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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ ANDRÉ FELIPE WIELGOSZ LEITE CULTURAS IRMÃS: A HEGEMONIA CARTAGINESA SOBRE GADES E O “CIRCULO DO ESTREITO”. CURITIBA 2011

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

ANDRÉ FELIPE WIELGOSZ LEITE

CULTURAS IRMÃS: A HEGEMONIA CARTAGINESA SOBRE GADES E O

“CIRCULO DO ESTREITO”.

CURITIBA

2011

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ANDRÉ FELIPE WIELGOSZ LEITE

CULTURAS IRMÃS: A HEGEMONIA CARTAGINESA SOBRE GADES E O

“CIRCULO DO ESTREITO”.

Monografia apresentada à disciplina de

Estágio Supervisionado em Pesquisa Histórica

como requisito parcial à conclusão do Curso

de História, Setor de Ciências Humanas,

Letras e Artes, Universidade Federal do

Paraná

Orientador: Prof. Dr. Renan Frighetto.

CURITIBA

2011

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Dedico o presente trabalho à minha filha, Ana Luzia.

Mesmo distante dos olhos, está sempre em meu coração.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço ao Professor Renan, cujas orientações ajudaram imensamente a conduzir

minha curiosidade sobre a História Antiga, de forma geral e irrestrita, até a História Militar de

Roma; e, incentivando a avançar sobre uma região intrigante e pouco abordada, o mundo de

Cartago. As conversas inspiradoras que tivemos abriram minha mente e a minha percepção

para milhares de conexões que auxiliaram imensamente o desenvolvimento da pesquisa,

quando de seus momentos de impasse ou de estagnação.

Agradeço a todo o pessoal do NEMED, sempre presentes e receptivos às minhas

idéias, que não raramente eram dispersas e fora de sequencia lógica. Agradeço especialmente

ao Diego Martinez por seu apoio desde o inicio desse trabalho, ajudando-me com informações

diretas da Espanha; e agradeço especialmente ao André Leme e a Elaine Senko, pois sem a

ajuda e as conversas com ambos, mais do que a tutoria, tenho certeza que esse trabalho não

teria atingido a qualidade que tem agora. Suas revisões e seu apoio na finalização dessa

empreitada foram de imensa valia.

Agradeço igualmente à minha família, meus pais e meus irmãos, que mesmo sem

entender sobre o que era essa pesquisa nunca deixaram de me incentivar. Sou muito grato ao e

seu apoio constante, pois foi fundamental para que eu chegasse até aqui.

Agradeço também à Angela Zatta, cuja fé em minha capacidade foi fundamental para

vencer as dificuldades nos momentos inicias dessa longa caminhada. Agradeço-a igualmente

por ter dado a mim a possibilidade de dedicar-me integralmente à pesquisa, enquanto assumia

sob de forma mais que admirável as tarefas de cuidar de nossa filha, Ana Luzia.

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“O Historiador é como o ogro da lenda. Onde fareja

carne humana sabe que ali está a sua caça”

Marc Bloch.

“Uma mente que se abre para uma nova idéia jamais

volta ao tamanho original”.

Albert Einstein.

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RESUMO.

O presente trabalho tem como objetivo analisar o modo como Cartago realizou sua expansão

sobre a Península Ibérica entre 237 – 220 a.C. Como fonte utilizamos a obra Histórias de

Políbio de Megalópolis (200 – 120 a.C.). Complementando os fragmentos da obra, buscamos

uni-las com as mais recentes análises feitas por historiadores e arqueólogos acerca de diversos

sítios arqueológicos e vestígios de cultura material da época que foram recuperados na

atualidade. Essa expansão ocorreu de forma intrigante, porém pouco abordada pela

Historiografia Moderna. Devendo imensa somas à Roma, desde sua rendição em 241/240

a.C., e sem tropas desde a Revolta dos Mercenários (240 – 237 a.C.), ainda assim Cartago

enviou uma expedição militar contra a Ibéria. Região distante e aparentemente sem conexão

com as convulsões mediterrânicas, após 20 anos de intensas atividades militares e

diplomáticas sob o comando dos generais Amílcar, Asdrúbal e Aníbal Barca. A forma como

esses generais expandiram o poder cartaginês apresenta-se muito calculada e com

movimentos planejados, utilizando de uma prática política e de uma estratégia militar que nos

permitem traçar ligações unindo as terras da Ibéria, no Extremo Ocidental com o mundo

Helenístico no Oriente mediterrânico

Palavras – chave: Cartago; Guerras Púnicas; Expansão Militar.

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SUMÁRIO

PRÓLOGO..............................................................................................................................08

CAPITULO I – Zona Escura.................................................................................................19

CAPITULO II – Políbio e o primeiro relato sobre o Extremo Ocidente Mediterrânico.27

2.1 – O Extremo Ocidente na Historiografia antes de Políbio............................................27

2.2 – Biografia de Políbio........................................................................................................30

2.3 – Políbio e as influências presentes em sua obra Histórias............................................35

2.4 – A Obra de Políbio, objetivo, temas abordados, estilo e traduções.............................40

CAPÍTULO III – O colosso cartaginês torna a se levantar................................................46

3.1 – O Sistema de Governo Cartaginês: estabilidade em decadência...............................47

3.2 – Um Exército de Especialistas........................................................................................50

3.3 – Amílcar Barca: o batismo de fogo de suas capacidades.............................................54

3.3.1 – O primeiro exército cartaginês na Europa: o estabelecimento na Ibéria..............57

3.4 – Asdrúbal Barca: um administrador diplomático........................................................62

3.5 – Aníbal Barca: um general com traços helenísticos?...................................................71

CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................83

REFERÊNCIAS......................................................................................................................87

GLOSSÁRIO...........................................................................................................................95

ANEXO A................................................................................................................................99

ANEXO B...............................................................................................................................102

ANEXO C..............................................................................................................................103

ANEXO D..............................................................................................................................104

ANEXO E...............................................................................................................................105

ANEXO F...............................................................................................................................106

ANEXO G..............................................................................................................................107

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PRÓLOGO.

Ao receber o mensageiro, o Grande General percebeu que sua luta

havia chegado ao limiar final. Quando assumiu o comando das operações

marítimas, e depois terrestres, havia ainda esperanças para prolongar e até

mesmo reverter os rumos dessa guerra que já durava, naquela época, 18

anos. Quando escolheu o local para seu acampamento militar, decidiu-se

por uma posição estratégica para uma possível retomada e conseqüente

vitória na guerra que se desenvolvia nessa rica e importante ilha.

No alto de uma planície cujos limites eram grandes escarpas tanto

do lado para o interior da terra quanto para o lado voltado ao mar, e com

somente três passagens facilmente defensáveis (duas pelo lado do voltado à

terra, e uma voltada para as praias), o general impunha uma tenaz

resistência aos inimigos. Mesmo longe das poucas cidades que ainda os

apoiavam, suas forças resistiam bravamente através da linha de

suprimentos que irrompia a supremacia naval adquirida pelos inimigos

durante os combates. Para tentar vencer essa resistência, o general inimigo

havia instalado o seu acampamento e menos de um quilômetro de distancia.

Entretanto a proximidade rendeu o efeito contrário, pois ao invés de

propiciar um combate aberto engajando todas as tropas, os combates se

resumiram, durante três anos, a escaramuças rápidas e resolvidas assim

que um dos lados partia em retirada para trás de seus fossos e paliçadas.

No entanto, esses três anos de impasse haviam acabado. Essa luta

tão equilibrada entre dois talentosos e inventivos estrategistas que não

pouparam artimanha militar alguma que não fosse conhecida; esse combate

entre tropas tão aguerridas e experientes nos combates terrestres iria ser

resolvido em outro campo, num terreno que dava suporte a ambos: o mar.

Não muito longe do local onde as escaramuças eram travadas, um combate

naval estava prestes a acontecer, e dessa vez seria um combate diferente de

todos os outros, seria um enfrentamento naval definitivo, pois para ambos

os lados da contenda a guerra estava chegando num estágio insuportável

devido aos desgastes políticos e econômicos provocados pelas imensas

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perdas humanas e os gastos inerentes para a manutenção das forças

militares nas várias cidades.

Próximo as ilhas Aegates as duas forças titânicas entraram em

combate. Devido a problemas técnicos e despreparo das tropas, as forças

contrárias ao Grande General venceram. Com as pesadas baixas do

combate marítimo que encerraram a lendária supremacia marítima, e da

rota de suprimentos que mantinha e dava suporte ao acampamento em

terra, o Conselho que havia dado ao Grande General seu cargo de

liderança viu-se finalmente sem condições de sustentar os esforços de

guerra, fossem novas tentativas marítimas, fossem as forças em terra na

ilha. Foi para comunicar essa decisão tomada pelo Conselho que o

mensageiro estava ali, frente ao Grande General.

Olhando à sua volta e relembrando todos os esforços que haviam

sido feitos, todas as medidas que foram tomadas, e concluindo que aquelas

tropas haviam mantido as esperanças até onde foi possível, o Grande

General teve que reconhecer, da mesma forma como reconheceria uma

vitória, a eminente derrota. Derrota não faltar-lhe confiança em suas

tropas, mas por ser impossível garantir uma vitória. Mandando uma

delegação rumo ao general inimigo, ambos os líderes em campo

negociaram a tão ansiada paz.

Pelo acordo, dizia-se que somente haveria paz entre ambos os

povos se diversas condições fossem seguidas: se aprovado pelo povo do

vencedor; se o derrotado retirasse todas as tropas da ilha; não entrassem

mais em guerra com ninguém da ilha; entregassem todos os prisioneiros

sem exigir resgate, mas pagando resgate pelos seus; e ainda o pagamento

de 2000 talentos de prata ao longo dos próximos vinte anos. Esses termos,

após serem levados ao povo vencedor, foram modificados para a evacuação

de todas as ilhas entre os territórios de uma potencia e outra; redução para

metade do tempo para pagamento da soma indenizatória, acrescida em

mais mil talentos de prata1. O acordo foi ratificado por ambos os lados, e

Não há fontes bibliográficas no documento atual.

1 O Talento era uma unidade de medida utilizada pelos

gregos, e equivalia a 26,2 kg de metal precioso, em geral prata. Ao final, Cartago assumia uma dívida de 3000

talentos de prata, algo próximo a 78, 6 toneladas de prata, para serem pagas em 10 anos.

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as tropas derrotadas retornaram para o território governado por sua

capital.

O episódio que acima foi apresentado de forma de narrativa romanceada representou

o desfecho da primeira de uma série de conflitos entre duas grandes potências mediterrânicas:

de um lado, a lendária potência marítima da cidade de Cartago; e do outro lado, a famosa

cidade de Roma, à frente de uma liga de cidades agrupadas através do poder de suas legiões

de infantaria. A chamada Primeira Guerra Púnica havia sido iniciada quase 20 anos antes do

episódio narrado, quando a secular guerra de fronteiras entre cartagineses e gregos liderados

por Siracusa adquiriu um tom maior com o ingresso de um novo participe, a cidade de Roma.

Com a entrada de Roma, o conflito passou de uma questão fronteiriça para uma

guerra pela busca da supremacia e hegemonia inquestionável sobre o oponente. De fato, o

conflito desenvolveu-se em dois palcos principais: as terras da ilha da Sícília e o mar

mediterrânico desde as costas tirrenas até as costas africanas do Cabo Bom, no atual Golfo de

Tunis. No desenrolar dos conflitos, Roma e Cartago vivenciaram grandes evoluções militares

que alteraram os rumos do conflito.

No momento da eclosão dos combates, cada um dos lados possuía uma grande

experiência num tipo especializado de combate. Cartago era a potência marítima por

excelência, com uma imensa frota mercante e sua temida frota militar composta por velozes e

mortíferas trirremes. Roma, por sua vez, havia adquirido renome nos combates terrestres

através de suas legiões de infantaria e sua política diplomática. Justamente por essa fama de

potência terrestre, um grupo de mercenários (chamados de mamertinos, “filhos de Marte”)

que havia tomado a cidade de Messana (atual Messina), na margem siciliana do Estreito de

Messina, pediu a proteção de Roma contra o assédio de Cartago, que estava atendendo aos

pedidos de outra facção dessa mesma cidade.

Roma, não considerando benéfico ter os cartagineses controlando uma das margens

de uma das mais lucrativas rotas comerciais do Mediterrâneo (e da qual os romanos acabavam

de desfrutar), entrou em choque contra as forças cartaginesas. No começo das lutas, a

experiência romana garantia sua superioridade em terra, enquanto o mesmo ocorria com os

cartagineses em relação a sua supremacia nos combates em mar. A situação mudou quando os

romanos, capturando uma nau bélica cartaginesa em suas costas tirrenas, descobriram como

elas eram construídas e iniciaram aquilo que podemos apontar como “a primeira experiência

de produção em massa de equipamentos bélicos padronizados”.

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Desmontaram o barco e, utilizando os portos das recém conquistadas colônias gregas

da Magna Grécia, construíram uma imensa frota para combater em igualdade os cartagineses.

Mesmo assim, a experiência cartaginesa no campo das manobras náuticas pendia a balança

em favor deles. A solução desse impasse foi a adaptação de pranchas de abordagem com

imenso grampos nas pontas, semelhante ao bico de um corvo (disso advém o nome do

equipamento, o corvus). Com o uso desse equipamento, os romanos transformaram o que

antes eram combates por abalroamento ou danificação do leme dos navios em verdadeiros

combates terrestres, onde forças “anfíbias” embarcadas nos navios garantiam a superioridade

durante a abordagem do navio inimigo.

O emprego dessa novidade, somado à experiência que os romanos adquiriam ao

empregar cada vez mais navios em operações militares importantes, fez a balança reverter em

favor de Roma em terra e no mar. Apesar disso, ao longo das décadas de confronto, houve

episódios onde a supremacia romana foi seriamente ameaçada, a exemplo da aventura em solo

norte africano, onde os sucessos iniciais foram revertidos numa derrota desgastante, no qual

os romanos sofreram com desastres na condução de frotas, resultando em naufrágios e perdas

em tempestades.

O avanço nas lutas levou a um estágio de estabilização, justamente o período onde o

Grande General recebe o comando sobre as ações marítimas, e posteriormente, terrestres.

Amílcar, cognominado Barca (Raio na língua púnica), era esse Grande General, que impôs ao

líder romano Lutácio Catulo uma tenaz resistência na região da cidade de Erix (atual Érice),

na costa ocidental siciliana. O impasse como sabemos, foi rompido devido ao resultado da

batalha nas ilhas Aegates, em fronte à região do monte Erix, onde a frota romana conseguiu

uma grande vitória sobre a frota cartaginesa, arregimentada e recrutada as pressas, cujo

objetivo era suprir as forças em terra, e não para combate marítimo.

Com a assinatura do acordo de paz, ambos os lados viveram uma experiência

custosa. Os romanos entraram em guerra contra os Faliscos, habitantes de Falerii (atual

Polari), cidade aliada e muito próxima fisicamente de Roma. E os cartagineses saíram de um

extenuante conflito para entrar numa guerra que ameaçou não só seu território, mas que

minou as relações com seus aliados no norte da África, quase lhes custando a própria

existência e liberdade2. Vejamos as circunstâncias de tal evento, chamada de Guerra Líbica,

ou como é mais conhecida Revolta dos Mercenários.

2 POLIBIO, Histórias, Livro I, 65.

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Com as negociações finalizadas, Amílcar Barca retirou-se de seu acampamento

fortificado em Erix, dirigindo-se para Lilíbaion, cidade portuária ainda guarnecida por tropas

cartaginesas. Lá entregou seu comando para Gêscon, comandante-em-chefe na Sicília,

responsável pela evacuação das tropas da ilha. O exército cartaginês, em sua esmagadora

maioria, era formado por companhias de soldados mercenários.

Esse hábito de manter um exército majoritariamente feito por tropas mercenárias,

cujo somente o alto comando era formado por cidadãos de renome é muito anterior ao

conflito, possuindo causas e explicações em múltiplos aspectos. O mais iminente para

compreendermos a situação em Cartago, é que, aparentemente, o ofício militar ocupava um

lugar inferior na cultura cartaginesa. Não possuindo uma grande população, os cartagineses

ainda assim tinham que administrar uma larga rede comercial e econômica, mantendo a frota

mercante, as indústrias de cerâmica e artigos em vidro, e as fazendas em constante produção.

Além de significar um decréscimo na produção, o treinamento militar exige um

elevado investimento monetário, bem como de tempo, e especialmente, significa criar um

instrumento político, e Cartago já havia passado por uma experiência trágica com a tentativa

de golpe militar feita por um general chamado Hanón, algumas décadas antes da Primeira

Guerra Púnica. Essa crise gerou um clima de permanente desconfiança por parte das

lideranças políticas frente às dinastias familiares, pois como em muitos casos somente as

famílias mais abastadas podiam se dar ao luxo de manter-se numa ocupação à margem da

sociedade, os ensinamentos eram passados de pai para filho, tornando o exercício militar

muito próximo à uma “profissionalização”, por assim dizer.

No final das contas, à Cartago o emprego de mercenários onerava menos do que

manter um exército sempre a postos, ou então criar um corpo de soldados-cidadãos, que fora

das guerras, teriam outras profissões. Mas, se o uso de mercenários poderia ser uma solução

menos custosa, não significa que ela não fosse de elevado custo imediato. O emprego de

mercenários em pequena escala (Cartago é um caso único ao empregar majoritariamente

forças mercenárias e usar tropas próprias somente como guarnição citadina, ou apoio

emergencial) indica que seu preço era elevado, e junto ao preço elevado, vinha a dubiedade

em ação. De fato, não havia garantias de que as tropas mercenárias iriam manter-se

disciplinadas em combate, ou fora dele, correndo o contratante os sérios perigos ligados ao

humor instável dos líderes dos grupos mercenários, que caso não achassem justo o

pagamento, ou a parte lhe cabida no butim ou pilhagem, poderia desencadear uma reação em

cadeia, com revoltas generalizadas espalhando-se por todos os demais grupos mercenários.

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Como leva a induzir de seu posto como comandante-em-chefe e líder da guarnição

em Lilíbaion, Gêscon tinha conhecimento sobre a importância das tropas mercenárias no

exército de Cartago e, principalmente, tinha conhecimento sobre os perigos representados por

esses mercenários após as campanhas e nas épocas de paz. Para evitar crises, ele providenciou

o embarque das tropas em pequenos grupos, que chegando a Cartago, seriam pagas, e

rapidamente repatriadas para as regiões de onde foram recrutadas. Porém, devido às

complicações financeiras e acreditando que as tropas iriam renunciar a parte do soldo em

divida, os cartagineses começaram a concentrar, na medida em que iam chegando, as tropas

dentro da cidade de Cartago. O resultado não agradou as autoridades, pois não demorou muito

tempo para que os mercenários começassem a causar distúrbios tanto de noite quanto de dia.

Para resolver esses distúrbios, as autoridades reuniram os capitães das tropas

mercenárias e propuseram que todas as tropas fossem deslocadas para a cidade de Sicas, no

interior do território cartaginês na África, até que as dívidas pudessem ser pagas e as tropas

repatriadas. As tropas foram transportadas com todas as suas bagagens, apesar de protestos,

para essa nova localidade. Lá estando longe da disciplina e das tensões militares após longo

período, logo incorreram em desorganização. Alguns dentre esses desordeiros começaram a

calcular a soma devida por Cartago, não deixando de exagerar seu apreço, ou lembrar cada

promessa feita pelos generais durante as batalhas, e fazendo questão de cobrar na integra os

valores devidos. Quando todas as tropas mercenárias foram reunidas em Sicas, Anôn

(comandante-em-chefe na Líbia) viu-se obrigado a comunicar que as expectativas não

poderiam ser cumpridas, muito pelo contrário, insistiu para um abatimento do soldo contratual

dada a situação de penúria da cidade e as pesadas tributações impostas por Roma. Como seria

previsível, os desentendimentos e ressentimentos explodiram por todas as companhias

mercenárias, e a confusão foi instaurada.

Anôn, através de reuniões com os chefes e os oficiais exaltados, continuou a pedir

por calma e disciplina. Mas, como as tropas eram das mais variadas regiões do Mediterrâneo

Ocidental e Oriental, muitos dos oficiais não conseguiam entender totalmente as palavras do

líder cartaginês. Assim, a situação foi tomada por uma névoa de incertezas e desconfianças, e

não demorou muito para que os mercenários passassem a entender que os cartagineses

estavam agindo de má-fé ao enviarem comandantes que não estavam familiarizados com as

tropas, e nem estavam presentes durante as batalhas, como forma de não pagarem por seus

serviços.

Dessa forma, revoltados e indignados com Anôn, bem como seus comandantes de

companhia e também com os cartagineses; um contingente superior a 20 mil homens iniciou

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marcha de Sicas, indo em direção à Cartago, acampando numa localidade próxima, chamada

Túnis. Vendo seu antigo exército acampado tão ameaçadoramente próximo à capital, e sem

ter confiança no potencial bélico das tropas de cidadãos (além de ter aberto mão de uma

importante moeda de troca que seriam as bagagens e os acompanhantes que foram obrigados

a seguir junto dos mercenários para Sicas), as autoridades da cidade começaram a enviar

embaixadas com o propósito de contornar a situação, negociando mantimentos e todas as

exigências da turba que fossem possíveis de serem atendidas. Apreendendo as inquietações e

o temor dos cartagineses, as tropas revoltosas que cresciam cada dia mais também

aumentavam suas pretensões, arrogantes devidos aos sucessos contra as legiões romanas na

Sicília e vendo que nenhuma tropa cartaginesa ou aliada seria páreo para eles, aumentando

cada vez mais os valores devidos a elas. Pressionados pela necessidade, os emissários

cartagineses prometeram fazer o possível para sanar as dívidas contraídas, e também enviar

como negociador nas próximas reuniões um dos comandantes que serviram na Sícília junto

aos mercenários.

Como os revoltosos viam com desconfiança Amílcar Barca (pois ele nunca havia

conferenciado diretamente com eles, e havia deposto o comando por livre e espontânea

vontade), os cartagineses chamaram a Gêscon para intermediar as negociações. Chegando a

Túnis e trazendo o dinheiro, o ex-comandante-em-chefe na Sicília passou a conferenciar

reservadamente com cada oficial e separadamente com as tropas de cada nacionalidade,

censurando-as pela conduta demonstrada até então, mas exortando-as para o futuro, pedindo

bom senso e disposição para acatar as ordens daqueles que a tanto tempo vinham

remunerando seus serviços. Após essas conversas iniciais, Gêscon passou a liquidar os soldos

atrasados, pagando separadamente aos homens de cada nacionalidade.

Acontecia que, dentre as tropas, existia um guerreiro da Campânia de grande talento

bélico, chamado Spêndios, que com medo de ser enviado de volta para Roma (era um escravo

fugido) mostrou-se contrário às negociações arquitetadas por Gêscon. Apoiando Spêndios,

havia também mais um capitão mercenário, chamado de Matos, homem livre e que havia

adquirido importante papel nas agitações em Túnis, e por esse motivo temia ser tomado como

vitima expiatória quando começassem as punições pelas agitações. Esse mesmo Matos tinha

elevada estima dentre as tropas líbias e, compartilhando das idéias de Spêndios, logo as

disseminou entre os líbios através de queixas sobre atraso nos pagamentos e do medo ao

espalhar a idéia de que após todas as tropas mercenárias serem pagas e repatriadas, os

cartagineses descontariam sobre os líbios (que não teriam para onde ir) toda o

descontentamento devido à derrota e as agitações. Essas acusações prosseguiram por algumas

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assembléias onde a turba somente escutava os apelos de Spêndios e Matos, reservando a

qualquer outro que quisesse ser ouvido um tratamento cruel com apedrejamento até a morte.

Logo ambos assumiram a posição de líderes dos revoltosos, prendendo Gêscon e todos os

demais cartagineses, e declarando desse modo abertamente as intenções de guerra.

Esse foi o estalido para a Guerra Líbica. Matos e seus prosélitos rapidamente

enviaram emissários para diversas cidades líbias, pedindo seu apoio e adesão na revolta,

conseguindo imenso sucesso pois Cartago durante a guerra pela Sicília havia tratado

duramente suas possessões líbias afim de extrair o máximo possível deles para custear os

combates. Apenas duas cidades recusaram-se a entrar no motim, Útica e Hipacritai, e as

forças mercenárias rapidamente impuseram cerco a ambas.

Cercados e sem esperanças de receber apoio externo ou interno, a cidade de Cartago

entrou em estado de desespero. Não possuíam suprimentos, armas, ou recursos para pedir

ajuda, o que lhes fez entender a profunda diferença entre uma guerra no estrangeiro e uma

guerra interna. Enquanto Cartago fenecia lentamente, as tropas mercenárias adquiriam cada

vez mais apoio por parte das cidades líbias, a ponto de conseguirem arcar não só com as

dívidas das tropas mercenárias, mas também para custear as operações de guerra.

Enquanto esses acontecimentos transcorriam no norte da África ocorriam

movimentos de revoltas muito similares na Sardenha e a Córsega, os demais territórios

dominados por Cartago. Na Sardenha em especifico os mercenários aquartelados inspirando-

se no exemplo de Spêndios e Matos tomaram o poder, prendendo e crucificando o

comandante cartaginês da guarnição, bem como expulsando para a Itália ou então

organizando massacres contra a população cartaginesa da ilha.

Nesse meio tempo, Amílcar Barca foi chamado por Cartago como novo comandante-

em-chefe com o objetivo de contornar e debelar a revolta mercenária. Adotando uma postura

branda com os prisioneiros que lhes caia em mãos, libertando-os após aprisionamento,

começou a adquirir a simpatia de muitos dos revoltosos alarmando Spêndios, Matos e um

gaulês com renomado papel nas assembléias, Autáritos. Este ultimo, inclusive, manifestava-se

nas assembléias contrário à Amilcar alertando que sua política visava libertar os poucos

mercenários para poder capturar a todos e, assim, puni-los de uma única vez. Como quando a

rebelião foi transformada em guerra, todas as demais vozes eram caladas pela multidão

através de apedrejamentos. A fim de garantir a adesão e o comprometimento de todos os

revoltosos, Spêndios, Matos e Autáritos organizaram uma limpeza nas fileiras, matando todos

os possíveis simpatizantes a Amilcar, impondo uma vergonhosa execução ao respeitado ex-

comandante Gêscon e a todos os demais cartagineses aprisionados.

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Essa declaração de hostilidade elevou os ânimos dos cidadãos cartagineses.

Embaixadas foram enviadas a Anôn, exilado na Itália após perder o comando da Sardenha, e a

Amílcar, pedindo o retorno de ambos para vingarem as infelizes vítimas. Junto ao retorno dos

grandes comandantes chegou um auxilio de um aliado inesperado. Hierôn de Siracusa, vendo

que a manutenção de seus domínios estava garantida agora com a retirada das forças

cartaginesas, mas que corriam sérios riscos caso essa força desaparecesse e deixa-se terreno

livre para a expansão romana, atendeu com grande presteza aos apelos feitos pela antiga rival.

Não sabemos os detalhes de como a situação foi revertida, mas sob o comando de

Amílcar Barca, e com o reforço prestado por Siracusa, as forças leais à Cartago venceram a

Guerra Líbica, restabelecendo de forma ainda mais consistente sua hegemonia na região,

assim como permitiu que as líderes da insurreição fossem punidos exemplarmente, sendo

torturados após exibição em cortejo pela cidade de Cartago. Essa guerra civil enfrentada pelos

cartagineses durou três anos e quatro meses, e trouxe um sabor agridoce aos vencedores. Se

por um lado Cartago lutou por sua própria existência e reforçou sua supremacia no território

norte - africano, por outro todos os seus projetos seculares de supremacia marítima no

Mediterrâneo Central desmoronaram.

Mesmo com a perda da Sicilia, Cartago ainda contava com a ilha da Sardenha,

posição estratégica comercialmente, região de fama pela fertilidade da terra e por ser

densamente povoada. Com a revolta da guarnição da ilha, os cartagineses perderam o governo

sobre a região. Rapidamente, como havia ocorrido no inicio dos conflitos pela Sicilia, a

guarnição de revoltosos pediu o apoio de Roma para manter-se no poder. Enquanto Roma

negociava sua posição com os mercenários, a cidade norte - africana recuperou-se e declarou

a intenção de uma campanha punitiva contra os partidários da revolta. Essa mudança no jogo

político foi frustrada pela ameaça romana de iniciar uma nova guerra contra Cartago, caso ela

empreende-se a campanha na Sardenha. Os cartagineses, cientes da fragilidade em que

estavam cederam as circunstâncias, renunciando à Sardenha, além de pagarem uma

indenização adicional de mil e duzentos talentos de prata3.

Há um ditado que fala o seguinte: a “necessidade é a mãe das soluções”. Após mais

de 20 anos empenhados num conflito desgastante, cujo resultado foi uma derrota sancionada a

duras penas, Cartago viveu uma guerra civil com picos de selvageria onde os principais

comandantes pereceram ou foram aprisionados em combate, além de serem coagidas a

entregar a sua ultima base de comércio na rica e movimentada rota do Mediterrâneo Central.

3 Próximo a 31 toneladas de prata.

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Durante uma geração, os cartagineses viveram sob as tensões de uma guerra, se não total, uma

guerra de sobrevivência ou aniquilação. Uma guerra tão acirrada, que seus principais

opositores não foram seus inimigos, mas justamente seu próprio exército. Uma seqüência de

guerras em tamanha escala, que os autores da época, mesmo aqueles que lhes nutriam

oposição, apiedaram-se deles. As necessidades estavam assolando Cartago, estava na hora de

surgirem as soluções.

E a solução não demorou a chegar. Assim que a situação na Líbia foi estabilizada, os

cartagineses enviaram um exército, comandado por Amílcar Barca, rumo à uma distante e

esquecida região mediterrânica: a Ibéria. Lá, em aproximadamente doze anos, Amilcar

estabeleceu as bases do poderio cartaginês na região das “Colunas de Hércules” (atual Estreito

de Gibraltar), bases sólidas o suficiente para reerguerem Cartago novamente ao estado de

grande potência mediterrânica, a ponto de voltar a ameaçar a supremacia romana menos de

uma geração após quase desaparecer sob a onda de fúria mercenária.

Como essa recuperação quase milagrosa foi possível? Com que forças Cartago pode

se reerguer? Qual o motivo desse súbito interesse pela Ibéria, que apesar de suas legendárias

riquezas, jamais havia sofrido assédio de Cartago antes? Quais eram as possíveis expectativas

cartaginesas sobre o território da Península Ibérica? Como foram os contatos com essa região?

Foram somente contatos bélicos, ou aconteceram negociações diplomáticas? As populações

locais absorveram com naturalidade a imposição da hegemonia cartaginesa na região, ou

também aconteceram reações à chegada dos novos intrusos? Qual tipo estrutura de poder

permitiu a Cartago conquistar tão rapidamente, e manter por tanto tempo uma região tão

distante, sendo que acabava de sair de uma situação de crise econômica, civil, militar e

diplomática? Essas são algumas das questões que trabalharemos problematizando-as ao longo

de nosso trabalho.

Inicialmente, no Capítulo I - “Zona Escura”, vamos definir nossos limites espaciais e

temporais. Comentaremos acerca da historiografia dedicada à relação dos cartagineses com os

povos da península ibérica, desde a Antiguidade até nossa época. Procuraremos problematizar

certos estereótipos, bem como situar as teorias dentro das contingências temporais e

contextuais de seus autores.

