recursos, materiais e
suporte financeiro impossibilitam a eficácia das ações de saúde nas áreas de extrema pobreza.
A fome, a miséria e a falta de higiene representam grandes desafios na concretização de uma
população majoritariamente saudável e refletem no desenvolvimento econômico num
mercado mundial totalmente integrado. Recentemente, a Declaração de Adelaide sobre a
4ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS/WHO). Constituição. Nova Iorque, 1946. Disponível em:
<http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organiza%C3%A7%C3%A3o-Mundial-da-
Sa%C3%BAde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html>. Acesso em: 26 maio 2016.
6PRIMEIRA CONFERÊNCIA INTERNACIONAL SOBRE PROMOÇÃO DA SAÚDE. Carta de Ottawa,
1986. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/carta_ottawa.pdf>. Acesso em: 03 jun.2016. 7CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DE PROMOÇÃO DA SAÚDE. Declaração de Bogotá, 1992.
Disponível em: <http://www.ergonomianotrabalho.com.br/artigos/Santafe.pdf> Acesso em: 03 jun.2016.
17
Saúde em Todas as Políticas reconheceu que a “interface entre a saúde, o bem-estar e o
desenvolvimento econômico tem sido inserida na agenda política de todos os países. Cada vez
mais, comunidades, empregadores e indústrias esperam e demandam ações governamentais
coordenadas e incisivas de combate aos determinantes da saúde e do bem-estar 8[...]”.
Um conceito mais extensivo é defendido por autores com a inclusão do bem-estar
no trabalho; bem-estar do meio ambiente; bem-estar afetivo, dentre outros. A crítica a um
conceito amplo e genérico da saúde é devida à medida que a generalidade leva ao risco da
abstração distante da realidade, o que representaria o regresso das conquistas obtidas na
proteção da saúde nas últimas décadas.
Em contraponto, por muito tempo a saúde foi entendida basicamente como a
perfeição das funções e dos movimentos do corpo ausente de doenças. Somente com o
desenvolvimento da sociedade, o fenômeno da globalização, as novas relações de trabalho a
que se soma o desenvolvimento das ciências humanas e biológicas (medicina, direitos
fundamentais, sociologia, psicologia...) a saúde mental e social passaram a ser também uma
preocupação das políticas estatais e das populações.
A necessidade do bem-estar social integra a busca individual por uma vida
saudável com a solidariedade dos cidadãos em apoio às ações públicas de proteção à saúde.
Aliás, é comum que se leiam reportagens que trazem os termos “população saudável”;
“população obesa”; “sociedade doente”; “filhos desnutridos”, utilizando a definição da OMS
como referência para a ausência de bem-estar social e doença no contexto da coletividade.
A noção de saúde atual contempla a integração de todos os órgãos e sistema do
indivíduo biológico, psíquico e também social. Do mesmo modo, a saúde coletiva contempla
a atuação integrada de todas as instituições públicas de saúde com fim de prover o bem-estar
por meio de ações efetivas de prevenção e tratamento de doenças.
Em sua constituição, a OMS declara ainda que “gozar do melhor estado de saúde
que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem
distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social”.
A saúde é, portanto, bem e direito fundamental de todos e sua proteção depende
de um esforço conjunto dos indivíduos e do estado para que seja alcançada em seu melhor
grau e pelo maior número de pessoas. A OMS considera os governos como portadores de
8 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Declaração de Adelaide sobre a Saúde em Todas as Políticas,
2010. Disponível em:
<http://www.who.int/social_determinants/publications/isa/portuguese_adelaide_statement_for_web.pdf>. Acesso
em: 03 jun.2016.
18
“responsabilidade pela saúde dos seus povos, a qual só pode ser assumida pelo
estabelecimento de medidas sanitárias e sociais adequadas”.
No artigo 2º de sua constituição, a OMS elenca dentre suas funções a promoção
“em cooperação com outros organismos especializados, quando for necessário, o
melhoramento da alimentação, da habitação, do saneamento, do recreio, das condições
econômicas e de trabalho e de outros fatores de higiene do meio ambiente9” bem como o
desenvolvimento de normas internacionais relacionadas aos produtos farmacêuticos o que se
configura na adoção de parâmetros de vigilância rigorosa dos produtos que possam causar
danos à saúde.
Dentre as funções que se podem destacar na atuação da OMS está a codificação
da Denominação Comum Internacional dos Medicamentos10
– DCI (conhecido no Brasil como
nome genérico da substância) além de manter em seu banco de dados informações atualizadas
sobre os efeitos colaterais dos medicamentos e uma lista de referência de medicamentos
essenciais nos cuidados básicos de saúde (WHO Model Lists of Essential Medicines).
De certa maneira, ainda que o objetivo das entidades e estados seja a garantia da
melhor condição de saúde possível, diversos fatores internos, externos, objetivos e subjetivos
interferem no bem-estar do ser humano de maneira que a principal ação no sentido de
preservação da saúde coletiva é a segurança da população na exposição a produtos e
ambientes com potencial nocivo.
As campanhas públicas alertando sobre os perigos da obesidade, do cigarro, das
drogas e até mesmo da automedicação tem ganhado espaço e investimento na mídia brasileira,
mas a ação do Estado não exime os indivíduos, as famílias, empresas e comunidades de
atuarem na defesa da saúde e na responsabilidade por ações que garantam o próprio bem-estar
como a prática de exercícios físicos, alimentação balanceada, moderação no consumo de
bebidas, dentre outros.
2.1.2 A saúde na Declaração Universal dos Direitos Humanos
9 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS/WHO). Constituição. Nova Iorque, 1946. Disponível em:
<http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organiza%C3%A7%C3%A3o-Mundial-da-
Sa%C3%BAde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html>. Acesso em: 26 maio 2016.
10 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Denominação Comum Internacional. Disponível em: <
http://www.who.int/medicines/services/inn/innguidance/en/>. Acesso em: 30 maio 2016
19
A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi adotada e proclamada pela
Assembleia Geral das Nações unidas em 10 de dezembro de 1948 onde se considerou “[...]
essencial que os direitos humanos sejam protegidos pelo Estado de Direito [...]”.
Os direitos humanos são os direitos universais e as liberdades inerentes a todos os
homens sejam quais forem sua nacionalidade, etnia, condição social, religião ou pensamento.
A igualdade de deveres e direitos perante as leis e o espírito de fraternidade contido na
declaração são lastreados acima de tudo pelo princípio da dignidade da pessoa humana.
Dentre os direitos humanos está a saúde11
:
Artigo 25
[...]
§1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua
família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados
médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de
desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios
de subsistência em circunstâncias fora de seu controle.
O direito à segurança em caso de doença é, em verdade, a proteção da saúde e
nasce do caráter solidário dos direitos humanos e da obrigação dos Estados pela prevenção e
tratamento de doenças. Ainda que abstrata e de caráter não vinculativo a todos os países, a
Declaração Universal dos Direitos Humanos representou enorme contribuição à concretização
da proteção à saúde na adesão de muitas nações ao documento.
No Brasil, como exemplo da repercussão da Declaração dos Direitos Humanos, a
previsão do direito à segurança em caso de desemprego, doença ou velhice restou consolidada
no artigo 194 da Constituição Federal que trata exatamente da seguridade social como
“conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a
assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social12
”.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos juntamente com o Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos13
(PIDCP) e o Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais14
(PIDESC), os últimos aprovados pela ONU em 1966,
11
ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Disponível em: < http://www.dudh.org.br/declaracao/>.
Acesso em: 28 maio 2016. 12
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, 2016. Disponível
em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acesso em: 01jun. 2016. 13
BRASIL. Decreto 592 de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm>. Acesso em: 08
jun. 2016. 14
BRASIL. Decreto 591 de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-
1994/d0591.htm>. Acesso em: 08 jun. 2016.
20
compõem a Carta Internacional dos Direitos Humanos. O PIDESC que promove em especial
os direitos sociais, dentre eles a saúde, possui a adesão de mais de 160 países aos quais se
integra o Brasil que ratificou todo o conteúdo da Carta Internacional dos Direitos Humanos.
2.2 A Saúde na Constituição Federal de 1988 e o SUS
No Brasil, os primeiros serviços de saúde eram prestados de modo assistencialista,
onde se destaca a atuação das Santas Casas da Misericórdia no tratamento de doentes.
Posteriormente, a edição da Lei Elói Chaves em 1923 criou as caixas de pensão,
aposentadoria e assistência médica para os trabalhadores ferroviários e representou o início da
atuação estatal por meio da legislação específica.
Posteriormente, outras leis foram editadas estabelecendo no Brasil um serviço de
saúde securitário (assistência somente aos trabalhadores contribuintes) e não integralizado.
Aos demais brasileiros, o acesso à saúde continuou a ser realizado por meio das instituições
beneficentes e filantrópicas, médicos particulares ou, quando havia, por algum hospital
público local. Durante o período do governo militar no Brasil foi criado o INAMPS (Instituto
Nacional de Assistência Médica da Previdência Social) que oferecia assistência aos segurados
contribuintes por meio de convênios com hospitais privados.
Somente com a Constituição Federal de 1988 o direito subjetivo à saúde tornou-se
bem jurídico protegido, contendo a previsão de criação de um Sistema Único de Saúde (SUS)
organizado de forma descentralizada, com atendimento integral distribuído em rede
hierarquizada e regionalizada. Só então o acesso aos serviços de saúde passou a ser universal
e igualitário independente de contribuição.
A Constituição Federal de 1988 conferiu à saúde o status de direito fundamental
elencando-o entre os direitos sociais (art. 6º), sendo, pois, um direito do indivíduo em face do
estado e ao qual este não se negará a fornecer. Além disso, conferiu ao Poder Público a
responsabilidade sobre a regulamentação, fiscalização e controle do serviço de saúde (art.
197), passando este a ser realizado através do SUS.
A Lei nº 8.080/9015
, em seu artigo 4º, definiu o SUS como “o conjunto de ações e
serviços de saúde, prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e
municipais, da Administração direta e indireta e das fundações mantidas pelo Poder
15
BRASIL. Lei 8.080/90 de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e
recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências.
Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8080.htm>. Acesso em: 22 jun. 2016.
21
Público[...]”. Dentre outros princípios contidos no art. 7º da mesma lei, os princípios básicos
norteadores das ações do SUS são a universalidade e equidade.
Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou
conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS), são desenvolvidos de
acordo com as diretrizes previstas no Art. 7º As ações e serviços públicos de saúde e
os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de
Saúde (SUS), são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da
Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios:
I - universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência;
II - integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das
ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada
caso em todos os níveis de complexidade do sistema;
A universalidade entendida como o acesso aos serviços de saúde por todos os
cidadãos e equidade como a segurança do acesso aos serviços de acordo com o grau de
necessidade e complexidade de cada caso, sem privilégios ou preconceitos.
O artigo 200 da CF/88 estabeleceu as competências do SUS:
I - controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a
saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos,
hemoderivados e outros insumos;
II - executar as ações de vigilância sanitária e epidemiológica, bem como as de
saúde do trabalhador;
III - ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde;
IV - participar da formulação da política e da execução das ações de saneamento
básico;
V - incrementar, em sua área de atuação, o desenvolvimento científico e tecnológico
e a inovação;
VI - fiscalizar e inspecionar alimentos, compreendido o controle de seu teor
nutricional, bem como bebidas e águas para consumo humano;
VII - participar do controle e fiscalização da produção, transporte, guarda e
utilização de substâncias e produtos psicoativos, tóxicos e radioativos;
VIII - colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho.
Apesar do SUS ser conhecido popularmente como a rede de hospitais públicos
para tratamento de doenças e fornecimento gratuito de medicamentos, com longas filas de
espera e muitas vezes precário em recursos e equipamentos, a previsão de suas atribuições na
Constituição revela a preocupação maior com a prevenção e segurança da saúde dos assistidos
pelo sistema do que propriamente o tratamento na recuperação da saúde e combate às doenças
(sistema de atenção primária).
Os incisos I, II e VII do art. 200 mais especificamente apontam para o controle e
fiscalização de substâncias químicas e medicamentos que possam vir a causar danos à saúde
de forma que a atuação do sistema de saúde brasileiro deve prezar sobretudo pela ação
preventiva e protetiva, complementada pelas ações de recuperação da saúde.
22
Em suma, o sistema de saúde é uma estrutura adotada para que os serviços de
prevenção, proteção e recuperação da saúde sejam fornecidos aos cidadãos por meio do
acesso seguro a tratamentos, medicamentos, substâncias químicas e alimentos. A segurança
naquilo que é fornecido aos cidadãos é critério básico e fundamental no dever do Estado à
garantia da saúde de todos.
De fato, o direito à saúde superou o idealismo da pretensão almejada passando a
ser dever do estado de prestação de serviço gratuito a toda a população. No Brasil, esse
serviço é regulado pela previsão constitucional somada à legislação de normas
infraconstitucionais.
