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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SAULO BUSATO TOLEDO AS MICROFINANÇAS NO CONTEXTO NEOLIBERAL: O DESENVOLVIMENTO SOCIAL LIDERADO PELO MERCADO Curitiba 2010

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SAULO BUSATO TOLEDO

AS MICROFINANÇAS NO CONTEXTO NEOLIBERAL:O DESENVOLVIMENTO SOCIAL LIDERADO PELO MERCADO

Curitiba2010

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ

SAULO BUSATO TOLEDO

AS MICROFINANÇAS NO CONTEXTO NEOLIBERAL:O DESENVOLVIMENTO SOCIAL LIDERADO PELO MERCADO

Monografia apresentada à banca examinadora como requisito parcial à conclusão do curso de Ciências Sociais, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes, Universidade Federal do Paraná.

Orientador: Prof. Dr. Sérgio Soares Braga.

Curitiba2010

TERMO DE APROVAÇÃO

SAULO BUSATO TOLEDO

AS MICROFINANÇAS NO CONTEXTO NEOLIBERAL:O DESENVOLVIMENTO SOCIAL LIDERADO PELO MERCADO

Monografia aprovada como requisito parcial para obtenção do grau de Bacharel no Curso de Ciências Sociais, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal do Paraná, pela seguinte banca examinadora:

Orientador: Prof. Dr. Sérgio Soares BragaDepartamento de Ciências Sociais, UFPR

Prof. Dr. Nelson Rosario de SouzaDepartamento de Ciências Sociais, UFPR

Prof. Dr. Alexsandro Eugenio PereiraDepartamento de Ciências Sociais, UFPR

Curitiba, 15 de dezembro de 2010.

Quisera eu poder dedicar este trabalho a apenas uma pessoa. Dedico-o à Sole, a quem a universidade colocou em minha vida e que de certa forma a tirou de mim. Por ela sempre terei um carinho todo especial. Dedico também a meu pai, que colocou a família acima da própria saúde, e que com seu exemplo me indicou o rumo certo da vida. Graças a seus ensinamentos, cheguei onde estou. E acima de tudo, dedico este trabalho ao Corinthians, grande paixão de minha vida!

AGRADECIMENTOS

Seria injusto com as páginas que se seguem citar os nomes de todos que me acompanharam até aqui e que eu gostaria de agradecer. Do mesmo modo, seria injusto citar os nomes de uns e outros que me viessem à memória e esquecer dos mais importantes. Assim, as pessoas que virão são aquelas que de certa forma colaboraram com a produção deste trabalho.

Em primeiro lugar, agradeço a minha mãe, pode ter me tornado a pessoa que sou hoje, capaz de encarar de frente os desafios que surgem na vida sem me abalar. Agradeço a minha família, que de certa forma me apoiou na conclusão deste trabalho. Agradeço aos amigos, que com suas palavras de incentivo me ajudaram a superar este desafio. Agradeço especialmente meu orientador, pela atenção dada de última hora.

Aproveito para mandar um abraço para o Augusto, parceiro nos momentos de tensão que antecederam a entrega deste trabalho. Outro para o Fraiz, e também para o Cacs, pela parceria a cada etapa cumprida. Agradeço também ao Zé, pela força de última hora. E aproveito para agradecer também a Skol, cuja receita equilibrada, pouco encorpada e que agrada o paladar de tantos brasileiros foi de apoio fundamental na produção deste trabalho.

A pobreza antes eraconsiderada obra da injustiça.O mundo moderno considera

a pobreza incapacidade.

Eduardo Galeano

RESUMO

A presente discussão busca realizar uma análise crítica do papel das microfinanças no contexto de um mundo neoliberal. Ela toma o modelo Grameen de microfinanças como modelo central à análise, por ser amplamente replicado ao redor do mundo. Em seguida, realiza um diálogo entre diversos estudos críticos referentes ao tema. Expõe as críticas e análises das microfinanças em um contexto local. Em seguida, objetiva relacionar as microfinanças a uma ideologia neoliberal, no sentido de impor a noção de desenvolvimento social através do mercado. A partir deste ponto, procura expor as implicações políticas que envolvem a adoção das microfinanças como políticas de Estado. Finalmente, procura realizar uma análise do tema, baseando-se em trabalhos de Anthony Giddens e Luiz Carlos Bresser-Pereira. Associa as microfinanças ao neoliberalismo e busca compreender as implicações desta relação. Fundamenta a discussão em dados de diversas organizações internacionais que promovem as microfinanças ao redor do mundo, além de utilizar outras pesquisas referentes ao tema. Traz como resultado análises que buscam compreender o papel das microfinanças em um mundo dominado pela hegemonia neoliberal.

Palavras-chave: Microfinanças. Microcrédito. Desenvolvimento social. Políticas públicas. Bem-estar. Neoliberalismo.