Em prosseguimento, no Capitulo II – “Políbio e o primeiro relato sobre o Extremo

Ocidente Mediterrânico”, iremos tratar sobre Políbio e sua obra História4. Nossa análise será

4 POLIBIO, Histórias. Tradução de Mário da Gama Kury, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985.

Optou-se por essa versão devido a indicação e crítica feitas por Juliana Bastos Marques em artigo sobre a técnica

de escrita de Políbio, além de ser uma tradução em português, produzida por um filólogo especialista na língua

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18

centrada sobre a tradição mítica e historiográfica da qual Políbio foi tributário. Também

comentaremos sobre sua biografia e como as experiências pessoas do autor podem ter

influenciado sua obra.

No Capítulo III – “O colosso cartaginês torna a se levantar” iremos analisar nossa

fonte, buscando entender em meio a quais influências, contextos e através de que formas

Cartago conseguiu recuperar-se e expandir-se mais do que nunca antes. Por questões de

organização, iremos analisar cada um dos governos dos três líderes Barcas: Amílcar (237 –

229 a.C.); Asdrúbal (229 – 221 a.C.) e Aníbal (221 – 220 a.C.). Não é nossa proposta estender

nossa análise para além dessa data, pois já estamos lidando com os preparativos para a

Campanha Itálica de Aníbal; as atenções deixam de ser a expansão, e passam a ser a

preparação para uma grande ofensiva.

Ao final, iremos expor nossas considerações finais na “Conclusão”. Por ultimo,

temos algumas informações adicionais: um Glossário, com a explicação de alguns termos

muito utilizados no decorrer do trabalho; e nos Anexos, um explicação mais estendida sobre o

Círculo do Estreito, assim como uma série de mapas e tabelas.

original da obra, e de ser de fácil acesso e disponibilidade para consultas. Além da versão de Mário da Gama

Cury, Existem outras traduções, em diversos idiomas. Em inglês, temos a tradução da Penguin Books,

POLYBIUS, The Rise of the Roman Empire, translated by Ian Scott-Kilvert, Londres, Penguin, 1979, é a versão

mais moderna, e possui uma boa introdução, escrita por Frank Walbank, considerado um dos maiores

especialistas sobre Políbio na atualidade. Porém ambas as edições são incompletas. Para o texto completo, as

edições mais usadas são as da Loeb Classical Library, POLYBIUS, The Histories, with na English translation by

W. R. Paton, 6 vols., Cambridge, Harvard University, 1954 (inglês e grego), e da Belles Lettres, POLYBE,

Histoires, trad. P. Pedéch ET. al., 10 vols, Paris, Les Belles Lettres, 1995 (francês e grego)

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19

CAPÍTULO I - Zona Escura.

A História, ciência que estuda as ações humanas no tempo, possui um dos mais

amplos campos de pesquisa dentre todas as ciências. Um de seus campos de pesquisa dedica-

se ao chamado Mundo Antigo, isto é, o mundo cronologicamente localizado pela

historiografia tradicional, desde a invenção da escrita (+/- 3.000 a.C.) até a tomada de Roma

pelos Hérulos liderados por Odoacro, em 476 d.C. Nesse amplo recorte temporal, existem

diversas outras subdivisões, devido a algum evento cujas conseqüências criariam estruturas de

longa-duração. Sem muito receio, dos vários períodos que podem ser recortados dentro da

História Antiga, dois em especial tem destaques tanto nos círculos acadêmicos quanto no

imaginário cultural ocidental: o “Período Helenístico”, e o “Período Romano”.

O “Período Helenístico” inicia-se com a ascensão da Macedônia de Felipe II como

potência hegemônica da Hélade grega (337 a.C); atinge o apogeu com a impressionante

campanha de Alexandre Magno contra os persas (334 – 323 a.C.) e a união cultural e

ideológica entre o Ocidente e o Oriente, e adquire uma espécie de “estase” com a morte de

Alexandre Magno e a divisão dos poderes com os seus Diadocoi, seus herdeiros políticos, que

entraram numa sucessão de lutas fratricidas por fronteiras ou para demonstração de

hegemonia sobre os demais reinos do Mediterrâneo Oriental (a partir de 324 a.C até o Reino

Ptolomaico ser conquistado por Roma, em 30 a.C.).

O segundo período, o “Período Romano” não possui fronteiras totalmente definidas,

na maior parte das vezes são escolhidos marcos arbitrários, mas de maneira geral, podemos

colocar o inicio desse momento com o final da Segunda Guerra Púnica (201 a.C.), quando a

supremacia romana é inconteste tanto no Mediterrâneo Ocidental quanto no Oriental. Ao

impor nova derrota à Cartago, e fincar bases na Grécia e no Oriente Próximo, Roma promove

uma revitalização e uma nova dinâmica política e social aos territórios “helenísticos”,

absorvendo a cultura da região e dando novas leituras ou promovendo novas formas de pensar

baseadas na herança alexandrina.

Ambos os períodos passaram a ocupar um importante lugar dentro da Historiografia,

desde os primórdios da “cientificização” da História. Esses recortes recobrem imponentes

batalhas, líderes famosos, construção de magníficos monumentos, bem como grandes

tragédias e as raízes daquilo que, posteriormente, serviu de base para a argumentação de

pensadores e políticos para legitimar fronteiras ou justificar uma possível superioridade

cultural/racial. Iremos trabalhar isso mais detalhadamente à frente. Períodos tão brilhantes e

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20

atrativos exerceram um efeito ofuscante sobre os acontecimentos que os entremearam ou que

aconteceram em paralelo, mas as margens desses períodos.

Claro, não podemos generalizar e dizer que devido a esses dois períodos

simplesmente os demais que os antecederam, ou que os sucederam foram menos estudados.

Longe disso, pois no intuito de entender o contexto em que tais períodos ocorreram, os

períodos antecessores e posteriores foram analisados. Entretanto, tais análises possuíam

especificidades muito restritivas. A base da produção do conhecimento histórico sobre a

Antiguidade Clássica está nos corpos documentais (fontes escritas, relatos oficiais, relatos de

viagens, tratados conceituais ou científicos, entre outros) e nos resquícios materiais (como o

nome indica, seriam os vestígios físicos deixados por uma cultura, seja um grande

monumento seja um caco de cerâmica). E se nem sempre ambas as áreas caminharam juntas

nas pesquisas históricas sobre os grandes períodos usados como exemplos, muito menos nas

pesquisas sobre as “zonas escuras” entre os famosos períodos.

Por “Zonas Escuras” estamos nos referindo aos períodos históricos dos quais temos

um conhecimento limitado acerca de um contexto geral ou especifico, temporal ou

geograficamente. Esse desconhecimento em muitos casos é decorrente de um dos vários

contratempos da História, e que afeta mais sensivelmente as pesquisas sobre História Antiga:

as fontes e quem as escreveu. São escassos os períodos onde possuímos fontes de todos os

lados envolvidos nos eventos. A maioria esmagadora dos casos, contamos somente com o

relato (geralmente fragmentários) deixado pelos vencedores. E como acontece em muitos

casos na atualidade, essas versões estão sobrecarregadas de preconceitos, degradações contra

os inimigos, ou então exageros numéricos e artifícios retóricos para exaltação dos sucessos

dos vencedores.

A “Zona Escura” a qual iremos nos referir nesse trabalho possui um recorte temporal

e uma região espacial definidas. Para o objetivo de nossa análise, essa Zona Escura estaria

num cenário deixado às margens da ascensão romana, ou do desgaste das potências

helenísticas: o Mediterrâneo Extremo-Ocidental. Braudel, em um de seus últimos trabalhos5,

desenvolve de forma quase poética a idéia de que o mundo mediterrânico é dividido em duas

partes, traçando uma dividindo o mar Adriático ao meio, rumando sentido sul ao largo do

litoral oriental siciliano e continuando até as costas líbias, temos as fronteiras de dois

mediterrâneos: o Ocidental e o Oriental. Cada uma com uma série de características

(geográficas, culturais, até mesmo “cores de mar diferentes, um lado mais claro e convidativo,

5 Memórias do Mediterrâneo, obra deixada em “gaveta” e publicada por seu filho no final dos anos 90.

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outro mais sombrio e contemplativo”) próprias, e essas duas partes estiveram sempre numa

convivência forçada, com relações conflituosas e de disputas.

O Mediterrâneo Ocidental englobaria a Península Itálica, a Península Ibérica, a

Sicilia, a Córsega-Sardenha, o litoral norte africano ao ocidente da Cirenaica, além das

diversas ilhas e do litoral atlântico tanto europeu quanto africano. Nesse plano, a região

extremo-ocidental iria desde o atual Estreito de Gibraltar, conhecido na época clássica como

Colunas de Hércules6, até a Cordilheira dos Pirineus na Europa, e ao golfo de Tanger, na

África.

Temporalmente, essa zona escura estender-se-ia desde as míticas relações entre

Tartessos e a cidade de Tiro, na Fenícia (meados do século VII a.C.), até a imposição do

domínio romano (século III a.C) e os relatos das guerras destes com os habitantes locais. O

principal empecilho para conhecermos como era essa região antes da chegada romana é a

escassez de fontes primárias (escritas baseadas em informações de “primeira mão”), a maior

parte dos escritos é baseada em obras que infelizmente não chegaram até nós (ou chegaram de

forma tão fragmentada que seu estudo torna-se improdutivo). A partir da presença romana, há

um aumento significativo na quantidade de obras e na qualidade dos relatos e descrições dos

eventos ocorridos no local, assim como as relações políticas, social, econômica e militares

estabelecidas na Península.

Essa região, desde a Antiguidade, parece estar envolta com uma aura de mística e

mistérios. Para os gregos, durante muitos séculos, as Colunas de Hércules eram considerados

os limites do “Mundo Conhecido” à oeste. Por essa passagem, os navegadores alcançariam o

Rio-Oceano que contorna todas as terras emersas. Próximo a ela, está a Cordilheira do Atlas,

onde o titã de mesmo nome estava condenado a segurar a abóbada terrestre sobre seus

ombros. Indo além dessa passagem, estariam os míticos Jardins das Hespérides, onde ninfas

cuidariam das arvores de pomos de ouro, e uma imponente serpente faria a segurança de tão

importantes frutos. Essa visão mítica somente foi desfeita muitos séculos depois de sua

criação, quando as reflexões filosóficas e cientificas, e as viagens e relatos geográficos foram

fendendo o tecido do mito que recobria os limites extremo-ocidentais do “Mundo

Conhecido”. E com a chegada das forças romanas, temos a integração com o mundo

civilizado, letrado, realístico e crível.

6 Devido a lenda de que Hércules, durante a realização de seus 12 trabalhos, teria aberto o estreito batendo com

um porrete no paredão de rochas que fechava o mediterrâneo numa bacia.

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Mas, mesmo assim, as referencias míticas permaneceram, só que agora

transfiguradas em hipóteses de existência histórica. Além da lenda grega do Jardim das

Hespérides, outra referencia envolta em lendas descreve uma imagem de grandes riquezas na

região, o controverso reino de Tartessos. Reino rico em prata, relativamente poderoso e

próspero, estranhamente desapareceu envolto no negrume de nossa Zona Escura. Esse

desaparecimento repentino suscitou muitas inquietações e dúvidas, mas que foi cedendo lugar

a um assunto mais atraente, a chegada romana.

Claro, não houve um esquecimento total sobre esse recorte temporal. Diversos

historiadores dedicaram-se a estudar essa “zona escura” da História Antiga. Porém, o foco das

pesquisas estava direcionado para outro cenário, posterior à expansão cartaginesa na

península, a saber, as atenções de suas pesquisas estavam sobre como Roma venceu Aníbal

Barca na Segunda Guerra Púnica7. Especificamente sobre como eram as relações entre

fenícios e cartagineses com as populações locais, as pesquisas pioneiras foram desenvolvidas

pelo pesquisador Adolf Schulten, em finais do século XIX, inicio do século XX.

Adolf Schulten, em sua obra “Tartessos”8, desenvolveu um pensamento que

repercutiu até muito recentemente. A tese principal de sua obra defende que numa época

remota da pré-história9 da ocupação humana na península ibérica, colonos egeus

(possivelmente cretenses, ou então etrusco-tirsenos) aportaram no litoral sul peninsular,

trazendo o que seria a mais antiga civilização no Ocidente, o embrião do Estado de Tartessos.

Esse brilhante estado civilizado e culturalmente aparentado com a civilização grega acabou

sendo subjugado e finalmente destruído com a chegada dos colonizadores fenícios10

e

cartagineses. Ambas as ocupações de origem semítica teriam por objetivo a exploração das

7A Segunda Guerra Púnica – de 218 a.C, iniciada com a tomada de Zacântion

7 (Sagunto); até 201 a.C, quando

Aníbal é batido em Zama e Cartago assina um novo tratado de paz reconhecendo-se sob a hegemonia romana. 8 Obra de 1924.

9 Sobre os períodos pré; proto; e histórico, cf. ALVAR, Jaime. “Capítulo I Los primeros estados em la

Península, los pueblos del área mediterrânea”, IN: “Entre Fenícios e Visigodos – La historia antigua de la

Península Ibérica”, Madrid, 2008, p. 24. Nesse trecho, Alvar define que estabelecer um quadro cronológico que

abranja todas as discussões teóricas acadêmicas é uma tarefa muito complexa; mas, em linhas gerais, o período

Pré-Histórico iria desde a ocupação humana da região até que as culturas letradas do Mediterrâneo são atraídas

para o local e desenvolvem relatos sobre a realidade autóctone. O período Proto-Histórico estaria em ambos,

seria quando uma cultura iletrada aparece mencionada no registro literário de outra sociedade culturalmente mais

avançada. 10

Schulten define como datas de dominação fenícia de meados dos anos 800 a.C (reinado do mítico Gérion de

Tartessos) até a queda de Tiro pelos acádios, em 700 a.C. Com a queda de Tiro, Tartessos foi reconstruída

através da ajuda dos aliados gregos foceos, os mesmo que fundam Massilia (atual Marselha) e a e cidade de

Mainake, dentre diversas outras colônias e entrepostos comerciais no litoral mediterrâneo da Península Ibérica.

Com a chegada dos cartagineses na península, temos uma retomada nos conflitos entre Tartessos (e seus aliados

gregos) contra os invasores semitas de Cartago. Em toda a sua obra, as relações pré-romanas na península são

marcadas sempre pelo conflito entre indo-europeus (na época chamados de “arianos”) e descendentes semíticos.

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riquezas comerciais (tanto minerais quanto agrícolas), bem como o uso da população

autóctone como mão-de-obra explorada em benefícios dos dominadores orientais.

Essa lógica de relacionamento é filha de seu tempo e de seu criador. Formado na

tradição historiográfica alemã do século XIX, Schulten imprimiu em sua produção muitos dos

valores que atravessavam a sociedade alemã durante a crise de valores e de ideologias

conservadoras da República de Weimar. Unindo a concepção de História ainda ligada à

História Metódica Francesa e aos pressupostos da chamada História Política Tradicional

(onde a questão de legitimação política de um Estado está intermediada pela proximidade com

um passado glorioso, o passado greco-romano), junto de uma visão anti-semita, Adolf

Schulten intensificou a imagem deixada pelos autores gregos e romanos11

sobre os fenícios e

cartagineses: são ambiciosos, desconfiados, sem moralidade, violentos, agem de forma

imoral, são piratas exploradores, entre outros adjetivos negativos.

Esse estereótipo foi perpetuado na historiografia espanhola devido a uma conjunção

entre o aproveitamento político do trabalho de Schulten feito pelos nacionalistas; a

aproximação e admiração da Academia Espanhola durante o pré e o pós-Segunda Guerra

Mundial com a Academia Alemã; e a intervenção política realizada nas pesquisas e na

organização da Academia Espanhola, onde pesquisadores foram afastados dos círculos

acadêmicos devido a seus vínculos políticos ou por seus trabalhos questionarem as bases em

que se apoiavam a postura política praticada pelo governo na época12

. A permanência dessa

imagem canônica negativa está presente em várias obras muito posteriores à obra “Tartessos”.

Dois pesquisadores merecem destaque: Fernand Braudel e Gerhard Herm.

Uma das primeiras obras a chegar ao Brasil, e a ser dedicada exclusivamente aos

fenícios e cartagineses foi o livro de Gerhard Herm13

, “A Civilização dos Fenícios”. Essa

obra, escrita como uma espécie de manual básico sobre o assunto, e produzida em meados da

década de 1940-50, não descreve exatamente a “Cultura” desses povos. Para Herm, mais do

11

Homero, na Ilíada; Hesíodo na Teogonia, Heródoto em sua História, Tito Lívio em sua Ab Urbe Condita;

entre outros autores. 12

Cf. CASTRO, José L. L. “Fenícios y cartagineses em la obra de Adolf Schultsen: uma aproximación

historiográfica”. Gérion, v. 14, 289 – 331. Madrid, 1996. Dentre os diversos fatores para explicar a prevalência

das idéias de Adolf Schulten sobre o papel de fenícios e cartagineses no desenvolvimento cultural peninsular

pré-romano, Castro ressalta principalmente o clima político em que a obra foi produzida e debatida. Na Espanha,

a ciência História só foi organizada muito tardiamente, já em finais do século XIX, e existia uma grande

expectativa para uma atualização cientifica emparelhando as pesquisas históricas hispânicas com as pesquisas

históricas francesas e alemãs, os modelos da época. Além disso, muito antes da Segunda Guerra Mundial, já

havia um clima político e acadêmico filo-germanista, cujas ansiedades foram correspondidas pela obra do

pesquisador alemão. Durante e no pós-guerra, ocorreu uma forte intervenção política nacionalista de direita nas

universidades, onde pesquisadores que questionassem as idéias de Schulten foram desligados ou distanciados de

suas funções acadêmicas 13

HERM, Gehard. A Civilização dos Fenícios. Rio de Janeiro, Otto Pierri Editores Ltda, 1979.

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que motivados por uma forma de cultura específica, os cartagineses obedeciam a uma

estrutura lógica muito semelhante à lógica de mercado que regula as atuais relações do

mercado capitalistas.

A explicação fornecida no livro, longe de contextualizar ou de propor uma reflexão

mais profunda sobre a expansão rumo à Península Ibérica, toma como pressuposto que os

cartagineses, como hábeis negociantes e mercadores (bons tanto para encontrar nichos de

mercado para seus produtos quanto para conseguirem lucrar por vias escusas), foram atraídos

somente pelo potencial econômico da região. A riqueza mineral e a possibilidade de

exploração sobre as tribos celtiberas (como escravos, mercenários e compradores

manufaturados) sustentaram e mantiveram a expansão e o domínio cartaginês sobre o

território ibérico, além de fornecerem tudo que fosse necessário para o reflorescimento de

Cartago, em especial das finanças pessoais das elites no poder.

A visão anacrônica de Gerhard Herm não se desenvolveu aleatoriamente. Mesmo

Braudel14

, produzindo sua obra em finais da década de 1960, busca analisar Cartago

aproximando a sociedade cartaginesa com uma sociedade industrial, quase uma prévia do que

seria a Inglaterra em meados da Revolução Industrial. Tal aproximação, ironizada pelo

próprio pesquisador, apresenta uma análise mais aprofundada do contexto de longa-duração

da região do Mediterrâneo Ocidental, dotando-a com características próprias, onde uma delas

(e a mais explorada no livro) são as relações comerciais. Refletindo sobre as relações

comerciais, Braudel foi um dos primeiros a problematizar a chegada dos cartagineses à

Península, comentando sobre a presença anterior de núcleos culturais fenícios ali, ou seja,

apontando a existência de outra cultura anterior à cartaginesa, mas próxima aos fenícios, e

ambas diferente da celtibera. Mas dado à especialidade de Braudel não ser esse recorte

temporal, e ao objetivo da obra, não houve um aprofundamento sobre o que seria

“cartaginês”, “peninsular” e “celtibero”.

As primeiras propostas de revisão crítica da obra de Schulten aconteceram já em

meados da década de 1930 – 1940, porém foram silenciadas em esquecidas durante o clima

político e acadêmico dominante. Em finais da década de 1960, inicio da década de 1970,

Miquel Tarradell15

realiza uma nova série de escavações em diversos dos sítios estudados por

14

BRAUDEL, Fernand. Memórias do Mediterrâneo – Pré História e Antiguidade. Rio de Janeiro:

Terramar/Multinova, 2001.

15 Miquel Tarradell i Mateu (Barcelona, 1920 – 1995), foi um dos grandes nomes da arqueologia e das pesquisas

sobre a pré-história da Península Ibérica. Obteve renomados títulos acadêmicos ao longo de sua produtiva

carreira, merecendo destaque o Prêmio de Honra das Letras Catalã (1977). Foi cátedra de Arqueologia na

Universidade de Valência e na Universidade de Barcelona. Ostentou o título de membro do Comitê Permanente

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25

Schulten, e reelabora vários dos postulados do historiador alemão, revendo e restabelecendo,

através da arqueologia, o cronograma das grandes mudanças sócio-políticas na península. Sua

maior contribuição foi propor um novo quadro cultural, baseado nas similaridades e

diferenças existentes em sítios arqueológicos no sul peninsular, nas margens européia e

africana do Estreito de Gibraltar, bem como alguns sítios na costa atlântica de ambos os

continentes. A essa cultura comum, Tarradell batizou como “Círculo do Estreito”. Essa

cultura comum integraria num mesmo contexto cultural e espaço-temporal cidades portuárias,

centros metalúrgicos, campos de exploração mineral, complexos de fabricação cerâmica e de

gêneros alimentares para exportação, como a salgação de peixes e o garum (uma espécie de

molho muito popular em todo o mediterrâneo, composto por vísceras, sangue de peixe e

outras carnes envelhecidos por meses em ânforas especiais).

Essa cultura do “Círculo do Estreito” responderia muito mais à rica Tartessos do que o

núcleo cultural sediado unicamente no sul peninsular proposto por Schulten. Recentemente,

vários pesquisadores retomaram os trabalhos e as pesquisas de Tarradell, refinando ainda mais

o quadro cronológico e elencando ainda mais elementos que corroboram a proposta do

Círculo16

. Mesmo assim, ainda ocorrem acalorados debates acerca de qual referencial

conceitual seria mais legitimo de ser usado, se a idéia de Tartessos, baseada em Schulten, mas

revisada e aprimorada; ou se a idéia proposta por Tarradell de uma grande rede cultural

interligando os vários núcleos urbanos e comunidades agrárias e/ou pesqueira do Estreito de

Gibraltar. Não iremos entrar nos méritos dessa questão, que em ultima análise está muito mais

próxima de uma discussão semântica do que de implicações identitárias17

.

Porém, ambas as teses possuem um importante ponto em comum: o centro

socioeconômico regional estaria na cidade, ou nas proximidades, da Gades, atual Cádiz, entre

os rios San Pedro e Zuraque, no extremo sul da Península Ibérica. E a época de maior

da Associação Internacional de Ciências Pré-Históricas, assessor do Conselho de Arqueologia de Generalidade

da Catalunha, e presidente do Iº Congresso de História do País Valência (1971); foi membro da Real Academia

de Belas Letras de Barcelona. Fundou, em 1946 a revista clandestina de cultura catalã, chamada Ariel; dirigiu a

revista Fonaments. 16

Cf. TRISTAN, F. Chaves; VARGAS, E. Garcia. “Reflexiones en torno al área comercial em Gades: estudio

numismático y econômico”. Gérion – Homenaje al Dr. Michel Ponsich, Madrid, p. 139 – 168, 1991.

MARIÑAS, Ana M. N. V. y. “El espacio geopolítico gaditano em época púnica. Revisión y puesta al dia del

concepto de “Círculo del Estrecho”. Gérion, Madrid, nº 19, p. 313 – 354, 2001. ROMERO, Antonio M. S. &

RODRIGUEZ, José J. D. & ESPLIGARES, Antônio S. “Nuevas aportaciones a la definición del Círculo del

Estrecho: la cultura material a través de algunos centro alfareros (SS. VI – I a.n.e.)”. Gérion, v. 22, nº 1, p. 31

– 60. Madrid, 2004. 17

Sobre como diversos autores nomeiam a região extremo-codidental mediterrânica, cf. MORENO, Luís A. G.,

“Turdetanos, turdulos y tartessios. Uma hipótesis”. Anejos de Gérion, v. II, p. 289 – 294, Madrid, 1989. Nesse

artigo, Moreno aponta para a natureza arcaizante do termo “Tartessos” dentro das obras de geógrafos gregos dos

séculos I a.C. – II d.C. Enquanto Turdetanos e Turdulos seriam os nomes dados pelos autores gregos e romanos a

partir do século II a.C., Tartessos seria um termo utilizado nas passagens recuperadas de autores anteriores ao

século III a.C.

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esplendor dessa cultura estaria entre os séculos VIII a.C. e II a.C., entre a “queda” de Tiro e a

chegada das forças de Cartago.

Dessa forma, podemos apreender uma informação de grande relevo à questão da

expansão cartaginesa na península. Em todas as pesquisas, é unânime que na península Ibérica

existiu uma avançada cultura, com focos urbanos, grande riqueza metálica, e de extensa

abrangência comercial. Ou seja, Cartago não chegou num vazio, segundo apontam os

registros materiais. Mas, o que nos dizem os registros históricos, as fontes escritas? Quais

autores comentam sobre a chegada cartaginesa na península? Qual seria o mais próximo ao

evento? O que ele nos diz sobre essa expansão? Quais os cuidados que devemos ter com a sua

versão dos fatos? Será o que analisaremos no próximo capítulo.

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CAPITULO II - Políbio e o primeiro relato sobre o Extremo Ocidente Mediterrânico.

2. 1 – O Extremo Ocidente na Historiografia antes de Políbio.

Como ressaltado anteriormente, a região ao Ocidente do eixo Mar Tirreno – Sicilia –

Cabo de Túnis apresenta-se, historiograficamente, como “coberta por brumas”, isto é, as

terras e os povos que habitavam aquelas terras são vistos pelos povos do Mediterrâneo

Oriental, como seres distantes, no limiar entre as certezas da convivência e das relações

comerciais e o mistério dos mitos e fabulas. E, muito provavelmente esse jogo entre certezas e

superstições pode ser explicado pelo incrível mutismo daqueles que mais conversaram com as

culturas ocidentais, os fenícios.

Ao contrario do que observamos com outros povos do Crescente Fértil, como

egípcios, babilônicos, acádios, ou mesmo hititas e hebreus, os fenícios não nos deixaram

testemunhos dos territórios por eles governados ou descobertos. Na verdade, não temos quase

nenhum testemunho dos fenícios sobre eles mesmos. Apesar de serem a primeira cultura a

utilizar um alfabeto de reduzido volume e de relativamente fácil domínio (comparado aos

alfabetos silábicos o ideográficos hieroglíficos, cuneiformes, ou minóicos do mesmo período),

chegaram até nós apenas alguns poucos documentos.

Em sua maior parte, esses documentos são placas de cerâmica recobertas por cera ou

barro, onde estão entalhadas as letras. A maioria dos poucos documentos que chegaram até

nossa época são relatos de transações comerciais. Os documentos administrativos, isto é,

cartas diplomáticas, documentos de arquivos do palácio da cidade ou mesmo narrativas

históricas, mitológicas ou geográficas, são muito escassos, chegando a serem inexistentes para

algumas das cidades fenícias, como Ugarit ou Beirute.

Entretanto, temos acesso (indiretamente) às informações fenícias sobre suas colônias

e contatos no ocidente através de seus parceiros comerciais, os hebreus. Na Bíblia, em

especial no Livro dos Reis, os fenícios atuam como intermediários entre o reino de Salomão e

as chamadas “naves de Tarsis”18

. Foram desenvolvidas diversas teorias e hipóteses sobre onde

estaria localizada Tarsis, que ficou imortalizada justamente por essas indicações indiretas. O

texto hebreu, em continuação e em outros livros, refere-se à Tarsis sempre a ligando com a

figura de Hierão, rei de Tiro, e também com a imagem de imensa riqueza em prata e metais

18

I Reis, 10:22 – “De fato, o Rei Salomão tinha naves de Tarsis no mar junto com as naves de Hierão. As naves

de Tarsis vinham uma vez a cada três anos e traziam ouro, prata, marfim, bugios e pavões”.

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28

preciosos, a tal ponto de que as embarcações, ao aportarem lá, trocavam suas âncoras feitas de

pedra ou metal comum, por âncoras em prata, tal a profusão desse mineral na região.

Considerando o elevado tempo de percursos, três anos para a ida e a volta, não é

inviável localizarmos essa próspera cidade como uma colônia extremo-ocidental fenícia, ou

mesmo como uma cidade parceira comercial de Tiro. Somente após a grande expansão

colonial grega, entre os séculos VIII e VI a.C., é que a navegação de cabotagem pode ser

substituída por uma navegação de longo alcance em mar aberto, e mesmo assim, essa

navegação não era total, posto que existe uma linha de ilhas19

que ligam as duas extremidades

longitudinais mediterrânicas. Numa navegação de cabotagem, onde a navegação era

preferencialmente feita durante o dia, tendo a linha da costa sempre ao alcance da vista, e

durante as noites e tempestades o navio permanecia fundeado num porto ou equivalente,

demorava-se um tempo consideravelmente maior para cruzar o Mediterrâneo de ponta a

ponta. E a natureza das cargas indica que durante o trajeto, poderiam ser feitas diversas

paradas com fins comerciais, trocando itens como prata e marfim por animais selvagens. A

região de Cirene, na Cirenaica (litoral norte da Líbia, próximo ao Egito) era um famoso ponto

de encontro de caravanas do interior subsaariano que atravessavam o deserto para trocar

artigos da África Tropical por artigos mediterrânicos, como cereais, tecidos, ânforas ou

objetos de vidro (os fenícios eram famosos por possuírem um virtual monopólio na fabricação

do vidro colorido). Dado essas possibilidades, as viagens demorarem três anos não nos é tão

surpreendente.

As referencias às naves de Tarsis somem no momento seguinte vivido no Oriente

Próximo. Após a morte de Salomão e a divisão do Reino de Jerusalém em dois reinos rivais,

Judá e Israel, ambos acabam caindo sob os ataques de assírios e babilônios. Destino

semelhante é vivenciado pelos seus parceiros silenciosos. As póleis fenícias igualmente

sucumbem aos reinos mesopotâmicos, e perdem contato com suas colônias distantes, que

passam a ter que se adaptarem sozinhas à nova realidade20

.

Outro povo que nos deixou uma rica interpretação sobre a região do Estreito de

Gibraltar foram os gregos. Grandes navegadores, desde os tempos de Homero possuem

referencias à terras nos confins do mar Mediterrâneo de extrema riqueza e poder. Alguns dos

mitos principais foram compilados por Hesíodo e é interessante analisarmos eles, pois os

19

De leste a oeste, a navegação poderia ser feita em pequenas etapas, indo de Tiro para a região do Estreito de

Gibraltar através de Chipre, Creta, Sicília, Égates Sardenha, Baleares e a costa ibérica. BRAUDEL, Fernand.

“Memórias do Mediterrâneo”, p. 212 – 214. 20

Para maiores informações sobre como essas colônias desenvolveram-se, vide ANEXO A.

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29

geógrafos gregos irão se basear nesses mitos ao nomearem os diversos territórios e acidentes

geográficos da região. Tentando seguir uma hipotética seqüência lógica da mitologia grega, a

primeira menção ao ambiente extremo-ocidental está ligada com o mito da Titanomaquia.