Nesse sentido foram criadas leis, dentre as quais se destaca a Lei nº 8.080/90
(Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização
e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências) e mais
recentemente o Decreto nº 7.646/2011 (Dispõe sobre a Comissão Nacional de Incorporação de
Tecnologias no Sistema Único de Saúde e sobre o processo administrativo para incorporação,
exclusão e alteração de tecnologias em saúde pelo Sistema Único de Saúde - SUS, e dá outras
providências) e a Lei nº 12.401/2011(Altera a Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, para
dispor sobre a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia em saúde no âmbito do
Sistema Único de Saúde – SUS).
No tocante à recuperação e manutenção da saúde, o Ministério da Saúde
estabeleceu, por meio da Portaria nº 3.916/98, a Política Nacional de Medicamentos com o
propósito de “garantir a necessária segurança, eficácia e qualidade dos medicamentos, a
promoção do uso racional e o acesso da população àqueles considerados essenciais16
”.
Nesse seguimento, a legislação brasileira avançou consideravelmente. Contudo, a
maior proteção repercute economicamente em gastos e investimentos, o que muitas vezes
dificulta e limita o acesso aos serviços de saúde.
2.3 Reserva do possível e mínimo existencial
O sistema de saúde brasileiro, incapaz de atender de maneira plena todas as
demandas de saúde e sem recursos financeiros para oferecer todos os serviços necessários à
população, tem gerado a discussão entre a universalidade do atendimento e o mínimo
existencial que deve ser oferecido à população e a reserva do possível.
16
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria 3.916, de 30 de outubro 1998. Disponível em: <
http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/1998/prt3916_30_10_1998.html>. Acesso em: 29 maio 2016.
23
A universalidade contempla o acesso de todas as pessoas aos serviços de saúde
que deve fornecer o maior número de remédios e tratamentos possíveis. Conforme já tratado
anteriormente, a universalidade está prevista expressamente na Lei Orgânica da Saúde (Lei
8.080/90) e também na Constituição Federal.
Já a reserva do possível tem sido alegada pelos gestores públicos municipais,
estaduais e federal como a impossibilidade do estado em suprir todas as necessidades da
população, em específico naquilo que refere aos direitos sociais como educação, a saúde, a
alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a
proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados...
A análise da questão, ainda que rápida, necessita da adequada compreensão
daquilo que seria “reserva do possível”.
O termo tem origem na tradução de uma palavra de origem alemã utilizada em
uma decisão de 1972 proferida pelo Tribunal Constitucional Alemão que estabeleceu uma
limitação fática condicionada pela reserva do possível sobre aquilo que o cidadão pode exigir
do Estado. O significado adotado lá equivale ao que se utiliza no Brasil. O orçamento público
tem, obviamente, um limite e desse modo deve ser utilizado de forma a harmonizar os
interesses e necessidades dos quais decorrem despesas econômicas. O primeiro responsável
por essa harmonização seria o legislador na elaboração, destinação e aprovação de verbas para
as diversas áreas em que atua o Estado. Observa-se, no entanto, a rejeição da ideia pela
jurisprudência brasileira que tem compreendido de forma errada a “reserva do possível” como
artifício encontrado pela Administração Pública para preservar os recursos financeiros das
determinações proferidas em sentenças judiciais, com fim último de negar a efetivação dos
direitos sociais. Em verdade, ainda que de fato exista a tentativa de burlar a previsão
constitucional protegida e exigida pela intervenção do poder judiciário, a reserva do possível
não pode ser entendida como simples falácia. Trata-se de termo que busca na economia sua
justificativa diante da realidade da escassez de recursos enfrentada pelo Estado em todas as
esferas administrativas assim como pela iniciativa privada. O Estado deve, pois, levar em
consideração os recursos disponíveis e suas prioridades para escolher a melhor forma de
utilizar o dinheiro público. Cabe então o conceito de “escolhas trágicas” no tocante à
impossibilidade econômica que indivíduos e poder público possuem para resolver todas as
necessidades que surgem. Em se tratando do Estado, são referentes às escolhas políticas que
de fato representam uma opção em destinar mais e prioritariamente recursos para áreas de
maior interesse político para o bem comum. Contudo, não se pode confundir a “reserva do
possível” referente à escassez econômica com “impossibilidade técnica”. A impossibilidade
24
técnica trata, por exemplo, de remédios experimentais que até mesmo em virtude de seu
caráter não estão prontos para serem disponibilizados a toda população, enquanto que a
escassez de recursos é exatamente a impossibilidade econômica de produzir o suficiente para
atender a toda demanda que surja (SCAFF, 2013)17
.
A questão parece longe de uma solução pacífica. Afinal, se o cidadão não pode
exigir tudo do Estado, naquilo que pode exigir, o fará sem limites? Havendo, como é comum,
falta de recursos para atender a todos, qual a solução a ser adotada? Seria o caso de um
remanejamento de verbas públicas? Enfim, para o problema proposto em analise nesse
trabalho, mais importante é a diferenciação já feita entre “reserva do possível de caráter
econômico” e “impossibilidade técnica”.
No tocante aos medicamentos experimentais, a reserva do possível ainda que
constante como fator limitador, por restringir até mesmo os recursos do Estado para pesquisas
de novos tratamentos, atua secundariamente em relação à impossibilidade técnica. Os novos
medicamentos e substâncias necessitam ser testados e analisados quanto à segurança e
eficácia em humanos e isso demanda tempo, dinheiro e tecnologias. Ora, de todo modo a
impossibilidade técnica não foge de ser espécie da reserva do possível, uma vez que a falta de
segurança ou técnica de produção viável constituem limites ao que o indivíduo possa cobrar
do estado. Não por acaso crescem a cada dia as demandas judiciais onde se pleiteia o
fornecimento de tratamentos não cobertos pelo SUS o ainda a concessão de remédios novos
ou em fase experimental18
.
Sarlet19
(2009, p. 287) assim compreende a reserva do possível:
A partir do exposto, há como sustentar que a assim designada reserva do possível
apresenta pelo menos uma dimensão tríplice, que abrange a) a efetiva
disponibilidade fática dos recursos para a efetivação dos direitos fundamentais; b) a
disponibilidade jurídica dos recursos materiais e humanos, que guarda íntima
conexão com a distribuição das receitas e competências tributárias, orçamentárias,
legislativas e administrativas, entre outras, e que, além disso, reclama
equacionamento, notadamente no caso do Brasil, no contexto do nosso sistema
constitucional federativo; c) já na perspectiva (também) do eventual titular de um
direito a prestações sociais, a reserva do possível envolve o problema da
proporcionalidade da prestação, em especial no tocante à sua exigibilidade e, nesta
quadra, também da sua razoabilidade.
17 SCAFF, Fernando Facury. Reserva do possível pressupõe escolhas trágicas. Revista Consultor Jurídico, 28
de fevereiro de 2013. Disponível em <http://www.conjur.com.br/2013-fev-26/contas-vista-reserva-possivel-
pressupoe-escolhas-tragicas>. Acesso em: 09 jun.2016. 18
Sobre a distinção entre remédios novos e experimentais ver capítulo 3. 19
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 10ª ed. Porto Alegre: Livraria do advogado,
2009, p. 287.
25
A definição do autor abrange satisfatoriamente as dimensões da reserva do
possível, as quais merecem comentários. Primeiramente, a disponibilidade fática é
fundamental à justificativa da reserva do possível. Sem dinheiro o Estado não consegue
efetivar direitos. De qualquer forma, diante de recursos finitos, cabe ao poder público garantir
o mínimo existencial, ou seja, aqueles direitos e serviços básicos e fundamentais de que
necessitam todos os cidadãos. A reserva do possível não deve, portanto, ser justificativa para o
não atendimento às demandas de saúde pública, mas, ao contrário, deve ser a principal razão
do bom uso do limitado orçamento visando garantir o mínimo existencial.
Isso já ocorre com, por exemplo, as vacinas. Diante de surtos como a dengue ou a
gripe o governo, tendo pouco tempo para agir e recurso limitado no momento, seleciona
grupos de risco, mais vulneráveis para aplicar o medicamento imediatamente. Nesses casos
cabe ao governo elaborar estratégias para atingir da melhor forma os objetivos da prevenção e
proteção da saúde pública.
Em seguida, a dimensão da disponibilidade jurídica merece alguma crítica. Ainda
que o orçamento preveja um montante específico de gastos para a saúde, sendo o recurso
insuficiente, nada justifica a manutenção de valores para propaganda institucional do governo
ou mesmo o altíssimo número de cargos de confiança e comissionados em todas as esferas do
poder público brasileiro, ou ainda gigantescas e inacabadas obras, muitas delas sem retorno
efetivo nenhum para a população.
A garantia dos direitos fundamentais deve ser a prioridade das verbas públicas,
obviamente resguardando as funções básicas da máquina estatal. De tal modo, a principal
defesa dos Estados e Municípios nas demandas de saúde tem sido o limite dos gastos com a
saúde em respeito à lei orçamentária.
Contudo, as regras estatais não devem estar acima dos direitos do homem. Afinal,
o Estado nasceu para atender ao ser humano. Sua única função é prestar-lhe serviço, de tal
modo que nenhuma construção da estrutura e organização estatal pode sobrepujar os direitos e
liberdades do homem, anteriores aos regramentos públicos. Isso porque o Estado não tem
objetivos e interesses próprios, mas somente é instrumento de efetivação dos direitos do
homem (MARTINS, 1985)20
.
Faz-se necessário, portanto, a prudência na aplicação do princípio da reserva do
possível de tal modo que a última dimensão apresentada por Ingo Sarlet apresenta-se como a
mais adequada limitação da prestação estatal.
20
MARTINS, Ives Gandra da Silva. A justiça e a lei positiva in Lei Positiva e Lei Natural. Caderno de Direito
Natural. Vol 1. Belém: CEJUP, 1985, pp.21/27.
26
No tocante ao terceiro aspecto, tratando da razoabilidade, certamente não pode o
indivíduo exigir da coletividade obrigação não prevista em lei, ou passível de prejudicar a
coletividade em favor de um particular. Exemplificando, não seria razoável a aplicação de
todo recurso público disponível no município para atender a um paciente em prejuízo de todos
os outros pacientes atendidos com os mesmo recursos.
Além disso, a atuação estatal deve obviamente prezar pela razoabilidade nos atos,
de modo a limitar-se pelo sensato, moderado, sem transpor os limites de sua responsabilidade
ainda havendo recurso financeiro disponível. Nem toda pretensão pode e deve ser atendida
pelo Estado. O princípio da legalidade, basilar da administração pública, veda ao Estado a
atuação naquilo que não está normatizado.
Ora, ainda que houvesse quantidades muito superiores de recursos, permitir e
atender toda e qualquer pretensão individual colocaria em risco a segurança do indivíduo, da
coletividade e representaria uma sobrecarga nas responsabilidades do estado. Como bem
prevê o artigo 2º, §2º da Lei nº 8.080/90, o dever do Estado não exclui o dever dos indivíduos,
das famílias e empresas. Assim, a reserva do possível supera a possibilidade de recursos e
adentra, de modo complementar, na razoabilidade da prestação e na existência ou não de
obrigação do Estado em fornecer o pleito do indivíduo.
Aparentemente, a reserva do possível só merece acolhimento quando existe real e
absoluta escassez de recurso e este foi utilizado da forma mais adequada possível dentro
daquilo que é de responsabilidade do estado. Ademais, havendo escassez para a área de saúde,
recursos devem ser remanejados para seu atendimento e ainda que não haja mais recursos,
assim que forem obtidos a prioridade deve ser a saúde pública.
Em verdade, encarar a limitação da atuação estatal na saúde como mero controle
de gastos é entender (de forma errada) o Estado com função exclusiva de gestor financeiro
ignorando sua função de prevenção, proteção e manutenção da saúde.
Com efeito, Barcellos21
(2008) defende que de fato os recursos são limitados e
essa limitação não pode ser ignorada, devendo o intérprete e assim também o magistrado levar
essa realidade em conta ao exigir judicialmente algum bem jurídico do Estado. Por outro lado,
o Estado recolhe recursos exatamente para que os direitos fundamentais previstos
constitucionalmente sejam garantidos e realizados por meio dos gastos públicos. Em verdade,
o objetivo da Constituição Federal de 1988 bem como de outras constituições modernas está
em assegurar o bem-estar do homem com base na sua dignidade que envolve dentre outros os
21
BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade da
pessoa humana. 2ª ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, pp. 271-272.
27
direitos individuais e condições mínimas matérias. Os elementos essências dessa dignidade,
chamados mínimo existencial, determinam as prioridades do gasto público. Desse modo,
estabelecendo prioridades, o mínimo existencial não conflita com a reserva do possível.
Considerando o Estado como servo do povo, a reserva do possível, ao contrário da
forma como é utilizada atualmente para negar a prestação de serviços básicos à população,
deveria ser pensada e utilizada para a máxima priorização de áreas fundamentais como a
saúde. O mínimo existencial representa, pois, o foco dessa reserva do possível.
Do mesmo modo, o termo “mínimo” limita o direito individual e coletivo de
requerer serviços do poder público que não se encontrem nessa esfera. Representa aquilo que
não pode faltar ao ser humano, o básico, o essencial, o imprescindível e não aquilo que o
Estado considera como o que pode fornecer minimamente. A limitação resulta do próprio
conceito e não de uma determinação administrativa.