LISTA DE SIGLAS

CGAP – Consultative Group to Assist the PoorFMI – Fundo Monetário InternacionalIMF – Instituição de microfinançasONG – Organização não governamentalONU – Organização das Nações Unidas

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 092 O QUE SÃO AS MICROFINANÇAS? 132.1 O conceito de microfinanças 132.2 O modelo Grameen 163 ESTUDOS CRÍTICOS DAS MICROFINANÇAS 223.1 As implicações das microfinanças a nível local 233.2 Microfinanças e o desenvolvimento a partir do mercado 293.3 Relação das microfinanças com o Estado 324 AS MICROFINANÇAS NO PLANO NEOLIBERAL 364.1 Algumas considerações sobre o neoliberalismo 364.2 Imposição do neoliberalismo através das microfinanças 394.3 Enfraquecimento das políticas públicas 424.4 A privatização da pobreza 444.5 A mentira da capacitação através das microfinanças 464.6 A exploração de uma classe abandonada 515 CONCLUSÃO 55REFERÊNCIAS 60

1 INTRODUÇÃO

A vida privada de conforto é uma realidade enfrentada todos os dias por mais

da metade da população mundial. Segundo estimativas do Banco Mundial (2001), ao

menos 4 bilhões de pessoas são obrigadas a conviver com o desígnio de não

poderem satisfazer as necessidades mais básicas da sobrevivência humana. Em um

mundo com tanta abundância, este número tende a ser preocupante. Diversas

iniciativas ao longo da história procuraram sanar o problema da pobreza e suas

implicações. Como podemos supor, nenhuma delas obteve sucesso. No máximo

conseguiram aliviar o problema localmente, e nunca a nível global.

Buscando resolver este paradigma, foram instituídos vários programas

governamentais a partir do século XX. Os que mais surtiram efeito foram aqueles

implementados durante a era dourada do capitalismo quando, logo após a Segunda

Guerra Mundial, vários Estados ao redor do mundo passaram a adotar os modelos

keynesianos para a condução de suas políticas. Nesta época, as políticas públicas

passaram a estar em primeiro plano nas agendas governamentais. O pleno

emprego, a conquista de várias garantias sociais e a prestação de diversos serviços

públicos de qualidade permitiam que um operário – nos países onde este modelo de

Estado fora implementado com sucesso – tivesse uma qualidade de vida

comparável à de seu patrão. Mas mesmo em países como o Brasil, focados

exclusivamente no desenvolvimentismo, pudemos notar uma pequena melhora nas

condições de vida da população durante esta época. Toda essa estrutura se

sustentava com o crescimento exponencial da economia mundial, o maior registrado

na história do capitalismo.

Então veio os anos 1970, e junto com eles a crise mundial do petróleo.

Diversas economias ao redor do mundo que se baseavam na promoção do bem-

estar desmoronaram em meio a crises inflacionárias. Era necessário então um novo

modelo de economia, que pudesse dar conta da constante alta de preços e dos altos

déficits orçamentários do Estados. O neoliberalismo já tinha uma proposta pronta

para resolver este problema, e prontamente foi adotado por diversas nações ao

redor do mundo. Podemos considerar o Chile como o pioneiro desta onda neoliberal

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que se alastrou pelo mundo, quando logo no início dos anos 1970 Pinochet adotava

políticas neoliberais na condução de seu governo.

Mas foi somente no final desta década que o neoliberalismo passou

realmente a chamar a atenção do mundo, quando Margaret Thatcher sobe ao poder

na Inglaterra e um ano depois Reagan assume a presidência dos Estados Unidos. A

partir de então, com o passar dos anos, o neoliberalismo foi se constituindo como a

grande corrente hegemônica que é hoje.

O primeiro ato do neoliberalismo nos países onde conseguiu se estabelecer

foi o corte dos inúmeros gastos que sobrecarregavam os cofres públicos. Deste

modo, diversas conquistas sociais obtidas durante a era do bem-estar foram

cortadas dos orçamentos estatais. Nos países em que a social-democracia era mais

forte, algumas instituições conseguiram sobreviver e o sucateamento de serviços

públicos não foi total. Nos outros, o que se via era uma completa situação de

abandono dos diversos serviços públicos que um dia foram direito da população. Em

seguida, a ideia de que estes serviços deveriam ser oferecidos pelo mercado. Assim,

serviços que antes eram gratuitos e de direito universal passaram a ser cobrados.

Aos pobres, restavam apenas instituições públicas precarizadas. Estavam

completamente abandonados por seus governos.

Enquanto estas mudanças ocorriam ao redor do globo, emergia uma nova

maneira de dar suporte a crescente massa carente da sociedade. Tomando como

base os subsídios governamentais fornecidos à população rural, surge no final dos

anos 1970 o microcrédito. Quando veio à público, era ainda uma ideia tímida, sem

representar grandes esperanças. A princípio, instituições como o Banco Mundial

nem davam valor a ele, considerando-o uma ideia socialista. Mas quando o

neoliberalismo veio à tona e passou a ser hegemonia no mundo, rapidamente

reconheceu a ideia como um meio de suprir o bem-estar aos mais necessitados, que

fora completamente abandonado junto com as políticas públicas.

Com o passar do tempo o modelo foi se desenvolvendo e passando a

oferecer outros serviços financeiros além do crédito. A partir dos anos 1990, uma

outra definição, mais adequada, passou a designar o modelo: microfinanças.

Durante esta década, elas rapidamente se espalharam pelo globo e se tornaram o

modelo preferido de diversas organizações internacionais para combater a pobreza.

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Elas se tornaram o símbolo do modelo neoliberal de desenvolvimento social,

mostrando ao mundo que através do mercado era possível alcançar feitos que antes

eram concebíveis apenas por políticas públicas. Mais ainda, elas se tornaram uma

solução para a pobreza a nível global.

Desta forma, a presente discussão se propõe a analisar as microfinanças e

sua imbricada relação com o neoliberalismo. Em um primeiro momento, buscaremos

expor como elas se constituem. Queremos saber quais são os seus objetivos, e de

que modo elas procuram alcançá-los. Veremos que há um modelo de microfinanças

amplamente difundido no mundo, tão influente que falar de microfinanças é o

mesmo que falar deste modelo. Deste modo, conheceremos seus princípios

fundamentais para que assim possamos tratar com mais particularidade do assunto.