Com a ascensão de Zeus e seus irmãos e filhos ao topo da hierarquia divina grega, os Titãs,

divindades anteriores à eles, revoltaram-se e abriram guerra contra os deuses olímpicos

(designação adquirida durante a guerra, posto que passaram a habitar o Monte Olimpo para

defenderem-se dos ataques dos Titãs), e perderam para eles. Diversos desses titãs receberam

punições exemplares, como os ciclopes que passaram a trabalhar para Hefesto; ou então Atlas,

cuja punição foi sustentar sobre seus ombros a abóboda celeste21

.

O litoral mediterrânico africano, e ibérico, é protegido por uma longa cadeia

montanhosa que barra as massas de ar e o avanço do deserto saariano, criando um ambiente

fértil com uma grande diversidade de fauna e flora compartilhada com o litoral sul peninsular

mais próximo. Essa cadeia montanhosa foi nomeada pelos gregos como “Montes Atlas”, uma

clara referencia visando localizar as regiões míticas. Não iremos entrar na questão sobre a

intencionalidade dessas identificações, ou seu papel na mentalidade grega. Basta-nos fazer

uma pequena divagação sobre a quantidade de referencias gregas localizadas nessa região, e

poderemos ter uma noção da importância mítica do local, e que irá nos dar a relevância do

papel de Políbio e seu relato para a nossa pesquisa.

O território do extremo ocidente do mar Mediterrâneo detém um forte significado

aos gregos, antes mesmo da chegada destes na região. Além do mito de Atlas, outras duas

passagens fornecem elementos para entender como essa região, especialmente o litoral sul

peninsular ibérico, estava presente na cultura grega antes da fundação colonial, ou das obras

geográficas descritivas. O personagem mítico Hércules realizou um périplo pela região para

concluir dois dos vários trabalhos que realizou. O primeiro trabalho realizou na região do

estreito foi a busca e captura do imenso rebanho de bois guardados pelo gigante Gerião, de

corpo tríplice da cintura para cima, com seis braços, seis asas e três troncos com três cabeças.

Foi na realização desse trabalho que o mítico herói construiu, ou criou, as duas torres para

separar a Líbia (nome pelo qual os gregos chamavam todo o litoral norte da África) da

Europa. Dai o nome dado pelos gregos ao Estreito de Gibraltar: as “Colunas de Hércules”22

.

Em sua segunda passagem pela região, Hércules, em seu ultimo trabalho, foi buscar

o Pomo de Ouro, fruto célebre como causador da discórdia que deu inicio à Guerra de Tróia, e

21

BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia (a Idade da Fábula): Histórias de Deuses e Heróis.

26ª Ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, p. 180. 22

BULFINCH, Thomas. O Livro de Ouro da Mitologia (a Idade da Fábula): Histórias de Deuses e Heróis.

26ª Ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, p. 180

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30

que somente crescia nos lendários “Jardins das Hespérides”, localizado além dos limites, no

Mar-Oceano (Oceano Atlântico). Para terminar esse trabalho, Hércules precisou da ajuda do

titã Atlas, o mesmo que sustentava o domo celeste. Após um acordo, Hércules sustentou o céu

sobre seus ombros, enquanto Atlas conseguia as frutas e as deu para o herói enquanto este lhe

entregava o peso dos céus.

Novamente, em ambos os episódios a região do extremo ocidente é caracterizada por

possuir uma riqueza natural, de fauna e flora. Para sustentar um imenso rebanho de bois, as

terras de Gerião deveriam ser muito férteis, com grandes planícies de pastagem, quase

inexistentes no território grego. Igual pensamento é aplicável ao pensamento dos mitógrafos

gregos ao localizarem os Jardins das Hespérides, jardins cuidados por ninfas silvestres, ou

seja, que potencializam quantitativa e qualitativamente as benesses de fertilidade,

desenvolvimento, diversidade da Natureza, próximo às terras ibéricas, e ao mesmo tempo,

muito distante das terras gregas, cujo solo pedregoso e acidentado não é um exemplo de clima

exuberante.

Curiosamente, a primeira versão escrita dos mitos gregos foi a obra de Hesíodo

(meados do século VII a.C.) intitulada “Teogonia”. Data muito próxima da redação do Livro

dos Reis pelos sacerdotes hebreus. Em ambos os documentos, temos a imagem coincidente de

localizar no outro extremo do mediterrâneo uma região rica em metais e em gêneros agrícolas.

Essa semelhança entre os relatos pode ser explicada de várias formas, indo desde origens em

histórias comuns possivelmente de origem fenícia, ou por conhecimento real adquirido

através da navegação, indiretamente pelos hebreus e diretamente pelos gregos. Em todo caso,

ambos os relatos nos fornecem a descrição de uma região próspera, com um considerável

nível cultural e com grandes potenciais naturais. Nada sobre povos que habitavam a região, ou

sobre contatos entre esses povos e os navegadores, comerciantes e colonizadores.

2. 2 - Biografia de Políbio.

O primeiro relato descrevendo a região peninsular com embasamento direto

adquirido em viagens pela região é a obra “História” produzida por Políbio de Megalópolis,

em meados do século II a.C. Políbio nasceu por volta de 200 a.C, na cidade grega de

Megalópolis, situada na região da Aquéia, no centro da península do Peloponeso. Quando de

seu nascimento, a divisão política da Grécia seguia, em termos gerais, a partilha da monarquia

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31

universal alexandrina23

. Na Macedônia os governantes provinham da dinastia Antigônida, na

Síria e parte da Pérsia os Selêucidas detinham o poder, e no Egito os faraós da casa de

Ptolomeu, também conhecidos como Lágidas, governavam seguindo preceitos culturais

unindo as idéias helênicas sob as regras da milenar cultura do Nilo. E todos esses reinos

estavam em luta pelas regiões livres que surgiram com a divisão feita pelos Diadocos, os

“sucessores” de Alexandre. Dentre essas regiões livres, estava a Aquéia de Políbio, em

constante atrito com os Antigonidas macedônios.

Além dos poderosos inimigos além dos limites da Hélade grega, dentro da própria

Grécia formavam-se coalizões em lutas, que acabavam sendo influenciadas pelos aliados

militares mais poderosos. As principais ligas gregas dessa época eram a Liga Aquéia,

englobando boa parte do litoral Peloponeso do Golfo de Corinto e da Arcádia; e a Liga Etólia,

formada em oposição à Liga Aquéia, abrangendo cidades da Grécia continental, indo da

Beócia à Ática. Ambas as ligas, além de disputarem entre si pela hegemonia sobre a Hélade,

também combatiam contra as pretensões macedônicas sobre as diversas póleis gregas, porém

tal oposição era bem maleável posto que quando o momento assim exigia, nenhuma das duas

ligas opunha-se a aliar-se com a Macedônia para obter vantagens militares e econômicas

sobre a liga oposta. A estrutura dessas ligas, em especial a Liga Aquéia, era muito diferente da

estrutura das primeiras ligas helênicas24

. Superando as questões de preservação da tradição

individual de cada pólis, nesse novo tipo de liga, as póleis haviam unificado os códigos de

leis, sistemas monetários, de pesos e medidas, e possuíam um só corpo administrativo,

formado pelos mesmos magistrados, assembléias e tribunal25

.

Políbio nasceu e cresceu em meio a mais alta esfera desse corpo de magistrados

únicos da Confederação26

. Seu pai foi Licortas, amigo e discípulo de Filopôimen27

, que após a

23

Por Monarquia Universal Alexandrina estamos nos referindo ao reino comandado por Alexandre, o Grande,

após conquistar a Pérsia e estender as fronteiras de seu governo até as fronteiras do rio Indo, na Índia. 24

Fazemos menção às Ligas anteriores, produzidas durante as Guerras Médicas (século V a.C.) e a Guerra entre

os Gregos (431 – 404 a.C.). Os exemplos mais emblemáticos são a Liga de Delos, voltada contra os persas e

capitaneada por Atenas, onde está pólis passou em pouco tempo da condição de principal defensora da liga para

cidade de hegemonia suprema; a Liga do Peloponeso, também criada para proteger as cidades gregas, em

especial da Lacônia, contra os persas, e liderada pela cidade de Esparta. Outras ligas famosas foram a Liga

Helênica, união das Ligas de Delos e Peloponeso na defesa conjunta contra as invasões persas, e a Liga da

Beócia, criada pelas pólis beócias como forma de proteção contra as ações devastadoras e intimidadoras das

Ligas de Atenas e Esparta durante a guerra entre ambas; era liderada por Tebas, e após a vitória sobre os

espartanos na Batalha de Leuctra (371 a.C.), tornou-se a liga hegemônica grega, até a intervenção de Filipe II da

Macedônia (346 a.C.). 25

POLIBIO, Livro II, 37 26

Os dados biográficos sobre Políbio ainda geram muitos debates. Para uma melhor explicação, cf. KURY,

Introdução. In: POLIBIO, Histórias. Tradução de Mário da Gama Kury, Brasilia, Editora Universidade de

Brasilia, 1985, p. 31 – 34; MARQUES, Juliana Bastos. Políbio. In: JOLY, Fábio Duarte (org), História e

Retórica – Ensaios sobre historiografia antiga. São Paulo: Editora Alameda, 2007, p. 45 – 48.

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32

morte deste, assumiu seu cargo como estratego da Confederação, o mais alto magistrado e

comandante militar da liga, e que deteve ainda maior relevância num contexto de continuas

lutas entre aqueus e etólios e entre estes e os macedônios. Políbio inclusive teve a honra de

carregar a urna funerária com as cinzas de Filopôimen, escrevendo inclusive a biografia do

estratego, que infelizmente não chegou até nós, mas que pode ter sido usado por Plutarco

como fonte para sua “Vida de Filopôimen”. Políbio recebeu uma formação condizente com

sua posição entre os círculos de líderes militares, com uma educação filosófica e literária em

acordo com seu nascimento, demonstrando familiaridade com discursos de filósofos e

polígrafos como Isócrates28

(século V – IV a.C.), mas seu conhecimento retórico não vai além

do padrão de formação aristocrático geral da época29

.

Como seria previsível, Políbio seguiu a vocação do pai e também singrou para a vida

política e militar. Em 190 – 188, entre os 20 – 22 anos de idade30

provavelmente participou da

campanha romana contra Antíocos III na Ásia, e participou da campanha aquéia de socorro a

Eumenes quando da ameaça dos gálatas. Mesmo ainda não tendo idade legal para participar

de uma viagem diplomática, acompanhou o pai em meados de 180 a.C. numa embaixada para

renovação dos tratados entre a Liga Aquéia e ao Reino do Egito, governado por Ptolomeu V

Epifânio (210 – 180 a.C.). A partir desse evento, Políbio pode ser encontrado em estreita

sintonia com todos os eventos militares da Confederação na luta entre Roma e Macedônia

(171 – 168 a.C.).

Em 170 a.C, Políbio assume o importante cargo de Hiparco, comandante militar das

forças de cavalaria, posto de comando inferior apenas ao de Estratego. Devemos lembrar que

nesse período, nos campos de batalha ainda imperava o estilo alexandrino de combate, a

chamada técnica do Martelo e Bigorna, onde a infantaria segura o inimigo, e as forças de

cavalaria atacam a retaguarda do oponente. Logo, o cargo de Hiparca além de exigir uma

experiência militar de sucessos e conhecimento bélico avançados, demandava imensa

confiança por parte tanto da Confederação31

, quanto da relação entre Hiparco e Estratego.

27

Filopôimen de Megalópolis (253 – 183 a.C.), considerado por Plutarco como o “último dos grandes helenos”.

Foi estratego da Liga Aquéia, responsável por valorosas vitórias dos aqueus frente aos etólios liderados pelo rei

Cleomenes III de Esparta (? – 222 a.C.). Em sua obra, Políbio descreve com grandes elogios ao seu valor

guerreiro e como grande líder militar. 28

KURY, op. cit. p. 31 29

MARQUES, op. cit. p. 47. 30

Sobre a idade de Políbio, há ainda grande debate, pois apesar de ser um consenso geral que Políbio nasceu por

volta de 200 a.C., não há uma precisão sobre o quão “acerca” seria essa data. Alguns pesquisadores modernos

apontam para 208 a.C., como RODRIGUES DA SILVA e KURY. 31

Não temos certeza sobre como eram escolhidos os magistrados na Confederação Aquéia, mas somos

inclinados a considerar que como todas as cidades participantes possuíam representatividade nas reuniões, e que

o corpo dos magistrados era comum a todas as cidades, muito provavelmente os magistrados eram eleitos e

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33

Essa nomeação foi concomitante com o rompimento da posição de neutralidade da Liga frente

o conflito entre Roma e Macedônia (política defendida por Licortas, e muito provavelmente

pelo próprio Políbio), e a declaração de apoio da Liga em favor de Roma. Porém, enquanto

Políbio e seu pai estiveram à frente do governo, a política da Confederação voltou-se para os

assuntos internos à própria Grécia, sem pressa para unir-se aos romanos, mas também não os

hostilizando.

Em meados de 170 a.C., essa postura política sofre alterações. Em oposição à

proposta defendida pelo partido aristocrático (do qual Licortas era um dos principais líderes),

existia outra proposta, defendida pelo partido democrático liderada por Calicrates. A proposta

democrática era de uma união com Roma para eliminar os opositores internos, em especial a

ameaça representada pela Liga Etólia32

e a cidade de Esparta. Em 168 a.C., após vencer de

forma definitiva Perseus da Macedônia na Batalha de Pidna, os romanos passaram a exigir

uma aliança incondicional com a Liga Aquéia. O partido democrático utilizando essa pressão

externa conseguiu convencer a Liga a aceitar o pacto com Roma33

, e Calicrates deu inicio a

uma “caça as bruxas”, denunciando todos os que eram contrários à aliança com Roma. Políbio

estava incluído entre os concidadãos denunciados. Os romanos, vencedores na Grécia,

reclamaram mil reféns34

dentre os mais nobres cidadãos, sendo um desses o próprio Políbio.

Políbio permaneceu como refém de Roma por dezesseis anos. E através dessa

condição, ele tornou-se um dos personagens que mais se envolveu com os grandes eventos do

mundo mediterrânico do momento, quase como um “correspondente de guerra” moderno. Há

uma discussão sobre como Políbio iniciou amizade com Cipião Emiliano, filho de Paulo

Emílio35

. Em todo caso, a posição aristocrática de Políbio encontrou solo profícuo em Roma,

ratificados nas Assembléias comuns, realizadas duas vezes por ano, e que contava com a participação de todas as

cidades. 32

KURY, op. cit. p. 32 33

A aceitação do acordo com Roma acabou resultando em um erro tático. Enquanto que para a Liga Aquéia o

acordo foi interpretado como um acordo entre iguais, Roma interpretou-o como um acordo de subserviência da

Liga, isto é, que as cidades gregas da Confederação aceitavam ser dirigidas por Roma, bem como juravam

lealdade, fidelidade e prontidão para ajudar os romanos em suas lutas em território grego contra a Macedônia.

Essa discrepância de entendimento foi uma das diversas causas de desentendimento entre ambas as partes, e que

posteriormente, culminou com a Guerra da Acaia. 34

Em geral, os romanos retinham um numero muito menor de reféns, aproximadamente 100, como prova de

boa-fé dos pactos. O número distendido de reféns pode ser explicado pelo fato de ser uma adesão da Liga, e não

de cada cidade em separado, por isso, muito provavelmente esses reféns foram pegos de todas as cidades da

Liga, como garantias de lealdade individual das pólis através do pacto coletivo da Confederação com Roma. 35

Enquanto alguns pesquisadores defendem que Políbio entrou na esfera de amizade de Cipião assim que foi

transformado em refém de Roma, outros afirmam que Políbio, antes de ser “protegido” pela família dos

Cornélios Cipiões, foi obrigado a trabalhar nas minas itálicas. Porém, a maioria dos pesquisadores não menciona

esse fato, o envio para as minas, o que faz mais sentido dada a posição elevada de Políbio e o potencial de

negociação representado por ele. Não é de hoje que os trabalhos em minas poderiam resultar em acidentes e

perdas humanas, e considerando que Políbio era um refém importante, perde-lo nas minas seria inconseqüência

pouco usual dos romanos.

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34

ainda mais nesse período, onde os aristocratas romanos buscavam aprender mais sobre a

cultura helênica-helenistica. Essa “filohelenia” iniciada com a conquista da Magna Grécia no

século IV a.C., amplificou-se no século II a.C., com a entrada de Roma nos assuntos do

mundo grego helenista. É importante salientar que enquanto os demais reféns eram enviados e

mantidos em diversas cidades italianas, Políbio foi agraciado com a licença para permanecer

em Roma, bem como viajar pelo território romano, contanto que não ultrapassasse os limites

da península itálica.

Devemos frisar que a família dos Cornélios Cipiões era uma das mais destacadas

famílias romanas da época. Cipião Emiliano, amigo e protetor de Políbio era filho de Emílio

Paulo, general romano responsável pela vitória sobre Perseu da Macedônia em Pidna. Porém,

já havia sido adotado36

pela família dos Cornélios Cipiões, cujo maior representante era o

“avô” Cipião, o Africano, vencedor de Aníbal em Zama. O próprio Cipião Emiliano adquiriu

imenso renome, ao vencer Cartago na terceira seqüência de lutas entre essa cidade e Roma, e

adquirir o apelido de “Africano Menor”, em 146 a.C. Também é conhecido como Cipião

“Numantino”, pois em 133 a.C., com a ajuda de Políbio como conselheiro militar na

poliorcética37

, conquistou e destruiu Numância. Está claro que Políbio, através da amizade

com Cipião Emiliano, teve acesso aos eventos e bastidores políticos romanos.

Políbio recebeu o direito de regressar à Acaia38

em 150 a.C., junto com os demais

reféns. Ele fez uso desse direito, mas a partir de então começou a retornar freqüentemente a

Roma, que após quase 20 anos, tornou-se sua segunda pátria, fosse para visitar a cidade, ou

para acompanhar Cipião em suas campanhas (Políbio esteve presente durante a capitulação e

destruição de Cartago, em 146 a.C.). Em sua pátria-mãe, Políbio deparou-se com uma

situação muito diferente de quando havia deixado-a. A Liga Aquéia estava em grande

agitação contra a intervenção romana nos assuntos internos das cidades, e em vão Políbio

advertiu sobre os riscos de uma rebelião aberta, e após a captura e destruição de Corinto

(também em 146 a.C.), usou de sua influência para favorecer os seus concidadãos, ganhando a

gratidão de muitos, manifestada por várias cidades mediante a ereção de estátuas suas39

.

36

A prática da adoção em Roma era forma de contrato político familiar, objetivando assegurar a sucessão de

uma determinada família, bem como para garantir uma forma de acesso às altas magistraturas civis e militares, e

ao Senado. Dessa forma, um homem poderia ser adotado já adulto, e mesmo que seu pai verdadeiro ainda

estivesse vivo. 37

A Poliorcética é o ramo das ciências bélicas que é dedicado as operações de cerco e captura de cidades.

Numância era a capital dos celtiberos revoltosos na Península Ibérica. 38

Nome pelo qual os romanos nomeavam a Grécia, derivado possivelmente da palavra “Aquéia”, nome da Liga

da qual Políbio foi eminente magistrado. 39

KURY, op. cit. p. 32.

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35

Também coube a Políbio a missão de agir como intermediário entre o poder romano

e seus novos súditos, adaptando as cidades ao novo regime político e constitucional. A sua

obra História deve ter sido escrita nesse segundo momento de sua vida. Nessa época ele

realizou diversas viagens de estudo, além das constantes viagens feitas por razões políticas ou

de amizade, cujas datas não podem ser fixadas com precisão. Políbio viajou pela África, e foi

um dos primeiros, se não o primeiro historiador grego a percorrer tanto o litoral quanto o

interior peninsular, acompanhando Cipião Emiliano e recolhendo informações para trabalhar

em sua obra “História”, especialmente conhecendo os locais onde foram travados os eventos

mais recentes, em especial as cidades e os campos de combate entre romanos e cartagineses

durante as Guerras Anibálicas40

, merecendo destaque o fato de ser o primeiro grego a visitar

as cidades cartaginesas no sul peninsular, como Cartago Nova, capital ibérica das possessões

cartaginesas. Ele também visitou a Gália, indo até o Oceano Atlântico41

.

Além de sua obra “História”, escreveu outros trabalhos, a já referida “Biografia de

Filopôimen” e um tratado militar intitulado “Táticas”; ambas as obras não chegaram até nós.

Não sabemos muito mais sobre como foi a continuação de sua carreira após a participação em

Numância até a sua morte, que segundo a tradição42

, ocorreu em 125 a.C., aos setenta e cinco

anos de idade43

, em decorrência de uma queda de cavalo.

2. 3 - Políbio e as influências presentes em sua obra Histórias.

A biografia de Políbio deixa-nos claro que dificilmente haveria, nesse período,

alguém mais capacitado para escrever um relato histórico dessa época. E ele mesmo acaba

revelando isso em sua obra, cuja intenção inicial era mostrar e explicar como se deu a

escalada de Roma como potência hegemônica do Mediterrâneo, no período de 220 a 168 a.C.,

ou seja, no inicio das hostilidades da Guerra Anibálica até a derrota de Perseus da Macedônia.

40

Nome pelo qual Políbio nomeia o que atualmente chamamos de Segunda Guerra Púnica. Vale ressaltar que

Políbio não nomeia nenhum conflito como “guerra púnica”, pelo contrário, ele evita a utilização desse termo,

preferindo nomear as batalhas de diferentes formas. A conhecida Primeira Guerra Púnica é chamada de “Guerra

da Sicilia”, a Segunda Guerra Púnica é referenciada como “Guerra Anibálica” e a Terceira Guerra Púnica é

citada como “Guerra entre Cartagineses e Romanos”. O termo “púnico” deriva de “poeniké”, mesmo termo que

deu origem à palavra “púrpura”, utilizado tanto por gregos quanto por romanos e contendo uma imensa carga de

valores depreciativos e xenofóbicos. Muito posteriormente aos eventos é que eles passaram a ser nomeados

como “Guerras Púnicas”, já contendo o sentido de uma guerra justa contra um inimigo bárbaro e incivilizado 41

KURY, op. cit. p. 32 42

Para Bastos Marques, essa tradição é de origem duvidosa, provinda de um texto dúbio, a obra de Pseudo-

Luciano, Macrobioi (ou Sobre a Longevidade), MARUQES, op. cit., p. 22 - 23 43

Não há um consenso acerca da idade de Políbio, pois alguns autores afirmam que Políbio morreu com oitenta

e dois anos, pois consideram que ele teria nascido em 208 a.C (MARQUES e KURY). Adotamos a posição de

Cury por ser coincidente com a de Walbank.

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36

Porém, com a reabertura das hostilidades entre romanos e cartagineses, bem como a revolta

grega generalizada, que culminaram com a destruição de Cartago e Corinto, respectivamente,

fizeram Políbio ampliar o âmbito de sua obra. Dos trinta livros planejados, foram

acrescentados mais dez, para cobrirem os novos acontecimentos. Desses quarenta livros, trinta

e nove seriam da narrativa propriamente falando, e o ultimo seria um índice póstumo.

Assim como dezenas de outras obras da Antiguidade, sua obra nos chegou muito

fragmentada, estima-se que possuímos apenas um terço do texto real44

. Dos quarenta livros,

possuímos completos apenas os livros 1 ao 5, com o livro 6 quase completo, metade do 12 e

fragmentos diversificados dos demais livros. A maior parte desses fragmentos, trechos

maiores ou menores, foram conservados em citações de autores posteriores, sendo os

principais Estrabão, em sua obra “Geografia”, e Ateneus, nos “Deipnosofistas, Tito Lívio em

sua “História Romana”, Diodoro Sículo, Apiano e Plutarco, que em suas “Vidas Paralelas”

recorre com freqüência à obra de Políbio, dissimulada e abertamente.

O núcleo principal da obra de Políbio que chegou até nossos dias foi retirado da

compilação feita por ordem do imperador bizantino Constantino VII Porfirogeneta (912 –

959). Essa compilação é formada por dois corpos principais, a chamada Epitome ou Excerpta

Antiqua que é formada por diversos extratos de episódios anedóticos da lógica narrativa

original, e os Extratos Constantinianos, que abrangem toda a obra. Infelizmente, os livros 17

e 19 não aparecem em nenhuma dessas compilações, e não possuímos menção, trechos ou

extratos dos livros 37 e 40. Considerando o volume total da obra, e o fato de que muitos dos

manuscritos que contém a obra de Políbio remontarem a um único manuscrito original45

, a

falta deles não é tão impressionante quanto os problemas inerentes à forma como os demais

livros foram preservados.

Não temos a obra completa, somente os livros iniciais e extratos de origens diversas.

Infelizmente esse corpo de texto restante não nos mostra um perfil sempre adequado do estilo

de Políbio, pois as digressões que abundam na obra que temos acesso, são exceções em seu

texto, visto que sua maior intenção e proposta visa a objetividade da narrativa. Entretanto, ele

mesmo também admite que a digressão faz-se necessária, sendo um item obrigatório numa

44

MARQUES, op. cit. p 49.

45 Sobre os percalços para a elaboração do que seria o “manuscrito original”, conferir na dissertação de

mestrado de RODRIGUES DA SILVA, José Guilherme. Roma e a representação de domínio do mundo no

contexto das guerras púnicas: uma leitura das Histórias, de Políbio, UFES, 2010. Em especial o Capítulo I

– “As Histórias e sua tradição manuscrita”, p. 22- 25.

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37

obra histórica46

. Para adequar objetividade e reflexão, essas duas partes são dispostas de

forma diferenciada, com os livros mais filosóficos ou de reflexões formando livros destacados

dentro da narrativa principal, como, por exemplo, o livro 6 dedicado a analisar a constituição

romana explicando como ela foi consolidada e principalmente como ela é a origem da

estabilidade, força e sucesso de Roma; no livro 12, Políbio faz uma reflexão crítica sobre os

historiadores helenísticos que o antecederam, em especial seu mentor Timeu; e no livro 34,

Políbio faz uma análise da geografia mediterrânica. É interessante lembrarmos que o projeto

inicial de Políbio eram 30 livros, mas a situação vivida por ele, como a realização de missões

diplomáticas a mando senatorial e o acompanhamento in loco das operações militares em

campos distantes do mediterrâneo deu-lhe a oportunidade tardia para viajar pelo mundo

mediterrânico, ampliando seus conhecimentos geográficos. Isso pode explicar a posição

deslocada dessa descrição geográfica dentro de sua produção.

Cabe nesse ponto situarmos Políbio dentro da tradição historiográfica helenística,

antes de comentarmos mais sobre o conteúdo de sua obra, e em especial os livros que livros e

extratos que analisaremos no presente trabalho.

Se a História nasceu com Heródoto e sua obra “História”47

, foi Tucídides48

que deu-

lhe os parâmetros de definição de como deve ser escrita, isto é, primando pela veracidade,

recorrendo a fontes confiáveis e a documentos reais, e os discursos devem ser transcritos

exatamente como foram proferidos, ou então o mais próximo possível (se possível, recorrendo

a testemunhas do evento). Desde o estabelecimento desse cânone, o gênero histórico pouco

evoluiu em método tendo um enriquecimento em forma escrita muito maior, sendo que

Políbio recebeu um gênero de rica acumulação factual, porém sem evolução metódica.

Em sua obra, ele mesmo cita os modelos que o instruíram, em muitos casos para

criticá-los duramente. Em ordem cronológica, os historiadores cujas obras serviram de

modelo à Políbio foram Teôpompo, Éforo, Calistenes, Timeu, Fílarco e Áratos de Sícion.

Esses historiadores cobrem os eventos ocorridos no período que vai dos séculos VI ao III a.C.,

dos quais nada restaram além do nome, ou alguns pequenos trechos das obras.

Teôpompo, originário de Quíos (378 – 323 a.C.), em sua obra principal “Filípica”

estabeleceu novas relações entre o gênero História e o gênero biográfico, ao destacar a

personalidade dos indivíduos, mais do que os acontecimentos. Nessa obra, uma espécie de

46

MARQUES, op. cit., p. 49. 47

A obra de Heródoto dedica-se a descrever como ocorreu a guerra entre Gregos e Persas, no século V a.C. 48

Sua obra “História” tem por objetivo dar um relato fiel e imparcial de como as coisas se desenvolveram na

Grécia desde a vitória sobre os persas, ponto final da obra de Heródoto, até a deflagração da guerra entre os

gregos e a vitória dos espartanos sobre a confederação liderada por Atenas.

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38

continuação da obra de Tucídides, centraliza o período de transição da hegemonia tebana

sobre a península grega para a supremacia da Macedônia, na figura e na personalidade de

Filipe II, monarca macedônico. Esse personagem é representado tanto em sua genialidade,

prefigurando seu filho Alexandre, o Grande; quanto em seus vícios e fraquezas. Políbio critica

a obra de Teôpompo por este conceder demasiada importância para Filipe, bem como por

mostra-lhe de forma dúbia, com virtudes e fraquezas. Porém, o próprio Políbio cai nessa

contradição ao descrever Filipe V, igualmente um monarca macedônio. Inclusive,

apercebendo-se dessa contradição, em duas passagens diferentes Políbio tenta explicar os

motivos que o levaram a tais critérios49

.

Éforo de Cime (405 – 330 a.C.) foi um dos grandes inspiradores reconhecidos pelo

próprio Políbio. Historiador grego originário da Eólida, na Ásia Menor, foi assim como

Teôpompo, um dos discípulos do mestre retórico Isócrates. Sua principal obra foi História,

um conjunto de 29 livros que cobrem a história do mundo grego e bárbaro desde o mítico

retorno dos Heráclidas50

(1.100 a.C) até o cerco e tomada de Perintos (341/40 a.C.) por Filipe

da Macedônia. Ele foi o criador do gênero histórico adotado por Políbio, a História Universal.

Inclusive, seria o primeiro e único segundo Políbio51

. Baseando-se na proposta de Éforo,

Políbio busca ampliá-la, pois enquanto Éforo dedicou-se a alinhar uma história universal de

pequenas cidades, ele pretende escrever uma história que una Ocidente e Oriente, una o

desconhecido passado romano e o reconhecido passado helenístico.

Calistenes, sobrinho de Aristóteles e o historiógrafo oficial de Alexandre, o Grande,

foi um historiador de amplos interesses. Muito semelhante a seu tio, Calistenes dedicou-se a

estudar diversos aspectos do conhecimento humano, indo de teorias físicas à mitologia. E essa

ampla gama de assuntos era acompanhada por divagações e reflexões muito próximas ao

estilo introduzido por Políbio em sua obra52

. Embora Heródoto seja taxado de divagador, e

que Tucídides também utilize esse recurso (num volume muito menor que Heródoto), é à

49

POLIBIO, Livro XVI, 28. Estou portanto sendo justo nessa ocasião ao censurar a passividade de Átalos e

dos ródios e ao aprovar a conduta de verdadeiramente régia de Fílipos e a sua magnanimidade e firmeza de

propósito, sem elogiar o seu caráter como um todo, mas assinalando com admiração a presteza de sua ação nas

circunstâncias presentes. Faço essa afirmação para evitar que alguém possa pensar que me estou

contradizendo, pois pouco antes elogiei Átalos e os ródios e censurei Fílipos, e agora faço o contrário. 50

Segundo a mitologia, mesmo terminando seus doze trabalhos, Heracles foi suplantado do trono de Micenas

por seu primo Euristeu, o mesmo que impunha os trabalhos ao herói. Após a morte de Heracles, seus filhos

juraram recuperar seu reino por direito, fugindo para Atenas e posteriormente para a Trácia. Nessas terras

bárbaras foram bem acolhidos e planejaram seu retorno, realizado três gerações depois. Esse episódio mítico, na

realidade, pode ser o modo como foi preservada na memória cultural dos gregos micênicos um evento real, a

chamada “Invasão Dórica”. Os dórios seriam um dos ramos dos povos gregos que habitavam o norte peninsular,

e que em dado momento foram pressionados rumo ao sul pela expansão dos chamados povos Tessálios. 51

POLIBIO, Livro V, 33. 52

KURY, op. cit. p. 33

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39

Calístenes que Políbio faz referencia direta em sua obra. Tucídides é mencionado apenas uma

única vez53

, enquanto que não aparece menção nenhuma à Heródoto, se bem que de forma

indireta ele está presente, posto que Políbio faz referencias a episódios54

presentes na famosa

obra do “Pai da História”.

