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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA CURSO DE MESTRADO EM PSICOLOGIA RAFAELLA MEDEIROS DE MATTOS BRITO AS HISTÓRIAS CONTADAS NA CLÍNICA: NARRATIVA E TRANSFORMAÇÃO NA PSICOTERAPIA FORTALEZA - CE ABRIL / 2014

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Page 1: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE … · À incrível dupla João Paulo e James, ... presenças fortes em minha vida e na constituição de quem eu sou hoje, ... Harlene Anderson,

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

CURSO DE MESTRADO EM PSICOLOGIA

RAFAELLA MEDEIROS DE MATTOS BRITO

AS HISTÓRIAS CONTADAS NA CLÍNICA: NARRATIVA E

TRANSFORMAÇÃO NA PSICOTERAPIA

FORTALEZA - CE

ABRIL / 2014

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RAFAELLA MEDEIROS DE MATTOS BRITO

AS HISTÓRIAS CONTADAS NA CLÍNICA: NARRATIVA E TRANSFORMAÇÃO

NA PSICOTERAPIA

Dissertação submetida ao Programa de

Pós-Graduação em Psicologia da

Universidade Federal do Ceará, como

requisito parcial para obtenção do grau

de Mestre em Psicologia.

Orientadora: Prof.a Dr.

a Idilva Maria

Pires Germano

FORTALEZA - CE

2014

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Federal do Ceará

Biblioteca de Ciências Humanas

B877h Brito, Rafaella Medeiros de Mattos

As histórias contadas na clínica: narrativa e transformação na psicoterapia / Rafaella Medeiros de Mattos Brito. – 2014.

172 f.; 30 cm. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Programa de

Pós-Graduação em Psicologia, Fortaleza, 2014. Área de Concentração: Psicologia Clínica Orientação: Idilva Maria Pires Germano 1. Psicoterapia. 2. Terapia narrativa. 3. Clínica Escola de Psicologia – Universidade Federal do

Ceará. 4. Psicologia. I. Título.

CDD 616.8914

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RAFAELLA MEDEIROS DE MATTOS BRITO

AS HISTÓRIAS CONTADAS NA CLÍNICA: NARRATIVA E TRANSFORMAÇÃO

NA PSICOTERAPIA

Dissertação submetida ao Programa de

Pós-Graduação em Psicologia da

Universidade Federal do Ceará, como

requisito parcial para obtenção do grau

de Mestre em Psicologia.

Aprovada em: ___/___/___

BANCA EXAMINADORA:

_______________________________________________________

Profª. Drª. Idilva Maria Pires Germano (Orientadora)

Universidade Federal do Ceará (UFC)

_______________________________________________________

Profª. Drª. Karla Patrícia Holanda Martins

Universidade Federal do Ceará (UFC)

_______________________________________________________

Profª. Drª. Marilene Aparecida Grandesso dos Santos

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP)

_______________________________________________________

Profª. Drª. Leônia Cavalcante Teixeira

Universidade de Fortaleza (UNIFOR)

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Aos encantados, assim como eu, pela

capacidade humana de se recriar.

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AGRADECIMENTOS

A Deus, coautor de todas as minhas histórias.

A minha mãe, Virginia, pela leveza, doçura, carinho, dedicação e suporte de

uma vida inteira.

A meu pai, Brito, por me olhar com orgulho e me possibilitar a ir além.

A meu irmão, Thiago, por sua indescritível capacidade de me fazer rir em

qualquer circunstância.

A minha cunhada, Lívia e minha afilhada Nicole, por todo amor que

inspiram em mim, me fazendo abandonar qualquer atividade acadêmica aos sábados à

tarde.

Aos meus avós, Arlene e Hugo, por existirem. Simplesmente por existirem.

A minha querida amiga Camila Maia, por me apresentar o mestrado como

possibilidade, por ser a grande responsável por minha decisão em trilhar esse caminho,

sempre estando ao meu lado em todas as crises, dúvidas e celebrações desses dois anos.

À incrível dupla João Paulo e James, por serem interlocutores criativos,

inteligentes e amorosos, tendo partilhado comigo as primeiras ideias sobre esse tema,

ainda na graduação em 2008.

À Elívia, por quem tenho uma enorme admiração, e em quem me espelhei

para chegar até aqui.

As minhas primas, Clara, Camila, Raquel e Luciana, com quem comemorei

minha aprovação no mestrado, em uma viagem memorável.

À bárbara Bárbara, pela amizade que se iniciou atravessada pelos processos

seletivos do mestrado, e se transformou em um amor imensurável.

À Larissa e Rachel por tornarem minhas terças mais gostosas, regadas de

partilhas teóricas e existenciais.

Às pessoas maravilhosas que o mestrado meu deu, Diva, Luara, Vinício,

Lorena, Isadora, Juliana Maranhão, Juliana Sampaio, Larissa, Irvina, por terem se

tornado muito mais que colegas aleatoriamente colocados na mesma sala por um edital

de pós-graduação, mas amigos “tão fortes quanto o vento quando sopra”.

À Marília, Nara, Carolzinha, Úrsula, Camila Alves, Michelly, Luiza,

presenças fortes em minha vida e na constituição de quem eu sou hoje, por terem

acompanhado essa e tantas outras fases e momentos decisivos ao longo desses 8 anos de

companheirismo.

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A minha amiga de infância, Tuianne, parceira desde sempre e para sempre,

por ter me ensinado que eu sou capaz de alcançar qualquer objetivo pelo qual eu tenha

amor.

A minha encantadora orientadora Idilva, por quem tenho um grande

carinho, pelo entusiasmo, vivacidade e paciência com que me ajudou a descobrir o que

nem eu mesma sabia que queria com essas páginas.

À Marilene Grandesso, com quem anonimamente dialoguei ao ler seu livro

e re-conheci pessoalmente 4 anos depois, por ter sido um divisor de águas, tendo me

aberto os olhos e as portas para uma nova forma de pensar a clínica.

Aos meus tios de São Paulo, Ana Claudia, André, Cacá e Nilo,

indispensáveis para que meu encontro com Marilene acontecesse, por todo o apoio que

sempre me deram, desde meus primeiros passos.

À Karla Patrícia, em cuja voz suave e meiga ouvi contribuições inteligentes

e essenciais para minha pesquisa.

Ao Helder, secretário do mestrado, por toda a paciência, dedicação e boa

vontade com que desempenha seu trabalho, tendo sido infinitamente atencioso e solícito

todas as vezes que precisei bater em sua porta.

Aos clientes e terapeutas que colaboraram com essa pesquisa, pela

confiança, doação e credibilidade que deram ao meu trabalho. Este estudo não só não

existiria sem a colaboração de vocês, como também não faria o menor sentido existir.

Este estudo foi, portanto, feito com vocês e para vocês.

À CAPES pelo apoio financeiro que permitiu minha dedicação exclusiva,

durante dois anos, à realização desta pesquisa.

Ao Mestrado da UFC, por me possibilitar ter vivido a experiência que

deságua, hoje, em tanta gratidão.

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“Escrever é procurar entender, é

procurar reproduzir o irreproduzível, é

sentir até o último fim o sentimento que

permaneceria apenas vago e sufocador.

Escrever é também abençoar uma vida

que não foi abençoada. Que pena que só

sei escrever quando espontaneamente a

‘coisa’ vem. Fico assim à mercê do

tempo.” (Clarice Lispector).

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RESUMO

Esta pesquisa busca explorar a relação entre narrativa e transformação na psicoterapia,

através do significado que clientes da Clínica Escola de Psicologia da UFC, que já

vivenciaram experiências traumáticas, atribuem: ao processo psicoterápico, às

mudanças percebidas, ao terapeuta inserido no processo de transformação e à

importância de se narrar no setting terapêutico. Além disso, consideraram-se as

implicações culturais nas histórias pessoais, percebendo, assim, a narrativa não só como

uma produção individual, mas também histórica e relacional. O referencial teórico

utilizado foi o da Psicologia Narrativa, que postula que a experiência humana se faz

inteligível quando transformada em narrativa. No campo da psicoterapia, essas

formulações vão influenciar as terapias pós-modernas, tais como a Terapia Narrativa e a

Abordagem Colaborativa. Os principais autores utilizados nesta pesquisa foram:

Harlene Anderson, Harold Goolishian, Michael White, David Epston, John McLeod,

Jerome Bruner, Kenneth Gergen e Marilene Grandesso. Dentro deste vasto campo de

estudo, pressupõe-se que a construção de narrativas, por sua capacidade de gerar

significados, é terapêutica em si. Esta pesquisa transcorreu mediante três entrevistas

semiestruturadas, que foram transcritas e submetidas a uma análise temática. Observou-

se que esses clientes chegaram à clínica com ideias preconceituosas a respeito da prática

psicoterápica, mas, ao longo do tempo, tornaram-se extremamente comprometidos com

a terapia, reconhecendo o papel fundamental que esta desempenhou na mudança de suas

atitudes e significados atribuídos a suas realidades e a si mesmos. O terapeuta é visto,

neste processo, como um facilitador que explora conteúdos antes não percebidos,

mediando o diálogo do cliente com ele mesmo. A narrativa aparece na clínica como

uma construção de sentido propiciadora de liberdade, levando a processos de

ressignificação, reautoria e reorganização da experiência.

Palavras-chave: Psicoterapia. Narrativa. Terapias pós-modernas. Psicologia Narrativa.

Clínica Escola de Psicologia.

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ABSTRACT

This research aims to explore the connexion between narrative and transformation in

psychotherapy, through the meanings that the clients from the Clínica Escola de

Psicologia da UFC, who have experienced traumatic experiences, ascribe to: the

psychotherapeutic process, the perceived changes, the therapist as a part of this process,

and the importance of narrating in the therapeutic setting. Furthermore, it is important to

analyze the cultural implications into personal stories. This way, it is possible to

perceive the narrative not only as an individual production, but also as a historical and

relational process. The theoretical framework used was the Narrative Psychology that

points out that human experience becomes intelligible when transformed into narrative.

In the field of psychotherapy, this theory contributed to the emergence of the

postmodern therapies, which have as important icons the Narrative Therapy and

Collaborative Approach. Some of the most important authors used in this research were:

Harlene Anderson, Harold Goolishian, Michael White, David Epston, John McLeod,

Jerome Bruner, Kenneth Gergen and Marilene Grandesso. Within this broad field of

studies, it is assumed that the construction of narratives, by its ability to generate

meanings, is therapeutic in itself. This study was conducted through semi-structured

interviews with three clients. The interviews were transcribed and subjected to thematic

analysis. It was then observed that in the beginning, all clients had some prejudice about

the practice of psychotherapy, and over time, they become extremely committed to the

therapy, which played a key role in changing attitudes and meanings ascribed to

themselves and their realities. The therapist is seen in this process as a facilitator who

explores some contents that were not perceived before, mediating the dialogue between

the client and himself. The narrative emerges in the psychotherapy as a construction of

meaning that leads to a sense of freedom, and prompts processes of resignification,

agency and reorganization of experience.

Keywords: Psychotherapy. Narrative. Postmodern Therapies. Narrative Psychology.

Clínica Escola de Psicologia.

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 11

2 A RELEVÂNCIA DA NARRATIVA NO CAMPO DA PSICOTERAPIA ......... 20

2.1 Contextualização dos estudos acerca da linguagem e da narrativa .................. 20

2.2 Terapias Pós-Modernas ...................................................................................... 26

2.2.1 Terapia Narrativa .............................................................................................. 32

2.2.2 Abordagem Colaborativa ................................................................................... 41

2.3 Eventos traumáticos e a busca de terapia .......................................................... 46

3 MÉTODO ............................................................................................................... 51

3.1 Caracterização da pesquisa e justificação do paradigma adotado .................... 51

3.2 Formação do corpus de pesquisa: ....................................................................... 54

3.3 Análise do corpus: ............................................................................................... 60

3.3.1 Eduardo, 33 anos. .............................................................................................. 65

3.3.2 Zilma, 39 anos. .................................................................................................. 65

3.3.3 André, 17 anos. .................................................................................................. 66

4 ANALISANDO AS HISTÓRIAS CONTADAS NA CLÍNICA ............................ 68

4.1 Psicoterapia e Cultura ......................................................................................... 68

4.2 Transformação e Relação com o terapeuta ........................................................ 74

4.3 Significado do processo psicoterápico ................................................................ 81

4.4 Terapia e transformação ..................................................................................... 86

4.4.1 Eduardo: a terapia como uma descoberta de si ................................................. 86

4.4.2 Zilma: a terapia como um alívio para a dor ...................................................... 88

4.4.3 André: a terapia como um processo de superação............................................. 89

4.4.4 Terapia: um resgate do sentido de reautoria ..................................................... 91

4.5 Narrativa e transformação.................................................................................. 97

4.5.1 Eduardo: a narrativa como descoberta.............................................................. 98

4.5.2 Zilma: a narrativa como libertação ................................................................... 98

4.5.3 André: a narrativa como cura ......................................................................... 100

4.5.4 Terapia: um processo de ressignificação ......................................................... 101

4.5.5 Terapia: um processo de reorganização da experiência .................................. 105

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 110

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REFERÊNCIAS ...................................................................................................... 117

APÊNDICE A – QUADRO ANALÍTICO DE EDUARDO ................................... 126

APÊNDICE B – QUADRO ANALÍTICO DE ZILMA ......................................... 128

APÊNDICE C – QUADRO ANALÍTICO DE ANDRÉ ........................................ 131

ANEXO A – TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA DE EDUARDO .................... 134

ANEXO B – TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA DE ZILMA ........................... 143

ANEXO C – TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA DE ANDRÉ .......................... 156

ANEXO D - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO ...... 170

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1 INTRODUÇÃO

Este trabalho surgiu de uma inquietação pessoal acerca do papel da narrativa

na transformação de quem faz terapia. Em meus primeiros contatos com a clínica,

percebi que os principais instrumentos de trabalho de que o terapeuta se utilizava eram a

linguagem e sua presença no setting. Passei a ver o terapeuta como um artista das

palavras e a terapia como um curioso processo facilitador de transformações através do

encontro e da fala. Como seria possível que o fato de alguém contar histórias para outra

pessoa pudesse gerar mudanças em sua forma de perceber o mundo e a si mesmo, se do

lado de fora das paredes do consultório nada mudou objetivamente? Passei a me

perguntar, então, sobre o potencial transformador da narrativa. Esse potencial torna-se

ainda mais evidente em clientes que vivenciaram algum tipo de evento traumático, pois

a ruptura na linearidade da vida torna urgente a necessidade de dar novos sentidos ao

que ficou sem explicação. Para Grandesso (2000):

Para que haja uma reconstrução de significados, algo deve abalar os

significados já instituídos pelos quais organizamos o nosso mundo. Só se

pode pensar em reconstrução de significado a partir de qualquer

acontecimento de quebra de sentido, de não-encaixe ou de vazio (...) Somente

quando o inesperado, o inusual e o exótico se apresentam como uma quebra

de sentido, quebra de transparência, configuram-se as condições de

possibilidade para que algo novo possa surgir de nossa surpresa, nossa

estranheza como uma nova busca pelo familiar e pela conformidade, ou seja,

por um novo sentido (GRANDESSO, 2000, p. 201).

O evento traumático aparece como esta quebra de sentido, descrita também

por Heidegger como quebra da transparência no fluir da vida e por Jerome Bruner como

fator surpresa (GRANDESSO, 2000). Quando este evento inesperado rompe o curso

habitual da vida, a narrativa torna-se necessária.

Esta pesquisa busca, então, analisar o significado que pessoas em terapia

após ocorrência de evento traumático atribuem à psicoterapia, às transformações

experimentadas e ao terapeuta nesse processo, na tentativa de elucidar o papel que a

narrativa exerce no espaço terapêutico. É nosso interesse compreender a relação entre o

ato de contar histórias autobiográficas e a transformação da pessoa ao longo da terapia,

investigando assim o contexto da terapia como um espaço de (trans)formação de si. Este

trabalho tem ainda como objetivo, analisar os processos de reorganização da

experiência, ressignificação e reautoria envolvidos na construção de narrativas na

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psicoterapia, além de identificar aspectos culturais que sustentam as histórias pessoais

levadas à clínica.

Esta pesquisa procura responder, portanto, a algumas questões teóricas

envolvendo o lugar da narrativa na psicoterapia: Como a construção de narrativas pode

ser transformadora no processo psicoterápico? Que processos estão envolvidos na

construção de narrativas, que possuem implicações na transformação do indivíduo?

Como pessoas que passaram por psicoterapia após ocorrência de evento traumático

significam a terapia e o ato de narrar? Como o cliente percebe a importância do

terapeuta em seu processo de mudança? Como diferencia a relação terapêutica de outras

relações? Como as narrativas culturais aparecem nas narrativas pessoais da terapia?

Essas são perguntas de partida que exigem analisar a interface entre narrativa,

experiência e práticas sociais.

Temos como concepção de base a Psicologia Narrativa, uma abordagem ou

campo transdisciplinar dedicado ao estudo de narrativas, que ganhou impulso na década

de 1980, decorrente da ênfase geral que foi dada à linguagem nas ciências sociais e nas

humanidades. Na Psicologia, a abordagem gerou trabalhos hoje clássicos (SARBIN,

1986; POLKINGHORNE, 1988; BRUNER, 1990), que ajudaram a estabelecer a

narrativa como “metáfora fundamental” para a Psicologia, em oposição a outras

metáforas mecanicistas e organicistas. Mais do que modo de representação do mundo, a

narrativa é vista do ponto de vista “ontológico”, como forma de construir realidades:

“nós ativamente construímos o mundo através de narrativas e também vivemos através

das histórias contadas por outros e por nós mesmos” (MURRAY, 2008, p. 112).

O conceito de narrativa não é consensual entre teóricos e pesquisadores que

analisam histórias. Nesta pesquisa, acompanhando formulações dos autores clássicos

mencionados, compreendemos a narrativa como uma interpretação organizada de uma

sequencia de eventos, envolvendo personagens dotados de agência e episódios com

ligação causal e temporal, formando uma estrutura geralmente com começo, meio e fim

(MURRAY, 2008). Nesse sentido, Grandesso (2000) define narrativa como sendo a

organização, por meio do discurso, de um fluxo de experiências vividas:

Assim, uma narrativa constrói na linguagem, independente de qual seja o seu

modo (epopéia, drama – tragédia ou comédia – ou história) o ainda não dito,

o inédito, em um novo arranjo congruente que integra em uma história, diferentes e dispersos eventos, cujo significado decorre da narrativa como um

todo (p. 205).

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Já em Larrosa (1994) vemos que:

"Narrare" significa algo assim como "arrastar para a frente", e deriva também

de "gnarus" que é, ao mesmo tempo, "o que sabe" e "o que viu". E "o que

viu" é o que significa também a expressão grega "istor" da qual vem

"história" e "historiador" (p. 65).

A narrativa é, portanto, uma história que estabelece algo novo. O narrador,

por sua vez, seria aquele que constrói a trama narrativa, “que expressa, no sentido de

exteriorizar, o rastro que aquilo que viu deixou em sua memória” (Larrosa, 1994, p. 65).

Para Benjamin (1994), é da habilidade de trocar experiências que surgem as narrativas:

“A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os

narradores” (p.198). Porém, o autor declara que a modernidade trouxe uma pobreza da

experiência e por consequência, desta figura do narrador:

A arte de narrar está em vias de extinção. São cada vez mais raras as pessoas

que sabem narrar devidamente. (...) É como se estivéssemos privados de uma

faculdade que nos parecia segura e inalienável: a faculdade de intercambiar

experiências (BENJAMIN, 1994, p. 197 e 198).

Benjamin (1994) acredita que as experiências estão deixando de ser

comunicáveis e a sabedoria está em declínio. Por outro lado, passamos a ser expostos a

uma variedade de informações rápidas, que nos chegam de todas as direções e já vêm

acompanhadas de suas explicações, não deixando espaço para nossa interpretação. A

informação é, assim, o oposto da narrativa, onde:

O extraordinário e o miraculoso são narrados com a maior exatidão, mas o

contexto psicológico da ação não é imposto ao leitor. Ele é livre para

interpretar a história como quiser, e com isso o episódio narrado atinge uma

amplitude que não existe na informação (BENJAMIN, 1994, p. 203).

A narrativa permite uma multiplicidade e abertura de significados, já que

“contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo” (BENJAMIN, 1994, p. 205), e

a cada vez que se conta, novas facetas da narrativa podem surgir. Esta característica da

narrativa é a base da terapia, que se expandiu na modernidade, quando a imprensa, a

revolução industrial e o retorno ao Iluminismo trouxeram uma maior rapidez ao

cotidiano, tornando a troca de experiências cada vez mais rara. Além disso, “o sujeito

moderno se percebe como um ser singular, um ser que conquistou o direito de exercer

sua individualidade de maneira sigilosa, em segredo, de forma a resguardar-se da

exposição pública”. (MOREIRA; ROMAGNOLI; NEVES, 2007, p. 614).

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Não seria, portanto, coincidência que a prática da psicoterapia tenha se

desenvolvido no mesmo contexto em que Benjamin denuncia o afastamento das

tradições e o declínio da figura do narrador. Witmer, aluno de Wundt, é considerado o

fundador da primeira clínica psicológica, em 1896, onde trabalhava com

aconselhamento, terapia e reabilitação. No entanto, tem-se notícia que já em 1886,

Freud abriu seu consultório, contribuindo para a diminuição do poder dos médicos sob o

tratamento psicológico. Ao longo de sua experiência clínica, Freud vai diminuindo o

uso da hipnose para trabalhar com a “cura pela fala”. A psicanálise, ao trazer o potencial

catártico da narrativa, contribui imensamente para o surgimento da clínica psicológica

particular.

A terapia surge, então, como o ambiente que propicia a partilha de

narrativas, ocupando o espaço das agora raras histórias contadas pelo avô em volta de

uma lareira, ou as refeições em família em torna da mesa. Além disso, diante do

afastamento das tradições, que balizavam os modos de vida, já não há uma maneira

certa de ser, o homem deve construir ele mesmo seu projeto de vida, que não é mais

dado pela igreja, família, ou qualquer outra instituição pré-moderna. A modernidade

convida o homem a se construir nos consultórios:

O contar histórias nos convida a nos tornarmos não apenas agentes de nossas

vidas, mas também narradores e leitores. [...] Sempre haverá alguém para

dizer conta-me uma história, e alguém para responder. Se não fosse assim,

não mais seríamos plenamente humanos (KEARNEY, 2012, p. 429).

Kearney (2012), portanto, apresenta uma nova perspectiva à visão de

Benjamin (1994), defendendo que a narrativa não acabou. O que vemos são novas

formas de narrar, onde “velhas histórias estão dando lugar a novas, com múltiplos

enredos, múltiplas vozes e em contextos multimidiáticos” (KEARNEY, 2012, p. 410):

Em contraste, quando alguém como Walter Benjamin falava em uma ameaça

radical ao poder da narratividade em nossa era da informação cada vez mais

intensa, ele não queria, penso eu, referir-se ao fim da narração de histórias

propriamente dita. Ele apenas assinalava a derrocada iminente de certas

formas de recordação que pressupunham tradições ancestrais de experiência

herdada, transmitidas fluentemente de uma geração para a seguinte. Isso de

fato acabou. Dificilmente poderemos negar que a noção de experiência

contínua, associada à narrativa linear tradicional, tenha sido

fundamentalmente desafiada pelas atuais tecnologias do computador e da

internet. (KEARNEY, 2012, p. 410)

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Acreditamos, assim como Kearney (2012), que sempre haverá alguém para

contar histórias, pois nossa própria identidade é constituída por elas. Contar histórias é o

que organiza nossas experiências. O que seria o cliente, então, senão um narrador?

Mesmo que ele esteja imerso em uma sociedade que prioriza a informação e banaliza a

partilha de experiências, o terapeuta ajuda a criar um narrador já no primeiro momento

da sessão, quando pergunta “o que te traz aqui?”. A terapia é, portanto, um lugar de

construção de histórias, onde renasce o narrador adormecido pelo automatismo da vida

moderna.

O indivíduo geralmente procura terapia por não conseguir, em certos

momentos de sua vida, lidar com alguma questão biograficamente significativa. Precisa

lançar mão da narrativa para dar sentido ao que parece confuso e incoerente. Como

assinala Murray (2008), “a função primária da narrativa é que ela traz ordem à

desordem. Ao contar uma história, o narrador está tentando organizar o desorganizado e

dar a ele sentido” (p.114). Ricoeur (1984), segundo Murray (2008), chamou de

emplotment esse processo de ordenar e organizar o vivido numa trama unificada. Os

eventos quando desarticulados ficam sem sentido; é apenas quando são integrados numa

sequencia temporal, que se forma uma história coerente. Segundo Bruner (1997),

lançamos mão da narrativa para dar conta de algo que fugiu do esperado, para “forjar

ligações entre o excepcional e o comum” (p. 48). Os estudos narrativos sobre a

construção subjetiva defendem que “a narrativa não somente organiza a nossa

compreensão do mundo, mas também a nossa compreensão sobre quem somos, sobre a

nossa singularidade como pessoa” (GERMANO; BESSA, 2010, p. 998).

Esta “virada narrativa”, que traduz a vida humana segundo a metáfora das

histórias, repercutiu significativamente no campo da psicoterapia, ensejando a adoção

de perspectivas narrativas na clínica por grande variedade de estudiosos e profissionais

(ANGUS; MCLEOD, 2004). Esse movimento influenciou o desenvolvimento posterior

de abordagens psicoterápicas baseadas na centralidade das histórias, tais como a Terapia

Narrativa, formulada por Michael White e David Epston (WHITE, 2012) e a

Abordagem Colaborativa (ANDERSON; GOOLISHIAN, 1988). Essas perspectivas

procuram pensar a prática clínica focalizando a significância da narração de histórias

pela pessoa que faz terapia e uma noção de “mudança” que implica algum tipo de

reinterpretação e “reautoria” de suas histórias de vida (ANGUS; MCLEOD, 2004). A

ideia é que o psicoterapeuta colabore para que o indivíduo venha a elaborar narrativas

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alternativas mais “ricas” e “densas” que abarquem elementos não presentes no enredo

problemático originalmente trazido à clínica.

Angus e McLeod (2004) defendem que a narração em si é um processo

terapêutico e a psicoterapia, portanto, atravessada por narrativas em construção. Porém,

sabemos que a transformação do cliente não pode ser explicada somente através do foco

nas narrativas faladas, pois a terapia tem também uma dimensão corpórea, sensorial e

afetiva que escapa à linguagem, sendo muitas vezes permeada por intervalos de silêncio,

que podem ser tão transformadores quanto às histórias contadas. Nesse sentido, Ibáñez

(2004) comenta:

(...) o “giro linguístico” privilegiou o papel que a linguagem desempenha na

dinâmica da interpretação, enfatizando a centralidade das praticas discursivas no processo hermenêutico. No entanto, também construímos um sentido

inefável. Também nosso corpo opera como gerador de significados que não

se deixam prender no interior do código linguístico ou, no mínimo, cabe

considerar que o que nosso corpo vivencia orienta algumas de nossas

interpretações. Não só temos que expandir o campo da hermenêutica para o

espaço das praticas "não discursivas" como também contemplar a

corporificação das praticas discursivas (p. 45).

Mesmo não podendo reduzir a psicoterapia à construção meramente textual

de narrativas, reconhecendo que existem outros processos econômicos, sociais,

institucionais e políticos envolvidos, e que a transformação da pessoa é um fenômeno

complexo, esta pesquisa parte da ideia de que grande parte do potencial transformador

atribuído à psicoterapia advém do papel singular das histórias que se contam (e se

vivem) na clínica de ampliar o horizonte de significação da experiência e descortinar

outros mundos possíveis. Consideramos, então, a construção de narrativas como nosso

recorte, e este estudo não como uma pesquisa comprobatória, mas que visa à construção

de uma nova compreensão sobre a relação entre narrativa e terapia.

Partindo do pressuposto de que estamos imersos na linguagem e de que

somos produto de relações sociais cotidianas (GERGEN; KAYE, 1998), a psicoterapia

pode ser vista como um ambiente relacional que permite à pessoa a construção de novos

sentidos de si e a renovação de sua autobiografia, com o auxílio do psicólogo, na

condição de um articulador de histórias. Sendo a terapia uma espécie de exploração

autobiográfica, que tem o terapeuta como interlocutor e é atravessada por narrativas

produzidas dentro e fora do contexto clínico, o diálogo entre narrativa e psicoterapia nos

parece bastante fértil.

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Muitos trabalhos vêm corroborando a ideia de que a narrativa é por si

mesma um processo terapêutico (ANGUS; MCLEOD, 2004), mostrando que mesmo

fora do ambiente psicoterápico, a oportunidade de construir uma narrativa sobre si

mesmo tem possibilitado revisões da história de vida dos narradores. Rosenthal (2003),

por exemplo, em suas pesquisas com combatentes que sobreviveram à Segunda Guerra

Mundial e com refugiados na Alemanha, percebeu que o fato de contar a própria

história provocava grandes emoções naquelas pessoas. A construção narrativa

decorrente do método da Entrevista Narrativa desencadeava uma série de sentimentos,

imagens, impressões e memórias que foram esquecidos e evitados por muito tempo. Ao

contarem suas histórias, os participantes acabavam por desnaturalizar visões fixas sobre

suas vidas e relações pessoais. Durante a narração, surgiam questionamentos como, por

exemplo, “por que eu sempre falo de eventos desagradáveis com meus pais? Será que

não tivemos também situações diferentes?”. Ao entrar em um fluxo narrativo, os

indivíduos acabavam por abordar assuntos que não haviam sido levados em

consideração previamente, mostrando que a narração se constrói no momento da

interação e não como algo que já estava pronto para ser “transmitido” ao pesquisador. A

autora ressalta que os benefícios da entrevista não podem ser comparados com o de uma

psicoterapia de longo prazo, mas os primeiros “efeitos curativos” já podem ser

percebidos com a realização da entrevista. Os entrevistados entram em um fluxo de

narração onde podem vir a falar de temas antes considerados irrelevantes ou de

lembranças antes evitadas, que ao serem verbalizados, podem ser reorganizados e

reinterpretados.

Para Schütze (1984 apud ROSENTHAL, 2003), os efeitos terapêuticos das

narrativas autobiográficas dizem respeito ao fato de que, ao explicitar narrativamente

uma experiência adversa ou traumática, a pessoa faz novas interpretações e muda a

visão de sua autobiografia. Ainda segundo Rosenthal (2003):

Fritz Schütze (1984) percebeu o efeito terapêutico da narração biográfica

precisamente no fato de que, ao refletir sobre as "inter-relações e passagens

de experiências traumáticas que foram narrativamente explícitas" elas podem

ser recuperadas por um "conceito consistente de identidade" (p. 108). As

áreas traumáticas da vida que foram deixadas de fora da percepção auto-

biográfica podem, através da narração e do trabalho autobiográfico, no

sentido de refletir sobre o seu significado para uma história de vida

particular, voltar a ser integradas na história de vida (tradução nossa) (p. 923,

924).

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Desta forma, a narrativa da história de vida traz um senso de continuidade

do eu, juntando fragmentos de memória e integrando o evento traumático à história de

vida como um todo, conectando passado e presente. O setting terapêutico torna possível

que o cliente repense suas narrativas de vida com o apoio do terapeuta. Contar sua

historia é uma experiência de organização e criação de sentido, como mostra um estudo

realizado por Duero (2006), que buscava analisar os processos que estavam em jogo na

construção da identidade pessoal através de relatos autobiográficos. Para isso, o autor

entrevistou adultos universitários, que já haviam passado por terapia, sobre o que

achavam que a terapia havia mudado neles. A maioria disse que havia mudado sua

imagem de si e incorporado ao seu conceito pessoal novas características antes

omitidas. Também mencionaram haver conseguido ressignificar eventos importantes

sob uma perspectiva mais ampla. Como mostra a fala de uma das entrevistadas da

pesquisa: “o terapeuta tomava meu mundo de associações e me ajudava a reconfigurá-

lo, a reconfigurar meu mundo de associações e minha visão sobre a realidade... com ele

a lógica das minhas associações mudou” (DUERO, 2006. p.146). A terapia é um espaço

de diálogo, que permite que o cliente descubra novas formas de significar seu mundo.

Outros autores também investigaram as transformações ocorridas durante a

psicoterapia sob o ponto de vista do indivíduo que passou por este processo, assinalando

a psicoterapia como um espaço propício para a exploração de novas narrativas

(KUHNLEIN, 1999; GRANDESSO, 2000). Esses estudos também sugerem a

possibilidade de analisar o papel transformador da psicoterapia em geral (sem prévia

distinção de suas diferentes linhagens) à luz do enquadre teórico da psicologia narrativa

e em diálogo com abordagens psicoterápicas contemporâneas que focalizam o aspecto

constitutivo, situado e relacional da narração.

A construção de novas narrativas no contexto psicoterápico parece

promover mudanças que são tidas como benéficas pelos usuários da terapia. A partir

dessas ideias gerais, esta pesquisa busca elucidar o potencial transformador do ato de

contar histórias sobre si, neste setting específico. Para isso, iniciaremos este estudo com

uma contextualização da “virada narrativa”, apresentando a relevância do diálogo entre

narrativa e clínica. Diante disso, surgem, então, as terapias pós-modernas, que

incorporaram o trabalho de reconstrução narrativa em seu modo de funcionamento e

crenças básicas. Por fim, apresentaremos o evento traumático como o momento em que

a pessoa chega à terapia, necessitando deste trabalho de restauração de sua história.

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No capítulo seguinte, apresentaremos o método da pesquisa, com sua

caracterização, formação e análise do corpus, introduzindo a análise de três entrevistas.

Adiante, discutiremos as entrevistas à luz da Psicologia Narrativa e Terapias Pós-

Modernas (Terapia Narrativa e Abordagem Colaborativa), ressaltando cinco pontos: a

narrativa como um “recurso cultural” que viabiliza a construção de narrativas

individuais (MCLEOD, 2004; MURRAY, 2008); o significado que o cliente dá ao

terapeuta dentro de seu processo de mudança; o significado que o cliente dá à terapia

em si; o ponto de vista dos clientes sobre as mudanças alcançadas; e por fim, a forma

como a narrativa como processo potencialmente transformador aparece nas falas dos

clientes. É, portanto, através da análise dos significados trazidos pelos clientes nas

entrevistas, que compreenderemos as relações entre narrativa e transformação na

psicoterapia.

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2 A RELEVÂNCIA DA NARRATIVA NO CAMPO DA PSICOTERAPIA

2.1 Contextualização dos estudos acerca da linguagem e da narrativa

O giro linguístico foi um movimento impulsionado por mudanças sociais,

políticas e econômicas da segunda metade do século XX. Este movimento surgiu a

partir das críticas à modernidade e suas ideias de causalidade, previsão e verdades

universais. Foi dado à linguagem e ao conhecimento um novo enfoque, acabando com a

antiga querela da ciência entre empirismo e racionalismo. A linguagem era vista, na

modernidade, como uma representação da realidade. Tinha assim, um papel

instrumental, pois expressava uma realidade existente a priori, refletida no discurso do

pesquisador, que acessava esta realidade através da objetividade do método cientifico.

Segundo Ibáñez (2004), duas rupturas aconteceram no século XX que

estimularam o crescimento dos estudos sobre a linguagem. A primeira ruptura ocorreu

com a instituição da linguística moderna liderada por Saussure: em sua teoria sobre os

signos ele afirma que não existe necessariamente uma correspondência entre

significante e significado, portanto, a linguagem não poderia ser compreendida como

uma representação da realidade, já que um significante não está preso a um significado

objetivo, podendo ter vários significados.

Assim, as palavras não têm um significado substancial ou relacional em si,

que reflita a realidade. Decorre daí, dentro dessa concepção, portanto, que os

significados também são arbitrários, dependendo da forma como a linguagem

está estruturada. Os significados da experiência são, portanto, derivados do

sistema de linguagem em que a pessoa vive. (GRANDESSO, 2000, p. 156)

A segunda ruptura foi iniciada por Frege e Russell, que forneceram bases

para uma nova forma de compreender e fazer filosofia, voltando o olhar não mais para

um mundo interior, dentro do sujeito, mas para o público das produções discursivas

(IBÁÑEZ, 2004, p. 21). Os estudos sobre a linguagem não pararam de crescer após esse

período, e com o giro linguístico, a linguagem passou a ser compreendida como

performática: capaz de fazer coisas e produzir realidades. A realidade e os objetos de

conhecimento deixaram de ser vistos como essências que podem ser capturadas e

passaram a ser compreendidos como uma construção social.

A linguagem se instituía assim como "constitutiva" das coisas, mais do que

meramente "descritiva" delas, deixando de ser palavra acerca do mundo para

passar a ser ação sobre o mundo, A linguagem não só nos diz como é o

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mundo, ela também o institui; e não se limita a refletir as coisas do mundo,

também atua sobre elas, participando de sua constituição. (IBÁÑEZ, 2004,

pag. 39)

Um importante teórico a influenciar o giro linguístico foi Ludwig

Wittgenstein, com seu conceito de jogos de linguagem. Suas ideias sobre a linguagem

em seu uso cotidiano contribuíram para que, na Inglaterra durante a década de 1950, os

“filósofos de Oxford” dessem novos rumos aos estudos então dominantes, que tinham a

linguagem como “representação”, isto é, instrumento para expressar uma realidade já

existente. Wittgenstein estudou com Frege e Russell na década de 1910 e como produto

dos seus primeiros trabalhos sobre a linguagem, publicou o livro “Tratado lógico-

filosófico”. Nessa primeira fase, participou do Círculo de Viena juntamente com outros

filósofos que buscavam uma formalidade semântica rigorosa no uso da linguagem para

descrever a realidade objetiva que existiria independente dos sujeitos que a descrevem.

Em suma, os positivistas lógicos acham que é preciso dizer as coisas "bem"

(sem ambiguidades nem omissões lógicas) e que é preciso também dizer

coisas que estejam "bem" (ou seja, de acordo com a realidade empírica sobre

a qual estamos falando). (IBÁÑEZ, 2004, p. 29).

O segundo Wittgenstein abandona a inviável pretensão de formular uma

linguagem “ideal” válida para todas as ciências, e focaliza seu interesse na linguagem

do cotidiano (IBÁÑEZ, 2004). O livro que marca suas novas reflexões a este respeito

foi o “Investigações Filosóficas”, originalmente publicado em 1952. Esta obra

influenciou os filósofos de Oxford, que eram contra a tradição cartesiana e buscavam

deslocar o foco na consciência para o foco na linguagem.

Os filósofos de Oxford acentuaram ainda mais o afastamento da tradição

cartesiana, ensinando-nos que a linguagem faz muito mais do que representar

o mundo porque é basicamente um instrumento para "fazer coisas!”. A linguagem não só "faz pensamento" como também "faz realidades". Assim,

por exemplo, John Austin mostraria que a linguagem também tem

propriedades "performativas". (IBÁÑEZ, 2004, pag. 33).

Wittgenstein passa a defender que a linguagem é produto de convenções

e que o significado das palavras não se baseia nos objetos ligados a ela nem em

processos mentais, mas é adquirido no contato social dentro de cada cultura. Assim,

mais importante que entender o significado de uma palavra, é entender o seu uso em

dado contexto (CASTAÑON, 2009). Para explicar tal ideia, Wittgenstein cria o

conceito “jogos de linguagem” que diz respeito ao “conjunto da linguagem e das

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atividades com as quais está interligada” dentro de cada cultura (WITTGENSTEIN,

1975, p. 16 apud CASTAÑON, 2009, p. 73). Sendo assim, um único indivíduo não

pode criar, quebrar ou seguir uma regra, pois a existência de regras são abstrações

normativas criadas a partir de uma experiência coletiva, e portanto, presumem uma

cultura (STAM, 1990). Não existe, assim, uma linguagem privada; o significado,

portanto, é sempre coletivo.

Polkinghorne (1988) reconhece a relevância do trabalho de Wittgenstein

para se pensar a relação entre linguagem e experiência, afirmando que:

Palavras não são cópias do mundo, e elas não se derivam de ideias privadas

da mente, mas da prática social. Portanto, não há linguagem neutra através da

qual a realidade como ela é possa ser descrita. (...) a experiência é um artefato

da linguagem, e não da realidade (p. 26).

Influenciado por este movimento geral de crítica a um conhecimento

universal e essencial do qual Wittgenstein foi um dos precursores, inaugurando uma

nova forma de se entender a linguagem, surge o que ficou conhecido como “giro

narrativo”. Langellier (2001a, apud RIESSMAN, 2008, p. 14) localiza o início do giro

narrativo nos anos 60, quando se iniciou o movimento contrário ao realismo, com

quatro marcos: críticas à ciência positivista da época e sua epistemologia realista; um

aumento no número de memoriais e autobiografias na literatura e cultura popular;

movimentos de identidade buscando a emancipação de grupos marginalizados; e o

crescimento de uma cultura terapêutica visando uma maior exploração de si.

Mas é somente a partir da década de 80, na Psicologia, assim como em

outros campos das ciências humanas e da saúde, que os estudos acerca da narrativa

tomam proporções maiores, e é dada uma atenção especial para a reflexão sobre o

estatuto e funcionamento da narrativa nos processos de significação e ação humana. O

“giro narrativo” participa, portanto, do “giro linguístico” das ciências humanas em geral

e de sua ênfase na centralidade dos processos e fenômenos discursivos. A virada

narrativa impulsionou a abertura da Psicologia à hermenêutica e outras correntes

epistemológicas, questionando algumas concepções consolidadas sobre a pessoa como

ser autocentrado, dotado de uma interioridade essencial. A narrativa fornecia outra

perspectiva para compreender a pessoa e sua ação no mundo em termos de histórias.

Atravessadas por narrativas ao longo de toda a vida, seria preciso entender como as

pessoas vivem mergulhadas nas histórias disponibilizadas em suas culturas, produzindo

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sentido sobre si e sobre o mundo e agindo em função dessas narrativas. Sobre este

momento na Psicologia, Bruner (1997) comenta:

A “virada narrativa” teve alguns efeitos surpreendentes. Ela deu um novo

ímpeto à já forte rejeição da universalidade da assim chamada concepção

ocidental de pessoalidade, a visão da “pessoa como um universo motivador e

cognitivo vinculado, singular, mais ou menos integrado, como um centro

dinâmico de percepção, emoção, julgamento e ação, organizado em um todo

distinto, contrastado contra outras totalidades e contra um pano de fundo

social e natural”³² (p. 99).

Na Psicologia, três obras marcaram esta virada narrativa, inaugurando o que

ficou conhecido como Psicologia Narrativa: Narrative Psychology: The Storied Nature

of Human Conduct, editado por Theodore Sarbin (1986); Acts of Meaning (1990), de

Jerome Bruner; e Narrative Knowing and the Human Sciences (1988), de Donald

Polkinghorne (MURRAY, 2008).

Sarbin (1986) contrasta a metáfora da máquina, dominante na psicologia até

então, com a metáfora narrativa, defendendo que, ao darmos conta de nós mesmos e dos

outros, somos guiados por tramas narrativas, transformando os eventos em uma história.

Sarbin defende também a natureza ontológica das narrativas, já que estamos cercados

por histórias e construímos o mundo através de narrativas (MURRAY, 2008).

Segundo Murray (2008), Polkinghorne (1988) abriu as portas para a

filosofia hermenêutica, em especial para o trabalho de Paul Ricoeur, que aponta a

necessidade de criarmos narrativas para trazer ordem e sentido ao constante fluxo de

mudanças de nossa realidade perpassada pela temporalidade. Segundo o autor, é

também a partir da narrativa que conseguimos nos distinguir dos outros (RICOEUR,

1984 apud MURRAY, 2008).

Por fim, Bruner (1990) distingue duas formas de pensamento: a

paradigmática e a narrativa. A primeira é baseada em classificação e categorização,

sendo amplamente usada na linguagem científica. O modo paradigmático está

relacionado a argumentos, descrições e explicações, buscando abstrações e leis

universais. Além disso, requer o fornecimento de provas empíricas, causalidade e

consistência (CONTIER; NETTO, 2007). Já a narrativa é uma forma alternativa que

organiza as interpretações diárias em formato de história. No modo narrativo, a

importância recai sobre a verossimilhança, e não uma verdade que pode ser comprovada

de fato. Não busca leis universais, mas histórias particulares sobre as intenções humanas

em um tempo e espaço específico. Nesta obra, Bruner (1990) elenca ainda as

propriedades de uma narrativa: envolve uma sequencia de eventos, estados mentais e

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acontecimentos envolvendo personagens com características humanas; pode ser real ou

imaginária; e possui uma constante relação entre o excepcional e o ordinário. A

narrativa seria, então, construtora da realidade, trazendo sentido ao incomum.

(MURRAY, 2008).

Esses autores clássicos lançaram as bases para a transformação das

metáforas fundamentais (root-metaphors) da Psicologia, teorizando a substituição da

metáfora computacional e seu foco no processamento de informações, pela metáfora

narrativa cujo foco se dirige para o modo como a experiência humana é organizada

temporalmente e sequencialmente em uma estrutura narrativa (GERMANO; BESSA,

2010).

A Psicologia Narrativa, portanto:

refere-se a um ponto de vista ou uma postura dentro da psicologia, que está

interessada na "natureza historiada da conduta humana" (Sarbin, 1986) -

como os seres humanos lidam com a experiência através da construção de

histórias e ouvindo as histórias dos outros. Psicólogos que estudam narrativa

são confrontados com a noção de que a atividade e experiência humana são

preenchidos com "significado" e que as histórias, em vez de argumentos

lógicos ou formulações legais, são o veículo pelo qual o significado é

comunicado. Esta dicotomia é expressa por Jerome S. Bruner (1986, 1990,

1991) como a distinção entre as formas de pensamento "paradigmática" e

"narrativa" que, segundo ele, são ambas fundamentais e uma irredutível a

outra. Sarbin (1986) propõe que "narrativa" torne-se uma metáfora de raiz

para a psicologia para substituir as metáforas mecanicista e orgânica que

moldaram tanta teoria e pesquisa na disciplina ao longo do século passado.

(HEVERN, 2004, disponível em

http://web.lemoyne.edu/~hevern/narpsych/narpsych.html, tradução nossa).

Ao afastar-se da metáfora computacional, Bruner (1997) propunha que o

“significado” deveria ser o foco da Psicologia e defendia sua maior aproximação com as

epistemologias interpretativistas silenciadas no curso da revolução cognitiva, da qual ele

mesmo fez parte em seu início, tendo recriminado seu produto final, por ter saído do

foco da “construção de significado” para “processamento de informações” (CABRUJA;

ÍÑIGUEZ; VÁZQUEZ, 2000). Sobre o foco no significado, Bruner (1997) comenta:

Essa convicção se baseia em dois argumentos correlatos. O primeiro é que

para entender o homem você deve entender como suas experiências e seus atos são moldados por seus estados intencionais, e o segundo é que a forma

desses estados intencionais se realiza apenas através da participação em

sistemas simbólicos da cultura (p.39).