Em seguida, tomaremos diversos estudos que abordam o assunto. De uma

ampla gama de trabalhos, selecionamos aqueles que melhor possam fundamentar a

presente discussão. Veremos que o estudo empírico das microfinanças consiste

numa tarefa extremamente complexa, e que poucos estudos que analisam as reais

implicações das microfinanças podem ser considerados confiáveis. Destes, veremos

que a única conclusão que podemos chegar é que não existem evidências de que as

microfinanças obtenham um resultado positivo onde são adotadas. A discussão que

se seguirá separamos em três partes, sendo cada uma delas fruto do constante

diálogo entre os trabalhos que tomamos como referência. Em primeiro lugar,

veremos como elas agem a nível local, de modo que possamos compreender como

os indivíduos são afetados por elas. Em seguida, veremos que ela age mais no

sentido de promover o mercado do que promover o desenvolvimento social. Assim,

poderemos prosseguir para a terceira parte, que busca encontrar nos diversos

estudos abordados de que modo as microfinanças interferem no poder do Estado.

Aqui, poderemos perceber como as diversas organizações internacionais,

impregnadas pela ideologia neoliberal, utilizam as microfinanças para incutir esta

hegemonia nos diversos Estados que dependem de suas contribuições.

Finalmente, poderemos dar sequência à nossa análise, que busca encontrar

as diversas implicações que as microfinanças, que consideraremos como

representantes da ideologia neoliberal, trazem aos Estados e à sociedade civil.

Tomaremos textos de Anthony Giddens e Luiz Carlos Bresser-Pereira para a base

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de nossa análise sobre o tema, e a expandiremos com outros autores conforme for

necessário. Partindo da hipótese de que elas sejam um meio utilizado pelas nações

desenvolvidas para espalharem o neoliberalismo a nações em transição e

desenvolvimento, queremos descobrir como elas agem neste sentido, e

analisaremos o papel que as diversas organizações internacionais ao redor do

mundo têm neste palco. Ao mesmo tempo, buscaremos descobrir como estas

imposições afetam o Estado submisso a elas. Em seguida, nosso objetivo será o de

descobrir como tudo isso se apresenta para a sociedade e de que modo as

microfinanças, sendo instrumentos neoliberais, afetam a vida das populações mais

pobres.

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2 O QUE SÃO AS MICROFINANÇAS?

As microfinanças possuem uma longa história e podem ser compreendidas

das mais diferentes formas (BATEMAN; CHANG, 2009). Alguns afirmam que sua

origem remonta a centenas ou milhares de anos, enquanto que outros atribuem a

ela as mais variadas funções, que nada tem a ver com a forma com que se

apresentam atualmente. Isto gera muita confusão quando se tenta realizar uma

discussão abordando o assunto, de modo que necessitamos, em primeiro lugar,

delimitar o objeto de acordo com os objetivos de nossa análise.

2.1 O conceito de microfinanças

As microfinanças envolvem diversos tipos de serviços, como empréstimos,

depósitos, poupanças e seguros, em uma escala direcionada exclusivamente para

famílias pobres e pequenos empreendimentos (MARTÍNEZ, 2006). As instituições

que proporcionam estes serviços são conhecidas como instituições de

microfinanças. A princípio, devemos levar em consideração que todas elas fornecem

serviços de crédito, e que boa parte fornece apenas estes serviços. Sendo assim,

podemos considerar o microcrédito – o serviço de crédito fornecido por estas

instituições – como sendo o principal produto de uma instituição de microfinanças

(IMF).

Uma IMF pode se apresentar em diversos formatos institucionais, como

bancos rurais, uniões de crédito, cooperativas financeiras, bancos públicos

(BATEMAN; CHANG, 2009), organizações não governamentais (ONGs) dentre

outros. Atualmente, o mais comum é que as microfinanças sejam administradas por

ONGs, sendo que muitas vezes, ao nos referirmos ao termo ONG neste trabalho,

estaremos nos referindo diretamente a uma instituição de microfinanças.

Nos anos 1990 pudemos presenciar uma rápida ascensão das microfinanças

ao redor do mundo, quando passaram a ser suportadas por inúmeras agências

internacionais de fomento, grandes ONGs de países ocidentais e políticos de alto

escalão. Em seguida, foi a vez de diversas celebridades e pessoas de alta influência

na sociedade apoiarem as microfinanças. A apoteose das microfinanças veio entre

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2005 e 2006: o primeiro ano fora considerado pela Organização das Nações Unidas

(ONU) como o Ano Internacional do Microcrédito1, enquanto que no ano de 2006

Muhammad Yunus, criador do modelo de microfinanças de mais sucesso no mundo

– e base para a maior parte dos outros modelos, que geralmente se constituem

como pequenas variações deste – recebe o Prêmio Nobel da Paz (BATEMAN;

CHANG, 2009).

De acordo com Milford Bateman e Ha-Joon Chang (2009), devido a toda esta

repercussão, as microfinanças passaram a chamar a atenção de investidores

privados de todo o mundo, que perceberam que a ideia poderia ser também

lucrativa. Ao mesmo tempo, diversos filantropos da nova era como Bill Gates e

Pierre Omidyar – fundadores da Microsoft e do eBay, respectivamente – e vários

indivíduos moderadamente ricos começaram a investir pesados recursos na

promoção das microfinanças.