Timeu Siciliano (352 – 256 a.C) foi um historiador grego conhecido por suas duas

obras principais, uma compilação de 38 livros sobre a história da Sicilia, e uma biografia

sobre Pirro do Épiro (318 – 272 a.C.). Em sua obra, Políbio dedica uma profunda, direta e

incessante crítica ao trabalho de Timeu, reprovando o modo como ele encaixa discursos

retóricos claramente seus como se pronunciados por personagens históricos que não iriam

discursar ou falar daquela forma. Igualmente reprovada é a suposta ignorância geográfica,

política e militar de Timeu, que seria um “historiador de gabinete”. Apesar de siciliota e filho

do tirano de Tauromenion55

, Timeu foi expulso da ilha por ordem de Agátocles de Siracusa,

passando a viver em Atenas, onde recebeu lições de retórica e dedicou-se a compor sua obra

sobre a história de sua ilha natal. Essa seria a origem principal da crítica de Políbio, pois ao

fixar-se em Atenas e não saindo da cidade para escrever sobre regiões distantes, Timeu

escrevia coisas sobre as quais nunca viu, ou seja, escrevia sobre as coisas sem poder dar

qualquer tipo de garantia sobre a fidelidade sobre o que escrevia. Entretanto, Políbio utiliza-se

de muitos dos métodos desenvolvidos por Timeu sendo o mais relevante a contagem

cronológica utilizando as Olimpíadas56

.

Fílarco (meados do século III a.C.) foi um historiador grego controverso. Não temos

certeza sobre seu lugar de nascimento, que varia entre os autores antigos entre Atenas,

Naucratis e Sícion. Suas produções eram narrativas57

que buscavam despertar as emoções dos

leitores através de descrições carregadas em elementos trágicos ou cômicos. Políbio censura

essa sobrecarga de emotividade nos textos, onde o historiador influencia no modo como os

personagens serão compreendidos pelos leitores, contemporâneos e futuros. Mas, apesar da

censura, Políbio não se furta de utilizar esses recursos de escrita para dar vida e acentuar

virtudes ou vícios dos personagens.

53

POLIBIO, Livro XVIII, 11 54

KURY, op. cit. p. 33. 55

Cidade localizada na ilha da Sicilia, próxima ao Estreito de Messina. 56

Não existia um calendário comum entre os gregos. Cada cidade utilizava seu próprio sistema de contagem do

tempo, que podia variar desde os nomes dos meses até mesmo na quantidade de dias por mês, e de meses no ano.

Mesmo os anos eram contatos de formas diferenciadas, indo desde um evento mítico importante até uma

contagem iniciada com a fundação da pólis. 57

Plutarco, em suas “Vidas Paralelas” utiliza da obra de Filarcos para escrever a biografia de Ágios e

Cleomenes.

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40

Áratos (? - ? 213 a.C.) foi um historiador grego, reconhecido mais por seus feitos

como estadista do que como pesquisador. Sua principal obra foi “Memórias”, conhecida por

Políbio e utilizada por Plutarco para escrever sua “Vida de Áratos”. Ao contrário dos demais

autores anteriores, Políbio louva a obra de Áratos por ser um relato de um estadista e de uma

testemunha direta dos eventos que narra. Políbio, em sua obra, faz uma constante defesa de

que ser testemunha dos eventos, e ter experiência prática na política e nas artes militares é

essencial para que um historiador escreva boas obras, pois assim teria um conhecimento

muito mais profundo sobre o que está escrevendo. Profundo a ponto de ser decisivo ao ter que

escolher entre diferentes versões sobre o mesmo evento, diferentes relatos sobre uma mesma

personagem, ou ainda poderia ser decisivo para conseguir cobrir iluminar os trechos obscuros

dos acontecimentos.

Essas múltiplas influências perpassam toda a obra de Políbio. Infelizmente, não

temos como aumentar esse rol de influências, posto que atualmente só conhecemos essas por

estarem presentes, ou serem discerníveis, nos livros, trechos e extratos que chegaram até nós.

Como dito anteriormente, por termos somente alguns extratos, podemos ter um conhecimento

distorcido sobre o estilo de escrita empregado por Políbio. Acerca do estilo dele, há uma

grande polêmica, que devemos analisar para entender a escolha que fizemos dentre os

diversos livros, e extratos, para analisarmos no presente trabalho.

2.4 – A Obra de Políbio, objetivo, temas abordados, estilo e traduções.

No tópico anterior, apontamos que a historiografia helenística do período de Políbio

havia desviado-se muito das definições feitas por Tucídides, 200 anos antes. As narrativas

históricas tornaram-se anedóticas e de alcance restrito, muito semelhantes as narrativas

biográficas, que tiveram um grande aumento quantitativo. Mesmo nas obras dedicadas à

História de uma cidade ou região, os recursos narrativos literários típicos de uma biografia,

como exaltação de grandes feitos em guerras e a busca em despertar comoção emocional

favorável à posição da cidade, e contrária aos inimigos dela.58

Nesse sentido, a produção de

Políbio representaria uma retomada da objetividade defendida por Tucídides, por estar

58

POLÍBIO, Livro I, 14. Com efeito, da mesma forma que um ser vivo privado de sua vista fica totalmente

incapacitado, a História destituída de sua veracidade fica reduzida simplesmente a uma narração inútil. Não

devemos portanto esquivar-nos de acusar nossos amigos ou de elogiar nossos inimigos; tampouco devemos

constranger-nos se às vezes elogiamos e às vezes censuramos a mesma pessoa, pois nem é possivel que os

homens nas atividades normais da vida estejam sempre certos, nem é provável que eles estejam sempre errados.

Devemos portanto em nossas narrativas desviar nossa atenção dos atores e aplicar aos próprios atos as

observações e os juízos merecidos.

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41

preocupado com uma rigorosa pesquisa sobre os eventos, a busca pela verdade e realidade das

ações, e o rigor de uma posição imparcial a ser adotada pelo historiador.

Para Políbio, o propósito da História não era o entretenimento, como estava sendo

proporcionado por seus antecessores. Sua obra deveria ser séria e sem argumentação ou

recursos retóricos, pois para ele, uma obra histórica deveria servir de exemplo aos homens,

como um guia contendo os erros e sucessos do passado que conduziriam as ações no presente

e no futuro. Aos nossos ouvidos, tal objetivo soa muito familiar, já que esse modo de entender

a História como “mestra da vida”59

influenciou fortemente alguns pensadores e boa parte da

historiografia até o século XIX.

Porém, para Políbio, esse poder de ensinamento era mais restrito. Ele define o modo

de escrever a sua história como “pragmático”, isto é, uma história voltada para questões

práticas políticas e militares. Sua obra foi escrita e destinada como um manual ou instrumento

para líderes políticos, chefes estadistas, e também para aqueles que estivessem estudando

sobre a política e táticas militares. É interessante apontarmos que por mais que os possíveis

leitores de Políbio estivessem acostumados, senão já as dominasse, o historiador desenvolve

sua obra de forma muito didática, mencionando constantemente em cada inicio de capítulo ou

alternância de eventos, seu assunto principal, o motivo de apresentá-lo em determinado

contexto, como ele desenvolve tal apresentação, e também como não se deve fazê-lo.

Explicado qual era o sentido da História para Políbio, podemos comentar sobre quais

elementos tão autoridade a um historiador, segundo Políbio. Em síntese, podemos dividir

esses elementos em três partes: preocupação com as fontes; experiência pessoal; e

conhecimento geográfico60

. Em primeiro lugar, temos a preocupação em consultar

documentos e testemunhas, as fontes principais para se conhecer as coisas passadas. E Políbio

possui um forte apego com a documentação e as testemunhas, viajando para diversos lugares

justamente para confirmar ou não aquilo que essas fontes informam, ou então para encontrar

documentos, transcrições de discursos, e tudo o mais que o auxilie em sua obra. Por exemplo,

para saber como foi feita a épica travessia dos Alpes, Políbio viajou pela mesma rota e

conseguiu identificar uma inscrição de Aníbal, informando com detalhes seus contingentes

militares quando da chegada na Itália61

. Nesse sentido, é notável também o acesso que Políbio

teve a documentos romanos datando dos primeiros anos da República, como os primeiros

59

CÍCERO. De Oratore, II, 36 60

Para maiores detalhes, conferir MARQUES, op. cit. p. 52 – 53. 61

POLÍBIO, Livro III, 33

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42

tratados entre romanos e cartagineses sobre as rotas do mediterrâneo62

. Para nosso autor, é a

recorrência às fontes e a análise de documentos e testemunhos que impedem que o historiador

escreva uma história falha, ou ainda pior, baseada em falsidades.

Porém o uso dos documentos por Políbio faz-se de modo apenas comprobatório ou a

titulo de agregar informações. Para Políbio, não fazia sentido, e nem seria digno de mérito

repetir aquilo que já havia sido mencionada ou comentado por outros autores. Essas

informações somente mereceriam ser repetidas caso novas informações pudessem ser

agregadas, ou como mais ocorre na obra, quando as informações pudessem ser revistas e

corrigidas.

Em segundo lugar, Para Políbio, era indispensável que o historiador tivesse alguma

formação prática na política e na vida militar. Pode ser que essa alegação seja baseada na

própria formação dele, tanto na Liga Aquéia, como representante diplomático e hiparco,

quanto na função sob as ordens de Roma, ou auxiliar na estabilização da nova situação nos

territórios gregos após a Guerra da Acaia63

. Este ponto é um dos que fazem ligação entre a

Historiografia Helenística e a posterior Historiografia Romana. Em geral, a escrita de histórias

no ambiente romano era uma atividade restrita a um pequeno grupo aristocrático, os

senadores. Chegaram até nós as obras de muitos autores que fogem à regra, como Tito Lívio,

Suetônio e Amiano Marcelino, porém Salústio e Tácito, dentre dezenas de outros autores

cujas obras foram perdidas no tempo, representam a noção romana de que a escrita da

História como “mestra da vida política”, o que exigia uma vivência nos círculos políticos e

vivência real no campo de batalha.

O terceiro elemento defendido por Políbio, o conhecimento geográfico está ligado

com sua experiência pessoal, e com a proposta de sua obra. Como diplomata, refém e auxiliar

de Cipião Emiliano em campanha, Políbio pode viajar por todo o mundo mediterrânico, a fim

de conhecer o mais exatamente possível o contexto onde ocorreram as batalhas e eventos que

narra em sua obra. Justamente por ser o primeiro a viajar tanto pelas costas orientais quanto

ocidentais do mediterrâneo, sua obra é a primeira a efetivamente ser “universal”, pois mesmo

que seu foco seja o desenvolvimento do poder romano ao longo do século III e II a.C., ele

comenta sempre que possível sobre os acontecimentos de todas as regiões do mundo.

62

POLÍBIO, Livro III, 22. 63

Após as Guerras Macedônicas, a Macedônia foi anexada como província romana. Logo em seguida, ocorreram

as desavenças entre etólios e aqueus. Roma tomou posição nessa questão, decidindo que várias cidades das ligas

deveriam ter estatuto autônomo. Essa imposição levou a desentendimentos que resultaram Guerra da Acaia (149

– 146 a.C.), na destruição de Corinto e na transformação do território grego sob as ordens do comandante da

Macedônia.

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43

Ao escrever uma história universal, Políbio foi além de simplesmente buscar uma

verdade corrigindo os erros dos que o antecederam e agregando uma história a outra. Sua

história universal tem como proposta suprir a necessidade que surgia em sua época, isto é,

expandir os horizontes de conhecimento do mundo grego, fechado em si mesmo, para poder

abarcar todo o mundo realmente conhecido. Somente assim o fenômeno da rápida expansão

romana poderia ser entendido, quando fosse enquadrado em seu próprio contexto, bem como

no contexto vivido pelos reinos helenísticos. Com a entrada de Roma no jogo político

helenístico, a História deixou de ser uma série de eventos simultâneos isolados uns dos outros,

e passou a ser uma série de eventos simultâneos, mas que repercutiam tanto nas proximidades

quanto no outro extremo do mundo mediterrânico.

O ponto de inicio de sua obra são as produções de Timeu e de Áratos de Sícion, que

detinham seus trabalhos em 264 e 221 a.C., respectivamente. O tema de sua obra é o período

compreendido entre o inicio da Guerra Anibálica (221/218 a.C.) e a destruição de Cartago e

Corinto (146 a.C). Nesse período ocorreu uma das maiores mudanças na política da

Antiguidade mediterrânica, que podemos alterou o panorama deixado pelos feitos de

Alexandre Magno: tanto Ocidente quanto o Oriente caíram sob a influência de uma única

cidade, Roma. O mais próximo a isso foi a meteórica ascensão alexandrina, que tão rápido

conquistou, acabou esfacelando, enquanto que a conquista romana, apesar de muito mais

lenta, mostrou-se firme e constante. Esse período só passa a ser trabalhado a partir do Livro

III, pois Políbio quis realizar uma pequena introdução explicando os eventos ocorridos entre

264 e 221 a.C., ou seja, ele retrocede até a Guerra da Sicilia, ou também chamada de Primeira

Guerra Púnica. Esse retrocesso serve como forma de explicar de onde surgiu e onde foi

forjado o impulso conquistador romano. Impulso esse que acabou por dominar um mundo

muito tão extenso, e muito mais complexo, do que o mundo dominado por Alexandre séculos

antes, e culminou com a derrocada de duas culturas influenciadas pelo conquistador

macedônico: Cartago e Macedônia

Ao insinuar que a partir daquele momento, da vitória romana sobre Cartago e

Macedônia, um novo mundo estava para surgir, Políbio leva a crer que uma força

predeterminada passou a encaminhar a História para uma determinada direção. Devido a uma

seqüência lógica de causas e conseqüências, enquanto os helenos perdiam poder e influência

devido as suas crises internas, Roma adquiria cada vez mais poder e relevância. Essa idéia

controversa e em discussão até os dias atuais foi nomeada como Providência, Fortuna ou

“Tyché”. Políbio define essa “força misteriosa” como a responsável pela junção ordenada e

lógica dos fatores que permitiram, de forma ideal, que Roma expandisse seu domínio sobre

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44

todo o mundo. Entretanto, ao mesmo tempo em que Políbio defende que essa força é lógica e

que as ações humanas são influenciadas por ela, ele a apresenta como uma força alheia à

vontade humana, caprichosa e de difícil (se não impossível) de dominar. O pensamento

resultante é que a aleatoriedade da Fortuna poderia anular o valor do conhecimento do

Passado proporcionado pela História como relevante para o Presente e Futuro. Políbio não nos

dá uma resposta pronta. Ela é inconstante, porém castiga os maus, e beneficia os bons.

Além dessa força que movimenta a História, Políbio também compartilha do

pensamento de uma História Cíclica64

, onde a sociedade humana vive ciclos de ordenamento

e de caos político. Esse pensamento cíclico permeia sua obra e está por trás de grande parte de

sua lógica de escrita. Segundo Políbio, as sociedades nascem politicamente caóticas, sem leis,

regras ou liderança. De dentro do caos político surge o “Monarca”. Na Monarquia65

, o

monarca lidera com base na sua força física, social ou moral. Com o aumento da

complexidade das relações, surge o Basileu, um líder comprometido com a justiça e a

sensatez na aplicação de leis, recebendo a gratidão da população sua obediência. O passar das

gerações corrompe a Basiléia, que recai na Tirania despótica, e um grupo de cidadãos, os

melhores e mais renomados, dão um golpe de Estado e passam a governar. Surge a

Aristocracia66

, que se corrompe com o tempo, tornando-se uma Oligarquia67

. Eventualmente o

povo revolta-se com esse poder de alguns, e passa a governar em causa própria, nascendo

assim a Democracia68

.Mesmo a democracia pode se corromper, recaindo numa Oclocracia69

.

Nesse estágio, o governo não funciona mais, e a sociedade está em agitações que logo recaem

no caos até que um novo líder surja da massa.

Esse pensamento cíclico de Ordem degradada em Caos permeia a concepção

histórica e política polibiana. A mesma força indomável da Fortuna que elevou Roma a uma

posição hegemônica no Mediterrâneo é a mesma força que alguns séculos antes, havia

elevado a Macedônia como potência hegemônica do Oriente Próximo, e que da mesma forma

havia forçado a fragmentação e a caótica situação política que imperava na colcha de retalhos

formado após a morte de Alexandre. E mesmo ainda mais recentemente, essa mesma força

cíclica havia sido traiçoeira com os cartagineses, que no ponto mais alto de seu poder,

acabaram sofrendo uma série de golpes que o reduziram a uma força mais decorativa do que

representativa de seu poder passado.

64

Para maiores detalhes, MARQUES, op. cit. p. 57 – 62. 65

Monarquia, do grego “Monos” (um) e “Arché” (poder), isto é, “poder de um só”. 66

Aristocracia, do grego “Aristói” (melhores) e “Kratia” (poder), literalmente, “poder dos melhores” 67

“Governo de poucos” 68

“Governo do povo” 69

Termo raro usado por poucos autores além de Políbio. Significa “poder da multidão”.

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45

Por fim, comentaremos sobre as dificuldades de interpretação da obra de Políbio,

conforme apontam vários autores70

. Muitos pesquisadores atuais e tradutores criticam o modo

como Políbio escreve sua obra, afirmando que a composição é deficiente em estilo e elegância

textual, estando muito distante da graciosidade das obras de Heródoto e Tucídides. Essas

críticas, feitas tanto à época71

quanto na atualidade72

, devem ser entendidas com muita

cautela. Infelizmente, não possuímos nenhuma versão datando daquela época73

. A versão

mais antiga do documento, datando do século X, só apresenta os primeiros cinco livros

“intactos”. Todos os demais são extratos e seleções de trechos, que muito posteriormente

foram reordenados naquilo que seria a lógica original. Sem dúvida, no meio desse processo,

muito da qualidade de estilo da obra foi perdida, ou acabou sendo preterida frente a lógica das

informações textuais, quando de sua reorganização.

O objetivo ao qual dedicamos esse trabalho é a análise de como se deu o

“renascimento cartaginês” entre as guerras travadas com Roma. Para realizar tal análise,

utilizaremos principalmente os dois primeiros livros da obra de Políbio, tanto por serem os

livros que tratam sobre o período quanto por serem os mais conservados. Para algumas

questões de relevância, serão utilizados trechos dos demais livros, desde que possuam

relações com o período ao qual propomos nos pesquisar. A título de complementação,

também iremos utilizar extratos de outras obras temporalmente próximas, ou que sejam pouco

posteriores ao relato de Políbio.

Dentro das diversas traduções existentes, foi escolhida a obra de Políbio de

Megalópolis, “Histórias”, na versão traduzida do grego para português pelo filólogo Mário da

Gama Kury.

70

MARQUES, KURY E RODRIGUES DA SILVA. 71

Dionísio de Halicarnasso, em sua obra “Da Disposição das Palavras”, aponta que a “Histórias” de Políbio esta

entre as obras que ninguém tem paciência de ler até o fim. IN CURY, p. 35. 72

O principal crítico à falta de estilo de Políbio foi Alfred Croiset, em sua obra “Histoire de la Littérature

Grecque”, vol V.

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46

CAPÍTULO III – O colosso cartaginês torna a se levantar.

Ao final da Guerra Líbica, Cartago havia perdido muito de sua projeção política na

região do Mediterrâneo Ocidental. Sem poder contar com as riquezas provenientes das férteis

terras sicilianas ou com as taxas comerciais obtidas nos entrepostos da Córsega e da Sardenha,

Cartago contraiu uma dívida com Roma na quantia extraordinária de 3000 talentos de prata,

que mesmo divididos ao longo dos vinte anos de prazo para o pagamento, continua sendo uma

quantidade muito significativa de metal a ser enviado à cidade do Lácio.

Para cumprir o tratado, que previa o pagamento imediato de parte desse montante, o

Senado cartaginês redirecionou parte dos recursos destinados ao pagamento das tropas

mercenárias para o saldo dessa parcela adiantada. Com isso, as lideranças das companhias

mercenárias passaram a encarar com desconfiança as atitudes cartaginesas. Somada as

dúvidas de que as dividas de guerra seriam saldadas, o medo de que Cartago tomasse atitudes

mais drásticas como represália ao resultado das lutas na Sicilia.

Essa dupla tensão na política externa e interna de Cartago, somada a outras

complexidades relacionadas, eclodiram numa sangrenta guerra civil, vencida a duras penas

pelos cartagineses liderados por Amílcar, cognominado, Barca (isto é, Raio, na língua

púnica). Mas a paz e a ordem interna não são obtidas apenas com sucessos no campo militar,

é necessária uma organização política funcional que consiga manter as tensões externas sob

controle, ao mesmo tempo em que precisa administrar a questão da guerra civil, garantindo

que a animosidade não avance do campo de confronto entre uma elite política e seus

contratados para o interior dessa mesma elite política.

Rupturas de governo causadas por distúrbios políticos decorrentes de disputas entre

partidos não eram desconhecidas dos cartagineses. Segundo nos relatam diversos autores da

Antiguidade, a cidade de Cartago foi fundada devido a querelas entre partidos políticos dentro

da cidade de Tiro, na região da Fenícia. Em sua origem, o governo cartaginês era uma

monarquia hereditária, porém sabemos que essa forma de governo havia sido abandonada

quando das guerras entre colônias gregas da Sicilia e as tropas de líbio-fenicios. Convém

analisarmos então qual era a forma de governo que regia Cartago quando de sua crise e de seu

renascimento, pois poderemos apreender muitos elementos que irão nos auxiliar nos

processos de estabilização e ascensão vividos posteriormente.

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47

3.1 – O Sistema de Governo Cartaginês: estabilidade em decadência.

Como tudo o mais relacionado à Cartago, sua estrutura de governo, como

magistraturas, cargos, funções e instituições políticas é uma questão delicada que necessita ser

trabalhada com grande atenção. Infelizmente, seja pelo ímpeto destrutivo romano, ou por

razões que escapam ao nosso alcance analisar, não possuímos nenhum documento cartaginês

que relate, em detalhes, sua organização política.

As descrições mais próximas são fornecidas por observadores externos aos meandros

da prática política, ambos gregos, e que traçam paralelos entre a Constituição de Cartago e

outras constituições vigentes no universo heleno-helenístico, em especial Esparta e Creta. O

primeiro desses autores foi Aristóteles, em seu tratado intitulado Política. Nessa obra, o

sistema cartaginês de governo é descrita como semelhante à constituição lacedemônica

desenvolvida por Licurgo e a Constituição de Creta74

.

Aristóteles, em linhas gerais, define Cartago como uma república aristocrática,

possuindo uma constituição onde elementos da monarquia, aristocracia e democracia estão

representados numa harmonia muito tênue. No topo do governo, estariam dois alto-

magistrados, referidos como “reis”, provenientes de algumas das famílias mais destacadas da

sociedade local. Não ascendem ao cargo de forma hereditária, mas eram eleitos dentre uma

parcela das grandes famílias. Não podemos ser ingênuos e imaginarmos que os membros de

todas as grandes famílias poderiam ser eleitos, pelo contrário, pois a condição para a eleição

era o mérito desfrutado pelo candidato junto dos demais elementos da aristocracia.

Abaixo dos “reis”, e com uma função semelhante aos éforos espartanos, isto é,

fiscalizar as ações públicas dos magistrados (incluindo os reis), existia o Conselho dos Cento

e Quatro. Esse conselho era formado pelos cidadãos mais virtuosos, originários das famílias

mais tradicionais da elite política citadina. Exerciam grande papel na gestão interna da cidade,

zelando pelo equilíbrio de poderes entre os reis e demais magistrados.

Tanto os reis quanto os membros do Conselho dos Cento e Quatro provinham de

uma instituição formada por um corpo muito maior de pessoas, o Senado. Tal como o Senado

espartano, ou o senado romano, sua função era manter a ordem e o respeito às tradições e às

leis. Segundo aponta Aristóteles, os poderes do Senado e dos Reis eram equivalentes, pois,

quando em comum acordo sobre alguma questão, ambos poderiam esconder essa decisão do

conhecimento do povo. Porém, caso entrassem em discordância, poderiam recorrer a uma

74

ARISTÓTELES, Política, Livro III, Capitulo VIII.

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48

ultima instância: o julgamento por meio de todo o corpo de cidadãos75

. Quando da

convocação da opinião popular, os cidadãos poderiam pedir não somente que os magistrados

expusessem suas razões, como, igualmente, poderiam tomar a palavra e pronunciar suas

opiniões sobre a questão em debate.

Subjacente a essas instituições, o poder político estava, de fato, nas mãos das

Pentarquias. As Pentarquias, conforme descrição de Aristóteles, eram comitês formados por

cinco magistrados, e possuíam diversas atribuições. A mais importante dessas funções era

referente à eleição de membros do Senado para a formação do Conselho dos Cento e Quatro,

bem como poderiam conceder a esse Conselho a ampliação de seus poderes. Aristóteles faz

uma observação que merece ser mencionada, a de que mesmo após deixar o cargo, os

pentarcas continuam como personagens muito poderosos dentro do cenário político.

A razão dessa influência política é apontada pelo sábio de Estagira, como

proveniente de uma falha na estruturação das virtudes cívicas cultuadas pelos cartagineses.

Enquanto outros povos acreditam que o poder deve ser confiado aos homens mais

distinguidos, os cartagineses confiavam os cargos públicos aos mais ricos. Isso se deve,

continua o pensador, ao pensamento de que os homens ricos e com posses não ambicionariam

os bens públicos, e nem ambicionariam ampliar suas riquezas pessoas à base de subornos ou

corrupção. Em conjunto a isso, também aponta Aristóteles, havia o habito de uma mesma

pessoa acumular diversos cargos públicos, pois seria um sinal de grandes méritos, prestigio e

riquezas.

O resultado final dessa construção ideológica do poder era a prática do suborno e da

compra de cargos praticada nos bastidores políticos. As comissões de Pentarquias, que

possuíam regência própria e definiam quais seriam os cidadãos que deveriam tomar assento

no Conselho dos Cento e Quatro, acabavam tomando parte dos meandros das articulações

políticas, facilitando, ou não, a ascensão familiar rumo a magistratura de Conselheiro. Dessa

forma, podemos compreender quais poderiam ser os motivos que tornariam, aos olhos de

Aristóteles, os Pentarcas poderosos, mesmo quando não mais ocupavam esse cargo.

Essa mesma idéia de que a Constituição de Cartago era bem definida, mas

apresentava problemas de prática encontramos em outros autores, sendo o mais emblemático

Políbio. Políbio, em seu Livro VI, dedicado a apresentar a Constituição de Roma e o quanto

75

Fica subentendido na descrição dada por Aristóteles que a cidadania cartaginesa era definida por critérios

censitários. Apesar da busca pela primazia do mérito, as altas magistraturas somente eram acessíveis aos

cidadãos que pudessem se afastar de suas ocupações normais e dedicarem-se integralmente ao serviço do

governo. E isso requeria, no mínimo, a posse de uma pequena fortuna pessoal.

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49

ela estava em seu apogeu, sendo superior a todas as demais, também comenta sobre a

Constituição de Cartago:

A constituição dos cartagineses parece-me ter sido bem concebida em sua origem

quanto aos seus pontos mais característicos. Com efeito, eles tinham reis e o

Conselho de Anciãos era de natureza aristocrática, e o povo tinha a supremacia nos

assuntos de sua alçada; em conjunto a estrutura do Estado assemelhava-se

consideravelmente à de Roma e de Esparta. Entretanto, na época em que os

cartagineses entraram na Guerra Anibálica sua constituição já havia degenerado

(...). Cartago já havia começado a declinar (...) o povo em Cartago já havia obtido

a preponderância nas deliberações, enquanto em Roma ela ainda era do Senado;

por isso, como no primeiro caso as massas deliberavam e no outro os homens mais

eminentes, as decisões dos romanos acerca dos assuntos públicos ainda eram

melhores76

.

Temos aqui uma pequena alteração de nomenclatura, porém com as mesmas

estruturas, cargos e funções principais: dois reis, o Conselho de Anciãos, isto é, o Senado77

; e

a participação da população. Muito provavelmente, Políbio esteja estendendo a categoria

população para abraçar todo o contingente urbano de Cartago, como forma de comprovar sua

teoria dos estágios de evolução e decadência constitucional78

, beneficiando Roma, ainda

governada por uma Aristocracia senatorial, e denegrindo Cartago, como dominada pelas

decisões da multidão.

A historiografia não nos fornece muito mais informações do que os trechos

elencados aqui. O maior avanço realizado para entender o funcionamento das estruturas

políticas cartaginesas refere-se à nomenclatura das funções e cargos79

. Nesse sentido, merece

destaque a questão da terminologia utilizada pelos próprios cartagineses para referirem-se aos

“reis” mencionados pelos autores gregos. O termo originalmente utilizado em Cartago é

“sufete”, normalmente traduzido como “juiz”. Segundo vários autores80

, esse termo tem

origem e paralelos na cultura semita do Oriente Próximo, tanto na cultura fenícia quanto na

cultura hebraica (com o termo schophetim).

76

POLÍBIO, Livro VI, 51 77

A palavra Senado tem origem na palavra latina Senex, isto é, “mais velho”, “ancião”. 78

Segundo MARQUES. Essa decadência seria uma conseqüência do tempo, onde a Aristocracia acaba sendo

substituída pela democracia. Quando o governo é exercido por todos os cidadãos, a falta de preparo para

governar (adquirido através da educação), e uma natureza corruptível pelo desejo de vingar-se das expropriações

sofridas durante o regime aristocrático corrompido (a Oligarquia), decai ainda mais, tornando-se uma

Oclocracia. Nesse estágio, o governo está mais próximo do estado de anarquia animalesca do que de alguma

forma de governo. 79

Para maiores informações dos nomes originais, na língua púnica, das funções, títulos e cargos, recomendamos

o trabalho CABRERO, Luiz A. R. “Dedicantes em los tofet: la sociedad fenícia em el Mediterráneo”. Gérion, v.

26, nº 1, p 89 - 148. Madrid, 2008. 80

HERVÁS, José Manuel Roldán. Historia de Roma I – La República Romana, 4ª Ed. Salamanca: Ediciones

Universidad de Salamanca, 1995, p.169; HERM, Gehard. A Civilização dos Fenícios. Rio de Janeiro, Otto

Pierri Editores Ltda, 1979, p. 280; LÉVÊQUE, Pierre. Impérios e Barbáries – do século III a.C. ao século I d.C.

Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1979, p. 82.

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50

Em geral, esses mesmo autores modernos fazem um paralelismo perigoso entre a

nossa moderna divisão de poderes (judiciário; executivo e legislativo), possivelmente

induzida pelos nomes das magistraturas. Em todo caso, sabemos através das fontes e dos

vestígios epigráficos, aquilo que as magistraturas não poderiam fazer. Os sufetes não

poderiam declarar a guerra, e nem dispor do tesouro do governo.