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O significado, portanto, não pode ser visto apenas como individual, pois

“implica um papel constitutivo, e não simplesmente modelador, da cultura”

(CABRUJA; ÍÑIGUEZ; VÁZQUEZ, 2000, p. 83). O significado, já existente na

cultura, nos constitui. Por outro lado, também somos capazes de criar significado. O

significado, portanto, é público e partilhado, pois a cultura é anterior ao indivíduo,

constituindo-o. Desta forma, para Bruner (1997), toda psicologia deve ser considerada

cultural, e o significado apresenta-se como a base para se pensar a “psicologia popular”,

uma característica da psicologia cultural, definida por Bruner (1997) como:

Um conjunto de descrições mais ou menos conectadas, mais ou menos

normativas, sobre como os seres humanos “pulsam”, como é a nossa própria

mente e como são as dos outros, o que podemos esperar que seja uma ação

situada, quais são os estilos de vida possíveis, como nos comprometemos

com eles e assim por diante (BRUNER, 1997, p.40).

A “psicologia popular” tem fortes laços com o modo narrativo de

pensamento, aposto ao modo paradigmático. O modelo narrativo seria o princípio

organizador da psicologia popular, de modo que a narrativa tem um importante papel no

processo de organização da experiência.

Com efeito, se analisamos a psicologia popular ou o senso comum, a

totalidade de nossas crenças e o tipo de explicações que damos sobre as

coisas, veremos que sua organização é narrativa, e não lógica ou categórica: a

psicologia popular é constituída por narrativas (CABRUJA; ÍÑIGUEZ;

VÁZQUEZ, 2000, p. 83).

E por ser constituída de narrativas, permite que novas realidades sejam

criadas, já que as “narrativas são os instrumentos através dos quais damos sentido ao

nosso mundo, constituindo-o como significativo para nós mesmos” (CABRUJA;

ÍÑIGUEZ; VÁZQUEZ, 2000, p. 84).

Bruner (1997), com seu resgate do significado para a psicologia, foi um dos

fundadores da Psicologia Narrativa, que foi influenciada também pela Hermenêutica,

perspectivas pós-modernas como o Construcionismo Social, Psicologia Cultural e

Antropologia (HEVERN, 2004). Crossley (2000) defende que a Psicologia Narrativa

surge como uma abordagem alinhada ao Construcionismo Social, à medida que procura

examinar a estruturação cultural da experiência individual. Contudo afasta-se de

algumas abordagens socioconstrucionistas (análise de discurso, psicologia discursiva,

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pós-estruturalismo e pós-modernismo, por exemplo), que focalizam a natureza

desordenada, caótica e variável da experiência de si:

...existe a necessidade na psicologia contemporânea, de uma abordagem

teórica e metodológica que aprecie a estruturação linguística e discursiva do

self e da experiência, mas que também mantenha uma noção essencialmente

pessoal, coerente e “real” da natureza da subjetividade individual. (...) uma

abordagem psicológica narrativa permite o alcance deste objetivo (CROSSLEY, 2000, p.530).

Será a Psicologia Narrativa, este campo complexo e multidisciplinar de

estudos, juntamente com as terapias pós-modernas, o referencial teórico para esta

pesquisa. O giro linguístico, como movimento mais abrangente, possibilitou a

ocorrência do giro narrativo, que influenciou tanto a Psicologia Narrativa, mencionada

anteriormente, quanto as terapias pós-modernas, que serão apresentadas a seguir.

2.2 Terapias Pós-Modernas

Narrativa é comumente o sinônimo de história. Refere-se a um relato

simbolizado de ações humanas, que possuem uma dimensão temporal com começo,

meio e fim. A história é mantida enquanto uma unidade devido a padrões de eventos

chamados de “enredos” (SARBIN, 1986). Para Riessman (2008), narrativa é a maneira

como um falante conecta eventos em uma sequência que serve de consequência para

futuras ações. Um exemplo disso é trazido por Sarbin (1986):

Apresente duas ou três figuras, ou frases descritivas, para uma pessoa e ela

irá conectá-las para formar uma história, um relato que relacione as figuras

ou os sentidos das frases na mesma forma padronizada. Em reflexão,

descobrimos que as figuras ou sentidos são mantidos juntos pelo implícito ou

explícito uso do enredo (tradução nossa) (p. 8).

Cada narrativa é composta para uma audiência específica, em um momento

histórico particular e contendo valores próprios de uma cultura (RIESSMAN, 2008).

Consequentemente, as narrativas não são produções individuais independentes, são

performáticas, estratégicas e possuem um fim. Quando alguém conta uma história, não

está simplesmente representando uma história, mas pode estar se defendendo, se

vangloriando, buscando causar pena, tentando persuadir, ou seja: realizando uma ação.

Desta forma, fazemos coisas e construímos realidades através da linguagem. Mas se por

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um lado, nossas narrativas constroem o mundo, por outro, essas mesmas narrativas que

usamos também são construções sociais (CABRUJA; ÍÑIGUEZ; VÁZQUEZ, 2000).

O mundo é atravessado por narrativas e histórias, mas é precisamente esse

"atravessamento", o que constitui o mundo. Na verdade, para fazer a

realidade inteligível, os seres humanos precisam recorrer a uma narrativa da

mesma, mas são por sua vez, as próprias histórias e narrativas que se

entrelaçam e dialogam entre elas, que outorgam realidade para o mundo em que vivemos. Nascemos em um mundo já construído. Isto significa que a

linguagem incorpora-nos e nós vamos incorporar a linguagem, tomando

conceitos compartilhados e categorias que nos permitem explicar o mundo.

São estes conceitos e categorias preexistentes que nos permitem ir

"assimilando" e dando conta da realidade (tradução nossa) (CABRUJA;

ÍÑIGUEZ; VÁZQUEZ, 2000, p. 65).

Construímos nossas narrativas em co-autoria com as narrativas já existentes

na cultura da qual fazemos parte, e inevitavelmente falamos dentro de uma ordem social

já estabelecida. Portanto, “a função principal do discurso não consiste em representar o

mundo, mas em dar forma a nossas ações sociais e coordená-las” (CABRUJA;

ÍÑIGUEZ; VÁZQUEZ, 2000, p. 69). Não sendo um espelho da realidade, mas sim

construtora desta, a narrativa é vista como uma ação no mundo. Desta forma, como já

vimos, a narrativa pode exercer algumas funções, tais como: recordar o passado, brigar,

justificar, persuadir, engajar, divertir e enganar, além de que histórias podem ser usadas

por grupos para mobilizar os outros e criar um senso de pertencimento (RIESSMAN,

2008).

Nesta pesquisa, interessa-nos uma função específica da narrativa: a

construção de significado ou meaning-making:

Contar histórias sobre momentos difíceis em nossas vidas cria ordem e

controla emoções, permitindo uma procura por significado e possibilitando

conexão com outros. Minha própria pesquisa, que examinou vidas

interrompidas por doenças crônicas, divórcio e infertilidade, é baseada na

construção de significado da narrativa. Quando desorganizações biográficas

acontecem, rompendo expectativas de continuidade, indivíduos dão sentido

aos eventos mediante a narração de histórias (tradução nossa) (RIESSMAN,

2008, p. 10).

A função de construção de significado da narrativa é o primeiro ponto que a

aproxima do trabalho psicoterápico. A própria definição de narrativa serviria para

explicar o processo terapêutico: “a maneira como um falante conecta eventos em uma

sequência que serve de consequência para futuras ações”. A característica da narrativa

de unir eventos desconexos em um enredo construído em uma linha do tempo, de

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maneira que façam sentido, é justamente o esforço da pessoa que procura terapia após

um evento traumático para juntar os pedaços de sua vida em um todo coerente.

Além disso, como vimos anteriormente, a partir do giro linguístico e da

crítica ao representacionismo, a linguagem passa a ser vista como tendo um papel

fundamental na construção da realidade. Uma dessas construções permeadas pela

linguagem seria a construção de “nós mesmos”. Tendo a narrativa um papel

fundamental na construção do self, e sendo a terapia um processo de construção de si

através do diálogo, nos deparamos com o segundo ponto de relevância a respeito da

narrativa no campo da psicoterapia. O setting terapêutico torna possível que o cliente

repense, atualize, revise, reconstrua e repare suas narrativas de vida com o apoio do

terapeuta. Ao contarem histórias, as pessoas estruturam, organizam e ordenam suas

experiências, podendo assim dar sentido ao vivido. A terapia seria esse espaço de

organização, elaboração e ressignificação da experiência de si e do mundo, através da

exploração de narrativas.

Ao construirmos nossas histórias, expressamos a maneira como

compreendemos nossa experiência, não só estamos nos apresentando aos

outros, mas também a nós mesmos, além de estarmos ampliando ou

restringindo nossas possibilidades existenciais. As histórias representam,

assim, o resultado de empenhos para dar um sentido à vida, organizando a

experiência em sequências temporais, configuradas em relatos coerentes

sobre nós mesmos e o mundo. (GRANDESSO, 2000, p.207)

A linguagem é, portanto, a forma como tentamos dar conta do mundo e de

nós mesmos. Sendo nosso entendimento da realidade sempre mediado pela linguagem,

Bruner (2004) se vale do trabalho de Slobin (2000) para defender que toda experiência é

verbalizada segundo uma perspectiva:

“...O mundo não apresenta "eventos" para serem codificados na linguagem. Em vez disso, no processo de falar ou escrever, as experiências são filtradas

através da linguagem em eventos verbalizados.” A individualidade pode

certamente ser considerada como um dos "eventos verbalizados", uma

espécie de meta-evento que dá coerência e continuidade ao embaralhamento

da experiência. No entanto, não é apenas a língua em si, mas a narrativa que

molda seu uso - especialmente seu uso na construção do self (tradução

nossa). (BRUNER, 2004, p. 7)

As construções linguísticas, como por exemplo, a individualidade, são

importantes para dar coerência ao “embaralhamento da experiência”, isto é, para dar

sentido à multiplicidade de eventos caóticos que permaneceriam desconexos se não

fossem interligados por uma trama narrativa. Sobre a relação entre narrativa e

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construção de si, podemos citar o trabalho de alguns autores como, por exemplo,

Murray (2008), que afirma que “é através da narrativa que podemos definir a nós

mesmos em uma continuidade temporal” (p. 111). McAdams (1993) afirma, também,

que a narrativa é organizadora da nossa auto-definição e que nossa identidade toma a

forma de uma história: com cenas, personagens, enredo e tema.

Bruner (2004) acredita que narrativa e self estão fortemente articulados, já

que o senso de self origina-se no ato de transformar nossas experiências em histórias,

para assim partilha-las com os outros e nos fazer entender. A construção da identidade

não pode acontecer sem a capacidade de narrar. Para Bruner (2004), não existe um self

essencial que possa ser representado por palavras. Nós construímos e reconstruímos

nossos selves de acordo com a situação. A construção do self é uma “arte narrativa” e

esta se dá não só “por dentro”, através da memória, sentimento, subjetividade, crenças,

mas também “por fora”, através das expectativas culturais que desde cedo aprendemos a

seguir, mesmo que sem perceber. A construção do self é uma forma de atestar nossa

singularidade no mundo. “Nesse sentido, o self é mais bem definido como uma

autobiografia em constante desenvolvimento, apresentando-se na expressão de nossas

narrativas sempre em mudança” (GRANDESSO, 2000, p.220).

Bruner (2004) ao tentar responder por que a narrativa está tão fortemente

imbricada com esta construção do si mesmo, a ponto de nossa identidade parecer um

produto das histórias que criamos, chega a algumas conclusões baseado no trabalho do

psicólogo Ulric Neisser, especialista em estudos de memória. Bruner se pergunta por

que nós naturalmente nos retratamos através de histórias. Dentre estas descobertas,

Bruner (2004) aponta que o self é repleto de agência, desejo, intenções e busca de

objetivos. Em consequência disso, é sensível a obstáculos, respondendo a sucessos e

fracassos, sendo capaz de lidar com resultados incertos. É orientado por padrões

culturais e permanece contínuo através do tempo apesar das transformações. Em

seguida, Bruner comenta que essas mesmas características podem ser usadas para

definir o que seria uma boa história: um enredo com objetivos, que tem obstáculos pelo

caminho, fazendo com que o personagem cresça, mas sua identidade permaneça

reconhecível. Por fim, Bruner (2004) aponta uma evidência de que se não tivéssemos a

capacidade para construir histórias sobre nós mesmos, não teríamos por consequência,

um senso de pessoalidade ou selfhood. Trata-se de uma disfunção neurológica chamada

dysnarrativia, que impede as pessoas de entenderem e contarem histórias. Pacientes

com este diagnóstico apresentam, consequentemente, uma perda no seu senso de self e

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na percepção dos outros. Por perderem seu senso de self, esses pacientes deixam de ser

capazes de ter um ponto de vista próprio e realizar escolhas. Nesse sentido, Angus e

McLeod (2004) afirmam que a narrativa dá expressão à agência humana, além de

reconhecer, assim como Bruner (2004) e McAdams (1993), a função narrativa como

prática de construção pessoal (self-making practice). “A estrutura da narrativa reflete

dimensões fundamentais da existência humana, como agência pessoal, intenção,

vivência no e através do tempo, e a experiência de pertencer a uma cultura e tradição”

(ANGUS E MCLEOD, 2004, p. ix).

O ponto de vista de Angus e McLeod (2004) nos remete à proposição de

Sarbin (1986), que propõe a narrativa como metáfora fundamental para a psicologia,

reconhecendo que narrativa e existência humana compartilham muitas características

semelhantes. O papel da narrativa na construção do significado, na construção do self,

na agência e na reorganização da experiência no tempo, fica explicitado na passagem

acima. Sendo a terapia um espaço onde todos esses aspectos da existência também serão

explorados, mais uma vez vemos uma aproximação entre os campos da narrativa e da

clínica psicoterápica.

Sob a influência do giro narrativo, essas teorias narrativas foram

incorporadas na prática psicoterápica de duas maneiras distintas: por um lado,

assimilando conceitos e problematizações de teorias narrativas a práticas terapêuticas já

existentes, chamadas de abordagens narrativamente informadas (narrative-informed), e

por outro, mediante a inauguração de uma nova abordagem, distinta das abordagens

tradicionais que viam a narrativa como uma estrutura cognitiva. Contrária a essa ideia,

essa nova abordagem que McLeod (2007) chama de pós-psicológica, vê a narrativa

como performance e como uma forma de discurso.

No campo das abordagens narrativamente informadas, alguns dos

primeiros autores a incorporar ideias narrativas a seus trabalhos foram os psicanalistas

Roy Schafer e Donald Spence, segundo Sarbin (1986). Sarbin já cita esses autores como

dando uma importante contribuição para uma forma diferente de pensar a psicanálise.

Segundo Goolishian e Anderson (1994):

De acordo com Schafer, o self é uma manifestação da ação humana, da ação

de falar acerca de si mesmo; mas diferente de Spence, que se preocupava

principalmente com o conteúdo da narração construída, Schafer se interessou

também pelo modo da construção, pelo discurso narrativo. Defendia que

estamos nos contando permanentemente, a nós mesmos e aos demais, quem

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somos, incorporando estas histórias umas dentro das outras (tradução nossa)

(p. 298)

Esses autores foram fundamentais para a compreensão e o início dos

estudos sobre como o processo terapêutico pode ser entendido de um ponto de vista

narrativo (MCLEOD, 2007). Por outro lado, reforçando a crítica à modernidade, surgem

as terapias narrativas pós-psicológicas, com “foco no relacionamento entre a pessoa e os

recursos narrativos que estão disponíveis para ela em sua cultura” (MCLEOD, 2007, p.

242). São propostas novas, construídas a partir de uma visão não mais centrada na

interioridade, mas baseada na ideia de que os problemas que as pessoas trazem à terapia

estão fortemente relacionados com o contexto histórico e cultural que os forjam. Estas

perspectivas estão influenciadas pela nova maneira de conceber a linguagem a partir do

giro linguístico e têm a narrativa como conceito de base, já que entendem que ao narrar,

o indivíduo em terapia alcança coerência para sua história, sentido para suas

experiências e um senso de identidade. Além disso, concebem a terapia como um

evento social, mais que um evento psicológico (MCLEOD, 2004).

McLeod (2004) cita a Terapia Narrativa de Michael White como uma das

principais terapias pós-psicológicas, e afirma que o termo pós-psicológica é equivalente

a pós-moderno, pois evoca uma virada nas concepções consolidadas no campo da

terapia. Nesse sentido, Grandesso (2001) identifica a Terapia Colaborativa como uma

abordagem pós-moderna, assim como a Terapia Narrativa de Michael White. Segundo

Grandesso (2001), as terapias pós-modernas teriam em comum: a ideia do terapeuta

como um co-construtor e do cliente como autoridade máxima de sua vida; a rejeição de

uma noção essencialista do self; o entendimento de que os significados são socialmente

e dialogicamente construídos na linguagem; a crença de que o diálogo é uma prática

social transformadora; o uso de questionamentos para gerar transformação e mudança; a

escolha por uma postura hermenêutica.

McLeod (2009) aproxima a Terapia Colaborativa da Terapia Narrativa já

que ambas têm como base a promoção de um ambiente que permita às pessoas contarem

suas histórias e criarem outras que favoreçam novas formas de ação. Há também a

prática comum de convidar pessoas que fazem parte da vida do cliente, para de algum

modo participar de seu processo. Vemos, portanto, que essas duas abordagens (Terapia

Narrativa e Terapia Colaborativa) trazem importantes contribuições para pensarmos a

relação entre narrativa e transformação na terapia.

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A seguir, faremos uma breve apresentação dessas duas abordagens, que

assim como a Psicologia Narrativa, servirão de embasamento teórico para respondermos

as nossas perguntas de partida.

2.2.1 Terapia Narrativa

A Terapia Narrativa teve sua origem nos anos 80, em um trabalho de

colaboração entre Michael White (Austrália) e David Epston (Nova Zelândia) no campo

da terapia familiar, onde teve grande repercussão. White partiu das ideias sistêmicas de

Bateson e a partir dele revisou seu modo de conceituar e tratar o problema do cliente.

Foi no pensamento de Bateson que White e Epston (1993) conheceram o método

interpretativo, que se refere ao estudo “dos processos pelos quais deciframos o mundo.

Dado que não podemos conhecer a realidade objetiva, todo conhecimento requer um ato

de interpretação” (p. 20). Portanto, para os autores, inspirados no método interpretativo,

os comportamentos problemáticos dos membros de uma família não seriam justificados

por disfunções internas próprias de cada pessoa, mas pelos significados que os membros

atribuem aos eventos.

A Terapia Narrativa conta também com a influência de outras bases teóricas

e epistemológicas, como a filosofia crítica de Michel Foucault, o Construcionismo

Social formulado por Kenneth Gergen, a Psicologia do Desenvolvimento de Jerome

Bruner, entre outros. A Terapia Narrativa é uma proposta anti-patologizante que permite

que histórias alternativas tomem o lugar de narrativas culturais dominantes que tendem

a subjugar o eu e as relações sociais e restringir as possibilidades existenciais

(GRANDESSO, 2001). Para Polkinghorne (2004), o foco da terapia narrativa é ajudar

as pessoas a alcançar novas interpretações mais expansivas e inclusivas, e passar de

sentidos restritivos e vitimizantes para sentidos que empoderem e abram possibilidades.

White e Epston (1993) explicam que comumente as pessoas procuram

terapia quando:

las narraciones dentro de las que “relatan” su experiencia —y/o dentro de las

que su experiencia es “relatada” por otros— no representan suficientemente

sus vivencias. Y por tanto, suponemos también que en estas circunstancias,

habrá aspectos significativos de su experiencia vivida que contradigan estas narraciones dominantes (p. 31)

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As pessoas adaptam os enredos socialmente aceitos para dar sentido a suas

vidas. Porém, muitas vezes esses enredos dominantes não correspondem às vidas das

pessoas, gerando sofrimento. Por terem internalizado a história dominante, as pessoas

acham que elas são a fonte do problema, e não conseguem enxergar outros enredos

possíveis para suas vidas. Goffman (1961, apud WHITE; EPSTON, 1993, p.32) chama

esses aspectos da experiência vivida que fogem ao relato dominante de “acontecimentos

extraordinários”. Existiriam outras formas de narrar a experiência, que seriam mais

desejáveis, úteis e satisfatórias para o indivíduo. O processo terapêutico seria o espaço

de exploração e construção dessas novas formas de auto-narração.

A fascinação de Michael White por mapas o levou a usar esta metáfora em

sua prática clínica. Para ele, estar com o cliente é como desvendar um território

desconhecido, traçando novas rotas e percorrendo caminhos nunca antes imaginados.

White (2012) apresenta uma série de conversações que ajudariam o terapeuta a explorar

o mundo do cliente, funcionando como possíveis diretrizes do processo terapêutico.

Entre elas, podemos citar as conversações externalizadoras, conversações de re-autoria e

conversações de remembrança (ou re-associação1). Todas são propostas de

conversações que abririam o diálogo à possibilidade de ressignificação. Não são

estruturas rígidas, apenas sugestões sobre como facilitar a conversação. São diretrizes,

que devem ser modificadas de acordo com o processo de cada cliente (GRANDESSO,

2008b).

As conversações externalizadoras consistem em ajudar o cliente a ver-se

como separado do seu problema. Distinguir o “problema” como algo diferente da

pessoa, cuja vida é afetada pelo problema, ajudaria o cliente a enfrentá-lo melhor. A

externalização do problema é, portanto, um mecanismo que ajuda as pessoas a se

separarem de suas descrições saturadas pelo problema e identificar os discursos de

verdade a que estão submetidas, para então, libertar-se dos mesmos. Através desse

processo, as pessoas são convidadas a ter uma atitude reflexiva perante suas vidas e

podem questionar as verdades que experimentam como definidoras de si mesmas:

A prática das conversações externalizadoras é compreendida, dentro desse

contexto ideológico, como uma forma de ajudar as pessoas a identificarem os

conhecimentos unitários e os discursos de ‘verdade’ a que se submeteram ao

construir estreitas visões de suas identidades e ralas histórias da experiência

vivida. Em relação às práticas culturais que objetivam as identidades das

1 No original: re-membering. Como não há termo análogo na língua portuguesa, aqui usamos o vocábulo

assim como foi traduzido na obra de White (2012).

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pessoas, as conversações externalizadoras podem ser consideradas uma

contra-prática: em vez de objetivarem as pessoas definindo-as e

classificando-as como problemáticas, objetivam os problemas (White, 2007).

Os problemas são os problemas, não as pessoas (GRANDESSO, 2008b, p. 6

e 7).

É a partir dessa separação entre pessoa e problema, que os acontecimentos

extraordinários podem ser identificados e narrativas alternativas podem ser criadas,

como explicam White e Epston (1993):

Una vez identificados los acontecimientos extraordinarios, se puede invitar a

las personas a atribuirles significados. Para que esta asignación de significado

pueda realizarse, es necesario que los acontecimentos extraordinarios se

organicen en un relato alternativo (p. 33).

Isso pode ser feito através da introdução de perguntas que convidem a

pessoa a refletir sobre as novas possibilidades que os acontecimentos extraordinários

abrem. Esta postura terapêutica, que enfatiza os discursos sociais que perpassam as

narrativas individuais, reflete a influência de Foucault no pensamento dos autores da

Terapia Narrativa. Entendemos que:

Os discursos definem um conjunto mais ou menos coerente de histórias ou

afirmações sobre o mundo; à medida que organizam e regulam as relações

interpessoais, as práticas discursivas estabelecem relações de poder, tendo

assim uma capacidade prescritiva sobre a vida das pessoas (GRANDESSO,

2000, p. 242).

As narrativas, portanto, veiculam práticas discursivas, que se desenrolam no

“anonimato do murmúrio” (FOUCAULT, 1992) e orientam formas de viver. Foucault

(1998) analisou o conceito de discurso, entendido como o conjunto de enunciados que

têm pretensão de ser verdade. O discurso teria algumas condições de funcionamento,

pois segundo Foucault (1998) não se pode falar tudo em qualquer lugar, e não é

qualquer pessoa que pode falar qualquer coisa. Além disso, para ter validade e ser

considerado verdadeiro e legítimo, o enunciado deve ser repetido (ARAÚJO, 2008). O

discurso, para Foucault, é entendido como prática e não representação, sendo construtor

de realidades: “o discurso, como prática, produz efeitos que respaldam ou reproduzem

saberes e poderes” (ARAÚJO, 2008, p. 244).

Foucault acredita que o discurso subjetiva, ou seja, que falamos de nós

através dos discursos que estão socialmente disponíveis e que o poder funciona através

destes discursos.

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O discurso, nessa perspectiva, não remete a nenhum sujeito, a nenhum eu

pessoal ou coletivo que o tornaria possível. O que ocorre, antes, é que para

cada enunciado existem posicionamentos de sujeito. O sujeito é uma variável

do enunciado. E são esses posicionamentos, essas posições discursivas, as

que literalmente constroem o sujeito (LARROSA, 1994, p. 63).

Foucault (2004) se interessa pela constituição histórica das diferentes

formas do sujeito. “Procurei mostrar como o próprio sujeito se constituía, nessa ou

naquela forma determinada, como sujeito louco ou são, como sujeito delinquente ou

não, através de um certo número de práticas, que eram os jogos de verdade, práticas de

poder etc.” (FOUCAULT, 2004, p. 275). Para o filósofo, o sujeito se apresenta de forma

diferente dependendo do contexto. Diante disso, o autor tem por interesse a análise da

forma como o sujeito se constitui mediante as práticas de poder:

se agora me interesso de fato pela maneira com a qual o sujeito se constitui

de uma maneira ativa, através das práticas de si, essas práticas não são,

entretanto, alguma coisa que o próprio indivíduo invente. São esquemas que

ele encontra em sua cultura e que lhe são propostos, sugeridos, impostos por

sua cultura, sua sociedade e seu grupo social (FOUCAULT, 2004, p. 276).

As concepções foucaultianas de conhecimento e poder influenciaram White

e Epston (1993) em suas ideias sobre o que é terapia, como se dá a transformação e

como o terapeuta deve proceder no setting terapêutico. A influência de Foucault fez da

Terapia Narrativa uma abordagem crítica, marcada pela relevância da cultura nos

processos pessoais. Partindo das discussões foucaultianas sobre discurso e poder, White

e Epston (1993) explicam as implicações práticas das ideias de Foucault para a terapia:

En primer lugar, a la luz del análisis de Foucault, podríamos suponer además

que aquellas narraciones que no representan suficientemente las experiencias

vividas de uma persona o entran en contradicción con aspectos vitales de esa

experiencia, están significativamente influidas por los discursos “de verdade”

de los conocimientos unitarios. En segundo lugar, podríamos suponer que las personas son incitadas a realizar acciones, a través de las técnicas de poder,

que afectan a sus vidas y a sus relaciones, a fin de someterse y someter a

otros a las especificaciones referentes a la condición y las relaciones

personales contenidas en estos discursos “de verdade” (WHITE; EPSTON,

1993, p.43).

Sendo assim, segundo White e Epston (1993) os discursos de verdades

restringiriam as possibilidades de construção narrativa das pessoas, fazendo com que

elas agissem segundo normas que muitas vezes não condizem com sua experiência

vivida. Foucault defende que as pessoas são mantidas em posições subalternas através

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da autocensura, e que a base desta autocensura vem do fato de não conseguirem cumprir

as normas esperadas pela sociedade. Esse poder que impõe normas sociais é disfarçado

ou mascarado porque carrega um status de "verdade" e é projetado para trazer

resultados corretos, como uma vida considerada "realizada", “racional” e

“autossuficiente” (PAYNE, 2006). As maneiras de ser influenciadas por essas

"verdades" não são reconhecidas, pelas pessoas, como efeitos do poder. Desta forma, as

pessoas agem assumindo que têm total livre arbítrio, sem perceber que estão seguindo

uma norma.

White e Epston (1993) propõem, então, a externalização do problema como

forma de identificar o conhecimento unitário e dominante que orienta a vida da pessoa e

abrir espaço para conhecimentos alternativos, antes subjugados. Ao separar a pessoa do

problema e indagar os efeitos do problema sobre a vida da pessoa, identificam-se as

condições necessárias para a permanência do problema. Assim, revelam-se as técnicas

de poder a que as pessoas estão submetidas. Identificando-se essas técnicas, torna-se

possível lançar luz sobre os acontecimentos extraordinários que não estavam visíveis e

fomentar uma reflexão sobre as ocasiões em que a pessoa poderia ter se submetido a

essas mesmas técnicas de poder, mas se negou a fazê-lo. A partir de então, inicia-se o

processo de construção de novos significados acerca dos acontecimentos

extraordinários, gerando narrativas alternativas que incorporem aspectos antes negados

da experiência vivida.

Ao poderem construir narrativas alternativas e integrá-las em sua história de

vida, a pessoa passa a ser capaz de agir diferente. Anderson (2011) conta o caso de Rita,

que teve histórico de incesto em sua família e cresceu presa a um rótulo. Sua história

mostra como essas narrativas de passado cristalizado aprisionam a pessoa em uma

identidade de vítima “e cria um obstáculo para suas autodefinições mais viáveis e

libertadoras” (ANDERSON, 2011, p. 193).

Nossas autonarrativas podem permitir ou impedir o autoagenciamento. Ou

seja, elas criam identidades que nos permitem ou impedem de fazer o que

precisamos ou queremos fazer (...) Na terapia, conhecemos pessoas cujos “problemas” podem ser entendidos como procedentes de narrativas sociais e

autodefinições ou auto-histórias que não propiciam agenciamento efetivo

para as tarefas definidas. Mulheres, por exemplo, que são autorrotuladas ou

rotuladas por outras como “sobreviventes adultas do incesto infantil” podem

desenvolver narrativas que fixem uma autoidentidade que é inerentemente

autolimitante (ANDERSON, 2011, p. 192).

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Na terapia, Rita percebeu que poderia ser muito mais do que a imagem

que os outros tinham dela, da qual ela também se apropriou. Sua nova identidade

integrava também outros aspectos que o antigo rótulo não permitia. White considera,

assim, a terapia como um contexto de reescrita da vida.

He defendido que las prácticas asociadas a la externalización de problemas se

consideren contraprácticas en contraposición a las prácticas culturales que

convierten en objetos a las personas y a sus cuerpos. Estas contraprácticas

abren espacios en los que las personas pueden reescribirse o reconstituirse a

sí mismas, a los demás y a sus relaciones, según guiones y conocimientos

alternativos (WHITE; EPSTON, 1993, p.86).

É nesse sentido de reescrita, que White (2012) propõe as conversações de

reautoria. Para o antropólogo Gregory Bateson, as pessoas geralmente não reconhecem

eventos que não estão de acordo com seus mapas mentais, pois a compreensão que têm

dos eventos é determinada pelo contexto (WHITE; EPSTON, 1993). Por não

perceberem os significados que fogem a seus mapas mentais, as pessoas acabam presas

a certos significados e os naturalizam como a única forma possível de existência. Por

outro lado, quando são capazes de atribuir novos significados aos eventos, passam a agir

diferente. É nesse contexto que as conversações de re-autoria se fazem necessárias:

As conversações de reautoria convidam as pessoas a continuar a desenvolver

e contar histórias sobre suas vidas, mas também as ajudam a incluir alguns

dos eventos e experiências mais negligenciadas, porém potencialmente

significativos, que estão “em desvantagem” em relação às histórias

dominantes (WHITE, 2012, p. 75).

São conversações que permitem o surgimento de novas vozes,

substituindo narrativas cristalizadas pela sociedade, que são muitas vezes limitantes e

opressivas. Esse processo de reautoria acontece mediante conversação com o terapeuta

que deve “introduzir perguntas que estimulem as pessoas a resgatar a experiência

vivida, a ampliar suas ideias, exercitar a imaginação e empregar seus recursos de

produção de significado” (WHITE, 2012, p. 76). Essas conversações trazem uma marca

da influência de Jerome Bruner, que nos adverte que um bom texto deve permitir que o

leitor possa interpretá-lo em múltiplos sentidos. Da mesma forma devem ser as histórias

na clínica: abertas a uma recriação. O terapeuta procura explorar essas histórias,

mostrando lacunas onde novos sentidos podem ser estruturados.

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Um terceiro tipo de conversação proposto por White (2012) são as

Conversações de Remembrança. Esta proposta procura lidar com a ressignificação da

identidade através de um olhar para as figuras importantes que fazem parte da história

da pessoa. O autor trata, então, a identidade como uma associação com diversos

membros. Esta visão vai de encontro ao conceito de self encapsulado e unificado. Para

White (2012), os membros da “associação de vida” devem ser constantemente

atualizados, sendo alguns retirados e outros valorizados. Perceber a influência que as

figuras significativas operam nas identidades das pessoas, favorece uma oportunidade

de revisão e libertação de formas de se perceber limitantes e opressoras.

Essas conversações surgiram a partir do trabalho de Michael White com

pessoas que vivenciam um luto. O autor começou, então, a trabalhar com a ideia de

“dizer olá novamente” ao invés da tradicional tentativa de fazer o cliente “dizer adeus” e

se desvencilhar da pessoa perdida. White (2012), ao contrário, traz a figura perdida para

perto, ajudando seu cliente a perceber a influência desta figura em sua identidade, bem

como sua influência na vida dessa figura, trabalhando, assim, com uma relação bilateral,

mostrando que duas pessoas em relação sempre se influenciam mutuamente.

White e Epston (1993) propuseram também o uso de documentos escritos,

entre eles cartas terapêuticas, certificados e declarações públicas, usados com a função e

tradição social de celebrar e confirmar uma conquista, validando-a perante a família e a

comunidade. Estes documentos funcionariam como o que Myerhoff (1982) chamaria de

Cerimônias de Definição:

Llamo a estas representaciones “ceremonias de definición”, entendiendo que constituyen autodefiniciones colectivas dirigidas específicamente a un

público que de otro modo no estaría disponible (p. 105 apud WHITE;

EPSTON, 1993, p. 187).

White (2012) conta que pegou este termo emprestado de Barbara Myerhoff,

antropóloga que descreveu este procedimento na ocasião em que trabalhou, nos anos 70,

com idosos judeus residentes em Los Angeles, que se sentiam invisíveis para o resto da

comunidade. Myerhoff (1986) entende que:

Cerimonias de definição lidam com problemas da invisibilidade e

marginalidade; são estratégias que providenciam oportunidades para que a

pessoa seja vista em seus próprios termos, congregando testemunhas para o

seu valor, sua vitalidade e seu ser (p. 267 apud WHITE, 2012, p. 200).

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A Cerimônia de Definição parte do entendimento de que a identidade é uma

conquista pública e social, e não individual. Depende, portanto, do reconhecimento do

outro. O uso de documentos escritos, portanto, funciona como Cerimônia de Definição

ao servirem como rituais onde as novas definições são legitimadas publicamente. White

e Epston (1993) nos dão alguns exemplos: certificado de vitória sobre maus hábitos;

certificado de vitória sobre a culpabilidade; diploma de conhecimentos especiais;

certificado de concentração.

Outra prática característica do ritual de Cerimônias de Definição que, assim

como o uso de documentos escritos, também favorece uma legitimação pública é o uso

de “testemunhas externas”. Esta prática consiste em convidar outras pessoas, na maioria

das vezes pessoas significativas na vida de quem está participando da terapia, para

através da partilha de ressonâncias e metáforas que a história narrada lhes evocou,

ajudar o cliente em questão a construir histórias mais ricas. White percebeu que a

construção de novas narrativas no setting terapêutico poderia ficar muito frágil se

tivesse a participação somente do terapeuta. Ter uma audiência participante traria uma

força adicional ao processo de refazer essas histórias (re-storying). Recontar sua história

para pessoas que fazem parte da vida do cliente traria o mundo real para dentro da sala

da terapia, e levaria o que aconteceu na terapia para o mundo real (PAYNE, 2006).

La resistencia de los nuevos relatos y su elaboración pueden también

favorecerse reclutando un público “externo”. Este processo tiene una doble

vertiente. En primer lugar, con el hecho de asistir a la representación de un

nuevo relato, el público contribuye a la escritura de nuevos significados; esto tiene efectos reales sobre la interacción de la audiencia con el sujeto del

relato. En segundo lugar, cuando el sujeto del relato “lee” la experiencia que

la audiencia tiene de la nueva representación, ya sea a través de la reflexión

sobre estas experiencias, ya sea por una identificación más directa, se

embarca en revisiones y extensiones del nuevo relato (WHITE; EPSTON,

1993, p. 34).

As testemunhas que ouviram a história não assistem passivamente, mas são

convidadas a partilhar o que mais lhes chamou atenção, que metáforas lhes ocorreram

ao ouvir a história da pessoa em questão. Este relato, vindo de uma nova perspectiva,

coloca a pessoa como espectadora da sua história e a faz pensar sobre diferentes

aspectos de sua vida, provocando revisões e um novo relato:

A medida que los relatos alternativos se prestan a ser representados, es

posible expresar y difundir otros aspectos, “amables” pero anteriormente negados, de la experiencia de la persona. Invitar a las personas a convertirse

en espectadores de su propia representación de estos relatos alternativos

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favorece la supervivencia de los relatos y el sentido de agencia personal

(WHITE; EPSTON, 1993, p. 33).

A agência pessoal, aqui, vem da apropriação e fortalecimento dos relatos

alternativos que surgem em terapia, dando legitimidade à história reescrita. Ao invés de

entender a autenticidade dessas novas histórias como a descoberta da verdade da pessoa,

ou o desvelamento de sua história verdadeira, a autenticidade das histórias construídas é

entendida, aqui, como:

uma realização pública e social onde as declarações da identidade preferida

da pessoa são confirmadas. É entendido que as pessoas são dependentes de

processos sociais de reconhecimento para a autenticação das declarações de

suas identidades preferidas (tradução nossa) (WHITE, 2004, p. 34).

Este reconhecimento se dá através dos relatos das testemunhas externas, que

são convidadas a contar e recontar as histórias de vida das pessoas consultadas, não

através de uma descrição objetiva, mas a partir de suas próprias ressonâncias, criando

um clima de coautoria e múltiplas visões de uma mesma história. As cartas terapêuticas

e a prática de testemunhas externas funcionam, portanto, como uma espécie de

legitimação da verdade da nova narrativa, que precisa ser narrada para outros e

reconhecida por outros para ser validada. Todas essas práticas são utilizadas para

favorecer e facilitar a construção de novas histórias, que é, para White e Epston, o

objetivo da terapia. Os autores não acreditam que a terapia promova “cura”, mas

propõem um processo no qual as histórias saturadas pelo problema possam ser

desconstruídas, dando lugar a histórias alternativas.

Meu interesse na metáfora da narrativa se fundamenta na suposição de que as

pessoas dão significado às suas experiências dos eventos da vida ao levá-los a

enquadramentos de inteligibilidade e na conclusão que é a estrutura da

narrativa que proporciona o enquadramento inicial de inteligibilidade para

atos de produção de significado na vida diária. Essa suposição está associada

com uma premissa de que é no desenrolar de histórias sobre nossas próprias

vidas e as de outros que a identidade é construída (WHITE, 2012, p. 94).

A Terapia Narrativa, portanto, faz grandes ligações entre vida e texto,

corroborando as ideias dos autores da Psicologia Narrativa acerca da natureza narrativa

da identidade, já que “qualquer renegociação de histórias da vida das pessoas é também

uma renegociação da identidade” (WHITE, 2012, p. 96).

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2.2.2 Abordagem Colaborativa

Harlene Anderson e Harold Goolishian são fundadores do Instituto de

Família de Galveston, em Houston, e desenvolveram, também por volta dos anos 1980,

a Abordagem Colaborativa. Tal perspectiva surgiu a partir de um giro paradigmático

dentro das terapias familiares sistêmicas, sendo utilizada também em atendimentos

individuais, organizacionais e educacionais.

A primeira grande virada ocorreu por volta da década de 50, quando a teoria

geral dos sistemas e a cibernética serviram de base teórica para o avanço da terapia

familiar, que surgia como uma alternativa ao tratamento de casos desacreditados, como

o de esquizofrênicos e jovens delinquentes. A terapia familiar sistêmica abandonou o

foco no intrapsíquico e enfatizou os contextos e as relações, na busca da solução para os

problemas humanos:

A mudança paradigmática imprimida pelo pensamento sistêmico-cibernético

à terapia familiar, desde os seus primórdios, introduziu uma orientação para o

presente nas práticas de terapia sistêmica, enfatizando a importância do

contexto para a compreensão dos dilemas humanos e considerando o

indivíduo como um ser em interação com os outros. Nesse sentido, a terapia

sistêmica, na sua explicação do comportamento sintomático, diferia,

radicalmente, tanto do modelo médico como do modelo psicodinâmico

(GRANDESSO, 2000, p. 138).

Após diferenciar-se das práticas consolidadas na época, psicanálise e

psiquiatria, a terapia familiar sistêmica sofreu mudanças internas. A princípio, as

terapias familiares se desenvolveram segundo a Cibernética de Primeira Ordem, que se

centrou, no primeiro momento (primeira cibernética), nas ideias de autoregulação e

homeostase dos sistemas. Um sintoma individual era entendido com uma resposta do

sistema a uma mudança. Contudo, viu-se que “além de conseguir manter sua

estabilidade, um sistema vivo necessitava, também, de ser capaz de modificar sua

estrutura básica para adaptar-se às situações de mudança do meio” (GRANDESSO,

2000, p. 131). A partir daí surge a “segunda cibernética”, como um segundo momento

da Cibernética de Primeira Ordem.

Durantes os trinta primeiros anos de desenvolvimento da terapia familiar,

marcados pela Cibernética de Primeira Ordem, o terapeuta era visto como um

interventor que operava mudanças no sistema familiar:

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A Cibernética de Primeira Ordem, seja no seu primeiro momento (primeira

cibernética) ou no segundo (segunda cibernética), define uma epistemologia

que se caracteriza pelo postulado de independência entre o observador do

sistema e o sistema observado. Um sistema, pensado a partir da Cibernética

de Primeira Ordem, pode ser operado de fora, seja por meio de estratégias

para correção dos desvios e manutenção da estabilidade sistêmica nas

mudanças de primeira ordem, seja por meio de recursos de ampliação dos

desvios e mudanças de segunda ordem, resultando em uma nova organização

sistêmica. (GRANDESSO, 2000, p. 133).

Já a partir da década de 80, podemos falar de uma Cibernética de Segunda

Ordem, marcada pela crítica ao empirismo lógico, positivismo e objetivismo da tradição

anterior. Esta nova perspectiva “incluía o observador como parte integrante e

interatuante com os demais elementos do sistema” (GRANDESSO, 2000, p. 135).

Questiona-se a autoridade do terapeuta e seu posicionamento como exterior ao sistema,

e busca-se um maior foco na construção social da realidade. Além disso, a Cibernética

de Segunda Ordem é marcada pela pluralidade e multidimensionalidade dos processos

(SCHNITMAN; FUKS, 2008). Houve, então, uma mudança paradigmática que deu

origem às terapias pós-modernas, abandonando as metáforas teóricas de homeostase,

desvios e circuitos cibernéticos para centrar-se na linguagem e no significado

(GRANDESSO, 2008a). Anderson e Goolishian (1988) participaram desta mudança,

adotando as teorias hermenêuticas, narrativas e da construção social, que caracterizam o

viés pós-moderno e marcam a Abordagem Colaborativa como uma prática que rompe

com os pressupostos modernos de objetividade, certeza e universalidade.

Os autores partem do pressuposto de que “as pessoas vivem e compreendem

seu viver por meio de realidades narrativas construídas socialmente, que conferem

sentido e organização à sua experiência” (ANDERSON; GOOLISHIAN, 1998, p. 36).

Outro pressuposto é que os sistemas humanos são sistemas linguísticos geradores de

linguagem e significado. Este novo entendimento muda a forma de se pensar o processo

terapêutico, e é um contraponto à perspectiva parsoniana, que ao aplicar a cibernética

para a teoria social, postulava que os sistemas humanos são sistemas socioculturais

organizados por estruturas e papéis, e caracterizados por controle, estabilidade e poder

(ANDERSON; GOOLISHIAN, 1988). Já para os criadores da Abordagem

Colaborativa, os sistemas podem ser descritos apenas como existentes na linguagem e

na ação comunicativa. Significado e sistemas sociais são, portanto, criados no dialogo e

as estruturas são o resultado de trocas comunicativas, sendo determinados localmente.

“Comunicação e discurso definem a organização social, ou seja, um sistema sócio-

cultural é produto da comunicação social, ao invés da comunicação ser um produto da

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organização” (ANDERSON; GOOLISHIAN, 1988, p. 372). Um terceiro pressuposto da

abordagem refere-se à natureza intersubjetiva do significado: este é construído

socialmente no diálogo.

Anderson (2001) parte da ideia sócio-construcionista de que o conhecimento

é relacional e linguisticamente construído na conversação e defende a existência de

múltiplas realidades que são negociadas na linguagem em uso. Essa perspectiva

pressupõe que a realidade é uma construção social – isto é, discursiva - distanciando-se

de uma epistemologia representacionista: “a linguagem não é o espelho da natureza, a

linguagem cria a natureza que conhecemos.” (ANDERSON; GOOLISHIAN 1988,

p.378). Na terapia, essa orientação leva à desnaturalização dos sistemas de nomeação e

classificação que podem nos levar a reificar os problemas dos clientes.

Na abordagem colaborativa, o sistema terapêutico é um sistema linguístico

formado em torno de um “problema”. Os problemas são construídos, isto é, são

“negociados” nos muitos espaços de interação social. Portanto, para organizar e

dissolver o “problema” central, terapeuta e cliente colocam-se em uma conversação

terapêutica que possibilite os processos de significação dos eventos e situações

considerados “problemáticos” e as circunstâncias em que são construídos dessa forma.

Para a abordagem, o problema não está na pessoa, mas no campo de significados

atribuídos à experiência. Como afirma Anderson (2011):

Os problemas não mais existem em tais unidades definidas espacial ou

socialmente como um indivíduo, uma família, um grupo de trabalho ou uma

comunidade. O que parece ser uma realidade objetiva identificável – um

problema – é apenas o produto de descrições, o produto de construção social.

Problemas não podem ser separados das conceituações de um observador. As

características que atribuímos a problemas, por exemplo, o transtorno de

personalidade que vemos em um indivíduo ou os padrões patológicos que observamos em indivíduos e famílias, não são características dos sistemas ou

do problema, mas características que damos a eles (p. 63).