O microcrédito, como dissemos anteriormente, pode ser considerado o

principal produto oferecido pelas IMFs, pois é ele que proporciona a sustentabilidade

financeira destas instituições. Ele consiste no empréstimo de pequenas quantias a

famílias pobres, as quais são frequentemente ignoradas e excluídas do sistema

bancário tradicional por não possuírem qualquer garantia econômica, emprego fixo

ou um histórico de crédito verificável (MARTÍNEZ, 2006; YUNUS, 2007).

Este novo conceito de empréstimo surgiu no final dos anos 1970, e

rapidamente se espalhou pelo mundo como a ferramenta de facto para o combate à

pobreza. Através da profunda remodelação do sistema tradicional de crédito,

adotando uma metodologia única para garantir o retorno dos empréstimos, o

microcrédito permitiu que pessoas pobres, sem qualquer garantia econômica,

podem hoje serem vistas como clientes em potencial pelas diversas instituições do

segmento.

Desde que começaram a chamar a atenção do público mundo afora, as

microfinanças têm sido apresentadas como uma ferramenta de apoio fundamental

às famílias pobres, ajudando-as a viver com mais dignidade e com menos privações.

Representa um recurso que estas pessoas podem utilizar para gerarem novas

fontes de renda própria, através do investimento em pequenos empreendimentos ou

1 De acordo com a Resolução 1998/28, de 29 de Julho de 1998 (ONU, 1998a).

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em outras formas de autoemprego. Assim, a dependência do pobre em ações de

caridade e outros tipos de ajuda seria drasticamente reduzida, e os ciclos

geracionais de pobreza seriam rompidos (ROSENBERG, 2010; MARTÍNEZ, 2006;

CONS; PAPROCKI, 2008). Esta ideia parte do pressuposto de que famílias pobres, a

partir do momento em que têm acesso a serviços financeiros e podem investir em

novos negócios, percebem uma melhora significativa em suas vidas econômicas.

Muito embora esta seja originalmente a principal atribuição – ou até mesmo única –

das microfinanças, na prática elas também ajudam a fazer frente às diversas

necessidades cotidianas, como despesas com educação, saúde, emergências

familiares ou estabilizando as necessidades de consumo básico do dia a dia

(Ibidem).

A fim de garantir o retorno de empréstimos fornecidos a pessoas que não

podem oferecer qualquer garantia, as IMFs utilizam métodos específicos para a

concessão de crédito. Em geral, o mais comum é o empréstimo de um pequeno

valor inicial por um período curto de tempo. Conforme o mutuário quita cada

empréstimo com a IMF, ele pode tomar novos empréstimos de valores ainda

maiores (MARTÍNEZ, 2006). Este princípio parte do pressuposto de que o mutuário

aos poucos melhora sua situação econômica, podendo – tanto quanto necessitando

– assumir prestações ainda maiores. Este por si só é um mecanismo que pode

garantir o retorno dos empréstimos às IMFs, pois podemos constatar que um acesso

constante aos serviços de crédito é de extremo interesse das famílias pobres

(YUNUS, 2007). Porém, para que se tenha uma maior certeza quanto ao retorno

destes empréstimos, outros métodos podem ser utilizados.

Podemos considerar que o modelo de microfinanças de maior influência no

mundo é o que fora desenvolvido por Muhammad Yunus, fundador do Banco

Grameen de Bangladesh. Este banco, fundado em 1983, pode ser visto como uma

das primeiras IMFs do mundo. Ele representa a materialização do modelo

desenvolvido por Yunus, bem como uma resposta à falta de interesse dos grandes

bancos comerciais em proporcionar empréstimos a pessoas que não possuíssem

qualquer garantia colateral (YUNUS, 2007). Como expusemos anteriormente, seu

modelo é de longe o de maior repercussão no mundo, sendo que em 15 anos de

existência ele já era replicado em 54 países (KARIM, 2008). Por este motivo, o

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tomaremos como modelo central à nossa análise e, a partir deste momento, quando

nos referirmos ao termo microfinança, estaremos nos referindo a este modelo, o

modelo Grameen.

2.2 O modelo Grameen

O modelo Grameen de microfinanças é o resultado de um projeto

desenvolvido por Yunus – então professor de economia na Universidade de

Chittagong, em Bangladesh – no final dos anos 1970. Com o apoio de seus alunos,

Yunus experimentou realizar pequenos empréstimos aos habitantes de uma

comunidade próxima à faculdade onde lecionava, sendo de caráter experimental e

originalmente sem qualquer garantia. Yunus percebeu que o pobre era bom pagador,

e que emprestar dinheiro para ele poderia se tornar um negócio sustentável. Porém,

o alto índice de pagamentos dos empréstimos era considerada por alguns como

fruto do profundo envolvimento de Yunus e seus estudantes com a comunidade

(YUNUS, 2007). Desta maneira, para que pudesse expandir o projeto e obter apoio

financeiro do setor privado – necessário para expandir e dar continuidade ao projeto

– Yunus desenvolveu este modelo que, além de garantir um alto índice de retorno

dos empréstimos, proporciona a uma parcela da população, antes sem qualquer

acesso a produtos financeiros, recursos que nunca antes chegariam às suas mãos

(Ibidem).