Cabia ao Conselho dos Cento e Quatro, junto do Conselho de Anciãos, a função de

declarar a guerra, assim como a possibilidade de dispor das finanças, fosse para projetos

cívicos, fosse para projetos militares. E quando houvesse discussões entre essas duas

organizações, as Assembléias Populares eram convocadas para votarem nas melhores

propostas, ou nos melhores candidatos para ocuparem as magistraturas e tomarem assento nos

Conselhos. Sua influencia nas questões políticas ficava restrita a um papel indireto, pois as

Assembléias eram convocadas para eleger novos chefes civis, e militares. Nossa atenção

deverá focalizar nessa ultima informação.

Sobre essa estruturação política, Hervás, e Herm, comentam que o governo, dividido

dessa forma, evitaria golpes de instauração de uma tirania, ou uma monarquia militar. Apesar

de Aristóteles louvar que “Cartago não registra em sua história nenhum golpe de governo e

instauração de tirania”, sabemos81

que durante as guerras sicilianas dos séculos V e IV, um

personagem chamado Malcchus (também conhecido como Magon, Magão ou Mago) tentou

tomar o poder a força após ser derrotado na Sicilia, em 550 a.C82

. A partir desse momento,

vemos um distanciamento entre essas duas esferas, a política e a militar. Esse distanciamento

é interpretado pela historiografia moderna como o momento de nascimento das chamadas

dinastias militares de Cartago. Apesar de muito questionável essa nomenclatura, pois os

cargos militares não eram de caráter hereditário e sim eletivo, esse conceito nos será muito

útil para analisarmos o sistema militar cartaginês que sobreviveu à revolta dos soldados e

possibilitou a expansão rumo às riquezas do Extremo Ocidente.

3.2 – Um Exército de Especialistas.

Militarmente, Cartago é lembrada por duas características principais: as “dinastias

militares”; e o emprego maciço e massivo de tropas mercenárias. Nenhuma das duas

características é novidade no mundo mediterrânico do período. Desde as disputas entre gregos

e persas temos o emprego de tropas mercenárias.

81

Através do historiador romano Justino. 82

HERM, op. cit., p. 281

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51

E desde a divisão da monarquia universal alexandrina entre seus principais auxiliares

militares, os Diadocos (Sucessores), passou a ser comum, ou ao menos desejado, que os

governantes garantissem uma boa preparação aos seus sucessores. Essa preparação não ficava

restrita somente aos saberes intelectuais, filosóficos e políticos, estendiam-se também à

experiência militar. Ou seja, de certa forma, observamos a constante presença e participação

militar dos possíveis sucessores nas campanhas militares dos governantes Lágidas, Selêucidas

e Antigonidas, fundando o que seriam prefigurações de dinastias militares.

No caso cartaginês, essas duas características assumiram proporções únicas devido às

especificidades próprias de Cartago. A capital dos fenícios no Mediterrâneo Central não

contava com uma grande população sobre seu governo. Não possuímos censos da época, mas

através da arqueologia, tem-se estimado que a população total cartaginesa era de

aproximadamente 300 mil habitantes83

; aproximadamente 100 mil habitantes viviam na área

urbana de Cartago84

, enquanto os outros 200 mil estavam espalhados por todas as demais

cidades, entrepostos e bairros mercantis nas cidades helenísticas mediterrânicas. Para efeito de

comparação, sabemos que somente a cidade de Roma, nesse período entre 241 a.C até 218

a.C., possuía mais de 280 mil habitantes85

.

Devemos lembrar que as principais fontes de renda cartaginesa eram o comércio e a

agricultura86

. As atividades agrícolas, praticadas fora das muralhas da cidade empregavam um

grande contingente de escravos, obtidos através de comércio ou de guerras. Porém, as

atividades comerciais empenhavam grandes contingentes de cidadãos e homens livres, e estas

eram as atividades que faziam a cidade funcionar e desenvolver-se.

E quando falamos atividades comerciais, fazemos menção não só aos ateliês

artesanais (produtores de vasos cerâmicos, panos tingidos de púrpura87

, jóias, artigos em

vidro, entre outros), ou aos mercados. Estamos nos referindo também aos mercadores, aos

marinheiros que impulsionavam a marinha mercante, aos construtores navais, aos

trabalhadores portuários, aos administradores de armazéns, aos representantes comerciais

83

LEVECQUE. op. cit., p. 84. 84

RODRIGUES DA SILVA, Roma e a representação de domínio do mundo no contexto das guerras púnicas:

uma leitura das Histórias de Políbio. 2010, 193f. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Espírito

Santo, Centro de Ciências Humanas e Naturais. Vitória, 2010, p. 67. 85

Segundo Rodrigues da Silva, a população romana no período de 338 a 263, passou de aproximadamente 100

mil habitantes para 280 mil habitantes, dos quais, de 60 a 80 mil foram enviados para novas colônias.

RODRIGUES DA SILVA, op. cit., p. 59. 86

LEVECQUE, op. cit. p. 84; HERVÁS, op. cit. p. 171; HERM op. cit. p. 285, 294 – 296. É útil lembrar que a

única obra creditada pelos romanos como sendo de origem cartaginesa, e que acabou sendo muito difundida no

mundo romano, por muitos séculos, é um tratado sobre agricultura, escrito por certo personagem chamado

Magón. 87

Os panos tingidos de púrpura eram o principal artigo de luxo exportado por Cartago para todo o mundo

mediterrânico. Inclusive para seus inimigos políticos, os romanos.

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52

espalhados pelo mundo helenístico... Enfim, nos referimos a todo um gigantesco contingente

de pessoas de cujas funções a cidade de Cartago dependia inteiramente.

Se, para manter as engrenagens comerciais funcionando, Cartago necessitava de uma

grande parcela da população, quando Cartago decidiu conquistar mais terras, ficou óbvio a

necessidade de dispor de mercenários para complementar suas tropas. Para ações cada vez

mais longas, e cada vez mais distantes da cidade, não seria nem suficiente, e nem rentável,

subtrair mão-de-obra das atividades econômicas para atividades bélicas.

Esses mercenários provinham das mais diversas regiões e dos mais diversos povos.

Políbio nos dá uma pequena descrição das variadas tropas que se revoltaram contra o

comando cartaginês durante o episódio da Revolta dos Mercenários:

Alguns desses soldados eram iberos, outros eram celtas, outros lígures e outros

ainda das ilhas Baleares; havia também entre eles muitos helenos mestiços, em sua

maioria desertores e escravos, porém, o contingente mais numeroso compunha-se

de líbios88

Cada um desses povos possuía uma especialidade de combate, que desde a reforma

militar promovida por Xantipo, era empregada em ações coordenadas aos moldes do “modo

de guerra helenístico”89

, isto é, ao modo de ataque frontal, com manobras de envolvimento,

cujo objetivo era a aniquilação do inimigo. Esse modo de guerra exige muita disciplina e

sincronismo das tropas de infantaria no momento de choque e, das forças de envolvimento

(cavalaria, em especial).

Nascida com Filipe da Macedônia e elevada ao máximo com a tática do “martelo e

bigorna” de Alexandre, o Grande, essa doutrina militar90

exigia um elevado grau de

conhecimento e de experiência militar. E com isso vamos tratar sobre a segunda característica

cartaginesa: o desenvolvimento de famílias aristocráticas dedicadas aos ofícios militares.

As origens dessa especialização não podem ser demarcadas com exatidão, mas

podemos estimá-las com base no que sabemos sobre a estruturação política e questão da

constituição do exército cartaginês. A magistratura de sufete, apesar da existência dual, não

permitia nenhuma efetividade militar, devido a sua validade anual, tempo curto demais para o

desenvolvimento de uma campanha militar de ímpeto (devemos sempre contabilizar o tempo

de planejamento logístico e de recrutamento, ou melhor, contratação, de tropas). Em paralelo,

88

POLÍBIO, Livro I, 67. 89

SANT’ANNA, H. M. Mercenarismo grego e tradição helenística: uma análise das questões bélicas no

mediterrâneo do séc. III a.C. Ágora, Aveiro, v. 10, p. 25 – 43, 2008, p. 38. 90

Utilizamos a definição proposta pelo Glossário das Forças Armadas: Doutrina Militar é o conjunto harmônico

de idéias e entendimentos que define, ordena, distingue e qualifica as atividades de organização, preparo e

emprego das Forças Armadas. Englobam, ainda, a administração, a organização e o funcionamento das

instituições militares. In: MD35-G-01 Glossário das Forças Armadas, Ministério da Defesa (Brasil), 4ª edição,

2007, p. 83

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53

acabou sendo necessária a criação de uma nova magistratura, representando no campo militar

as funções civis. O cargo de General era eletivo, tal qual o de Sufete, porém seu tempo era

distendido, variando conforme a duração das campanhas, ou o sucesso nas batalhas.

E seria natural que algumas famílias aristocráticas, antes dedicadas em obter a

magistratura de sufete, passassem a almejar a obtenção do cargo de general. Os poderes eram

mais restringidos, mas poderiam durar por muito mais tempo, rendendo mais influência e

prestigio dentro do círculo aristocrático. Por isso, observamos a tendência de especialização

de algumas dessas famílias, ao buscarem garantir a manutenção do poder militar em suas

mãos. Essa permanência da família no poder era adquirida através do investimento numa

melhor preparação para alcançar as vitórias em batalhas.

Não sabemos se Cartago possuía alguma estrutura similar a uma Academia Militar,

para o treinamento militar de soldados, ou para a preparação dos oficiais superiores. Políbio

não comenta sobre a existência de uma tropa formada pela própria população urbana, ou de

cidadãos cartagineses, durante as Guerras da Sicilia, ou mesmo durante as Guerras Líbicas91

.

Dessa maneira, temos duas formas de um cartaginês adquirir conhecimento e prática no

campo militar: participar diretamente de uma batalha; ou então aprender com algum general

mercenário.

Em todo caso, o tino militar era de difícil obtenção, de grande procura, e

conseqüentemente, de grande valor. Dessa forma, podemos entender a tendência dos generais

de instigar a seu circulo familiar mais próximo a tomar em armas e participar de suas

campanhas. Dessa forma, o conhecimento militar poderia ser transmitido de forma direta, sem

intromissões, através de experiências práticas vívidas e marcantes. Apesar de todos os riscos

envolvidos, podemos imaginar que os benefícios advindos da especialidade militar, isto é, da

posse de um conhecimento militar restrito a algumas poucas famílias, eram compensatórios.

Políbio narra um episódio curioso das Guerras da Sicilia, justamente a contratação de

um general mercenário para reformar o exército cartaginês, um general espartano chamado

Xantipo. Esse capitão mercenário atualizou a tática de combate de Cartago para fazer frente

ao modo de ataque romano (ataque frontal, com tropas de infantaria pesada, com apoio e

suporte de unidades diversificadas, mas com uma cavalaria de qualidade inferior). A

participação de Xantipo ficou restrita a somente uma batalha, onde conseguiu utilizar de

forma coordenada as diversas unidades cartaginesas de forma a suprir a inexistência de uma

91

Quando utiliza a expressão “tropas cartaginesas” ou “soldados cartagineses”, fica subentendido que ele está

fazendo uma generalização, e não descrevendo uma tropa formada por cidadãos cartagineses.

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infantaria pesada sob o comando da cidade africana92

. Após essa vitória, Xantipo foi chamado

às pressas para ajudar em problemas com a sua cidade-natal.

Porém, os generais cartagineses continuaram a empregar a tática helenística, e

continuaram obtendo êxitos sucessivos. Entendemos disso que em algum momento Xantipo

transmitiu seus conhecimentos para os generais que assumiram o comando após a saída

dele93

. Dos diversos líderes que o sucederam, um em especial conseguiu os melhores

resultados empregando, contra os romanos, os dispositivos táticos do combate helenístico

ensinado pelo mercenário espartano: o general Amilcar. A História consagrou-lhe um epíteto

para homenageá-lo por suas ações rápidas Barca, isto é, O Raio.

3.3 – Amílcar Barca: o batismo de fogo de suas capacidades.

A primeira aparição de Amílcar Barca em ação, por mais destoante que a nossos

olhares possa parecer, não foi numa campanha militar terrestre.

Logo após [obterem uma vitória naval sobre Roma] os cartagineses designaram

para o comando Amílcar cognominado Barca, e lhe confiaram as operações navais.

Ele zarpou em seguida com a frota para devastar a costa da Itália (isso aconteceu

no décimo oitavo ano da guerra),e depois de realizar incursões em Lócris e na

região bretiana deixou essas paragens navegando com toda sua frota contra o

território panormitano94

Nessa passagem, podemos destacar diversos elementos que nos auxiliaram a

entender sua ascensão na política mediterrânea. Por cartagineses, podemos entender tanto os

aristocratas mais abastados quanto os cidadãos que integravam as Assembléias Populares.

Como somente os mais destacados aristocratas poderiam assumir um posto militar de

comando, podemos entender que Amílcar pertencia a esse pequeno grupo, mais

especialmente, ao partido dos aristocratas cujos rendimentos provinham do comércio

marítimo.

Porém, suas ações não ficaram reduzidas somente a atividades de pirataria nas costas

itálicas próximas ao Estreito de Messina. Ao perceber que suas manobras não estavam

rendendo nenhuma vantagem tática, partiu para uma região próxima ao acampamento

92

SANT’ANNA, op. cit., p. 36 93

Apesar de abordar diretamente o caso de Xantipo e o Exército de Cartago; Alair Figueiredo Duarte e Maria

Regina Cândido comentam que “vemos através da experiência de Soldados-Mercenários as experiências de

combate eram transferidas, aproximando culturas distintas”. In: DUARTE, Alair Figueiredo. A Ação dos

Soldados-Mercenários no Período Clássico Helênico e a Experiência de Combate entre as Sociedades

Mediterrâneas. In: I ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS SOBRE O MEDITERRÂNEO ANTIGO &

VIII JORNADA DE HISTÓRIA ANTIGA, 2009, Rio de Janeiro, Anais... UFRJ, 2009, 15p. Esse pensamento

está em sintonia com a tese desenvolvida por SANT’ANNA, de que houve grandes intercâmbios culturais, ao

menos ao nível militar, entre Cartago, os Reinos Helenísticos, Roma e as cidades gregas da Sicilia. 94

POLIBIO, Livro I, 56.

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55

avançado romano, e de lá conseguiu frear os avanços romanos a ponto de garantir, para a sua

cidade natal, tempo o suficiente de armar uma imensa frota para um arriscado enfrentamento

naval. Infelizmente a frota cartaginesa levou a pior, e viu-se obrigada a assinar um Tratado de

Paz, com condições desfavoráveis à Cartago95

.

Em prosseguimento aos trâmites de paz, Amílcar levou suas tropas até Lilíbaion,

ultimo porto aberto à Cartago, para iniciar a evacuação das forças cartaginesa da ilha. Nessa

mesma cidade, ele resignou de seu comando e retirou-se da vida militar. Não sabemos quais

seriam os exatos motivos para esse exílio auto-imposto, mas possivelmente está relacionado

com a recepção dada pela população aos chefes militares que haviam fracassado em batalha:

humilhação pública; com até mesmo possibilidades de pena capital. Esse temor quanto a

segurança pessoal torna-se compreensível quando lembramos que as condições do tratado de

paz colocam um ponto final aos projetos da aristocracia em estender a supremacia comercial e

política cartaginesa no Mediterrâneo Central.

Seu auto-exílio, porém, dura pouco. Quando da crise causada pelos sucessos dos

revoltosos na Guerra Líbica, Amílcar novamente reaparece no comando das forças

cartaginesas. Em algum momento, após a rebelião das tropas alastrarem-se até a Sardenha,

Políbio comenta sobre as preocupações de Matos e Spêndios, os líderes da revolta na Líbia:

Matos e Spêndios, e com eles o gaulês Autáritos, estavam apreensivos com o efeito

da generosidade de Amílcar para com os prisioneiros, temendo que os líbios e a

maioria dos mercenários pudessem ser atraídos assim e quisessem aproveitar-se da

impunidade oferecida (...). Não foi com a intenção de poupar-lhes a vida, disse ele

[Spêndios], que Amílcar tomou essa atitude com vistas aos prisioneiros, mas graças,

à libertação dos mesmos ele pretenderia capturar todo o exército96

.

No extrato acima, Políbio nos revela qual parece ter sido a principal tática de

Amílcar Barca para reconstruir o exército cartaginês. Ao que podemos supor, ao estourar a

revolta, uma pequena parcela dos mercenários, provavelmente aqueles que formavam a

guarda dos territórios africanos e da cidade (o mesmo exército que conseguiu vencer as tropas

romanas quando de sua aventura na região) permaneceu fiel a Cartago. Com posse dessas

tropas, e recebendo ajuda de Hiêron de Siracusa97

, Amílcar Barca montou um novo exército,

conseguindo vitórias e fazendo prisioneiros.

Porém, o tratamento dado por Amílcar a esses prisioneiros foge das regras

helenísticas. Amílcar não executa os prisioneiros por traição. Pelo contrário, oferece-lhes a

95

Essas condições e as conseqüências delas já foram analisadas no Prólogo do presente trabalho. 96

POLÍBIO, Livro I, 79 97

POLÍBIO, Livro I, 83. “Os cartagineses, bloqueados por todos os lados, foram compelidos a recorrer às

cidades aliadas. Durante essa guerra Hiêron atendera sempre com presteza aos seus apelos, e agora estava

mais do que nunca, pois convencera-se de que, para a segurança de seu domínio na Sicília e de sua amizade

com os romanos, seria de seu próprio interesse assegurar a sobrevivência de Cartago”

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56

liberdade e o perdão dos crimes de guerra. Assim a preocupação dos líderes revoltosos, de que

seus contingentes voltassem a servir à Cartago, atraídos pela generosidade e impunidade, nos

fornece uma possibilidade de resposta para uma das perguntas iniciais desse trabalho.

A força militar dos revoltosos não residia no talento ou na experiência militar de seus

líderes. Residia na superioridade numérica, e na simpatia conquistada junto da população

líbia, duramente oprimida pelos comandantes cartagineses durante a Guerra da Sicilia. O

oposto era observado no exército cartaginês, com um competente líder à frente, mas com um

reduzido contingente de tropas. Amílcar sabia do que os revoltosos poderiam ser capazes, pois

eram antigos soldados seus, e sabia que Roma não iria tardar em aproveitar-se da fraqueza de

Cartago para retirar mais benefícios dela, como mostrou o episódio da anexação da Córsega e

da Sardenha.

Ao poupar os prisioneiros, e integrá-los em seu exército, Amílcar reconquistava, aos

poucos, a lealdade de seus antigos soldados; ao mesmo tempo, minava o argumento principal

da revolta, isto é, o medo dos soldados mercenários de receberem um tratamento cruel como

represália da derrota na Guerra da Sicilia.

Sobre a clemência e indulgência de Amílcar, não podemos ser ingênuos e acreditar

que foi estendida a todos. Sabemos que a estratégica do Barca surtiu efeitos e Cartago

recuperou o controle sobre a Líbia, e que os líderes da revolta foram punidos exemplarmente.

Essa Guerra Líbica, que expôs Cartago a tais perigos, resultou não somente na

volta do domínio de Cartago sobre a Líbia, mas deu também a Cartago condições

para punir exemplarmente os autores da insurreição Sua cena final foi um cortejo

dos cartagineses mais jovens conduzindo Matos através da cidade enquanto lhe

infligiam toso os tipos de tortura98

.

Se Amílcar havia perdido a guerra contra os romanos, e por essa razão poderia ter

sido executado pela aristocracia; ao ser convocado novamente para assumir o comando de um

combalido exército, e restaurar o domínio de Cartago na Líbia, recriando o exército

mercenário através de sua popularidade e não por pagamento de melhores soldos, não

podemos duvidar que seu status dentro do universo aristocrático estivesse no auge. E, não

podemos duvidar também, que esse mesmo universo aristocrático sentisse medo de que

Amílcar pudesse empregar o exército para tentar tomar o governo, como séculos antes

Malcchus havia tentado.

98

POLÍBIO, Livro I, 88.

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57

3.3.1 – O primeiro exército cartaginês na Europa: o estabelecimento na Ibéria.

Em sua obra Histórias, Políbio inicia o Livro II retomando alguns pontos, como a

perda da Guerra da Sicilia para os romanos, e a vitória na Guerra Líbica. Segundo o

historiador:

Logo após o restabelecimento da situação anterior na Líbia os cartagineses

despacharam Amílcar para o território da Ibéria, confiando-lhe forças adequadas à

missão. Levando consigo esse exército e seu filho Aníbal, cuja idade na época era

oito anos, ele atravessou as Colunas de Héracles e começou a submeter a Ibéria aos

cartagineses.99

Nesse trecho da obra polibiana temos a descrição do inicio da expansão cartaginesa

para uma região tratada de forma distante em relação as convulsões que aconteciam no

Mediterrâneo Central, com as lutas entre Cartago e Roma; e Oriental, onde os reinos

helenísticos disputavam a primazia territorial e política. Mas, estaria mesmo essa região tão à

margem das movimentações políticas mediterrânicas, ou mesmo, tão a margem das interações

comerciais desenvolvidas em suas margens?

Durante a expansão comercial fenícia, diversos entrepostos foram criados, mas

poucas colônias foram fundadas100

. O que houve com elas após a queda de Tiro,

historiograficamente é um mistério. A hipótese mais aceita é de que em algum momento

Cartago impôs sua hegemonia econômica e militar sobre elas, e que em algum momento

durante a Guerra na Sicilia e a Guerra Líbica, a cidade norte – africana perdeu sua supremacia

sobre a região.

Entretanto, essa hipótese apresenta falhas muito evidentes. Em nenhum momento de

seu relato, Políbio comenta sobre ações romanas contra cartagineses nessa região do extremo-

ocidente mediterrânico. Pelo contrário, ambas as potências focalizam seus combates,

empregando suas máximas forças, no Mediterrâneo Central, nas ricas ilhas da Sicilia, Córsega

e Sardenha. Da mesma forma, em nenhum de seus livros encontramos indícios de que Cartago

possuísse um domínio, de qualquer espécie, sobre o sul da Península Ibérica.

Outra hipótese elencada pelos pesquisadores baseia-se na análise da cultura material

dos principais assentamentos fenícios, cobrindo, em especial, a janela temporal que vai do

99

POLÍBIO, Livro I, 1.2 100

Há uma diferença sutil entre esses dois modos de ocupação territorial. Entrepostos seriam assentamentos

ocupados esporadicamente; seriam ocupadas por uma quantidade mínima de pessoas; os contatos entre os

administradores do entreposto e a população local seriam de baixa intensidade, reduzindo-se ao aspecto

comercial apenas. Já as Colônias são assentamentos de ocupação permanente; habitado por uma população

relativamente grande; e as relações entre população colonial e os povos autóctones vão além do aspecto

econômico, estendendo-se para os campos políticos e militares. Sobre essa diferenciação, ALVAR, Jaime.

ALVAR, Jaime. Los primeiros Estados em la Península. In: ALVAR, Jaime (org.), Entre Fenícios y Visigodos

– La historia antigua de la Peninsula Ibérica. Madrid, La Esfera de los Libros, p. 28 - 30, 2008.

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século VII a.C, data da queda de Tiro, até a expedição de Amílcar Barca, em 237 a.C.

Segundo os defensores dessa teoria, no período da chegada de Cartago, a região sul e a costa

atlântica Andaluza e Marroquina integrariam uma realidade cultural única, descendente da

cultura fenícia, mas distinta de Cartago. Essa hipótese, baseada em vestígios materiais101

,

pode ser colocada numa posição de diálogo com nossa fonte escrita, fazendo-a muito mais

comunicativa do que se considerada isoladamente.

Retornando ao trecho destacado acima, já podemos delinear algumas respostas sobre

os motivos que levaram à escolha da expansão em direção à Ibéria. Possuindo uma cultura

próxima à Cartago, mas não integrada com a cidade norte – africana, as cidades da região do

Estreito não sofreram nenhum impacto direto com a vitória romana. Pelo contrário, com o

recrudescimento comercial cartaginês, novos mercados estavam abertos aos seus produtos. O

que significa que suas elites estavam prosperando, enquanto as elites africanas estavam em

declínio, o que, sem dúvidas despertou a atenção cartaginesa.

Fora essa questão de desenvolvimento de uma estrutura organizacional pré-existente,

e que poderia ser convertida para beneficio cartaginês através da força bruta, ou diplomática,

a Península Ibérica resguardava outros grandes atrativos. Como seu próprio nome indica102

, a

região era reconhecida por suas riquezas minerais e agrícolas. E como uma bonificação, as

tribos de celtas, celtiberos e iberos103

forneciam continuas levas de tropas mercenárias de

grande qualidade e força de combate.

Proposta uma hipótese sobre o motivo pelo qual a expedição foi dirigida rumo à

Ibéria, temos ainda uma segunda questão, o que seriam forças adequadas? Não temos

101

Sobre os vestígios materiais analisados, Mariñas, no artigo El espacio geopolítico gaditano em época púnica.

Revísión y puesta al dia del concepto de “Círculo del Estreito”. Gerión, v. 19, p. 313 – 354, 2001, dedica-se a

analisar o tipo cerâmico encontrado em diversos sítios em ambas as margens do Estreito de Gibraltar; e no artigo

Banquetes rituales em la necrópois púnica de Gadir. Gerión, Madrid, v. 24, nº 1, p. 35 – 64, 2006, reflete sobre

as práticas funerárias e os tipos de acompanhamentos que são empregados nessa prática. Tristan e Vargas, no

artigo Reflexiones en torno al área comercial de Gades: Estudio numismático y económico. Gerión, Madrid, v.

9, nº EXTRA 3, p. 139 – 168, 1991, debruçam-se sobre a dispersão e os tipos de moedas empregues na Península

Ibérica antes e durante a ocupação cartaginesa. 102

Os gregos, quando de sua expansão colonial, encontraram uma rica região no Mar Negro (Ponto Euxino),

com grandes jazidas minerais e um solo muito fértil. Deram-lhe o nome de Ibéria (atualmente, corresponde ao

território da Geórgia, no Cáucaso). Ao expandirem-se para o oeste, encontraram uma região com características

análoga as da Ibéria do Ponto. Disso vem a denominação usada por Políbio ao descrever a península que termina

nas Colunas de Hércules, a Península Ibérica. Políbio era de origem grega, e em sua obra, utiliza-se do termo

grego, por isso demos preferência em utilizar o termo Ibéria (e seus derivados) para nos referirmos àquela

região. O nome Espanha deriva de Hispânia, nome latino, originado, por sua vez, da nomenclatura fenícia i-spn-

ea, traduzido pelos romanos como “costa de muitos coelhos”. Ignoramos como aos povos autóctones chamavam

a região. ALVAR, Cap. I – Los Primeiros... “Entre fenícios e visigodos” p. 49 103

Sobre as especificidades culturais de cada um desses grupos, e sua disposição na Península Ibérica, cf.

ALVAR, Jaime, op. cit., p. 49 – 58; MARCO, Francisco & SOPEÑA, Gabriel. Gênesis y Evolución de los

Pueblos. In: ALVAR, Jaime (org.), Entre Fenícios y Visigodos – La historia antigua de la Península Ibérica.

Madrid, La Esfera de los Libros, p. 65 – 106, 2008.

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59

respostas, infelizmente, nem com base na obra Histórias, e nem através dos vestígios

materiais. Podemos especular, com base na formação das tropas cartaginesas de antes da

revolta, que essas forças adequadas poderiam ser companhias de mercenários oriundas da

região. Essas forças teriam um bom conhecimento do território, seus líderes, e os chefes de

companhia poderiam mesmo atuar como diplomatas, nos estágios iniciais da campanha.104

.

Ou, sendo mais realistas, essas forças adequadas seriam as tropas melhor preparadas, mais

fiéis à Cartago e a Amilcar, ou as tropas mais numerosas e em melhor estado.

Políbio não descreve como foi a campanha de Amílcar na península ibérica, e nem

por onde começou suas ações. Somente sabemos, através dele, que Amilcar Barca:

Nesse território ele demorou-se aproximadamente doze anos, durante os quais

sujeitou numerosas tribos ibéricas ao jugo dos cartagineses, em parte pela força

das armas e em parte pela diplomacia, e teve lá uma morte digna dos feitos

praticados ao longo de sua vida, perecendo heroicamente em combate com uma das

tribos mais belicosas e poderosas da região após expor-se voluntariamente ao

perigo no campo de batalha105

.

Mesmo não sendo especificado o local de desembarque de Amílcar, diversos

pesquisadores apontam que a primeira incursão cartaginesa no continente europeu começou

pela cidade de Gadir (conhecida também como Gades ou Cádiz)106

. Essa cidade marítima,

localizada numa ilha na foz do Guadalquivir, e uma das mais antigas colônias fenícias no

Mediterrâneo Ocidental. Como aponta Mariñas em seu artigo sobre o Círculo do Estreito, essa

seria a cidade mais desenvolvida da região, tanto no aspecto urbano quanto no de relações

sócio-políticas. O porto dessa cidade era um dos mais movimentados, impulsionado por uma

indústria de salgação de peixes e de exportação do garum, condimento tão típicos das mesas

mediterrânicas. Em concordância, seu templo dedicado a Melqart-Héracles Gaditanus era

reconhecido e freqüentado por gregos, romanos, siciliotas, cartagineses, orientais helenizados

e mesmo pela população autóctone. Mesmo as populações do interior, dedicadas à exploração

agrícola parecem ter freqüentado esse local (fig. 1).

104

No Livro I, 67, Políbio afirma que os generais cartagineses tinham por hábito conferenciar com os chefes das

companhias mercenárias: “Era, portanto impossível a qualquer pessoa reun´-los e dirigir-lhes a palavra como a

um grupo ou de outra maneira qualquer, pois como se poderia esperar que um general conhecesse todas as

línguas? Além disso, dirigir-se a eles por meio de vários intérpretes, repetindo as mesmas palavras quatro ou

cinco vezes, constituía – digamos assim – uma impossibilidade ainda maior. O único meio era dirigir-lhes

pedidos e exortações por intermédio de seus oficiais”. 105

POLÍBIO, Livro II, 1. 106

BARCELÓ, Pedro. Un Primer Ensayo Imperialista. In: ALVAR, Jaime (org.), Entre Fenícios y Visigodos –

La historia antigua de la Peninsula Ibérica. Madrid, La Esfera de los Libros, p. 107 – 148, 2008; WAGNER,

G. Carlos Los Bárquidas y la conquista de la Península Ibérica. Gérion, Madrid, v. 17, p. 263 – 294, 1999; p.

269; MARCO, J. J. S. La Historia Militar del Levante español en la Edad Antigua. Militaria, nº 11, Madrid, p.

17 – 27, 1998; p. 19; MARTÍNEZ, F. P. La presencia neopúnica em la Alta Andalucía: a propósito de algunos

referentes arquitectónicos y culturales de época bárquida (237 – 205 a.C.). Gerión, Madrid, v. 25, nº 1, p. 83 –

110, 2007; p. 84; entre diversos outros.

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Fig. 1 – Limites da expansão cartaginesa na Península Ibérica sob o comando de Amílcar. A estrela azul marca a

cidade de Gades, e o círculo azul delimita os territórios sob a hegemonia de Cartago. Os pontos azuis marcam a

localização das principais cidades nesse período. É interessante contrapor esse mapa com o mapa da extensão do

Círculo do estreito (ANEXO I).

Como apontam Carlos Wagner, Jaime Alvar e José Manuel Roldán Hervás,

consolidado o domínio sobre Gades, Amílcar dedicou-se em garantir a possessão das áreas

mineiras da Andaluzia107

. Observamos isso através da cunhagem, na recém conquistada

Gades, de uma série de moedas com elevada porcentagem de prata (até então, a cidade havia

cunhado séries de moedas em cobre). Como explica Wagner, essa produção acelerada pode

ser uma resposta para evitar a crise monetária que desencadeou a Guerra Líbica108

.