Estando o problema na linguagem em uso, é também na linguagem em uso

que ele se “dissolve” (ANDERSON; GOOLISHIAN, 1988). Esta compreensão refere-se

à atenção que é dada aos múltiplos significados e versões que podem ser conferidos a

certos eventos e situações por um mesmo narrador. Esse relativismo opõe-se a certas

vertentes realistas em psicologia que acreditam na existência objetiva do problema,

independente do sentido que é conferido a ele. Anderson (2011) explica:

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problemas vivem e respiram em linguagem. Usar o linguajar, ou comunicar,

dentro do domínio de um problema, forma um sistema social: problemas

criam sistemas. O problema determina o sistema. (...) pensamos no sistema

problema como um sistema de ação social organizado em torno do uso de

linguagem nas questões das vidas das pessoas que elas definem como

problemas. Sistemas problemas, assim como problemas, existem na

linguagem (p. 70).

No diálogo, novos significados estão constantemente sujeitos a emergir,

devido à natureza transformadora da linguagem. Um evento nunca se esgota em seu

entendimento; não porta um sentido correto que, ao ser decifrado, se encerra. A terapia

é um acontecimento linguístico e o terapeuta é visto como um “artista da conversação”,

responsável por criar um espaço dialógico que facilite a exploração de novos sentidos.

Para isso, o terapeuta procura fazer perguntas a partir de uma posição de “não-saber”,

procurando entender mais sobre o que está sendo dito (ANDERSON; GOOLISHIAN,

1998). Esta postura, que se diferencia de uma posição do psicólogo como especialista,

foi influenciada pelas teorias hermenêuticas e interpretativas, que acreditam que o

entendimento é sempre fruto da interpretação. Não existe um significado verdadeiro que

deve ser captado, o significado é construído na relação.

Harlene Anderson sempre esteve interessada em compreender como a

terapia era vista, por seus clientes, como eficaz ou não eficaz, e por que alguns

terapeutas tinham sido importantes para seus clientes enquanto outros se mostravam

incapazes de ajudar. A autora concluiu que, ao questionar a fala do cliente e tentar guiá-

lo por um caminho específico, o terapeuta pode levar o cliente a se fechar para o diálogo

por não se sentir compreendido. Ao contrário, as perguntas feitas a partir de uma

atitude de não saber posicionam o cliente como especialista de sua própria vida e trazem

à tona possibilidades até então desconhecidas por ele. A abordagem colaborativa não

visa à mudança de personalidade, mas procura abrir espaço para o novo:

A mudança em terapia é a criação dialógica de uma nova narrativa e,

portanto, a abertura de oportunidades para novos meios de ação. O poder transformador da narrativa reside em sua capacidade de re-relatar os eventos

de nossa vida no contexto de novos e diferentes sentidos. Nós vivemos nas e

através das identidades narrativas que desenvolvemos em conversações uns

com os outros. A especialidade do terapeuta é a habilidade de participar deste

processo. Nosso “self” está sempre mudando. (ANDERSON;

GOOLISHIAN, 1998, p. 37 e 38).

De fato, a Abordagem Colaborativa trabalha com incertezas; não se inicia

um atendimento sabendo-se aonde quer chegar. As novas resoluções vão emergir da

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relação entre terapeuta e cliente e são, portanto, imprevisíveis. Não existe uma

resolução mais verdadeira que outra, por isso, não existe uma solução certa que deve ser

desvelada como algo que já existia a priori. As soluções são construídas, e não

descobertas.

O terapeuta colaborativo está ciente das relações de poder que permeiam a

terapia, porém, por mais que inevitavelmente esteja em uma posição diferenciada de seu

cliente, ele escolhe abdicar de uma posição superior, posicionando-se como um

aprendiz, que chega até o cliente desprovido de ideias prévias sobre ele. Evita

diagnosticá-lo, testá-lo e enquadrá-lo em fórmulas e teorias disponíveis. Dispor o cliente

como especialista de sua vida é uma das características mais marcantes na abordagem

de Anderson e Goolishian.

Pensar nos sistemas humanos existindo nos espaços comunicativos muda a

forma de conduzir a terapia. A Terapia Colaborativa enfatiza o aparecimento de

múltiplas vozes na sessão, além de incentivar que o terapeuta torne público seus

pensamentos. Para isso, utiliza-se de várias formas de diálogo, como, por exemplo, o

exercício do “como se”, que através de quatro processos (apresentação, escuta, reflexões

e discussão) convida os participantes de um atendimento, supervisão ou consultoria, a

escutarem a história em questão “como se” fossem um dos envolvidos, e em seguida

partilharem suas percepções. Essa atividade gera uma reflexão baseada em múltiplas

vozes, dando aos participantes a “oportunidade de desenvolverem uma consciência de

como cada membro de um sistema vivencia e pensa sobre a mesma informação ou

evento” (ANDERSON, 2011, p. 197). Outra proposta utilizada é a prática do reflecting

team proposta por Andersen (1987). A equipe reflexiva consiste em convidar um grupo

a assistir à sessão de atendimento familiar e expor aos clientes e terapeuta, suas

impressões a respeito do que ouviu e observou.

Um sistema "parado", ou seja, uma família com um problema, precisa de novas ideias, a fim de ampliar suas perspectivas e suas premissas contextuais.

Nesta abordagem, a equipe por trás de um espelho unilateral assiste e ouve a

conversa de um entrevistador com os membros da família. O entrevistador,

com a permissão da família, em seguida, pergunta aos membros da equipe

sobre suas percepções acerca do que se passou na entrevista. A família e o

entrevistador assistem e ouvem a discussão da equipe. O entrevistador, então,

pede a família para comentar sobre o que ouviram. Isso pode acontecer uma

vez ou várias vezes durante uma entrevista (tradução nossa) (ANDERSEN,

1987, p. 1).

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Essas propostas procuram trazer novas ideias para um sistema familiar que

pode estar fechado e viciado em significados repetitivos. Estas práticas mostram que o

problema é multifacetado, com muitos entraves, mas também muitas oportunidades de

solução. Além disso, a polifonia na sessão tira a responsabilidade do terapeuta de ser o

portador da verdade e da solução para os problemas, já que o cliente percebe, através

dos múltiplos pontos de vista, que existem outras maneiras de olhar para seus

problemas.

A Terapia Colaborativa aparece, assim, como um convite a conversação,

apostando na natureza transformadora do diálogo e na capacidade do cliente de decidir

sobre sua própria vida.

Após a apresentação da Psicologia Narrativa e das Terapias Pós Modernas

(Terapia Narrativa e Abordagem Colaborativa), que servem de base teórico-

metodológica para esta pesquisa, passaremos, a seguir, para a discussão do estado em

que um indivíduo que vivenciou um evento traumático chega à terapia. As abordagens

clínicas apresentadas acima refletem os benefícios de uma prática voltada para a

conversação e construção de histórias, onde é dada ênfase à natureza constitutiva das

narrativas que construímos sobre nós mesmos. Tais teorias expõem a relevância da

construção narrativa como ação propiciadora de novos significados e do diálogo como

uma prática social transformadora. É a partir do embasamento teórico acima

apresentado, que as experiências dos indivíduos que passaram por eventos traumáticos

serão analisadas.

2.3 Eventos traumáticos e a busca de terapia

Comum às perspectivas clínicas acima apresentadas é a posição de que

existem múltiplas narrativas possíveis e é precisamente esse potencial reconstrutivo que

é a essência da transformação humana na terapia (ANGUS; MCLEOD, 2004). As

experiências podem ser significadas em diferentes histórias e apontam para a natureza

multifacetada da identidade. Segundo Straub (2009), por exemplo, o passado é instável,

mutável e indeterminado: “o passado pode, por um bom motivo, ser ‘reescrito’ à luz de

novas experiências no presente...” (p.85).

A respeito das autobiografias, Bruner (2004) comenta que nenhuma

autobiografia é completa, apenas dada por encerrada. Além disso, este resultado é

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apenas uma versão possível, um modo de alcançar coerência, existindo uma infinidade

de outros modos possíveis. Não há, portanto, um passado verdadeiro fielmente

representado pela linguagem, mas as autobiografias, do ponto de vista da Psicologia

Narrativa, funcionam mais como produção de sentido sobre si mesmo. Porém, mesmo

podendo ser contadas de variadas formas, Bruner (2004) acredita que quase todas as

histórias de vida apresentam pontos de virada (turning points), quando circunstâncias

nos convidam a mudar nossos velhos modos de viver.

Como afirma Crossley (2000), “quando um sentido é interrompido por

traumas, a importância da narrativa novamente entra em vigor, como uma tentativa

individual de reconfigurar um sentido de ordem, de significado e identidade coerente”

(p. 528). As pessoas procuram dar uma estrutrura à sua experiência, precisam que os

eventos façam sentido, e fazem isso através da narrativa. Por esse motivo, Sarbin (1986)

entende a narrativa como o princípio organizador da ação humana: “os seres humanos

pensam, percebem, imaginam e fazem escolhas morais de acordo com estruturas

narrativas” (p. 8).

Como modo de pensamento oposto ao raciocínio lógico ou “paradigmático”,

a interpretação narrativa envolve uma canonicidade implícita (BRUNER, 1990, 2001).

O que é canônico, comum e aceito culturalmente é autoexplicativo. Somente quando há

uma ruptura das expectativas canônicas, um afastamento do padrão, é que surge a

necessidade de narrar. As narrativas são criadas e negociadas culturalmente para

explicar o que fica sem sentido quando crenças são violadas, cumprindo, assim, um

papel na organização da experiência. Quando algum evento disruptivo ou evento

traumático quebra o sentido canônico, essa lógica dos eventos da vida, tentamos

reconstruí-lo através do uso de narrativas. Tais eventos são circunstâncias excepcionais

ou inesperadas que podem significativamente desestabilizar nossa percepção de quem

somos e do mundo em que vivemos. Podem referir-se a problemas pessoais, familiares,

financeiros ou de saúde que se desviem de uma rotina esperada.

A construção de narrativas faz com que esses eventos sejam incorporados à

história de vida da pessoa como um todo, fazendo com que esta se apresente como um

enredo coerente e não histórias separadas. Murray (2008) sinaliza também que esta

necessidade de reestabelecer a ordem é característica da cultura ocidental, marcada pela

ordem e racionalidade. Nesse sentido, Becker (1999) afirma que cada cultura particular

tem um modelo próprio do que seria um curso de vida normal. Portanto, o estudo de

narrativas pessoais fala também de estratégias culturais de enfrentamento. A autora

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estuda, sob uma perspectiva antropológica, a forma como pessoas criam sentido depois

de eventos caóticos, e afirma que as narrativas são performáticas, dão poder,

representam ação e agência.

Becker (1999) traz o conceito de rompimento (disruption), que diz respeito

a um período de limbo e reorganização de vida onde o sujeito tenta manter a

continuidade de sua vida através da interpretação dos eventos disruptivos, para que estes

sejam entendidos como parte de um todo. Tais eventos referem-se à súbita ocorrência de

uma situação inesperada que coloque em xeque a visão que a pessoa tem de si e a

coerência de sua história de vida, como por exemplo, a demissão de um emprego onde

se trabalhou durante anos, a morte de alguém bastante próximo, a descoberta de uma

doença grave, a impossibilidade de realizar uma atividade que marca a identidade do

indivíduo, como a tetraplegia para um jogador de futebol ou bailarina.

Os eventos traumáticos quebram a linearidade, a coerência e o enredo

esperado para uma vida “normal”. Estas experiências que não estão de acordo com o

que é canônico, não são integradas à trama narrativa do sujeito. O indivíduo não

consegue atribuir sentido à experiência traumática porque esta não cabe na história já

formada sobre si mesmo, não é coerente com a narrativa que o sujeito já construiu. Um

estado psicopatológico ocorre quando o indivíduo não consegue se desvencilhar destes

“protótipos narrativos” (GONÇALVES, 1998) rígidos e invariantes para dar lugar a

novas narrativas mais fluidas, que tenham espaço para uma maior pluralidade de

significados e abarquem uma multiplicidade de aspectos do self. A identidade deve ser

uma estrutura unificada e integrada, que apesar de experiências contraditórias,

permanece uma unidade. As diferenças são, então, integradas através da narrativa, que

por sua capacidade de gerar novos sentidos, permite que o evento traumático seja

costurado ao enredo da vida (STRAUB, 2009).

Calligaris (2008) acredita que “o caráter traumático de um acontecimento não

depende de alguma qualidade específica da experiência vivida, mas é um efeito de

como, mais tarde, essa experiência pode ou não integrar uma história que faça sentido

para o sujeito” (p. 137). Portanto, para evitar que um evento seja significado como

traumático, ou para que o trauma seja superado, é necessária a construção de uma nova

narrativa, integrando os elementos do inesperado evento disruptivo na história de vida

como um todo. O evento traumático, a princípio, quebra as expectativas da pessoa sobre

sua vida, podendo gerar falta de sentido e paralização frente às novas circunstâncias. É

preciso reescrever sua história, dando a ela novos contornos.

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Segundo Crossley (2000), a reconfiguração narrativa consiste em um

processo pelo qual o individuo se esforça para reestabelecer certo grau de segurança

ontológica e um novo senso de sentido, ordem e conexão com sua vida após a

ocorrência de tais eventos traumáticos. A autora estudou as narrativas de pessoas com

doenças crônicas, e mostra que esses eventos são percebidos como transformando

completamente a pessoa, que precisa, então, compor outras formas de contar a história

que não estavam em foco anteriormente, para assim manter seu senso de coerência,

unidade, sentido e identidade (CROSSLEY, 2000). A autora, teórica da Psicologia

Narrativa, assim como Sarbin (1986), acredita que a vida humana tem em si uma

estrutura narrativa. A necessidade de se construir narrativas para fazer inteligível a

realidade, principalmente após a ocorrência de um evento traumático, nos remete à

importância da terapia:

Em geral, o objetivo da terapia é, por meio da cooperação, criar novas

possibilidades de autodeterminação e recuperar ou expandir as antigas.

Narrar focalizando a questão da identidade pode e deveria, portanto, ser útil

para estabilizar e expandir o potencial subjetivo para a ação, particularmente,

mas não exclusivamente, em contextos psicoterápicos (STRAUB, 2009, p.83

e 84).

Para Pennebaker (1999), a psicoterapia refere-se a um processo onde

histórias são organizadas de forma a explicar eventos causadores de sofrimento. O ato

de construir histórias é um processo humano natural que ajuda o indivíduo a entender

suas experiências e a ele mesmo, através da integração de pensamentos e emoções. Este

processo daria ao indivíduo um senso de controle e entendimento sobre sua vida.

Construir histórias facilita um senso de resolução que afasta pensamentos negativos

que, sem fechamento (Gestalt), continuariam rondando a consciência do indivíduo. Uma

das hipóteses de Pennebaker é que dar coerência narrativa a um evento traumático

funcionaria “completando uma tarefa”, tirando o foco do que ainda parece “pendente”.

Quando um sentido é dado a um evento, ele é mais facilmente esquecido.

Gergen e Gergen (2010) apontam, ainda, que a ideia de que as histórias são

o meio pelo qual as pessoas tornam o mundo e a si mesmas inteligíveis é central para

muitas perspectivas. A narrativa torna os eventos coerentes e interdependentes, dando

sentido a acontecimentos que permaneceriam fragmentados e sem sentido se não fossem

ligados por uma estrutura narrativa. Esta canonicidade implícita da narrativa e sua

capacidade de organizar a experiência, assim como a capacidade narrativa de construir

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significado e seu papel na construção da individualidade, já explicitados anteriormente,

nos levam a pensar sobre a relação entre narrativa e transformação na psicoterapia.

Neste capítulo, apontamos de onde partimos e quais são as ideias que

norteiam esta pesquisa. Apresentamos o início da mudança paradigmática que lançou a

linguagem como constitutiva do mundo e possibilitou que a narrativa fosse vista como o

“princípio organizador da ação humana” (SARBIN, 1986). Este giro narrativo logo

influenciou as práticas psicoterápicas, tendo uma especial relevância ao se tratar de

pessoas que vivenciaram experiências traumáticas, já que mais que em qualquer outro

caso, o trauma quebra a linearidade narrativa, que precisa ser restaurada para que a

pessoa siga em frente com sua vida. Após a apresentação do embasamento teórico que

justifica a utilidade de se levar os estudos narrativos para a clínica, apresentaremos, a

seguir, o método utilizado para, a partir das ideias já explicitadas, explorar o objetivo

geral da pesquisa, que consiste em: construir conhecimento acerca da função das

narrativas na transformação da pessoa em terapia, investigando como o ato de contar

histórias pode ser terapêutico para pessoas que vivenciaram eventos traumáticos.

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3 MÉTODO

3.1 Caracterização da pesquisa e justificação do paradigma adotado2

Esta se trata de uma pesquisa qualitativa, que é segundo Creswell (2010):

Um meio para explorar e para entender o significado que os indivíduos ou os

grupos atribuem a um problema social ou humano. O processo de pesquisa

envolve as questões e os procedimentos que emergem, os dados tipicamente

coletados no ambiente do participante, a análise dos dados indutivamente

construída a partir das particularidades para os temas gerais e as interpretações feitas pelo pesquisador acerca do significado dos dados. O

relatório final escrito tem uma estrutura flexível. Aqueles que se envolvem

nessa forma de investigação apoiam uma maneira de encarar a pesquisa que

honra um estilo indutivo, um foco no significado individual e na importância

da interpretação da complexidade de uma situação (p. 26).

Esta modalidade de pesquisa ganhou notoriedade a partir da crise à

experimentação nos anos 60, quando a validade interna, a ética dos procedimentos

utilizados e a utilidade do experimento como método para estudos em psicologia social

começaram a ser questionados. Assim, a pesquisa qualitativa está interessada no

significado que as pessoas atribuem aos fenômenos. Trabalha, portanto, com a

interpretação e não com relações de causa e efeito. Busca temas e compreensões

particulares e não procura um resultado universal. Possui procedimentos ajustáveis e

reconhece que o pesquisador não é neutro, mas interfere no campo. Geralmente são

pesquisas que envolvem poucos participantes, escolhidos de forma intencional, de

acordo com o recorte da pesquisa. As hipóteses iniciais são revistas ao longo da

pesquisa e novas categorias e perguntas podem surgir ao longo do estudo.

Segundo Günther (2006), a pesquisa qualitativa é um ato de construção

de realidade onde o indivíduo, como objeto de estudo, é visto em sua totalidade e

historicidade. A coleta de dados, que pode se dar, entre outros meios, através de “a)

dados verbais por meio de entrevista centrada num problema, b) entrevista narrativa, c)

grupo de discussão e d) dados visuais por meio da observação participante”

(GÜNTHER, 2006, p. 205) produz textos a serem interpretados.

Esta se trata, portanto, de uma pesquisa qualitativa, pois parte da

interpretação do texto gerado a partir de entrevistas semiestruturadas realizadas com

poucos participantes e que tem como objetivo compreender o significado que estes

indivíduos atribuem a diversos aspectos referentes à psicoterapia. É uma pesquisa que

2 Termos de Alda Alves-Mazzotti

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privilegia a compreensão e não a explicação da realidade, que é vista como construção

social. Reconhece a interação entre pesquisador e entrevistado como fazendo parte do

processo de construção de conhecimento, e não trabalha com variáveis fixas, sendo

flexível ao longo de seu percurso.

Dentro da pesquisa qualitativa, podemos encontrar uma variedade de

métodos que são sustentados por diferentes concepções. Esta pesquisa tem como base o

Construcionismo Social, que possibilitou o surgimento da Psicologia Narrativa e

influenciou também as terapias pós-modernas (Terapia Narrativa e Abordagem

Colaborativa) que se apresentam como os referenciais teóricos deste estudo. O

paradigma construcionista social envolve as seguintes premissas básicas, segundo

Gergen (2009):

- O que falamos sobre o mundo não é um reflexo dele, mas um “artefato

social”, ou seja, uma construção humana realizada dentro de um contexto social

específico. Da mesma forma, não se postula um mundo interno que pode ser acessado

através da linguagem. Os sentidos e a forma como damos conta do mundo e de nós

mesmos são negociados socialmente.

- O conhecimento é construído historicamente e culturalmente. As versões

de mundo não se modificam porque a natureza do objeto estudado se modificou, pois

não se trabalha com a ideia de natureza.

- A prevalência de uma versão de mundo não provém de sua verdade

empírica, pois não há nada que seja uma verdade universal, válida para todas as culturas

e tempos históricos. Alguns entendimentos prevalecem mais fortemente que outros pela

“capacidade retórica e de negociação” de seus defensores, e pela utilidade social que

têm em determinado contexto (GERGEN, 2009).

- A vida social está permeada de “formas de compreensão negociadas”. As

explicações sobre o mundo e as normas implícitas de cada cultura servem para sustentar

e legitimar certos padrões e valores. Existem padrões de comportamento socialmente

mais aceitos e formas de agir mais apropriadas para cada situação, que diferem em cada

cultura (GERGEN, 2009).

Portanto, o construcionismo social é uma metateoria (uma teoria da teoria) e

uma teoria social sobre as formas pelas quais os indivíduos historicamente

situados interpretam a realidade, se relacionam e constroem o mundo onde

vivem (ÁLVARO; GARRIDO, 2006, p. 321).

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Estas premissas valem para pensarmos tanto o conhecimento científico

construído academicamente, como o conhecimento interpessoal construído pelos que

participam do processo de psicoterapia. O Construcionismo Social transformou a

compreensão contemporânea da psicoterapia, ao focalizar a produção relacional e

historicamente condicionada das narrativas no contexto clínico, e os modos como

mudanças pessoais e coletivas são alcançadas mediante conversação. A perspectiva

construcionista trouxe relevo à potencialidade transformadora das narrativas, e por este

motivo, foi escolhida como concepção norteadora desta pesquisa.

Com base no discurso construcionista social, a psicoterapia tem sido descrita

por alguns autores como uma construção social, isto é, uma prática

discursiva, construtora de determinadas práticas sociais e formas de

vida. Eles focalizam, assim, os sentidos produzidos nesse contexto e seus

efeitos na criação de possibilidades alternativas de vida e relação social

(GUANAES; JAPUR, 2008, p. 119).

O princípio de que as pessoas constroem significado sobre o mundo nas

relações sociais é amplamente aceito em diversas abordagens pós-modernas. Através da

conversação com o terapeuta, espera-se que o cliente revise os significados que

construiu sobre o mundo e sobre si mesmo, podendo (des)construir narrativas em

coautoria com o terapeuta e reorientar suas ações. A psicoterapia é concebida, então,

como uma prática discursiva que permite a produção compartilhada de sentidos

mediante a construção (e desconstrução) de narrativas.

Assim como a psicoterapia, a entrevista, nossa estratégia de investigação,

também é considerada uma prática discursiva, entendendo que a fala do participante não

é o reflexo de conteúdos de sua mente, mas é construída na relação com o pesquisador.

Considerar a entrevista uma prática discursiva significa “entendê-la como ação

(interação) situada e contextualizada, por meio da qual se produzem sentidos e se

constroem versões da realidade” (PINHEIRO, 1999, p. 186).

Por fim, gostaríamos de elucidar que pesquisas influenciadas pelo

Construcionismo Social afastam-se do tipo de rigor positivista que oferece um método

previsível e que deve ser seguido à risca. Nosso método, ao contrário, foi construído no

próprio ato e processo de pesquisar, não havendo um modelo anterior que se encaixasse

às necessidades da pesquisa. Nesse caso, o método ajustou-se à medida que se refinou a

problemática e reuniram-se as informações do campo. Spink (1999) argumenta que o

rigor científico de uma pesquisa se dá na visibilidade de sua construção. Portanto, aqui

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54

descreveremos todos os passos realizados desde a formação do corpus de pesquisa até a

construção do modelo de análise, expondo, desta forma, a construção de nosso método.

3.2 Formação do corpus de pesquisa:

Esta pesquisa foi realizada na Clínica Escola de Psicologia da UFC, que já

tem, em sua proposta, uma abertura para a realização de pesquisas. No contrato assinado

pelo cliente antes de iniciar a terapia, consta um ponto acerca da aceitação em participar

de possíveis pesquisas. A Clínica de Psicologia da UFC é um dos poucos espaços em

Fortaleza que oferecem psicoterapia acessível para um público economicamente menos

favorecido. Os resultados da pesquisa resultarão em um retorno para a própria

Universidade Federal do Ceará, interligando pesquisa e intervenção entre alunos do

mestrado e graduação.

O presente estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética através da Plataforma

Brasil, com CAAE: 18440313.2.0000.5054 (Número do Parecer: 492.357). No Anexo

D apresentamos o modelo do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido que foi

assinado por todos os entrevistados, após os devidos esclarecimentos sobre a natureza

da pesquisa.

Foram realizadas entrevistas semiestruturadas com indivíduos que estavam

em psicoterapia individual, por no mínimo seis meses, em razão de experiência

traumática. Os indivíduos deveriam estar ainda vinculados à clínica. A opção por este

recorte deve-se à maior facilidade de contato com pessoas que ainda frequentam a

clínica, ao invés de ex-clientes que já finalizaram o processo, além de exprimir nosso

compromisso ético de, sabendo que entrevistas podem trazer alguns efeitos imprevistos,

garantir que esses indivíduos possam continuar sendo acompanhados pelos estagiários

da Clínica.

Foi dada prioridade a clientes que estivessem finalizando o processo com

um terapeuta-estagiário em via de graduar-se, para iniciar um novo, porém contínuo,

processo com um novo estagiário. Desta forma, com o processo em fase de finalização,

acreditamos que diminuiriam os receios do terapeuta sobre os possíveis efeitos

negativos que a entrevista poderia causar em um processo recente. Por outro lado, caso

a entrevista suscitasse conteúdos que o entrevistado gostaria de partilhar em terapia, este

teria a oportunidade de fazê-lo com seu próximo terapeuta. Quando se esgotaram as

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possibilidades de contato com clientes em fase de transição de um estagiário para outro,

foram contatados os estagiários do semestre seguinte, com processos em andamento. As

entrevistas foram, então, realizadas de julho a outubro de 2013.

Para esta pesquisa, foi importante garantir que os participantes tivessem um

tempo razoável de psicoterapia, para que fossem capazes de perceber mudanças e

analisar o processo ao longo do tempo. Como o estágio na Clínica de Psicologia tem

duração de dois semestres, os indivíduos ficam no máximo um ano com o mesmo

terapeuta. Por este motivo, estipulamos o recorte de no mínimo seis meses de terapia em

andamento.

O primeiro contato foi feito com os alunos de graduação que realizam

estágio na clínica. Foi apresentada a proposta da pesquisa a fim de obter um retorno por

parte dos estagiários sobre possíveis casos atendidos que preencheriam os requisitos da

pesquisa. Os estagiários deveriam considerar quais de seus clientes estariam dispostos e

aptos a participar da pesquisa e julgar se a intervenção da entrevista seria prejudicial ao

andamento do processo do cliente. Após a escolha conjunta dos possíveis participantes,

foi decidida, também com os estagiários, qual a melhor forma de entrar em contato com

os clientes para convidá-los para a entrevista. Em todos os casos, a apresentação e o

convite para a pesquisa foram feitos pelo terapeuta durante a sessão. Em caso de

interesse por parte do indivíduo atendido em participar da pesquisa, e após seu

consentimento, o contato do cliente era cedido pelo terapeuta para que a pesquisadora

ligasse e acertasse o melhor horário e local para a entrevista. A primeira entrevista foi

realizada em uma sala de aula do Departamento de Letras, onde o entrevistado já se

encontrava. Por mais que este fosse um ambiente familiar e confortável para o

entrevistado, a pesquisadora optou por, a partir de então, convidar os participantes a

realizarem as seguintes entrevistas nas salas de atendimento da própria Clínica Escola

de Psicologia da UFC, que além de também configurar-se como um ambiente conhecido

pelos participantes, permitia-nos um maior sigilo e proteção contra barulhos e

interferência de terceiros.

Foram contatados, através de e-mail, todos os alunos-terapeutas da clínica

que iniciaram seus estágios nos semestres de 2012.2 e 2013.1. Dos 53 alunos

contatados, apenas 5 responderam positivamente ao convite para participar da pesquisa,

tendo um deles proposto a participação de 2 clientes. Obtivemos, assim, a possibilidade

de realizar 6 entrevistas, tendo todos os clientes, convidados por seus terapeutas,

aceitado participar da entrevista com a pesquisadora. Notamos, assim, uma maior

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dificuldade para a realização da pesquisa no que se refere à participação dos terapeutas,

em comparação com a disponibilidade demonstrada pelos clientes. Além de outros

possíveis fatores, como a falta de interesse no tópico da pesquisa e as diversas

atribuições acadêmicas dos estudantes, a pouca adesão dos estagiários pode estar

relacionada à visão usual da terapia como algo secreto e intocável, que deve ficar

restrito apenas ao terapeuta e seu cliente, gerando um desconforto se um terceiro

elemento, no caso uma pesquisadora, se atreve a intervir na díade. O paradigma pós-

moderno, porém, vem quebrar essa lógica e aposta na polifonia, convidando novas

vozes a participar do processo. O pesquisador não estaria junto com o terapeuta na sala

de atendimento, como acontece nos processos reflexivos (ANDERSEN, 1987)

discutidos anteriormente, mas é uma voz que intercruza esse processo, podendo

reverberar nas sessões seguintes. Partindo dessas ideias, o convite para a participação na

pesquisa foi feito como um convite para construir conhecimento juntos. Tanto os

resultados da pesquisa podem acrescentar novas informações à comunidade acadêmica

interessada na área clínica, como a própria experiência da entrevista pode configurar-se

como uma conversação capaz de produzir novos significados para o cliente.

Tal fato tornou-se claro já no início da pesquisa por ocasião de uma

entrevista exploratória, realizada com uma estudante de psicologia. Após a entrevista,

realizada em uma sala do Departamento de Psicologia, no mês de novembro de 2012, a

participante entrou novamente em contato com a entrevistadora para agradecer a

oportunidade de parar para pensar sobre seu processo psicoterápico, relatando, ainda,

que após a entrevista havia ligado para a psicóloga com quem havia feito terapia há

alguns anos, contando que havia participado de uma entrevista e esse evento fez com

que ela percebesse a importância que a terapeuta tinha na vida dela, e como a terapia

havia sido um marco em sua vida, gerando tantas mudanças. Este episódio corrobora a

pesquisa que foi discutida anteriormente (ROSENTHAL, 2003) que mostra que certas

entrevistas podem ter funções terapêuticas, ao possibilitar a narração autobiográfica.

Em outras duas entrevistas, os participantes comportaram-se como se

estivessem em uma sessão de psicoterapia, saindo do foco das perguntas feitas pela

pesquisadora e explorando questões pessoais. Este exemplo elucida, também, a

importância de o pesquisador refletir sobre as consequências (positivas e negativas) de

sua aproximação com o campo. As entrevistas não são coletas de dados, mas

construções que se dão no momento da interação entre pesquisador e entrevistado,

possuindo também um caráter interventivo.

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Foram realizadas entrevistas semiestruturadas iniciadas com um convite à

narração: “Você poderia me contar sobre como está sendo sua experiência na terapia?”.

Após a livre narração inicial, que contextualiza o caso e mostra as primeiras impressões

do cliente acerca da psicoterapia, seguiam-se novas perguntas que já haviam sido

anteriormente elaboradas pela pesquisadora (o roteiro prévio da entrevista será

apresentado a seguir) e que iam sendo inseridas na entrevista de acordo com o

andamento da conversa. Outras perguntas também surgiram no decorrer das

entrevistas3, para melhor explicitar e desenvolver as questões que apareciam no decorrer

do diálogo, como por exemplo: “você poderia falar um pouco mais sobre...?”, “o que

exatamente você chama de...”, “você pode me dar um exemplo de...”, marcando assim a

entrevista como semiestruturada:

Esta forma de entrevista permite que o pesquisador e o participante se

engajem em um diálogo por meio do qual questões iniciais são modificadas à

luz das respostas dos participantes, e o pesquisador é capaz de examinar áreas

importantes que possam surgir (tradução nossa) (SMITH; OSBORN, 2008, p.

57).

Segundo Smith e Osborn (2008), o entrevistador deve ter um roteiro,

porém, a entrevista é guiada e não ditada por este. Mais importante na entrevista

semiestruturada deve ser o estabelecimento de rapport com o entrevistado, criando um

ambiente onde este se sinta a vontade. A ordem das questões não é determinante,

podendo o entrevistador seguir o interesse do participante e realizar as perguntas no

momento mais conveniente. Este tipo de entrevista permite que o narrador introduza

questões que o entrevistador não havia considerado antes, permitindo que a pesquisa

prossiga em constante processo de revisão. Devem ser feitas questões abertas, neutras,

em uma linguagem familiar ao entrevistado, e que encorajem “a pessoa a falar sobre o

tópico com a menor sugestão possível” (SMITH; OSBORN, 2008, p. 61). Os autores

também nos alertam a fazer uma pergunta de cada vez sem interromper o entrevistado,

podendo o pesquisador se ater por mais tempo a uma questão quando surgirem temas de

grande relevância para a pesquisa. O entrevistador deve observar, porém, se há algum

tópico que o entrevistado não se sinta à vontade para adentrar. Os limites do participante

devem ser respeitados, visto que o pesquisador tem responsabilidades éticas sobre este.

A partir daí, foi elaborado um roteiro de entrevista onde cada pergunta

realizada abre espaço para que seja explorado um objetivo específico da pesquisa.

3 As transcrições completas das entrevistas encontram-se nos anexos

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Mostraremos no quadro seguinte as perguntas norteadoras, segundo o roteiro inicial da

entrevista, e os objetivos da pesquisa correspondentes, (já apresentados na Introdução

deste trabalho, às páginas 13 e14) que justificam a pergunta realizada.

QUADRO I – PERGUNTAS QUE RESPONDEM AOS OBJETIVOS DA PESQUISA

Pergunta realizada Objetivo da pesquisa

-O que te motivou a fazer terapia?

-Qual é o significado da terapia na sua

vida?

-O que você acha que mudou em você e

na sua vida depois da terapia?

-Qual a importância de narrar sua história

na terapia?

-O que é terapêutico para você na sua

sessão?

-Identificar se o participante atende ao

recorte da pesquisa, tendo procurado a

psicoterapia após ocorrência de evento

traumático.

- Investigar os significados que as pessoas

que fazem psicoterapia, após ocorrência

de evento traumático, atribuem ao

processo psicoterápico

- Identificar as transformações pessoais

atribuídas ao processo de terapia segundo

a percepção do participante

- Investigar os significados que as pessoas

que fazem psicoterapia, após ocorrência

de evento traumático, atribuem ao ato de

contar suas histórias nesse ambiente.

- Elucidar o papel das narrativas na

transformação da pessoa em terapia.

- Investigar como o ato de contar histórias

pode ser terapêutico para pessoas que

vivenciaram eventos traumáticos.

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-O que você acha que acontece na terapia,

que faz com que você se transforme?

-Qual o papel do terapeuta no seu

processo de mudança?

-Qual a diferença de contar suas histórias

para ele e para outras pessoas?

- Analisar os processos de reorganização

da experiência, ressignificação e reautoria

envolvidos na construção de narrativas na

psicoterapia.

- Compreender o significado que o cliente

atribui à relação terapêutica, no contexto

de sua mudança pessoal.

O objetivo específico “identificar aspectos culturais que sustentam as

histórias pessoais levadas à clínica” será analisado a partir de todas as perguntas,

buscando como os discursos culturais aparecem nos discursos individuais. Na prática,

percebemos que os objetivos não foram respondidos por uma pergunta específica, mas

perpassaram a entrevista como um todo. As perguntas vão além de seu objetivo

principal. Uma pergunta sobre o significado da terapia, por exemplo, pode trazer

conteúdos sobre o significado do terapeuta ou sobre as transformações percebidas no

processo. Da mesma forma, as perguntas “O que é terapêutico para você na sua sessão?”

e “O que você acha que acontece na terapia, que faz com que você se transforme?” vão

além da exploração do papel da narrativa na clínica, podendo o entrevistado mencionar,

ou não, a narração nesta fase da entrevista.

Por fim, cabe salientar que a abordagem do psicólogo não foi decisiva na

escolha dos participantes, tendo sido entrevistados clientes de três diferentes abordagens

(Psicanálise4, Análise do Comportamento e Abordagem Centrada na Pessoa). Mesmo

entendendo que diferentes concepções de linguagem, sustentadoras de variadas

abordagens psicológicas, levarão à construção de diferentes narrativas na clínica,

optamos pela arbitrariedade da abordagem do psicólogo, por entender que o foco da

pesquisa é o significado atribuído, pelo cliente, ao ato de narrar e suas consequências

4 Devido a diferenças epistemológicas, entendemos que a psicanálise não é uma psicoterapia. Para Mezan

(1996), só deve ser considerado Psicanálise, o trabalho clínico caracterizado por quatro elementos: o

inconsciente, a interpretação, a resistência e a transferência. “Se uma forma qualquer de trabalho clínico

não os emprega, não deve ser chamada de psicanálise. É para toda esta vasta gama de procedimentos que

julgo adequado utilizar a designação de psicoterapias.” (MEZAN, 1996, p. 100). A Psicanálise, porém,

também será considerada neste estudo, por se tratar, assim como as psicoterapias, de um espaço de escuta

psicológica cuja base é narrativa e não medicamentosa.

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terapêuticas, e não propriamente ao conteúdo e estrutura dessas distintas formas de

narrar construídas em cada setting terapêutico.

Além disso, a adequação ao recorte da pesquisa, de entrevistar pessoas que

vivenciaram situações traumáticas, foi feito pelos estagiários, que apresentaram casos

onde o próprio cliente diz ter passado por um evento traumático. Para nós, a definição

do que é trauma cabe às pessoas que procuraram terapia, e não a um diagnóstico

formalizado. Uma experiência de luto ou de separação pode ser significada como

traumática para uns, enquanto que para outros não. De forma geral, influenciados pela

definição de Crossley (2000), entendemos experiência traumática ou evento disruptivo,

como um acontecimento súbito e inesperado, que põe em xeque as ideias básicas que

sustentavam a vida de uma pessoa, bem como seu curso de vida esperado,

desestabilizando seu senso de identidade e tempo.

Das seis entrevistas realizadas, três não preenchiam os requisitos da

pesquisa. Duas participantes, como citado anteriormente, trataram a entrevista como

uma consulta terapêutica, desviando o foco das perguntas, enquanto outro cliente

relatou que iniciou a terapia para melhorar de sua timidez, não apresentando nenhum

evento traumático que o enquadrasse em nosso recorte. Restaram, assim, três entrevistas

bem-sucedidas que foram posteriormente transcritas integralmente para iniciar a fase de

análise.

3.3 Análise do corpus:

Através das entrevistas realizadas nesta pesquisa, os clientes construíram, na

relação com o entrevistador, um sentido sobre seu processo psicoterápico. A análise de

cada objetivo específico nos levará a responder nosso objetivo geral, que consiste em:

elucidar o papel das narrativas na transformação da pessoa em terapia, investigando

como o ato de contar histórias pode ser terapêutico para pessoas que vivenciaram

eventos traumáticos. Será, portanto, a partir do significado dado, pelos clientes, à terapia

e seus efeitos, ao ato de narrar neste ambiente e ao terapeuta como parte desse processo,

que analisaremos os efeitos transformadores do ato de narrar. Além disso, a exploração

dos aspectos culturais presentes nas narrativas individuais e dos processos de

reorganização da experiência, ressignificação e reautoria envolvidos na construção

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dessas narrativas também contribuirá para a construção de conhecimento acerca da

relação entre narrativa e transformação na psicoterapia.

Não trabalhamos com a ideia de causalidade, de que os efeitos relatados

pelos entrevistados resultam diretamente da construção de narrativas. O que se pretende

é explorar o envolvimento da narrativa nessas mudanças apresentadas pela pessoa,

mediante uma análise dos relatos dos participantes, que se apoia num quadro conceitual

de estudos discursivos e narrativos.

As transcrições das entrevistas foram submetidas a uma análise temática

(RIESSMAN, 2008; JOVCHELOVITCH; BAUER, 2002). Segundo Riessman (2008),

nesse tipo de análise o conteúdo é o foco principal. O pesquisador deve, então,

debruçar-se sobre “o que” foi dito, ao invés de preocupar-se sobre “como”, “para

quem”, “com qual intenção” e de que forma a narrativa está estruturada. “Os dados são

interpretados à luz dos temas desenvolvidos pelo investigador (influenciado por teorias

prévias e emergentes, pelo propósito concreto da investigação, pelos dados em si,

compromissos políticos e outros fatores)” (RIESSMAN, 2008, p. 54). A presente

análise, portanto, visa identificar na fala do entrevistado, tópicos referentes às histórias-

problema que os conduziram à psicoterapia, valores, crenças, novos modos de

inteligibilidade desenvolvidos na psicoterapia, além de noções gerais sobre o processo

psicoterápico, papel do psicoterapeuta, avaliação do processo vivido e das mudanças

pessoais percebidas, estratégias consideradas benéficas e efeitos transformadores.

Riessman (2008) compara, ainda, a análise temática à teoria fundamentada,

que são semelhantes no que concerne à abertura ao novo e ao que emerge dos dados

empíricos (diferente da noção positivista de testagem de hipótese). Não só a entrevista

será analisada segundo os temas previamente propostos pelos objetivos da investigação,

mas a análise temática também abre espaço para que novos temas possam ser

percebidos e incorporados à discussão. A diferença da análise temática para a teoria

fundamentada, porém, é que na primeira já é levado em conta uma teoria anterior, usada

como referencial teórico, que “servirá de recurso para interpretação da narrativa falada e

escrita” (RIESSMAN, 2008, p. 73).

Na Análise Temática ocorre um processo gradual de redução do texto. Cada

entrevista foi analisada sequencialmente, já que este método “preserva sequências ao

invés de codificar tematicamente os segmentos. Na análise temática, nós procuramos

manter a história intacta para fins de interpretação” (RIESSMAN, 2008, p. 74). Nesta

pesquisa, o texto das entrevistas sofreu duas reduções, organizadas em um quadro com

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três colunas. Na primeira coluna dispusemos a entrevista na íntegra, na coluna seguinte,

trechos da entrevista foram parafraseados em sentenças sintéticas que resumiam o

excerto. Por fim, na terceira coluna, a primeira redução é categorizada em palavras-

tema. Essas reduções promovem uma condensação de sentido, onde a terceira coluna do

quadro refere-se às categorias que, por sua vez, obedecem aos objetivos da pesquisa

(JOVCHELOVITCH e BAUER, 2002). A seguir, para ilustrarmos o tratamento dado ao

corpus de pesquisa, apresentamos o modelo do quadro de análise, a partir de um

pequeno trecho da entrevista de uma das participantes, que apelidamos de Zilma:

QUADRO II – MODELO DA PRIMEIRA REDUÇÃO DECORRENTE DA ANÁLISE

TEMÁTICA DAS ENTREVISTAS

R: e pra ti qual o

significado que a terapia

tem na tua vida?

Z: tem tanta, tem tanta

coisa e ao mesmo tempo eu

não sei te explicar direito.

É muito bom tá aqui, no

dia que eu não venho pra

cá eu sinto falta. É, como é

que eu digo... aqui eu

relaxo, eu tenho pra quem

falar, o que eu falo do meu

coração, do meu, o que

vem dentro de mim, não é

uma coisa inventada. É

uma coisa que vem da alma

mesmo assim. e eu consigo

falar, consigo ouvir... antes

eu não conseguia nenhum

dos dois. Era muito

difícil...

R: tu falou que falta só um

pouquinho pra ti...

Z: é, falta ainda só um

pouquinho, pra mim ficar

boa.

R: e o que é esse

pouquinho tu sabe dizer?

Z: não, eu num sei, mas eu

Sente falta quando não vai

Relaxamento

Importância de partilhar

com alguém os conteúdos

mais autênticos.

Capacitou para falar e

ouvir

Próxima do estado de cura

desejado

Significado do processo

psicoterápico

Efeitos da terapia /

transformações percebidas

Significado do processo

psicoterápico

Efeitos da terapia /

transformações percebidas

Meta para o fim da terapia

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sinto que ainda falta um

pouquinho. Eu acho que é

porque eu ainda tenho que

passar nos meus estudos,

ainda preciso mais um

pouquinho conversar com

alguém, porque eu ainda

tenho que ir no cemitério,

que eu ainda não fui, só

falta essa parte. Que aí eu

tenho que conversar

depois, o que eu senti

quando eu cheguei lá no

cemitério. Eu só fui no

cemitério, depois que ele

viajou, só uma vez. Aí eu

ainda tenho que ir outra

vez, eu sinto que tenho que

ir, e quando eu retornar eu

preciso conversar com

alguém. Por isso que eu

preciso mais um

pouquinho. É isso... e tem

outras coisas... eu quero

passar no meu curso, eu

quero falar pra alguém... e

é tão bom conversar aqui.

Eu não sei porque quando

eu chego aqui eu falo falo

falo, e nos outros lugares

eu não consigo falar desse

jeito (risos).

R: qual a diferença pra ti,

de falar pra tua terapeuta e

de falar pra outra pessoa?

Z: eu acho que que eu tô

falando só pra ela, não tem

aquela multidão, não vai

falar pra outras pessoas...

eu penso assim. acho que é

desse jeito.

Expectativa em relação à

terapia: que a ajude a

passar nos estudos;

partilhar como foi a visita

ao cemitério

Necessidade de partilhar

com alguém as vitórias e os

momentos difíceis.

Maior facilidade de falar

na terapia que em outros

ambientes

Especificidade do

terapeuta: privacidade,

sigilo

Meta para a terapia

Significado do terapeuta no

processo

Significado do processo

psicoterápico

Significado do terapeuta no

processo

Como podemos perceber, a terceira coluna do quadro diz respeito ao tema

geral de que trata o trecho da entrevista. Dentre esses temas, algumas categorias

temáticas encontradas, quando organizadas, respondem a nossas perguntas de partida. A

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etapa seguinte de nossa análise refere-se à construção de um segundo quadro analítico

para cada entrevista (os quadros originados de cada uma das três entrevistas estão

disponíveis na íntegra, nos Apêndices A, B e C), onde os temas encontrados foram

integrados e posicionados em colunas “correspondentes às categorias descritivas que

emergiram dos objetivos da pesquisa” (PINHEIRO, 1999, p. 195). Esta metodologia de

análise foi inspirada nos Mapas de Associação de Ideias apresentada por Pinheiro

(1999). As categorias sintéticas deram origem às colunas, que foram preenchidas pelos

respectivos conteúdos reduzidos de cada trecho das entrevistas. Desta forma podemos

perceber todas as vezes em que um mesmo tema aparece em cada entrevista, bem como

comparar quais conteúdos aparecem em cada coluna e quais temas aparecem com mais

frequência no discurso do entrevistado.