O mínimo elementar é a vida. Nesse sentido, o fornecimento de medicamentos a
doentes graves é prioridade do Estado. Nessa situação já está superada a prevenção da saúde,
restando somente a tentativa de restauração do estado sadio por meio de medicamentos. O
Estado, portanto, ciente das limitações da reserva do possível, deve reservar prioritariamente
seus recursos à saúde e não omiti-los, sob pena de não funcionar para o fim ao qual se destina.
2.4 Judicialização da saúde
De toda forma, no Brasil os problemas que a área da saúde enfrenta como
deficiência de recursos, má-distribuição e utilização dos serviços, a corrupção e desvio de
verbas além do pouco incentivo às novas tecnologias e pesquisas representam enorme desafio
na atuação estatal. Consequentemente, a judicialização da saúde tem sido a maneira
encontrada pela população para obter acesso aos tratamentos e medicamentos fornecidos pelo
SUS e até mesmo a outros tratamentos não previstos e medicamentos não regulamentados.
Acionado, o Poder Judiciário enfrenta quase sempre a questão da escassez. Trata-
se, contudo, de um problema às vezes relativo. Se por um lado muitas prefeituras enfrentam a
total falta de recursos22
, o que impossibilita de todo modo o cumprimento de decisões
judiciais que obriguem, por exemplo, o fornecimento de medicamentos, inversamente, outras
22
O prefeito de Tabapuã/SP, Jamil Seron (PSDB), afirma que há falta de remédios no município por conta da
falta de recursos. “Praticamente zerou tudo. Está faltando quase tudo”, afirmou. O prefeito admitiu que cortou
cerca de 10 cargos em comissão - de livre nomeação e exoneração do chefe do Executivo. Disponível em: <
http://www.diariodaregiao.com.br/politica/sem-dinheiro-prefeituras-est%C3%A3o-paralisadas-1.387130>.
Acesso em: 09 jun. 2016.
28
prefeituras, Estados23
e União se negam a cumprir as determinações judiciais enquanto
utilizam seus recursos sem priorizar os direitos fundamentais para dar destaque a banalidades
como pintar os prédios públicos com as cores do partido que no momento detenha o poder.
Nesses casos, a reserva do possível não pode ser alegada como negativa à
prestação jurisdicional. Não há, de fato, escassez, somente mau uso do dinheiro público. E,
havendo escassez, cabe o melhor uso do recurso. Não é razoável que o direito à saúde seja
deixado de lado por falta de recursos enquanto o dinheiro público é gasto com obras e festas
desnecessárias. Daí as decisões judiciais serem, em sua maioria, desfavoráveis aos estados,
municípios e união que não conseguem comprovar a total inexistência de recursos.
Em ação levada ao Supremo Tribunal Federal (STF)24
que versava sobre a
obrigação do estado em custear leitos privados a pacientes atendidos pelo SUS diante da
inexistência de leitos vagos em hospitais públicos, o relator Ministro Celso de Mello destacou
a atuação inafastável do Poder Judiciário em dar efetividade aos direitos sociais sob pena de
ineficácia da própria Constituição Federal. A inércia do poder público na prestação positiva
configuraria violação negativa de dos deveres constitucionais impostos ao Estado, o que o
STF já definiu em outros julgados como inconstitucionalidade por omissão. Nesse caso, o
Ministro considerou que não consta como função ordinária do Poder Judiciário a
implementação de políticas públicas, mas cabendo primariamente aos Poderes Legislativo e
Executivo, a atribuição seria exercida, excepcionalmente, pelo Poder Judiciário quando
aqueles faltarem com suas obrigações políticas de proteção e eficácia dos direitos protegidos
constitucionalmente seja em caráter individual ou coletivo.
Essa atuação do Poder Judiciário nas funções originárias do Poder Legislativo e
Executivo não pode ser entendida como mera liberalidade, sobreposição do Judiciário sobre
os demais poderes ou criação funcional do STF, mas está contida anteriormente na própria
Constituição Federal em seu artigo 5º, XXXV, bem como também na já citada Declaração
Universal dos Direitos Humanos em seu artigo 8º onde se lê que “todo ser humano tem direito
a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os
direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei”.
23
“Isso é um absurdo enorme, sem precedentes. Enquanto o Estado gasta dinheiro para pintar as farmácias com a
cor do partido, os estoques de medicamentos minguam”, disse Geraldo Lucas Lamounier, prefeito de Camacho,
município no Centro-Oeste de Minas. Disponível em: < http://turmadochapeu.com.br/pimentel-gasta-r-34-
milhoes-para-pintar-farmacias-de-vermelho/>. Acesso em: 09 jun. 2016. 24
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental 727864 PR. Agravante: Estado do Paraná. Agravado:
Ministério Público do Estado do Paraná. Relator: Min. Celso de Mello. Brasília, 4 de novembro de 2014.
Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7218726>. Acesso em:
23 jun. 2016.
29
Todavia, a atuação antes pontual do Poder Judiciário em casos individuais tem
crescido ano após ano assustadoramente de tal modo que já representa impacto considerável
nas contas dos Estados e União, sem contar a situação dos pequenos Municípios onde uma só
decisão judicial que determine o cumprimento de uma compra e fornecimento de
medicamento individual compromete todo ou parcialmente o recurso municipal para a saúde.
Assim sendo, Amaral25
(2010) alerta que “as decisões judiciais tomadas no âmbito
da micro-justiça26
podem potencialmente comprometer o orçamento na medida em que, ao
exceder os limites estruturais do sistema jurídico, passam, na prática, a alocar recursos,
determinando de que maneira eles devem ser gastos”.
Por outro lado, apesar do SUS ser um sistema universal com objetivo de atender a
todos os brasileiros, em muitos casos isso não ocorre. Em consequência, milhares de ações
individuais e coletivas são ajuizadas todos os anos em busca de tratamentos e medicamentos
que sejam fornecidos pelo sistema ou não. Em reflexão, ainda que não se possa ignorar o
impacto nas contas públicas, as decisões judiciais apenas efetivam o sistema de saúde adotado
pelo Brasil na Constituição de 1988. Nesse sentido, os tribunais superiores possuem
jurisprudência pacífica quanto ao justificado pleito judicial na efetivação do direito à saúde.
Além disso, o poder público não pode, na tentativa de desobrigar-se de efetivar os
direitos sociais, alegar que para cumprir decisão judicial em ação individual deixará de
atender demandas coletivas. De fato, isso representaria uma transferência de responsabilidade
da má gestão na saúde pública para o cidadão doente. Cabe, portanto, à Administração
Pública gerir os recursos de modo a transferi-los de áreas menos importantes para o
cumprimento de decisões judiciais na área da saúde.
Uma vez que o ente tenha em verdade esgotado seus recursos e possibilidades, a
responsabilidade deverá ser compartilhada com os demais de forma solidária conforme
previsão constitucional 27
e sólida jurisprudência do Supremo Tribunal Federal28
.
25
AMARAL, Gustavo. Direito, escassez e escolha: em busca de critérios jurídicos para lidar com a
escassez de recursos e as decisões trágicas. Rio de Janeiro: Editora Lumem Juris, 2010. p. 17. 26
Nota: O autor utiliza o termo micro-justiça para referir-se às decisões individualizadas que não contemplam ou
não geram eficácia de direitos à coletividade. 27
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
[...]
II - cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;
[...]. 28
“O Supremo Tribunal Federal (STF) reafirmou jurisprudência sobre a responsabilidade solidária dos entes
federados no dever de prestar assistência à saúde. A decisão foi tomada na análise do Recurso Extraordinário
(RE) 855178, de relatoria do ministro Luiz Fux, que teve repercussão geral reconhecida, por meio do Plenário
Virtual”. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Entes federados têm responsabilidade solidária na assistência à
saúde, reafirma STF. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=287303>. Acesso em: 10.jun.2016.
30
O problema interessante ao presente trabalho ocorre quando o Poder Judiciário
interfere nas decisões técnicas concernentes à saúde. No caso de um paciente que,
necessitando de tratamento, requer judicialmente um medicamento novo não fornecido pelo
SUS, o pedido merece acolhimento e deferimento por parte do poder judiciário?
No Brasil os medicamentos fornecidos pelo sistema de saúde estão elencados na
Relação Nacional de Medicamentos Essenciais – RENAME. Contudo, é insustentável a
pretensão de exaustão da lista quanto aos medicamentos fornecidos. Uma vez que,
comprovadamente, um paciente precise de certo remédio prescrito por seu médico como mais
adequado ao tratamento da doença e este remédio não esteja incluído na lista, não parece
razoável a negativa no fornecimento. De fato, atualizações são feitas periodicamente na
RENAME ampliando a lista ano após ano, porém é comum que não acompanhem em tempo
hábil as necessidades e novas tecnologias na área da saúde.
Nesse sentido, o entendimento adotado pelo STF ora apoiado tem sido a
determinação “de fornecimento de medicamento não incluído na lista padronizada fornecida
pelo SUS, desde que reste comprovação de que não haja nela opção de tratamento eficaz para
a enfermidade29
”. O critério de eficácia deve sempre levar em consideração as variáveis
subjetivas de cada paciente, o que vincula o fornecimento de medicamento não constate na
lista do SUS especialmente ao diagnóstico e prescrição médica. Nesse contexto é necessário
esclarecer que mesmo existindo tratamento no SUS para a doença, se o tratamento não
atender da melhor forma a restauração da saúde do paciente com base naquilo que indicar o
médico responsável, o paciente poderá pleitear outro tratamento.
Mais uma vez, destaca-se que o direito à saúde é indissociável do direito à vida,
daí porque deva ser tratado com privilégio e responsabilidade pelo Estado.
29
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ag. Reg. no Recurso Extraordinário 831.385 RS . Agravante: Estado do
Rio Grande Do Sul. Agravado: Floriani Silva dos Santos. Relator: Min. Roberto Barroso. Brasília, 17 de março
de 2015. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=8143345>.
Acesso em: 23 jun. 2016.
31
3. SEGURANÇA SANITÁRIA: ASPECTOS ÉTICOS E JURÍDICOS
O medicamento farmacêutico (produzido em laboratório) serve, sobretudo, para a
recuperação da saúde. Contudo, seu uso apresenta risco, possibilidades de efeitos colaterais e
outras reações indesejadas. Cabe à Administração Pública, portanto, regular sua utilização,
seja no fornecimento aos indivíduos quanto na permissão para a venda, distribuição ou
mesmo teste em seres humanos. O estado ao mesmo tempo em que é vedado de causar dano à
saúde do indivíduo, também deve realizar ações no sentido de proibir a utilização de
medicamentos e substâncias ainda não regulamentadas, não testadas ou que já testadas e
proibidas por oferecerem risco à saúde. A Constituição Federal de 1988 obriga o Estado
brasileiro nos moldes do artigo 197 a estabelecer regulamentação, fiscalização e controle
sobre as ações e serviços públicos. Nesse sentido, Dallari (1988) afirma:
Contudo, atualmente, a saúde não tem apenas um aspecto individual que respeita
apenas a pessoa. Não basta que sejam colocados à disposição dos indivíduos todos
os meios para promoção, manutenção ou recuperação da saúde para que o Estado
responda satisfatoriamente à obrigação de garantir a saúde do povo. Hoje os Estados
são, em sua maioria, forçados por disposição constitucional a proteger a saúde
contra todos os perigos. Até mesmo contra a irresponsabilidade de seus próprios
cidadãos. A saúde "pública" tem um caráter coletivo. O Estado contemporâneo
controla o comportamento dos indivíduos no intuito de impedir-lhes qualquer ação
nociva à saúde de todo o povo. E o faz por meio de leis. É a própria sociedade por
decorrência lógica que define quais são esses comportamentos nocivos e determina
que eles sejam evitados, que seja punido o infrator e qual a pena que deve ser-lhe
aplicada. Tal atividade social é expressa em leis que a administração pública deve
cumprir e fazer cumprir30
.
No Brasil, compete ao SUS por meio de ações de vigilância sanitária esse controle
e fiscalização conforme estabeleceu a Lei nº 8.080/90 que regula em todo o território nacional
as ações e serviços de saúde (art.1º). As ações de vigilância sanitária compreendem “um
conjunto de ações capaz de eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde e de intervir nos
problemas sanitários decorrentes do meio ambiente, da produção e circulação de bens e da
prestação de serviços de interesse da saúde, abrangendo o controle de bens de consumo que,
direta ou indiretamente, se relacionem com a saúde, compreendidas todas as etapas e
processos, da produção ao consumo31
”.
Em síntese, a vigilância sanitária atua na prevenção de risco à saúde desde a
produção até o consumo de medicamentos e substâncias relacionados à saúde.
30
DALLARI, Sueli Gandolfi. Uma nova disciplina: o direito sanitário. Rev. Saúde públ., S. Paulo, 22:327-34,
1988. 31
Artigo 6º, §1º da Lei 8.080/90.