Segundo apontam esses mesmo pesquisadores, com base em diversos outros autores

da Antiguidade, como Tito Lívio e Dion Cássio, um dos últimos atos de Amílcar na Ibéria foi

a fundação de uma nova base de ações, conhecida somente como Akrá Leuké. Sua localização

ainda é motivo de discussão, mas todos os autores concordam que a função principal dessa

cidade seria servir de base para ações rumo ao norte, ao longo da costa ibérica109

.

Devemos ressaltar o destaque dado por Políbio aos modos como Amílcar conseguiu

reunir sob o comando de Cartago uma faixa de terras que vão desde o rio Guadalquivir até o

rio Segura. Entre esses dois rios, estão as minas de prata da Sierra Morena, as minas de ferro e

107

Os autores chamam a região por esse nome, apesar do termo somente surgir durante a ocupação muçulmana,

muitos séculos depois. Utilizando a terminologia mais próxima da época, a nomenclatura romana, a Andaluzia

seria equivalente a metade meridional das províncias da Baetica e Tarraconensis. 108

WAGNER, op. cit., p. 267. Segundo o pesquisador, uma moeda forte, isto é, com elevado grau de pureza da

prata, garantia a estabilidade interna e externa ao servir como pagamento aos mercenários sob o comando de

Amílcar. 109

WAGNER, op. cit., p. 267-8; HÉRVAS, op. cit., p. 223; MARTINEZ, op. cit., p. 89

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61

cobre do litoral Múrcia, Málaga e Almeria110

, e as ricas planícies da Sierra Nevada,

reconhecidas por sua grande fertilidade em trigo, vinhas e azeitonas. E, de forma geral, abarca

os núcleos populacionais que apresentam vínculos comerciais com Gades, segundo a teoria do

Círculo do Estreito. Os modos como essas ricas regiões foram conquistadas não incluíram

somente ações militares.

Amílcar utilizou-se de uma rede diplomática. A forma como elas foram estabelecidas

escapam de nosso conhecimento. Podem ter se desenvolvido naturalmente, a partir de

múltiplas perspectivas, isoladas ou todas ao mesmo tempo. A rede diplomática pode ser

originária dos contatos cartagineses peninsulares, os mesmo que garantiam o recrutamento de

tropas mercenárias; pode também ser um tipo de herança, adquirido quando da submissão de

Gades; podem ter sido formadas naturalmente, com Amílcar buscando apoio dos chefes locais

para reposição de tropas, segurança política e legitimação de poder. Ou mesmo, podem ter

sido formadas através da iniciativa local, que ao perceberem a rápida ascensão político-

econômica de Cartago, buscaram, através de acordos, proteção e segurança quanto aos seus

domínios.

Deixando de lado as especulações baseadas nas informações que possuímos sobre o

modo como se desenvolviam as relações entre Cartago e os povos sob seu comando, agora,

vamos analisar o ultimo ponto levantado por Políbio: a morte de Amílcar. Sua morte em

combate, totalmente imprevista, sem dúvida deve ter causado apreensão junto das elites

aristocráticas no Senado cartaginês.

Apesar de Políbio não deixar explicito, o Senado cartaginês, ao enviar Amílcar para a

Ibéria, deu-lhe amplos poderes adicionais. Conforme apresentado por Aristóteles, a prática de

acumulação de cargos públicos e funções era comum aos cartagineses. Além da função de

general, podemos entender que Amílcar também desempenhava outras funções, como de

diplomata, negociando com os diversos chefes locais; e o de administrador. Essa última

função, um cargo que exige conhecimentos práticos sobre estabelecimento de rotas

comerciais, de transporte de cargas e linhas de suprimento.

Amílcar, como membro da aristocracia comercial, sabia administrar seus negócios,

da mesma forma como sua experiência militar (na guerra contra Roma, e no sufocamento da

rebelião mercenária) comprovou sua competência em estabelecer uma base segura de ações.

110

WAGNER, op. cit., p. 267;

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62

Com sua morte, os planos da aristocracia de recuperar a economia111

estavam ameaçados,

com sérias chances de serem revertidas em um fracasso.

Até onde a fonte nos permite ir, Cartago não possuía nenhum general capacitado a

assumir a posição112

deixada por Amílcar naquele momento. Sem ter quem indicar, o governo

cartaginês estava com um exército fortemente ligado ao seu general113

(doze anos de

combates tendo o mesmo general à frente cria uma forte ligação entre soldados e

comandante), em uma região distante, e em meio a processos de expansão territorial e

conquista. Mais uma vez, Cartago estava numa situação frágil.

3.4 – Asdrúbal Barca: um administrador diplomático.

Sem ter a quem indicar, o Senado esperou por uma atitude do exército na Ibéria.

Uma atitude muito perigosa, considerando que o exército ibérico era formado por tropas

mercenárias de diversas tribos da região. Porém, com as lembranças ainda frescas sobre as

conseqüências da eleição de generais que não contavam com a simpatia das tropas (uma das

causas da Revolta dos Mercenários), o Senado cartaginês preferiu ratificar a aclamação das

tropas.

“Os cartagineses confiaram então comando do exército a Asdrúbal,

genro de Amílcar e almirante de sua frota”114

.

Quais motivos levaram à aclamação de um almirante para assumir o comando das

tropas de infantaria? Possivelmente os mesmos que levaram à eleição de Amílcar como

general quando da Guerra Líbica: experiência de comando.

Não devemos ser generalistas e pensar que depois de perder a hegemonia naval,

Cartago deixou de possuir uma marinha de guerra. Devemos estar conscientes que uma

111

WAGNER E ALVAR, em seus respectivos trabalhos, comentam sobre uma passagem de Dion Cássio acerca

dos sucessos da administração de Amílcar na Ibéria. Em 231 a.C., Roma enviou uma embaixada para pedir

explicações à Amílcar sobre suas intenções na Ibéria. Como resposta, Amílcar afirmou que os cartagineses

estavam conquistando a região para pagar a divida contraída com Roma. 112

Não estamos sendo ingênuos ao supor isso. Durante a narrativa da Guerra da Sicilia e da Guerra Líbica,

Políbio não cita mais do que três grandes generais atuando ao mesmo tempo, seja no mar, seja em terra. Além

dos Barcas, são mencionados outras duas famílias, uma descendente de Magon; e outra de um certo Giscon,

além de diversos outros líderes. Durante as Guerras Líbicas, Políbio ressalta as qualidades militares de outro

general, Anôn (Hannón), porém este foi executado pelos rebeldes. 113

Temos diversos exemplos históricos de que as tropas tendem a criar uma ligação muito forte com seus

comandantes, após longos períodos de tempo sob seu comando. Essa ligação supera mesmo os laços entre os

soldados e o governo ao qual eles estão ligados. Para citar alguns casos, temos a ligação quase mítica das tropas

Greco-persas durante as campanhas orientais liderados por Alexandre, o Grande; e também o caso de Júlio César

a frente de seus soldados, na Guerra Gálica. 114

POLÍBIO, Livro II, 1.2

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63

expansão para “além-mar” demanda a existência de uma marinha eficiente. No Tratado de

Paz firmado com Roma, não havia nenhuma exigência com relação aos investimentos em

frota, fosse de guerra ou mercante. Cartago continuou possuindo uma frota de guerra, numa

escala muito inferior para não despertar novas suspeitas e nova ameaça de guerra pelos

romanos.

E essa frota, pequena, mas funcional, teve um importante papel para a expansão

cartaginesa na Ibéria. Entre Gades e Cartago, as comunicações são todas por via marítima,

seguindo por rotas pelo litoral africano (as costas mediterrânicas das atuais Argélia e Tunísia),

e pela rota mais tradicional e rápida, passando próximas as Ilhas Baleares, terra natal das

famosas tropas de fundibulários baleáricos, mercenários de grande precisão em batalha. Mas,

além dos mercenários, essas ilhas eram o lar de grupos piratas. E que atacavam em ambas as

rotas.

O almirante Asdrúbal provavelmente foi o responsável pela definição de rotas

seguras para o transporte da prata e dos demais gêneros produzidos na Ibéria, e enviados para

Cartago. E, devido a sua proximidade com Amílcar, sendo seu genro, esteve presente nos

principais episódios nos quais Amílcar tomou parte, garantindo-lhe experiência em batalhas

terrestres, e reconhecimento por parte das tropas.

Sobre suas ações, Políbio nos deixa um interessante relato. Não nos relata muito

sobre suas campanhas bélicas, mas nos dá diversas informações preciosas sobre seus projetos

administrativos:

“Voltemos aos acontecimentos na Ibéria, cuja narração interrompi

(...). Com efeito, essa época assinala o início da administração de

Asdrúbal, sensata e pragmática; a fundação pelo mesmo da cidade

chamada Cartago por algumas pessoas e Nova Cartago por outras,

contribuiu sobremaneira para melhorar a posição dos cartagineses,

especialmente por sua localização muito vantajosa com vistas a ações

tanto na Ibéria quanto na Líbia”115

Do trecho acima, Políbio elogia a administração de Asdrúbal e comenta sobre a

criação de uma nova cidade, em 227 a.C., com o mesmo nome da cidade-natal e financiadora

do projeto expansionista: Cartago. No Livro X, o historiador grego descreve com muito mais

detalhes a nova capital cartaginesa na Ibéria116

:

115

POLÍBIO, Livro II, 13.1 116

WAGNER, em seu artigo Los Bárquidas y la conquista de la Península Ibérica. Gérion, Madrid, v. 17, p.

263 – 294, 1999, faz uma detalhada analise da descrição deixada por Políbio, bem como uma análise dos

vestígios arqueológicos referentes à cidade e que foram recuperados hodiernamente.

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“praticamente a única entre as [cidades] da Ibéria dotada de um

porto com instalações convenientes para acolher uma frota e forças

navais, e que ao mesmo tempo sua localização era muito favorável

aos cartagineses para a travessia direta do mar quando vinham da

Líbia”117

.

“A área urbana da cidade é côncava; em sua parte meridional é bem

acessível a partir do mar. Umas colinas ocupam o espaço restante,

duas delas muito volumosas e escarpadas, e três não tão elevadas,

mas abruptas e difíceis de escalar. A colina mais alta está a lesta da

cidade e se precipita no mar; em seu topo se ergue um templo

dedicado a Asclépio. Há outra colina frente a esta, de disposição

similar, na qual foram edificados magníficos palácios reais,

construídos, segundo dizem, por Asdrúbal, que aspirava a um poder

monárquico. As outras elevações do terreno, simplesmente uma

colinas, rodeiam a parte setentrional da cidade. Destas três, a

orientada para o leste se chama a de Hefesto, a que vem em

continuação a de Altes, personagem que, ao que parece, obteve

honras divinas por ter descoberto minas de prata; a terceira colina

leva o nome de Cronos. Foi aberto um canal artificial entre a lagoa e

as águas mais próximas, para facilitar o trabalho aos que se ocupam

com o mar. Por cima deste canal que corta o braço de terra que

separa o lago e o mar foi estendida uma ponte para que carros e

mulas pudessem atravessar por aqui, desde o interior da região,

trazendo os suprimentos necessários (...) Inicialmente o perímetro da

cidade media vinte estádios, ainda que eu saiba muito bem que não

falta quem fale de quarenta, mas não é verdade. O afirmo não de

ouvir, mas porque tenho examinado pessoalmente e com atenção;

hoje é ainda mais reduzida”118

Políbio pode nos legar uma descrição tão detalhada sobre Nova Cartago, pois a

visitou em suas viagens durante o tempo em que serviu junto do exército de Cipião Africano e

enquanto servia como diplomata sob as ordens de Roma. Essa minuciosa descrição deixa-nos

claro que Nova Cartago não foi uma cidade criada espontaneamente. Sua posição

estratégica119

, próxima de ricas minas de prata; com férteis campos de esparto120

; e

dominando zona pesqueira muito produtiva121

; somada com o planejamento urbano e militar

117

POLÍBIO, Livro X, 8. 118

POLÍBIO, Livro X, 10. Essa passagem não consta na tradução para o português empregue para o trabalho.

Ela foi reconstruída a partir das citações em WAGNER op. cit. p. 269; BARCELÓ, Pedro. Un Primer Ensayo

Imperialista. In: ALVAR, Jaime (org.), Entre Fenícios y Visigodos – La historia antigua de la Peninsula

Ibérica. Madrid, La Esfera de los Libros, p. 107 – 148, 2008; p. 111. 119

BARCELÓ, op. cit., p. 110; 120

Erva da qual se obtém uma fibra utilizada desde a fabricação de cordas até a fabricação de panos, roupas,

sapatos e velas de barco. 121

Atual Golfo de Mazarrón, cujas águas tépidas propiciam as atividades de pesca de atuns entre outras espécies

de peixe.

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65

aplicado à cidade122

; denota uma mudança, no planejamento estratégico das ações

cartaginesas tomadas por Asdrúbal Barca (fig.2).

Uma cidade planejada, preparada para integrar a rede comercial do exterior, com seu

porto bem preparado sendo um dos poucos capazes de receber uma frota e forças navais, e

com uma localização propicia aos transportes no sentido de Cartago para a Ibéria, indica uma

preocupação em intensificar os contatos entre a cidade norte - africana e suas possessões

ibéricas. Devemos interpretar como propõe Jaime Alvar, que ao batizar a nova cidade como

Cartago (Qarthadash em púnico), a intenção de Asdrúbal é pragmática: de aumentar a

presença da Cartago africana frente aos povos ibéricos que estavam agora sob a hegemonia

cartaginesa (Mapa 2).

Criando uma cidade funcional, preparada para ser um centro administrativo e militar,

Asdrúbal também diminui sensivelmente qualquer tipo de influência que as elites locais

poderiam ter sobre a administração cartaginesa. Não está clara a localização de Akrá Leuké

(Políbio nem sequer menciona a criação dessa cidade por Amílcar), e nem o tempo em que ela

foi ocupada pelo antecessor de Asdrúbal. Somos compelidos então a pensar que durante os

doze anos em que Amílcar esteve à frente da expansão de Cartago na península, a sua base de

ações estava localizada em Gades

122

WAGNER; op. cit., p. 270-271

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66

MAPA 2 – Mapa delimitando a expansão máxima da hegemonia cartaginesa na Península Ibérica, segundo as

duas interpretações modernas. Em azul, considerando que o Íber de Políbio seria o rio Júcar; em verde, seria a

faixa territorial sob o comando de Asdrúbal, considerando o Íber de Políbio como o atual rio Ebro. A estrela azul

clara marca a localização da nova capital, Cartago Nova, em relação com a antiga capital, Gades (ponto azul

escuro). A estrela verde marca a possível localização de Akrá Leuké, capital que algumas fontes apontam como

criada por Amílcar. Em vermelho, Zacânton (Sagunto), marco dos limites do Tratado do Íber entre Roma e

Asdrúbal.

.

Segundo Tarradell, e os estudos de Mariñas e Tristan e Vargas, analisando os

vestígios arqueológicos como as ânforas e moedas, e suas dispersões anteriores à chegada

cartaginesa, aparentemente a cidade de Gades exerceu uma grande projeção comercial sobre o

sul peninsular. Essa cidade parece ter coordenado uma complexa rede de exploração

comercial agrícola e marítima, que floresce desde o século VIII a.C. Alvar, mesmo sem

referir-se diretamente a essa primazia gaditana, comenta que

“uma análise comparativa da topografia histórica e do legado das fontes literárias

nos permite desenhar os pilares da zona de domínio cartaginês edificado pelos

Bárquidas em pouco mais de um decênio. Seu centro de gravitação constitui o

território delimitado pelo Guadalquivir e o Segura ao norte, e o Oceano Atlântico e

o mar Mediterrâneo ao sul. Ali se localizam os espaços agrícolas e pecuários mais

produtivos e as zonas de exploração mineira mais próspera do Ocidente. Enquanto

que as planícies do interior permitiam métodos de cultivo extensivo e o

desenvolvimento de uma copiosa pecuária, os férteis vales do Guadalquivir e Genil

facilitavam uma exploração intensiva do solo, semelhante a que praticava Cartago

no norte da África e que rendia consideráveis quantidades de azeite, vinho e

cereais. É precisamente esta zona, que, desde o século VIII a.C. havia sido objeto de

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67

um intenso processo de aculturação orquestrado desde as feitorias fenícias do

litoral atlântico e mediterrânico, o que constitui o núcleo da expansão bárquida na

Hispânia. Ainda que os assentamentos fenícios fossem erigidos para procurar

metais preciosos, no correr do tempo irá se desenvolvendo uma complexa infra-

estrutura econômica altamente diferenciada. O distrito de Tiotinto (Huelva), as

imensa reservas de cobre, minério de ferro e prata na vizinhança de Cástulo (Jaén)

, o setor mineiro da Serra Almagrera com saída ao mar de Villaricos (Almeria),

assim como as minas de prata próximas de Cartagena [Nova Cartago], farão desta

extensa e próspera comarca um dos território mais cobiçados do mundo antigo”123

.

Unindo a asserções de Alvar com a teoria do Circulo do Estreito, temos a existência

da possibilidade de que Gades foi uma das principais (se não a principal) incentivadora para o

grande desenvolvimento regional como uma próspera região. O mais interessante desse

quadro é pensarmos que, enquanto o Círculo do Estreito desenvolvia-se como uma grande

liga comercial, e possivelmente cultural (posto que possuímos evidências que garantam uma

supremacia política), capitaneada por Gades; nem Roma, e nem Cartago estava preocupadas

com a região.

Sabemos que Roma estava desde o século VIII a.C. até o eclodir das guerras com

Cartago, imersa em problemas com as diversas tribos itálicas, com os etruscos e com os

gauleses. Compreensivelmente, estava sem tempo ou condições de cobiçar uma região tão

longínqua, por mais que tivesse contatos culturais com ela. Da mesma forma, sabemos que as

atenções da cidade africana estavam voltadas para o desenvolvimento de suas redes

comerciais, e posteriormente, com a obtenção da supremacia frente às colônias gregas da

Sicilia. De certa forma, podemos supor que as ações de ambas, Roma e Cartago, atraíram as

atenções bélicas da região, permitindo que as elites gaditanas desenvolvessem sua

estruturação comercial sem interferências.

Essas relações, construídas durante séculos, muito provavelmente criaram

oligarquias poderosas na região de Gades, com seu poder e influência legitimados na

existência dessas ligações de longa-duração temporal. Essa aristocracia local deve ser

elencada quando pensamos na realização da expansão cartaginesa. E, da mesma forma,

devemos pensar em como se desenvolveram as relações entre essa aristocracia ibérica, em

especial a gaditana, que estava implantada na principal cidade peninsular; e posterior capital

cartaginesa de Amílcar.

À chegada de Amílcar, comandando um exército experiente e integrado, e à

conquista de Gades, devem ter sido abertas as negociações entre a aristocracia gaditana e o

novo comandante da cidade. Como comentado por Políbio, Amílcar era um bom general e um

bom negociador. Criou acordos e tratados com os aristocratas gaditanos, garantindo assim a

123

BARCELÓ, op. cit., p. 111-112.

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68

segurança do domínio cartaginês, que poderia ser facilmente suprimido. Não nos esqueçamos

de que essa região era uma das principais fornecedoras de tropas mercenárias, ou seja,

possuindo recursos, qualquer aristocrata (ou seu grupo), poderia levantar um exército. Como

tal não ocorreu, supomos que Amilcar conseguiu agradar às elites gaditanas.

Com a morte de Amílcar e a ascensão de Asdrúbal, temos uma mudança na situação

política, num nível diferente daquela enfrentada por Cartago. Se a situação política das

diversas aristocracias ibéricas estava estabilizada com Amílcar, como elas poderiam manter

essa estabilidade sob a liderança de um novo comandante? E como Amílcar poderia garantir a

boa convivência com essas elites locais? Infelizmente, não podemos responder essas questões

de forma enfática. Faltam-nos fontes, pesquisas, e análises do contexto arqueológico de toda

essa região.

Porém, podemos interpretar essa mudança de capital de forma a unir nossas

perguntas com os comentários do governo de Asdrúbal deixados por Políbio. Ao alterar seu

quartel-general para uma nova cidade, Asdrúbal distancia-se das influências da aristocracia

gaditana. Não sabemos, e nem temos como supor, como essa mudança foi entendida e

recebida pelas elites gaditanas. Mas, como não há menção de revoltas dos povos locais contra

Amílcar, podemos entender que a mudança de capital rendeu-lhe benefícios. A ponto tal de

despertar, após tanto tempo, a atenção romana:

Os romanos, vendo Asdrúbal no caminho propício à criação de um império ainda

maior e mais temível, resolveram começar a dedicar-se aos assuntos da Ibéria.

Descobrindo que até então haviam estado adormecidos e tinham dado a Cartago a

oportunidade de organizar forças poderosas, eles tentaram recuperar tanto quanto

possível o tempo. No momento os romanos não se atreveram a dar ordens aos

cartagineses, nem declarar-lhes a guerra, porque a ameaça de uma invasão dos

celtas pendiam sobre suas cabeças (..). Em face desse perigo eles decidiram mostra-

se inicialmente brandos e conciliados em relação a Asdrúbal, e só então atacar os

celtas (...). Conseqüentemente, após mandar emissários a Asdrúbal e concluir com

ele um tratado onde não se fazia menção ao resto da Ibéria mas os cartagineses

comprometiam-se a não cruzar armados o rio Ibér.124

Os romanos, receosos com os sucessos de Asdrúbal, e com o poder alcançado por ele

na Ibéria, enviam uma embaixada para Nova Cartago, em 226/7 a.C. Os motivos exatos dessa

embaixada são nebulosos. Segundo Polibio, os romanos enviaram essa embaixada para vigiar

Asdrúbal, e garantir a neutralidade de Cartago quando a campanha contra os gauleses ao norte

da Itália fosse iniciada. Analisando essa precaução romana, temos indícios interessantes a

serem elencados. O primeiro deles, e o mais evidente, é que Roma, segundo Políbio, havia

124

POLÍBIO, Livro II, 13.2

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69

relaxado a supervisão sobre os projetos de Cartago. Podemos supor diversos motivos para

isso, como a existência de perigos mais eminentes com os quais o Senado Romano estava se

preocupando; a crença de que a hegemonia militar naval romana minou os fundamentos da

prosperidade cartaginesa; e o menos lembrado pela historiografia moderna, o cumprimento

rigoroso das clausulas do Tratado de Paz que selou a Guerra da Sicilia. Cartago não mais

assediou as ilhas do Mediterrâneo Central, e, estava pagando a vultosa indenização de guerra

conforme o esperado125

.

Em todo caso, desconfiados com Asdrúbal, firmam um acordo de comprometimento,

onde nem os um lado e nem outros, bem como seus respectivos aliados, não poderiam

atravessar o curso do Iber126

. Isso nos permite afirmar que as atenções de Asdrúbal estavam

voltadas para o sul dessa linha demarcatória. Indiferente a qual rio o tratado se referia, se ao

atual Ebro, ou ao Jucár, ou mesmo ao Segura127

, é conveniente analisar quais os atrativos

teriam essas regiões. Para isso, iremos analisar mais um passagem em que Políbio comenta

sobre Asdrúbal:

“(...) na Ibéria, onde Asdrúbal, após governar esse território durante oito anos, foi

assassinado à noite por um certo celta em decorrência de ofensas de caráter

privado. Asdrúbal havia aumentado não um pouco, mas grandemente, o poderia dos

cartagineses, não mediante operações militares mas graças a uma convivência

amistosa com os chefes locais128.

Confiando no que afirma Hervás e Wagner, o assassinato de Asdrúbal Barca ocorreu

cinco anos após o estabelecimento do acordo entre o líder cartaginês e o Senado Romano, isto

é, 221 a.C. Nesses oito anos em que esteve a frente do comando cartaginês na Ibéria, o

domínio de Cartago foi dilatado grandemente. Porém, o modo como tal ampliação foi

conseguida é radicalmente diferente dos métodos empregados por Amílcar.

Deixando de lado o emprego de ações militares, Asdrúbal Barca dedica-se a

conquistar a Ibéria através da diplomacia. Roldán Hervas e Carlos Wagner afirmam que a

proeminência diplomática de Asdrúbal em aproximar-se dos chefes locais, tanto as

aristocracias das antigas colônias fenícias quanto dos chefes de tribos da península ibérica,

125

Braudel afirma que as cunhagens de moedas em Cartagena (isto é, Nova Cartago), entregavam até 300 libras

(aproximadamente 136 kg) de prata por dia, e as belas peças com representações de animais, como cavalos e

elefantes, testemunham essa prosperidade. BRAUDEL, Fernand. Memórias do Mediterrâneo – Pré História e

Antiguidade. Rio de Janeiro: Terramar/Multinova, 2001. p. 306 – 307. 126

Não é nossa intenção nos estendermos sobre a localização do curso desse rio. Mas, para efeitos de

esclarecimento há um intenso debate nas pesquisas atuais sobre onde estaria localizado tal rio. Enquanto diversos

pesquisadores defendem que o Iber de Políbio seria o Ebro atual (como Braudel, Herm, Hervás, Levecque e

Wagner), outros afirmam que esse rio deveria situar-se ainda mais ao sul, especialmente ao sul de Sagunto, como

o Jucár (Barceló). 127

BARCELÓ, op. cit., p. 116 128

POLÍBIO, Livro II, 36.

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70

garantiu-lhe uma prestigiada posição. Desposando uma princesa local, conquistou o apoio das

aristocracias autóctones, sendo aclamado como chefe supremo de todos os iberos. Conforme

descreve Alvar129

, na região onde foi fundada a cidade de Nova Cartago, estavam localizadas

diversas tribos autóctones, comumente designados nas fontes da Antiguidade como ibéricas.

Apesar de constituírem uma única cultura, estavam dispersos em diversos grupos (ou tribos),

alguns mais e outros menos influenciados pela cultura fenícia.

Estes grupos seriam regidos por uma aristocracia com base na posse da terra. Quando

havia necessidade, as diversas aristocracias dirigentes das diversas tribos uniam-se em

conselhos de guerreiros e em assembléias. E acima dessas organizações, era escolhido um

chefe militar, referenciado muitas vezes como monarca130

. Ao que tudo indica, Asdrúbal

ocupou o cargo de chefe de uma união de tribos ibéricas. Infelizmente, não sabemos quais, ou

quantas, tribos ibéricas faziam parte dessa união. Mas, dada a preocupação romana com o

poder de Asdrúbal, podemos supor que fossem tribos muito importantes, ou populosas.

Mesmo sendo um líder diplomático e pragmático, o que na acepção de Políbio

significa que Asdrúbal agiu de forma prática, suas ações despertaram tensões dentro da rede

política peninsular. Devemos relativizar o comentário de Políbio, de que em Nova Cartago

havia palácios reais, pois Asdrúbal aspirava ao poder monárquico. Esse comentário parece

derivado de uma corrente de idéias criticada pelo próprio Políbio. Segundo o historiador

grego, Fábio Pictor, um historiador pró-romano foi o primeiro a comentar sobre os membros

da família Barca terem como meta pessoal estabelecer uma monarquia própria as custas de

Cartago131

, e que por isso havia desavença entre o governo cartaginês e os chefes Barcas.

Políbio contra argumenta dizendo que caso o governo desaprova-se as ações de Asdrúbal e

Aníbal, o Senado Cartaginês não hesitaria em entregar o filho de Amílcar Barca, quando

Roma assim exigiu.

Mesmo com as tensões e a redução das ações militares, Asdrúbal deixou uma

organizada administração cartaginesa na Ibéria. Sua nova capital era uma sólida fortaleza,

criada para intensificar os contatos entre o governo cartaginês e as aristocracias urbanas e

tribais da península ibérica sob a sua hegemonia política. Com a morte de seu idealizador,

Nova Cartago serviria aos projetos de seu sucessor.

129

ALVAR, op.cit.; p, 51-58. 130

ALVAR, op. cit. p. 57 131

POLÍBIO, Livro III, 8.

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71

3.5 – Aníbal Barca: um general com traços helenísticos?

Com a morte de Asdrúbal Barca, o posto de comandante da Ibéria estava novamente

aberto. O exército, novamente a instituição cartaginesa mais interessada e presente nos

projetos, e na política, peninsular, elege um novo líder.

Por ocasião da morte de Asdrúbal, a quem haviam confiado o governo da Ibéria

depois da morte de Amílcar, os cartagineses inicialmente aguardaram um

pronunciamento das tropas, e quando lhes chegaram noticias de seu exército a

respeito da escolha unânime de Aníbal pelos soldados para comandá-los, eles

convocaram prontamente um assembléia-geral do povo, que ratificou a uma voz a

escolha dos soldados132

.

Os cartagineses escolheram Aníbal para ser o comandante-em-chefe na Ibéria,

apesar de sua pouca idade, tendo em vista a argúcia e coragem demonstradas por

ele em suas ações133

.

Novamente, em um caso de exceção, o governo de Cartago aceita a aclamação das

tropas na Ibéria. Nesses trechos, temos três aspectos que devemos ressaltar: a aclamação

unânime por parte das tropas; a decisão de chamar uma assembléia geral para ratificar; e a

questão da pouca idade de Aníbal quando de sua aclamação.

Não podemos considerar a mais pura realidade a afirmação de Políbio sobre a

unanimidade de aprovação à indicação de Aníbal deve ser relativizá-la. O assassinato de

Asdrúbal Barca indica que havia tensões, e que os envolvidos nessas tensões eram de um

círculo de pessoas muito próximas aos Barca. Talvez o celta que atacou Asdrúbal integra-se o

grupo das aristocracias locais submetidas aos cartagineses, ou ainda, o que seria muito mais

provável, fosse algum chefe de tropas mercenárias irritado com a política diplomática

desenvolvida pelo líder Barca. Em todo caso, são desentendimentos que muito provavelmente

interferiam com os diversos grupos militares, unificados pelo comando cartaginês.

Dessa forma, podemos entender a aclamação ao comando militar como a aclamação

de uma maioria das tropas, ou ainda, como o resultado de negociações políticas na própria

Ibéria. Mas, além das negociações que mantiveram um membro da família Barca no poder na

península, podemos perceber que ocorreu o mesmo em Cartago. Sabemos que a Assembléia

Popular era convocada para eleger comandantes militares, ou quando houvesse divergências

graves entre Senado, Conselho dos Cento e Quatro e sufetes. Se a eleição de Asdrúbal foi

reconhecida pelo Senado Cartaginês (Políbio não faz menção à Assembléia Popular), a de

Aníbal necessitou ser ratificada por todos os cidadãos.

132

POLÍBIO, Livro III, 13. 133

POLÍBIO, Livro II, 36

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72

Qual seria o motivo da divergência em Cartago sobre a aclamação de Aníbal? Políbio

nos fornece uma possível resposta: a pouca idade de Aníbal. Segundo Políbio, Aníbal tinha

entre nove e dez anos quando acompanhou seu pai à Ibéria. O governo de Amílcar durou doze

anos, enquanto que o de Asdrúbal durou mais oito anos. Ou seja, quando da aclamação ao

cargo de general cartaginês na Ibéria, Aníbal tinha aproximadamente entre 29, 30 anos.