Uma apresentação sumária dos seus principais fundamentos nos proporciona

compreender como funciona o que Yunus chama de “garantia social”, que é a base

de todo o modelo. O modelo consiste em um empréstimo concedido

preferencialmente à mulheres que, organizadas em grupos de empréstimo, podem

ter acesso a uma linha de crédito. A participação nestes grupos é condicional para

que elas tenham acesso aos serviços financeiros. Em seguida, as participantes do

grupo passam por diversos treinamentos financeiros, são incentivadas a investir

parte do empréstimo em uma poupança, analisam os empreendimentos propostos

por cada integrante do grupo e concordam em cada uma garantir o empréstimo da

outra (RANKIN, 2001).

O resumo que segue abaixo, retirado de uma publicação de Yunus de 2006,

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nos ajuda a compreender de uma maneira melhor o funcionamento do modelo

Grameen. Ele procura expor os principais fundamentos do modelo. De acordo com

Yunus, o modelo Grameen pode ser compreendido da seguinte maneira:

“a) Ele promove o crédito como um direito humano.b) Sua missão é ajudar famílias pobres a se ajudarem a superar a pobreza. Ele é direcionado ao pobre, em particular mulheres pobres.c) A característica mais distinta do Grameencredit é que ele não é baseado em qualquer garantia colateral ou em contratos legais obrigatórios. Ele é baseado na “confiança”, não no sistema legal ou em procedimentos legais.d) Ele é oferecido para a criação de autoemprego, investido em atividades que gerem renda, e também para habitação para os pobres, em oposição ao consumo.e) Ele foi iniciado como um desafio ao sistema bancário convencional que rejeita o pobre classificando-o como “não digno de crédito”. Como resultado, ele rejeita a metodologia básica do sistema bancário convencional e cria sua própria metodologia.f) Ele fornece seu serviço na porta da casa do pobre baseado no princípio de que as pessoas não devem ir ao banco, o banco deve ir às pessoas.g) A fim de obter empréstimos, um mutuário deve participar de um grupo de mutuários.h) Os empréstimos podem ser recebidos em uma sequência contínua. Novos empréstimos são disponibilizados a um mutuário se o seu empréstimo anterior é pago.i) Todos os empréstimos devem ser pagos em prestações (semanais ou bissemanais).j) Mais de um empréstimo pode ser recebido simultaneamente por um mutuário.k) Ele vem com programas tanto obrigatórios quanto voluntários de poupança para os mutuários.l) Geralmente estes empréstimos são fornecidos através de organizações sem fins lucrativos ou através de instituições pertencentes principalmente pelos mutuários. Se eles são feitos por instituições com fins lucrativos não pertencentes aos mutuários, esforços são feitos para manter a taxa de juros a um nível proporcional com a sustentabilidade do programa ao invés de trazer um retorno atrativo para os investidores. A regra de ouro do Grameencredit é manter a taxa de juros a mais próxima possível da taxa de mercado predominante no setor bancário comercial, sem sacrificar a sustentabilidade. Ao fixar a taxa de juros, a taxa de juros do mercado é tomada como referência, ao invés da taxa dos agiotas. Alcançar o pobre é sua inegociável missão. Alcançar a sustentabilidade é sua meta. Ele precisa alcançar a sustentabilidade o mais cedo possível, assim ele pode ampliar seu alcance sem restrições de fundos.m) O Grameencredit dá alta prioridade na construção de capital social. Ele é promovido através da formação de grupos e centros, desenvolvendo a qualidade de liderança através de eleições anuais dos líderes dos grupos e centros, e elegendo os membros do conselho quando a instituição pertence aos mutuários. Para desenvolver uma agenda social de propriedade dos mutuários, algo similar ao “sixteen decisions”, ele emprega um processo de intensa discussão entre os mutuários, e encoraja eles a tomarem estas decisões a sério e implementá-las. Ele enfatiza especialmente a formação de capital humano e se preocupa em proteger o ambiente. Ele monitora a educação infantil, oferece bolsas de estudo e empréstimos estudantis para a educação superior. Para a formação do capital humano ele se esforça em trazer tecnologia, como telefones celulares, energia solar e promove a

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energia mecânica para substituir a energia manual.” (YUNUS, 2006, p. 3, tradução nossa).

Um ponto que nos chama a atenção neste modelo é que os empréstimos são

preferencialmente destinados às mulheres2. Embora esta seja a realidade atual, o

modelo Grameen, quando ainda era uma ideia distante de ser propriamente um

banco, já tentou focar sua atenção no público masculino. Logo desistiu, pois teve

dificuldades ao tentar enquadrar os homens nas rígidas regras do modelo (KARIM,

2008). Então, o modelo se apropriou do paradigma “Women-In-Development”

(mulheres no desenvolvimento), o qual estava em pauta entre as agências

ocidentais de ajuda, e se reinventou como um crédito para mulheres pobres

(Ibidem). Em geral, programas de microfinanças que se foquem nas mulheres estão

entre os favoritos das agências internacionais e investidores privados que financiam

programas de luta contra a pobreza (RANKIN, 2001), e isto se deve a alguns fatores.