As colunas formadas foram respectivamente: Aspectos culturais;

Significado do terapeuta no processo; Significado do processo psicoterápico;

Transformações percebidas; Relações entre narrativa e transformação pessoal. As cinco

categorias citadas correspondem aos objetivos da pesquisa, referindo-se a última coluna

ao objetivo principal e as demais aos objetivos específicos. Como vimos, na análise

temática faz-se importante preservar a sequência da narrativa, portanto, o conteúdo de

cada coluna está disposto obedecendo à ordem em que aparece na entrevista.

Porém, alguns conteúdos relevantes encontrados nas entrevistas fogem às

categorizações dos quadros. Estes serão discutidos no texto da análise. O quadro de

análise serviu, portanto, para sistematizar e facilitar a visualização dos objetivos, não

para engessar os sentidos que surgem das entrevistas. Entendemos que nem todas as

informações se encaixam em categorias, nem podem ser apreendidas e resumidas em

um quadro. A análise temática será, então, enriquecida por uma descrição da entrevista

como totalidade, contextualizando o momento particular em que cada entrevistado se

encontrava no momento da entrevista, já que “a maioria das investigações narrativas

tratam do tempo e espaço da narração e, ao realizar uma historicização do relato,

rejeitam a ideia de explicações genéricas” (RIESSMAN, 2008, p. 74). Enfim,

chegaremos à etapa da discussão, onde as análises serão interpretadas à luz das

formulações teóricas da Psicologia Narrativa e terapias pós-modernas. A seguir,

faremos a descrição de cada caso, para que possamos seguir com a discussão.

Salientamos que os nomes dos entrevistados e das pessoas citadas nas entrevistas foram

modificados para garantir o sigilo.

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3.3.1 Eduardo, 33 anos.

Eduardo estava finalizando seu processo com um terapeuta psicanalista para

ser encaminhado para outro estagiário. Cursou dois semestres de Psicologia e hoje é

estudante de Letras. Começou a fazer terapia em 2002 com uma terapeuta da abordagem

da Gestalt, interrompeu a terapia por um intervalo de tempo, até que em 2009 iniciou

seu processo novamente na Clínica de Psicologia da UFC, já tendo passado por três

terapeutas. Seu terapeuta, no momento da entrevista, foi o primeiro psicanalista a

atendê-lo. A aproximação da psicanálise com a mitologia fez com que ele aceitasse e

compreendesse o método psicanalítico. Eduardo procurou terapia por sugestão de um

primo, figura que tem um papel muito importante em sua vida. De início, teve

curiosidade em saber como era a terapia, mas só foi iniciar seu processo cerca de seis

anos após essa sugestão do primo. Sua motivação para procurar terapia veio da vontade

de entender sobre a dor que sentia. A morte do irmão e o fim de um relacionamento

amoroso foram o mote inicial para a busca da terapia, mas Eduardo relata que existiam

outras questões para além dos eventos traumáticos, como uma falta de explicação para o

que ele queria e fazia.

3.3.2 Zilma, 39 anos.

Zilma estava finalizando seu processo com uma estagiária analista do

comportamento, por quem foi acompanhada por seis meses, para ser encaminhada para

outro estagiário. Frequenta a Clínica de Psicologia da UFC há um ano e quatro meses e

lembra o dia exato em que começou. Recebeu o conselho para fazer terapia de um

professor do cursinho, que percebeu seu estado de saúde após a perda do filho de 13

anos por leucemia, evento que a desestabilizou completamente e paralisou sua vida por

três anos. Desenvolveu problemas físicos em decorrência desta perda, como dor de

cabeça, falta de ar, gordura no fígado, alergias e dificuldade em ganhar peso. Sentia-se

sufocada, como uma bomba prestes a explodir, em estado de ansiedade, tensão e apatia.

Tinha medo de se relacionar com os outros, evitava falar do filho e entrar em contato

com qualquer estímulo que a remetesse a ele. Continua em tratamento médico e

demonstra muito interesse em melhorar, sendo muito comprometida com seu processo e

reconhecendo que para que o processo terapêutico seja eficaz, o cliente tem que “querer

e deixar”. Zilma relata que no começo desacreditava na terapia e chorava muito, mas a

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partir da terceira semana de terapia percebeu melhoras. Considera que existem sessões

mais eficazes que outras, mas sempre sente falta quando não vai. Possui uma meta de

um estado de cura desejado, quando estará pronta para finalizar seu processo. Zilma

considera que ainda precisa da terapia para passar no vestibular e partilhar a ida ao

cemitério, quando finalmente conseguir visitar o túmulo do filho. Gostaria ainda de

passar em Direito e trabalhar no Ministério Público, assim como prometeu ao filho.

3.3.3 André, 17 anos.

André estava na Clínica de Psicologia há um ano e meio. Afirma que esta é

a segunda terapeuta “que passa por ele”, evitando colocar-se na posição do paciente que

é encaminhado de uma estagiária para outra. A terapeuta atual, que prosseguirá com

André por mais seis meses, é da Abordagem Centrada na Pessoa, perspectiva que

agrada muito a André, por deixá-lo ser o foco da terapia. O entrevistado compara, ainda,

o estilo da entrevista com a abordagem da terapia, tendo demonstrado grande interesse

em participar da entrevista, como forma de gerar reflexões, já que está em constante

busca de um maior autoconhecimento. Considerou a entrevista uma situação inusitada,

única e interessante, tendo lhe dado nortes e respostas, e o levado a conhecer mais a

terapia, lhe ajudando, assim, a usar melhor esse tempo. Considera, ainda, que a

entrevista foi uma oportunidade de perceber o processo de terapia como um todo, já que

algumas mudanças não são perceptíveis diariamente. Conclui que pode melhorar a

qualidade do seu processo ao falar sobre tudo: do simples ao complexo, do passado

recente ao remoto. Menciona que a terapia o ajudou a lidar com certos traumas, mas não

revela o problema que enfrentava quando iniciou a terapia, atribuindo seu atendimento

na clínica da UFC ao interesse de algumas pessoas em ajudá-lo: a mãe e a psicóloga do

colégio. É grato por essa iniciativa, pois os pais não teriam dinheiro para pagar a terapia.

Reconhece que precisava deste acompanhamento por conta do processo depressivo em

que se encontrava, causado por uma soma fatores que se tornaram insuportáveis,

fazendo com que André se se sentisse “sem a visão e a fala”, capaz apenas de ouvir e

supervalorizar seus problemas. Durante a depressão chorava muito, tinha medo de sair

de casa, teve ataques de nervosismo e perdeu peso. Parou de ir ao colégio, pois tinha

medo do que as pessoas iriam falar dele, tinha medo de não ser aceito. Precisava de

ajuda para lidar com a vida, consigo, com os outros e com os problemas. Passou por

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crises de identidade relacionadas à transição da adolescência, por não se reconhecer

nem como criança nem como adulto. Porém, não teria procurado a terapia sozinho, pois

considera que estava fora de si durante a depressão. Deu continuidade ao processo

psicoterápico ao perceber que lá iria conseguir ajuda para lidar com o que estava “preso

dentro dele”. Durante a entrevista, falou sobre seus ideais, colocando-se como um

sonhador com muitos objetivos, que valoriza as pequenas belezas da vida e reconhece

que as coisas complexas são formadas pelas simples.

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4 ANALISANDO AS HISTÓRIAS CONTADAS NA CLÍNICA

A seguir, discutiremos cada um dos cinco tópicos que respondem aos

objetivos da pesquisa e correspondem às categorias presentes nos quadros dos três

entrevistados (quadros disponíveis no Apêndice). Responderemos, assim, ao nosso

questionamento geral acerca da relação entre narrativa e transformação, através da

exploração do papel constituinte da cultura em nossas narrativas, de uma análise da

relação terapêutica, do significado da psicoterapia, e das transformações percebidas,

segundo a perspectiva do cliente. Todos esses fatores estão intrinsicamente relacionados

e são interdependentes. Porém, para fins didáticos, serão apresentados separadamente

nesta seção.

4.1 Psicoterapia e Cultura

“(...) eu já fui (para a terapia) meio que com

uma esperança, era o que eu tinha. Eu não

acreditava em Deus, não acreditava em nada,

então ah, então eu vou pra alguma coisa que eu

veja na hora né” (Eduardo).

As narrativas que criamos não são somente individuais, mas são construídas

e negociadas culturalmente. Mesmo antes de iniciarem seu processo psicoterápico, as

pessoas já tinham um conceito sobre o que era a psicoterapia. Nenhuma interpretação é,

portanto, puramente individual, pois ela só fará sentido se for partilhada em uma

cultura, e cada cultura tem sua própria rede de significados partilhados. “Em cada

cultura, por exemplo, nós esperamos que as pessoas se comportem de uma forma

apropriada ao cenário na qual elas se encontram” (BRUNER, 1997, p. 49). Muitos

autores têm concordado com a visão que defende que as formas narrativas de que as

pessoas se utilizam são definidas pela cultura, incluindo as formas de dar sentido a si

mesmo. “A experiência de si, também é algo histórica e culturalmente contingente, na

medida em que sua produção adota formas ‘singulares’” (LARROSA, 1994, p. 41).

A própria experiência de si não é senão o resultado de um complexo processo histórico de fabricação no qual se entrecruzam os discursos que

definem a verdade do sujeito, as práticas que regulam seu comportamento e

as formas de subjetividade nas quais se constitui sua própria

interioridade. É a própria experiência de si que se constitui historicamente

como aquilo que pode e deve ser pensado. A experiência de si,

historicamente constituída, é aquilo a respeito do qual o sujeito se oferece

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seu próprio ser quando se observa, se decifra, se interpreta, se descreve, se

julga, se narra, se domina, quando faz determinadas coisas consigo

mesmo, etc. E esse ser próprio sempre se produz com relação a certas

problematizações e no interior de certas práticas (LARROSA, 1994, p.

42).

A experiência de si é, então, um processo histórico formado por discursos e

práticas. O sujeito, portanto, não age segundo sua própria vontade, mas é atravessado

pelos discursos e práticas sociais que o subjetivam. Em Foucault vemos a primazia do

discurso em relação ao sujeito, onde “o discurso mesmo é um operador que constitui ou

modifica tanto o sujeito quanto o objeto da enunciação, neste caso, o que conta como

experiência de si” (LARROSA, 1994, p. 64).

A narrativa, como modo de discurso, está já estruturada e preexiste ao eu que se conta a si mesmo. Cada pessoa se encontra já imersa em estruturas

narrativas que lhe pré existem e em função das quais constrói e organiza de

um modo particular sua experiência, impõe-lhe um significado (LARROSA,

1994, p. 66).

Larrosa (2004), influenciado pelo trabalho de Foucault, acredita que o ser

humano se interpreta de forma narrativa e essas histórias que nos constituem são

produzidas e mediadas dentro de práticas sociais específicas.

Em resumo: quem somos como sujeitos autoconscientes, capazes de dar

sentido a nossas vidas e ao que nos passa, não está mais além, então, de um

jogo de interpretações. O que somos não é outra coisa se não o modo como

nos compreendemos; o modo como nos compreendemos é análogo ao modo

como construímos textos sobre nós mesmos; e como são esses textos

dependem de sua relação com outros textos e dos dispositivos sociais em que

se realiza a produção e a interpretação dos textos de identidade. (LARROSA,

2004, p. 14)

As práticas discursivas são construídas dentro de relações de poder

(LARROSA, 1994), e a construção narrativa de si mesmo, por ser também uma prática

discursiva, também deve ser analisada por esse ponto. Estamos sujeitos ao poder por

meio de verdades normalizadoras que configuram nossas vidas e nossas relações,

portanto, o poder seria constitutivo e determinante da vida das pessoas. (FOUCAULT

1979, 1980, 1984a apud WHITE; EPSTON, 1993).

Cuando habla de “verdades”, Foucault no suscribe la idea de que existan

hechos objetivos o intrínsecos acerca de la natura de las personas , sino que se refiere a ideas construidas a las que se concede el status de verdaderas.

Estas “verdades” son “normalizadoras en el sentido de que construyen

normas en torno a las cuales se incita a las personas a dar forma o construir

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sus vidas. Por consiguiente, se trata de “verdades” que en realidad prescriben

cómo ha de ser la vida de las personas (WHITE; EPSTON, 1993, p. 84).

Ao considerar que o poder é constitutivo da vida das pessoas, Foucault

conclui que poder e conhecimento são inseparáveis, sendo um domínio de um poder,

um domínio de conhecimento, e da mesma forma, um domínio de conhecimento, um

domínio de poder. Como afirma Foucault (1980, p. 93 apud WHITE; EPSTON, 1993)

“Estamos sujetos a la producción de verdad através del poder y no podemos ejercitar el

poder si no es a través de la producción de verdade” (p. 38).

Sendo assim, é importante perceber que todos nós atuamos dentro de um

campo de conhecimento/poder, e que ao usar a linguagem não estamos praticando uma

atividade neutra, mas utilizando-nos de um leque de discursos culturalmente

disponíveis. Os discursos “de verdade”, considerados socialmente apropriados e

relevantes, forjam nossas narrativas. Para Foucault, o discurso atravessa o sujeito, ao

invés de ser produzido por ele. Não há autonomia do sujeito para produzir discursos,

pois o próprio sujeito é constituído pelos múltiplos discursos que o perpassam em cada

contexto específico.

A história das formas nas quais os seres humanos construíram narrativamente suas vidas e, através disso, sua autoconsciência, é também a história dos

dispositivos que fazem os seres humanos contar-se a si mesmos de

determinada forma, em determinados contextos e para determinadas

finalidades. A história da autonarração é também uma história social e

uma história política (LARROSA, 1994, p. 68).

Conclui-se, então, que cada circunstância histórica e cultural possibilita

diferentes formas de se narrar. Se tomarmos como exemplo a experiência de si de

nossos entrevistados, veremos que elas são constituídas por um modo de viver

tipicamente ocidental, com valores, metas e estilos de vida determinados. André, por

exemplo, coloca-se como um sonhador com muitos objetivos, que busca crescer e

amadurecer, enquanto Zilma quer passar no vestibular para Direito e trabalhar no

Ministério Público. Estas são aspirações que não podem ser consideradas somente

individuais, mas refletem o discurso cultural da modernidade na narrativa pessoal. Esse

discurso nos molda com ideias de progresso e individualismo, formando indivíduos que

devem lutar por seus objetivos, sendo responsáveis por seus sucessos e fracassos.

Além da experiência de si, cada tempo histórico e culturas diferentes

produzem verdades diferentes, portanto, os fenômenos são efeitos do discurso, e não

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realidades imutáveis, devendo, assim, ser desnaturalizados, dando-se luz a sua

construção histórica e discursiva. Em relação ao fenômeno da terapia, todos os

entrevistados chegaram com uma imagem social da terapia como um espaço muito mais

ligado à psicopatologia, que à saúde psíquica. O consultório psicoterápico parece trazer

resquícios dos manicômios, lugar social dos loucos.

Os transtornos psíquicos foram construídos em nossa sociedade como algo

ruim e vergonhoso, que deveria ser isolado. André, por exemplo, em seu momento de

depressão, parou de ir ao colégio por medo do que as pessoas iriam pensar dele, por

medo de não ser aceito. Zilma, também tinha medo de não ser aceita em seu cursinho,

por sua diferença de idade em relação aos outros estudantes e por chorar

constantemente. Qualquer característica ou comportamento que se desvie da norma,

salta aos olhos da sociedade, causando preconceito.

Este preconceito faz-se presente no imaginário dos próprios clientes. A

narrativa de Eduardo, por exemplo, é permeada pelo discurso dominante de que quem

faz terapia é doido, levando-o a sentir-se mal ao perceber que precisa de ajuda:

é complicado você aceitar que vai, que precisa de uma ajuda né, então

quando.. já envolve a questão do preconceito. E aí tu é doido? Como é que

vai ser né? Então o primeiro momento foi digamos que mais ou menos um

ano em que eu relutava, mesmo que de maneira inconsciente com essa

questão de me abrir né pra pra pro outro (Eduardo)

Zilma também sofreu com a representação social de que quem faz terapia é

doido, sendo intitulada assim por chorar muito: “quem me perguntava antes eu tinha

vergonha de dizer que eu vinha pra cá, porque aí eu imaginava que as pessoas iam

pensar que eu tava doida.” Este preconceito com a terapia também aparece na história

de André, que nunca havia pensado em fazer terapia. André afirma que antes de iniciar

a terapia, a imaginava de outra forma, e só depois que já estava com o processo em

andamento, viu que era algo que poderia ajudá-lo. Desfeito o preconceito inicial, os

clientes podem acabar expressando outro discurso dominante na modernidade ocidental:

o da legitimidade e do poder da ciência psicológica de diagnosticar e tratar os males da

alma. Zilma, por exemplo, fala da terapia como um lugar de salvação, acreditando que o

processo psicoterápico a deixaria “pronta”.

São a partir desses discursos socialmente dominantes que as pessoas

preferencialmente constroem suas próprias histórias, já que são esses discursos que são

tidos como verdades (WHITE; EPSTON, 1993). Os enredos de autoria social adaptados

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para circunstâncias individuais são denominados “histórias dominantes”

(POLKINGHORNE, 2004). Zilma, por exemplo, sofria por não se encaixar nos

padrões. Achava que os colegas do cursinho tinham preconceito com ela por ela ser

mais velha, mas percebeu que a não aceitação vinha dela mesma. Ela se auto

interpretava segundo o discurso do preconceito quanto à idade ideal para se tentar

vestibular e as fases e metas de vida ditadas pela sociedade.

Porém, a construção de uma narrativa sobre uma experiência não consegue

abarcar a experiência completa:

La estructuración de una narración requiere la utilización de um proceso de

selección por medio del cual dejamos de lado, de entre el conjunto de los

hechos de nuestra experiencia, aquellos que no encajan en los relatos

dominantes que nosotros y los demás desarrollamos acerca de nosotros

mismos. Así, a lo largo del tiempo y por necesidad, gran parte de nuestro

bagaje de experiencias vividas queda sin relatar y nunca es “contado” o

expresado. Permanece amorfo, sin organización y sin forma (WHITE;

EPSTON, 1993, p. 29).

Esta característica da narrativa é o que permite que novos significados

possam ser atribuídos à mesma experiência. Desta forma, ao longo da terapia, Zilma foi

descobrindo que aos 39 anos pode sonhar em fazer vestibular, juntamente com os

adolescentes na idade “correta”. White e Epston (1993) acreditam que a terapia abre

espaço para as histórias alternativas, que iriam de encontro às histórias dominantes

formadas pelos discursos de verdade existentes em cada cultura. É importante destacar,

porém, que estas histórias alternativas são veículos da cultura tanto quanto as histórias

dominantes (WHITE, 2004). Não se pode construir uma narrativa completamente

destacada e “liberta” da cultura. Desta forma, a narrativa alternativa será constituída de

elementos já disponíveis socialmente, mas que foram até então negligenciados pela

pessoa, e que podem lhe ser mais úteis e saudáveis a partir de então

No caso de André, saber que ele não é o único a ter um problema específico,

fez com que ele se separasse do problema e não considerasse mais esta dificuldade

como parte constituinte de si mesmo. Ele é ele e o problema é o problema. Esta

separação deu uma maior liberdade a André para agir segundo outros modos de

funcionamento diferentes daqueles próprios de sua narrativa de self marcado pelo

problema.

La “extemalización” es un abordaje terapéutico que insta a las personas a

cosificar y, a veces, a personificar, los problemas que las oprimen. En este proceso, el problema se convierte en una entidad separada, externa por tanto

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a la persona o a la relación a la que se atribuía. Los problemas considerados

inherentes y las cualidades relativamente fijas que se atribuyen a personas o

relaciones se hacen así menos constantes y restrictivos. (WHITE; EPSTON,

1993, p.53).

Quando André conseguiu perceber seu problema como algo independente

dele, algo que outras pessoas também enfrentam, sua narrativa de self não ficou mais

presa à identidade problemática. Percebemos, também, que a relevância de seu

problema é marcada por uma comparação social. Um fator que o ajudou a diminuir o

tamanho dos seus problemas e assim relativizá-los, foi saber que existem pessoas com

problemas piores que o dele. O significado do problema é, então, sempre social.

Diferentes culturas e contextos encaram seus dilemas com diferentes perspectivas e

intensidades. Não passar no vestibular, para Zilma, é uma possibilidade que a deixaria

triste, porém não a impediria de tentar novamente ou construir novos rumos, enquanto

que para um estudante japonês, poderia ser motivo de desonra à família, e por

consequência, suicídio.

White e Epston (1993) chamam atenção, também, para o fato de que a

própria terapia muitas vezes pode servir como instrumento de controle social,

mostrando a importância de o psicólogo estar sempre pensando e problematizando sua

prática, para não cair nas armadilhas da naturalização. Mesmo abdicando da posição de

especialista, o terapeuta ainda está inserido numa relação de poder com seu cliente. Sua

postura, suas intervenções e escolhas teóricas e metodológicas vão interferir diretamente

no processo de quem está em terapia. O psicólogo é procurado e é pago para ajudar

alguém que não está conseguindo lidar sozinho com uma dificuldade. Há desde o início

uma diferença entre terapeuta e cliente e há também, implícita, uma diferença entre

terapeuta, amigos e familiares. Antes de iniciar a terapia, Eduardo acreditava que o

terapeuta era um profissional expert e detentor do saber. Esta é uma construção social

que leva Eduardo a conceber, inicialmente, o terapeuta como um adivinho superior a

ele. “Eu passei por cima do folclore que tem a terapia, porque assim as imagens que a

gente tem de terapia são aquelas imagens da novela, de filme, que fica lá uma pessoa

querendo adivinhar coisas da outra” comenta o estudante. Como mostra Grandesso

(2000), “a representação social que constrói o psicólogo clínico o coloca nesse lugar de

saber e poder” (p, 377). No decorrer do processo, Eduardo passa a perceber que o

terapeuta não é uma pessoa superior a ele, mas alguém que ocupa um papel

diferenciado, e que por mais que aconteçam trocas, já está previamente determinado

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quem é o terapeuta e quem é o cliente. Esta percepção das diferentes posições ocupadas

por terapeuta e cliente também aparece na fala de André, que reconhece que a relação

terapêutica, por mais que seja uma relação entre duas pessoas, e de grande importância,

é diferente dos outros relacionamentos humanos, pois o terapeuta conhece muito do

cliente, enquanto o cliente não conhece o terapeuta. Nas palavras do entrevistado “Você

passa uma hora falando pro terapeuta tudo que você é e o terapeuta continua sendo um

estranho pra você! (risos) isso é muito engraçado pra mim!”.

Cientes do lugar diferenciado do terapeuta na vida do cliente, pergunta-se,

então, sobre o significado que o cliente atribui ao terapeuta no contexto de sua mudança.

O que há de específico nesta relação que contribui para a transformação da pessoa em

terapia? A seguir, discutiremos esta díade.

4.2 Transformação e Relação com o terapeuta

“(...) Sem ela (terapeuta) não dá pra gente né...

falar pra ninguém. Ela “ouce”, ela explica pra

gente as coisa que a gente falou, e aí a gente fica

observando o que ela fala, e é muito legal... que

passa uma força pra gente. Eu acho que ela é o

ponto principal depois... sem ela num dá

não!”(Zilma)

Gergen e Kaye (1998) defendem que a psicoterapia é a invenção de sentido

no contexto do discurso colaborativo, onde o sentido da experiência é transformado à

medida que é negociado com o terapeuta. Subjacente a essa nova postura está a noção

construcionista social de self (si-mesmo) como plural, situado, contingente, fruto de

interações em nível interpessoal e grupal, e também em nível macrossocial.

Associado às críticas ao realismo e ao essencialismo de muitas definições do

self e suas contribuições para uma cultura individualista, Gergen ao

investigar o self abandona a busca pela definição universal de um self

nuclear, organizado, estável e autêntico como no projeto da ciência moderna.

De sua ênfase no estudo da linguagem decorre a descrição do self como um

discurso: de um lado, buscando situar as condições sócio-históricas concretas

de emergência de um novo vocabulário sobre o self, e de outro, analisando as

formas pelas quais as narrativas sobre o self socialmente disponíveis são utilizadas na sustentação dos relacionamentos. Há assim uma exteriorização,

multiplicação e contextualização histórica da construção do self. (RASERA;

GUANAES, JAPUR, 2004, p. 159).

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A realidade pós-moderna já não sustenta mais o “eu” romântico, que é único

e essencialista. Por outro lado, também não cabe na pós-modernidade o “eu” previsível

e racional da modernidade. A saturação social da pós-modernidade rompe com essas

duas visões, dando lugar a uma multiplicidade de selves que emergem a partir da

interação e do contexto (Gergen, 1992). Sendo o self relacional e contextualizado,

percebe-se a importância da psicoterapia como ambiente propiciador da emergência de

novos selves. “Especificamente falando sobre o processo terapêutico e seus propósitos

quanto à mudança, dentro desse marco referencial pós-moderno, ênfase especial, no

meu entender, deve ser colocada sobre a relação terapêutica” (GRANDESSO, 2000, p.

250), já que é nesta relação que se dará a construção narrativa do novo self do cliente.

Assim, a estabilidade do self, nesta perspectiva construcionista, deixa de ser

decorrente da organização interna do self e passa a ser entendida como uma

construção narrativa, decorrente do uso de determinadas formas de interligar

os eventos. (RASERA; GUANAES; JAPUR, 2004, p. 160).

Essa construção de narrativas não é um processo individual e interno, ela se

dá em colaboração com o terapeuta e mediada pelas narrativas disponíveis

culturalmente. “A presença de um outro (presente ou imaginário) é essencial, sendo

o desenvolvimento de uma narrativa de self sempre um processo de co-autoria”

(GUANAES e JAPUR, 2003, p. 140). Por isso, McLeod (2004) afirma que as histórias

são dialógicas, criadas entre pessoas, ao invés de existirem dentro da mente de uma

pessoa. Essa criação é sempre uma co-construção situada, uma versão possível que pode

mudar de acordo com o contexto de criação e com os “co-autores”.

A construção e a transformação da consciência de si dependerá, então,

da participação em redes de comunicação onde se produzem, se interpretam e

se medeiam histórias. Dependerá desse processo interminável de ouvir e

ler histórias, de contar histórias, de mesclar histórias, de contrapor algumas

histórias a outras, de participar, em suma, desse gigantesco e agitado

conjunto de histórias que é a cultura. A constituição narrativa da experiência de si não é algo que se produza em um solilóquio, em um diálogo

íntimo do eu consigo mesmo, mas em um diálogo entre narrativas

(LARROSA, 1994, p. 37).

O self aparece, então, como uma construção narrativa, deslocando a atenção

de processos internos e nucleares para a interação entre cliente e terapeuta, pois é desta

negociação de sentidos que emerge o self. Mcnamee e Gergen (1998) afirmam que uma

transformação não pode ser realizada “por um único arbítrio, um especialista onisciente

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ou todo-poderoso. Ao contrário, a transformação é uma questão inerentemente

relacional, que emerge de uma miríade de coordenações entre as pessoas” (p. 8).

Do ponto de vista pós-moderno, a relação tem prioridade sobre o self

individual, ou seja, o self somente é constituído como um subproduto das

relações. Não são os selves independentes que se unem para formar uma

relação, mas formas particulares de relacionamento que engendram o que

tomamos como a identidade individual (GERGEN; KAYE, 1998, p. 217).

Nesse sentido, “mudança implica a possibilidade de dialogar”

(GRANDESSO, 2000, p. 397). O self só é constituído e só está sujeito a mudança, em

relação. Sendo a transformação uma questão “inerentemente relacional”, a pessoa

precisa ser reconhecida pelo outro em sua narrativa, e esta narrativa deve estar em

consonância com os padrões culturais. No momento em que a pessoa narra para os

outros, ela não está apenas representando uma história, mas está se reconhecendo e se

apropriando da nova narrativa, e o papel do outro nesse processo é fundamental. André

demonstra a grande credibilidade dada aos apontamentos do terapeuta, em uma posição

diferente da dos amigos. Suas relações e experiências passadas favoreciam um self

tímido, mas ele sabia que tinha a potencialidade para ser sociável, e percebeu isso

quando a terapeuta confirmou o que muitas pessoas já tinham dito: que ele tinha

facilidade de se relacionar. Mesmo outras pessoas já tendo apontado essa característica

dele, e ele mesmo percebendo que isso existia nele, somente quando a psicóloga

pontuou, ele aceitou. A voz do terapeuta ganha uma relevância maior para o cliente. Por

outro lado, André também parece sentir que ao mesmo tempo em que ele valoriza o

terapeuta, o terapeuta o valoriza, fazendo com que na terapia o foco seja o cliente.

André acha louvável o tempo que o terapeuta disponibiliza para o cliente, e comenta

sobre as consequências desse momento: “Quando você tem esse determinado tempo

focalizado exatamente pra você, você tem um pouco mais de liberdade, você consegue

ter mais tempo”.

Todos os clientes entrevistados reconhecem o papel colaborativo do

terapeuta em seus processos de mudança, atribuindo-lhes diversos significados. O

terapeuta aparece, por exemplo, para Eduardo como um facilitador, assemelhando-se à

figura do professor: é importante, mas não insubstituível. O mais importante é o papel

que ele ocupa, e não quem ele é. André também reconhece que o psicólogo ocupa o

papel de um profissional, mas por ele ser uma pessoa, o cliente consegue contar suas

histórias. Valorizar a função terapêutica e não a especificidade pessoal de cada

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profissional faz com que o processo de transformação dos clientes seja contínuo, por

mais que tenham trocado de terapeuta algumas vezes. Eduardo considera que com o

terapeuta atual está tendo os maiores avanços, mas reconhece sua trajetória até chegar

neste ponto de seu processo, e a importância dos outros profissionais. André também

coloca seu processo em primeiro lugar, afirmando que dois terapeutas já passaram por

ele, ao invés de ter sido ele quem passou pelos dois terapeutas. Os clientes da Clínica

Escola, que ao longo do tempo são encaminhados para diversos estagiários, parecem

perceber que, independente de quem é o terapeuta no âmbito pessoal, ele cumpre uma

função diferenciada dos outros relacionamentos da vida social em geral: tem a

capacidade de ouvir e dar um retorno, demonstrando segurança. Essa segurança

oferecida pelo psicólogo aparece fortemente nas três entrevistas. Para André, o

terapeuta o faz sentir mais seguro para enfrentar seus medos. Eduardo faz um

contraponto entre o terapeuta e seus amigos, para quem ele não sente segurança em

contar suas histórias. Já Zilma, conta que a voz do terapeuta, quando devolve o que ela

mesma trouxe, lhe dá segurança.

Grandesso (2000) caracteriza a conversação terapêutica como um ambiente

que possibilita a experiência de sentido, sendo marcada pelo “respeito pela alteridade

das práticas dialógicas e pela relação de confiança” (p. 395). Nesse sentido, Gergen e

Kaye (1998) comentam como o ambiente psicoterápico deve ser para ser capaz de

promover mudanças. Para os autores, a terapia deve favorecer:

...um clima no qual os clientes tenham a experiência de serem ouvidos, de

terem seus sentimentos e pontos de vista compreendidos, de se sentirem

confirmados e aceitos. Isto envolve um esforço para entender o ponto de vista

do cliente, para comunicar um entendimento de como este ponto de vista faz

sentido para a pessoa, dadas as premissas a partir das quais ele se produz. Ao

mesmo tempo, isso não implica uma aceitação ou confirmação das premissas

do cliente, mas sim uma investigação interessada, que abre as premissas para

explorações (p.220).

Grandesso (2000) ressalta ainda que a experiência de ser aceito, validado

e compreendido, cria um contexto de validação da narrativa particular do cliente, onde

ele pode falar de si livremente, sem recriminação ou julgamento, abrindo-se à

possibilidade de construção de novos significados e dando fim a narrativas

estereotipadas. McLeod (2004) diz que o papel do terapeuta é ser tanto um co-editor

como uma testemunha das histórias contadas pela pessoa, e acredita que a metáfora

“reautoria” retrata bem o trabalho de expansão e aprofundamento das histórias que é

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feito na terapia. O tipo de diálogo e as condições de um setting terapêutico, nesse

sentido, se diferenciam das outras relações sociais do indivíduo.

Sobre a especificidade do terapeuta, Eduardo comenta que o mais

importante nesta relação não é a certeza do sigilo, mas a sensação de que sua história

será resguardada e respeitada. Aceita com naturalidade que o terapeuta possa comentar

seu caso com alguém, desde que não seja em tom de fofoca, e que o comentário não

chegue até ele. Este distanciamento do terapeuta do ciclo de amizades do paciente

também foi citado por Zilma, que considera que o diferencial do terapeuta vem também

de sua neutralidade. Sua terapeuta não a conhece fora da clínica, portanto, não tem uma

ideia pré-concebida sobre ela. “E ela não me conhece lá na minha casa, não sabe nada

de mim, só sabe o que eu falo.”

Quanto à função do terapeuta no processo de mudança, Eduardo relata que

não considera o psicólogo o responsável pela cura do cliente. Atribui a responsabilidade

pela transformação aos dois. O terapeuta o faz perceber alguns conteúdos, mas na

prática, quem resolve a vida é ele, não o profissional. Caberia ao terapeuta, portanto,

fazer pontuações, instigar os discursos e fazer uma ligação entre o paciente e ele

mesmo. Isso acontece à medida que o terapeuta faz amarrações e apontamentos no

enredo trazido pelo cliente, facilitando a compreensão da história e levando o cliente a

analisar o que ele mesmo disse. Para Eduardo, portanto, o terapeuta explora novas

facetas antes não percebidas e o ajuda a dar respostas para questões em aberto. Segundo

o entrevistado, o terapeuta percebe pontos antes do cliente, mas não os expõe

diretamente. Sua tarefa é conduzir o cliente para o significado e ajudá-lo a perceber o

que já estava ali e que já era buscado: “Então nos discursos que que, nos meus textos,

naquilo que eu falo, ele vai percebendo, ele percebe algo, é fato que ele percebe algo

antes de mim. Só que ele também não me diz, ele vai me conduzindo ao significado”.

Eduardo relaciona a terapia com a literatura, explicando que ao longo de um romance, o

próprio texto vai dando pistas do que acontecerá nas páginas futuras. Com os textos de

Eduardo parece acontecer a mesma coisa: seu terapeuta percebe pontos antes que

Eduardo os perceba. Assim como os “romances bem-estruturados têm muitas lacunas na

narrativa que devem ser preenchidas pelo leitor” (WHITE, 2012, p. 91), as

autobiografias também podem ter várias versões. Uma das funções da narração de

histórias é fazer com que elas sejam reinventadas ao serem recontadas. Essa reinvenção

parte de conteúdos que já estavam potencialmente disponíveis, já que toda narrativa é

apenas uma versão possível:

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Mimesis é invenção no sentido original do termo: invenire significa tanto

descobrir como criar, ou seja, revelar aquilo que já estava ali à luz do que

ainda não é (mas é potencialmente). É o poder, em resumo, de recriar mundos

atuais na forma de mundos possíveis. (KEARNEY, 2012, p. 414)

O terapeuta, portanto, explora as possibilidades através de questionamentos

que busquem as contradições e as lacunas das experiências contadas. O papel do

terapeuta, “enquanto agente da mudança, situa-se na criação de contextos para fazer

surgir o novo, o ainda não dito” (GRANDESSO, 2000, p. 380). O terapeuta, portanto,

faz o cliente entender e aceitar certas histórias, ao fazer apontamentos que o levem a

analisar o que ele mesmo disse, funcionando assim como um elo entre o cliente e ele

mesmo. Kearney (2012) também aponta que a “função narrativa de tornar presentes

coisas ausentes pode servir a um propósito terapêutico” (p. 421).

Eduardo define seu terapeuta segundo a metáfora do “desvendor de

charadas”. Este significado do terapeuta como alguém que percebe pontos que o cliente

não percebe e o ajuda a construir novos significados, sem direcioná-lo até eles, também

é observado na fala de André, que considera o terapeuta como alguém que divide os

problemas e as histórias com o cliente. Segundo André, quando o cliente está confuso, o

terapeuta não dá a resposta, mas o ajuda a descobrir a forma de chegar à solução,

usando os próprios instrumentos e potencialidades do cliente.

E ele vai ser muito fundamental nessa peça, nesse quebra-cabeça, porque em

algum momento ele, naquele determinado momento que você tá confuso,

talvez ele não vai falar “você vai fazer isso e vai resolver tudo”, mas ele vai

te ajudar a descobrir os instrumentais pra conseguir montar, a chegar na

solução. Ele vai te ajudar, ele nunca vai conseguir falar assim, ele nunca vai

te dar a resposta, a solução pronta. Mas ele vai te ajudar a pegar seus

instrumentos, a te ajudar a conseguir chegar nessa cura. (André)

Assim como Eduardo, André enfatiza que os instrumentos utilizados para

resolver os problemas são dele mesmo, sendo ele o principal responsável por sua

mudança. André comenta que “na terapia, o ambiente já é propício pra se ajudar, mas se

eu não me ajudar, ninguém vai poder me ajudar, nem o mais experiente terapeuta...”. O

papel do terapeuta, então, seria o de ajuda-lo a achar esses instrumentos próprios, já que

“é na relação com outros que reside o potencial criativo do processo de significação”

(GUANAES; JAPUR, 2008, p. 122).

Já para Zilma, a importância do terapeuta em seu processo de mudança vem

marcada pela solidão vivenciada após a perda do filho. Zilma sente a necessidade de

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partilhar com alguém as vitórias e os momentos difíceis. Tem maior facilidade de falar

na terapia que em outros ambientes, pois lá existe o sigilo e sente-se realmente ouvida

por alguém que não a interrompe e ouve seu sentimento “profundo”, havendo uma

relação de confiança e intimidade. Essa confiança está vinculada a uma relação de

privacidade e de respeito à intimidade da cliente, onde ela se sente livre para dividir,

somente com a terapeuta, seus conteúdos mais secretos:

acho que é porque tem alguém pra ouvir e depois falar com a gente. E aí é só nós. Não tem aquela multidão de pessoas, ou então outras pessoas pra ouvir,

e vai ficar falando, porque o que a gente sente a gente quer falar assim... Quer

falar só pra uma pessoa. (Zilma)

Ao contrário de Eduardo e André que reconhecem uma maior

responsabilidade do cliente em seu processo de mudança, Zilma tem a terapeuta como o

ponto principal, pois sua terapeuta observa o que foi dito, explica os conteúdos que ela

traz e a faz perceber o que ela mesma disse, apresentando-a outro ponto de vista,

ajudando-a a organizar sua rotina, planejar suas atividades, e construir novos modos de

vida. A terapeuta aparece, então, em um papel quase pedagógico: o de ensiná-la a

organizar melhor seu tempo, informá-la sobre o mercado de trabalho, incentivá-la a

procurar novos cursos e incitar novas ações e posturas possíveis. Desta forma, a relação

dialógica terapeuta-cliente ajudou Zilma a construir uma nova realidade após a morte do

filho.

A linguagem é vista como uma prática social, construtora da realidade.

Como aponta Shotter (2000), quando as pessoas conversam, elas não estão

simplesmente colocando idéias em palavras, nem refletindo a verdade de uma

realidade delas independente. Elas estão construindo sentidos, práticas sociais ou formas de vida (...) É no permanente exercício de falar, responder,

explicar-se, argumentar, defender-se, etc, que o sentido é construído e

negociado entre as pessoas, por toda a duração de um diálogo. (GUANAES;

JAPUR, 2008, p. 118).

Nos diálogos travados nas sessões, Zilma adquiriu mais do que novos

repertórios linguísticos. Sendo a linguagem uma prática social construtora de realidade,

Zilma construiu novas formas de vida, tendo ingressado no curso de florista como

complemento de sua renda, por exemplo. Conta que a terapeuta também a incentivou a

pensar sobre uma segunda opção para o vestibular, caso não passasse em Direito, além

de propor que Zilma tentasse conversar com os colegas de sala e assim melhorar suas

habilidades sociais.

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Quando dizemos algo, seja a expressão de uma crença ou de um sentimento,

devemos entender que isto tem uma função de performance, isto é, deve ser

considerado uma forma de relação com os outros e não a expressão de um

estado interno da mente (ÁLVARO; GARRIDO, 2006, p. 323).

A linguagem, em sua função performática, faz coisas, cria realidades,

contribuindo para a construção de novas formas de existência. A terapia, portanto, foi

para Zilma uma forma de aprender a se relacionar de modo diferente com as outras

pessoas, consigo mesma e com sua vida profissional. Larrosa (1994) aproxima o espaço

terapêutico do espaço pedagógico e propõe que esses sejam contextos de produção da

experiência de si. A terapia é, portanto, um espaço onde narrativas são partilhadas, e

assim novas experiências de si podem ser construídas.

Após apresentar os significados que os clientes atribuem ao terapeuta como

peça de seu processo de transformação, veremos, a seguir, como os clientes significam o

processo psicoterápico como um todo. Estes significados abarcam “o que” é a terapia

para os clientes e “como” eles se sentem sobre ela.

4.3 Significado do processo psicoterápico

“é como se a terapia fosse uma rota que eu

visse, um caminho, pra chegar a algum lugar,

pra chegar a algum lugar bom.”(André)

A terapia é um “processo dialógico organizado em torno da conversação

terapêutica” (GRANDESSO, 2000, 43). É uma prática social construída a partir dos

problemas que as pessoas trazem, e que visa à ampliação de seus sentidos de reautoria e

possibilidades existenciais (GRANDESSO, 2000). Compreendendo a conversação

terapêutica como uma possibilidade de gerar novos significados, esta conversação:

apresenta-se como um processo de base dialógica, construído momento a

momento, sendo, portanto, temporalmente presente e auto-referencial em

relação a todos os participantes. Daí decorre que nenhuma conversação pode

ser igual a outra, definindo, assim, cada contexto e cada conversação

terapêutica como idiossincráticos (GRANDESSO, 2000, p. 296).

Mesmo cada contexto terapêutico sendo único e particular, pudemos

perceber algumas aproximações entre os significados que os clientes atribuem à terapia

e a forma como eles foram se entregando ao processo, entrando vagarosamente, por

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vezes descrentes, por vezes esperançosos, em um território desconhecido. Percebemos

na história dos três entrevistados a presença de um Outro significativo, que contribuiu

de maneira relevante para o início da terapia. Eduardo fala de um primo próximo que

lhe apresentou a possibilidade de fazer terapia, mostrando-lhe algo novo, da mesma

forma que fez quando deu a Eduardo seu primeiro livro de literatura. Zilma fala do

professor do cursinho, que foi uma das poucas pessoas a perceber o estado em que ela

se encontrava após a morte do filho. Este professor a aconselhou a fazer terapia,

informando que a Clínica da UFC estava com inscrições abertas. Já André, conta que foi

trazido à terapia forçado pela mãe, pois se encontrava “fora de si” durante um processo

depressivo.

Zilma descreve sua primeira impressão da terapia como “estranho”.

André também não parecia ter uma boa impressão deste processo e não escolheu vir por

conta própria. Eduardo, por sua vez, fala de uma curiosidade em relação à terapia, que

lhe parecia algo inteiramente novo. Todos iniciaram a terapia por ocasião de um evento

traumático, tendo continuado o processo por outras inquietações que foram surgindo ao

longo do tempo, ou que já existiam, mas não eram fortes o suficiente para que fosse

tomada a decisão de se iniciar a terapia. Os traumas aparecem, portanto, como um mote

inicial, muitas vezes um pretexto (ou um pré-texto, entendido como o texto primitivo)

para a procura por ajuda. Nas palavras de Eduardo:

Quando eu procurei a primeira vez, meu irmão mais velho tinha falecido,

tava doente e tal. E eu tinha tido um namoro, uma coisa assim, e eu não

conseguia esquecer, então eu ficava, eu sofria, não sabia nem o porquê.. hoje

eu penso que essa paixão da época... o meu irmão... foram os sinais, mas na

verdade a busca não foi exatamente por isso, mas inicialmente foi.

Eduardo declara que além do fato pontual do fim do namoro e da morte do

irmão, havia uma falta de sentido para a vida: “E essa questão de inexplicação, eu não

conseguia encontrar explicação alguma pra mim, pro que eu queria, pras coisas que eu

fazia”. Essa busca por sentido é muito comum em pessoas que buscam terapia, como no

caso de André, que não conseguia encontrar um sentido para quem ele era no período da

adolescência: “você não é adulto ainda e nem é mais aquela criança. Então você é o

que? Você é um ser em transformação, então tipo, você é um nada, praticamente”. Esse

vazio também se observa no caso de Zilma, que diz ter perdido o sentido da vida com a

morte do filho. Segundo Gonçalves (2008):

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O paciente surge com um discurso incoerente e desorganizado sobre a sua

experiência, não se apropria das suas experiências, não as reconhece, mostra-

se incapaz de lhes construir um sentido e queixa-se, não raras vezes, e

momentos de descontinuidade existencial. Frankl (1985) chamou essa

procura de coerência como uma tendência universal de busca de significado

(p.140).

Nesta busca por significado, a terapia ocupa várias posições nas vidas

dos clientes, que a percebem de diferentes formas. André descreve a terapia como uma

rota, um caminho para um lugar bom. Eduardo também parece entender a terapia como

um caminho que leva de um ponto a outro, sendo o autoconhecimento o destino

desejado. Eduardo acredita que a terapia é uma busca por si, que acontece através de

uma entrega mútua entre terapeuta e cliente. Ao entrevistar seus clientes, Grandesso

(2000) também nota que muitos apontam a terapia como um “encontro consigo

mesmo”, onde os questionamentos da terapeuta levam o cliente a buscar as respostas

dentro deles mesmos. Essa dicotomia interior-exterior, bem como a imagem

essencialista de um self interior que é “encontrado” ou “descoberto” são próprios da

modernidade, e aparecem fortemente nas falas dos clientes, que segundo Grandesso

(2000) “constroem a sua compreensão a partir de uma epistemologia moderna e uma

hermenêutica objetivista” (p. 376).

Todos os entrevistados apontaram que a psicoterapia é um espaço não

obrigatório, que demanda perseverança e compromisso do cliente:

Eu acho que todas as coisas que eu fiz na vida, onde eu consegui ser mais

aplicado foi nas sessões de terapia. E olha que já tem tempo viu.

Primeiramente eu ia, aí com o passar do tempo eu passei a ir e a estar, porque

antes eu achava que era só o fato de ir que ia resolver (Eduardo).