32
No Brasil, a coordenação nacional das ações de vigilância sanitária é realizada
pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA, criada por meio de Lei nº
9.782/99, com status de autarquia sob regime especial com a finalidade de “promover a
proteção da saúde da população, por intermédio do controle sanitário da produção e consumo
de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária, inclusive dos ambientes, dos
processos, dos insumos e das tecnologias a eles relacionados32
”. Dentre outras competências,
destacam-se:
Art. 7º Compete à Agência proceder à implementação e à execução do disposto nos
incisos II a VII do art. 2º desta Lei, devendo:
[...]
III - estabelecer normas, propor, acompanhar e executar as políticas, as diretrizes e
as ações de vigilância sanitária;
[...]
IX - conceder registros de produtos, segundo as normas de sua área de atuação;
XV - proibir a fabricação, a importação, o armazenamento, a distribuição e a
comercialização de produtos e insumos, em caso de violação da legislação pertinente
ou de risco iminente à saúde;
XXIV - autuar e aplicar as penalidades previstas em lei.
Dentre os produtos submetidos ao controle, fiscalização e regulamentação da
Anvisa estão os medicamentos de uso humano, suas substâncias ativas e demais insumos,
processos e tecnologias (art.8º, §1º, I). Esse controle é exercido sobre qualquer substância que
possa causar risco à saúde, estando registrada ou não, abrangendo ainda medicamentos
importados sem registro pela Anvisa.
No caso dos medicamentos importados, é possível solicitar à Anvisa uma
autorização para importação de substâncias sem registro no Brasil para pessoas físicas, desde
que acompanhado de laudo e prescrição médica. Sem a autorização o produto não pode entrar
no Brasil e em algumas situações (substâncias controladas internacionalmente) o produto nem
mesmo consegue autorização para sair do país de origem.
A Anvisa disponibiliza em seu sítio virtual a lista das substâncias possíveis de
serem importadas (Portaria SVS/MS nº 344/1998 -Anexo I). Além das substâncias contidas na
portaria, outras podem ser requeridas. A análise e autorização constituem atribuições
discricionárias da agência.
De qualquer forma, a Anvisa atribui ao médico solicitante a responsabilidade pela
utilização do medicamento e somente para uso próprio do paciente acompanhado. Trata-se de
32
BRASIL. Lei 9.782 de 26 de janeiro de 1999. Define o Sistema Nacional de Vigilância Sanitária, cria a
Agência Nacional de Vigilância Sanitária, e dá outras providências. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9782compilado.htm>. Acesso em 18 jun.2016.
33
exceção que ainda assim guarda o equilíbrio entre eficácia e segurança pretendidos pelas
ações da Anvisa no controle de medicamentos.
A concessão tem caráter individual, não coletivo, e admite novos medicamentos,
ou seja, substâncias já utilizadas pelos médicos e registradas em outros países que ainda não
chegaram ao Brasil ou não passaram pelos procedimentos administrativos de regularização
segundo as normas brasileiras. Necessário, pois, a distinção entre novos medicamentos e
medicamentos experimentais.
O STF, em julgamento da Suspensão de Tutela Antecipada33
STA 175 ocorrido em
2010, determinou distinções entre medicamentos novos e medicamentos experimentais. No
caso, uma jovem portadora de patologia neurodegenerativa requereu junto ao Município de
Fortaleza (CE) e União o fornecimento de medicamento não constante na lista do SUS, por
ser de alto custo. Mesmo não constando na lista, o medicamento possuía registro no Brasil e
também na Europa, tendo sido prescrito por médico responsável. Em voto vencedor, o
Ministro (Presidente) Relator Gilmar Mendes negou provimento ao agravo regimental
interposto pela União contra a decisão da Presidência do STF na qual indeferiu o pedido de
suspensão de tutela antecipada n.º 175, formulado pela União.
Na ocasião, o Ministro Gilmar Mendes distinguiu as categorias de medicamentos
sem registro pela Anvisa. Os medicamentos experimentais (sem garantia de segurança na
utilização por humanos e sem comprovação científica de eficácia) são de uso restrito em
pesquisas em laboratórios, não sendo possível obrigar o Estado a fornecê-los pois não
possuem registro no Brasil ou em outros países.
Já os novos medicamentos são substâncias não fornecidas pelo SUS em virtude
dos procedimentos administrativos burocráticos de incorporação de novas tecnologias e
tratamentos. Contudo, já possuem aprovação e liberação de uso em outros países e, em alguns
casos, também no Brasil. Isso porque o registro pela Anvisa é critério fundamental e anterior à
incorporação do medicamento à lista do SUS.
Nesse caso, os critérios de eficácia e segurança já foram submetidos e aprovados,
não havendo motivo para a recusa do Estado em fornecer o medicamento quando este se
provar mais adequado à restauração da saúde. Na hipótese do registro somente em país
estrangeiro, a Anvisa pode conceder permissão para importação sob pedido médico.
33
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ag. Reg. na Suspensão de Tutela Antecipada 175 CE. Agravante: União.
Agravado: Ministério Público Federal e outros. Relator: Min. Gilmar Mendes (Presidente). Brasília, 17 de março
de 2010. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28175%2ENUME%2E+OU+175%2E
ACMS%2E%29&base=baseAcordaos&url=http://tinyurl.com/nv92q69>. Acesso em: 23 jun. 2016.
34
3.1 Direito Sanitário
O Direito Sanitário, ramo ainda em desenvolvimento no Brasil, é de todo modo
indissociável do direito à saúde. Contudo concerne ao conjunto de regras de segurança que
obrigam e orientam as atividades de vigilância sanitária do estado em sua atuação na saúde
pública. Portanto, enquanto o direito à saúde tem por fim essencial a disponibilidade de
serviços e condições de saúde aos indivíduos de forma ampla, o direito sanitário possui
caráter regulatório da atividade estatal no controle e segurança dos produtos fabricados e
disponibilizados. Aborda também o efetivo poder de polícia34
em relação às substâncias
utilizadas na área de saúde.
O Direito Sanitário é ramo do Direito que regula e efetiva o direito à saúde. Nesse
sentido, Aith35
(2007) define como “ramo do Direito que disciplina as ações e serviços
públicos e privados de interesse à saúde. Ele é formado pelo conjunto de normas jurídicas
(regras e princípios) que visa à efetivação do Direito à saúde e possui um regime jurídico
específico”.
Dallari (2003)36
compreende o Direito Sanitário como responsável tanto pela
efetivação da saúde enquanto direito humano reivindicado como pela saúde pública enquanto
normas jurídicas de prevenção, proteção e recuperação da saúde. Decerto, é por meio da
atuação regulatória que o direito sanitário exerce sua função em relação ao direito à saúde.
Em verdade, o crescimento da normatização sanitária tem destacado o direito
sanitário como ramo próprio mesmo tomando emprestado princípios de outros ramos. No
caso do direito administrativo, princípios como legalidade, eficiência e moralidade são
obrigatoriamente admitidos ao direito sanitário, notadamente em virtude de seu caráter
público. Em nosso entendimento o ramo sanitário, ainda que indissociável do direito à saúde,
merece distinções didáticas em pelo menos duas classificações adotadas. O direito sanitário
34
Nota: Extraído do Código Tributário Nacional (Lei 5.172/66) a definição de poder de polícia:
Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando
direito, interêsse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de intêresse público
concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício
de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou
ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos. 35
AITH, Fernando. Curso de Direito sanitário: a proteção do direito à saúde no Brasil. São Paulo: Quartier
Latin, 2007. Pág. 91
36 DALLARI, Sueli Gandolfi. Direito Sanitário. In BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Direito sanitário e
saúde pública. Vol. I: Coletânea de textos. Brasília: Ministério da saúde, 2003. p. 48.
35
seria, pois, direito objetivo e positivo enquanto que o direito à saúde seria subjetivo e natural.
Em toda forma, o direito sanitário está voltado ao direito à saúde, este mais amplo e anterior.
Nesse seguimento, Caio Mário da Silva Pereira define o direito positivo como
“[...] conjunto de regras e princípios jurídicos que pautam a vida social de determinado povo
em determinada época37
”.
Há no direito positivo o real e necessário componente de tempo/espaço de onde
se extrai que a vigência é o fundamento do direito positivo composto pelas normas e
regulamentos formulados a partir da legislação votada pelo Poder Legislativo, regulamentos
do poder executivo, jurisprudência dos tribunais e demais regramentos da administração
pública além das normas e políticas internacionais editadas, em exemplo, pela OMS.
De tal modo o direito positivo tem sua legitimidade na vigência e tem sua
abrangência e aplicação variável nos territórios e períodos. Aplicado ao Direito Sanitário, este
possui regramentos previstos na lei e complementados pelas portarias, resoluções e outras
normas editadas, por exemplo, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Certamente as
normas são variáveis em cada país e no caso brasileiro é cada vez maior o número de normas
e critérios que visam regular o setor sanitário na saúde.
Em outra análise, o direito natural, aqui entendido como o direito à saúde, está
acima do direito sanitário, das normas criadas pelo legislador nacional. Em verdade, mesmo
diante da ausência de normas sanitárias no Brasil, o direito à saúde continuaria a existir e seria
invocado na defesa do direito à vida do qual é pressuposto e componente. O caráter humano,
universal e fundamental do direito à saúde não depende, pois, de normatização, sendo eterno,
anterior, atual e posterior, sempre válido e vigente em face da própria natureza humana.
O Direito Sanitário está contido no direito à saúde. É um conjunto de leis e
normas que busca realizar a proteção da saúde enquanto direito de todos e dever do estado.
Recorrendo ainda ao civilista Caio Mario da Silva Pereira, conceitua-se o direito
em objetivo ou subjetivo:
Na sua polivalência semântica, a palavra direito ora exprime o que o Estado ordena,
impõe, proíbe ou estatui, ora significa o que o indivíduo postula, reclama e defende.
[...] Para distinguir um e outro sentido, qualifica-o, no primeiro caso, como direito
objetivo, traduzindo o comando estatal, a norma de ação ditada pelo poder público
[...] No segundo caso, acrescenta-lhe outro adjetivo para denominá-lo direito
subjetivo, abrangendo o poder de ação contido na norma, a faculdade de exercer em
favor do indivíduo o comando emanado do Estado [...]. Direito subjetivo e direito
objetivo são aspectos de um conceito único, compreendendo a facultas e a norma os
dois lados de um mesmo fenômeno, os dois ângulos de visão do jurídico. Um é o
aspecto individual, outro o aspecto social.
37
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 25ª ed. Vol. I . Rio de Janeiro: Forense, 2012.
36
Claramente, a saúde enquanto direito subjetivo pode e deve ser reclamada pelos
indivíduos e isso tem acontecido mais destacadamente através do acionamento do poder
judiciário. Não deixa de ser uma defesa do indivíduo ante uma ofensa do estado (não
prestação do atendimento). Em complemento, o direito objetivo está posto, dentre outras, em
normas sanitárias de fiscalização, produção, registro, comercialização e fornecimento de
produtos como remédios. Nesse caso, o estado proíbe ou impõe condições para os
medicamentos e substâncias bioquímicas aos quais estarão expostos os indivíduos.
Contudo, não se trata de um conflito, mas de relação de equilíbrio entre o
indivíduo e a coletividade. As regras sanitárias visam assegurar o direito do indivíduo a
medida que orientam os limites do próprio estado e também dos próprios indivíduos (ou
empresas). Sem o regramento e o poder de polícia do estado para fazê-lo valer e cumprir se
correria o risco de um domínio demasiado do indivíduo sobre as funções do estado. Ainda que
desagradável, até mesmo a disponibilidade de serviços, ações, procedimentos e medicamentos
para saúde devem ser limitados.
O indivíduo não pode exigir tudo que queira do estado sob pena de causar dano à
coletividade e a si mesmo. Do mesmo modo, não pode exigir atitude omissiva do Estado que
se por um lado não pode fornecer, também não poderá permitir tudo, ainda que adquirido pelo
indivíduo por seus próprios recursos como, por exemplo, já ocorre no caso da proibição ao
uso de drogas ilegais (como a cocaína) e antibióticos sem receita médica. Ora, Estado e
indivíduo são sujeitos de uma relação jurídica onde o bem jurídico a ser protegido é a saúde.
Assim, quando a vontade do indivíduo é orientada em sentido oposto à efetivação da saúde,
cabe ao poder público a proteção da saúde, conquanto na prática o principal agente
responsável pela saúde seja o próprio titular do direito. Além disso, conciliar as medidas de
saúde pública com as liberdades individuais constitui o maior desafio do governo brasileiro.
Da mesma forma, embora tenhamos estados e constituições sociais onde o direito
subjetivo encontra-se submetido ao direito objetivo38
e dentro dos seus limites é exercido, a
relação é configurada pelo direito-dever como o constituinte previu a saúde no artigo 196 39
da
Constituição Federal de 1988.