O primeiro deles é que a mulher investiria os ganhos na família, favorecendo

sobretudo o lar e as crianças; o homem, por sua vez, frequentemente investe os

ganhos em gastos pessoais (YUNUS, 2007). Em seguida, a partir do momento em

que a mulher tem o dinheiro em mãos, sua posição dentro da família passa a ser

fortificada, de modo que ela passaria a ter um maior poder de decisão e maior

presença tanto no núcleo doméstico quanto na comunidade como um todo

(RANKIN, 2001). Estes dois fatores podem satisfazer as ambições do modelo

Grameen, por este ter como finalidade última – originalmente – uma ação

humanitária, no sentido de melhorar as condições de vida das famílias pobres. Mas

há também um terceiro fator, e podemos considerar que na mesma proporção em

que favorece os programas que incorporem o modelo, ele agrada os investidores

destes programas. É o fato de que as mulheres seriam mais responsáveis com os

empréstimos do que os homens, realizando pagamentos muito mais pontuais do que

eles. Além disso, consideram que as mulheres são dotadas de habilidades

empresariais mais aguçadas (MARTÍNEZ, 2006).

Outro princípio no qual o modelo Grameen se fundamenta é que aqueles que

desejam tomar novos empréstimos devem se organizar em grupos, conhecidos

como grupos de solidariedade. Estes grupos são compostos por cinco pessoas

2 Isto se verifica na prática, sendo que as mulheres representaram 97% dos clientes do Banco Grameen em 2007 (YUNUS, 2007, p. 51).

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próximas, sendo que nenhuma delas pode ter relação de parentesco com qualquer

outra. Os empréstimos então são liberados para apenas duas pessoas por vez. Após

um período probatório3, onde estas duas pessoas devem pagar todas as prestações

regularmente, outras duas pessoas estão habilitadas a tomar novos empréstimos.

Após um novo período, de mesma duração do primeiro, o líder do grupo pode então

receber seu empréstimo, e o ciclo recomeça sucessivamente. Desta forma, os

membros do grupo dependem uns da responsabilidade dos outros em pagar as

prestações dos empréstimos, para que possam receber futuros empréstimos

(YUNUS, 2007; ESMAIL, 2008). Estes grupos, de acordo com Yunus (2007),

trabalham como uma pequena rede social, que provê ao membro “encorajamento,

suporte psicológico e por algumas vezes apoio para lidar com o estranho fardo do

débito e conduzir o indivíduo pelo estranho mundo dos negócios” (Ibidem, p. 57,

tradução nossa).

Desta maneira, podemos dizer que os empréstimos, embora sejam utilizados

pelo indivíduo, são direcionados ao grupo. Por sua vez, um grupo que não esteja em

dia com todas as prestações de todos os seus membros não terá o direito de

receber novos empréstimos. Por este motivo, o grupo acaba exercendo uma certa

pressão sobre cada membro, o que acaba garantindo o retorno dos empréstimos

(MARTÍNEZ, 2006; YUNUS, 2007). Em outras palavras, podemos dizer que cada

membro deve estar quite com as prestações de seus empréstimos, pois apenas

assim futuros financiamentos podem ser aprovados a todos do grupo.

Outro princípio que podemos considerar importante ao modelo Grameen é a

exigência de que os prestatários sigam um determinado conjunto de normas, uma

agenda social. Ela acaba interferindo em diferentes aspectos tanto psicológicos

quanto do cotidiano dos mutuários. Em geral, cada instituição que segue o modelo

Grameen tem sua própria agenda, desenvolvida de acordo com suas pretensões e o

público atendido. No caso do Banco Grameen, esta cartilha está materializada na

“The Sixteen Decisions”:

“1. Os quatro princípios do Banco Grameen – Disciplina, Unidade, Coragem e Trabalho Duro – nós devemos seguir e progredir em todas as esferas de nossas vidas.

3 No Banco Grameen este período é de seis semanas (ESMAIL, 2008), mas ele pode variar de acordo com a instituição.

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2. Nós devemos trazer prosperidade às nossas famílias.3. Nós não devemos viver em casas em ruínas. Nós devemos reparar nossas casas e trabalharmos juntos para construir novas casas o mais breve possível.4. Nós devemos cultivar vegetais durante todo o ano. Nós devemos comê-los em abundância e vender o excedente.5. Durante a época de plantio, devemos plantar o maior tanto de mudas possível. 6. Devemos planejar para manter nossas famílias pequenas. Devemos minimizar nossos gastos. Devemos nos preocupar com nossa saúde.7. Devemos educar nossas crianças e assegurar que elas possam ganhar para pagar pela educação delas.8. Devemos sempre manter nossas crianças e o ambiente limpo.9. Devemos construir e usar latrinas com fossa.10. Devemos ferver a água antes de bebê-la ou usar alume para purificá-la. Devemos usar filtros de jarro para remover o arsênico.11. Não devemos aceitar qualquer dote nos casamentos de nossos filhos; nem devemos dar qualquer dote nos casamentos de nossas filhas. Devemos manter o centro livre da maldição do dote. Não devemos praticar o casamento infantil.12. Não devemos infligir qualquer injustiça a ninguém; nem devemos permitir que alguém o faça.13. Para maiores rendas nós devemos coletivamente realizar investimentos maiores.14. Devemos sempre estar prontos para ajudar um ao outro. Se alguém está em dificuldade, nós todos devemos ajudá-lo.15. Se nós ficarmos sabendo de qualquer violação de disciplina em qualquer centro, devemos todos irmos lá e ajudar a restaurar a disciplina.16. Nós devemos participar de todas as atividades sociais coletivamente.” (YUNUS, 2007, p. 58, tradução nossa).

De acordo com Yunus (2007), as famílias que seguem esta cartilha percebem

uma melhora significativa na qualidade de vida. Uma das melhorias observadas pelo

autor é que estas famílias têm uma maior preocupação em enviar seus filhos à

escola, de modo que “virtualmente toda família relacionada ao Grameen tem todos

os seus filhos em idade escolar comparecendo às classes regularmente” ( Ibidem, p.