Os clientes percebem que a terapia depende da disponibilidade e vontade

da pessoa de ser ajudada de acordo com seu limite, mas também consideram benéfico o

contato voluntario com a dor. Assim como André, que considera que é necessário

colocar o dedo na ferida para que haja a cura, Eduardo também escolhe entrar em

contato com conteúdos dolorosos: “Eu tô percebendo essas verdades. E eu tenho a

escolha de querer afastá-las, e eu escolho não afastá-las, eu fico sentindo e eu volto e eu

volto, e eu fico indo né.” Zilma conta que teve que falar de todos os momentos que

passou com o filho, desde seu nascimento, passando por seu adoecimento, até sua

morte, para que enfim pudesse falar dele sem chorar. Esse processo foi, para ela,

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doloroso e difícil, porém, foi extremamente necessário para que ela conseguisse seguir

adiante.

Todos apontaram a terapia como um processo gradual e contínuo, onde o

progresso é imperceptível em curto prazo, mas os benefícios de fato podem ser

percebidos ao longo do tempo. Relata André:

Às vezes eu percebo que não são coisas que da noite pro dia acontecem, mas

se você começar a olhar um pouco com esforço, você consegue ver. É um processo assim tão... é como se fosse o movimento da Terra, você tá

acostumado com o movimento da Terra. Você não percebe que ela tá

girando, você acha que ela tá parada, é a mesma coisa das minhas melhoras,

os ganhos que eu tenho com a terapia.

Esse processo é contínuo não só se pensarmos no decorrer das sessões, mas

também levando em conta os intervalos entre uma sessão e outra, quando o que emergiu

na terapia continua a reverberar. Eduardo conta que:

houve um dia em que eu saí do consultório como se eu tivesse saído do

dentista, e o dentista tivesse esquecido algum pedaço de dente, alguma coisa

na minha boca, e doendo. Durante dois dias eu fiquei sentindo, eu vinha né,

involuntariamente vinha fragmentos da conversa lá, então essa essas eu tenho

como sendo as minhas verdades, me cutucando né, me sei lá.

A esse respeito, segundo Grandesso (2000), “se considerarmos o que

acontecia no intervalo intersessões, fora da sala da terapia, temos de admitir que o

processo terapêutico é um acontecimento sem fronteiras e sem tempo certo” (p. 381).

Isso ocorre pois mesmo após os diálogos com o terapeuta, o cliente continua a travar

diálogos internos consigo mesmo e com outras vozes. Essa afirmação ganha reforço da

teoria do self dialógico, que descentraliza o self e o coloca como uma variedade de

posições relativamente autônomas, onde o “Eu” se desloca de uma para a outra

(HERMANS, 2004). Esse movimento pode gerar diálogo entre as posições, e desses

diálogos podem surgir novos significados. Os diálogos podem se dar entre as vozes de

uma mesma pessoa, ou entre uma pessoa e outra, podendo ser também diálogos

imaginados, como no caso de Eduardo, que ao sair do consultório, continuou pensando

sobre a sessão passada e dialogando com seu terapeuta e com suas verdades.

Outra característica marcante da terapia, assinalada nas entrevistas, foi sua

capacidade de, ao permitir que o cliente conte uma história sobre si, o colocar na

posição de narrador que tudo observa e descreve, e por outro lado, de personagem que

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vive a história. Ele passa, então, a ter um olhar panorâmico de toda a situação, e essa

nova perspectiva pode gerar novas imagens.

Retornando a Ricoeur (1976, 1991, 1994, 1997), posso dizer que ao narrar

suas histórias, nesse contexto dialógico, o cliente pode experimentar uma

espécie de distanciamento em que, como eu-narrador, ao mesmo tempo que

relata os episódios vividos, pode apropriar-se do seu discurso, como se fosse

um texto desenvolvendo-se diante de si mesmo. O relato, configurando uma espécie de momento de “desapropriação”, configura para o cliente uma forma

de distanciamento de si mesmo, de tal maneira que o ato de narrar pode

permitir que algo de novo se torne “visível”. A mudança em uma terapia

narrativa decorre, a meu ver, desse duplo lugar que o cliente ocupa ao relatar

suas histórias: o do narrador e o do protagonista (GRANDESSO, 2000, p.

297).

Para Eduardo, ao contar suas histórias para o terapeuta, o cliente estaria na

verdade narrando para si mesmo e ouvindo suas próprias histórias, mostrando, desta

forma, suas verdades para si mesmo. O cliente vai, então, respondendo a si mesmo, e

não ao terapeuta. O que é terapêutico para Eduardo em suas sessões “são essas verdades

nossas sendo esfregadas nas nossas caras e por nós mesmos”. A terapia como o lugar

onde o cliente narra, se ouve e se transforma nesse processo também aparece para

André, como nos mostra o seguinte trecho de sua entrevista:

teve uma coisa que eu aprendi que foi o seguinte. É muito diferente quando

você pensa em algo e você só pensa, mas outra coisa é quando você fala. Vou

dizer, quando você tem um trauma... você pensa naquele trauma e bem, eu vou superar esse trauma. Mas quando você fala, você consegue colocar o

dedo na ferida. É a única forma de sarar. Quando você consegue falar sobre o

seu trauma, você escuta você ouvindo, se ouvindo. Isso é uma forma de cura.

É uma cura.

Este processo de narrar e ouvir-se é explicitado por Hermans (2004):

Quando os clientes contam as histórias de suas vidas ou partes significativas

de suas vidas, eles não somente contam a história, mas também escutam a

mesma história. Eles contam não somente para o terapeuta, mas também,

através do terapeuta, para eles mesmos. É precisamente esta escuta que abre

as portas para o recontar da história. Certamente, o terapeuta significantemente e até necessariamente, influencia a qualidade do feedback

dessa escuta, mas a ideia básica é que os clientes recontam suas histórias ao

escutarem suas próprias formulações e reformulações (tradução nossa) (p.

175).

Assim como aponta Grandesso (2000), Hermans (2004) acredita que a

narrativa abre um espaço dialógico que possibilita novas relações entre os eventos, além

de permitir que a história seja recontada com novos elementos. O cliente como narrador

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e protagonista nos remete a William James e sua distinção entre o “Eu”, como o self que

conhece, e o “Mim”, o self conhecido (HERMANS, 2004). O Eu conta a história do

Mim, e como apresentado na teoria do self dialógico, pode apresentar diferentes

posições. “As diferentes posições do Eu são incorporadas como vozes que realizam

relações dialógicas, tanto internas como externas, com outras vozes” (HERMANS,

2004, p. 177).

A terapia é, assim, significada pelos clientes como um lugar especial, de

paz, de cura, de esperança para o alívio da dor. Um espaço para falar e receber retornos

de uma única pessoa, que está lá aberta para o cliente, sem julgamentos e ideias pré-

concebidas. Enfim, um espaço para partilhar com alguém os conteúdos mais autênticos,

que não podem ser expressos em qualquer lugar e para qualquer pessoa. Nas palavras de

Grandesso (2000):

A terapia compreende a criação de um espaço conversacional em que a

linguagem compartilhada entre terapeuta e cliente configura o contexto para

uma reconstrução de significados, em uma perspectiva transformadora e

libertadora (p. 43).

Entendendo os significados que os clientes atribuem à terapia, passaremos

agora a analisar os efeitos da terapia segundo os clientes, discutindo as mudanças

pessoais observadas por eles, ao longo de seus processos.

4.4 Terapia e transformação

4.4.1 Eduardo: a terapia como uma descoberta de si

Eduardo referiu-se à terapia como uma busca por autoconhecimento, que lhe

permitiu entrar em contato com seus “primeiros eus” e conhecer suas próprias verdades.

Esse processo exigiu dele que estivesse disponível para explorar a si mesmo, já que

rapidamente percebeu que não bastava apenas comparecer aos atendimentos, mas tudo

dependeria do quanto ele se implicasse no processo.

Seus “primeiros eus” estariam relacionados aos eus da infância, sendo seu

primeiro contato com um “eu”, a descoberta de não abandono de sua identidade infantil,

ou seja, a percepção de que ele ainda estaria ligado ao Eduardo da infância. Sua fala

mostra o diálogo entre vozes internas: o Eduardo adulto em diálogo com o Eduardo

criança, que ainda é fortemente presente em seu self. Essa descoberta foi facilitada

através do contato com um livro do psicólogo americano Dan Kiley, chamado a

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Síndrome de Peter Pan. Este livro foi sugerido a Eduardo por sua antiga terapeuta, e lhe

causou grande impacto:

então foi quando, e eu relutei muito, quando eu entrei em contato com esse

livro e eu comecei a ler, foi que eu percebi que meu primeiro eu infantil, que

eu não tinha ainda... como é que eu posso dizer... eu não tinha me desgarrado

dele. Então foi digamos a primeira catarse que eu tive né, o primeiro contato

com um eu meu.

A respeito da catarse, Kearney (2012) afirma:

Podemos dizer, assim, que a catarse permite uma singular combinação de

medo e piedade pela qual experimentamos o sofrimento de outros seres tal

como se os fôssemos. E é precisamente este jogo de diferença e identidade –

experimentar a si próprio como outro e o outro como a si próprio – que

provoca uma reversão de nossa atitude natural diante das coisas e nos abre novas maneiras de ver e ser (p. 419).

A aproximação de Eduardo com as questões relacionadas à infância,

evocadas pelo livro, possibilitou-lhe uma abertura para novas formas de significar sua

história. “Trata-se de reconhecer verdades dolorosas – através da lacuna da imitação

narrativa – mais do que uma poção mágica que miraculosamente as resolva. A catarse é

uma questão de reconhecimento, não de remediação” (KEARNEY, 2012, p. 420).

Eduardo surpreendeu-se ao perceber essa identificação que ainda tinha com a infância, e

é esse caráter de surpresa e espanto que é próprio da catarse.

Eduardo usa ainda a seguinte metáfora para falar dos efeitos da terapia:

“uma situação em que eu me encontro no abstrato e a terapia me traz pro nível do

concreto”. Esta simbologia parece falar do processo de atribuição de significado que

acontece durante a terapia, onde as experiências não significadas permanecem em um

nível pré-reflexivo até que os significados sejam concretizados na linguagem. Nesse

sentido, Eduardo mencionou a explicação que sua primeira terapeuta lhe deu sobre a

terapia: “Então todas as suas buscas elas terão que ser textualizadas, você vai ter que

falar. Eu só vou poder conseguir entrar em contato com alguma coisa sua, a partir do

seu discurso”. É ao transformar a experiência vivida em história narrada, que surgem os

significados. Isso dá à linguagem um importante papel na constituição da realidade, já

que é através dela que nossas experiências se fazem inteligíveis, criando uma rede de

significados em cima da qual o sujeito se ancora para agir no mundo.

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4.4.2 Zilma: a terapia como um alívio para a dor

Zilma relata que sempre que ia para as sessões de terapia, recebia uma dose

de alívio para as dores. “Toda vez que eu vinha eu recebia uma pequena dose, como se

eu recebesse uma dose de um remédio que ia aliviando aos poucos as coisa. Até hoje eu

ainda tô recebendo essas dose.” Conta que antes de iniciar a terapia não conseguia falar

do filho sem chorar, não conseguia completar as frases sem interromper. “Eu acho que

até pra falar o nome dele (Tadeu), como eu disse pra você, eu tinha que dar uma parada.

Todo tempo, era a lágrima vinha antes de tudo. E eu ficava assim, não conseguia falar”.

Hoje fala do filho com mais naturalidade, diz ter maior controle.

Após a morte do filho, Zilma teve um início de AVC, com sangramentos e

nódulos. Com a terapia, percebeu melhoras também destes sintomas físicos. Diz que seu

o coração passou de sufocado para leve ao longo da terapia. Outros efeitos do processo

psicoterápico citados por Zilma são: alívio, vitalidade, coragem, força, incentivo,

determinação e vontade de continuar. Considera que a terapia a salvou da morte, a tirou

do “fundo do poço” e a ajudou a dar um novo sentido para a vida. Somente depois de

iniciar a terapia é que Zilma conseguiu se desfazer dos pertences de Tadeu, doando o

que era dele. O alívio para a dor desse luto veio da ressignificação da experiência da

morte do filho e de seu amor por ele.

Zilma teve que reinventar novas formas de viver após a perda de Tadeu.

Toda sua identidade e rotina estavam ligadas a ele. Após sua morte, diz que ficou

paralisada por três anos, sem conseguir prosseguir com a vida: “me sentia

completamente estranha nesse mundo, era como se me faltasse tudo, até o ar. Fiquei

sem chão, sem coragem, não sabia mais pensar. Não via nem ouvia as pessoas em

minha volta”. A terapia, então, acordou os sentidos que estavam anestesiados, passou a

ter uma voz ativa e conseguiu ouvir-se e ouvir os outros. Superou o medo e a vergonha

que a deixavam fragilizada e isolada. Tornou-se uma pessoa mais sociável e aberta às

possibilidades.

Relata que a terapia lhe traz prazer e alegria, é o lugar onde ela relaxa e acha

soluções e respostas. Estava com os pensamentos bagunçados e na terapia os organizou.

A organização de sua rotina é um ganho, trazido pela terapia, que Zilma parece

valorizar. A entrevistada conta que a psicóloga a ajudou a organizar suas atividades,

pensando no tempo e na utilidade de cada uma. Para Zilma, que ficou perdida após a

morte do filho, esta construção partilhada de uma nova rotina e prioridades foi muito

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importante. Ela atribui suas mudanças à forma como a psicóloga fala, ao lugar especial

que é a clínica, ao jeito como é atendida, ao carinho e atenção que recebe, e às

explicações que a psicóloga lhe oferece sobre o que ela mesma diz.

4.4.3 André: a terapia como um processo de superação

Uma das maiores conquistas de André com a terapia foi o enfrentamento da

depressão. André reconhece que o isolamento que a depressão causa é de certa forma

confortável, mas ele está em processo de sair dessa bolha de retraimento. O jovem relata

que a terapia o ajudou a superar problemas, traumas e medos. Um dos medos

enfrentados pelo jovem foi o medo de errar. André passou a ser menos exigente consigo

mesmo e a valorizar os erros como lições para levá-lo aos acertos. Sentiu, também, a

necessidade de além de se autoconhecer, conhecer melhor as pessoas significativas para

ele, tornando-se mais tolerante e aceitando que todos cometem erros. Tornou-se mais

amigo dos pais, passando a lidar melhor com eles, colocando-se em seu lugar,

conseguindo perdoá-los e cobrando menos deles.

André demonstrou um conflito com muitas vozes internas. Durante o

período da adolescência, coexistiam as vozes da criança e do adulto, que brigavam por

espaço. Esta experiência de André ilustra como somos formados por “inúmeras

pequenas narrativas querendo escapulir” (KEARNEY, 2012, p. 413). Aqui percebemos

novamente o self dialógico descrito por Hermans (2004) como:

uma multiplicidade dinâmica de posições do Eu relativamente autônomas,

contextualizadas em uma estrutura espacial onde o Eu é capaz de se mover de

uma posição para outra, de acordo com mudanças na situação e tempo. O Eu

flutua entre posições diferentes e inclusive opostas, e tem a capacidade de imaginativamente dotar cada posição com uma voz, de maneira tal que

relações dialógicas entre as posições, possam ser estabelecidas. As vozes

funcionam como personagens que interagem em uma história. Cada um deles

tem uma história para contar sobre suas próprias experiências a partir de sua

própria posição. Enquanto vozes diferentes, esses personagens trocam

informações sobre seus respectivos Mins, resultando em um complexo self

estruturado narrativamente (tradução nossa) (p. 177, 178)

Dentre as diferentes vozes desse self narrativo, porém, algumas se

expressam com mais força do que outras. A terapia consiste em um processo de

reconstrução do repertório de posições do cliente, fazendo com que ele se torne mais

flexível, ou seja, que o cliente possa mover-se com mais facilidade de uma voz para

outra (HERMANS, 2004). Uma das formas de quebrar a fixidez dos repertórios é

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trazendo à tona vozes que estavam ao fundo, subjugadas por vozes dominantes. André

conta como luta para superar sua voz que diz que ele irá falhar, e também fala da

surpresa ao descobrir novas e estimulantes facetas de si. André surpreendeu-se ao

perceber sua capacidade de se relacionar com as pessoas, pois esta era uma voz

repreendida pela voz da timidez. Ao longo da terapia, a voz do garoto sociável foi

ganhando força.

A terapia contribuiu, então, para uma mudança de autoconteitos, passando

André a perceber comportamentos que antes não tinha. Aceitou a imagem de tímido por

muito tempo, mas hoje já não acha consistente a história de identidade baseada na

introversão. Perceber a mudança de narrativas de self faz com que ele veja suas

experiências como mais reais e apropriadas. Hoje se considera mais humano e mais

sensível aos problemas do outros, além de perceber-se mais sensível a pequenos

acontecimentos, como um pôr-do-sol.

A depressão limitava seu olhar aos problemas. Na terapia passou a ver a

vida como um contexto maior que as dificuldades, entendendo que os problemas sempre

vão existir: quando uns se resolvem, outros aparecerão. Portanto, ter problemas ou não,

não é o que deve determinar a felicidade, e sim a forma como você lida com seus

problemas. Passou a acreditar que os problemas eram derivados de sua percepção das

situações, ou seja, os problemas não existiriam como entidades em si, mas dependem

dos significados que lhes são atribuídos. Como já vimos, Anderson (2011) acredita que

os problemas existem na linguagem, ou seja, na forma como as pessoas criam, na

linguagem, seus problemas:

O problema e o significado que atribuímos a ele não são mais que realidade

socialmente criada, sustentada por um comportamento reciprocamente

coordenado em linguagem. Trata-se de uma entidade, uma pessoa ou uma

coisa, definida em linguagem, em virtude da qual alguém está perturbado, preocupado, queixoso ou alarmado; gostaria de mudar, e pode estar tentando

mudar. Uma definição de problema é uma posição que alguém toma. É um

significado que alguém atribui, uma narrativa que alguém desenvolveu (p.

63).

Ao longo da terapia, André percebeu que o modo de enxergar os problemas

muda quando você os encara, os observa. A maneira de resolver suas dificuldades

passou a ser conhecê-las melhor, e não só observá-las de longe, mas perceber todas suas

facetas. “É sempre bom você ter um olhar multifocal na sua vida. Se você tem vários

ângulos, você consegue ter opiniões diferentes, e consegue lidar com mais

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naturalidade.” Sendo uma narrativa, os problemas também são multifacetados. Foi

explorando de perto os vários lados de seus problemas, que André conseguiu lidar

melhor com eles, e ter uma vida mais saudável. Sua narrativa de superação deixa a

mensagem de que “felicidade não é uma vida perfeita, sem problemas, felicidade é você

conseguir administrar os seus problemas e não deixar que eles toquem a sua esperança.

Apesar dos problemas você saber no que consiste a sua esperança e continuar

caminhando”.

4.4.4 Terapia: um resgate do sentido de reautoria

Na seção “Terapia e Transformação” falamos das mudanças de cada

indivíduo separadamente, já que cada um deles viveu um processo singular, tendo cada

um percebido transformações específicas e significativas de acordo com suas biografias.

Porém, podemos encontrar pontos em comum nos três entrevistados. O estilo das

entrevistas foi marcado por uma apresentação do estado anterior à terapia, seguida de

uma descrição de como foi o processo e das mudanças percebidas. Apesar do processo

de Eduardo ter sido marcado por sua busca por autoconhecimento, enquanto a questão

de Zilma girava em torno da resolução de um luto, e o processo de André comparável a

uma batalha entre vozes opostas, as mudanças ocorridas durante a terapia, de forma

geral, dizem respeito a um processo de fortalecimento da autoria e descoberta de novas

facetas e habilidades:

A mudança caracteriza-se como uma transformação na história do self,

favorecendo narrativas construídas na condição de autoria, expressas na

própria voz, favorecendo a separação das pessoas, em relação aos discursos

subjugadores do self. (GRANDESSO, 2000, p. 258)

Como vemos, a mudança terapêutica está relacionada a uma mudança do

self, que se torna mais livre e criativo para agir e escolher. Segundo a experiência de

Grandesso (2000) sobre a transformação terapêutica, seus clientes “emergiram como

novos selves, resgatada sua condição de autores, protagonistas de suas próprias

existências, mais seguros e confiantes de si mesmos” (GRANDESSO, 2000, p. 378).

Queremos salientar, portanto, a terapia como um processo de fortalecimento

do sentido de reautoria desses indivíduos. Para White e Epston (1993) uma terapia

inspirada em um modo narrativo de pensamento, fomenta o sentido de reautoria de cada

pessoa, ao trabalhar com a narração de sua história. A palavra autoria traz implícita a

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ideia de pessoa como agente autônomo e “a noção do sujeito como autor de suas

próprias ações no mundo, o que em si apresenta uma implicação moral e social.”

(GRANDESSO, 2000, p. 73). Autoria5, então, vem falar de agência pessoal.

Segundo Grandesso (2008), Michael White compreende a agência pessoal

como uma autoregulação de ações responsáveis e autônomas, fundadas na colaboração

social. A agência é o grande ponto que diferencia o modo narrativo de situar a pessoa,

do modo lógico-científico. Este entende que forças internas e externas agem modelando

a pessoa, que é passiva frente a essas forças. O modo narrativo, por sua vez:

sitúa a la persona como protagonista o como participante en su propio

mundo. Es un mundo de actos interpretativos, un mundo en el que volver a

contar una historia es contar una historia nueva, un mundo en el que las

personas participan con sus semejantes en la “re-escritura”, y por tanto en el

moldeado, de sus vidas y relaciones (WHITE; EPSTON, 1993, p. 93).

McLeod (2004), em concordância, acredita que há uma relação entre as

noções da Psicologia Popular, focada na agência pessoal, e a estrutura narrativa. A

agência, formada a partir da narração de histórias, afasta-se da visão moderna de pessoa

guiada por estados internos, e aproxima-se da Psicologia Popular, onde o indivíduo é

visto como tendo propósitos e intenções. Segundo White (2004), a Psicologia Popular:

lança as pessoas como mediadores ativos, negociadores, e como representantes de suas próprias vidas, separados e em união com os outros. É

uma psicologia que foca as pessoas vivendo suas vidas de acordo com certas

intenções e propósitos, na busca do que importa para elas (tradução nossa) (p.

20).

Nesse sentido, expressões como “crenças”, “valores” e “compromissos”

ganham ênfase para falar de estados intencionais, em oposição às noções de “motivos

inconscientes”, “traços de personalidade” e “instintos” que marcam a perspectiva

moderna valorizadora dos estados internos. A partir dessa mudança de perspectiva, a

terapia passa também a ser vista de forma diferente. Goolishian e Anderson (1994)

entendem a terapia como a mudança das autonarrativas do self. Os autores partem da

5 Escolhemos traduzir agency por “autoria”, entendendo que a palavra “autoria” traz implícita a noção do

sujeito como dotado de relativa autonomia para usar os recursos linguísticos socialmente disponíveis,

portanto, podendo fazer escolhas quanto aos repertórios e formas de narrar o que lhes acontece. Assim, o

sujeito pode contar histórias alternativas que lhe posicionam mais favoravelmente, fortalecendo a noção

de si e sua condição de protagonista e narrador de si mesmo, embora ninguém seja propriamente “autor

de si” (RANKIN, 2002).

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premissa de que os seres humanos são criadores de significado e intérpretes de seu

próprio self, sendo toda ação, intencional e situada em um contexto histórico e cultural.

Na linguagem, criar significado implica narrar histórias. Portanto, o self, em

uma perspectiva pós-moderna, pode ser considerado uma expressão dessa capacidade

para a linguagem e a narração. Segundo Goolishian e Anderson (1994), o self como

narrador é visto como resultado da produção de significado por meio da linguagem.

O self é um modo de aprender a caracterizar no discurso a própria capacidade

como agente, como alguém que pode fazer, como ator. O self não é um ator,

uma descrição ou uma representação, mas uma expressão mutável de nossa

narração, uma maneira de contar nossa individualidade (p. 298).

Os teóricos acreditam em uma coautoria narrativa. “Não somos mais que

coautores das identidades que construímos narrativamente” (GOOLISHIAN;

ANDERSON, 1994, p. 300). Nas palavras de Paul Ricoeur, “aprendemos a nos tornar o

narrador e herói da nossa própria história, sem na realidade virarmos o autor de nossas

próprias vidas” (RICOEUR, 1991, p. 32 apud RANKIN, 2002, p. 7). O filósofo acredita

que somos coautores da vida e autores da historia. Diferente de um autor que escreve

uma história de ficção, não temos o controle de tudo em nossa história de vida.

Dividimos a coautoria de nossas vidas com a cultura, que oferece as grandes narrativas

das quais nos utilizamos para construirmos as nossas narrativas individuais; com as

instituições sociais que restringem nossas escolhas pessoais; com os outros indivíduos

com quem nos relacionamos direta ou indiretamente, e que dão à vida um caráter de

imprevisibilidade. Segundo Gonçalves (1998), “não somos mais que a multidão de

personagens que lançamos no mundo da experiência. Essas experiências devolvem-nos

um sentido de autoria, mas não um sentido de identidade” (p. 137). Aqui o teórico

contrapõe-se a ideia de identidade como algo fechado, único e já pronto, preferindo

trabalhar com o conceito de autoria que permite falar de abertura, multiplicidade e

construção. Não somos caracterizados por um só personagem, idêntico a si mesmo,

como o conceito de identidade evoca. Autoria está relacionada à forma como damos

sentido às múltiplas histórias, por vezes contraditórias, que vivemos. O termo remete à

qualidade e ato de autor, que é quem escreve a história. A reautoria, portanto, fala da

capacidade de se recriar, se reescrever, como um artista que tem a si mesmo como

matéria prima. Não somos a unidade de uma identidade, mas a flexibilidade de um

agente que se constrói e age com autonomia.

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Possuir autogenciamento ou um senso dele significa ter a habilidade de

comportar-se, sentir, pensar e escolher de um modo libertador, que abra

novas possibilidades ou simplesmente nos permita enxergar que essas

possibilidades existem. Agenciamento refere-se não apenas a fazer escolhas,

mas a participar da criação de uma expansão das escolhas possíveis. O

conceito de agenciamento pode ser comparado a ter uma voz e ser livre para

usá-la ou não (ANDERSON, 2011, p.191).

Para Anderson (2011), autoagenciamento seria, então, a “percepção pessoal

de competência para ação” (p. 191). Indica intencionalidade, escolha e liberdade para

recriar-se. A terapia se faz importante nesse processo, pois é o ato de contar histórias

que dá expressão à autonomia humana e nos devolve um sentido de agência (ANGUS;

MCLEOD, 2004). São através das narrativas autobiográficas que as pessoas se tornam

“autores” e obtém um senso de autoagenciamento.

Através do ato de articular um ponto de vista específico, incluindo intenções, propósitos e objetivos, em relação a um conjunto de ações e desdobramento

de eventos, a narração de histórias dá expressão à agência humana (tradução

nossa) (ANGUS; MCLEOD, 2004, p. 369).

Sendo a narração essencial na construção do sentido de agência, a terapia

se faz relevante como o ambiente propiciador da construção narrativa, já que “quando

nos é negada a oportunidade de expressar nossa agência, experienciamos sofrimento”

(MURRAY, 2008, p. 115). O sofrimento do cliente está, assim, relacionado a uma perda

de seu senso de agência. Zilma, por exemplo, perdeu a capacidade de agir e viver

normalmente após a morte do filho. André também se viu paralisado e anestesiado em

decorrência de um processo de depressão. Por fim, Eduardo relata que não conseguia

encontrar sentido para as coisas que fazia, demonstrando uma dificuldade em sua

capacidade para ação. Nesse sentido, Duero (2006) explicita o processo de restauração

do sentido de agência que ocorre em terapia, em decorrência da construção de novas

narrativas.

cabe citar una observación de Goolishian y Anderson (1973) quien cree que

durante la terapia el terapeuta y el paciente trabajan fundamentalmente en la

restauración del “sentido de agencia”, a fin de que el segundo llegue a

sentirse mejor capacitado para iniciar acciones competentes. “...La agencia e

intención son funciones de las narrativas que desarrollamos: nuestras

narrativas nos dan un sentido de agencia (...) El cambio en terapia no es la

resolución de problemas sino el restablecimiento del sentido de agencia que

es paralelo al desarrollo de nuevas narrativas y, en consecuencia, nuevas

intenciones que sean consistentes con esa agencia. Si la experiencia

terapéutica es vivida como exitosa, lo que la gente experimenta entonces es una sensación de libertad: ahora puede tomar la acción por sí misma”

(Goolishian y Anderson, 1973: 311) ( p. 146).

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A agência seria uma função das narrativas desenvolvidas na clínica. É

através da construção de novas histórias, que a pessoa sente-se livre para agir, e é essa

sensação de liberdade para a ação que se configura como a transformação terapêutica, e

não o desaparecimento do problema em si. André, por exemplo, ao fortalecer seu

sentido de agência, tornou-se capaz de refletir sobre suas ações e escolhas: “agora com a

terapia isso me leva a refletir sobre o que eu tô fazendo, em que lugar eu tô errando

(pausa) tá me ajudando a caminhar no decorrer da vida.” Além disso, relata um

sentimento de liberdade ao perceber novas facetas de si. Esse sentimento de liberdade é

próprio da agência pessoal:

Quando eu penso em autoagenciamento, penso em duas palavras que os

clientes frequentemente usam para descrever os resultados de uma terapia

bem-sucedida: liberdade (de passados, presentes e futuros aprisionadores) e

esperança (de um futuro diferente.) (ANDERSON, 2011, p. 191).

A possibilidade de poder se libertar dessas construções do passado e,

consequentemente, poder construir novas percepções sobre si, traz para a pessoa em

terapia um senso de agenciamento, de ter certo grau de controle sobre sua vida. A

terapia seria o lugar onde novas potencialidades podem ser trabalhadas, capacitando o

indivíduo a lidar de forma diferente com seus desafios. Na terapia, Zilma desenvolveu

uma maior capacidade de ação e de executar suas escolhas: passou a estudar, sair,

conversar com os colegas da sala, desenvolveu suas habilidades sociais e fez muitos

cursos por indicação da terapeuta. Hoje trabalha com flores e decoração. Isso a ajudou a

ter novas fontes de renda e melhorar as relações pessoais.

O resultado da mudança terapêutica implica, portanto, resgatar ou criar

competências, recursos e habilidades apresentados em narrativas do self transformadas em novas redescrições ou, até mesmo, em novas

autobiografias. (GRANDESSO, 2000, p. 259)

Ao explorar novas habilidades, Zilma passou, então, a desenvolver uma

nova autobiografia, não mais fixada no papel de mãe, mas descobrindo que ela pode

também ser mulher, estudante, amiga, entre outras vozes. “A mudança terapêutica

decorre do estabelecimento de diferenças que possam ampliar as possibilidades

experienciais da pessoa envolvida” (GRANDESSO, 2000, p. 296). Também podemos

ver o desenvolvimento de novas ações na história de Eduardo. O estudante atribui à

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terapia o êxito de ter ingressado na universidade pública, demonstrando que a terapia o

capacitou para tal conquista, fortalecendo seus próprios recursos, já que uma vez o

sentido de agência é restaurado, a pessoa sente-se mais segura e capaz.

Como forma de trabalhar a reescritura de histórias, e a consequente

emergência de um senso de autonomia nas pessoas, White propõe a separação da pessoa

de seu problema, através das conversações externalizadoras:

Cuando las personas se separan de sus relatos, pueden experimentar un

sentimiento de agencia personal; y a medida que se apartan de la

representación de sus relatos, se sienten capaces de intervenir en sus vidas y

en sus relaciones. (WHITE; EPSTON, 1993, p. 33)

Na história de André, vemos um exemplo da agência sendo experimentada a

partir da separação da pessoa de seu problema. As qualidades de André, como a

sensibilidade, eram ofuscadas pela depressão: “Quando você tá numa fase depressiva,

você acaba se vendo assim, com olhos, com uma visão distorcida... só vendo os seus

defeitos, só vendo os seus problemas. Como eu falei, vendo que eu não sou só os meus

problemas, eu tenho muito mais do que isso. Tenho qualidades”. Quando André passou

a ver-se como separado de seus problemas, passou a perceber aspectos positivos de si, e

viu-se capaz de agir diferente. White e Epston (1993) mostram que quando as pessoas

se afastam das narrativas cristalizadas e descobrem outras narrativas possíveis, elas

passam a entender que o modo como viviam não era “seu verdadeiro eu”, nem a única

forma admissível de existência. Essa libertação de antigos padrões traz também uma

liberdade para ação, que posiciona a pessoa como capaz de fazer novas escolhas.

Las prácticas asociadas a la externalización de problemas también: a) liberan

a las personas de las descripciones saturadas de problemas de sus vidas y

relaciones, b) fomentan la generación o resurrección de relatos alternativos y más gratificantes, y c) ayudan a las personas a identificar y desarrollar una

nueva relación con el problema. En este sentido, estas prácticas fomentan una

nueva sensación de agencia personal y, con ella, las personas son capaces de

asumir su responsabilidad en la investigación de nuevas opciones en su vida

y en el seguimiento de nuevas posibilidades. En este proceso, las personas

experimentan una nueva capacidad de intervenir sobre su mundo (WHITE;

EPSTON, 1993, p.78).

A agência, como esta capacidade de intervir sobre o mundo, encontrando

novas possibilidades e sentindo-se capaz e responsável para assumir novas posturas,

surge quando o indivíduo é capaz de olhar de forma diferente para a situação em que se

encontra. Desta forma, a agência parece estar fortemente envolvida com o processo de

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ressignificação que também é propiciado pela construção de narrativas na psicoterapia.

Ao atuar na construção de significado, a narrativa dá voz à agência pessoal, abrindo

espaço para uma negociação de sentidos e versões de si.

Ao falar em agência, estamos falando em diversidade, pois não há uma

identidade dada que deva emergir. White (2004) lembra que existem histórias que

abrem mais possibilidades existenciais que outras, o que não significa que uma seja

mais verdadeira que a outra. Porém, como já foi discutido, a autoria não é um

fenômeno puramente individual. Não é toda narrativa que pode ser criada. As narrativas

precisam ser legitimadas socialmente para que tenham validade e utilidade fora do

setting terapêutico. Para Murray (2008) “o narrador é um agente ativo, que é parte de

um mundo social. Através da narrativa, o agente se engaja com o mundo.” (p. 116). As

narrativas são, portanto, relacionadas e interdependentes. Ninguém pode dizer-se pai,

por exemplo, se não há alguém que se diga filho deste pai, pois a construção de si está

intimamente ligada ao Outro. Na terapia, a reautoria é feita no diálogo com o terapeuta.

Em resumo, a construção de narrativas promove um senso de agência ao dar

ao indivíduo um sentido de autonomia; ao propiciar a revisão das auto-narrativas e abrir

possibilidades de significação que permitam novas escolhas e levem a novas formas de

ação; e ao possibilitar a integração das múltiplas histórias, criando um self narrativo

unificado, porém múltiplo. A construção narrativa dá espaço para o novo e promove a

liberdade de antigos padrões. Sentindo-se livre para agir, o indivíduo está, então, dando

voz à agência. Reautoria, portanto, é a capacidade criativa de ação, aproximando-se da

ideia de um self que é construído a partir das escolhas e intenções do indivíduo, em

coautoria com o mundo, e afastando-se da ideia de um self essencialista que deve ser

desvelado na terapia.

4.5 Narrativa e transformação

A terapia é um processo complexo e multifacetado. Como já discutido

anteriormente, nem todos os efeitos da terapia são méritos da construção de narrativas.

Na seção passada foram apresentadas as transformações percebidas pelos clientes, e

uma discussão do processo de reautoria envolvido na transformação terapêutica. Não

nos interessa julgar quais dessas transformações foram ocasionadas pelo ato de narrar.

Acreditamos que a narrativa perpassa o processo de transformação como um todo,

contribuindo, juntamente com outros fatores, para a mudança pessoal.

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Tanta coisa acontecendo no intervalo intersessões que seria definitivamente

impossível chegarmos a qualquer conclusão sobre o que possibilitou que uma

terapia funcionasse. Portanto, a conversação, enquanto disparadora de processos reflexivos, torna os limites de espaço e tempo do contexto

terapêutico indefinidos (GRANDESSO, 2000, p, 381).

Por fim, para finalizar este estudo, após compreender como a cultura está

envolvida na construção de histórias pessoais, como o cliente significa a terapia,

entende sua mudança e o papel do terapeuta neste processo, analisaremos os momentos

em que o cliente fala especificamente do papel da narrativa em sua transformação

pessoal, tratando de mais dois processos, além da reautoria anteriormente discutida, que

estão em jogo na terapia e contribuem para a transformação do cliente: a ressignificação

e a reorganização da experiência.

4.5.1 Eduardo: a narrativa como descoberta

O reconhecimento do papel da narrativa na terapia é bastante evidente em

Eduardo, que é estudante de Letras e faz vários paralelos entre a terapia, a literatura e a

mitologia, áreas onde a narrativa é o grande foco. Para Eduardo, na terapia a pessoa é

alcançada através de seu discurso, ou seja, é apenas por meio da narração que o cliente

pode perceber suas verdades. Na terapia, Eduardo textualiza suas buscas e narra para si

mesmo, fazendo suas próprias descobertas, com a ajuda dos apontamentos do terapeuta.

Para o entrevistado, se suas verdades fossem ditas por outra pessoa não teriam o mesmo

efeito. É no ato de narrar que suas verdades vêm à tona: “na análise, não é o Ricardo

(terapeuta) quem me diz, eu vou percebendo. Eu vou percebendo através de que?

Através da minha fala.” Eduardo faz também uma relação entre narrar e aceitar,

comparando a mitologia grega com suas histórias contadas na clínica: “porque você vai

contando, na mitologia os mitos são contados né, e de tanto serem contados eles são

aceitos”. Seria então nesse processo de contar inúmeras vezes que fragmentos rejeitados

das histórias de vida vão sendo aceitos, e também modificados a cada nova versão.

4.5.2 Zilma: a narrativa como libertação

Para Zilma, narrar a deixa menos sufocada e mais leve. Ela faz uma relação

entre falar e se esvaziar, como se a narrativa trouxesse para fora o que estava preso em

seu interior. “Eu tive que falar tudo, cada momento que eu vivi com ele. Tudo. Onde

mais me doía, eu falava. E aquilo ia saindo aos poucos.” O que ia saindo era o que

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nunca havia sido dito após a morte do filho, e ao contar tudo, Zilma ia construindo um

sentido para sua experiência. Ela enfatiza que tenta falar tudo, sem deixar escapar nada.

Esta fala, porém, deve ser sempre autêntica para que haja uma transformação de fato.

Zilma atribui sua melhora na terapia à legitimidade, veracidade e profundidade de sua

narrativa, não sendo, portanto, qualquer narrativa potencialmente terapêutica:

Então eu falo pra ela aquilo que vem no meu coração. Eu nunca falei assim,

nem pra minha melhor amiga aquilo que vem do meu coração, da minha alma. E aqui eu falo. É assim. É por isso que eu acho que eu tou melhor. Por

que eu não invento, é o que sai mesmo de verdade (Zilma).

Houve, particularmente, uma construção narrativa que foi

consideravelmente importante no processo de Zilma. Sua terapeuta pediu para que ela

escrevesse uma carta para o filho. O título da carta é “Saudades e felicidade”, e nela

Zilma conversa com o filho e o chama de todos os apelidos carinhosos que ela

costumava usar, estabelecendo um verdadeiro diálogo com ele. Começa a carta

expressando que não estava preparada para perdê-lo, por isso não conseguiu se despedir

dele, pois sempre acreditou em sua melhora. Diz que tentou se fazer presente enquanto

ele estava na UTI e pede perdão por não ter lhe beijado e cheirado como sempre fazia.

Depois conta para o filho como ficou após sua partida. Diz que ficou paralisada por três

anos, mas que hoje está se curando em um lugar especial: a terapia. Zilma finaliza a

carta demonstrando uma ressignificação do filho em sua vida:

Mesmo com toda essa transformação em nossas vidas, sei que nunca ficamos

separados e isso que me fortalece a cada dia. Hoje busco conhecer, encontrar

algo novo, para que eu possa continuar vivendo e lembrando o quanto você

foi e é essa pessoa, e é e será para mim. Mesmo com essa forma de viver sem

nós dois, eu sinto algo transformador, que o amor que eu sentia por você não

acabou e nem passou. Continuo lhe amando do mesmo jeito, só que de forma

diferente. Mais puro, sem preocupação com você, porque sei que você está

no melhor lugar que uma pessoa como você merece. Te amo muito e amarei

por toda a eternidade, meu amor Tadeu.

Zilma relata que quando ela mesma lê a carta, se emociona, mas quando a

terapeuta leu, ela não chorou. Da mesma forma, comenta que achou bonito quando a

pesquisadora leu a carta em voz alta durante a entrevista. Percebemos, assim, que a

presença do outro ajuda a atribuir novos significados. Além disso, este episódio nos

remete ao trabalho de White (2012) com pessoas em luto, as “conversações de

remembrança”. O autor percebeu que “a incorporação da relação perdida parecia um

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objetivo muito mais adequado do que estimular as pessoas a abandoná-la” (WHITE,

2012, p. 151) já que White (2012) entende que as pessoas “haviam perdido uma pessoa

amada, mas também uma parte substancial do próprio senso de self, da própria

identidade” (p. 151). Sendo necessário, portanto, que elas dissessem “olá novamente”

ao invés de “dizer adeus”.

Na terapia, Zilma torna o filho presente ao invés de esquecê-lo. Afirma que

ele foi, é e será especial para ela, não se referindo a ele apenas no passado, pois o amor

por ele continua a existir. Não precisou esquecer o filho, mas aprender a viver com esse

amor de forma diferente e construir uma nova rotina sem ele. Adquiriu a capacidade de

relembrar episódios bons e falar de forma alegre de Tadeu. Passou a sentir felicidade ao

invés de dor ao falar dele.

Além de promover um processo de ressignificação essencial para que Zilma

continuasse o curso de sua vida, o exercício da fala durante a terapia parece ter

facilitado para Zilma a habilidade de partilhar e se relacionar. A participante se

surpreende ao perceber o quanto está à vontade na entrevista, falando livremente.

Aponta que antes da terapia não seria capaz de agir desta forma. Menciona, também,

que hoje fala sobre outros tópicos na terapia, como sobre a vida profissional e a vontade

de encontrar um companheiro. Depois que dissolveu o problema do luto do filho, novos

conteúdos foram surgindo.

4.5.3 André: a narrativa como cura

André iniciou o processo forçado, mas quando começou a narrar sobre ele,

foi percebendo a importância da terapia. Afirma “que é uma coisa muito importante

quando você tem alguém pra contar as suas histórias, pra contar sobre os seus

sentimentos, eu acho isso muito significativo e muito forte”. Para ele, as histórias

precisam ser exteriorizadas, se não forem expressas através de narrativas, serão através

de um sintoma físico. “Quando você tem uma coisa presa dentro de você, é como se

você tivesse segurando uma massa. A massa vai sair entre os dedos, e de algum jeito

essas suas histórias vão sair, em forma de alguma lágrima, em forma de algum

sintoma...” Não narrar o trauma gera um sentimento de sufocação, pois o sentimento

não dito aprisiona. Já a narrativa traz liberdade, gera uma catarse e consequentemente,

propicia a cura.

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André faz uma diferença entre pensar e narrar, e conclui que o pensamento

não gera mudanças. É apenas quando se narra que se consegue uma aproximação da

experiência. Por esse motivo, quando ele tem um problema, falar, mesmo que sozinho,

o ajuda:

Às vezes quando eu tenho algum problema eu acabo indo pro meu quarto e

começo a pensar sobre aquele problema e começo a falar sozinho. Eu vim

descobrir que isso não é loucura, isso é a coisa mais normal do mundo (risos).

Brincadeiras a parte, o que é terapêutico pra mim, é o fato de eu conseguir

falar, falar sobre os meus sentimentos. Isso é terapêutico pra mim, falar sobre

os meus sentimentos.

4.5.4 Terapia: um processo de ressignificação

Uma das grandes funções da narrativa, especificamente importantes no

contexto da terapia, é a de construção de significado, já que organizamos nossa

experiência em narrativas, que passam a ser o que vivemos à medida que é através

dessas histórias que nos contamos para os outros e para nós mesmos. A realidade vivida

é transformada em narrativa por nós, e esta narrativa, por sua vez, transforma o que

vivemos.

En la exposición de la analogía del texto se ha sostenido que el significado se

consigue através de la estructuración de la experiência en relatos, y que la

representación de esos relatos es constitutiva de las vidas y las relaciones.

Como esta narración de la experiência depende del lenguaje, al aceptar esta

premisa estamos también proponiendo la idea de que asignamos significado a

nuestra experiência y constituimos nuestras vidas y relaciones através del

linguaje (WHITE; EPSTON, 1993, p.43).

Acreditamos, portanto, que o significado é dado através da estruturação da

experiência em uma forma narrativa, logo, nossas experiências são determinadas pela

linguagem. A linguagem, no entanto, por seu caráter aberto e indeterminado, não está

presa a um único significado, sendo polissêmica. A capacidade de construir novos

significados para as experiências aparece como uma potencialidade transformadora do

ato de contar histórias, já que não existe um significado verdadeiro que deve ser

captado.

nenhuma história possui interpretação exclusiva. Seus supostos significados

são, a princípio, múltiplos. Não há um procedimento racional para se

determinar se uma determinada “leitura” é necessária como as verdades

lógicas são necessárias, nem um método empírico para se verificar qualquer

leitura particular (BRUNER, 2001, p. 132).

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Desta forma, um mesmo evento pode gerar múltiplas interpretações.

André, por exemplo, demonstra que é a construção de várias narrativas sobre o trauma

que leva à ressignificação:

muitas vezes você vai ter que falar várias vezes sobre isso. Mas a cada vez

que você fala, é como se fosse uma etapa da sua cura. Vamos dizer, na

quinta, sétima vez você fala sobre isso de novo e você consegue ter um novo

olhar quando você fala sobre aquele trauma do passado, você se vê agora,

você já se... amadureceu muito. Você consegue ter um olhar diferente.

O exercício da construção de novas narrativas promove novas versões que

geram novas formas de agir e viver. Sendo assim, há uma íntima relação entre narrativa

e ação: quando o sentido muda, muda também a ação, pois nosso comportamento

depende de nossa interpretação da realidade. Grandesso (2000) adverte que a mudança

na terapia está para além da retórica e do convencimento, mas é uma “construção de um

novo campo de sentido. Novos significados configuram novas realidades linguísticas,

novas narrativas organizadoras e configuradoras de sentido” (GRANDESSO, 2000, p.

201). Grandesso (2000) lembra, também, que Kenneth Gergen:

Considera que os efeitos das narrativas são concretos à medida que uma

história, além de ser uma história, deve ser compreendida como uma ação

situada. Como tal, diferentes mundos com distintas práticas de

relacionamento podem ser criados, mantidos ou extintos por distintas

narrativas (p. 396).