38
Nota: No século XX, sobretudo após as duas grandes guerras, a constitucionalização dos direitos sociais deu
origem ao estado de bem-estar social intervencionista, forma de organização político-econômica adotada por
muitos países ocidentais onde o estado passou a destacar-se como principal agente defensor e promotor dos
direitos da população. Destaca-se a elaboração de constituições dirigentes e extensivas como a Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988 com enfoque nitidamente social e coletivo em sentido contrário a
constituições liberais como a Constituição dos Estados Unidos da América de 1787 que promoveu direitos civis
individuais. 39
Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que
visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços
37
Esse dever do Estado, como já tratado anteriormente, refere-se tanto às ações
públicas, fiscalização e regulamentações como também a permissão a certo grau de liberdade
do indivíduo. A bebida e o cigarro, embora toda a publicidade alertando para os malefícios à
saúde e a elevada carga tributária, são drogas admitidas socialmente. De igual modo, alguns
remédios, antitérmicos, anti-inflamatórios, analgésicos, comprimidos para emagrecimento,
sais, vitaminas, ervas naturais contra câncer, antibióticos e suplementos alimentares podem
ser comprados em farmácias e lojas de produtos naturais sem receita médica, o que revela
uma liberdade, mesmo desencorajada se realizada sem prescrição médica.
Verdadeiramente, há no Brasil uma cultura de automedicação. Nesse caso, a
liberdade demasiada do indivíduo pode trazer graves consequências à saúde e mesmo
diminuir a eficácia dos remédios, além de colaborar, em alguns casos, para o surgimento de
novas formas de doenças. Os riscos aumentam à medida que a população começa a utilizar a
automedicação para tratamento de doenças graves como AIDS e câncer. Em verdade, já se
encontra há tempos no mercado drogas e substâncias que prometem curar todo tipo de doença
sem que haja liberação médica e sanitária para tal uso.
Nesses casos, é razoável que o estado, conforme o direito objetivo e atuando em
seu dever de proteção à saúde, elabore normas de direito sanitário e use do monopólio da
força para restringir tais situações.
3.2. Ética Sanitária
No âmbito privado, o que se vê é a mercantilização da saúde e seus serviços.
Obviamente, produtos, serviços e remédios são produzidos em escala industrial e demandam
altos valores de investimento, o que no setor privado implica um valor a ser resgatado como
lucro. Por um lado, a concorrência, o livre mercado e os altos investimentos da indústria
farmacêutica e do mercado de saúde como um todo proporcionam desenvolvimento
tecnológico e científico gerando como resultado cura e tratamento para doenças antes
consideradas epidemias ou sem tratamento como a tuberculose, a AIDS, alguns vírus da gripe,
entre outros. Por outro lado os interesses comerciais e a busca do lucro (objetivo natural de
toda empresa privada) exigem do poder público uma atuação visando a segurança dos
produtos oferecidos no mercado. Em verdade, a quantidade de produtos que aparecem todos
os dias para a saúde trazem consigo o risco real de dano e necessitam passar por
procedimentos de teste, aprovação e registro junto às autoridades sanitárias.
para sua promoção, proteção e recuperação.
38
O desafio das agências reguladoras, como a Agência Nacional de Vigilância
Sanitária no caso dos medicamentos, é realizar uma fiscalização eficiente ao mesmo tempo
em que se reduzam os processos burocráticos e o tempo de aprovação de novas substâncias
para resguardar o interesse dos cidadãos que, no caso da saúde, são sempre urgentes.
Isso porque na busca do lucro e muitas vezes usando de meios publicitários,
midiáticos e ainda do sofrimento e fragilidade dos doentes esperançosos em busca de cura e,
por que não dizer de um milagre, as empresas e laboratórios promovem substâncias que não
possuem eficácia comprovada. Dallari (2003) destaca que a busca do lucro, tratando a saúde
apenas como um mercado, afastando a questão ética transforma o próprio ser humano em
simples mercadoria sob a qual vigora somente as leis de mercado e compromete sua
integridade física e mental40
.
Para o autor, a ética sanitária não constitui um corpo de regras formais prontas e
criadas somente para que sejam cumpridas suas disposições, mas a convicção de que a
prioridade do direito sanitário é a pessoa humana exigindo do agente sanitário uma reflexão
permanente uma vez que as ações sanitárias implicam diretamente na vida, na saúde e bem-
estar das pessoas, o que requer uma harmonização dos serviços e interesses, sem que se olvide
a pessoa humana em sua dignidade.
A ética sanitária atua como freio nessa mercantilização da saúde, dos direitos e do
ser humano. Afinal, as regras de comércio, a normatização, o direito sanitário como norma
positivada, todos são posteriores ao direito à saúde, inerente ao ser humano. Portanto, a ética
sanitária pautada por um controle e filtragem daquilo que chega à população se faz necessária
e é irrenunciável num estado social democrático onde se tem por meta a proteção e promoção
da saúde de seus cidadãos.
Nesse contexto, não se pode olvidar das substâncias promissoras no combate a
doenças ainda não testadas devidamente. De fato, são somente promessas. Ainda que questões
emocionais e psicológicas estejam envolvidas, a atuação estatal deve estar pautada pela
racionalidade e prudência na liberação de novos produtos. O Estado brasileiro agiria com
imensa irresponsabilidade se permitisse o livre comércio de substâncias sem a certificação
necessária. Além disso, seria uma afronta à Constituição Federal que confia à atuação estatal a
redução do risco de doenças (art.196) e veda a aplicação de tortura, tratamentos desumanos e
40 DALLARI, Dalmo de Abreu. Ética sanitária. In BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Direito sanitário e
saúde pública. Vol. 1: Coletânea de textos. Brasília: Ministério da Saúde, 2003. p 72.
39
qualquer outra situação que agrida a integridade física e viole a dignidade humana como a
venda de órgãos ou sangue.
Em todo caso, nas relações de saúde a ética sanitária é exercida pelo Estado
sempre como uma ação positiva e com poder de polícia. Mesmo nos casos levados ao Poder
Judiciário, em rigor se pede que o estado realize, forneça, libere ou compre algo. Todavia, em
algumas situações o indivíduo exige do estado uma prestação negativa ou ainda positiva
contrária à legislação sanitária. Nesse sentido alguns exemplos a serem citados são a liberação
do uso da cannabis41
no Brasil, o fornecimento de fosfoetanolamina42
sem registro pela
Anvisa a pacientes com câncer, e a aprovação da lenalidomida43
pela Anvisa.
Como autarquia, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária 44
deve sempre agir
com responsabilidade, buscando conferir a segurança e eficácia dos medicamentos. A falta de
um desses requisitos atenta também contra a dignidade humana e a saúde. A liberação de uma
substância sem comprovada segurança implicaria na exposição das pessoas a riscos de
doenças e outros efeitos o que se opõe diretamente à função das normas sanitárias e confere
ao indivíduo doente a situação imprópria de experimento científico. Os remédios
experimentais em fase de testes possuem protocolo próprio, e seguem critérios científicos cujo
foco é a pesquisa e o fornecimento restrito aos voluntários.
No mesmo sentido, a liberação de uma substância segura à utilização, mas sem
eficácia representaria charlatanismo e ofensa à dignidade. Válido lembrar que o conceito de
saúde aborda também a dimensão do bem-estar mental. Dessa forma é necessário considerar
os danos psicológicos ao doente e sua família diante dos falsos tratamentos, inúteis nas
funções de proteção, prevenção e restauração da saúde.
Cumpre à ética sanitária por suas normas promover o maior bem possível aos
cidadãos sem, contudo, expor aos riscos, agindo para proteger a vida e dignidade humana.
41
Espécie de planta com efeitos psicotrópicos devido ao THC (tetraidrocanabinol) e potencial viciante,
conhecida popularmente como “maconha” de uso, produção e comercialização proibidos no Brasil. A planta teria
efeitos benéficos no tratamento de doenças o que tem ocasionado a procura do Poder Judiciário para a liberação
da utilização. Não confundir com o canabidiol, substância componente da planta sem efeito tóxico ou psicoativo,
retirada da lista de substâncias proibidas pela Anvisa em 2015 e de importação permitida mediante requerimento
médico. 42
Sobre a fosfoetanolamina, ver o capítulo 4 deste trabalho. 43
Substância indicada a pacientes com mieloma múltiplo (câncer da medula) que não respondem aos dois
principais medicamentos registrados para a doença: a talidomida e o bortezomide. A droga já foi aprovada em
mais de 70 países, mas ainda assim foi negado o registro no Brasil por não restar provada a eficácia e segurança
segundo os padrões adotados pela Anvisa. 44
A lei nº 8.080/90 em seu artigo 6º§1º define Vigilância Sanitária como “um conjunto de ações capaz de
eliminar, diminuir ou prevenir riscos à saúde e de intervir nos problemas sanitários decorrentes do meio
ambiente, da produção e circulação de bens e da prestação de serviços de interesse da saúde”.
40
3.3 Assistência terapêutica e incorporação de novos medicamentos
As ações de vigilância sanitária devem ser harmonizadas com a assistência
terapêutica integral, inclusive farmacêutica, também de responsabilidade do SUS. A lei nº
12.401/2011 acrescentou à Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/90) o capítulo VIII45
que trata
da assistência terapêutica e da incorporação de tecnologias em saúde.
Em suma, a assistência terapêutica para a distribuição de medicamentos segue a
determinação de que possuam protocolos clínicos orientando critérios para diagnóstico,
tratamento indicado e resultados obtidos com a utilização do medicamento. Nos casos onde
não haja o protocolo, o tratamento será realizado com base na lista de medicamentos
fornecidos pelo SUS. Todos os procedimentos de exclusão, incorporação ou alteração de
medicamentos na lista do SUS é realizado com a assessoria da Comissão Nacional de
Incorporação de Tecnologias no SUS – CONITEC.
Para que o medicamento possa ser incorporado à lista do SUS, necessita
primeiramente de registro pela Anvisa e , em seguida, de avaliação da CONITEC que elabora
um relatório considerando eficácia, segurança, e ainda custo benefício da implantação e
comparação com os demais tratamentos fornecidos.
45
“DA ASSISTÊNCIA TERAPÊUTICA E DA INCORPORAÇÃO DE TECNOLOGIA EM SAÚDE”
“Art. 19-M. A assistência terapêutica integral a que se refere a alínea d do inciso I do art. 6o consiste em:
I - dispensação de medicamentos e produtos de interesse para a saúde, cuja prescrição esteja em conformidade
com as diretrizes terapêuticas definidas em protocolo clínico para a doença ou o agravo à saúde a ser tratado ou,
na falta do protocolo, em conformidade com o disposto no art. 19-P;
[...]
“Art. 19-N. Para os efeitos do disposto no art. 19-M, são adotadas as seguintes definições:
[...]
“Art. 19-O. Os protocolos clínicos e as diretrizes terapêuticas deverão estabelecer os medicamentos ou produtos
necessários nas diferentes fases evolutivas da doença ou do agravo à saúde de que tratam, bem como aqueles
indicados em casos de perda de eficácia e de surgimento de intolerância ou reação adversa relevante, provocadas
pelo medicamento, produto ou procedimento de primeira escolha.
Parágrafo único. Em qualquer caso, os medicamentos ou produtos de que trata o caput deste artigo serão aqueles
avaliados quanto à sua eficácia, segurança, efetividade e custo-efetividade para as diferentes fases evolutivas da
doença ou do agravo à saúde de que trata o protocolo.”
“Art. 19-Q. A incorporação, a exclusão ou a alteração pelo SUS de novos medicamentos, produtos e
procedimentos, bem como a constituição ou a alteração de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica, são
atribuições do Ministério da Saúde, assessorado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no
SUS.
[...]
§ 2o O relatório da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS levará em consideração,
necessariamente:
I - as evidências científicas sobre a eficácia, a acurácia, a efetividade e a segurança do medicamento, produto ou
procedimento objeto do processo, acatadas pelo órgão competente para o registro ou a autorização de uso;
II - a avaliação econômica comparativa dos benefícios e dos custos em relação às tecnologias já incorporadas,
inclusive no que se refere aos atendimentos domiciliar, ambulatorial ou hospitalar, quando cabível.”
41
Consta no artigo 16 da Lei nº 6.360/76, que dispõe sobre a vigilância sanitária de
medicamentos e outras drogas, os requisitos para obtenção de registro. Além das exigências
médicos-sanitários, encontra-se também sob responsabilidade da Anvisa a análise do preço,
custo de fabricação e potencial de pacientes a serem tratados. De toda forma, o registro é uma
proteção à saúde pública. Para o registro de medicamentos é necessária autorização
governamental para iniciar a pesquisa. A pesquisa é avaliada e aprovada pelo Comitê de Ética
e Pesquisa (CEP), pela Comissão Nacional de Ética e Pesquisa (Conep) e ainda pela Anvisa.
Logo após, são realizados estudos em animais (pré-clínicos) se constatado
potencial terapêutico in vitro. Nessa fase busca-se averiguar a toxicidade da substância e
atividade terapêutica. A maior parte das substâncias reprova nesta fase. Em seguida, os testes
em humanos são realizados em três fases. Na fase I pessoas saudáveis são testadas quanto à
tolerância do organismo e efeitos colaterais. Já na fase II o estudo passa a ser realizado em
paciência de modo controlado para testes de segurança em curto prazo na utilização. A fase
III necessita de estudos conjuntos em diversos centros médicos e diferentes populações para
comprovação de eficácia e segurança envolvendo grande número de pacientes. Nessa fase
busca-se avaliar a segurança em médio prazo, a melhor utilização terapêutica e comparação
com outras substâncias já existentes. Somente após os ensaios clínicos das três fases primárias
aprovados, dá-se início ao processo administrativo (ver fluxograma 1) para obtenção do
registro. Após registro do medicamento, novas pesquisas continuam a ser realizadas (fase IV)
para conferência de novas reações e segurança sanitária na utilização em longo prazo.