Não possuímos muitas informações sobre quais seriam as exigências para que algum

aristocrata cartaginês se candidatasse à magistratura militar. Mas, dado que havia preocupação

sobre sua juventude, podemos supor duas alternativas: que o candidato a chefe militar deveria

ter mais de 30 anos; ou então, a pouca idade foi uma alegação de uma facção anti-Barca em

Cartago. Quanto à primeira opção, a exigência de ter mais de 30 anos não era anormal no

mundo político helenístico e romano134

. Em relação à segunda alternativa, não possuímos

elementos que comprovem essa oposição à Aníbal, pelo contrário, Políbio afirma que o

Senado Cartaginês apoiava as ações de Aníbal Barca.

(...) depois de enfrentar a guerra durante dezessete anos em obediência à decisão de

Aníbal eles [o governo de Cartago] não abandonaram a luta até o momento em que,

perdidas todas as esperanças, viram sua pátria e seus compatriotas expostos a

perigos que lhes ameaçavam a própria existência135

.

No trecho acima, Políbio refere-se ao pensamento de Fábio Pictor, de que havia uma

forte desavença entre a família Barca, em especial Amílcar e Aníbal, e as elites cartaginesas.

Nesse ponto, cabe um ultimo esclarecimento sobre a proposta de nosso trabalho.

Desde o início, nosso foco de análise tem sido voltado para como Cartago conseguiu impor-se

na Ibéria logo após recuperar-se de uma ostensiva e desgastante guerra externa e interna. E o

governo de Aníbal Barca apresenta uma dificuldade no sentido de estabelecermos até onde

seu governo foi voltado para a ampliação do domínio cartaginês na península, e a partir de

que momento sua política administrativa tornou-se uma preparação para a campanha itálica.

Políbio deixa claro em sua obra que Aníbal tinha intenção de atacar os romanos

desde muito antes de chegar ao poder. E que essa intenção já estava latente desde muito antes

do próprio Aníbal, talvez sendo um projeto pessoal da família Barca, começando pelo

revanchismo de seu pai, Amílcar:

Mas, voltando à guerra entre Roma e Cartago (...), devemos ver como sua causa

primeira a indignação de Amílcar, cognominado Barca, o verdadeiro pai de Aníbal,

Com o espírito em nada abatido pela guerra da Sicilia (...), ele permaneceu

134

Inclusive, essa era a idade mínima necessária para que um cidadão romano pudesse ocupar a magistratura de

Questor, o primeiro passo para a realização do chamado Cursus Honorum, isto é, o percurso seqüencial das

magistraturas políticas, indo do Questor (procurador/coletor de impostos) até a magistratura de Cônsul (com 43

anos), o cargo máximo da República Romana. 135

POLÍBIO, Livro III, 8.

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73

decidido e ficou na expectativa de uma oportunidade para atacar. Se não tivesse

ocorrido a sublevação dos mercenários, tanto quanto estava em seu poder Amílcar

teria criado sem demora outros meios e outros recursos para reiniciar a luta, mas

foi impedido de fazê-lo pelos distúrbios intestinos que lhe absorveram toda a

atenção.136

(...), logo após haver finalmente esmagado a sublevação dos mercenários e

garantido a segurança de sua pátria concentrou imediatamente todos os seus

esforços na conquista da Ibéria, com o objetivo de usar os recursos assim obtidos

para empreender a guerra contra Roma.137

Para o historiador grego, caso Amílcar tivesse vivido por mais tempo, as lutas entre

Roma e Cartago teriam sido reiniciadas muito antes. E essa aversão extrema à Roma teria sido

passada por Amílcar à seu filho, antes mesmo de qualquer certeza sobre o sucesso da

expedição cartaginesa na Ibéria:

Desde o momento de sua assunção ao comando as medidas por ele tomadas

evidenciaram sua intenção de entrar em guerra contra os romanos; ele realmente

veio a tomar essa atitude, e o fez em dentro de muito pouco tempo. A partir da

entrega do comando a Aníbal as relações entre cartagineses e os romanos passaram

a caracterizar-se por suspeitas recíprocas e atritos; os primeiros, desejosos de

vingar-se dos reveses sofridos na Sicilia, deram prosseguimento aos seus planos

hostis, enquanto os últimos, percebendo tais planos, demonstraram profunda

desconfiança138

.

Na época em que Aníbal, vencido finalmente pelos romanos, tinha deixado sua

pátria e estava vivendo na corte de Antíocos, os romanos, percebendo o plano dos

etólios, mandaram uma embaixada a Antíocos com o objetivo de obter informações

completas acerca das intenções do rei. Os embaixadores, vendo que Antiocos estava

dando atenção aos etólios e se mostrava disposto a entrar em guerra contra Roma,

dispensaram muitas atenções a Aníbal, desejando despertar em Antíocos suspeitas

contra ele; e isso realmente aconteceu. Com o passar do tempo a desconfiança com

relação a Aníbal tornou-se cada vez mais forte; em certa ocasião eles chegaram a

ter uma conversa acerca do distanciamento que vinha crescendo veladamente entre

os dois. Durante a conversa Aníbal defendeu-se apresentando vários argumentos, e

afinal, incapaz de encontrar outros, recorreu ao exposto a seguir. O cartaginês

disse que por ocasião dos preparativos finais para a expedição de seu pai com um

exército contra a Ibéria, ele mesmo, então com nove anos de idade, estava de pé nas

proximidades de um altar, enquanto Amílcar oferecia sacrifícios a Zeus. Quando,

em face dos presságios favoráveis, Amílcar havia espargido libações aos deuses e

cumprido os rituais costumeiros, ele ordenou às outras pessoas presentes no

sacrifício que se afastassem até uma certa distância, e pedindo a Aníbal para

aproximar-se perguntou-lhe afetuosamente se ele desejava acompanhá-lo na

expedição. Aníbal aceitou entusiasmado, e agindo à maneira das crianças pôs-se a

insistir com seu pai para levá-lo; o pai segurou-lhe a mão, conduzindo-o até o altar,

e mandou-o estender sua mão sobre a vítima sacrificada no mesmo e jurar que

jamais seria amigo dos romanos. Em seguida Aníbal disse a Antiocos, agora

conhecedor desse fato, que enquanto suas intenções fossem hostis aos romanos

contasse confiantemente com ele e acreditasse que teria nele um aliado sincero, mas

a partir do momento em que passasse a colaborar com os mesmos não lhe seria

necessário sequer esperar por acusações; deveria desconfiar dele e tomar

136

POLÍBIO, Livro III, 9 137

POLÍBIO, Livro III, 10 138

POLIBIO, Livro II, 36.

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74

precauções em relação a ele, pois não se absteria de fazer coisa alguma contra os

romanos139

.

Não iremos nos deter desse tópico, por uma opção simples. Caso aceitemos que os

chefes militares da família Barca possuíam como projeto pessoal a intencionalidade de

reiniciar as lutas entre Cartago e Roma, estaremos aceitando integralmente a hipótese de

Políbio, que ao fim, legitima a atuação romana posterior, isto é, a destruição de Cartago.

Iremos centrar nossas atenções para as campanhas militares de Aníbal antes do

incidente da conquista de Sagunto, considerado por historiadores antigos (Políbio e Tito

Lívio) e modernos (Wagner, Levecque, Braudel, Garrafoni) como estopim para a Guerra

Anibálica, ou Segunda Guerra Púnica.

Acerca da administração de Aníbal Barca, Políbio comenta especialmente o caráter

bélico de seu governo. Talvez um retorno à política de seu pai, que fazia do exército uma

importante instituição política.

Assumindo o comando Aníbal pôs-se em ação imediatamente com o objetivo de

subjugar a tribo dos Olcades, e chegando diante de Altaia, sua cidade mais

poderosa, acampou ali com seu exército e logo capturou-a mediante vigorosos e

terrificantes ataques sucessivos; em face desse sucesso o resto da tribo foi tomado

de pânico e submeteu-se aos cartagineses. Depois de impor um tributo às cidades e

de obter assim recursos consideráveis em dinheiro, Aníbal retirou se para o seu

aquartelamento de inverno em Nova Cartago. Graças à generosidade demonstrada

por ele na ocasião para com as tropas sob seu comando, fazendo-lhes pagamentos e

prometendo-lhes mais, Aníbal lhes inspirou um forte devotamento e grandes

esperanças140

Ao contrário dos demais modelos de exércitos mediterrânicos, como os helenísticos e

o romano, o Exército cartaginês era composto por diversas tropas mercenárias. Essas tropas

não eram comandadas diretamente pelo comandante cartaginês. Pelo contrário, antes dos

combates o general cartaginês se reunia com os chefes das tropas mercenárias e, através de

interpretes, repassava-lhes a estratégia. Esse modo de operação bélica exigia uma relação

muito forte de confiança entre o representante de Cartago e os representantes das tropas.

Muito provavelmente, essa confiança era adquirida através de trocas de favores, como

distribuição dos espólios de guerra, ou nomeação para posições maiores dentro da hierarquia

do exército. Ou mesmo, com a negociação de posições políticas, como administrador de uma

região ou cidade.

Infelizmente, não possuímos um conhecimento aprofundado sobre como era de fato a

estrutura administrativa da Península Ibérica sob os cartagineses. Não sabemos se a

magistratura de Comandante na Ibéria também era responsável por organizar a estrutura

139

POLÍBIO, Livro III, 11. 140

POLÍBIO, Livro III, 13.

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75

administrativa de exploração do território. Da mesma forma, não sabemos se Cartago

interferia diretamente nessa administração, enviando um corpo de responsáveis em garantir

uma exploração territorial. Pelo que podemos retirar de Políbio, era o próprio líder militar

cartaginês quem organizava o território, posto que em momento algum é mencionada a

existência de funcionários enviados de Cartago para a administração da Ibéria. Possivelmente,

a nomeação para os cargos administrativos fosse também uma ferramenta para garantir a

fidelidade militar dos chefes mercenários.

Com a redução das campanhas ocorrida na administração de Asdrúbal, o Exército, e

por conseqüência os chefes de tropas mercenárias, além das próprias tropas, perderam

destaque dentro da estrutura política administrativa. E, antes de ser uma magistratura

administrativa, o posto de general tem uma função primordialmente militar, seu poder deriva

do sucesso nas campanhas bélicas. Ao focar-se na organização dos territórios ibéricos,

Asdrúbal pode ter perdido o apoio militar que o aclamou como líder. E, pode ainda ter

interferido nas possíveis relações políticas pré-existentes na península; desagradando sua

própria base de poder, e despertando a inimizade de algumas tribos peninsulares.

Nesse sentido, devemos procurar compreender o inicio da administração de Aníbal.

Com a subida desse novo líder em 221 a.C., a política diplomática dá lugar a uma política de

ações bélicas. Possivelmente para atender a uma demanda dos grupos que o aclamaram como

general de Cartago na Ibéria. Sua primeira campanha foi dirigida contra os Olcades, uma tribo

celtibérica. Grosso modo, estariam localizados ao norte dos Oretanos e ao leste dos

Carpetanos141

, entre os cursos superiores do Rio Guadiana e o Rio Tajo142

, em território da

atual Província de Cuenca (Espanha) (Mapa 3).

Quais os motivos que levaram Aníbal a entrar em luta contra essa tribo, e as tribos

subseqüentes ainda é motivo para especulações na atualidade. A opinião dos pesquisadores

modernos varia conforme concordem ou não com a idéia de que Aníbal queria iniciar a guerra

contra Roma desde que chegou ao poder. Carlos Wagner e Eduardo Sánchez Moreno não

descartam nenhuma dessas interpretações, e apresentam ambas como hipóteses válidas.

Seguindo a corrente que defende a postura anti-romana, as campanhas de Aníbal ao

interior da península (especialmente zonas de grande potencial mineral, agrícola e humano)

eram preparativos para a campanha itálica. Ao atacar essas regiões Aníbal estava obtendo e

141

MARCO, Francisco & SOPEÑA, Gabriel. Gênesis y Evolución de los Pueblos. In: ALVAR, Jaime (org.),

Entre Fenícios y Visigodos – La historia antigua de la Peninsula Ibérica. Madrid, La Esfera de los Libros, p.

63 – 106, 2008; p. 71. 142

HERVÁS, José Manuel Roldán. Historia de Roma I – La República Romana, 4ª Ed. Salamanca: Ediciones

Universidad de Salamanca, 1995; p. 226.

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76

estocando mantimentos143

em alguma base avançada, na desembocadura do atual Rio Ebro.

Caso optemos pela teoria de que a guerra entre Roma e Cartago foi iniciada de forma

acidental, isto é, que não fora planejada anteriormente pela família Barca, a motivação para

essas campanhas foram uma resposta à possíveis ataques dessas tribos celtiberas contra as

tribos aliadas de Cartago, ou ainda, poderiam ser simples incursões de rapinagem para

reanimar o exército144

Em todo caso, qualquer que fosse a intenção de Aníbal com essas

campanhas, nosso foco é analisar como elas transcorreram, e não suas possíveis causas.

MAPA. 3 – Mapa da Península Ibérica durante o comando de Aníbal, (221 – 220 a.C.). Em azul, as regiões sob

hegemonia cartaginesa, considerando o Ibér ao sul de Sagunto. Em verde considerando o Íber como o atual Ebro.

Em verde escuro a região dominada pelos Olcades; em Lilás a bacia do Douro dominada pelos Vacaios; e em

amarelo a região entre o Tajo e o Guadiana sob a tribo dos Carpésios. A seta preta assinala a campanha de

Aníbal contra os Olcades em 221 a.C.; a seta azul marca o possivel trajeto das tropas de Aníbal quando da

incursão contra os Vacaios, em 220 a.C.

143

WAGNER, op. cit., p. 272; MORENO, E. S. Releyendo la campaña de Aníbal en el Duero (220 a.C.): La

apertura de la meseta occidental a los intereses de las potencias mediterráneas. Gerión, v. 18, p. 109 – 134,

2000; p. 115. 144

Hipótese defendida por HERVÁS, op. cit., p. 226

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77

Retomando a análise sobre o desenvolvimento da campanha militar de Aníbal Barca

contra os Olcades, temos no trecho acima elencado diversos aspectos interessantes para

analisarmos. Ao nível estratégico, há uma alteração no eixo de atenção de Cartago na Ibéria.

As ações de Amílcar e Asdrúbal voltavam-se muito mais para o litoral peninsular, região de

colônias fenícias tão (ou mais) antigas que Cartago; e que desde muitos séculos antes,

pareciam estar em sintonia cultural com a cidade de Gades, no extremo-sul da península. Com

Aníbal, esse eixo muda: temos a primeira menção a atividade bélica por parte de Cartago indo

ao norte do rio Guadiana, para o interior da península ibérica.

Podemos supor que essa foi a primeira incursão cartaginesa ao interior da península

devido a brevidade da campanha, iniciada em 221 a.C. e encerrada no mesmo ano, com o

retorno das tropas à Cartago Nova para divisão do butim e pagamentos, como afirma Políbio.

A brevidade também pode ser fruto do imediatismo da preparação da incursão, montada em

seqüência à subida do general ao poder.

Ao nível tático, temos alguns detalhes cuja análise nos permitirá descortinar um

pouco sobre os conhecimentos militares de Aníbal antes dele se tornar o grande mestre das

artes militares, e o terror dos romanos. Políbio comenta que a tática utilizada para tomar de

assalto a cidade de Altaia145

, capital dos Olcades, foram ataques sucessivos de grande

violência. Duas coisas chamam a atenção: o objetivo de tomar diretamente a capital da tribo; e

a conquista através de múltiplos ataques sucessivos.

Para que ambas as coisas resultassem em sucesso, Aníbal deveria estar no comando

de um exército impressionante. Ou com grandes expectativas de vitória, posto que marchou

rumo à capital inimiga em pleno território rival, e acampou próximo ao alvo. Ou seja, sem

impor um cerco à Altaia. Ignoramos se os Olcades atacaram o acampamento cartaginês, da

mesma forma como não temos meios de saber qual foi a razão para que Aníbal não coloca-se

a cidade em cerco. Mas podemos imaginar que a cidade impôs uma grande resistência,

explicando o vigor e a necessidade de mais do que um ataque; e da mesma forma, os ataques

devem ter custado uma quantidade significativa de tropas, tendo em vista que as investidas

eram terríveis e o tratamento dado aos vencidos colocou toda a tribo em pânico.

O resultado final, a submissão de todas as demais cidades da tribo; um valioso butim;

e um rentável tributo em dinheiro; conseguiram aquietar as possíveis tensões políticas da

145

Sobre essa cidade, há uma discussão. Barceló defende que sua localização é desconhecida; Franscisco Marco

e Gabriel Sopeña levantam a hipótese de que estaria localizada onde hoje temos o oppidum de Alcochel de la

Estrella; e Carlos Wagner sugere que seja próxima a atual Alcoy.

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78

administração anterior, herdadas por Aníbal. Podemos concluir isso a partir do comentário de

Políbio, de que devido à generosidade demonstrada pelo general com suas tropas, estas

dedicaram-lhe grande devoção e esperanças. Devemos perceber a sutileza por trás dessa

generosidade e devoção; em realidade, devemos entender que Aníbal comprou o apoio das

tropas através do butim, e da promessa de conseguir mais, caso eles permanecessem com ele.

As grandes esperanças das tropas foram respondidas rapidamente. As tropas de

Aníbal não tiveram descanso, bem como sua administração, e os encarregados pelos contatos

com o mundo mediterrânico. Sua próxima campanha foi uma incursão ainda mais profunda

dentro da península ibérica:

No verão subseqüente ele efetuou um novo ataque, agora aos vacaios, assaltando e

capturando Hermândica na primeira investida, mas teve de sitiar Arbucala, uma

cidade grande e com uma população valente e numerosa, e somente pode tomá-la

de assalto após muitas dificuldades146

.

Os Vacaios ocupavam uma região a oeste da Celtiberia. Seus limites podem ser

definidos, ao norte pela confluência do Pisuerga e o Arlanza, fechando ao sul com os

contrafortes da Serra do Guadarrama; ao oeste o rio Esla seria sua fronteira, e a leste, a cidade

de Roa seria a mais oriental147

. Era uma tribo com várias cidades, e destacam-se explorando

um fértil solo, através da plantação de cereais e da criação de bois e cabras148

. Ao contrário

dos vários povos da península, careciam de metais, tanto de uso cotidiano quanto metais

preciosos, que eram adquiridos através do comércio com povos do noroeste, como asturios,

arévacos e vetões149

.

Não sabemos se as cidades vacaias atacadas eram as capitais, mas podemos supor

que tenham sido as mais desenvolvidas, tendo em base que Aníbal provavelmente empregou

uma tática similar à empregada na campanha contra os olcades, isto é, atacando as principais

cidades para submeter toda a tribo. Novamente, iremos nos centrar, primeiramente, nos

aspectos técnicos dessas conquistas.

A cidade de Hermândica (atual Salamanca150

) caiu na primeira investida das tropas,

enquanto Arbucala (Toro151

, ou El Viso de Bamba152

) precisou ser sitiada. Ambas as cidades

pertenciam a mesma tribo, e estavam sujeitas as mesmas interferências. Então, é possível

146

POLÍBIO, Livro III, 14. 147

MARCO E SOPEÑA, p. 82. 148

MARCO E SOPEÑA, p. 83 149

MARCO E SOPEÑA, p. 83 150

BARCELÓ, p. 120 151

BARCELÓ, P. 120 152

MORENO, p. 116

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79

supormos que ambas as cidades teriam um potencial de resistência comum. Então, quais

motivos podem ter levado uma das cidades a cair num primeiro ataque, enquanto a segunda

conseguiu opor resistência? A hipótese mais provável seria que o ataque das tropas

cartaginesas foi fulminante, ou repentino. Considerando que o deslocamento da tropa

dificilmente passaria despercebido, e que Aníbal não pretendia desgastar as tropas em

múltiplos e sucessivos ataques, como ocorreu contra Altaia, seu ataque inicial contra

Hermândica obteve a vitória.

Porém, ao deslocar-se contra Arbucala, uma cidade maior que Hermândica e com

uma população mais belicosa, esta conseguiu impor-se contra o ímpeto cartaginês. Foi

necessário sitiar a cidade para obter a rendição, conquistada após muitas dificuldades. Não

sabemos como foi desenvolvida essa manobra de sítio. Provavelmente pela época do ano em

que o cerco ocorreu, era época das colheitas de cereais na região153

, Arbucala contaria com

boas reservas alimentícias. Ou seja, a cidade não caiu sob o comando cartaginês devido à

fome.

Aníbal poderia ter empregado máquinas de assédio? Não temos nada de concreto que

nos possa embasar, e nem meios de supor isso. O mais próximo que temos sobre a

composição das forças de incursão cartaginesas é o comentário de Políbio sobre o retorno das

tropas da bacia do Douro até Cartago Nova:

Em seguida, por ocasião de seu retorno, Aníbal viu-se numa situação muito

perigosa, pois os carpésios – a tribo mais forte da região – uniram-se para atacá-lo,

apoiados pelas tribos vizinhas, convocadas para isso pelos Olcades remanescentes,

e também pelos homens que haviam escapado de Hermândica. Se os cartagineses

tivessem sido obrigados a enfrentar toda aquela multidão num combate regular,

eles teriam certamente sido derrotados; Aníbal, porém, demonstrou grande

sagacidade e sensatez fazendo meia-volta e recuando de maneira a ficar protegido

pelo rio chamado Tagos, e permaneceu ali para disputar a travessia, beneficiando-

se da ajuda tanto do próprio rio quanto de seus elefantes (em número de

aproximadamente quarenta); dessa forma, contra a expectativa geral tudo correu

de conformidade com seus cálculos. De fato, quando os bárbaros tentaram forçar a

travessia simultaneamente em vários pontos, a grande maioria deles pereceu ao sair

do rio, pois os elefantes estavam dispostos ao longo dos barrancos e avançaram

sobre eles logo após firmarem os pés em terra. Muitos foram interceptados pela

cavalaria no próprio rio, pois os cavalos podiam firmar-se melhor contra a

corrente, e os cavalarianos estavam a uma altura maior que a dos homens da

infantaria. Finalmente o próprio Aníbal atravessou o rio e atacou os bárbaros,

pondo em fuga mais de cem mil homens.

Nesse extrato, o mais marcante não são os números exagerados dos inimigos, os

“cem mil homens”, mas a presença dos elefantes entre as tropas anibálicas. O uso de elefantes

em guerra deriva da experiência cartaginesa contra Pirro do Épiro. Após as desastrosas

153

BARCELÓ, op. cit., p. 120; MORENO, op. cit., p. 117

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80

vitórias na Itália, Pirro transportou suas tropas para a Sicilia, onde Cartago entrou em contato

com essas poderosas unidades bélicas. Podemos supor que esse destacamento de paquidermes

empregado por Aníbal em sua incursão fosse proveniente da capital norte africana. Mas, de

onde Cartago haveria havia contratado ou comprado esses animais?

Conforme aponta Hérnan G. H. Taboada, os elefantes empregados pelos cartagineses

eram de uma espécie menos robusta do que os elefantes africanos e indianos utilizados pelos

Reinos Helenísticos154

. Porém, no mesmo artigo, o pesquisador aponta sobre os raros sucessos

obtidos quando os próprios africanos buscavam treinar seus elefantes155

. A saída encontrada

para suprir essa lacuna era a contratação de indianos para domesticarem, amestrarem e

treinarem os elefantes para as batalhas. Isso quando não importavam os animais diretamente

de sua origem, a Índia, com condutores e tudo o mais, como a panóplia de guerra própria aos

paquidermes. Quando Políbio trata sobre a campanha romana conduzida pelos romanos contra

os cartagineses na Ibéria, em finais da Guerra Anibálica, o historiador deixa passar um

interessante informação sobre os elefantes:

Os elefantes haviam prestado serviços equivalentes a ambos os lados na batalha;

com efeito, encurralados entre os dois exércitos e molestados pelos projéteis eles

levaram a confusão simultaneamente às fileiras dos romanos e dos iberos (...). Seis

dos elefantes [originalmente eram 10] foram mortos com os respectivos condutores

e os outros quatro foram capturados sozinhos, depois de abrir caminho entre as

fileiras e abandonados pelos seus condutores indianos156

.

Mas, retomando a análise da campanha de Aníbal ao interior da Península Ibérica,

analisando as forças que se opuseram às forças cartaginesas, percebemos que mesmo após o

sucesso da campanha realizada no ano anterior, e durante a campanha em finalização,

elementos das tribos vencidas opuseram resistência e emboscaram as tropas de incursão

durante sua retirada. Políbio elenca além dos carpésios, habitantes da chamada Carpetânia

(região da bacia do Tajo, entre o Guadiana e o Guadarrama157

), olcades remanescentes e

vacaios que sobreviveram à conquista de Hermândica.

Essa coligação nos aponta que apesar da submissão das tribos, havia um contingente

muito significativo que não havia reconhecido ainda a hegemonia de Cartago, representada na

figura de Aníbal Barca. Especialmente a tribo dos carpésios, tribo combativa que habitava

uma região perigosamente próxima à região do Círculo do estreito, a saber, o litoral extremo

154

TABOADA, H. G. H. Políbio (5. 84.5 S.) y los elefantes de Rafia. Habis, Sevilla, v. 26, p. 113 – 117, 1995;

p. 115. 155

TABOADA, op. cit. p. 117. 156

POLÍBIO, Livro XI, 1. 157

MARCO E SOPEÑA, p. 71

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81

sul da península; o núcleo original da expansão cartaginesa, conquistado pro Amílcar Barca

20 anos antes.

Não sabemos se essa tribo havia entrado em contato com as forças cartaginesas antes

desse episódio, seja sob o governo ibérico sob o comando de Amílcar, seja sob o comando de

Asdrúbal. Igualmente não podemos lançar qualquer hipótese sobre os motivos que os levaram

a atacar os cartagineses quando de sua passagem por seu território, além de prestarem auxilio

aos olcades e vacaios derrotados. Em todo caso, Políbio afirma que:

Após essa derrota nenhum dos povos daquele lado do Iber se aventurou com

facilidade a enfrentar os cartagineses, à exceção dos zacântios. Aníbal tentou tanto

quanto pôde manter-se afastado da cidade destes últimos, porquanto não desejava

dar aos romanos qualquer pretexto válido para a guerra antes de ele mesmo haver

estabelecido firmemente o seu domínio sobre todo o território restante, seguindo

quanto a isso as sugestões e advertências de seu pai Amílcar”158

A partir desse ponto, o relato de Políbio assume um novo foco. Suas atenções são

dedicadas a traçar os caminhos que levaram até o incidente com Sagunto, e a posterior guerra

com Roma. Iremos elencar somente uma última passagem, que poderá nos auxiliar a entender

qual era a percepção dos cartagineses sobre as tribos ibéricas sobre sua hegemonia, ou, ao

menos, a percepção grega sobre qual seria a percepção cartaginesa sobre sua hegemonia na

Ibéria.

(...) Mas Aníbal mandou pedir instruções [para iniciar ações militares] a Cartago,

pois os zacântios, confiantes em sua aliança com os romanos, estavam hostilizando

alguns dos povos aliados aos cartagineses.159

Segundo Políbio, as ações de Aníbal no interior da península começaram a inquietar

a cidade de Zacânton, isto é, Sagunto. Esta se aliou aos romanos, e confiantes nessa aliança,

passaram a hostilizar tribos aliadas à Cartago. Essa passagem pode ser interpretada de

múltiplas formas; pode ser considerada como um recurso retórico para justificar a versão

romana de que Aníbal era falso e queria a guerra a todo custo160

. Ou então, como uma

oportunidade de lançarmos uma ultima hipótese sobre o sucesso da expansão cartaginesa na

Ibéria: as influências helenísticas.

Nessa passagem, vemos uma alteração no modo como os cartagineses interpretavam

sua atuação na península. Alguns dos povos submetidos deixaram de ser tratados como

subjugados e passaram a ser entendidos como aliados que estavam sendo atacados. Esse

recurso retórico, de transformar Cartago numa espécie de Hegemon dos povos peninsulares e,

158

POLÍBIO, Livro III, 14 159

POLÍBIO, Livro III, 15. 160

Nessa passagem, Políbio afirma que “inteiramente dominado pela irreflexão e pelo ódio, Aníbal não alegou

as verdadeiras razões verdadeiras” (Políbio, Livro III, 15). Essas razões verdadeiras seriam o seu desejo por

uma nova guerra entre as duas potências mediterrânicas.

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que por esse motivo, deveria defendê-los dos zacântios, somente possuiria sentido num

universo que compartilhasse dos conceitos próprios do universo político helenístico do

período. Ou seja, podemos inferir que Aníbal, e as elites de Cartago, não estavam estanques

ao mundo cultural helenístico161

, e compartilhavam de alguns traços culturais162

que iam além

da esfera material. Estão na esfera da ideologia de Poder.

Desde os confrontos contra Pirro do Épiro, antes da Guerra da Sicilia travada contra

Roma, Cartago convivia diretamente com o Mundo Helenístico. No conflito contra a cidade

do Lácio, Cartago recorreu a grandes personagens desse mundo para desenvolver sua cultura

militar. E, nos vinte anos de atividades na Ibéria, desenvolveu uma hegemonia política de

forma muito próxima ao tipo de hegemonia desenvolvida por Alexandre, o Grande nos

territórios distantes do Indo; onde as aristocracias locais eram integradas, mantendo o poder

em troca de sua liberdade de ação política e militar.

Com o comando de Aníbal, Cartago vivenciou o auge de seu poderio. A antiga

colônia fenícia havia perdido sua primazia no Mediterrâneo Central, mas sob a conduta dos

Barcas, seus domínios abarcavam uma região ainda mais ampla do que antes. Na Ibéria, a

hegemonia de Cartago se estendia desde a bacia do Douro, ao norte, até a bacia do

Guadalquivir, ao sul; e desde o curso do rio Guadiana a oeste, até o litoral mediterrânico da

Península Ibérica (talvez até o atual Ebro, talvez somente até o Rio Júcar) ao leste.

Amílcar, Asdrubal e Aníbal Barca reergueram uma cidade, transformando o grande

Mediterrâneo em um palco pequeno demais para a atuação de dois colossos político, o do

poderio romano e do novo poderio cartaginês.

161

TRONCOSO, Victor Alonso. “La Paidéia del príncipe y la ideologia helenística de la realeza”. Gérion

Anejos, Madrid, IX, p. 185-204, 2005. 162

Sobre os elementos culturais helenístico presentes em Cartago, como a existência de um templo grego em

pleno centro urbano, assim como evidencias de uma reurbanização a partir do planejamento urbano helenístico,

cf. SILVA, José Guilherme Rodrigues da. Cartago: Arqueologias e Representações. In: Em Tempo de

História, PPG-HIS/UnB, n. 13, Brasília, 2008, p. 124 – 147.

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83

CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Ao analisarmos o governo da dinastia Barca na Península Ibérica, percebemos como

foi possível a uma cultura em crise reerguer-se de uma posição de submissão até o posto de

enfrentamento. O renascimento cartaginês começou antes da expansão propriamente dita, na

verdade, nasceu em meio às convulsões da guerra civil entre Governo e Mercenários. A

Guerra Líbica, iniciada quando as tropas mercenárias incitaram a rebelião dos povos líbios

submetidos à Cartago foi uma experiência de choque para a cidade do norte da África, pois

sua própria existência foi seriamente ameaçada.

Nesse momento de crise, o Senado e a população cartaginesa pediram o retorno de

Amílcar Barca, um experiente general que havia negociado o tratado de rendição com Roma.