A narrativa é, portanto, uma ação no mundo, sendo capaz de instituir

novas práticas, já que “a rede de significados do indivíduo pode ser reconstruída em

razão do caráter performático da linguagem, matéria-prima do diálogo entre pessoas”

(GRANDESSO, 2000, p. 200). Zilma, por exemplo, teve sua realidade transformada ao

mudar sua forma de perceber a ausência do filho. Além disso, a psicóloga a incentivou a

procurar cursos, treinou suas habilidades sociais, solicitou que ela tentasse conversar

com os colegas de classe para expandir seu círculo de amizades, e dessa forma, foi

construindo com Zilma um novo modo de viver.

Novas possibilidades de ação, como as desenvolvidas por Zilma, surgem a

partir das lacunas que se abrem frente aos questionamentos do terapeuta. Novas

perspectivas passam, então, a se tornar visíveis para o cliente.

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Em uma concepção hermenêutica, o significado sempre está em processo:

nunca se alcança por completo. A história nunca permanece igual, mas se

constitui cada vez em forma diferente, mediante as perguntas que se dirigem

a ele (o cliente)” (GOOLISHIAN; ANDERSON, 1994, p. 304).

Nossos entrevistados mostram que quando o terapeuta faz ligações na

narrativa do cliente, facilita novas compreensões. Segundo Eduardo:

Quando você começa a se autoanalisar, digamos, tem coisas que você não

aceita, e aí é onde entra o Ricardo (terapeuta) né. Por exemplo “você não

disse isso?”, ele vai te mostrando os índices no texto que, ele vai me

mostrando os índices dos meus próprios textos.

As pontuações do terapeuta mostram outras perspectivas da história, abrindo

espaço para a ressignificação. “Nesse processo local e contínuo de perguntas e

respostas, uma compreensão particular se converte em possibilidade – a compreensão e

o significado são abertos e infinitos” (GOOLISHIAN; ANDERSON, 1994, p. 303).

Para Zilma, a presença do terapeuta também aparece como fundamental no

processo de ressignificação. Ela acredita que foi achando as soluções na medida em que

recebia a devolução do que havia dito. Sua história volta para ela com novas

observações e explicações da terapeuta. A entrevistada sente que quando a psicóloga

devolve sua fala, é como se fosse sua segunda voz. A voz da terapeuta, que devolve o

que ela trouxe, lhe dá segurança, mesmo que ela não fale nada totalmente novo. Na

verdade, Zilma reconhece que muito do que a terapeuta devolve é o que ela mesma já

havia dito, mas essa interlocução aparece como essencial na construção de sentido.

Além disso, Zilma conta que quando a psicóloga leu sua carta para o filho, ela percebeu

outros pontos além da dor. A carta lida na voz da psicóloga a fez perceber a forma

carinhosa como trata o filho: “ela leu todinha pra mim ouvir e eu não chorei. Achei

bonito”. Seu depoimento demonstra o quanto a presença do outro é essencial na

atribuição de novos significados. “Foi o meu amor por ele, era tão grande, que eu não

sabia onde colocar. É, e quando eu cheguei aqui eu encontrei, eu tô encontrando o

lugarzinho certo onde eu coloco o amor por ele.” O terapeuta, assim, não precisa de

técnicas que levem o cliente a pensar de outra forma, pois a criação de um ambiente

facilitador do diálogo é o mais importante, já que:

A linguagem e a conversação com o outro e consigo mesmo oferecem a

condição para que novos significados possam ser ancorados em narrativas

organizadoras da experiência e configuradoras de novas autobiografias.

(GRANDESSO, 2000, p.395).

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As autobiografias são construídas, assim, à medida que se tenta dar conta

do vivido, formando uma versão de si mesmo que poderia gerar diversas outras versões

autobiográficas. Desta forma, segundo Grandesso (2000), o self é passível de

reconstrução a partir de novas descrições oriundas de novas formas de compreender e

perceber o vivido.

No caráter de indeterminabilidade das histórias (White, 1991), uma infinita

gama de aspectos da experiência vivida, incluindo eventos, sentimentos, intenções, pensamentos, ações e contextualizações, não é capturada pelas

histórias dominantes. Portanto, sempre há possibilidades para novas

conexões, pela reconstrução fenomenalizadora dos episódios vividos,

transformando-os em novos arranjos temáticos e estilos narrativos. O

resultado desse processo é um afrouxamento das tramas da velha narrativa, e

uma consequente liberação da identidade tecida em suas malhas, bem como a

configuração de outras possibilidades para construção de um novo self, a

partir da narrativa emergente (p. 297-298).

A experiência é maior que a narrativa que tenta dar conta dela. Muito escapa

a essa narrativa, e é isso que possibilita sua reedição, pois novas formas de contar são

possíveis. Grandesso (2000) defende que durante o ato de narrar, o sujeito se distancia

de si como um narrador que fala de um protagonista. Como já observamos em nossas

entrevistas, os clientes frequentemente relatam que na terapia sentem-se narrando para

si mesmo. Desta desapropriação, onde ele fica dentro e distanciado de sua própria

história, há a possibilidade de uma nova compreensão, quando algo se torna “visível”.

White (2004), nesse mesmo sentido, defende que a criação de uma narrativa permite

que a pessoa veja sua história de longe, tendo uma visão geral do todo, e não mais

estando imerso nas partes. Essa visão panorâmica também contribui para que novas

possibilidades de significação sejam abertas. Construir narrativas possibilita às pessoas

uma distância que gera “um engajamento mais significativo e dramático com suas vidas.

É uma distância que abre possibilidades para as pessoas explorarem novas opções de

auto-regulação e habitação de seus próprios corpos” (WHITE, 2004, p. 35).

As novas compreensões não se dão como uma aparição de algo que já

estava lá, ou como uma súbita apropriação de significados ocultos atrás da experiência,

como se esta houvesse sido descoberta. Para que novos significados possam emergir, é

necessário um processo de ligação dos eventos em uma trama narrativa. Significados

não emergem arbitrariamente, é necessário um processo de muitas conexões, que podem

passar despercebidas, tornando-se evidente apenas o resultado: a súbita compreensão de

um novo sentido.

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Por fim, faz-se necessário lembrar que a ressignificação, que se dá no

âmbito das práticas discursivas, também envolve aspectos de dominação e luta. A

terapia é espaço de negociação discursiva que pode produzir novas histórias,

contestando narrativas dominantes e opressoras que posicionam desfavoravelmente

pessoas e grupos. Nesse sentido, a terapia abre caminho para a construção e negociação

de narrativas alternativas (WHITE, 2012), como no caso de André, que aos poucos foi

se desvencilhando de uma descrição de si calcada no diagnóstico da depressão, e passou

a perceber-se como um garoto repleto de qualidades.

4.5.5 Terapia: um processo de reorganização da experiência

Outro processo que acontece através da construção de narrativas é a

geração de “direcionalidade entre os eventos”. Antes de serem integrados em uma

história, os eventos permanecem separados e sem ordem, sendo a narrativa responsável

por organizar a experiência temporal e ordenar a experiência no tempo. “Narrativa é

uma forma de discurso que liga eventos no tempo, podendo mostrar a dimensão

temporal da existência humana e representar a subjetiva experiência do tempo”

(ANGUS; MCLEOD, 2004 p. 368). A reorganização da experiência, portanto, se refere

à capacidade que a construção de histórias tem de “estruturar os eventos de maneira tal

que eles se movam de forma ordenada rumo a um fim determinado” (GERGEN;

GERGEN, 2001, p.164). É a partir de uma sequencia temporal, que as narrativas dão

inteligibilidade às emoções e identidades, estabelecendo sequencias com um sentido de

continuidade. Essa integração das ações no tempo traz consistência aos eventos

(CABRUJA; ÍÑIGUEZ; VÁZQUEZ, 2000).

O termo “reorganização da experiência” pode parecer incongruente com a

proposta pós-moderna da Psicologia Narrativa, por trazer implícita a ideia de que uma

ordem deve ser estabelecida para a experiência. Porém, autores como Crossley (2000)

defendem que não se pode negligenciar o sentido cotidiano de ordem e coerência do

self. Para a autora, é justamente quando essa ordem é rompida, que se percebe o papel

das narrativas na fabricação de nova ordem, coerência e unidade do eu. No caso de

experiências traumáticas, essa ordem rotineira é suspensa e é preciso restabelecê-la por

meio de outras narrativas. Como já vimos, Crossley (2000) justifica a importância da

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narrativa após a ocorrência de eventos traumáticos como uma forma de reestabelecer

certo nível de segurança ontológica e conexão com a vida.

A ação humana seria, então, configurada numa ordem temporal através da

narrativa, permitindo que os eventos da vida se agrupem numa trama unificada, coerente

e significativa. Do mesmo modo, “nossa fenomenologia contemporânea reconhece que

a narratividade é o que marca, organiza e esclarece a experiência temporal; e que todo

processo histórico é reconhecido como tal na medida em que pode ser recontado”

(KEARNEY, 2012, p. 413). A narrativa teria o papel de produzir a experiência humana

do tempo, já que é através da estrutura narrativa de começo, meio e fim (embora não

necessariamente linear), que o tempo enquanto uma sequência de momentos pode ser

expresso. Em resumo, “o tempo torna-se tempo humano na medida em que está

articulado de modo narrativo; em compensação, a narrativa é significativa na medida

em que esboça os traços da experiência temporal” (RICOEUR, 1994, p. 15). Tempo,

narrativa e existência humana estão, assim, intimamente ligados:

Toda existência humana é uma vida em busca de uma narrativa. Isto, não

apenas porque ela se empenha em descobrir um padrão com o qual lidar com

a experiência do caos e da confusão, mas, também, porque cada vida humana

é quase sempre implicitamente uma história. Nossa própria finitude nos constitui enquanto seres que, em resumo, nascem no começo e morrem no

final. E isso dá a nossas vidas uma estrutura temporal que busca algum tipo

de significação em termos de referências ao passado (memória) e ao futuro

(projeção). (KEARNEY, 2012, p. 412)

Na terapia, podemos perceber a função organizadora da construção

narrativa na história de Zilma, por exemplo. A entrevistada relata que a terapia foi

importante para ordenar sua vida, organizar pensamentos e experiências. Sobre suas

sessões, ela comenta: “eu falei pra ela uma coisa, a mesma coisa ela fala só que de

modo diferente e vai me explicando. Aí é como se eu tivesse que encaixar cada coisinha

no seu lugar. Aí eu fico observando ela falando, eu vou tentando encaixar aquelas coisas

no lugar certo”. Em outro trecho da entrevista, Zilma comenta “cada pensamento meu,

quando eu vim pra cá tava com a cabeça enorme, tava tudo misturado, hoje tá tudo indo

pros seus cantinhos, pro seu lugar.” É através do diálogo com a terapeuta que ela vai

“encaixando cada coisa em seu lugar”, ou seja, organizado pensamentos que estavam

bagunçados e dando forma a uma nova rotina. Além disso, o exercício da carta para o

filho, que se aproxima da conversação de remembrança “facilita a atividade de dar

sentido à existência da pessoa e atingir um sentido de coerência por meio do

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“ordenamento” da vida” (WHITE, 2012 p. 154). André, assim como Zilma, usa uma

metáfora de encaixe, referindo-se a terapia como um quebra-cabeça. Em um quebra-

cabeça, as partes separadas não fazem sentido. Da mesma forma, a trama narrativa, não

é um conjunto de eventos independentes, mas depende do sentido que é dado à

sequência significativa desses eventos no tempo. “Uma história é feita de eventos, e o

enredo (mythos) é a mediação entre os eventos e a história (...) a ação de toda pessoa

pode ser lida como parte de uma história em desdobramento” (KEARNEY, 2012, p.

413). O enredo de uma história é o que liga os eventos no tempo, dando inteligibilidade

à experiência e possibilitando que a narrativa seja o princípio organizador da ação

humana, como propõe Sarbin (1986). Em concordância com este pensamento, Crossley

(2000) acredita que:

Tudo que é experienciado pelos seres humanos se faz significativo,

inteligível e interpretado em relação com a primeira dimensão da “atividade”,

que incorpora tanto o “tempo” como a “sequencia”. Para definir e interpretar

“o que” exatamente aconteceu em uma ocasião particular, a sequencia dos

eventos é extremamente importante (tradução nossa) (CROSSLEY, 2000, p.

531).

Para interpretar os eventos é preciso levar em conta além da temporalidade e

sequência, as relações e conexões entre os fatos. A narrativa reúne todas essas

características, e por esse motivo favorece a reorganização da experiência. Contar uma

história, portanto, é colocar os eventos em uma ordem de forma que eles façam sentido

um em relação ao outro, ou seja, conectá-los em uma sequência temporal. Quando

falamos em contar histórias, estamos nos referindo a:

numerar, ordenar os rastros que conservam o que se viu. E é essa

ordenação a que constitui o tempo da história. Mas essa ordenação se

concebe basicamente como cálculo, como prestar contas, como "conferir

as contas" daquilo que ocorreu. (LARROSA, 1994, p. 65)

Desta forma, uma terapia que prioriza o ato de contar histórias, está

consequentemente propiciando uma organização do vivido. White e Epston (1993), por

exemplo, ressaltam a importância dada à dimensão de tempo no trabalho de

reconstrução narrativa feito em terapia. Segundo Grandesso (2008), Michael White se

inspirou nas ideias do antropólogo Gregory Bateson, que considerava uma informação

como consequência da percepção de uma diferença. Uma diferença só é percebida, no

entanto, se distribuirmos os eventos em uma linha temporal. Uma história acontece ao

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longo do tempo, com começo, meio e fim, sendo justamente essa sucessão de eventos

ao longo do tempo, que torna possível a mudança.

(...) la temporalidad es una dimensión crítica en el modo narrativo de

pensamiento, pues en éste los relatos existen en virtud del desarrollo de los

acontecimientos a través del tiempo. Esta secuencia lineal de los eventos en

el tiempo es necesaria para que se pueda dar un relato «con sentido». Las

historias tienen un principio y un final, y entre estos dos puntos transcurre el tiempo. Esta definición transitoria muestra inmediatamente la función

relacional de la trama entre uno o más eventos y la historia. Una narración

está constituida por eventos en la medida en que la trama convierte los

eventos en una historia. La trama, por tanto, nos sitúa en la encrucijada entre

temporalidad y narratividad (Ricoeur, 1980, pág. 171) (WHITE; EPSTON,

1993, p. 92)

Nesta passagem, vemos novamente a importância do enredo (trama) na

ligação sequencial dos eventos para a formação de uma história. Sendo o enredo,

também, a forma do tempo se fazer humano, ao permitir que a história transcorra de um

começo até um final. Diferentes formas de dispor os mesmos eventos geram diferentes

tramas, assim como o estabelecimento de diferentes relações de conexão e causalidade

entre os eventos podem mudar todo o sentido de uma história. Daí decorre que o

processo de ressignificação, discutido anteriormente, está intimamente ligado ao que

estamos aqui chamando de reorganização da experiência. A ressignificação se dá,

também, à medida que a pessoa passa a ordenar sua experiência no tempo, juntando

fragmentos em uma ordem temporal. Não podemos, portanto, falar de organização de

eventos no tempo sem falar de ressignificação, pois os dois processos se atravessam na

transformação terapêutica.

Para Grandesso (2000), a grande mudança que ocorre nos clientes é a

compreensão de que os significados dependem dos contextos, desta forma, seus

comportamentos devem ser flexíveis e não mais estruturados de acordo com uma

maneira rígida de ser. Na terapia, as pessoas:

não só experienciam suas vidas como multi-historiadas, mas claramente

adquirem mais recursos narrativos. É no contexto de ganhar mais recursos

narrativos que as pessoas tornam-se capazes de dar significado a uma gama

de experiências que permaneceriam negligenciadas (WHITE, 2004, p. 34).

Essas experiências negligenciadas são aquelas que não conseguiram ser

integradas na trama narrativa. É preciso que haja uma nova organização da experiência

para que esses eventos ganhem um espaço na história já estruturada. Eduardo, por

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exemplo, acredita que cada pessoa tem suas próprias verdades, e muitas vezes existem

verdades que nós não queremos aceitar. A terapia seria o espaço onde essas verdades

são aceitas através do processo de narração. Gonçalves (1998) comenta sobre integração

e aceitação de partes das historia que anteriormente foram negligenciadas:

Os indivíduos ignoram ou evitam narrativas fundamentais da sua vida porque

são incapazes de dar coerência à sua experiência ou ainda pela dificuldade de integrarem certas experiências na trama narrativa da vida (GONÇALVES,

p.140).

A integração e reorganização desses pedaços que antes não cabiam na trama

narrativa da vida permite um processo de ressignificação, já que “a linguagem é

produtiva, traz ordem e significado às nossas vidas e ao nosso mundo” (ANDERSON,

2011, p.4). Concluímos, portanto, que:

se a subjetividade humana está temporalmente constituída, a consciência de

si estará estruturada no tempo da vida. O sujeito se constitui para si mesmo

em seu próprio transcorrer temporal. Mas o tempo da vida, o tempo que

articula a subjetividade não é apenas um tempo linear e abstrato, uma

sucessão na qual as coisas se sucedem umas depois das outras. O tempo da

consciência de si é a articulação em uma dimensão temporal daquilo que o

indivíduo é para si mesmo. E essa articulação temporal é de natureza

essencialmente narrativa. O tempo se converte em tempo humano ao

organizar-se narrativamente. O eu se constitui temporalmente para si mesmo

na unidade de uma história. Por isso, o tempo no qual se constitui a subjetividade é tempo narrado. É contando histórias, nossas próprias

histórias, o que nos acontece e o sentido que damos ao que nos acontece,

que nos damos a nós próprios uma identidade no tempo (LARROSA, 1994,

p. 66).

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho teve como foco principal a exploração do lugar da narrativa

na psicoterapia. Para isso, entrevistamos três pessoas, que passaram por eventos

traumáticos, sobre suas experiências como clientes da Clínica de Psicologia da UFC. A

abertura da Clínica Escola para a realização desta e de outras pesquisas constitui-se

como uma importante oportunidade de construção de conhecimento e diálogo entre

graduação e pós-graduação, e entre a teoria ensinada na sala de aula e a prática

viabilizada por um espaço como este, onde os estagiários podem, de fato, aprender a

serem psicoterapeutas. Esperamos que esta pesquisa possa ser uma contribuição à

formação do aluno, já que ela surgiu a partir da matéria-prima dos processos

vivenciados pelos próprios estagiários e clientes. Outra contribuição desta pesquisa

refere-se à sistematização de uma ampla pesquisa bibliográfica no tema da relação entre

psicoterapia e narrativa, apresentando, inclusive, uma breve descrição de duas grandes

terapias pós-modernas, o que pode servir como embasamento para os iniciantes na

temática.

O presente estudo constituiu-se, portanto, como uma pesquisa clínica que

aponta não só para a importância da Clínica Escola para a formação profissional dos

alunos, mas também para o valor deste equipamento para o público atendido. Os

entrevistados parecem manter um vínculo afetivo com a Clínica de Psicologia em si, o

que permite que eles continuem seu processo de mudança pessoal, mesmo com a troca

de estagiários a cada dois semestres.

Cada um dos entrevistados mostrou uma perspectiva diferente da terapia.

Podemos, porém, delinear alguns pontos que se repetiram nas entrevistas. A primeira

característica marcante em todos os entrevistados foi o interesse em ajudar, ser útil, e a

satisfação em poder contribuir de alguma forma para o conhecimento na área da

psicoterapia. Os entrevistados demonstraram, também, o efeito inverso: a contribuição

que a entrevista poderia ter para eles. O diálogo com a pesquisadora configurou-se, para

os clientes, como um momento propiciador de reflexões. Para André, por exemplo, a

entrevista foi uma oportunidade de “ter uma visão do processo que eu tou incluído. Às

vezes esse processo vai acontecendo e você não se dá conta. Esse tempo me olhar pra

esse processo, pro que tá acontecendo, o que tá mudando... muita coisa! Bem

interessante”.

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Dada a espontaneidade e abertura dos participantes durante as entrevistas,

notou-se que esta situação de partilha sigilosa acabou por se aproximar um pouco do

que acontece na terapia. Antes de falarem livremente, porém, os entrevistados passaram

por um momento de questionamento sobre o que deveriam falar para atingir as

expectativas da pesquisadora.

Todas as pessoas chegaram à entrevista imaginando que a pesquisadora

gostaria de ouvir algo específico e preocupados em construir o discurso esperado,

considerando que existiam respostas corretas e julgando que teriam apenas um único

conteúdo para partilhar. Ao longo da entrevista, porém, surpreenderam-se com a

naturalidade com que falaram, tendo construído, na relação com a pesquisadora, seus

significados sobre a terapia, ao invés de exposto um conteúdo que já existia a priori e

foi apenas transmitido pela fala.

Outro ponto repetidamente presente nas entrevistas diz respeito ao

preconceito inicial em fazer terapia. A visão da terapia foi, no entanto, mudando na

medida em que os clientes puderam perceber os efeitos benéficos desta prática. Este

processo, porém, é visto como lento e gradual, exigindo paciência e persistência do

cliente. Todos afirmam que para que a terapia fosse bem sucedida, a pessoa deveria

entregar-se ao processo, falando tudo, sem nada barrar. Depois de serem trabalhados os

eventos traumáticos que levaram a pessoa a procurar ajuda, os indivíduos entendem que

há, ou já havia, muito mais para ser refletido nas sessões. É importante notar que o

trauma tanto é um evento desorganizador de narrativas já estruturadas, como também

pode causar o mesmo efeito paralisante ao se constituir como uma narrativa fechada e

inflexível. A solução, portanto, não advém da capacidade do indivíduo de dar sentido ao

trauma. Pois se esse sentido for rígido, o indivíduo continuará em estado de sofrimento.

A saúde psíquica depende muito mais da capacidade do indivíduo de formar narrativas

abertas à ressignificação.

Percebemos, também, as marcas das diferentes abordagens de terapia no

discurso e no processo de transformação de cada cliente. Eduardo, atendido por um

psicanalista, fala de verdades vindas do inconsciente para o consciente. Zilma, atendida

por uma analista do comportamento, valoriza as tarefas e metas que a terapeuta deu para

ela realizar fora do consultório. Por outro lado, André, atendido por uma terapeuta

humanista, valoriza a liberdade que a terapeuta lhe dava de fazer o que quisesse com sua

sessão. Apesar das diferenças e de estarmos cientes de que cada epistemologia de

prática clínica privilegiará determinadas condutas e contribuirá para a construção de

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determinadas realidades, tendo diferentes métodos e visões de homem, percebemos que

a importância da construção de narrativas é uma característica que perpassa todas elas,

corroborando o pressuposto da Psicologia Narrativa de que: nossa vida e todo o

entendimento que temos sobre ela e sobre nós mesmos, se dá no ato de contar histórias.

Há, portanto, algo para além das abordagens. Desta forma, esta pesquisa contribui para

minimizar os embates entre as diferentes correntes de práticas psicoterápicas ao

apresentar um elemento que é comum a todas elas: a construção de narrativas em um

contexto dialógico. Acreditamos, portanto, que:

Contar histórias é, certamente, algo de que participamos (como atores), assim

como algo que fazemos (como agentes). Estamos sujeitos à narrativa assim

como somos sujeitos da narrativa. Somos feitos pelas histórias antes mesmo

de conseguirmos criar nossas próprias histórias. É isso que faz da existência

humana um tecido costurado por histórias ouvidas e contadas. Como

narradores e seguidores de histórias, nascemos no contexto de uma certa

historicidade intersubjetiva, que herdamos juntamente com nossa linguagem,

ancestralidade e nosso código genético (KEARNEY, 2012, p.428).

Estamos imersos nas histórias antes mesmos que sejamos capazes de criar

nossas primeiras narrativas, que serão sempre entrelaçadas por linhas de intriga

dominantes na sociedade, cujas fontes são a memória social, sistemas de crença,

representações sociais e ideologias. As narrativas são, portanto, construções culturais.

Para Gergen e Gergen (2010), um erro comum é pensar que as narrativas são reflexos de

uma realidade existente a priori, para além do discurso. Na epistemologia relativista do

Construcionismo Social, porém, não é necessário postular a existência de uma realidade

independente do modo como a representamos. Qualquer afirmação sobre uma realidade

resulta de construção coletiva, é histórica e culturalmente produzida e vinculada aos

códigos partilhados entre os membros de uma comunidade linguística. Nesse sentido, as

narrativas não espelhariam uma realidade exterior à própria comunicação entre os

falantes (por exemplo, estados internos ou o mundo “lá fora”), mas construiriam versões

de realidade. Uma dessas versões criadas na linguagem é a versão de si mesmo.

É no trato com os textos que estão já aí que se adquire o conjunto

dos procedimentos discursivos com os quais os indivíduos se narram a

si mesmos. O processo pelo qual se ganha e se modifica a autoconsciência

não se parece, então, com um processo de progressivo descobrimento de si,

com um processo em que o verdadeiro eu iria alcançando pouco a pouco

transparência para si mesmo e iria encontrando os meios linguísticos

para expressar-se. A consciência de si própria não é algo que a pessoa

progressivamente descobre e aprende a descrever melhor. E, antes, algo que

se vai fabricando e inventando, algo que se vai construindo e

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reconstruindo em operações de narração e com a narração (LARROSA,

1994, p. 37).

Inventamo-nos, portanto, nas narrativas partilhadas. As pessoas organizam

suas experiências e lhes dão sentido por meio do relato, sendo assim, esses relatos

seriam constitutivos: modelam a vida e as relações das pessoas. Essa capacidade da

narrativa de dar inteligibilidade às experiências e construir significado, além de seu

papel na construção da individualidade, revelam sua potencialidade transformadora,

quando pensada dentro de um contexto seguro e acolhedor como a psicoterapia.

A partir daí, buscamos analisar como os clientes compreendem esta

potencialidade da narrativa, a partir de sua construção de sentido a respeito de vários

aspectos da psicoterapia. O processo terapêutico foi significado, de maneira geral,

como um caminho para o autoconhecimento, onde ao narrar para si mesmo, o cliente se

depara com novas perspectivas. É considerado um espaço de paz e alívio, mesmo que

para isso tenha-se que enfrentar conteúdos dolorosos durante as sessões e também fora

do setting, onde a terapia continua. Além disso, sabe-se que as melhorias são alcançadas

progressivamente, a partir da perseverança do cliente.

Além do compromisso do cliente, os entrevistados reconhecem a

importância do terapeuta em seu processo de mudança. O terapeuta aparece como um

facilitador, cujas palavras têm grande relevância, devolvendo o que foi dito de forma

diferente. Nesse retorno das palavras do cliente, o terapeuta faz ligações entre o cliente e

ele mesmo, fazendo apontamentos no enredo e dando visibilidade a pontos que ainda

não tinham sido observados. Os entrevistados entendem que são responsáveis por sua

mudança, sendo o papel do terapeuta, o de ajudar na busca pelos instrumentos que a

própria pessoa tem para enfrentar seus problemas. O terapeuta proporciona segurança e

um ambiente de sigilo, cuidado e respeito para que o cliente possa construir novas

formas de vida, podendo falar dos conteúdos mais íntimos e partilhar os momentos

difíceis e felizes, sem ser interrompido ou julgado, como frequentemente acontece nas

outras relações sociais.

Essas características da relação terapêutica e da terapia de forma geral

contribuem para a transformação de quem faz terapia. Essas mudanças, do ponto de

vista dos clientes, dizem respeito principalmente a uma alteração em suas narrativas de

self e uma maior liberdade para tomar novas decisões. Os clientes passam a perceber

aspectos de suas vidas sob outra perspectiva, libertam-se de sentimentos sufocadores, e

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por consequência, acabam sanando alguns sintomas psicossomáticos. A terapia também

parece ter um efeito na alteração da forma como os clientes encaram seus problemas,

tornando-se mais ativos e corajosos em sua resolução, relativizando-os. Estas pessoas

passam a encarar seus problemas mediante uma negociação de sentidos que ocorre

através do diálogo entre vozes internas, fazendo emergir vozes silenciadas.

A narrativa aparece então, no espaço psicoterápico, como o meio pelo qual

os conteúdos do cliente podem ser explorados. É, portanto, ao narrar para si, que o

cliente se ouve e faz novas descobertas em sua história de vida, aceita aspectos antes

negligenciados e esvazia-se de sentimentos que permaneceriam sem explicação se não

fossem dotados de sentido. Ao estruturar suas experiências em histórias partilhadas com

os terapeutas, os clientes experimentam uma sensação de liberdade. O exercício da

narrativa foi visto, também, como responsável por uma maior habilidade social em

relacionar-se, já que a vida fora do consultório também é permeada por narrativas e

exige a capacidade das pessoas de se apresentarem e exprimirem suas ideias para que

uma comunicação seja possível.

Acreditamos, ainda, que a terapia, e a narrativa envolvida nesta, são

transformadoras na medida em que promovem processos de ressignificação, reautoria e

reorganização da experiência. Esses foram processos que apareciam constantemente na

maioria das obras estudadas. Portanto, a escolha de se trabalhar com esses temas surgiu

ao longo da pesquisa bibliográfica, onde percebemos que cada autor citava pelo menos

um desses processos. Após perceber essas repetições, sistematizamos o material

encontrado sobre cada processo e percebemos que cada um diz respeito a uma dimensão

que se refere tanto à narrativa quanto à existência humana: significado, agência e tempo,

relacionados, respectivamente, a ressignificação, reautoria e reorganização da

experiência. Concluímos, portanto, que as histórias contadas na terapia possuem

algumas implicações na transformação pessoal ao alterarem dimensões essenciais da

existência humana.

Gergen e Gergen (2010) reconhecem esses efeitos da narrativa na clínica e

apontam que no campo da psicoterapia, um dos movimentos mais recentes da última

década tem focado a transformação narrativa, com interesse nos meios de conversação

que alcançam mudanças terapêuticas. Já que as pessoas entendem suas vidas e seus

problemas através de histórias, é através de um trabalho de recriar histórias (re-story)

que se pode abrir novas trajetórias. O ato de contar histórias é um processo

essencialmente auto organizador, que liga os episódios, servindo de base para a reflexão

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e criação de sentido. A criação de sentido através da narrativa é vista como evidência da

agência do cliente, já que é esta capacidade de recriação que é a fonte de novos

significados (ANGUS; MCLEOD, 2004).

Vemos, portanto, que os três processos citados anteriormente estão

interligados entre si. Angus e Mcleod (2004) veem a agência (reautoria) como fonte de

novos sentidos (ressignificação) na psicoterapia. Essas novas reflexões, por sua vez, se

dão à medida que a pessoa narrativamente liga os episódios com começo, meio e fim,

em uma sequência ao longo do tempo, de acordo com um tema específico

(reorganização da experiência). A transformação pessoal propiciada pela construção de

histórias deve, portanto, ser vista como um acontecimento multifacetado e integrado.

Esta foi uma pesquisa que foi se construindo ao longo de seu processo, ao

invés de ser comparável a uma trilha já formada rumo a um tesouro perdido, mas já

existente. Assim, como a própria narrativa, que se forma no ato e na interação, esta

pesquisa também foi ganhando seu formato ao longo da leitura dos autores de base, das

discussões em grupos de estudo e entrevistas exploratórias. Uma pesquisa nasce a partir

de inquietações que ganham a forma de perguntas de partida e fecha-se quando essas

perguntas conseguem ser parcialmente respondidas, gerando outras. A dificuldade

inicial enfrentada para a realização desta pesquisa referiu-se ao delineamento de seus

objetivos e a clarificação dos mesmos. O projeto de pesquisa passou por uma ampla

revisão onde houve a diminuição da quantidade de perguntas de partida e a busca por

um foco. Após seu alinhamento, o trabalho transcorreu de forma suave, através do

constante diálogo entre teoria e entrevistas analisadas.

Diante das conclusões apresentadas e das contribuições desta pesquisa,

percebemos também seus limites e seus possíveis desdobramentos. Faz-se necessário

um trabalho conceitual mais profundo onde termos como “linguagem”, “narrativa”,

“discurso”, “significado”, “sentido” possam ser explicitados e diferenciados. Este

trabalho abre, também, espaço para a exploração, por exemplo, da dimensão pré-

linguística do encontro da qual trata Shotter (2010). O autor acredita que a criação de

sentido e compreensão começam na interação social e são influenciados pelo contexto

no qual acontecem. Shotter (2010) afasta-se do Construcionismo Social ao dar ênfase a

nossa espontaneidade e capacidade de resposta corporal. Postula que nos encontros

entre coisas vivas há a criação de algo novo, que tem a estrutura de quiasmas.

As ideias de Shotter (2010), portanto, podem nos ajudar a dar novos passos

na teorização acerca das consequências do encontro terapêutico. Até aqui, o que este

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trabalho nos permite concluir é que a relação terapeuta-cliente é provavelmente o ponto

mais importante da terapia. A transformação vem da abertura para a diferença, para o

diálogo com o terapeuta, que faz perguntas capazes de abrir espaço para o novo. O

terapeuta, em seu papel de coautor, faz uma renarrativa, que é constitutiva da pessoa,

quebrando antigos padrões. A relação, portanto, precede a narrativa, pois não existiria

construção de narrativa sem um interlocutor e audiência. Assim, a importância da

relação dialógica, sem dúvida, mereceria um trabalho exclusivo.

Finalmente, faz-se importante notar, também, que todos os processos

mencionados se iniciam com o prefixo “re” (ressignificação, reautoria, reorganização),

que nos remete a repetição e circularidade, mostrando que essas ações devem ser

constantemente realizadas na terapia e na vida em geral, que precisa ser criada e contada

sempre. Assim como nos adverte Kearney (2012), “a vida recontada abre perspectivas

inacessíveis à percepção ordinária” (p. 414). A narrativa, portanto, nos apresenta novos

olhares para o que parecia natural, nos distanciando, assim, de formas de viver

estanques e limitantes. As próprias entrevistas se constituíram como uma renarrativa das

experiências vividas na clínica. É nesse sentido que Juliano (1999) entende a terapia

como “a arte de restaurar histórias”:

Elas (as histórias) nos põem em movimento, e uma porção de coisas que julgávamos perdidas, sem nunca mais ter acesso, começam a sair do fundo do

baú. Sonhos, fantasias, delírios... Escrevo para registrá-las, não permitindo

que desapareçam, apagadas pelo tempo. Assim, aproveito e ponho um pouco

de ordem na minha cabeça, abrindo espaço para novas aventuras (p. 15).

Por isso é que continuaremos a dizer “Era uma vez...”, sabendo que já foi, e

que será quantas vezes for preciso!

INÍCIO

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WHITE, M. Folk Psychology and Narrative Practice. In. ANGUS E. Lynne; MCLEOD

John. The Handbook of Narrative and Psychotherapy: Practice, Theory and Research.

Thousand Oaks, Calif.: Sage Publications, 2004.

WHITE, Michael. Mapas da Prática Narrativa. (trad.: Adriano Migliavaca). Porto

Alegre: Pacartes, 2012.

WHITE, M.; EPSTON, D. Medios Narrativos para Fines Terapéuticos. Barcelona:

Paidós, 1993.

Page 128: UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ CENTRO DE … · À incrível dupla João Paulo e James, ... presenças fortes em minha vida e na constituição de quem eu sou hoje, ... Harlene Anderson,

126

APÊNDICE A – QUADRO ANALÍTICO DE EDUARDO

Aspectos

culturais

Significado do

terapeuta no

processo

Significado do

processo

psicoterápico

Transformações

percebidas /

Efeitos da

terapia

Relações entre

narrativa e

transformação

pessoal

- Sente-se

mal ao

perceber

que precisa

de ajuda.

Tanto por

ele, como

pelo

preconceito

social.

-Presença

do discurso

dominante:

quem faz

terapia é

doido.

-

Significado

inicial do

psicólogo:

Superior,

expert.

-

Significado

social da

terapia:

psicólogo

como

adivinho e

superior.

- Percebe

superioridade

não de pessoas,

mas de papéis,

por mais que

haja trocas.

- Terapeuta faz

pontuações.

- Terapeuta faz a

ligação entre o

paciente e ele

mesmo.

-Terapeuta

instiga os

discursos.

- Terapeuta faz

ligações no

enredo para

facilitar a

compreensão da

história.

- Terapeuta

intermedeia o

cliente com ele

mesmo

- Terapeuta faz o

cliente entender e

aceitar certas

histórias, ao

fazer

apontamentos

que o levem a

analisar o que ele

mesmo disse.

-Terapeuta faz o

cliente perceber

-Busca por si

- Narrar para si

mesmo.

- Ouvir as

próprias

histórias

- Esperança de

ser um alívio

para a dor

-Compromisso

com seu

processo

-Entrega

mútua, do

terapeuta e

cliente.

- Processo onde

o cliente

mesmo mostra

a verdade para

si.

- Espaço não

obrigatório.

Requer

disponibilidade,

de acordo com

seu limite.

- Processo onde

o cliente

responde a si

mesmo e não

ao terapeuta.

- Efeito

catártico

- Entrar em

contato com

seus primeiros

eus.

- Trazê-lo do

abstrato para o

concreto

- Percepção do

não abandono

de sua

identidade

infantil

- Entrada na

universidade

pública

-Percepção de

que a infância

ainda é presente

no eu adulto.

- Conhecimento

das próprias

verdades

-Relação entre

narrar e aceitar.

- Textualizar as

buscas. Alcançar a

pessoa através do

discurso.

- Através da

narração, o cliente

percebe suas

verdades, que ditas

por outra pessoa

não teriam o

mesmo efeito.

- Ao narrar e ter os

apontamentos do

terapeuta, a

verdade vem à

tona.

- Quando o

terapeuta faz

ligações na

narrativa do

cliente, promove

novas

compreensões.

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127

o que já estava

ali e que já era

buscado.

- Terapeuta

percebe pontos

antes do cliente,

mas não expõe.

O conduz para o

significado

- Percepção do

terapeuta como

um professor. É

importante, mas

não

insubstituível. O

mais importante

é o papel que ele

ocupa, e não

quem ele é.

- Terapeuta ajuda

a dar respostas

para questões em

aberto.

- Especificidade

do terapeuta:

capacidade de

ouvir e dar um

retorno.

Segurança.

Respeito pela

história.

- O terapeuta o

faz perceber.

Quem resolve a

vida é ele, não o

terapeuta.

Responsabilidade

pela

transformação é

partilhada.

-Terapeuta como

facilitador

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APÊNDICE B – QUADRO ANALÍTICO DE ZILMA

Aspectos

culturais

Significado do

terapeuta no

processo

Significado do

processo

psicoterápico

Transformações

percebidas /

Efeitos da

terapia

Relações entre

narrativa e

transformação

pessoal

-Crença de que

terapia vai

deixá-la

“pronta”

-Achava que

os outros

tinham

preconceito

com ela por ser

mais velha,

mas percebeu

que a não

aceitação

vinha dela

mesma.

- Dá

importância

para o que vem

do interior:

alma, coração.

-

Representação

social de que

quem faz

terapia é doido

- Foi intitulada

de doida por

chorar muito

-Necessidade de

partilhar com

alguém as

vitórias e os

momentos

difíceis.

-Sigilo

-Importância de

falar e ser ouvida

-Terapeuta

explica os

conteúdos que ela

traz

-Terapeuta é o

ponto principal.

-Relação de

confiança e

intimidade

-Diferencial do

terapeuta: não

interrompe; ouve

o sentimento

profundo;

observa e a faz

observar o que

foi dito.

-Neutralidade do

terapeuta: não a

conhece fora da

clínica.

-É mais fácil falar

para uma pessoa

que não tem ideia

pré-concebidas

sobre ela

-Primeira

impressão da

terapia:

estranho

-Lugar

especial

-Lugar de cura

-Importância

de partilhar

com alguém

os conteúdos

mais

autênticos.

-Lugar de paz

-Espaço de

falar e receber

retornos de

uma pessoa

só.

-Maior

facilidade de

falar na

terapia que em

outros

ambientes

-Receber uma

dose de alívio

para as dores.

- Melhora dos

sintomas físicos

-Alívio

-Melhoras das

habilidades

sociais

-A terapia

acordou os

sentidos que

estavam

anestesiados

-Maior

capacidade para

ação.

-Vitalidade.

-Coragem

-Força

-Incentivo

-Capacidade de

executar suas

escolhas:

estudar, sair,

conversar.

- Chora menos

ao falar do

filho, tem

maior controle.

-Organização

-Narrar a deixa

menos

sufocada.

-A história

volta pra ela

com novas

observações da

terapeuta

-Narrar traz

leveza

-Falar de si na

terapia

melhorou sua

habilidade em

partilhar e se

relacionar.

-A fala da

terapeuta é

uma devolução

do que foi dito

de forma

explicada

-Terapeuta

pediu para que

ela escrevesse

uma carta para

o filho.

Quando lê, se

emociona, mas

quando

terapeuta leu,

ela não chorou.

-Através do

exercício da

carta,

presentifica o

filho ao invés

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129

-Psicóloga

apresenta outro

ponto de vista, a

ajuda a organizar

sua rotina,

planejar suas

atividades.

-Terapeuta teve

um papel

pedagógico de

incitar novas

ações, como

incentivar novos

cursos.

-Terapeuta vai

moldando o

cliente

-Terapeuta dá

encaminhamentos

que são seguidos

fora do

consultório.

dos

pensamentos

bagunçados

-Coração

passou de

sufocado para

leve.

-Relaxamento

-Passou a falar

e ouvir

-Terapia a

salvou da

morte, a tirou

do fundo do

poço

-Terapia a

ajudou a dar

sentido para a

vida.

-Terapia a

ajuda a achar

solução,

respostas e a

incentiva.

- determinação

e vontade de

continuar, traz

prazer e alegria,

mas o processo

da terapia é

também

doloroso

- Terapia a

ajudou a

conseguir se

desfazer dos

pertences do

filho

-Ressignificou

a experiência

da morte e o

de esquecê-lo.

-Entendimento

de que não

precisou

esquecer o

filho, mas

aprender a

viver com esse

amor de forma

diferente e

construir uma

nova rotina

sem ele.

-Ao voltar a

narrar os

episódios bons

que teve com o

filho, passou a

lembrar dele de

forma alegre.

-Falar a ajuda a

se esvaziar de

tudo que mais

doía.

-Aos poucos

conseguiu

perceber que

falar dele a

deixava mais

leve

-Passou a

sentir

felicidade ao

invés de dor ao

falar do filho

-Quando a

psicóloga

devolve sua

fala, é como se

fosse sua

segunda voz.

-A voz do

terapeuta, que

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130

amor pelo filho.

-Atribui a

mudança à

forma como a

psicóloga fala,

ao lugar, ao

jeito como é

atendida, ao

carinho,

atenção,

explicação.

-Terapia como

organização.

-Fez muitos

cursos por

indicação da

terapeuta.

-Reaprendeu a

se relacionar

com as pessoas

-Superou o

medo e a

vergonha

devolve o que

ela trouxe, lhe

dá segurança.

-Quando a

psicóloga leu a

carta, ela

percebeu a

forma

carinhosa

como trata o

filho.

-

Transformação

vem da

autenticidade

do que ela fala.

-Depois que

dissolveu o

problema do

luto do filho,

novos

conteúdos

foram

surgindo.

-Narrar ajuda a

organizar

pensamentos.

-Conversa

tudo, tenta não

deixar passar

nada.

-Consegue

pensar e agir

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APÊNDICE C – QUADRO ANALÍTICO DE ANDRÉ

Aspectos

culturais

Significado do

terapeuta no

processo

Significado do

processo

psicoterápico

Transformações

percebidas /

Efeitos da terapia

Relações entre

narrativa e

transformação

pessoal

-Nunca havia

pensado em

fazer terapia

antes, pois a

imaginava de

outra forma.

-Percebe a

diferença da

relação

terapêutica para

os outros

relacionamentos

humanos.

O terapeuta

conhece muito

do cliente, mas

o cliente não

conhece o

terapeuta.

-Deseja

alcançar muitos

objetivos

-Perceber que

outras pessoas

têm os mesmos

problemas dele,

o fez ver-se

como separado

do problema.

-Saber que

existem pessoas

com problemas

piores que o

dele, o faz

diminuir o

tamanho de seu

problema.

-Reconhece

que o

psicólogo

ocupa o papel

de um

profissional,

mas por ele ser

uma pessoa, o

cliente

consegue

contar suas

histórias.

-Acha

louvável o

tempo que o

terapeuta

dispõe para o

cliente

-Terapeuta o

faz sentir mais

seguro para

enfrentar seus

medos

-Terapeuta

divide os

problemas e as

histórias com

o cliente

-Quando o

cliente está

confuso, ele

não dá a

resposta, mas

ajuda o cliente

a descobrir a

forma de

chegar à

solução.

-Rota,

caminho para

um lugar bom

-Processo

gradual e

contínuo,

onde o

progresso é

imperceptível

a curto prazo.

-Processo que

demanda

perseverança

do cliente para

alcançar bons

resultados

-A terapia

depende da

vontade da

pessoa de ser

ajudada

-Na terapia, o

cliente se

ouve falando

-Processo

onde o cliente

contar as

preocupações

e sonhos para

o terapeuta e

para ele

mesmo

-Conseguir

falar sobre os

seus

sentimentos,

-

Autoconhecimento

-Superação de

problemas,

traumas, medos

-Descoberta de sua

capacidade de se

relacionar com as

pessoas

-Reflexão sobre

suas ações e

escolhas

-Melhora da

depressão

-Mudança de

percepção sobre a

vida

-Tornou-se mais

humano, mais

sensível aos

problemas dos

outros.

-

Autoconhecimento

-Percepção de que

os problemas

sempre vão existir.

Quando uns se

resolvem, outros

vão aparecer.

-Compreensão de

que ter problemas

ou não, não é o

-Quando

começou a

narrar sobre

ele, foi

percebendo a

importância da

terapia

-Considera

importante e

significativo

ter alguém para

contar suas

histórias e

sentimentos

-Narrar gera

catarse

-As histórias

precisam ser

exteriorizadas,

se não forem

através de

narrativas, será

através de um

sintoma físico.

-Diferença

entre pensar e

narrar. O

pensamento

não gera

mudanças.

-Não narrar o

trauma gera

um sentimento

de sufocação.

-Narrar gera

cura.

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-Ajuda o

cliente a

chegar à

solução

através de seus

próprios

instrumentos e

potencialidade.

-Figura

fundamental

para ajudá-lo a

montar o

quebra-cabeça

-

Especificidade

do terapeuta:

na terapia o

foco é o

cliente

-Grande

credibilidade

dada aos

apontamentos

do terapeuta,

em uma

posição

diferente da

dos amigos.

mesmo que

seja

desconfortável

no momento,

vai trazer um

conforto

adiante.

que determinada a

felicidade, e sim a

forma como você

lida com eles.