Fluxograma 1 – Etapas para registro de medicamento junto à Anvisa
Fonte: Agência Nacional de Vigilância Sanitária (sítio virtual)
42
Obtendo o registro e licença para comercialização o medicamento, o medicamento
será avaliado pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), que
tem a função de decidir sobre a incorporação ou não do medicamento ao SUS.
De fato, as fases clínicas requerem tempo e recursos, sendo inafastável que todos
os procedimentos sejam seguidos para garantia da saúde pública. Estudos clínicos feitos com
maior rigor e critério são aprovados mais rapidamente pois necessitarão de menos correções e
esclarecimentos. Além disso, alguns medicamentos são priorizados na fila de análise por
interesse do SUS. Contudo, no Brasil o tempo de espera pode levar mais de cinco anos até
que seja disponibilizado no Sistema Único de Saúde46
. Em comparação a outros países, o
Brasil demora muito para fornecer novos medicamentos.
Há ainda o fato de que a maior parte das substâncias analisadas são reprovadas
nos testes clínicos ou nas fases administrativas. Em decorrência disso, muitas pesquisas são
abandonadas, ficam paralisadas ou nem mesmo são autorizadas a realizar estudos clínicos.
Finalmente, a solução encontrada por muitos pacientes portadores de graves
enfermidades quando não conseguem o fornecimento pela via judical tem sido a importação
autorizada pela Anvisa ou mesmo ilegal, a procura por substâncias no mercado informal
vendidas sem receita (contrabando e descaminho).
Na busca por acesso mais rápido à substâncias que podem trazer a cura para as
enfermidades diante da demora dor órgãos sanitários na aprovação dos medicamentos a
população está exposta a riscos diversos de saúde, muitas vezes dispendendo enormes valores
financeiros para obter remédios sem procedência e ficando vulnerável à degradação mais
rápida da condição doentia do corpo.
46
Interfarma defende mais agilidade na aprovação de pesquisas e no registro de medicamentos. 26 de
junho de 2015. Disponível em: <http://www.interfarma.org.br/noticias_detalhe.php?id=645>. Acesso em: 19 jun.
2016.
43
4. FOSFOETANOLAMINA: CONTROLE JURISDICIONAL
A fosfoetanolamina, apesar de usada há muito tempo no Brasil e no mundo,
somente foi alertada para a Vigilância Sanitária após a judicialização de pedidos de
fornecimento. Antes, sua administração foi realizada sem qualquer controle ou segurança para
a saúde pública. Atualmente, o controle da utilização abrange critérios legais, técnicos,
científicos e também políticos por tratar de tema relevante na proteção da saúde.
4.1 Histórico
A fosfoetanolamina é um fosfato de cálcio, substância presente naturalmente no
organismo humano e de outros animais (encontra-se em abundância no leite materno),
atuando na formação das células e na composição da membrana plasmática47
da célula e nas
mitocôndrias48
. Outra função da fosfoetanolamina (a que mais interessa ao tratamento do
câncer) é de sinalizador celular quando em excesso no organismo, funcionando como alerta
para as células de defesa combaterem doenças.
A descoberta da fosfoetanolamina foi realizada e publicada no Biochemical
Journal,49
por Edgar Laurence Outhouse, da Universidade de Toronto no Canadá, que teria
isolado a substância primeiramente em 1936. Apenas em 1970 a substância foi sintetizada em
laboratório por Emile Cherbuliez.
No início da década de 1990, no Brasil, Gilberto Orivaldo Chierice, do Instituto
de Química de São Carlos (IQSC) da Universidade de São Paulo (USP), realizou estudos
referentes à atuação da substância em células cancerígenas de animais. O cientista, junto a
outros colaboradores, conseguiu sintetizar, registrar e testar a fosfoetanolamina sintética a
partir da combinação de monoamina e ácido fosfórico.
O mérito da pesquisa não foi a descoberto ou síntese, mas o processo econômico
para obtenção (cada pílula é produzida a custo de centavos). O processo descoberto pelo
grupo brasileiro está depositado com pedido de patentes PI 0800463-3 e PI 0800460-9 no
INPI (Instituto Nacional de Propriedade Industrial) sobre síntese e utilização. Diante de
resultados promissores o laboratório começou a fornecer em 1996 pílulas de fosfoetanolamina
47
A membrana é responsável pela proteção e delimitação do corpo celular, atuando na regulação das trocas entre
a célula e o meio extracelular constituída majoritariamente por lipídios e proteínas. 48
As mitocôndrias são organelas citoplasmáticas contidas no interior da célula responsáveis pelo processo de
respiração celular e produção de energia. 49
OUTHOUSE, E.L. Amino-ethyl phosphoric ester from tumours. Biochemical Journal, v.30, p. 197-201,
1936.
44
à pacientes com câncer. Contudo, o grupo de pesquisadores nunca solicitou à Anvisa o
registro da substância.
Supostamente, a fosfoetanolamina sintética atua no combate ao câncer no contato
com células cancerígenas. A quantidade elevada sinaliza para o organismo as células
defeituosas, gerando uma reação do sistema imunológico para destruir o câncer. Essa
sinalização ocorre em todos os tipos de célula cancerígena, de modo que a pílula de
fosfoetanolamina teria eficácia sobre todos os tipos de neoplasias. Em laboratório também se
constatou a diminuição de tumores e controle da metástase.
Contudo, nenhum estudo clínico foi realizado em seres humanos com êxito até o
momento. Os estudos feitos por Gilberto Orivaldo Chierice envolveram camundongos e
células humanas in vitro. De toda forma, muitos trabalhos acadêmicos já foram realizados por
pesquisadores da área da saúde sob orientação do cientista comprovando efeitos, sobretudo,
antiproliferativos e apoptóticos em células tumorais50
.
4.2 A fosfoetanolamina nos tribunais
No Brasil, a pílula contendo a substância era fornecida há pelo menos 20 anos
gratuitamente pelo Instituto de Química de São Carlos da USP. Contudo, em virtude de uma
portaria editada pela universidade em 2014 (Portaria IQSC 1389/201451
) determinando
“procedimentos administrativos quanto à produção, manipulação e distribuição de
medicamentos e outros compostos” a produção e distribuição da substância restou proibida na
universidade até a obtenção do registro sanitário:
Artigo 1º - A extração, produção, fabricação, transformação, sintetização,
purificação, fracionamento, embalagem, reembalagem, armazenamento, expedição e
distribuição de drogas com a finalidade medicamentosa ou sanitária, medicamentos,
insumos farmacêuticos e seus correlatos, só podem ser efetuadas nas dependências
do IQSC após apresentação, à Diretoria do Instituto, das devidas licenças e registros
expedidos pelos órgãos competentes, de acordo com a legislação vigente e desde
que tais atividades estejam justificadamente alinhadas com as finalidades da
Universidade.
50
Como exemplo, a tese de mestrado de Renato Meneguelo orientada pelo professor Gilberto Chierice.
Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/82/82131/tde-12022008-135651/pt-br.php>. Acesso
em 19 jun.2016. 51
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO. Portaria IQSC 1389, de 10 de junho de 2014. Determina procedimentos
administrativos quanto à produção, manipulação e distribuição de medicamentos e outros compostos no IQSC.
Disponível em: <http://www5.iqsc.usp.br/files/2015/09/Portaria-distribuicao-de-medicamentos.pdf>. Acesso em:
19 jun.2016.
45
Consequentemente à medida, os pacientes que faziam uso da substância
provocaram o Poder Judiciário buscando a determinação do fornecimento de
fosfoetanolamina pela universidade. O número de processos chegou a 13 mil pedidos
requerendo o fornecimento da pílula liminarmente e até por busca e apreensão52
. A questão
configurou verdadeiro imbróglio jurídico, pois seguido à enxurrada de liminares concedendo
a substância, o Tribunal de Justiça de São Paulo passou a reformar as decisões.
No Supremo Tribunal, o Ministro Luiz Edson Fachin, em decisão monocrática
(PET 5828 MC / SP 2015) tratando de caso onde o paciente sofria de moléstia grave e
terminal, tendo restado ineficazes todos os tratamentos adotados e embasado por laudo
médico solicitando a utilização de fosfoetanolamina, cassou a decisão do tribunal paulista,
concedendo o fornecimento de fosfoetanolamina ao paciente. A decisão divergiu do
entendimento adotado na STA 175/201053
onde ficou estabelecido que o Estado não pode ser
obrigado a fornecer remédio experimental (sem registro pela Anvisa).
Em análise, a decisão do ministro, ainda que conflitante com o entendimento
anterior do tribunal levou em consideração o caráter emergencial da questão. A medida
cautelar deve ser embasada na fumaça do bom direito e risco na demora. Tratando de paciente
em estado grave e terminal, a melhor medida é a disponibilidade do medicamento uma vez
que o direito pleiteado pelo paciente era em última forma o próprio direito à vida, fundamento
constitucional do Estado. O ministro não se posicionou favorável à utilização de substância
sem registro pela Anvisa, mas ponderou que na ausência de comprovada lesão à ordem
pública a medida de urgência apresenta-se como solução provisória à questão. Além disso, o
tema encontra-se pendente desde 2012 de análise pelo Supremo Tribunal Federal em
repercussão geral (RE 657.718-RG, Relator Ministro Marco Aurélio, Dje 12.03.2012).
Em contraposição, não se deve negligenciar que obrigar o Estado a fornecer a
fosfoetanolamina sem registro ou comprovada segurança confere responsabilidade pelo risco
à saúde ao qual expõe o indivíduo, atitude obviamente contrária à ética normativa sanitária.
Em outras palavras, a determinação judicial não só impõe ao ente público atuação para além
das suas funções como também contrariamente às normas estabelecidas para cumprir e fazer
cumprir.
Não obstante, com base no artigo 196 da Constituição Federal, o primeiro serviço
de saúde do Estado deve ser a redução do risco de doenças e outros agravos. A situação crítica
52
“Desde o início da polêmica nacional sobre a fosfoetanolamina sintética, a instituição (USP) já foi citada em
mais de 13 mil processos”. Disponível em: <http://saude.estadao.com.br/noticias/geral,acoes-por-pilula-do-
cancer-travam-sistema-juridico-da-usp,10000016211>. Acesso em 19 jun. 2016. 53
Ver página 30.
46
do paciente já em fase terminal não escusa o descumprimento das normas constitucionais pela
administração pública.
Ademais, a decisão concedeu ao paciente o fornecimento de substância sem
nenhuma comprovação científica de segurança e eficácia de tal forma que a decisão do
ministro pode ser considerava excessiva em relação à responsabilidade do Estado. Afinal, o
direito à saúde não configura um direito a tudo e de qualquer maneira. Assim como a
fosfoetanolamina, outras milhares de substâncias continuam sem registro pela Anvisa e
admitir a obrigação do Poder Público em fornecê-las configuraria um ônus e não um bônus à
coletividade, exposta, aí sim, a todos os riscos à saúde possíveis, sem ter a única proteção
efetiva contra as drogas e substâncias nocivas, qual seja a regulamentação estatal.
A justiça brasileira vem concedendo o fornecimento de medicamentos registrados,
a despeito de não constarem na lista do SUS bem como medicamentos novos, ainda não
registrados pela Anvisa mas já aprovados em outros países. A concessão poderia ser estendida
a medicamentos experimentais testados em humanos com sucesso, independentemente de não
estarem registrados. Porém, não é razoável que essa medida de caráter excepcional abarque a
fosfoetanolamina, pendente de resultados confiáveis. A excepcionalidade torna-se regra,
descaracterizando a função da vigilância sanitária.
Além disso, destaca-se que a universidade onde são produzidas as “pílulas do
câncer” não está preparada para a produção e normas da Anvisa que estabelecem limites à
contaminação (Lei nº 9.782/ 99 art. 7º, incisos IV, VII e art. 8º), uma vez que sua finalidade
são a pesquisa e o ensino tendo sido, inclusive, autuada pelas instalações inadequadas do
laboratório onde a fosfoetanolamina é produzida sem qualquer cuidado.
Nesse sentido, em abril de 2016, O presidente do STF Ministro Ricardo
Lewandowski analisou a questão na suspensão de tutela antecipada (STA 82854
) peticionada
pela Universidade de São Paulo contra decisão proferida pelo Tribunal de Justiça de São
Paulo determinando o fornecimento de fosfoetanolamina em tutela antecipada sob pena de
multa diária. Em decisão o Ministro entendeu pela manutenção do fornecimento a pacientes
54
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Suspensão de Tutela Antecipada 828 SP (Decisão Monocrática).