59, tradução nossa). Desta forma, podemos considerar que as microfinanças,

influenciando psicologicamente as pessoas, causa um grande impacto não só na

vida econômica, mas também no próprio jeito de viver.

Finalmente, devemos levar em consideração um último princípio que será

relevante à nossa discussão: os empréstimos não devem ser destinados ao

consumo, mas necessariamente ao empreendedorismo ou à habitação (YUNUS,

2007). Embora o Banco Grameen observe este princípio como essencial para a

saúde do modelo como um todo, ele não é levado em conta por todas as IMFs que

adotam o modelo. Publicamente, o Banco Grameen até chega a fornecer linhas de

crédito destinadas ao consumo, mas apenas em situações de calamidade pública,

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quando seus clientes estão passando por algum período de urgência (Ibidem). Mas

o que devemos chamar à atenção é que várias IMFs que adotam o modelo Grameen

permitem deliberadamente que empréstimos sejam destinados ao consumo de

produtos e serviços. Mais ainda, podemos constatar atualmente que as

microfinanças são mais utilizadas em gastos de consumo do que em meios de

geração de renda (DICHTER, 2007 Apud BATEMAN; CHANG, 2009).

Por este ângulo, podemos ver as microfinanças não apenas como uma

ferramenta de combate à pobreza, mas também como uma ferramenta de mercado.

Quando o microcrédito é direcionado ao consumo, podemos supor que ele tem a

mesma função para o pobre que o cartão de crédito tem para a classe média

brasileira. Na verdade ele exerce esta função, como veremos mais adiante. Com

base no apresentado até o momento, podemos constatar que as microfinanças

mantêm uma certa relação com o mercado. Veremos mais adiante que esta relação

é muito mais profunda do que aparenta ser até o momento. Mas para a

compreendermos, precisamos compreender primeiro a posição das microfinanças

em um mundo globalizado, para então analisarmos como elas se relacionam com a

sociedade e o Estado.

22

3 ESTUDOS CRÍTICOS DAS MICROFINANÇAS

Definidos os principais pontos de nossa discussão, daremos sequência à

próxima etapa da mesma. Assim, tomaremos por base diferentes trabalhos

produzidos nos últimos anos a fim de compreendermos a relação que as

microfinanças mantêm com a lógica neoliberal. Num primeiro momento,

apresentaremos algumas análises e críticas que abordem suas relações com a

sociedade a nível local, onde buscaremos compreender como elas afetaram as

relações sociais em uma determinada localidade. Em seguida, buscaremos discutir

as microfinanças como uma ferramenta que pressupõe o desenvolvimento social

através do mercado, e discutiremos como as relações de mercado afetam tanto a

vida econômica de parcelas excluídas da população quanto as políticas públicas.

Finalmente, nosso objetivo será a exposição das microfinanças como substitutas

destas políticas, onde pretenderemos perceber as implicações que emergem desta

relação.

A princípio, várias análises que abordam as microfinanças revelam que onde

elas são implementadas há uma visível redução da pobreza e dos efeitos causados

por ela. Estas análises declaram que os beneficiados passam a obter rendas

maiores e mais constantes, permitindo que enviem mais de suas crianças à escola,

além de proporcionar uma maior estabilidade nas necessidades de consumo básico,

o que finalmente resulta em melhorias na saúde e na nutrição de suas famílias

(MARTÍNEZ, 2006; YUNUS, 2007). Porém, um exame científico rigoroso, que seja

capaz de detectar as reais implicações da implementação das microfinanças se

mostra uma tarefa extremamente complexa, e seus resultados nem sempre são

satisfatórios. A validade de muitos trabalhos que apontam as microfinanças como

algo positivo é contestada, pois a metodologia que adotam nem sempre é

puramente objetiva. Negligenciam variáveis que, se levadas em consideração,

conduziriam a resultados totalmente diferentes dos obtidos. Geralmente, este tipo de

estudo é ora produzido por um simpatizante das microfinanças, ora patrocinado por

alguma instituição que as promova. Ainda devemos considerar que boa parte dos

estudos são publicados pelas próprias IMFs.

23

Por outro lado, nos últimos anos começaram a ser publicados trabalhos com

análises mais ferrenhas sobre o assunto. Eles nos permitiram perceber que as

microfinanças não são tão eficientes quanto contestam ser. Mas mesmo entre estes

trabalhos, há muitos que se munem de metodologias toscas na busca das reais

implicações da relação que as microfinanças mantêm com a sociedade. A título de

exemplo, há vários trabalhos que buscam descobrir se elas representam ou não

alguma melhoria na vida econômica das famílias pobres. Dentre estes, os que mais

se aproximam de resultados satisfatórios são aqueles feitos a partir de experiências

aleatórias controladas, onde um grupo maior é aleatoriamente dividido em dois

subgrupos que presumidamente sejam estatisticamente idênticos (ROSENBERG,

2010). Como estes estudos começaram a ser realizados só muito recentemente,

eles apenas nos permitem chegar à conclusão de que não há evidência alguma de

que a aplicação de programas de microfinanças em comunidades pobres

necessariamente resulta no melhoramento das condições de vida de suas

populações (Ibidem).