-Necessidade de

ter sempre

esperança e

continuar

caminhando

-Percepção de que

problemas eram

derivados de sua

percepção das

situações

-Compreensão de

que a percepção

dos problemas

muda quando você

os encara, os

observa.

-Reconhece que o

isolamento que a

depressão causa é

de certa forma

confortável, mas

não é suficiente,

por isso ele está

em processo de

tentativa de sair da

bolha.

-Vencer sua voz

que diz que ele irá

falhar

-Percepção de que

ele é sensível a

pequenos

acontecimentos

-Percepção de

facetas dele que

ele não conhecia

-Busca por

autoconhecimento

-Construção de

várias

narrativas

sobre o trauma

leva a

ressignificação.

- Falar, mesmo

que sozinho,

ajuda na

resolução de

um problema.

-Narrar traz

liberdade. O

sentimento não

dito aprisiona.

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e por conhecer as

pessoas

significativas para

ele

-Perceber algo

novo em si, o traz

mais liberdade

-Reconhecimento

de que ele não é o

problema

-Conseguir lidar

com seus pais,

tornar-se mais

amigo deles e

colocar-se no

lugar deles.

-Percebeu a

necessidade de

cobrar menos das

pessoas e aceitar

que elas cometem

erros.

-Tornar-se menos

exigente consigo

mesmo

-Ter menos medo

de errar

-Valorizar os erros

como lições para

levar aos acertos.

-Percepção de que

está tendo

comportamentos

que antes não

tinha

-Mudança de

conceitos sobre si

mesmos

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ANEXO A – TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA DE EDUARDO

R: de maneira geral, tu pode me falar como tá sendo tua experiência com a terapia?

E: Nesse processo atual ou desde que eu comecei?

R: como você quiser. Se quiser falar desse ou da terapia de uma forma geral...

E: assim, em relação a terapia né, tudo começou em 2002 assim, já tem um bom tempo

que eu faço, mas como eu te falei tem esses intervalos ne. Então em 2002 eu tive meu

primeiro contato com a abordagem da Gestalt. Lá no espaço Lumen, ali.. perto do

Iguatemi mais ou menos. Foi o meu primeiro contato com a terapia e... assim logo no

primeiro momento já foi catártico, porque assim é complicado você aceitar que vai, que

precisa de uma ajuda né, então quando.. já envolve a questão do preconceito. E aí tu é

doido? Como é que vai ser né? Então o primeiro momento foi digamos que mais ou

menos um ano em que eu relutava, mesmo que de maneira inconsciente com essa

questão de me abrir né pra pra pro outro. E um das das dos fatores que me chamaram

atenção foi que assim, quando eu concebi essa necessidade ne, e que eu aceitei e que eu

procurei por mim mesmo, no momento da triagem eu pensei assim, que a pessoa, a

imagem que eu tinha do psicólogo né. Aquela pessoa completamente dona de si, que ela

tinha um ar de superioridade, tanto físico quanto intelectual. Essa era a imaginação que

eu tinha né, só que quando eu conheci a Joana que foi a minha primeira, a primeira das

primeiras, eu percebi que de cara ela não me passava aquela segurança, ela não assim, o

que eu imaginava né de superioridade em relação ao psicólogo, que era a minha

primeira vez, foi foi surpreendente, porque eu disse, meu irmão, como é que vou vou

contar a minha vida pra uma sujeita dessa que eu nunca vi né. E, no entanto, a cada

sessão eu percebia, eu fui percebendo essa superioridade não da pessoa em relação a

mim, da Joana em relação a mim, mas como se fosse uma troca de professor e aluno, e a

partir... esse foi meu primeiro contato né, e aí ela precisou mudar de cidade e aí eu me

afastei por um tempo, e procurei outra vez por indicação dela, aí foi 2000 e... enfim, não

precisa falar né, aí foi foi foi até que eu cheguei aqui na UFC, que em 2009 eu comecei

a ter sessões com a Karla aqui no prédio antigo, acho que foi mais ou menos seis meses,

ela também teve, ela se formou, aí depois veio a Amanda, agora o Ricardo.

R: e pra ti qual é o significado da terapia?

E: pois é, o significado da terapia né? A princípio eu penso como, inicialmente eu

pensei como uma busca por mim, certo? É... eu comecei meus estudos acadêmicos com

psicologia na UFC, na UFC não, na UNIFOR, aí eu fiz um semes, dois semestres! Aí eu

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não tinha mais grana pra pagar aí eu vim pra cá tentar aqui. Só que aí eu optei pela

letras, tanto pela comodidade como enfim, mas é é foi com a terapia que eu comecei a

entrar em contato com os meus primeiros eus assim. foi foi é como eu costumo

metaforizar, eu metaforizo da seguinte forma: uma situação em que eu me encontro no

abstrato e a terapia me traz pro nível do concreto.

R: o que é tu chama assim desses teus eu? Verdadeiros eu?

E: não, eu não falei verdadeiros eus. Eu falei foi verdadeiros eus?

R: não... tu falou... primeiros! Primeiros eus.

E: meus primeiros eus! Pois é. Com.. o primeiro logo no início né, quando eu comecei a

fazer terapia com a Joana e ela me indicou um livro de um psicólogo americano

chamado Dan Kiley, que ele parece que é uma tese de mestrado dele que se chama a

Síndrome de Peter Pan. E nessa época eu já lia alguns clássicos da literatura e eu fiquei

“meu irmão como é que ela tá mandando eu ler um livro desse, e Peter Pan o primeiro

símbolo que vem é a criança né, é história pra criança. Então foi quando, e eu relutei

muito, quando eu entrei em contato com esse livro e eu comecei a ler, foi que eu percebi

que meu primeiro eu infantil, que eu não tinha ainda... como é que eu posso dizer... eu

não tinha me desgarrado dele. Então foi digamos a primeira catarse que eu tive né, o

primeiro contato com um eu meu.

R: e pra ti agora, como é que tu vê essa coisa de contar histórias? Como é que tu acha

que contar essas histórias sobre você e falar de ti na terapia, como é que tu acha que

isso pode ser de alguma forma terapêutico ou transformador?

E: Pois é.. é... há um semestre, dois semestres atrás eu fiz mitologia greco-romana né, aí

tem muitos elementos da mitologia que a psicanálise se apropria né pra... por exemplo o

Complexo de Édipo né, e por aí vai. Então, tudo isso pra dizer que é.. essa questão do

do do da mitologia grega fez com que eu aceitasse e entendesse mais a questão da

psicanálise, das sessões de psicanálise. Porque você vai contando, na mitologia os mitos

são contados né, e de tanto serem contados eles são aceitos. Então na psicanálise eu vou

contando as minhas histórias pra mim, que aí tem o o o a pessoa do Ricardo né, o

psicanalista, que fica fazendo as pontuações.

R: então tu considera que tu tá contando aquelas histórias pra ti.

E: é, eu tou contando as histórias pra mim, só que ele tá aí fazendo uma ponte entre

mim e mim, assim e tal. Porque eu penso que na hora do do do da sessão, eu não

entendia isso muito bem até conhecer o Ricardo, porque ele foi o primeiro psicanalista

por quem eu fui atendido, e no momento que você tá de costas pra ele, você vai, ele vai

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meio que te facilitando, não facilitando, mas instigando os discursos, e eu começo a

falar e eu tou contando pra mim aquilo, que eu já não sei, eu já não sei quem tá

contando. Certo? Eu tou ouvindo, na verdade. Eu mais ouço do que conto. Por exemplo,

contar eu não lembro muito bem, mas ouvir, eu ouço, então por isso que eu tenho essa

sensação de que eu tou contando a história pra mim. O Ricardo vai fazendo uns, tu sabe

como é né, uns pontos, uns ganchos, e vai fazendo com que o meu discurso seja

entendido por mim. Entendido né, porque ouvido já tá sendo.

R: Tu pode me falar um pouco mais sobre essa função do Ricardo no teu processo? (...)

tu falou que ele vai fazendo ganchos, vai fazendo apontamentos... Pra ti qual é a função

do psicólogo nesse processo de mudança?

E: Pois é, essa é é... a meu ver a função do psicólogo é essa de intermediar o contato do

paciente com ele mesmo. Né, digamos assim quando eu te falei dessa questão de tá

contando histórias pra mim, tem coisas que eu ouço, mas eu não entendo. É como se de

repente, você quando tá lendo um texto verbal ou imagético às vezes a interpretação

desse texto não sai, não é muito clara. E quando o texto é teu... pronto, assim, quando é..

não sei se eu tou sendo claro, mas quando você começa a se autoanalisar, digamos, tem

coisas que você não aceita, e aí é onde entra o Ricardo né. Por exemplo “você não disse

isso?”, ele vai te mostrando os índices no texto que, ele vai me mostrando os índices dos

meus próprios textos.

R: vai te mostrando os índices?

E: é, por exemplo, se eu digo... eu tou meio que intertextualizando com a letras, com a

literatura, então a gente tem os índices literários. Quando você lê um romance aí você

logo vai percebendo que fulano vai trair sicrano...

R: antes que seja dito?

E: é, antes que seja dito a narrativa já vai te dando um norte né. Então é mais ou menos

isso que eu penso que eles fazem.

R: então me corrija se eu tiver te entendendo errado. É como se ele conseguisse ver

antes que você?

E: com certeza. É. Ele capta, ele ele ele como é que eu posso dizer.. ele percebe. Eu

imagino que ele perceba né, nos meus discursos, alguma coisa que eu estou procurando.

Porque no primeiro momento, na triagem, tem aquela pergunta: o que é que você busca?

Por que é que você tá vindo? Onde é que dói? Então nos discursos que que, nos meus

textos, naquilo que eu falo, ele vai percebendo, ele percebe algo, é fato que ele percebe

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algo antes de mim. Só que ele também não me diz, ele vai me conduzindo ao

significado.

R: entendi... legal essa combinação que você faz com a letras.

E: é talvez porque eu estudo literatura comparada, aí tudo que eu leio, tudo que eu

associo, eu faço um... a questão das ciências se comunicando.

R: hunrum. E me diz uma coisa. O que é que te motivou a fazer terapia? O que é que tu

estava buscando lá, o que é que tu procurava? Por que é que tu foi? Como é que tu

achava que aquilo podia te ajudar?

E: pois é. É.. eu. Eu tenho um parente, um primo de segundo grau, enfim, que essa

criatura tem uma grande participação nos meus processos, sabe. E ele certa vez chegou,

da mesma forma como foi ele quem me deu o primeiro livro de literatura pra ler, foi a

pessoa que chegou pra mim e disse “você poderia fazer terapia e tal”, aí eu perguntei

como era que funcionava, aí ele disse assim, mas isso aí não é.. eu confesso que

primeiro o que me chamou atenção foi a aquela questão do diferente. Como deve ser?

Mas até o dia de ele me dizer isso, quando ele me disse “por que é que você não procura

uma terapia?” até eu ir procurar uma psicóloga, acho que levaram uns 5, 6 anos. Né,

mas mas o que me motivou depois dessa apresentação né, foi a questão de de eu

perceber... perceber que alguma coisa doía em mim eu já percebia né. Então é, foi a

vontade de entender. Eu passei por cima do folclore que tem a terapia, porque assim as

imagens que a gente tem de terapia são aquelas imagens da novela, de filme, que fica lá

uma pessoa querendo adivinhar coisas da outra. Geralmente o paciente fica meio que

revoltado com o psicólogo e tal né. E eu não, eu já fui meio que com uma esperança, era

o que eu tinha. Eu não acreditava em Deus, não acreditava em nada, então ah então eu

vou pra alguma coisa que eu veja na hora né. Então logo me foi explicado “olha aqui

você não, aqui nós não temos como fazer um raio x da sua cabeça e tal e tal. Então todas

as suas buscas elas terão que ser textualizadas, você vai ter que falar. Eu só vou poder

conseguir entrar em contato com alguma coisa sua, a partir do seu discurso”. Então

assim, eu meio que procurei.. eu acho que todas as coisas que eu fiz na vida, onde eu

consegui ser mais aplicado foi nas sessões de terapia. E olha que já tem tempo viu.

Primeiramente eu ia, aí com o passar do tempo eu passei a ir e a estar, porque antes eu

achava que era só o fato de ir que ia resolver. A passos lentos eu fui descobrindo e fui,

como é que eu posso dizer, fui é.. percebendo que funcionava mesmo.

R: mas aconteceu alguma coisa especificamente que te fez “não, agora é o momento de

procurar terapia” ou foi algo.. (interrompido)

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E: aconteceu, aconteceu! Na... eu.. Quando eu procurei a primeira vez, meu irmão mais

velho tinha falecido, tava doente e tal. E eu tinha tido um namoro, uma coisa assim, e eu

não conseguia esquecer, então eu ficava, eu sofria, não sabia nem o porquê.. hoje eu

penso que essa paixão da época... o meu irmão... foram os sinais, mas na verdade a

busca não foi exatamente por isso, mas inicialmente foi.

R: foi como.. tu já tinha algo antes? Que tu falou de uma dor... essa dor que tu chama...

(interrompido)

E: essa dor que eu chamo é que na época né.. (interrompido)

R: era esse momento né

E: isso, isso, isso. E essa questão de inexplicação, eu não conseguia encontrar

explicação alguma pra mim, pro que eu queria, pras coisas que eu fazia. As explicações

mais comuns que eu achava era: vai na igreja, vai num sei aonde. Vai na igreja! Era esse

lance da igreja. Isso eu não acreditava então, vou procurar alguma coisa que pode ser

que eu acredite.

R: então tu considera esses dois eventos que aconteceram contigo, bastante dolorosos..

(interrompido)

E: os marcos iniciais.

R: que eles te... tu falou alguma coisa assim, como se eles tivessem sido o que te puxou,

mas tinham outras coisas além disso

E: é. Quando eu digo pra ti que foi essa paixão, esse amor mal resolvido, foi essa perda

familiar-afetiva que me fez ir né. Só que quando se iniciou o processo, eu descobri que

o que doía exatamente não era isso, era também a questão da minha criação, da do meu

pai, da minha infância, foi aí que eu comecei a perceber realmente que o que Freud

falava em relação a o homem adulto ser ainda comandado pela criança que ele foi. Foi

aí que eu passei a consolidar esses significados aí, entendeu. É, esses signos.

R: isso tem a ver com o que tu falou no começo de ir descobrindo os teus eus

primeiros?

E: isso isso isso. Com certeza

R: certo. O que é que tu acha que mudou em ti nesse processo? Quando tu vê..

(interrompido)

E: muita coisa. Muita coisa. Como é mesmo teu nome hein?

R: Rafaella

E: pois é, Rafaella. Muita coisa mesmo, assim. O fato de eu entrar na universidade

pública. (pausa) É.. essa percepção do Peter Pan né, através do livro. (pausa) o Ricardo,

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agora com o Ricardo, eu não sei, pode ser até, como eu dou aula, eu penso que as

mesmas relações que os alunos têm comigo são as mesmas relações que eu tenho com

os psicólogos, assim, que nesse momento eu acho massa, mas depois vem um outro que

eu também acho massa, e assim o Ricardo e Amanda foram, claro e acho que não faz

nem sentido o que eu tou dizendo, mas o Ricardo tá sendo o o (pausa) desvendor de

charadas assim e tal. E eu acho que eu percebi isso com ele e com a... Amanda. Acho

que talvez por eles se aproximarem mais dessa questão do divã sabe.

R: hum, e qual é a diferença pra ti de contar essas tuas histórias, explorar esses teus

textos, como tu chama, pra o Ricardo e pra um amigo, um familiar, qualquer outra

pessoa em outro contexto?

E: eu não consigo com outra pessoa. Eu não consigo abrir a minha vida pra outra pessoa

a não ser que seja um psicólogo assim.

R: mas qual é a diferença que essa relação tem?

E: eu acho que os teus amigos nunca vão te ouvir como... pode ser que o Ricardo, a

Amanda, a Joana ou a outra, pode ser que eles também não estejam dando a menor

atenção pra o que eu estou falando. Eu não descarto essa possibilidade. Só que dentro

das circunstâncias, ele é a pessoa que tá preparado pra ouvir, que vai ouvir né, e que vai

me dar algum retorno. Já os amigos não, eu nunca senti segurança em contar. Tanto é

que as coisas que eu conto pros meus amigos já são na forma de humor assim, eu já

conto frescando e tal sabe, eu nunca tive, eu nunca fui muito dado pra esse questão de

me abrir pra amigos não. Também tem a questão de de da.. porque partindo do

pressuposto de que quando você revela um segredo pra alguém já não é mais segredo, e

esse segredo vai ser repassado, por mais que eles abram esses teus segredos, eu num

vou saber. Até hoje ninguém nunca chegou “olha eu conheço a tua psicóloga e ela falou

que tu falou isso”. Se acontecer, porque eu acho que é comum.. porque assim, uma vez

a Cintia, que foi uma outra terapeuta, ela disse: Eduardo, às vezes você acaba contando,

você acaba comentando alguma coisa que aconteceu na sessão com alguém, só que a

pessoa pra quem você tá contando geralmente não sabe nem quem é a outra pessoa. Né,

então eu acho que tem essa questão aí de num é nem deles guardarem o teu segredo, é

de respeitarem a tua história. Que eu acho que os amigos... (pausa)

R: e o que é que tu chamaria de, o que é que tu considera terapêutico na tua sessão? O

que é que tu acha que é o cerne da questão na terapia?

E: as verdades tuas sendo esfregadas na tua cara, sabe. Eu sempre tive essa relação

assim, nas análises claro que eu sei assim, eu nunca, eu nenhum momento eu digo que a

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responsabilidade do que a Amanda me fez perceber, é dela. É minha também, porque

assim, por mais que eu tenha esse crédito total na análise, eu nunca disse que “ah, é o

Ricardo quem está resolvendo a minha vida, ou o A, B ou C”, sou eu! Mas como eu te

falei, tem essa entrega né, do paciente e do também do psicólogo. E... o que foi que tu

perguntou mesmo?

R: o que é terapêutico pra ti?

E: pronto. São essas verdades nossas sendo esfregadas nas nossas caras e por nós

mesmos, assim. porque a partir do momento, pronto, algo bem recente, o Ricardo nesse

ano né, houve um dia em que eu saí do consultório como se eu tivesse saído do dentista,

e o dentista tivesse esquecido algum pedaço de dente, alguma coisa na minha boca, e

doendo. Durante dois dias eu fiquei sentindo, eu vinha né, involuntariamente vinha

fragmentos da conversa lá, então essa essas eu tenho como sendo as minhas verdades,

me cutucando né, me sei lá. Eu tou percebendo essas verdades. E eu tenho a escolha de

querer afastá-las, e eu escolho não afastá-las, eu fico sentindo e eu volto e eu volto, e eu

fico indo né. Porque primeira coisa, você vai se você quiser, você fica o tempo que você

quiser na sala, então partindo disso você tá indo porque quer né. Então essas verdades

estão aparecendo porque eu também quero né.

R: e o papel do Ricardo nessas verdades seria qual?

E: o de facilitador, como eu te falei agora há pouco, eu não sei se tem a mesma ligação,

o de intermediar, ele intermedeia né.

(pausa)

R: certo. eu acho que era mais ou menos isso... tem mais alguma coisa que te venha,

que tu queira contar?

E: em relação ao que? A essas vivências? Eu acho que basicamente seria isso, Rafaella.

Essa questão das verdades sendo ditas por ti, ou seja, é, em algum momento alguém

pode chegar pra ti e dizer “olha, eu acho isso. Eu acho que você deve fazer isso”. No

caso de um amigo é “ah meu irmão, pare de fumar, pare de fumar maconha, pare de

beber que vai ser melhor pra ti”. Na análise, não é o Ricardo quem me diz, eu vou

percebendo. Eu vou percebendo através de que? Através da minha fala. Mas eu percebo

através da minha fala, como eu te falei, primeiro eu ouço, o Ricardo tem coisas que eu

percebo sem ele mostrar. Como ontem, ontem eu pedi pra sair mais cedo eu ei eu quero

ir embora assim e tal. Porque a medida que eu fui falando, ele me fez uma pergunta, e

nessa resposta eu respondi a mim, e assim essa resposta foi tão pesada pra mim que eu

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disse não, não quero mais hoje, eu quero ir embora. Como diz o Machado de Assis,

você fica ruminando né, essas verdades que são mostradas.

R: tu acha que de alguma forma existe uma verdade? Essas verdades existem a priori?

E: existem as tuas verdades né. Quando eu digo, essas verdades que eu tou falando aqui

são por exemplo, essa questão da Síndrome do Peter Pan, foi uma verdade minha. Por

exemplo... a questão de estar imerso em uma ilusão e por escolha própria, também foi

uma verdade minha.

R: então era algo que já existia? E estava em algum lugar?

E: estava em algum lugar, naquela vibe do inconsciente-consciente né.

Inconscientemente eu percebia, mas a minha consciência não aceitava. E a psicanálise

vai pegando do teu inconsciente e vai jogando na tua cara.

R: então essas verdade já estavam prontas de alguma forma.

E: eu tou confuso agora porque eu tou pensando no conceito de verdade, agora. Mas

digamos... (interrompido)

R: qual teu conceito de verdade, então? Vamo alinhar.

E: pois é, qual meu conceito de verdade. Na verdade que tu encontras... quando tu

encontra... a verdade é minha e a tua. É, é... pois é, as verdades são individuais, eu

penso. Cada um tem a sua. Só que tem verdades tuas que as vezes tu não quer aceitar.

Por exemplo, quando uma mulher apanha todo dia do marido né, e ela e ela, qual é a

verdade? Que ela apanha! Mas aí ela pode aceitar ou não, que seja uma verdade. A

verdade é que esse cara nunca vai te amar né, porque tá te batendo todo dia. Mas ela

acha que não, ela pode achar que não é. A verdade pode ser a esperança de que ela não

vai mais apanhar no outro dia.

R: entendi. Mas pra ti existe essa verdade que de fato ela apanha.

E: é, se eu estivesse a analisando, eu diria assim “ó, a verdade, gata, é que tu tá

apanhando e esse cara não te quer”, só que essa é a minha né, só que a dela não é.

R: então se a dela não é, tu acha que existe uma verdade mais verdadeira que a outra?

E: não, não. Não é que existe uma verdade mais verdadeira que a outra né, digamos que

a minha em relação a ela seja uma possível verdade, pra ela. Mas aí se vai ser verdade

ou não, vai caber a ela.

R: tão filosófica né essa entrevista?

E: né? (risos) eu tou incomodado só porque eu tou sem óculos, ainda bem que a luz tá

meio apagada.

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R: eu acho que é mais ou menos isso. Dos meus questionamentos você conseguiu passar

por todos.

E: que bom. Que bom, Rafaella. Que bom que eu posso ter contribuído.

R: e como foi pra ti falar sobre isso? Essa entrevista, esse momento, como é que foi pra

ti?

E: pois é, eu acho que aconteceu porque eu não criei expectativa. Talvez se eu tivesse

criado expectativa de como seria, eu tivesse ficado envergonhado. De falar ne... e aqui

na Letras tem umas cadeiras que a gente faz que a gente, em relação a entrevistas né,

quando você vai fazer uma pesquisa de campo em relação a alguma variante de língua

né, as pessoas quando vão, quando sabem que vão ser entrevistadas e vai ter um

gravador, elas ficam ocupadas em querer agradar o entrevistador e o gravador, e eu já...

(celular dele toca)

E: eu acho que eu já tou meio saturado, assim meio ficando velho... só um pouquinho

tá?

(atende o celular)

E: sim...

R: mas como foi pra ti esse momento?

E: foi de boa, foi de boa. Eu acho que a terapia me fez, me fez

(breve interrupção quando outro aluno entra na sala avisando que haverá aula lá)

E: pois é, pra mim foi normal, foi natural, falar. Eu acho que a terapia me fez também

aceitar com naturalidade essas essas, eu acho que eu não faria, eu não pararia pra

conversar sobre isso com uma jornalista da TV Diário, ou alguma coisa do tipo assim.

mas como é uma coisa que eu acho que vai, sabe, contribuir. Assim, eu não me forcei a

falar nada.

R: é, você me pareceu muito espontâneo mesmo. Então vamos liberar a sala né.

E: tá massa.

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ANEXO B – TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA DE ZILMA

R: então Zilma, tu tá há quanto tempo com a Marta?

Z: sabe que eu nem sei, já faz um tempinho. Acho que é bem uns seis meses.

R: mas antes tu tava aqui também?

Z: tava, era com a Gabriela.

R: há quanto tempo tu tá aqui na clínica? Tu lembra mais ou menos?

Z: eu só lembro que foi no dia 16 de março do ano passado.

R: certo... tu pode me contar um pouquinho como vem sendo essa tua experiência na

terapia?

Z: do início até agora?

R: é. Como tu quiser.

Z: tá bom. Quando eu vim pra cá, foi porque eu faço cursinho aqui, aí tinha um

professor que ele dá aula de psicologia pra todos os alunos. E eu tava numa fase não

muito boa, que eu perdi meu filho, de 13 anos, teve leucemia, e eu fiquei louca, pirada.

Só que ninguém percebia, só ele né, e o médico que tava me acompanhando na época.

Eu tive um início de AVC, sangrei por todo lugar, até hoje eu ainda tou com problema

no ouvido. Aí eu fiquei horrorosa né, com nódulos de sangue, eu fiquei com uns

nódulos, o pescoço eu não tinha, era tudo igual. Passei um tempinho ser vir ao cursinho.

Depois quando eu retomei, aí o professor falou que se eu quisesse, tava havendo

inscrição aqui, e que ele achava bom que eu viesse. Aí eu gostei né, aí eu falei pro

médico e o médico disse que já ia mandar eu procurar mesmo, porque até hoje eu ainda

faço tratamento com ele em Redenção. Aí eu vim pra cá, fiz a inscrição e a primeira vez

que eu vim eu achei muito esquisito... mas ó, o jeito que eu vim pra cá, eu vim com a

cabeça inchada, um monstro. Eu me sentia sufocada, o coração cheio, de tudo né. Eu

não tinha pra onde respirar. Era como se tivesse uma bomba dentro de mim a ponto de

explodir. Aí quando eu cheguei aqui, eu nunca imaginei de vir pra cá, era muito

estranho. Aí a Gabriela, a gente conversou e ela fez primeiro aquela.. pra poder

começar, a.. não sei como é que a gente chama...

R: uma entrevista?

Z: antes da entrevista. Ela faz tipo assim umas perguntinhas. aí eu respondi e ela disse

que quando eu viesse né, uma vez por semana, aí eu passei a vir. E toda vez que eu

vinha eu chorava bastante porque eu tinha que falar das minhas coisa, aí aquela cabeça

enorme, e eu tava sufocada e eu corava bastante. E toda vez que eu vinha eu recebia

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uma pequena dose, como se eu recebesse uma dose de um remédio que ia aliviando aos

poucos as coisa. Até hoje eu ainda tou recebendo essas dose. Aí, assim, eu gostei muito

de vir pra cá. Porque eu deixei de ter a cabeça enorme, o coração sufocado. Hoje eu tou

aliviada. Hoje eu já consigo falar pras pessoas, eu não conseguia vir pra cá, eu me sentia

assim igual um... do tempo das caverna, era desse jeito (risos) eu não conseguia mais

conversar com ninguém, eu não via, não ouvia, não sentia nada. E aqui não, eu passei a

ouvir, a sentir, a ter vontade de continuar. E... já fiz tanta coisa depois que eu vim pra

cá! Pra mim aqui é um lugar especial. Eu acho que quem quiser se curar, vir pra cá... e

se deixar curar né, porque a gente tem que querer... vai sair daqui.. pronto (risos). Eu tou

faltando só mais um pouquinho pra mim ficar pronta.

R: e tu falando dessa dose que tu recebe... pra ti é uma dose de que?

Z: é uma dose de coragem, de força, de incentivo. Tem semanas que a gente recebe a

dose e não faz um efeito assim... mas aí a gente tem uma outra semana que a gente

recebe a dose, toda vez é a mesma quantidade, mas ela faz um efeito enorme na nossa

vida, a cada dia. Eu acho. Na minha vida ela fez.

R: qual é esse efeito que faz em ti?

Z: assim, eu sinto vontade de fazer tanta coisa! Eu sinto vontade de estudar, de ter muito

amigo, conversar, sair. Tudo isso eu não fazia antes. Eu tinha medo até de olhar pras

pessoas. E hoje eu não tenho mais o medo que eu tinha. Aos pouquinhos foi saindo,

hoje eu tou conseguindo conversar com as pessoas. Até na sala, eu não conversava com

ninguém, do jeito que eu entrava, eu saia. Hoje não, eu entro, é como se eu tivesse

entrando em um ambiente maravilhoso, eu falo com todo mundo. Todo mundo fala

comigo... eu tinha preconceito comigo mesma por eu ser mais velha, eu achava que todo

mundo ficava rindo de mim e não era. Era eu mesma que me via assim. eu não sei nem

o que era que você queria saber, e eu falando falando...

R: não, era isso mesmo! É exatamente sobre a tua experiência! Não tem nada assim,

uma resposta certa, uma resposta errada, é uma conversa sobre como é essa

experiência pra ti.

Z: mas tudo isso que aconteceu comigo foi devido a partida do meu filho, que foi muito

doloroso mesmo, ainda é, que eu.. não tem como falar dele e não chorar, às vezes. Mas

hoje eu falo e eu não choro como antes né, eu já controlo mais. E cada pensamento meu,

quando eu vim pra cá tava com a cabeça enorme, tava tudo misturado, hoje tá tudo indo

pros seus cantinhos, pro seu lugar. E até meu coração, hoje eu não tenho mais o coração

sufocado, ele tá leve.

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R: hunrum, e como era isso pra ti de tá tudo misturado?

Z: é, era tudo assim, misturado assim como uma bomba, que ia explodir e não explodia.

Aí eu sentia dor de cabeça, eu sentia falta de ar, eu sentia tanta coisa... era no corpo

físico que eu sentia, devido a isso. Aí hoje não, eu também tou fazendo o tratamento

com o médico em Redenção, aí eu tomo remédio pra alergia, fiquei com problema de

alergia, eu fiquei com gordura no fígado, não passava de 50kg, hoje eu tou mais gorda

(risos) devido a medicação, tudo isso. Mas tem nada não, pelo meno eu tou melhor. Se é

pro meu bem, eu faço qualquer coisa (risos).

R: e pra ti qual o significado que a terapia tem pra ti, na tua vida?

Z: tem tanta, tem tanta coisa e ao mesmo tempo eu não sei te explicar direito. É muito

bom tá aqui, no dia que eu não venho pra cá eu sinto falta. É, como é que eu digo... aqui

eu relaxo, eu tenho pra quem falar, o que eu falo do meu coração, do meu, o que vem

dentro de mim, não é uma coisa inventada. É uma coisa que vem da alma mesmo assim.

e eu consigo falar, consigo ouvir... antes eu não conseguia nenhum dos dois. Era muito

difícil...

R: tu falou que falta só um pouquinho pra ti...

Z: é, falta ainda só um pouquinho, pra mim ficar boa.

R: e o que é esse pouquinho tu sabe dizer?

Z: não, eu num sei, mas eu sinto que ainda falta um pouquinho. Eu acho que é porque

eu ainda tenho que passar nos meus estudos, ainda preciso mais um pouquinho

conversar com alguém, porque eu ainda tenho que ir no cemitério, que eu ainda não fui,

só falta essa parte. Que aí eu tenho que conversar depois, o que eu senti quando eu

cheguei lá no cemitério. Eu só fui no cemitério, depois que ele (o filho) viajou, só uma

vez. Aí eu ainda tenho que ir outra vez, eu sinto que tenho que ir, e quando eu retornar

eu preciso conversar com alguém. Por isso que eu preciso mais um pouquinho. É isso...

e tem outras coisas... eu quero passar no meu curso, eu quero falar pra alguém... e é tão

bom conversar aqui. Eu não sei porque quando eu chego aqui eu falo falo falo, e nos

outros lugares eu não consigo falar desse jeito (risos).

R: qual a diferença pra ti, de falar pra tua terapeuta e de falar pra outra pessoa?

Z: eu acho que que eu tou falando só pra ela, não tem aquela multidão, não vai falar pra

outras pessoas... eu penso assim. acho que é desse jeito.

R: qual a importância da terapeuta no teu processo de mudança? De tudo isso que

aconteceu, o que tu acha que foi a importância dela nesse processo?

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Z: a importância dela foi muito grande, porque sem ela não da pra gente né.. falar pra

ninguém. Ela “ouce”, ela explica pra gente as coisa que a gente falou, e aí a gente fica

observando o que ela fala, e é muito legal.. que passa uma força pra gente. Eu acho que

ela é o ponto principal depois... sem ela num dá não! E sem o espaço daqui né, que é

muito especial... eu acho! É muito bom... eu não tenho o que dizer.

R: qual a importância pra ti de contar a tua história, tudo que aconteceu, pra ela?

Z: é porque eu fico assim menos sufocada, eu falo pra ela o que eu num falo nem pra

minha mãe. Porque a minha mãe me “ouce” mas num é assim... a gente fala pra mãe,

mas a mãe num “ouce” assim direito como ela. A mãe interrompe, num quer ouvir lá do

coração da gente, o nosso sentimento. E ela não, ela “ouce”, fica ali observando e

depois ela conversa com a gente o que a gente falou e aí a gente vai observando. Eu falo

pra ela e depois ela fala pra mim e eu fico observando o que eu falei pra ela assim. E

aquilo ali vai me ajudando. Eu gosto.

R: como é que tu se sente quando tu conta a tua história?

Z: eu me sinto leve. Bem leve. Antes... Até pra você eu tou falando! Que antes eu acho

que eu não conseguia não.

R: e como é que é pra ti estar participando dessa conversa agora, desse momento

comigo?

Z: é bom! Tomara que lhe ajude em alguma coisa! (risos)

R: tomara que lhe ajude também! (risos)

Z: obrigada! (risos)

R: e o que é que tu acha que mudou em ti antes da terapia e agora depois, durante a

terapia?

Z: tudo. Eu acho que se eu tivesse continuado como antes, acho que eu já tinha viajado

pro outro lado da vida. Porque eu tava no fundo do poço mesmo assim. Como modo

popular de falar assim. Eu num tinha sentido pra nada na vida. Assim, nas duas

primeiras semanas que eu vinha pra cá eu achava que do jeito que eu vinha eu ia ficar,

mas foi a partir da terceira semana que eu fui observando que eu já não tava como antes.

Eu tava menos sufocada, menos com a cabeçona (risos). Eu achava que a minha cabeça

tava cheia de muita coisa e ao mesmo tempo eu num tinha solução pra nada. E aqui

ajuda a gente a achar a solução, resposta, incentiva a gente. A gente tem que deixar...

(não compreensível) ...num é só ela falar falar.

R: e como é que tu foi achando essas soluções?

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Z: foi quando eu passei a observar que eu falava pra ela e ela falava pra mim o que eu

tinha falado, so que ela falava explicando, ajudando, bem lento assim...

R: Tu pode me dar um exemplo?

Z: assim, vou falar de hoje. Que ela pediu pra mim escrever uma carta pro meu filho. A

carta que eu fiz pra ele... se você quiser ler eu deixo! Até o quarto parágrafo eu fiz sem

chorar, mas os outros eu não consegui, eu chorei bastante. Aí foi ela ler. Eu fiz e eu

chorei, ela leu e eu não chorei. Aí foi isso aí.

R: tu fez...

Z: e eu chorei bastante. e ela leu todinha pra mim ouvir e eu não chorei. Achei bonito.

R: tu achou bonito quando ela leu

Z: quando ela leu

R: e quando tu leu?

Z: eu choro.

R: é?

Z: é.

R: então tu prefere que eu leia ou que tu leia?

Z: não! Leia você! (risos) Se eu ler eu choro.

R: tu tá se sentindo a vontade agora pra esse momento?

Z: tou!

R: tudo bem?

Z: tudo!

R: tu escreveu ontem né?

Z: é que eu botei essa data, mas até o quarto parágrafo já faz bem um mês que eu venho

escrevendo.

R: saudades e felicidades. Meu amor, como me despedir de você se eu não estava

preparada para isso e não aceitava? Não acreditava que isso pudesse acontecer com a

gente. Era muito doloroso pensar em te perder. Era quase que não respirar mais.

Porque no meu coração eu tinha certeza. Acreditava, confiava em Deus que você fosse

curado de tudo, mas não dessa forma, viajando para sempre. A minha esperança era

tão grande que você ficasse bom, mas não foi o que aconteceu com os meus

pensamentos e desejos em relação a você, Cherry. Meu amor, durante aquele momento

que você estava na UTI, tentei em várias formas falar sobre nós. Mas não consegui. Só

pude me entregar a Deus através de uma música que você gostava. Me desculpe por

tudo, não pude nem lhe beijar, cheirar, meu coração.

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Z: é que eu chamava ele de meu coraçãozinho. (risos)

R: pois com a sua partida não tive forças para falar ou qualquer outro tipo de assunto.

Me sentia completamente estranha nesse mundo, era como se me faltasse tudo, até o ar.

Fiquei sem chão, sem coragem, não sabia mais pensar. Não via nem ouvia as pessoas

em minha volta. Fiquei assim por muito tempo, quase três anos. E no intervalo desse

tempo, foi acontecendo coisas comigo de bom e de ruim. Mesmo sem forças, havia

momento que eu via as coisas. Como voltei para o cursinho. Fiz curso de línguas

estrangeiras, terminei o curso de computação. Eu só via o que era diferente, o que não

se referia a nós dois. Onde tudo era novo para mim, e que ninguém soubesse de nós e

de ruim, e que fiquei doente da alma, do espírito e do coração. E em seguida do corpo

físico. Mas hoje estou me curando aos poucos de tudo. Tenho um lugar especial onde

recebo pequenas doses de cura a cada semana. E faz com que eu tenha determinação e

vontade de continuar. Me traz prazer e alegria, embora as vezes meu coração doa

porque tenho que falar sobre nós. Mas não é como antes. Hoje me sinto menos

sufocada e consigo falar de nós para as pessoas, não fico chorando muito. Mesmo com

toda essa transformação em nossas vidas, sei que nunca ficamos separados e isso que

me fortalece a cada dia. Hoje busco conhecer, encontrar algo novo, para que eu possa

continuar vivendo e lembrando o quanto você foi e é essa pessoa, e é e será para mim.

Mesmo com essa forma de viver sem nós dois, eu sinto algo transformador, que o amor

que eu sentia por você não acabou e nem passou. Continuo lhe amando do mesmo jeito,

só que de forma diferente. Mais puro, sem preocupação com você, porque sei que você

está no melhor lugar que uma pessoa como você merece. Te amo muito e amarei por

toda a eternidade, meu amor Tadeu.

Z: se eu lesse eu chorava. Agora me deu vontade de chorar (risos)

R: como tu tá se sentindo?

Z: eu tou sentindo leve. E eu achei bonito também você ler. Mas se eu ler, eu choro. Eu

não sei por quê.

R: tu achou bonito?

Z: achei. Assim como a psicóloga leu, eu também achei bonito. Ela e você. Mas se for

eu... ah meu Deus! Eu me derreto toda!

R: eu também fiquei emocionada lendo...

Z: é porque a gente era assim tão amigo! A gente não se tratava como mãe e filho assim.

Agora quando eu tinha que dar um puxãozinho de orelha nele, eu chamava ele pra gente

conversar e eu falava sério e ele entendia. Eu não precisava bater nele, essas coisas. A

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gente era... tudo ele sabia de mim, eu sabia dele. Ele dizia assim “mamãe, eu vou ser

juiz e a senhora vai ser do ministério público” ele dizia. E hoje meu maior sonho é

terminar os meus estudos e fazer direito. E eu vou fazer, eu prometi a ele. Aí ele dizia

assim “mamãe, o meu hobby é ser cozinheiro” mas ele cozinhava! Pense como ele fazia

uma comida deliciosa! Engraçado que eu ensinei a ele e eu não sabia fazer o que ele

fazia... Aí hoje eu tenho tudo dele guardado, até as receita, tudo.

R: e você cozinha?

Z: não! Que eu num sei! (risos) e ele sabia e eu num sabia, meu Deus... Ele era muito

divertido, alegre, espontâneo, todo mundo gostava dele! Ele era o avesso de mim (não

compreensível) totalmente diferente de mim...

R: como tu acha que a terapia te ajudou a transformar esse sentimento de dor pra falar

dele de uma forma sorrindo hoje?

Z: Porque eu tive que falar tudo, cada momento que eu vivi com ele. Tudo. Onde mais

me doía, e falava. E aquilo ia saindo aos poucos. Mas eu só percebia assim quando eu

chegava em casa, ou então dois dias depois, que eu percebia que eu tava leve... Num é

assim naquele momento, num é assim... é aos pouquinhos. E eu consegui doar as coisa

dele, que eu não conseguia mexer em nada dele, do jeito que ele viajou, ficou. Eu só

limpava às vezes, se eu conseguisse. Aí quando eu entrei aqui, com três meses eu

consegui doar as roupas. Eu trazia pra cá pra Gabriela levar né... eu consegui trazer os

brinquedo dele, todas as coisas dele eu entregava pra Gabriela, que era a primeira

psicóloga, e ela ia levando. E foi assim que eu fui me esvaziando aos poucos, até chegar

ao que eu tou chegando, que eu ainda não cheguei no final!

R: e onde é esse final?

Z: o final é quando eu chegar nos meus estudos que eu terminar. Embora que se eu

passar esse ano no enem, já é final, que eu já vou entrar! E se eu não conseguir, eu vou

tentar até eu entrar! Mesmo que eu saia daqui eu vou tentar, eu não vou desistir.

R: como é que tu se sente quando tu conta essas histórias sobre ele?

Z: hoje eu sinto felicidade, mas antes eu sentia a maior dor no coração, na alma. Eu

falo.. se eu fosse falar pra você eu falaria de pedaço em pedaço. Hoje eu falo. Tá certo

que ainda sai uma coisa meio apertadinha, mas não é como antes.

R: como era antes de pedaço em pedaço?

Z: Eu acho que até pra falar o nome dele, como eu disse pra você, eu tinha que dar uma

parada. Todo tempo, era a lágrima vinha antes de tudo. E eu ficava assim, não

conseguia falar. E agora eu tou conseguindo (risos) graças a Deus. Aqui é muito bom.

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R: aqui que tu diz é o que?

Z: aqui eu sinto um lugar de paz, aqui pra mim traz muita paz. Aqui eu posso falar até...

Eu tou conseguindo falar pra você!

R: aqui que tu fala é a clínica de psicologia?

Z: é. Aqui eu gosto... tem dia que eu num venho... eu faltei só duas vezes! Uma porque

eu tava doente e outra porque foi o dia do jogo né, aí num teve...

R: ah teve o jogo!

Z: Num sei se eu falei o que você queria, mas...

R: ah você falou tanta coisa... Não tem nada assim específico que eu queria. É mais

isso mesmo... dividir contigo como é que tá sendo essa tua experiência. Não tem coisas

certas e erradas, nem se preocupe.

Z: mas era mais ou menos assim que você queria? (risos)

R: não, eu não pensei em algo que eu queria ouvir.

Z: ah tá certo. Graças a Deus! Porque eu fiquei com tanto medo, eu fiquei “meu Deus,

que que eu vou dizer pra essa menina?” (risos)

R: tu achava que tinha alguma coisa que eu quisesse ouvir?

Z: era. Mas eu não tenho muita coisa pra falar, eu só tenho isso.

R: é, eu também mais muito pra te perguntar, é mais saber como você se sente...

Z: eu...

R: o que é que tu acha... tu ia falar alguma coisa?

Z: não, que eu me sinto melhor. É só isso que eu ia dizer.

R: e o que é que tu acha que, pra ti, é terapêutico na tua sessão? Que tu acha que faz

com que as coisas mudem.

Z: quando a psicóloga fala, pra mim as coisa. Que eu falo pra ela, e ela devolve mesmo

assim só que de forma diferente, bem lento. Aí é como se ela... como eu falei pra você

agora, aí você fala pra mim. Pronto, eu fiz a carta, você leu. Aí você leu e eu... é como

se fosse minha segunda voz. Só que eu ouço e aquela voz me dá segurança.

R: e quando ela leu pra ti... tu percebeu outras coisas que tu não tinha percebido

quando tu escreveu?

Z: percebi. Percebi o jeito que eu escrevi, que eu falei, que eu chamei ele de

coraçãozinho, de cheirinho. O coração, em vez de escrever “coração”, eu coloquei o

coração (desenho). Que eu só chamava ele assim, meu cheirinho, meu amor, meu

coraçãozinho. É, essas coisas né, de mãe. Tudo isso que aconteceu comigo foi por isso,

por nós dois mesmo. Por isso que eu preciso mais um pouquinho daqui.

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R: tem alguma coisa que tu queria me dizer, que eu não tenha te perguntado?

Z: não, mas se você quiser me perguntar mais alguma coisa...

R: tudo bem pra ti?

Z: tudo

R: acho que a gente já conversou sobre todas as minhas curiosidades... é... o que tu

acha que existe na terapia que faz com que você se transforme?

Z: o que existe na terapia....?

R: é. O que acontece na terapia, o que tem de tão especial nesse lugar que tu fala né?

Que é um lugar tão especial... o que é que tem de tão especial ali?

Z: acho que é porque tem alguém pra ouvir e depois falar com a gente. E aí é só nós.

Não tem aquele multidão de pessoas, ou então outras pessoas pra ouvir, e vai ficar

falando, porque o que a gente sente a gente quer falar assim... Quer falar só pra uma

pessoa. Mesmo que a gente tenha a melhor amiga, a gente não consegue falar assim da

alma. E ela não me conhece lá na minha casa, não sabe nada de mim, só sabe o que eu

falo. Então eu falo pra ela aquilo que vem no meu coração. Eu nunca falei assim, nem

pra minha melhor amiga aquilo que vem do meu coração, da minha alma. E aqui eu

falo. É assim. é por isso que eu acho que eu tou melhor. Por que eu não invento, é o que

sai mesmo de verdade.

R: e pra tua melhor amiga, o que é que tu fala?

Z: assim, eu num falo o que eu falo aqui... a gente conversa... ela fala sobre a vida dela,

as coisa que tão acontecendo com ela, esse tipo de assunto né. Aí ela sabe que eu

conheço ela, ela me conhece, mas eu evito, eu evitava falar muito do Tadeuzinho pras

pessoas. Quando eu chegava em algum ambiente que alguém já ia mencionar o nome

dele, eu voltava, eu saía, e aí eu saía chorando e aquilo voltava. E hoje não, quando eu

entro que alguém “ah e você tá bem? Como é que tá em relação ao Tadeuzinho?” eu “tá

bem, graças a Deus!”. Eu consigo entrar. E também eu não conseguia conversar com

ninguém assim, era muito ruim, hoje eu consigo. Eu consegui falar com você! (risos)

R: tu tá surpresa?