Requerente: Universidade de São Paulo. Requerido: Relator do AI nº 2242691-89.2015.8.26.0000 do Tribunal
de Justiça do Estado de São Paulo. Relator: Ministro Ricardo Lewandowski (Presidente). Brasília, 4 de abril de
2016. Disponível em: <
http://www.stf.jus.br/portal/jurisprudencia/listarJurisprudencia.asp?s1=%28%28828%2ENUME%2E+OU+828
%2EDMS%2E%29%29+NAO+S%2EPRES%2E&base=baseMonocraticas&url=http://tinyurl.com/heehugn>.
Acesso em: 20 jun. 2016.
47
que já vinham recebendo a substâncias enquanto durarem os estoques. Por outro lado, as
decisões favoráveis ao fornecimento foram suspensas.
A decisão apontou para a inexistência de estudos comprovando a segurança da
substância, critério minimamente necessário para justificar seu fornecimento assim como o
fato da substância não possuir registro de medicamento em nenhum outro país.
No pedido, a Universidade alegou que os diversos órgãos do Poder Judiciário,
elegem o direito à saúde como norma constitucional absoluta, desprezando outras normas
constitucionais de igual valor, assim como a legislação sanitária criada para proteger a
sociedade de pessoas oportunistas e de substâncias incertas e inseguras.
Em verdade, o direito à saúde está diretamente relacionado ao direito à vida de
forma que sua proteção deve ser priorizada pelo Estado. Porém, isso não significa afirmar
toda e qualquer ação como legítima. Nesse contexto, a atuação pública deve ser no sentido de
concretizar e efetivar o direito à saúde, mas orientado segundo as normas sanitárias e
limitações constitucionais. No respeito e cumprimento das normas constitucionais o Estado
encontra legitimidade para existir e funcionar. Não fosse assim, o legislador não teria
conferido aos serviços de saúde caráter de relevância pública – e de fato são – cabendo ao
Poder Público dispor sobre regulamentação, fiscalização e controle nos moldes do artigo 197
da Constituição Federal.
4.3 Necessidade de pesquisas para comprovação dos efeitos anticancerígenos
Sobre a “pílula do câncer”, o Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da
Silva (INCA), órgão técnico do Ministério da Saúde, emitiu parecer técnico afirmando que
decisões sobre o uso da substância sem os estudos necessários seriam precipitadas. Em
reunião do Conselho Consultivo (CONSINCA) realizada em 16 de março de 2016, foi
aprovada nota55
oficial de apoio às pesquisas para desenvolvimento da fosfoetanolamina,
estabelecendo a participação do INCA em fases avançadas dos estudos clínicos como
estratégia de combate ao câncer.
Segundo a nota, o objetivo das pesquisas é reconhecer o real efeito terapêutico da
substância, dosagem ideal, risco e modalidades de tratamento. Além disso, o INCA
55
BRASIL. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Nota aprovada em reunião Conselho
Consultivo do INCA (CONSINCA) de 16 de março de 2016. Assunto: Fosfoetanolamina. Disponível em:
<http://www2.inca.gov.br/wps/wcm/connect/038d4b004c791394ace9be5204641833/Nota+sobre+Fosfoetanolam
ina+-+CONSINCA+de+16-03-
2016.pdf?MOD=AJPERES&CACHEID=038d4b004c791394ace9be5204641833.>. Acesso em 20 jun. 2016.
48
reconheceu a necessidade de tempo nas pesquisas em virtude do risco de danos a pacientes já
debilitados pelo câncer, reafirmando o posicionamento de outras entidades públicas no
sentido de que a produção e uso de substâncias terapêuticas no Brasil devem ser orientadas
pelas regras da Anvisa.
Do mesmo modo, a Academia Brasileira de Ciências (ABC) publicou um
manifesto56
sobre o uso da fosfoetanolamina sintética para o tratamento de câncer.
Esclarecendo a questão, o documento informa sobre o processo de aprovação de
medicamentos que se iniciou com a primeira agência regulamentadora, a Food and Drug
Administration (FDA), órgão governamental dos Estados Unidos criado em 1906. Contudo,
somente em 1938 Ceiling e Cannon57
estabeleceram princípios de conduta para realização de
estudos clínicos posteriormente aprovados pelo Código de Nuremberg (1947)58
.
Os critérios para testes em humanos estabelecem, desde então, que qualquer
substância deve conter “composição química, método de preparação e o grau de pureza bem
estabelecidos; testes de toxicidade aguda e prolongada avaliada por doses repetidas
(segurança) em pelo menos duas espécies animais; realização de análise histopatológica
completa em diversos órgãos animais, especialmente nos rins e fígado; conhecimento acerca
da sua absorção, excreção, concentração nos tecidos, etc; possível interação com outras
substâncias e alimentos”.
Segundo a Academia, o desenvolvimento de qualquer medicamento envolve altos
custos, testes e na maioria das vezes as substâncias testadas não apresentam a eficácia
esperada (prova de princípio). Além disso, todo o processo necessário pode levar até 12 anos
para ser concluído. Além disso, o que se compreende por câncer é na verdade um conjunto
abrangente de doenças que se caracterizam comumente pelo crescimento desordenado de
células defeituosas, particularizando o tratamento de cada caso quanto à eficácia do
medicamento para a doença e comparado à outros tipos de tratamentos existentes.
Para a fosfoetanolamina as etapas necessárias não foram cumpridas, constatando-
se após pesquisas em bancos de dados científicos mundiais que não existe qualquer evidência
científica aceitável quanto à segurança e eficácia. Ademais, por tratar-se de substância voltada
56
ACADEMIA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS. Manifestação da Academia Brasileira de Ciências sobre o uso da
fosfoetanolamina sintética para o tratamento de câncer, 2015. Disponível em
<http://www.abc.org.br/IMG/pdf/doc-6715.pdf>. Acesso em: 20 jun. 2016. 57
CEILING, E .M.K. ; CANNON, P .R. Pa tho log ic e f fec t s o f e l ix i r sulphanilamide(diethylene
glycol) poisoning. JAMA, 1ll: 919, 1938. 58
Declaração contendo princípios éticos para experiências em humanos aprovada em decorrência dos excessos
cometidos pelos médicos nazistas durante a 2ª Guerra Mundial.
49
ao tratamento de doenças para as quais já existem tratamentos, não se justifica uma aceleração
no tempo dispendido para as análises clínicas.
O Brasil adota as normas internacionais de segurança para utilização de
medicamentos em humanos de modo que deve aguardar estudos precisos para a liberação da
substância como medicamento. A recomendação da Academia orienta que não se utilize a
fosfoetanolamina até que registrada pela Anvisa.
Finalmente, e muito em virtude da repercussão midiática da questão, o Ministério
da Saúde em conjunto com o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação publicou a
Portaria GM/MS nº 1.76759
, em outubro de 2015 para instituir um grupo de trabalho de apoio
às etapas necessárias ao desenvolvimento clínico da substância.
Dentre os objetivos estão a atuação junto a órgãos e entidades públicas que podem
contribuir nas várias etapas de desenvolvimento clínico da fosfoetanolamina; e também junto
a laboratórios públicos oficiais para o desenvolvimento da produção de lotes da substância de
acordo com as Boas Práticas de Fabricação (BPF).
No artigo 2º, III a portaria determina a sequência de análises a serem realizadas: a)
caracterização da molécula; b) realização de estudos não-clínicos para determinar a absorção,
a distribuição, o metabolismo e a excreção, o mecanismo de ação, a toxicologia completa e a
toxicidade farmacológica; c) desenvolvimento da formulação; d) estudos de farmacocinética e
farmacodinâmica em animais; e) produção de lotes de acordo com as BPF; f) realização de
estudos pré-clínicos de caracterização de mecanismos de ação, alvos e potenciais
biomarcadores; g) realização de ensaios clínicos, incluindo elaboração e submissão do Dossiê
de Desenvolvimento Clínico de Medicamento (DDCM); e h) realização de estudos de
farmacovigilância.
Já em dezembro de 2015 foi publicado o relatório inicial de atividades60
do grupo.
Dentre os avanços, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (integrante do grupo de
trabalho) disponibilizou para as pesquisas verba total no valor de 10 milhões de reais.
Inicialmente, os recursos serão destinados aos laboratórios envolvidos nos testes
pré-clínicos e clínicos iniciais escolhidos com base nos avanços científicos e capacidade de
atendimento quanto aos testes necessários.
59
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria GM/MS nº 1.767, de 29 de outubro de 2015. Institui Grupo de Trabalho
para apoiar as etapas necessárias ao desenvolvimento clínico da fosfoetanolamina. Disponível em:
<http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=43&data=30/10/2015>. Acesso em
20 jun. 2016. 60
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Relatório de Atividades do Grupo de Trabalho sobre a fosfoetanolamina. Brasília,
2015. Disponível em: <http://www.mcti.gov.br/documents/10179/1274125/22-12-2015+-
+Relat%C3%B3rio+de+Atividades+do+Grupo+de+Trabalho+sobre+a+Fosfoetanolamina/d73d9f0f-16e8-4983-
bce9-b5e57dfa2164>. Acesso em: 20 jun. 2016.
50
São eles o Centro de Inovação e Ensaios Pré-Clínicos – CIENP, Laboratório de
Avaliação e Síntese de Substâncias - LASSBio/UFRJ e o Núcleo de Pesquisa e
Desenvolvimento de Medicamentos –NPDM/UFC.
Consta ainda no relatório de atividades um quadro-resumo sobre os trabalhos
anteriormente publicados pelo grupo de cientistas do pesquisador Gilberto Chierice, do
Instituto de Química de São Carlos (IQSC-USP).
Quadro 1 – Resultados apresentados pelo Grupo de Pesquisa da USP
Fonte: Ministério da Saúde (2015)
Os trabalhos realizados pelo grupo do Instituto de Química de São Carlos, apesar
de animadores, não abordaram todos os procedimentos estabelecidos para análise de
substância, mas se restringiram à ação direta da substância em células de câncer. Os estudos
pré-clínicos, por exemplo, não foram realizados em nenhum estudo. Além disso, não se
comparou a ação da substância com medicamentos já utilizados para a neoplasia específica.
51
Em contraposição, o primeiro relatório do Ministério da Saúde apresentou os
resultados iniciais obtidos pelo grupo de trabalho para o estudo da fosfoetanolamina:
Quadro 2 – Resultados apresentados pelo Grupo de trabalho do MCTI/MS
Fonte: Ministério da Saúde (2015)
O relatório concluiu a necessidade de acompanhamento de todo o processo de
pesquisa desenvolvido simultaneamente nos laboratórios do grupo de trabalho. Enquanto isso,
resultados provisórios liberados pelos laboratórios são inconclusivos quanto à eficácia e
segurança da substância. Alguns apontaram a falta de toxicidade, outros apontaram para a
ineficácia da substância quando administrada em ratos de laboratório. Os próximos passos
envolvem testes em humanos. Com base nisso, somente ao final dos estudos será possível
definir a utilidade da fosfoetanolamina à pacientes com câncer.
4.4 Lei nº 13.269/2016
52
Em virtude das decisões judiciais e das manifestações pela liberação da
fosfoetanolamina no tratamento de neoplasias, vários projetos de lei foram apresentados na
Câmara dos Deputados referentes à fosfoetanolamina.
O PL 3454/201561
, de autoria do deputado Weliton Prado Weliton (PT/MG),
dispôs sobre fabricação e distribuição de fosfoetanolamina a pacientes com câncer. O projeto
determina à União a garantia do fornecimento mediante termo de responsabilidade do
paciente quando não houver tratamento eficaz no SUS. No mesmo sentido, foi proposto o PL
4510/201662
, de autoria do deputado Jair Bolsonaro (PP/RJ), contudo, mais liberal ao permitir
o uso de fosfoetanolamina por qualquer paciente, ainda que havendo terapia convencional. A
substância seria disponibilizada em laboratórios de pesquisa, instituições de ensino e hospitais
ou mediante a compra custeada pelo próprio paciente, todas submetidas à assinatura de termo
de responsabilidade. Além dos citados, o PL 4558/201663
, de autoria do deputado Celso
Russomanno (PRB/SP), propôs a inclusão do art. 12-A na Lei nº 6.360/76 para permitir a
produção e comercialização da fosfoetanolamina em caráter excepcional, antes de registro em
órgão competente. Os projetos acabaram arquivados por restaram prejudicados em virtude da
aprovação do Projeto de Lei 4639/201664
.
O referido projeto, posteriormente denominado Projeto de Lei da Câmara nº 3, de
2016, dispunha sobre o uso da fosfoetanolamina sintética por pacientes diagnosticados com
neoplasia maligna. O PL foi proposto em 08 de março de 2016 e tramitou em velocidade
surpreendente nas casas legislativas e no Congresso Nacional, transformado em Lei Ordinária
nº 13.269/2016 em 13 de abril de 2016 e sancionada em seguida pela Presidente da República
Dilma Rousseff , pouco mais de um mês após a proposição.
61
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 3454/2015. Dispõe sobre a fabricação, produção e
distribuição da Fosfoetanolamina Sintética aos pacientes com câncer. Disponível em: <
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1405837&filename=PL+3454/2015>.