Infelizmente nossa fonte, a obra Histórias de Políbio de Megalópolis, não menciona como o

general Barca conseguiu obter suas primeiras vitórias. Somente sabemos que suas tropas eram

formadas parte por mercenários revoltosos que eram feitos prisioneiros; e parte por

mercenários atraídos pela generosidade do general, isto é, pelo perdão do crime de traição,

caso as tropas integrassem seu exército. Ao fim, o conflito serviu como um filtro para a

criação de Exército mais disciplinado e obediente; nesse novo exército estavam presentes as

tropas mais experientes e leais à cidade, e seu novo comandante mostrava mais uma vez sua

capacidade estratégica. Contando com o apoio e a estima de uma integrada e organizada força

militar, junto do apoio do governo, Amílcar foi enviado ao sul da Península Ibérica.

Tanto a Península Ibérica quanto o norte da África haviam integrado, séculos antes, a

rede comercial de colônias e entrepostos fenícios. Porém, com a queda da Fenícia sob as

ordens de potências estrangeiras, cada colônia teve que se adaptar de forma autônoma à nova

realidade. Cartago assumiu a primazia sobre a região do Mediterrâneo Central, enquanto que

no Mediterrâneo Extremo-Ocidental, as diversas colônias organizaram-se numa liga

comercial, capitaneada pela cidade de Gades. Esse é o núcleo principal da argumentação dos

pesquisadores que defendem a existência do chamado Círculo do Estreito, o termo pelo qual é

chamada, na ausência de qualquer indicio de auto-referencia, a liga comercial gaditana na

Ibéria e costa atlântica africana, desenvolvida enquanto Cartago lutava contra os gregos e

romanos na Sicilia.

Com a queda da hegemonia econômica cartaginesa no comércio mediterrânico ao

longo dos anos da Guerra da Sicilia, as cidades do Círculo do Estreito começaram a prosperar.

A integração cultural e comercial gaditana, somada ao rico potencial agrário e mineral

peninsular, junto com a disponibilidade de tropas da região (grande parte dos contingentes

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mercenários empregados por Cartago, e outras potências helenísticas, eram oriundas da

Ibéria) podem ter sido as razões que pontuaram a orientação da expansão cartaginesa para o

exterior do norte da África, e não para o interior líbio ou númida.

Recebendo do Senado Cartaginês o comando sobre tropas selecionadas, Amílcar

avançou para a conquista da Ibéria, em 237 a.C. A historiografia moderna afirma que o ataque

de Cartago foi direcionado contra a cidade de Gades, que no período, era uma consagrada

cidade mercantil, com um templo reconhecido em todo o Mediterrâneo e um excelente porto

comercial. Nessa cidade, o comandante Barca teria instalado sua base logística e diplomática;

e a partir dela, vemos a influência cartaginesa estender-se pelo litoral sul da península,

especialmente pelas cidades que formariam o Círculo do Estreito.

As atividades de Amílcar não foram restritas somente ao litoral da península.

Podemos encontrar moedas cunhadas em Gades, durante o comando desse general também no

Vale do Guadalquivir, no interior. Através da arqueologia, podemos indicar que a região

desde o litoral gaditano até a Serra Morena esteve sob o comando de Cartago por meio de seu

representante, Amílcar. Essa faixa de território sob influência cartaginesa foi conseguida

através de doze anos de atividades militares e diplomáticas. Estabelecendo contatos com as

regiões pesqueiras, mineiras, agrícolas; e fornecedora de mercenários, as bases para a

progressão da expansão foram bem fixadas em solo ibérico, e prenunciavam uma vitoriosa

expansão. Porém, em meio ao processo, Amílcar morreu.

Cartago, distante logística e politicamente da realidade ibérica, acatou a aclamação

das tropas que elegeram como novo comandante o genro de Amílcar, Asdrúbal Barca (229

a.C.). Esse novo comandante alterou o modo de Cartago estender sua influência na península.

Apoiando-nos na descrição de Políbio sobre como Asdrúbal comandou a Ibéria, percebemos

que em seu governo há uma preocupação com a administração da zona de influência

cartaginesa. A cidade de Cartago Nova, fundada com a intenção de ser a nova capital do

governo, abrigando o centro administrativo dentro de uma cidade fortificada, com um porto

aparelhado para atender navios mercantes e a reduzida frota bélica cartaginesa.

Partindo de sua nova capital, Asdrúbal estendeu a influência de Cartago através do

litoral mediterrânico da Ibéria. Ainda há debates sobre quais foram os limites dessa influência,

se até o atual Rio Ebro, ou algum rio mais ao sul. De forma segura, podemos afirmar que o

comandante cartaginês estendeu a faixa de domínio cartaginês do Vale do Guadalquivir até a

região dos rios Júcar e Turia. Se houve um desenvolvimento administrativo de um lado,

ocorreu uma redução nas atividades militares. Com isso, o Exército perdeu importância,

talvez a ponto de serem os incentivadores, ou apoiadores, do assassinato do comandante, em

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221 a.C. Outros suspeitos desse crime podem ser as antigas aristocracias locais, que

deslocadas de sua posição pelo avanço da hegemonia político-econômica cartaginesa,

ressentiam-se ante a conduta de Asdrúbal.

Como na ocasião anterior, o Exército aclama um novo líder, oriundo da família

Barca e filho do grande comandante que os trouxe até a Ibéria: Aníbal. No mesmo ano, esse

jovem general cuja experiência era contestada em Cartago, organizou uma incursão ao interior

da Ibéria, na direção dos Montes de Toledo. Vitorioso, conseguiu angariar a simpatia e o

apoio das tropas através do butim de guerra e promessas de mais ganhos.

No verão seguinte, cumprindo com sua promessa, Aníbal partiu para uma nova

incursão ao interior. Essa incursão, porém, penetrou ainda mais profundamente no interior

peninsular, em plena Bacia do Douro, para além da Serra do Guadarrama. Vencendo a

resistência das tribos celtiberas dos vacaios, em seu retorno pelo sudoeste da Serra de Gredos,

caiu em uma emboscada organizada pelas tribos recém subjugadas. Nessa batalha,

demonstrou seu talento tático vencendo uma força inimiga numericamente superior.

Os sucessos militares de Aníbal Barca reacenderam não só a confiança militar

cartaginesa dentro do território ibérico. Se a política diplomática de Asdrúbal atraiu adesões

entre as diversas tribos da península; as diversas cidades livres e colônias gregas localizadas

na parte setentrional do litoral mediterrânico ibérico sentiram-se ameaçadas por Aníbal. E

procurando proteção à ameaça de Cartago, trouxeram Roma para dentro das intrincadas

relações políticas ibéricas. Dessa tensão, resultou a campanha itálica de Aníbal, o pontapé

inicial das Guerras Anibálicas, isto é, da Segunda Guerra Púnica (218 – 201 a.C.).

Amílcar, Asdrúbal, e Aníbal. Três personagens que reergueram Cartago. O primeiro,

ao inserir o governo cartaginês no topo das produtivas relações comerciais criadas por Gades.

O segundo, ao ampliar o âmbito das relações peninsulares, integrando a pré-existente rede de

relações políticas do Círculo do Estreito com diversas tribos ibéricas, celtiberas, celtas e de

origem fenícia. E o terceiro, ao confirmar a hegemonia política de Cartago através do

exercício da supremacia militar contra regiões que até o momento, não haviam entrado em

contato com o governo cartaginês sediado em Cartago Nova. Seus esforços inundaram o

governo de Cartago com prata. Foi com esse metal precioso que Cartago pôde saldar suas

dívidas, reerguer sua economia e financiar as tropas tanto na Ibéria quanto no norte da África.

E esse mesmo metal reacendeu as ligações entre os há muito tempo separados

mundos mediterrânicos do Ocidente e Oriente. Junto dos indianos condutores de Elefantes de

Guerra, uma parcela da cultura Helenística era transferida para a Ibéria. Dessa forma,

devemos nos desfazer da falsa impressão de que Cartago, e a Ibéria, eram regiões estanques as

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influências helenísticas. Alexandre, o Grande e seus sucessores estenderam o mundo

helenístico até os confins do Oriente; e os Barcas sob o comando de Cartago fizeram o mesmo

nos confins do Ocidente, até as margens do Mar-Oceano.

Como comentário final, devemos ressaltar o caráter inicial dessa pesquisa. Muitas

das questões levantadas em seu começo não puderam ser respondidas de forma embasada. E

muitas das respostas propostas para entendermos o modo como ocorreu a expansão de

Cartago na Ibéria são especulações baseadas nas poucas informações disponíveis sobre esse

recorte espaço-temporal. Muito provavelmente, pesquisas futuras, mais aprofundadas e

abarcando um âmbito maior de fontes e dados críticos possam aprimorá-las, corrigi-las, ou

mesmo desconstruí-las para recriar hipóteses melhores e mais plausíveis. Entretanto,

queremos deixar aqui nossa contribuição, uma pequena vela para iluminar uma grande “Zona

Obscura” da História Antiga.

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Page 95: universidade federal do paraná andré felipe wielgosz leite culturas

95

GLOSSÁRIO.

Andaluzia – Região do sul da Península Ibérica. Essa denominação não é da Antiguidade,

surgiu durante a ocupação muçulmana, que denominava a região como Al – Andalus. Nesse

trabalho, utilizamos esse termo para a região por descrever melhor os limites geográficos

referidos. Durante a Antiguidade, especialmente sob o governo romano, a região da Ibéria na

qual concentramos nossos estudos, passou a ser dividida em diversas províncias e regiões,

destacadamente Baetica e Tarraconensis.

Ânfora – Recipiente de cerâmica, usado na Antiguidade para acondicionar, conservar,

guardar, e transportar alimentos e bebidas. Poderiam ter diversas formas e tamanhos, indo

desde pequenas ânforas de mesa, do tamanho nossas atuais garrafas de vidro ou plástico, até

imensas ânforas, capazes de guardar dezenas de litros de vinho ou quilos de trigo. Sua forma

básica é uma estrutura esférica, cuja boca pode ser tanto uma abertura simples quanto uma

estrutura cilindro-cônica que vai afunilando do bojo até o gargalo. Alguns modelos possuíam

alças laterais, ou seu bocal possuía uma espécie de bico para despejar líquido; outros modelos

apresentavam uma saliência no fundo, para facilitar a manobra de incliná-la.

Cartago – colônia fenícia fundada no norte da África, próxima ao Monte Byrsa. Sua

fundação é cercada de lendas, sendo a mais reconhecida a de que Dido, uma importante

princesa de Tiro, opunha-se a regência de poder de seu marido ou primo Pigmaleão. Apoiada

por um grupo de aristocratas contrários a Pigmaleão, essa princesa tomou posse dos tesouros

da cidade e navegou com seu séquito até um local distante e seguro. Nesse local, fundou a

cidade de Cartago (meados do século VIII a.C.). Com a queda de Tiro no século VI a.C.,

assumiu o controle sobre as demais colônias fenícias do Mediterrâneo Central. Foi destruída

em 146 a.C., pelos romanos.

Colônia – Na Antiguidade, uma Colônia era um núcleo populacional estabelecido como

forma de reduzir a pressão populacional sobre uma cidade; ou para ocupar, manter e cuidar de

um território estratégico. Normalmente seu núcleo de habitantes eram formados por um corpo

de cidadãos de uma única cidade, contando com acresimos de escravos e dependentes de

diversas origens. Desde o séc. X a.C., diversos povos criaram colônias através do

mediterrâneo. Os povos mais destacados foram os fenícios, criando colônias em diversos

pontos para apoio às suas rotas comerciais; e os gregos, cujas colônias populacionais eram

criadas para aliviar a pressão na cidade-natal, ou para garantir a posse de terras férteis ou

privilegiados portos marítimos. As colônias poderiam, ou não, adotar as mesmas formas de

governo de suas cidades-natais. Igualmente, nem todas as colônias mantinham contato, ou

estavam sob as ordens do governo da cidade natal.

Cultura – Conjunto de elementos que são adquiridos pelo homem como membro de uma

sociedade e que o permitem diferenciar a sociedade a qual pertence de outras sociedades

humanas. Esses elementos são o Conhecimento dominado pelo grupo; suas Crenças, sua Arte,

sua Moral, suas Leis, seus Costumes e todos os outros hábitos que o permitam a reconhecer-

se dentro de um determinado grupo humano, e ao mesmo tempo diferente de outros grupos.

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96

Cultura Material – Conjunto de elementos materiais, como utensílios, tecidos, armas,

ferramentas, moedas, ruínas, pinturas, estelas, entre outros; que formem, permitam formar, ou

formaram, o ambiente cultural de uma sociedade. O modo de fabricação, o padrão, o estilo, a

forma e o uso de um objeto são determinações culturais. Através desses elementos, podemos

ter acesso a alguns aspectos da vida cultural de povos desaparecidos há muitos séculos.

Porém, devemos ter claros que esses elementos são muito mais vestígios do que evidências de

uma cultura. Devemos sempre analisá-las junto com as informações fornecidas pelas fontes

literárias, que as mencionam, explicam ou comentam sobre seus usos e funções dentro de uma

cultura. Ao tomarmos um vestígio material por si mesmo, podemos interpretar essa fonte de

forma equivocada, ou fazermos suposições acerca dela que não condizem com a possível

realidade histórica

Estratégia – Arte de preparar e aplicar o poder para conquistar e preservar objetivos,

superando todo e qualquer obstáculo. Seria a arte de planejar os deslocamentos, manobras e

antecipar possíveis contratempos que venham a existir ao longo da campanha militar. Difere

da Tática.

Estratego (Strategoi) – Comandante Supremo nos exércitos helenísticos. Sua elevada função

requeria não só elevada experiência militar, mas uma grande aptidão política, pois era ele

quem deveria organizar e preparar o exército; assim como atuava como Diplomata entre as

Ligas Gregas durante o séc. II a.C.

Fenícia – Região localizada no atual Líbano, antiga região de Canaã. Era composta, na

Antiguidade, por diversas póleis, politicamente autônomas, mas que partilhavam de uma

mesma cultura de fundo cananeu. Suas principais cidades eram Biblos, Sídon e Tiro. Era

famosa pela excelência de seus marinheiros, os primeiros a cruzarem o Mediterrâneo para a

prática comercial. Também são conhecidos como os primeiros a circunavegarem a África, sob

as ordens do faraó Necao II (VII a.C).

Fontes Históricas – São todos os elementos que nos permitam analisar a cultura de um povo.

Podem ser documentos escritos (cartas, livros, diários, roteiros, romances, entre outros), ou

vestígios materiais (ruínas, fragmentos de objetos, monumentos, entre outros). Podemos fazer

a análise em separado de cada tipo delas, sejam escritas ou materiais. Porém, quando

analisamos de forma conjunta, obtemos muito mais informações e podemos interpretar

melhor ambas as fontes, pois enquanto que o relato sobre um objeto esclarece seu papel

cultural; a existência do objeto dá credibilidade ao relato, tornando-o muito mais lógico e

confiável.

Garum – Molho muito apreciado na culinária mediterrânica, muito utilizado na culinária

grega, helenística e romana. Era feito a partir das entranhas de peixe maturadas com ervas e

sal. Existiam diversas regiões produtoras, mas o mais elogiado e apreciado era o garum

proveniente da Península Ibérica, devido sua qualidade e sabor. No sítio arqueológico de

Corinto, na Grécia, foram encontradas diversas pilhas de restos de ânforas provenientes de

Gades. Algumas não foram abertas, e os restos orgânicos identificados revelaram uma mistura

de atum, sardinha, especiarias, frutos do mar desidratados e em conserva.

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97

Helenístico (Mundo, Cultura) – Referente à cultura Helenística, surgida da união entre a

cultura grega clássica, e a cultura oriental (persa, egípcia, indiana, bactriana...). Nesse

trabalho, utilizamos o termo Cultura Helenística nos referindo às práticas políticas e militares

praticadas pelos Reinos Helenísticos. Como principais pontos da Cultura Helenística, temos o

surgimento de um suporte ideológico para a prática da Monarquia; a gradual transição de uma

concepção de mundo político centrado na Pólis para um mundo político muito mais amplo, o

de interação entre Reinos ou Ligas de pólis.

Hegemonia – Em História Política, é a supremacia de um povo sobre outro, através da

imposição cultural, ou superioridade militar. Uma cidade sob a hegemonia de um poder

externo não necessariamente perde sua autonomia política interna; mas passa a reconhecer e

obedecer a um poder político superior e externa à essa cidade. Essa prática política deriva da

palavra Hegemon, nome pelo qual os gregos do séc. IV a.C. chamavam o hipotético cargo de

defensor e vingador de todas as cidades gregas frente aos persas, e que posteriormente foi

dado à Filipe da Macedônia.

Hiparco (Hiparcoi) – Comandante da cavalaria nos exércitos helenísticos. Era uma função de

elevado status político-militar, dada a importância da cavalaria nos combates helenísticos.

Ibéria – Nome grego de uma rica região do Mar Negro (atualmente a Geórgia Caucasiana).

Quando eles chegaram ao Ocidente Mediterrânico, encontraram uma região com uma

configuração semelhante. O nome Hispania é de origem latina, que por sua vez deriva do

nome púnico da região (I – sepha – im).

Magistratura – Dentro do universo do poder político, função investida de autoridade por

uma Instituição, e reconhecida por toda a sociedade. Pode ter autoridade sobre aspectos

únicos (magistratura civil, militar, religiosa) ou englobar dois ou mais desses aspectos.

Instituição (Instituições) – mecanismos sociais criados para organizar e controlar o

funcionamento de uma sociedade. Podem ser de vários âmbitos, como política, religiosa,

cultural, militar, entre outros. No recorte do presente trabalho, a Instituição mais destacada da

Antiguidade eram o Senado e as Assembléias Populares, cujas funções e decisões eram

tomadas por uma parte ou por toda a comunidade cívica, e que afetavam a toda a população

de uma cidade.

Pólis (póleis) – Esse conceito político vai além da sua tradução por “cidade”. Politicamente, a

pólis é uma unidade autônoma de poder, formada pelo seu corpo cívico, onde quer que este

corpo esteja. Não estava restrito à seus limites de existência física, apesar de existirem

espaços dentro das cidades para o exercício dos direitos cívicos (como a Ágora e os espaços

de Conselhos). Apesar de normalmente ser usada somente para se referir à estruturação

urbana grega entre os séculos VIII a.C. – I d.C.; podemos utilizar esse conceito em referencia

aos diversos centros urbanos mediterrânicos que possuíam estruturas políticas autônomas e

auto-regidas por instituições e magistraturas próprias.

Tática – Arte de dispor, movimentar e empregar as forças militares em presença do inimigo

ou durante o combate. Cuida do emprego imediato do poder para alcançar os objetivos

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98

fixados pela estratégia, compreendendo o emprego de forças, incluindo seu armamento e

técnicas especificas. A principal tática de combate helenística consistia no emprego de tropas

especializadas para manter os inimigos concentrados num choque frontal, enquanto tropas

ligeiras e cavalaria procuravam contornar a formação para atacá-la pela retaguarda (tática do

“Martelo”, a cavalaria; e “Bigorna”, a infantaria pesada das falanges). Eventualmente, antes

do choque frontal, era liberada uma carga (ataque direto e em velocidade) de Elefantes de

Guerra, para espalhar a confusão no inimigo, desorganizando sua disposição e amedrontando

seus soldados.

Tiro (Cidade) – principal cidade fenícia durante os séculos X e VI a.C. Junto das demais

cidades fenícias estenderam uma ampla rede de entrepostos e colônias comerciais, cobrindo

rotas marítimas que iam do Oriente Próximo até as costas atlânticas do Marrocos, Península

Ibérica, possivelmente atingindo até as terras da Hibérnia (atual Irlanda); também atuaram

como grandes comerciantes no Mar Vermelho, trabalhando sob as ordens de faraós egípcios,

reis hebreus e monarcas persas. A partir do século VI a.C., caiu sob o governo acádio,

perdendo completamente sua primazia marítima após ser cercada e conquistada por

Alexandre, o Grande, em 332 a.C.

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ANEXO A - O Círculo do Estreito.

Em meados da década de 1960, Miquel Tarradell desenvolveu uma idéia inovadora

com relação às estruturas culturais pré-existentes na Península Ibérica anteriormente à

chegada dos cartagineses comandados por Amílcar Barca. Indo na contramão das correntes

que creditavam à hegemonia cartaginesa todas as colônias fenícias, os vestígios dos sítios no

Estreito indicaram o desenvolvimento de uma cultura própria, unindo ambas as margens do

Estreito, mas profundamente diferenciada da cultura cartaginesa. O principal fundamento

dessa diferenciação estava evidente na tipologia das ânforas encontradas nos sítios do estreito

e em Cartago, desde o século VII até a introdução romana, no século II a.C. De fato, enquanto

que as ânforas encontradas em Cartago e suas colônias na Sardenha, Córsega e Sicilia

demonstram uma evolução a partir da interrupção dos contatos com Tiro, nos sítios do

Estreito temos o desenvolvimento de uma cerâmica própria, descendente direta do mesmo

tipo cerâmico tradicional, vindo da metrópole fenícia.

Sendo que essas antigas colônias fenícias que compartilham de traços culturais

diferenciados de Cartago estão localizadas no atual Estreito de Gibraltar, e formam como uma

espécie de circuito ao redor dessa região, essa cultura foi nomeada como “Circulo do

Estreito”. Formariam parte desse Círculo, como núcleo organizador, as antigas colônias

fenícias de Gades, atual Cádiz; o sítio de Castilo de Doña Blanca. Em direção ao leste do

Estreito de Gibraltar, integrariam os sítios de Malaca, atual Málaga; o sítio de Cerro del Mar;

e no seu limite, Almeria. Em direção ao oeste, integrariam os sítios de Huelva; com seu limite

no sítio de Castro Marim, na fronteira atual entre Portugal e Espanha. E, estendendo-se pelo

litoral atlântico marroquino, formariam parte as colônias e sítios de Lixus, próxima à cidade

de Larache, na antiga foz do Qued Loukos; sendo o limite meridional no sítio de Banasa (a

cidade romana de Iulia Valentia Banasa), próximo a atual cidade de Mechra Bel Ksiri, sítio

atualmente localizado longe do litoral, mas que na Antiguidade estava muito próximo à foz do

antigo curso do Qued Querrha.

O tipo de ânfora característico dessa cultura seriam as ânforas classificadas como

Mañá-Pascoal A4. Essas ânforas são caracterizadas pelo formato esguio, com um gargalo

muito estreito e desenvolvido (quando existente), sendo que suas bordas da abertura são

moldadas para fora. Poderiam ser produzidas em torno de oleiro ou não, e eram finalizadas

em altos-fornos cilindros-cônicos (alguns desses fornos foram utilizados durante a República

e o Principado Romanos). Sua produção era voltada para uso doméstico, mas principalmente

para o uso de exportação do garum, um molho a base de peixe muito apreciado no mundo

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mediterrânico inteiro. Os maiores e mais antigos ateliês de produção das ânforas Mañá-

Pascoal A4; assim como o maior complexo de exploração de recursos pesqueiros e produção

do garum foram localizados no sítio da antiga cidade de Gades. Por isso, os pesquisadores

modernos apontam que essa cidade seria a mais desenvolvida, e por conseqüência,

centralizaria a produção e comercialização desse recurso tão requisitado na gastronomia

mediterrânica.

Na análise dos trabalhos sobre os vestígios arqueológicos na região da bacia do

Guadalquivir e da Serra Morena, os autores fazem menção à teoria de Miguel Tarradell

(1960) sobre o “Circulo do Estreito”. Essa idéia criada por Tarradell em 1960, e desenvolvida

por O. Arteago (1994) consistiria numa reavaliação do contexto sul peninsular, integrando-o

aos processos verificados ao longo de todo o mediterrâneo justamente no “período obscuro”

da pré-história peninsular (séc. VII – V a.C.). Para esses autores (e também para Braudel, em

trabalho de 1970), devido a fatores internos e externos, a economia de extração e exportação

metálica entrou em crise, sendo modificada para uma economia de exploração agro-pecuária

para exportação. Segundo Ana Mª N. V. Mariñas, essa modificação ocorreu primeiramente

em Gades, onde uma “indústria” de exportação de salgações e garum foi primeira

desenvolvida. Com o passar dos séculos, essa indústria alastrou-se por diversas outras ex-

colônias fenícias da região, unindo-as numa espécie de liga comercial (posto que não temos

como provar que a liga estendesse-se para fatores políticos). Tal união gerou laços culturais

que manifestam-se até avançado tempo (até época alto imperial romana), através da

homogeneidade observada pelos autores nos registros materiais (especialmente ânforas).

Associado à ânforas, encontradas a partir de extratos arqueológicos datados do

século V a.C., foi constatado a existência de um tipo cerâmico igualmente diferente do de

Cartago. Essa cerâmica, nomeada como Kouass eram produzidas para suprir as necessidades

das aristocracias locais, que não mais tiveram acesso à cerâmica ática, já que os constantes

conflitos que assolaram a Grécia a partir do século V a.C. minaram com o volume de

produção cerâmico e sua exportação para os diversos consumidores, seja de forma direta, ou

indireta (exportação através de intermediários comerciais, como os comerciantes cartagineses,

ou das colônias gregas sicilianas ou mesmo da Península Ibérica, como Emporion e Rhodes).

O interessante é que conforme apontam Mariñas e Tristan & Vargas em seus artigos, Cartago

produzia uma versão própria dessas cerâmicas, ou seja, as aristocracias locais não consumiam

a versão cartaginesa, mas sim a versão produzida em sítios como Lixus e Banasa. Essa

preferência não indica só uma possível diferença no nível de possíveis custos dessas

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101

cerâmicas, pois seu uso seria de ostentação de poder, mas indicam uma preferência a nível

cultural, de uma diferenciação de gostos existentes entre aquela região e Cartago.

Além dessa diferenciação cerâmica, a região, chamada por Tarandell de “Circulo do

Estreito” e que as novas pesquisas feitas por Ana Maria N. V. Mariñas em finais da década de

1990 conseguiram delimitar geoeconomicamente (traçando o padrão de dispersão e extensão

da cerâmica gaditana e do comércio por meios delas indicado), há outras mostras de

desenvolvimento em paralelo, não interligados, com Cartago: a adoção de um padrão

monetário próximo ao padrão das dracmas das colônias gregas de Emporion e Rhodes

(localizadas na Península Ibérica) ou então do padrão de bronze comum ao mundo da Magna

Grécia e do Estreito de Messina, deixando de lado o padrão shekel cartaginês.

Essa série de dados nos leva a crer que, enquanto Cartago dedicou-se em criar uma

hegemonia no Mediterrâneo Central, nas ilhas entre o norte da África e da Itália, a cidade de

Gadir (conhecida como Cádiz ou Gades) criou uma rede hegemônica sobre o Estreito e a

costa atlântica Andaluza e Marroquina. Essa hipótese, da existência de duas realidades

descendentes fenícias, mas independentes entre si, nos permite entender e problematizar o

período do domínio cartaginês de forma muito mais sensata e direta.

Sendo o “Círculo do Estreito” uma organização econômica concorrente de Cartago,

não sofreu golpe nenhum com a derrota cartaginesa na 1ª Guerra Púnica. Pelo contrário, teria

conseguido ainda mais prosperidade ao ter um mercado maior de atuação. Cartago,

economicamente falida e em dívida, mas com uma renascida e reestruturada força militar

erguida por Amilcar Barca sobre as fundações deixadas por Xantipo (mercenário espartano

que atualizou o exército púnico com as táticas helenísticas), lançou-se ao domínio desse

“Círculo”, economicamente forte, mas sem expressão militar.

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ANEXO B – Exemplos de ânforas Mañá-Pascoal e da Cerâmica Kouass.

Figura 1 – Cultura material cerâmica procedente dos ateliês cerâmicos gaditanos, comum aos

sítios do Círculo do Estreito entre os séc. V e II a.C. (quadro presente no artigo de ROMERO,

A. et al. Nuevas aportaciones a la definición del Círculo del Estrecho: la cultura material a

través de algunos centro alfareros (SS. VI – I a.n.e.). Gerión, Madrid, v. 22, p. 31 – 60, 2004.

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ANEXO C – Rede Comercial da Fenícia (VIII – V a.C.)

Mapa com algumas das colônias e entrepostos que compunham a rede comercial da Fenícia durante os séc. VIII

a V a.C. A área circulada marca o território da Fenícia, com suas principais cidades assinaladas com as estrelas.

As duas principais colônias fenícias (Cartago e Gades) também foram assinaladas.

FONTE: mapa criado pelo autor sobre mapa do mediterrâneo disponível em: <http://d-

maps.com/carte.php?num_car=5860&lang=es> (Acessado: 04/09/2011)

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ANEXO D – O Círculo do Estreito.

Mapa com a localização do Círculo do estreito em relação à Península Ibérica, assim como as principais cidades

integrantes do Círculo do Estreito. A estrela marca a localização de Gades, possível centro desse Circulo

comercial, as demais localização são os centros presentes na Península Ibérica. O circulo vermelho indica a

principal área de projeção dos laços culturais dessa região.

FONTE: Mapa produzido pelo autor a partir de mapa disponível em: < http://tp.revistas.csic.es/public/journals/1/tp_mapa2010.jpg> (Acessado em: 20/09/2011).

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ANEXO E – A Península Ibérica sob o comando de Amílcar Barca (237 – 229 a.C.).

Mapa dos limites da expansão cartaginesa na Península Ibérica sob o comando de Amílcar. A estrela azul marca

a cidade de Gades, e o círculo azul delimita os territórios sob a hegemonia de Cartago. Os pontos azuis marcam a

localização das principais cidades nesse período. É interessante contrapor esse mapa com o mapa da extensão do

Círculo do Estreito.

FONTE: Mapa produzido pelo autor a partir de mapa disponível em: < http://tp.revistas.csic.es/public/journals/1/tp_mapa2010.jpg> (Acessado em: 20/09/2011).

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ANEXO F - A Península Ibérica sob o comando de Asdrúbal Barca (229 – 221 a.C.)

Mapa delimitando a expansão máxima da hegemonia cartaginesa na Península Ibérica, segundo as duas

interpretações modernas. Em azul, considerando que o Íber de Políbio seria o rio Júcar; em verde, seria a faixa

territorial sob o comando de Asdrúbal, considerando o Íber de Políbio como o atual rio Ebro. A estrela azul clara

marca a localização da nova capital, Cartago Nova, em relação com a antiga capital, Gades (ponto azul escuro).

A estrela verde marca a possível localização de Akrá Leuké, capital que algumas fontes apontam como criada

por Amílcar. Em vermelho, Zacânton (Sagunto), marco dos limites do Tratado do Íber entre Roma e Asdrúbal.

FONTE: Mapa produzido pelo autor a partir de mapa disponível em: < http://tp.revistas.csic.es/public/journals/1/tp_mapa2010.jpg> (Acessado em: 20/09/2011).

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ANEXO G - A Península Ibérica sob o comando de Aníbal Barca (221 – 220 a.C.).

Mapa da Península Ibérica durante o comando de Aníbal, (221 – 220 a.C.). Em azul, as regiões sob hegemonia

cartaginesa, considerando o Ibér ao sul de Sagunto. Em verde considerando o Íber como o atual Ebro. Em verde

escuro a região dominada pelos Olcades; em Lilás a bacia do Douro dominada pelos Vacaios; e em amarelo a

região entre o Tajo e o Guadiana sob a tribo dos Carpésios. A seta preta assinala a campanha de Aníbal contra os

Olcades em 221 a.C.; a seta azul marca o possível trajeto das tropas de Aníbal quando da incursão contra os

Vacaios, em 220 a.C.

FONTE: Mapa produzido pelo autor a partir de mapa disponível em: < http://tp.revistas.csic.es/public/journals/1/tp_mapa2010.jpg> (Acessado em: 20/09/2011).