Z: tou! É porque eu fiquei imaginando a semana inteira o que eu ia falar! “o que que eu

vou dizer? O que que ela quer saber?”. Eu até perguntei a menina ali, e ela disse assim

“num é nada demais não. Você vai ver, ela é legal, são só umas perguntinhas.” “e se as

perguntinha dela for complicada?” aí ela “é não! Ela me contou” (risos)

R: o que era que tu achava?

Z: eu achava assim que ia ser uma coisa complicada que eu não ia saber responder.

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R: tu pode me dar um exemplo de alguma coisa que tu pensou?

Z: assim eu (não compreensível) como é que eu vou falar pra ela? E eu fiquei

imaginando... mas aí graças a Deus que saiu tudo! E eu nem percebi! Agora que tá

caindo a ficha.

R: então quando tu pensou a semana toda no que tu ia me falar, tu tinha pensando no

que?

Z: eu fiquei pensando se você queria saber em relação ao Tadeuzinho... o que é que eu

ia responder? Porque eu não sabia nem que tipo de pergunta era. Aí eu fiquei assim...

curiosa pra saber o que era! Ah meu Deus... e é tão simples!

R: eu só queria saber da tua experiência.

Z: quem me perguntava antes eu tinha vergonha de dizer que eu vinha pra cá, porque aí

eu imaginava que as pessoas iam pensar que eu tava doida. Eu pensava. E hoje não.

Quem me pergunta eu digo “eu tou lá na clínica da UFC” “e como é que tu se sente?”

eu digo “eu tou me sentindo ótima, se você precisar eu indico você lá”. Antes eu acho

que eu num fazia isso não... e hoje se quiser vir até aqui, eu trago!

R: tu achava que as pessoas iam te chamar de doida por tu tá fazendo terapia

Z: é. Eu cheguei a levar o nome de doida, porque na época eu chorava muito por causa

do meu filho. E acho que é por isso que eu fiquei assim, e procurei aqui, porque eu acho

que eu tava ficando doida mesmo. Mas num era isso, era meu coração. O amor foi o

meu amor por ele era tão grande, que eu não sabia onde colocar. É, e quando eu cheguei

aqui eu encontrei, eu tou encontrando o lugarzinho certo onde eu coloco o amor por ele.

R: onde é esse lugar?

Z: ah é um lugar especial. Um lugar que eu não tenha que tá chorando muito, onde eu

lembre dele com as coisa boa, porque quer dizer, eu não conseguia lembrar nem das

coisas boas que a gente tinha feito junto, eu só lembrava dele no hospital, só a doença,

era só isso a minha visão. Por isso que durante três anos eu fiquei cega, porque eu só via

isso, os últimos momentos que a gente viveu. E hoje não. Eu consigo ver lá de quando

ele nasceu até agora, que nem isso eu via. E aí eu vejo com alegria, é por isso que eu

digo que eu preciso daqui mais um pouquinho, porque eu tenho que terminar de

colocar... lá.. essas coisas... parar mais de chorar.

R: e foi aqui que tu passou a ver isso dessa forma?

Z: foi. Se eu tivesse em casa, como eu falei pra você, acho que eu já tinha viajado como

ele. Não com a mesma doença né, mas de forma diferente.

R: e aqui na clínica, nas tuas sessões, tu fala de outras coisas?

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Z: falo! Eu falo de tudo que aconteceu comigo desde a quinta que eu vim até a quinta de

hoje. Tudo! Se eu esquecer de algum detalhe, quando eu chego em casa eu anoto pra na

próxima semana falar pra ela. E aí é outra coisa que eu dividia com o Tadeuzinho, eu

nunca fiquei com ninguém, nunca namorei, e hoje até aqui me deu uma vontade de

conhecer alguém! (risos) não assim, que eu não tou preparada assim ainda, por isso que

eu também preciso mais um pouquinho daqui, pra eu me preparar mais um pouco.

Quando eu sentir que eu preciso assim né, aí é outra história!

R: já foram surgindo outras coisas também né

Z: por isso que eu digo que aqui tem um remediozinho que eu não sei explicar pra você,

mas é umas pequena dose que eu recebo, eu acho que é a forma que a psicóloga fala, é o

lugar, é o jeito que eu sou atendida, é isso. É tudo, é assim uma coisa especial que tem

carinho, tem atenção, tem explicação, tem aquilo certo no seu devido lugar. É assim que

eu vejo.

R: como é essa explicação?

Z: a explicação é que ela conversa comigo. O que eu conversa com ela, ela explica pra

mim. Eu falei pra ela uma coisa, a mesma coisa ela fala só que de modo diferente e vai

me explicando. Aí é como se eu tivesse que encaixar cada coisinha no seu lugar. Aí eu

fico observando ela falando, eu vou tentando encaixar aquelas coisas no lugar certo.

Não sei se dá pra você entender.

R: me dá um exemplo... de uma explicação

Z: assim. que eu falei pra ela que eu ia fazer a prova do ENEM. Aí ela disse que eu não

tinha que ter só uma opção, eu tinha que ter duas opções. Aí eu gostei, aí ele disse que

eu tinha que fazer outros cursos pra mim não ficar só numa coisa. E também eu não

posso ficar muito cheia dos estudos, tem que ser umas coisas tudo certinho no seu lugar.

Eu tenho que ter o espaço pro curso da noite e o espaço pra outro tipo de curso que eu

for fazer. A hora né, a hora certa que ela quer dizer. É mais ou menos desse jeito, como

se eu tivesse que encaixar uma coisa numa hora, outra em outra hora, pra não ficar tudo

assim... deu mais ou menos pra você entender?

R: entendi. É no sentido de te ajudar a planejar as coisas?

Z: é. Isso. Isso me ajudou muito assim. Acho que durante uns dois meses mais ou

menos ela trabalhou nessa parte comigo, conversando, me explicando, me ensinando, e

isso aí... voltei a fazer coisas que eu nunca fiz. Ó, hoje eu faço flores, que ela indicou

pra eu fazer cursos, mas eu nem precisei porque eu já sabia fazer. Decoro festinha,

decoro igreja. Eu num vou lá e escrevo não. Eu olho o ambiente, estudo na minha

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cabeça e faço. Até isso aqui mudou na minha vida. Eu nunca imaginei que eu ia fazer

isso.

R: e como é que ela te ajudou nesse processo?

Z: é porque ela disse que eu num tinha que ter só o plano A, eu tinha que ter o plano B

também. Caso eu num passe no curso do ENEM, eu ter um outro curso pra eu fazer

outra coisa, num ficar parada, num ficar com a mente assim. Isso é bom pra mim, eu

gosto. Num é assim enchendo meu dia, meu tempo, minhas coisas, mas é ocupando a

minha cabeça.

R: tem mais algum exemplo que tu lembre? De como ela te ajudou?

Z: depois que o Tadeuzinho viajou que eu falei que eu fiz aqueles cursos né, eu já fiz

curso na cultura de francês, já fiz de inglês, também já foi um incentivo daqui. Não foi

por muito tempo, foi aquele de três meses, mas ajudou, e ajudou muito porque na sala

ninguém me conhecia, não sabia nada da minha história e aquilo foi passando, aí

quando eu chegava aqui eu falava, e ela disse que eu tinha que conversar com as

pessoas, meu tinha que me entrosar né. Aí eu não sabia me entrosar mais com as

pessoas, conversar, e eu aprendi isso aos pouquinhos. Eu não sabia chegar e começar

uma conversa, eu não sabia. E agora eu já sei. Eu chego, eu converso e eu consigo.

R: e como é que tu foi aprendendo isso?

Z: é como se fosse moldando a pessoa aqui, ela vai dizendo aos pouquinhos, aquilo vai

entrando aos pouquinhos e quando a gente tá num ambiente alguma coisa, a gente

lembra do que fez naquela sessão ou do que ela falou e a gente vai conseguindo aos

pouquinhos né assim.

R: tu lembra de alguma coisa que ela te disse a esse respeito?

Z: foi em relação a.. porque eu não conseguia me socializar com ninguém, foi isso. Essa

parte pra mim foi um ponto X bem importante mesmo. Eu tinha vergonha de tudo, eu

tinha medo de tudo, hoje eu num tou mais com medo, num tou com vergonha. E isso aí

ela disse que foi uma parte muito difícil assim mas a gente tá conseguindo. Que eu

ainda não consegui assim, eu melhorei muito. Eu digo 98%, falta só mais 2 né.

R: e como é que vocês fazem pra conseguir isso?

Z: é é ela fica conversando. Eu converso tudo que aconteceu comigo desde quinta-feira

até hoje, aí eu converso com ela, falo, aí as vezes tem mais alguma coisa dentro do meu

coração que tá assim, que não tá me deixando bem, aí eu falo pra ela, sem ser só do

Tadeuzinho, que eu num falo só do Tadeuzinho. Eu falo de mim, do que tá no meu

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coração. É assim, eu falo mesmo o que tá lá dentro, que ninguém sabe, só Deus e ela,

que eu tou falando pra ela como eu tou falando pra você.

R: e isso te ajuda a...

Z: ajuda. Melhora bastante. Eu fico leve, eu consigo pensar, eu consigo fazer as coisa. É

muito bom.

R: que bom Z., eu fico feliz de conhecer um pouco mais da tua história, da tua

experiência.

Z: Brigada. Num sei se deu pra ajudar você.

R: ajudou, ajudou. E depois a gente pode, quando a minha pesquisa tiver toda pronta,

que eu entrevistar outras pessoas pra saber também da experiência de terapia delas,

como elas se sentem... cada um se sente de um jeito diferente né. A terapia tem uma

importância diferente pra cada pessoa. Aí a gente pode conversar de novo, pra eu te

dizer.

Z: tá certo, obrigada.

R: tu quer me dizer mais alguma coisa antes da gente encerrar?

Z: só felicidades pra você!

R: obrigada! Pra você também!

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ANEXO C – TRANSCRIÇÃO DA ENTREVISTA DE ANDRÉ

(após ler o termo de consentimento livre e esclarecido)

R: tu tem alguma dúvida?

A: eu tava conversando com a Natália (sua terapeuta), se isso for me fazer refletir sobre

algo na minha vida e me faça sair com.. sei la, me faça ganhar o dia com essa reflexão,

já valeu a pena vir. Eu sempre gosto de ficar pensando sobre mim e me descobrindo. Eu

acho muito interessante.

R: eu acho que pode ser sim uma oportunidade de gerar reflexões. Tem sido nas outras

entrevistas que eu fiz... (pausa) tu pode me falar então um pouquinho sobre como tem

sido tua experiência com a terapia?

A: (pausa) bem... há uns anos atrás eu nunca pensei que eu chegaria a fazer terapia. Eu

cheguei em 2012, vai fazer por volta de, vai fazer mais de um ano e seis meses que eu

tou. Já é a segunda terapeuta que tá passando por mim... como a clínica é universitária,

sempre foi um período. Aí tipo, quando eu cheguei na terapia eu vim praticamente

forçado, eu tava num quadro de depressão, eu tou saindo da depressão.. é, tive que

tomar vários antidepressivos, a minha vinda foi praticamente forçada, passou-se o

tempo, eu tava vindo nas sessões, tava falando sobre mim... é... uma coisa que me

deixou muito, assim meio que, achei um pouco estranho mas acabei me adaptando e

achei que isso seria uma coisa muito boa, foi a abordagem, no caso que você tá tendo,

que é a Abordagem Centrada na Pessoa. Aí eu achei tão legal, tão interessante, é.. tipo..

praticamente você é o centro lá, você fala tudo que você precisa. Dentro de todo esse

tempo de terapia eu consegui me (pausa) conhecer muito mais, superar alguns

problemas que eu tinha, alguns traumas, alguns medos, e... descobri que eu consigo me

relacionar com as pessoas, que antes eu tinha uma... uma timidez tremenda que eu não

conseguia falar. E agora eu acho que eu tou falando até demais (risos). É mais ou menos

isso.

R: e hoje, depois desse percurso que tu já tem, qual o significado que a terapia tem pra

ti?

A: (longa pausa) é como se a terapia fosse uma (pausa) rota que eu visse, um caminho,

pra chegar a algum lugar, pra chegar a algum lugar bom. Porque eu vejo assim, quando

eu não (incompreensível) em todo esse período de terapia eu praticamente dava passos

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na frente, sem mesmo pensar no que eu tava fazendo, e agora com a terapia isso me leva

a refletir sobre o que eu tou fazendo, em que lugar eu tou errando (pausa) tá me

ajudando a caminhar no decorrer da vida.

R: hunrum. E quais as mudanças que tu percebe em ti e na tua vida de forma geral,

antes e depois da terapia? (pausa) Tu já falou uma né? Que foi a timidez, que melhorou

muito depois da terapia. Tu percebe algo mais?

A: e até a luta contra a minha depressão, eu já tou na fase de retirada dos medicamentos.

Depressão é um coisa muito séria, não é uma doença fácil de se lidar. Quando eu tava

naquele momento de depressão eu praticamente achava que minha vida se resumia

naquilo, nos problemas. Hoje eu posso ver que não, que meus problemas são apenas

uma parte da minha vida, e a minha vida é um contexto muito mais amplo que os

problemas. (pausa) eu acho que tá me deixando muito mais humano, tá me deixando

muito mais sensível com os problemas dos outros, os meus problemas, eu tou

conseguindo perceber o comportamento das pessoas (pausa) são coisas bem... às vezes

eu percebo que não são coisas que da noite pro dia acontecem, mas se você começar a

olhar um pouco com esforço, você consegue ver. É um processo assim tão... é como se

fosse o movimento da Terra, você tá acostumado com o movimento da Terra. Você não

percebe que ela tá girando, você acha que ela tá parada, é a mesma coisa das minhas

melhoras, os ganhos que eu tenho com a terapia. Coisas que vão sendo assim gradual.

Uma coisa que eu ouvi na minha primeira sessão: esse processo vai ser lento, vai ser

demorado, mas os resultados vão acontecer. Agora precisa ter muita perseverança com a

terapia... tem que dar várias vezes chance pra você mesmo.

R: e pra ti qual é a importância de contar as tuas histórias nesse contexto?

A: (longa pausa) sabe que é uma coisa muito importante quando você tem alguém pra

contar as suas histórias, pra contar sobre os seus sentimentos, eu acho isso muito

significativo e muito forte. É.. tirando um pouco o lado tipo psicólogo e cliente, apesar

que isso é natural que tem, mas como é uma pessoa, você consegue mostrar seus

problemas, conta suas histórias, isso te dá... qual a palavra que vocês usam...? catarse!

Pois é! Quando você tem uma coisa presa dentro de você, é como se você tivesse

segurando uma massa. A massa vai sair entre os dedos, e de algum jeito essas suas

histórias vão sair, em forma de alguma lágrima, em forma de algum sintoma... mas

quando você consegue ter uma pessoa, quando você tem amigos, falando mais no caso

da terapia... quando você tem um terapeuta pra falar, isso é muito bom.

R: e como é que tu acha que o fato de narrar te ajuda?

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A: teve uma coisa que eu aprendi que foi o seguinte. É muito diferente quando você

pensa em algo e você só pensa, mas outra coisa é quando você fala. Vou dizer, quando

você tem um trauma... você pensa naquele trauma e bem, eu vou superar esse trauma.

Mas quando você fala, você consegue colocar o dedo na ferida. É a única forma de

sarar. Quando você consegue falar sobre o seu trauma, você escuta você ouvindo, se

ouvindo. Isso é uma forma de cura. É uma cura.

R: o que é tu acha que acontece, então, quando você fala sobre o trauma? Conta pra

alguém a história desse trauma, o que aconteceu.

A: o que acontece quando eu falo?

R: é. Qual é.. como é que isso te ajuda? Falar do trauma...

A: quando você quando você fica com aquele trauma preso dentro de você, isso é muito

doentio, acaba te sufocando. E quando você acaba falando, como eu falei, é uma cura, é

uma cura.

R: mas tu consegue falar assim, como é que tu acha que essa cura se dá?

A: essa cura se dá.. (em voz baixa) como eu falei, não é um passe de mágica, muitas

vezes você vai ter que falar várias vezes sobre isso. Mas a cada vez que você fala, é

como se fosse uma etapa da sua cura. Vamos dizer, na quinta, sétima vez você fala

sobre isso de novo e você consegue ter um novo olhar quando você fala sobre aquele

trauma do passado, você se vê agora, você já se... amadureceu muito. Você consegue ter

um olhar diferente.

R: entendi... e pra ti qual a importância de falar as tuas histórias para o terapeuta?

Qual é o lugar do terapeuta nesse teu processo?

A: é legal que durante muitas sessões eu pensei sobre isso também. Qual seria o lugar

do terapeuta. Nessa abordagem eu fiquei, é um pouco engraçado essa questão do

terapeuta sempre... em outros relacionamentos humanos você consegue falar e a outra

pessoa também fala sobre si. Você passa uma hora falando pro terapeuta tudo que você

é e o terapeuta continua sendo um estranho pra você! (risos) isso é muito engraçado pra

mim! Mas esse esse tempo que o terapeuta dá é muito louvável. Como um amigo isso

ajuda bastante. Quando você está acompanhado com uma pessoa ao seu lado você se

sente mais.. mesmo se tenha... sabe, você tá com medo de alguma coisa e tem uma

pessoa ao seu lado, você se sente mais seguro. Mesmo que a outra pessoa não consiga

vencer, vencer sei lá aquele objeto que te traz medo, mas aquele medo vai ser dividido

com ela.

R: então qual o significado que tem pra ti o terapeuta?

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A: como eu falei, dividir os meus problemas, dividir as minhas histórias. E ele vai ser

muito fundamental nessa peça, nesse quebra-cabeça, porque em algum momento ele,

naquele determinado momento que você tá confuso, talvez ele não vai falar “você vai

fazer isso e vai resolver tudo”, mas ele vai te ajudar a descobrir os instrumentais pra

conseguir montar, a chegar na solução. Ele vai te ajudar, ele nunca vai conseguir falar

assim, ele nunca vai te dar a resposta, a solução pronta. Mas ele vai te ajudar a pegar

seus instrumentos, a te ajudar a conseguir chegar nessa cura.

R: e qual a diferença, pra ti, de então de contar isso pra ele e pra uma outra pessoa?

Um amigo, um familiar... o que tu acha que é a especificidade do terapeuta?

A: legal essa pergunta. Como naquele determinado momento tem um limite, é como se

tivesse focalizando, é como diz a abordagem que você tem, é centrada na pessoa. E

quando você tem esse determinado tempo focalizado exatamente pra você, você tem um

pouco mais de liberdade, você consegue ter mais tempo. Como você é o centro daquele

daquele tempo, agora eu fiquei pensando se eu respondi tudo.

R: não tem resposta certa

A: não tem resposta certa?

R: não, não tem não

A: (pausa) eu acho que é isso

R: eu fiquei pensando assim... tu conseguiria falar do que tu considera terapêutico pra

ti na tua sessão?

A: (pausa) tu pode me dar a definição de terapêutico?

R: terapêutico... tudo que tu considera que gera de alguma forma uma transformação.

Nem sempre boa de antemão, porque terapêutico não é só uma coisa boa, as vezes a

terapia é dolosa também né?

A: hunrum

R: você entra em contato com coisas dolorosas, mas até esse processo de descobrir

dores, de botar o dedo na ferida, como você mencionou, ele te leva a algum lugar, de

alguma forma aquilo é relevante, é importante pra ti. Aí eu queria entender um pouco o

que tu considera que é terapêutico na terapia, é até redundante, mas o que é que a

terapia tem que se faz terapêutico? O que é que acontece ali?

A: uma coisa que... as vezes quando eu tenho algum problema eu acabo indo pro meu

quarto e começo a pensar sobre aquele problema e começo a falar sozinho.eu vim

descobrir que isso não é loucura, isso é a coisa mais normal do mundo (risos)

Brincadeiras a parte, o que é terapêutico pra mim, é o fato de eu conseguir falar, falar

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sobre os meus sentimentos. Isso é terapêutico pra mim, falar sobre os meus sentimentos.

Os momentos, como você falou, não é muito confortável, mas aquele desconforto vai

me trazer um conforto mais na frente. Conseguir contar as minhas preocupações, os

meus sonhos... pro terapeuta e também pra mim.

R: o que é que tu acha que acontece contigo quando tu consegue falar desses

sentimentos?

A: uma liberdade. De vez quando, quando você se sufoca com determinado sentimento

isso acaba se vendo acorrentado por ele, e quando você consegue jogá-lo, se sente mais

livre. (pausa) ai eu fiquei pensando, essa situação vai ser bem inusitada e interessante!

(risos)

R: por que?

A: aquelas histórias pra eu contar pros meus netos!

R: ah é? Nossa! Por que?

A: eu acho que isso tá sendo um evento único na minha vida.

R: o que é que tá te causando?

A: além do fato de ser único, tá sendo interessante.

(longa pausa)

R: tem te feito pensar sobre algumas coisas?

A: tem

R: é nesse sentido que tu diz?

A: hunrum

(pausa)

A: até pra conhecer mais a terapia e pra bem usar, me ajudar a usar com mais qualidade

esse tempo.

R: como é que tu acha que tu pode fazer isso?

A: essas perguntas estão me dando alguns nortes, algumas respostas. Tá me fazendo, tá

me ajudando a saber como usá-la.

R: e tu tem alguma ideia de como tu pode usar melhor a terapia?

A: (pausa) falando das coisas mais simples às coisas mais complexas, falando do que eu

fiz ontem a noite até de alguma coisa que eu carrego desde.. algum medo da infância,

alguma coisa que foi muito séria. (pausa) as coisas simples tem o seu... tem o seu

valor... e as vezes as coisas simples são tão... tão impressionantes... até porque quando

você vê... as coisas mais complexas são formadas pelas coisas mais simples... Quando

você caminha até um lugar muito distante, você tem que dar alguns simples passos, o

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primeiro. Mas se você não der o primeiro passo, você nunca vai chegar ao lugar que

você quer.

R: tem algum lugar que tu queira chegar?

A: (pausa) lugares.. eu tenho vários lugares. Eu sou uma pessoa muito sonhadora e eu

consigo ter, consigo viajar muito. Mas sabe assim, se eu pensasse daqui a dez anos,

onde que eu estaria, eu poderia dizer ah eu tenho um sonho, mas eu não vou estar em

um determinado momento, parece uma coisa óbvia, mas eu não vou tá nesse mesmo

lugar, isso me faz bem, saber que eu vou tá em um lugar, que eu vou evoluir, que a vida

vai me trazer muita sabedoria, muito conhecimento...

R: hunrum... e o que foi que te motivou a fazer terapia?

A: é, bem, eu praticamente, como eu falei, eu praticamente fui forçado a vir fazer

terapia. No começo eu não queria, mas quando eu fui vendo esse ambiente, fui me

adaptando, fui me familiarizando, fui me conhecendo, e vi que esse ambiente ia me

trazer ajuda, que... é que tava mais preso dentro de mim, que tava precisando de ajuda.

Só que não via que a terapia ia me trazer ajuda. E quando eu notei que a terapia ia poder

me ajudar, então eu vou continuar aqui.

R: então foi esse sentimento de que a terapia poderia te ajudar de alguma forma que te

motivou.

A: a palavra que soa mais alto é ajuda

R: hunrum

(longa pausa)

R: mas foi algo que tu não buscou né. Alguém buscou por ti? Foi assim? que tu disse

que veio meio obrigado...

A: hunrum. A minha mãe tava querendo (não compreensível). Às vezes tem coisas que

você precisa fazer pra pessoa. Vou dar um exemplo: um sonambulo vai andando até a

beira de um precipício, ele vai continuar andando. Uma pessoa que ama ele, ela não vai

dizer assim “por favor, não vá cair”, porque ela tá meio que fora de si. Eu não sei dizer,

talvez entre a liberdade aí, mas se alguém não fazer nada por ela, ela vai acabar

morrendo. E por amor, alguém vai ter que dar um tapa no rosto dele pra ele acordar,

sabe... foi o que fizeram comigo.

R: e aí hoje tu me parece grato né por isso

A: hunrum, muito grato. Uma coisa que eu percebi é que os problemas sempre vão

existir durante a vida. Teve alguns problemas que quando eu entrei aqui tava no ápice, e

quando eles diminuíram o tamanho, posso dizer assim, o tamanho deles, sempre

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existiam outros problemas. E eu tenho que me adaptar que toda minha trajetória da vida

eu vou ter problemas. Sabe, felicidade não é uma vida perfeita, sem problemas,

felicidade é você conseguir administrar os seus problemas e não deixar que eles toquem

a sua esperança. Apesar dos problemas você saber no que consiste a sua esperança e

continuar caminhando.

R: então quando tu veio tu tinha alguns problemas e depois foram surgindo outros

então...

A: hunrum

(longa pausa. Percebe que seu aparelho de som ainda estava ligado e o desliga)

R: então eu posso dizer que o que te trouxe aqui, pelo menos as preocupações que a tua

mãe tinha quando te trouxe aqui, foram apenas um mote inicial?

A: (pausa) hum... nessa pergunta você quer o fato que me trouxe até aqui?

R: não se você não se sentir a vontade

A: acho que não é que... eu acho que alguém quis me ajudar e nesse determinado

momento como minha mãe fez... aqui na UFC eu consegui ganhar praticamente de

presente... porque meus pais não tinham condição de pagar uma sessão, as despesas lá

de casa são um pouquinho alto, ia sair pesado no orçamento. E a psicóloga do meu

colégio tava concluindo aqui, e ela conhecia uma amiga, uma amiga que fazia, e me

inscreveu aqui e eu acabei vindo. É uma pessoa que eu tenho muita gratidão. O que me

trouxe aqui foi alguém, foi essas pessoas que me ajudaram, foi a ajuda dessas pessoas.

R: mas o que fez você continuar aqui não foi mais elas, né?

A: não. Foi entender que esse ambiente não era aquele que eu imaginava ser. E que

nesse ambiente eu ia conseguir... mais uma palavra, essa palavra que eu já tou repetindo

o tempo todo, ela é bem forte, que é “ajuda”.

R: tu precisava de uma ajuda pra que? Tu consegue me falar? Se tu não quiser falar

exatamente o que tava acontecendo, mas tu consegue falar em metáforas?

A: ah! Notou que eu gosto de metáforas! (risos)

R: eu gosto também!

A: (incompreensível)

(pausa)

A: pode repetir a pergunta?

R: se tu... tu falou que veio através de pessoas, né? Foi o que te trouxe, mas o que fez

com que você permanecesse não foi mais aquelas pessoas dizendo “você tem que ficar

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aqui”, foi um sentimento teu de que tu precisava de ajuda né? E ajuda pra quê? Que tu

percebeu que precisava?

A: pra conseguir lidar.... pra conseguir lidar com a vida, comigo mesmo, com as

pessoas, com os meus problemas... (incompreensível) já passou pela adolescen... pela

juventude, é uma coisa muito louca. É uma mudança completamente! Você nessa fase

do não ser. Você era uma criança e vai se tornar um adulto. Mas você não é adulto ainda

e nem é mais aquela criança. Então você é o que? Você é um ser em transformação,

então tipo, você é um nada, praticamente. Você ainda tá de passagem, e tipo juntou

esses problemas da vida, da adolescência, com depressão... eu consegui administrar tudo

isso, a lidar.

R: então os problemas eram problemas mais existenciais, digamos assim, de uma fase

né? Que tu tava vivendo.

A: emocionais

R: mas tu acha que aconteceu algo especificamente que fez com que gerasse essa

depressão, ou foi uma cadeia de coisas, um momento..

A: foi uma aglomeração de várias coisas que estavam dentro de mim e chegou um

momento que isso meio que explodiu. (pausa) e muitas coisas que eu percebi é que

vários problemas meus tavam no fato... tavam no meu olhar para aquela situação.

Quando você num processo depressivo você tem a ilusão de achar que o seu problema é

o maior do mundo. Mas não é, seu problema não é o maior do mundo. Se você for

pesquisar, se for ver existem pessoas com problemas piores que o seu. Eu não tou

diminuindo meu problema, mas aquilo não é aquele fantasma todo que eu achava ser.

Esse processo eu achava que seria como.. eu me sentia assim como se eu tivesse sem a

visão... sem visão e sem a fala, na depressão eu apenas ouvia. E eu achava que um

simples traço seria um monstro enorme. Eu via aquele problema como vinte vezes

maior. E quando você consegue ter a sua visão, consegue... a única forma de, a única

forma de superar seu medo é enfrentando. Quando você consegue olhar nos olhos da

vida, nos olhos dos seus problemas, nos olhos dos seus fantasmas, o grau de poder deles

diminui e você consegue ver que eles não eram tudo que você achava ser. Às vezes a

gente acha que... tipo, eu vejo uma pessoa e posso pensar que essa pessoa talvez possa

ser... posso imaginar essa pessoa de várias formas. Mas só quando eu começar a falar

com ela, eu vou saber quem ela realmente é. E conhecer uma pessoa não é uma coisa

fácil, é uma coisa que leva décadas. Isso também com seus problemas. É sempre bom

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você ter um olhar multifocal na sua vida. Se você tem vários ângulos, você consegue ter

opiniões diferentes, e consegue lidar com mais naturalidade.

R: e aí o que é que foi acontecendo pra que tu saísse dessa visão que tu tinha, para

outro ponto de vista? Essa visão que tu tinha de que teus problemas eram bem grandes

né, pra passar para esse ponto de vista que tu fala hoje, de que não é bem assim..

A: quando, quando você tá... tipo, na minha depressão eu tinha medo de sair de casa, eu

tinha.. eu chorava todo dia, isso seria diariamente por mais de um ano, tinha ataques de

choro e nervosismo, todos os sintomas que a depressão poderia causar.. sintomas

físicos, emocionais, psíquicos.. eu perdi bastante peso, eu tive que dar um tempo nos

estudos por conta da depressão, eu não conseguia ir mais pro colégio. Eu tinha medo do

que as pessoas iam falar de mim, eu tinha medo de não ser aceito. E quando você tá

naquele ambiente, aquele ambiente é confortável, quando você tá dentro do seu quarto.

Mas esse conforto é frio, esse ambiente é frio. E você tem medo de sair, de romper com

aquela bolha porque lá fora pode ser muito pior do que lá dentro. Mas se lá dentro é

pior, lá fora talvez não seja. Quando você consegue meio que romper com essa bolha,

não é uma coisa de um dia pra noite, eu me vejo assim em um processo onde eu tou

andando pra sair dessa bolha. Em alguns momentos eu volto, mas quando eu me vejo

que eu tou dentro dessa bolha, eu tento sair, eu faço esforço pra sair.

R: como tu acha que a terapia tem te ajudado a sair dessa bolha?

A: tem até o livro um livro que eu li... eu não vou lembrar o nome do autor, mas o nome

do livro é “Escuta, Zé Ninguém”. Uma coisa que eu aprendi nele é mais ou menos

assim, quando você tá empreitando uma coisa que aos seus olhos é muito grandiosa,

quando você tá, com essa ação você vai evoluir, sempre existe um zé ninguém que te

fala “você não vai conseguir, você não é capaz”. Aí a proposta que esse livro me deu é

de conseguir vencer esse zé ninguém que existe dentro de mim. Aí quando eu descobri

isso eu ganhei o dia (risos). Tem coisas que eu vejo, tipo um pôr do sol, falar com uma

pessoa que eu amo, falar “eu te amo” pra minha mãe, pro meu pai, eu acho isso bem

significativo! Eu sou bem... uma coisa que a terapia me ajudar a perceber é que eu sou

uma pessoa muito... muito sensível a pequenos a pequenos acontecimentos. Tem coisas

que eu acho que... sabe, eu sou capaz de passar horas olhando um céu azul... teve uma

vez que eu falei assim “não, esse céu tá muito lindo”... pra um amigo meu... e sem me

dar conta eu falei umas dez vezes e ele “é, você já falou isso”. Tem coisas que me

fascinam.

R: então a terapia te ajudou a perceber coisas sobre você que você não sabia?

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A: isso é o mais surpreendente, é o que tá mais me surpreendendo. Coisas sobre mim

que eu não sabia. Teve uma vez que minha psicóloga fez umas perguntas pra mim, eu

tive que fazer uns desenhos, aí eu respondi as perguntas e depois ela me deu tipo um

resultado. No começo eu achei um pouco estranho, mas ela falou assim “você tem uma

capacidade enorme em se relacionar com as pessoas”. Aí eu fiquei pensando nisso...

nossa! Eu? Eu que sou a pessoa mais tímida! Aí eu fiquei pensando assim... não, eu

realmente tenho isso, e eu acabei me vendo assim de uma forma... me conhecendo. E

quando eu começo a me conhecer, (pausa) não sei nem como explicar não, mas é como

se uma parte estivesse adormecida de mim, e você conhece. Eu tenho medo de chegar

no fim.. eu tenho medo e tou, quero que ele não aconteça... chegar na terceira... quando

eu tiver idoso e chegar.. eu tenho muito medo de levar uma vida que eu não me

conheça, chegar um momento que... tem pessoas que passam uma vida toda e não

sabem quais são os sonhos de sua esposa, de seu marido... sabe, eu gosto sempre de

perguntar, eu pergunto quais são os sonhos dos meus pais, quais são as suas esperanças.

Isso me deixa muito mais humano e me faz conhecer mais as pessoas.

R: então essa capacidade de se relacionar era algo que de certa forma...

A: não só isso... mas outras coisas também... mas uma coisa que me marcou bastante foi

essa capacidade de relacionar

R: quando ela falou aquilo...

A: (incompreensível) não, aí eu fui pensando...

R: se outra pessoa tivesse te falado isso, teria o mesmo efeito?

A: o legal é que ela não foi a primeira pessoa a falar isso, ela não foi a única a falar isso.

Teve várias pessoas que falaram isso antes e eu “não, eu acho que não”, mas como ela

acabou falando e eu acabei pensando “não, ela não é a primeira pessoa a falar isso, tem

várias outras pessoas que falam, e eu acabei notando que isso é real em mim, então..

então (incompreensível).

(grande pausa)

R: interessante esse sentimento que tu disse sobre perceber algo novo em ti, como tu

fica feliz com isso.

A: hunrum. Eu acabo tendo mais liberdade. Quando você tá numa fase depressiva, você

acaba se vendo assim, com olhos, com uma visão distorcida... só vendo os seus defeitos,

só vendo os seus problemas. Como eu falei, vendo que eu não sou só os meus

problemas, eu tenho muito mais do que isso. Tenho qualidades. Eu consigo perceber

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quando é a soma dos problemas e das qualidades, sai um resultado muito positivo pra

mim.

R: além disso, tem mais alguma coisa, algum processo que tenha acontecido na terapia,

que tu lembre?

A: bem, tem vários processos agora. Deixa eu me lembrar... são coisas que acontecem

gradativamente e quando você começa a pensar, aí você nota que isso aconteceu. (longa

pausa). Consegui lidar com os meus pais, consegui ser amigo deles. Sempre vendo

eles... alguns erros que eles cometeram comigo, mas quando... uma coisa não acontece

por acaso, e eu acabo descobrindo nas histórias deles algo que fizeram... não que esse

fato seja culminante pra sei lá, fazer um erro comigo, mas algo que influenciou. E eu

acabo conseguindo me colocar no lugar das pessoas, no lugar dos meus pais, e acabo

conseguindo perdoá-los. (longa pausa) tem até numa música, na letra de uma música,

que fala que os pais também são crianças como você. E eu acabo vendo isso, acabo não

cobrando excessivamente dos meus pais e das pessoas. Num determinado momento,

mesmo que seja a melhor pessoa do mundo, mas em algum momento essa pessoa vai te

magoar, vai te decepcionar em algo... e quando você não consegue assim cobrar

excessivamente, você acaba não se machucando tanto. você sabe que aquela pessoa

pode cometer erros, tá suscetível a erros, então se eles acontecerem... vai ser até difícil

de lidar, mas vai ser menos difícil

R: isso era uma coisa que tu não tinha antes da terapia né?

A: além de cobrar excessivamente das pessoas eu cobrava assim umas cem vezes mais

de mim... eu era muito punitivo comigo mesmo, com os meus erros. E eu acho que

sabe... eu tinha muito medo de errar... e eu acabei notando que quanto mais eu ter medo

de errar, eu vou errar. Quando eu não tenho medo de errar, o medo já é uma chave em si

pro acerto. É um canal que você leva pro acerto. Você pode errar várias vezes, mas

nesses erros existe muito mais, muito mais lições, muito mais amadurecimento nas

derrotas, nos dias tristes que nos dias felizes. Nos dias tristes, nas derrotas, você

consegue pensar no que você errou, no que você deixou de fazer pra acontecer aquilo. O

que eu consegui notar foi isso. Valorizar os erros. Eles vão nos dar muita lição, muito

conhecimento.

R: hunrum. Isso é outra coisa que a terapia te trouxe então... tem mais alguma coisa

que tu queira me falar, que eu não tenha te perguntado...

A: ah... tem um limite que... apesar que eu queira ajudar uma pessoa, a minha vontade

vai tá delimitada por uma coisa chamada vontade, pela liberdade daquela pessoa.

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Mesmo que eu queira ajudar... na terapia, o ambiente já é propício, pra se ajudar, mas se

eu não me ajudar, ninguém vai poder me ajudar, nem o mais experiente terapeuta...

ninguém, se eu não me auto-ajudar. Fica mais comigo, tudo começa dentro de você.

R: e essa foi uma coisa que tu foi adquirindo né? Tu não chegou lá com isso...

A: não. Isso eu fui aprendendo a adquirir. E é uma coisa tão.. é uma coisa que eu notei,

principalmente hoje, como os problemas, principalmente os problemas com os meus

pais, vai chegar um momento que eu me esforço, mas vai chegar um momento que eu

esbarro em uma barreira que é o sim ou o não deles.

R: em que sentido?

A: na vontade deles... de quererem um lugar, de quererem.. quando eu tendo ajudar

eles... sabe, tem uma coisa que eu acho bem interessante, uma coisa que eu notei agora,

quando você envelhece um pouco... apesar de eu ter apenas dezessete anos, eu tou

começando a amadurecer um pouco. Tem algumas coisas, sei lá que... que meu pai faz

comigo que machuca minha mãe, que eu acabo falando “não pai, não é por aí que você

faz isso”. Eu posso falar, mas ele não quiser, ele vai continuar falan..fazendo!

(pausa)

A: você perguntou isso porque tá no finalzinho?

R: é... das minhas perguntas, dos meus questionamentos, acho que a gente já passou

por todos eles. E pra ti? Tem alguma coisa que tu queira falar mais?

A: ah foi bem legal esse momento

R: como é que foi pra ti?

A: notar.. é... ter uma visão do processo que eu tou incluído. Às vezes esse processo vai

acontecendo e você não se dá conta. Esse tempo me olhar pra esse processo, pro que tá

acontecendo, o que tá mudando... muita coisa! Bem interessante

R: tu descobriu algo sobre esse processo hoje? Percebeu algo novo?

A: tem uma coisa bem interessante que... como eu tinha muita dificuldade de me

relacionar com as pessoas, eu acabo notando que, uma coisa que tá sendo bem influente

pra mim, eu acabo... não, eu continuo falando com as pessoas, eu acabo assim, fazendo

uma pequena pausa e pensando “eu tou fazendo isso mesmo? Nossa... antes eu não fazia

isso” eu acabo mudando os meus conceitos de quem eu sou

R: como assim? tu pode falar um pouco mais sobre isso?

A: as minhas verdades, nesse fato da timidez. Apesar de eu ter uma fluência com as

pessoas, conseguir ter amigo, enfim, ter uma vida normal, que isso me dá uma liberdade

imensa pra mim... teve uma verdade que, teve uma mentira que eu aceitei como

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verdade, que seria a timidez, mas eu ainda não estou nela, e eu passei por uma fase que

eu achava que eu ainda estava nela, aí isso me faz.. troca um pouco a minha definição

de quem realmente eu sou. Agora eu não sou mais tão tímido, é meio que troca as

minhas verdades, por uma verdade mais pura, mais sincera.

R: tu chegou aqui achando que tu era bastante tímido. Essa era a verdade que tu tinha?

A: não, sério. Eu era super tímido.

R: aí hoje a tua verdade é que tu não é mais tão tímido assim. é isso?

A: hunrum

R: aí perceber essa transição o que é que gera em ti?

A: saber que isso que eu tou vivendo é real, que isso realmente tá acontecendo, antes eu

via, eu tinha assim uma imagem distorcida, achava que aquilo não era aquilo, que aquilo

poderia ser algo diferente, quando eu olho hoje, eu consigo ter mais sinceridade, que

isso é realmente isso. Eu até fiz uma.. falei da timidez, mas se eu fosse falar tudo aqui, a

gente passaria uns vinte anos e ainda não terminaria. Mas é bem por aí mesmo.

R: tu quer falar alguma outra coisa antes da gente encerrar?

A: não, eu acho... até porque eu tou com uma leve rouquidão, tou com a garganta

irritada e eu tou bebendo bastante água hoje...

R: pois eu queira te agradecer pela tua disponibilidade, de vir mesmo sem ter sessão,

de vir só pra isso mesmo, e pela tua abertura em participar e até em pensar em como

isso pode te ajudar de alguma forma. Espero que tenha contribuído, que possa gerar

mais reflexões, e que tu possa até falar sobre isso na terapia se surgir.

A: hunrum

R: e aí quando tiver tudo pronto, aí eu te aviso pra eu te apresentar os resultados.

A: é, eu quero ver! (risos)

R: (risos) quer ver? Tá curioso agora? É sempre muito legal ouvir o que as pessoas têm

a dizer sobre os processos delas. E aí você começa a ver algumas coisas que vão.. que

se aproximam sabe? É bem interessante. É isso que eu queria mostrar depois.

A: até vendo que os problemas, você também partilha dos seus problemas, você faz

como se fosse uma comunhão, aquela pessoa também tem o seu problema, e você vê

que aquilo não seria... você não é tão mais estranho no mundo. Aquele problema, aquele

não é só você que tem. E é algo que eu tinha, eu achava que eu era a pessoa mais

estranha do mundo. E quando eu vi que tinham coisas que as outras pessoas também

tinham, isso me deixou muito mais humano, isso tira esse sentimento de estranheza.

R: como é que tu foi descobrindo que tu não era tão estranho assim?

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A: vendo os problemas que eu tinha e que as pessoas também tinham. E vendo que tinha

uma pessoa que também tinha essa mesma coisa, então, o meu problema não é do outro

mundo. (grande pausa) tá bom? (risos)

R: tá (risos) pronto?

A: pronto.

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ANEXO D - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES

DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO

Prezada(o) participante,

Você está sendo convidada(o) a participar da pesquisa AS HISTÓRIAS CONTADAS

NA CLÍNICA: NARRATIVA E TRANSFORMAÇÃO NA PSICOTERAPIA vinculada

ao Mestrado em Psicologia da Universidade Federal do Ceará e desenvolvida por

Rafaella Medeiros de Mattos Brito, sob a orientação da Profª. Dra. Idilva Maria Pires

Germano.

1. Natureza da pesquisa

Esta pesquisa tem por finalidade investigar os processos envolvidos na construção de

narrativas na psicoterapia, investigando sua potencialidade terapêutica e transformadora.

Para isso, será explorado como os clientes percebem a psicoterapia, seu significado e

seus efeitos.

2. Participantes da pesquisa

Participarão da pesquisa indivíduos que estão em psicoterapia na Clínica Escola de

Psicologia da UFC, por no mínimo seis meses, tendo procurado a terapia por conta

própria.

3. Envolvimento na pesquisa

Ao participar deste estudo, você deve permitir que a pesquisadora o entreviste

individualmente. Na ocasião das entrevistas, a pesquisadora fará algumas perguntas a

respeito de como você percebe a terapia, que significados você atribui a ela, que

mudanças você percebeu em você desde que iniciou seu processo, o que é “terapêutico”

para você na terapia, entre outras questões que possam surgir para entender essa

experiência do seu ponto de vista. Não há perguntas certas nem erradas, você deverá

responder do modo mais franco possível. As entrevistas possuem duração incerta, no

entanto, não devem se estender por mais de uma hora, salvo interesse do participante em

continuar seu discurso. Você tem a liberdade de recusar a participar e pode ainda se

recusar a continuar participando em qualquer fase da pesquisa, sem qualquer prejuízo

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para você. Sempre que quiser você poderá pedir mais informações sobre a pesquisa.

Poderá entrar em contato com a pesquisadora através do telefone (85) 99550282.

4. Riscos e desconfortos

A participação nesta pesquisa não traz complicações, nem desconforto e não oferece

risco à sua integridade física, psíquica ou moral. Nenhum dos procedimentos utilizados

oferece riscos à sua dignidade.

5. Confidencialidade

Todas as informações coletadas neste estudo são estritamente confidenciais. Suas

respostas serão gravadas para facilitar a análise das respostas, porém sua identidade não

aparecerá em nenhum documento. Em vez do seu nome, aparecerá um código nos

relatórios desta pesquisa. Apenas a pesquisadora e sua orientadora terão conhecimento

dos dados. Se você der a sua autorização por escrito, assinando a permissão para

utilização das transcrições das gravações, os dados serão utilizados exclusivamente para

fins de ensino e durante encontros e debates científicos.

6. Benefícios

Ao participar desta pesquisa você não terá nenhum benefício direto. Entretanto,

esperamos que esta pesquisa nos forneça informações importantes sobre a prática

clínica e o recente diálogo entre narrativa e psicoterapia.

7. Pagamento

Você não terá nenhum tipo de despesa por participar desta pesquisa e nada será pago

por sua participação. Entretanto, os relatórios da pesquisa contendo os resultados do

estudo estarão disponíveis após a defesa da dissertação e uma apresentação oral dos

resultados poderá ser agendada conforme interesse dos participantes.

Tendo em vista os itens acima apresentados, eu, de forma livre e esclarecida, manifesto

meu interesse em participar da pesquisa.

_______________________________________________________

(Nome do participante)

_______________________________________________________

Rafaella Medeiros de Mattos Brito

(Pesquisadora responsável)

Profª. Dra. Idilva Maria Pires Germano

(Orientadora da pesquisa)

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Permissão para utilização das transcrições das gravações

Eu, por meio deste, dou à pesquisadora Rafaella Medeiros de Mattos Brito a permissão

para usar as transcrições das gravações realizadas comigo durante a pesquisa AS

HISTÓRIAS CONTADAS NA CLÍNICA: NARRATIVA E TRANSFORMAÇÃO NA

PSICOTERAPIA. A permissão é para que os conteúdos das transcrições possam ser

utilizados na dissertação, em publicações e encontros científicos, em debates entre

grupos de pesquisa ou ainda para fins didáticos. Eu estou ciente de que os participantes

da pesquisa não serão identificados pelo nome e que meu anonimato e privacidade

estarão preservados.

_______________________________________________________

(Nome do participante)