Acesso em 20 jun. 2016. 62
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 4510/2016. Dispõe sobre o uso compassivo da
fosfoetanolamina sintética por parte de pacientes com câncer. Disponível em:
<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=F635EBEB2FBB77A092AB512C8
5589174.proposicoesWeb1?codteor=1435568&filename=PL+4510/2016>. Acesso em 20: jun. 2016. 63
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 4558/2016. Inclui o Art. 12-A à Lei nº 6.360/76 para permitir
a produção e comercialização da Fosfoetanolamina em caráter excepcional, antes de registro em órgão
competente. Disponível em: <
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1436693&filename=PL+4558/2016>.
Acesso em: 20 jun. 2016. 64
BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei 4639/2016. Autoriza o uso da fosfoetanolamina sintética por
pacientes diagnosticados com neoplasia maligna. Disponível em: <
http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1440430&filename=PL+4639/2016>.
Acesso em: 20 jun. 2016.
53
Em seu conteúdo estabeleceu o fornecimento restrito de fosfoetanolamina à
pacientes com neoplasia maligna mediante laudo médico constatando a malignidade e termo
de responsabilidade. Contudo, não exige requerimento médico para utilização da substância e
sustenta o direito de acesso à outros tratamentos. Além disso, permitiu a produção,
importação e distribuição da substância mediante autorização da Anvisa enquanto em fase de
teste65
.
A justificativa para o projeto de lei foi a constatação de que “se não há mais
alternativas terapêuticas eficazes, se o estágio do câncer não deixa muitas saídas médicas para
o paciente, nada mais justo que ele possa ter o direito de escolher o que consumir, de tentar
outros caminhos e alternativas, mesmo que estes ainda estejam no campo experimental”.
Ainda que válido e sensível o argumento, a entrada em vigor da lei conflita com
todas as normas sanitárias vigentes no Brasil, abrindo a possibilidade de novas situações onde
o registro possa ser dispensado. Em todo caso, a lei apresenta indícios notórios de
inconstitucionalidade, posto que a Constituição Federal atribuiu ao SUS o controle e a
fiscalização dos produtos e substâncias de interesse para a saúde nos termos do artigo 200 da
CF/88. Em acréscimo, o artigo 5º garante a inviolabilidade do direito à vida e à segurança.
Nesse caso, a Associação Médica Brasileira (AMB) ingressou com Ação Direta
de Inconstitucionalidade em caráter liminar junto ao STF questionando a Lei nº 13.269/2016
obtendo por maioria dos votos a suspensão da eficácia da lei liminarmente enquanto se
aguarda uma posição final do tribunal.
Em seu voto, o Ministro Luís Roberto Barroso destacou:
“[...] o processo de desenvolvimento de substâncias e medicamentos deve estar
cercado de máxima cautela, em razão dos perigos envolvidos. Seu consumo pode
apresentar riscos à saúde, produzir efeitos colaterais e causar danos ao organismo,
em diversos graus de intensidade, dos mais leves aos mais graves e mesmo
irreversíveis. Nesse contexto, a exigência de registro sanitário junto à agência
competente constitui relevante ferramenta regulatória que garante a proteção da
saúde pública, estabelecendo-se uma ponderação entre interesses por vezes
conflitantes das empresas farmacêuticas, dos pesquisadores, dos médicos e dos
pacientes. Por isso, a atividade de controle e avaliação de pedidos de registro de
medicamentos deve ser exercida com grande seriedade e rigor”.
[...]
Em tema de tamanha relevância, que envolve pessoas fragilizadas pela doença e com
grande ânsia para obter a cura, não há espaço para especulações. Diante da ausência
de informações e conhecimentos científicos acerca de eventuais efeitos adversos de
uma substância, a solução nunca deverá ser a liberação para consumo. Mas, sim, o
65
Brasil. Lei 13.269, de 13 de abril de 2016. Autoriza o uso da fosfoetanolamina sintética por pacientes
diagnosticados com neoplasia maligna. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-
2018/2016/Lei/L13269.htm>. Acesso em: 21 jun. 2016.
54
incentivo à realização de estudos científicos, testes e protocolos, capazes de garantir
proteção às pessoas que desejam fazer uso desses medicamentos66
.
A decisão e todos os argumentos levantados em voto orientam no sentido do dever
do Estado em cumprir o estabelecido na Constituição. Em contrapartida, merece destaque a
distinção de que não representa proteção do direito à saúde a concessão de substância não
testada e aprovada, mas inversamente, o ato caracterizaria afronta ao citado direito e
desobediência aos princípios constitucionais.
Ademais, a instituição de norma sanitária pelo Poder Judiciário é afronta à
separação dos poderes, por interferir em função própria do Poder Executivo (elaboração de
normas sanitárias pelo SUS conforme art. 6º da Lei 8.080/90). No entanto, o Ministro
levantou a possibilidade de concessão de medicamento por via do programa de uso
compassivo com base na Resolução nº 38/2013 da Anvisa:
Ressalve-se, porém, que para os pacientes terminais, já sem alternativa terapêutica
satisfatória no país para a condição clínica e seus estágios, a própria Anvisa tem um
programa de uso compassivo, regulamentado pela Resolução – RDC nº 38/2013. Tal
programa viabiliza a oferta de medicamento novo promissor, para uso pessoal de
pacientes, ainda sem registro na Anvisa, que esteja em processo de desenvolvimento
clínico, destinado a pacientes portadores de doenças debilitantes graves e/ou que
ameacem a vida e sem alternativa terapêutica satisfatória com produtos registrados
no país. A fosfoetanolamina sintética poderá, portanto, ser oferecida no âmbito
desses programas, com a autorização da própria Anvisa.
A previsão suscita esperança aos portadores de neoplasias malignas, mas não
descarta a necessidade de teste de segurança e a autorização da Anvisa. Além disso, a
resolução considera para o fornecimento da substância a ausência de outro tratamento eficaz,
avaliação do risco-benefício do uso do medicamento solicitado e ainda “evidência científica
para a indicação solicitada ou estar em qualquer fase de desenvolvimento clínico, desde que
os dados iniciais observados sejam promissores e que se comprove a gravidade da doença e a
ausência de tratamentos disponíveis”. De toda forma, com o avanço das pesquisas existe a
possibilidade que a Anvisa libere o fornecimento da fosfoetanolamina antes de completo o
processo de registro.
4.5 Utilização como suplemento
66
BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.501 MC. Requerente: Associação
Médica Brasileira. Intdo.: Presidente da República e Congresso Nacional. Relator: Min. Marco Aurélio. Brasília,
19 de maio de 2016. Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/adi-5501-plula-cncer-fosfoetanolamina.pdf>.
Acesso em: 22 jun. 2016.
55
Apesar de toda a dificuldade quanto à liberação da fosfoetanolamina no Brasil, em
outros países a substância pode ser consumida como suplemento alimentar. Nos Estados
Unidos e Europa a fosfoetanolamina é encontrada como suplemento de cálcio há algumas
décadas. De fato, é um composto simples, um fosfato de cálcio (sal de cálcio) encontrado em
farmácias não isoladamente, mas constituindo a composição química de produtos repositores
de cálcio. Nesses países há produção industrial da substância sem controle sanitário rigoroso
sobre o consumo. Dentre os produtos que utilizam a fosfoetanolamina está o Calcium AEP
comercializada livremente nos Estados Unidos e Europa e facilmente acessível para compras
na internet em cápsulas contendo cada uma 1.500 mg de ácido 2-amino etil fosfórico de cálcio
(outro nome para a mesma substância fosfoetanolamina)67
. Alguns suplementos chegam a
conter níveis de fosfoetanolamina superiores aos das pílulas fornecidas no Brasil.
O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) sugeriu à Anvisa a
liberação da substância como suplemento até a conclusão dos testes clínicos. Em todo caso,
muitos pacientes tem comprado pela internet o produto como suplemento alimentar.
A medida, possivelmente eficaz a curto prazo para atender a demanda de pacientes
que necessitam da substância em caráter de urgência, não resolve a questão da segurança e
eficácia, mas transfere para o próprio enfermo a responsabilidade pela utilização.
Para mais, expõe o produto a pessoas saudáveis ou com doenças tratáveis com
medicamentos regulares ocasionando o abandono de tratamentos comprovadamente efetivos
em busca de uma “pílula milagrosa” comprada indiscriminadamente em qualquer farmácia.
Além disso, o uso como suplemento não afastaria a necessidade dos estudos
clínicos. É necessário descobrir, se houver, o potencial poder de cura e adequada forma de
consumo da fosfoetanolamina para combater de maneira eficaz o câncer. Nesse caso, todos os
interesses e ações do Estado devem ser voltados para uma solução rápida, mas sobretudo
segura sobre a substância. Os interesses políticos e econômicos não podem sobrepujar o
interesse maior do direito fundamental à saúde. As exigências sanitárias não podem
representar obstáculos ao avanço científico da medicina. Na verdade, a segurança sanitária
deve ser encarada e realizada pelo Estado como medida de concretização do direito à saúde.
Enquanto houver dúvidas, é inadmissível a liberação da substância como
suplemento. A solução jurídico-administrativa não garante a solução sanitária e por isso,
enquanto se aguarda a resposta da ciência, o Estado não deve apostar a saúde dos cidadãos.
67
A substância é encontrada e comercializada facilmente na internet. Disponível em: < http://www.super-
smart.eu/article.pl?id=0455&lang=pt&fromid=GG132&gclid=CNWi2bzAt80CFYQJkQodN1sIeg>. Acesso em:
20 jun. 2016.
56
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A maior parte dos cientistas afirma que jamais encontraremos uma cura definitiva
para a doença. Trata-se de uma enfermidade cruel que mexe com a confiança, a autoestima, a
estética, os sentimentos, as relações, enfim, com a saúde física, mental e social.
Contudo, não se pode perder a esperança. Doenças antes consideradas sentenças
de morte hoje são curáveis e tratáveis. A ciência avança, mas requer tempo. Para pacientes de
tão grave doença na maioria das vezes não há tanto tempo.
A saúde é o bem mais precioso do ser humano. O direito à saúde é preceito
fundamental de qualquer estado por ser condição do direito à vida. Sua proteção deve ser
prioridade máxima do poder público. Nenhum outro gasto público justifica a ausência de
recursos ou a falta de atendimento. Aos pacientes com câncer nenhuma questão econômica ou
administrativa deve ser posta à frente do valor humana. Todos os gastos necessários devem
ser realizados.
Em verdade, nada justifica submeter seres humanos a experiências com
substâncias sem nenhuma comprovação de eficácia e segurança. O dever do Estado é a
promoção de uma vida segura e minimamente confortável tendo por base a dignidade da
pessoa humana.
Ao fornecer tratamento para doenças, deve fazê-lo com a garantia de que não
colocará a saúde das pessoas em risco. Testes e experiências definitivamente não configuram
a efetivação do direito à saúde. Interesses políticos, econômicos e comerciais também não
podem interferir na atuação estatal de vigilância sanitária. A promulgação da Lei nº
13.269/2016 autorizando o uso da fosfoetanolamina a pacientes com neoplasia maligna
representou atitude irresponsável e inadmissível dos poderes públicos.
Acertadamente, o STF suspendeu a lei bem como fixou parâmetros para a
concessão de medicamentos. Substâncias sem segurança comprovadas não podem ser
fornecidas pelo Estado. Não se deve, contudo, entender as normas sanitárias como restritivas
do direito à saúde. Ao contrário, a proteção da saúde deve contemplar a prevenção da doença,
o reestabelecimentos das funções normais, o bem-estar e também o tratamento. Se, ao tratar, o
Estado expõe o paciente ao risco está lesionando o direito à saúde. Assim, o poder público só
pode agir dentro dos limites da segurança sanitária.
Enquanto não comprovados os efeitos benéficos da fosfoetanolamina no
tratamento de câncer, a produção e fornecimento devem permanecer suspensos. Uma eventual
autorização para fornecimento antes do registro pela Anvisa só se justificaria mediante
57
comprovação científica da segurança e eficácia. Em complemento, a população deve
continuar pressionando os poderes públicos para que haja a garantia de recurso necessários à
pesquisa e celeridade na tramitação burocrática dos estudos.
Por outro lado, aos pacientes decididos a tentar todas as possibilidades, resta a
alternativa de importação do produto como suplemento. Afinal, a proibição definitiva da
substância, incluindo sua importação, também está sujeita aos resultados das pesquisas ora em
andamento. Aliás, outra possibilidade é a adesão do paciente como voluntário nos testes
científicos da fosfoetanolamina. Ademais, muitos pacientes continuam a recorrer a remédios
naturais, chás, garrafadas, folhas, frutos, sementes, na esperança de obtenção da cura. A busca
particular por tratamentos alternativos é válida se não interferir ou prejudicar os tratamentos
médicos cientificamente reconhecidos.
Finalmente, diante das novas tecnologias e descobertas científicas, a ética do
respeito à vida e dignidade do homem devem prevalecer como único caminho viável na
proteção do direito à saúde. Assim, a disposição de novos medicamentos deve assegurar aos
pacientes a real possibilidade de cura e o mínimo risco de danos, levando sempre em conta a
situação frágil do enfermo. Somente é lícita e justa a ação do Estado que respeita a integridade
do indivíduo como ser humano e não gera risco desproporcional.
58
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