Mas ainda existem vários trabalhos produzidos, principalmente na última

década, que podem ser considerados satisfatórios, no sentido de realizarem uma

análise crítica das microfinanças, apresentando resultados satisfatórios. Destes,

selecionamos os de maior relevância para as páginas que se seguem. Alguns são

estudos localizados de determinada comunidade ou região, outros podem ser

comparados a compêndios dentre os estudos sobre as microfinanças, abordando-as

de um patamar mais amplo e geral. Finalmente, o que se segue é um intenso

diálogo entre estes trabalhos a fim de erigirmos os fundamentos da discussão que

virá em seguida.

3.1 As implicações das microfinanças a nível local

A primeira constatação que podemos fazer a respeito das microfinanças é

que, muito além de serem uma ferramenta com a qual as pessoas possam contar

para abrirem seus negócios e assim melhorarem suas condições de vida, elas

apenas auxiliam as pessoas no convívio diário com a pobreza. A pobreza não

implica apenas em uma baixa renda, mas também em ganhos incertos e irregulares.

24

Se hoje uma família pobre pode colocar comida à mesa, não significa que amanhã

também poderá. Deste modo, estas famílias precisam economizar e emprestar

dinheiro constantemente, a fim de manterem suas rendas o mais próximo possível

do estável. As microfinanças se apresentam aqui como uma solução para este

problema, uma ferramenta que o pobre pode utilizar para estabilizar o seu consumo

diário. Elas também ajudam estas pessoas a lidarem com as diversas emergências

que surgem no dia a dia, de problemas de saúde a funerais, de despesas com

educação a casamentos (ROSENBERG, 2010; CONS; PAPROCKI, 2008). Nas

palavras do coordenador de uma ONG britânica com atividades no Nepal:

“Eu diria que a única coisa que as microfinanças fazem para as pessoas realmente pobres é a estabilização do consumo. Porque há épocas no ano em que o pobre não pode controlar suas despesas... Então quando seus recursos financeiros estão em baixa... eles podem usar... o microcrédito como um conforto […].” (RANKIN, 2007, p. 71, tradução nossa).

Estas se complementam com as palavras do administrador de uma outra

ONG com atividades no Nepal:

“[...] as microfinanças contribuem como se fossem 'financiamentos sociais' – o que quero dizer é que as pessoas precisam de dinheiro para remédios, para colocar suas crianças na escola, para casamentos, este tipo de coisa.” (RANKIN, 2007, p. 71, tradução nossa).

Mas as microfinanças não consistem no único meio através do qual pessoas

pobres obtêm recursos atualmente, ao contrário do que afirma Yunus4. Muito antes

de sua emergência, empréstimos informais – aqueles realizados pela família, amigos

e principalmente por agiotas – já eram praticados pelas famílias pobres para que

pudessem fazer frente às emergências diárias e poderem estabilizar suas

necessidades de consumo. De acordo com Lamia Karim (2008), estes meios ainda

persistem em Bangladesh – ao contrário do que afirma o Banco Grameen. Mais

ainda, o mercado de empréstimos informais em Bangladesh fora revigorado com o

advento das IMFs, a partir do momento em que os clientes destas tomam

empréstimos com juros mais baixos que os praticados no mercado informal e os

4 De acordo com Yunus (2007), nas localidades onde há a presença de IMFs, as pessoas deixam de tomar empréstimos de agiotas e familiares e passam a cooperar exclusivamente com as instituições de microfinanças.

25

emprestam novamente a juros mais altos. Desta forma, podemos considerar que as

pessoas frequentemente recorrem ao meio informal para obterem dinheiro. Isto se

dá pelo fato de que este tende a ser mais flexível na concessão de empréstimos.

Assim, a agiotagem ainda persiste e é frequentemente acionada, mesmo quando o

indivíduo tem pleno acesso aos programas de microfinanças (ROSENBERG, 2010).

Por outro lado, ao contrário do meio informal, as microfinanças inspiram

grande confiança nas pessoas. Isto se deve ao fato de que elas estão sempre

disponíveis, mesmo nas piores crises ou situações de calamidade pública – as IMFs

frequentemente prestam suporte antes mesmo que o Estado e as organizações de

ajuda nestas situações5. Portanto, podemos considerar que a possibilidade futura de

poder contar com uma IMF é um grande incentivo para que as pessoas estejam

adimplentes com estas instituições (Ibidem).

Mas as IMFs não podem contar apenas com a boa vontade dos clientes para

garantir o retorno dos empréstimos. Conforme constatamos anteriormente, o

mecanismo central que sustenta todo o modelo Grameen – e sua garantia social –

são os grupos solidários. Vimos anteriormente que estes grupos são a garantia do

retorno dos empréstimos, através da constante pressão que exercem sobre seus

membros. Esta pressão se dá por diversas formas. Katharine Rankin (2001)

observou no Sudeste Asiático que cada membro dos grupos de empréstimo se

dedica a monitorar freneticamente o consumo de todos os outros. Fazem isso a fim

de garantir que cada mutuário destine seu dinheiro, acima de tudo, ao pagamento

das prestações junto às IMFs. Podemos considerar, logicamente, que esta atitude se

dá pelo fato que expomos anteriormente, de que a inadimplência de um participante

afeta diretamente todos os outros. Sendo assim, a simples possibilidade da

inadimplência ocorrer cria um ambiente de constante pressão no interior do grupo, o

que pode acarretar em situações de hostilidade, polarizando o grupo ao invés de

unir seus membros.

Esta situação fora constatada por Karim (2008) em seu trabalho no

Bangladesh, onde ela percebeu que as frequentes brigas entre os membros dos

5 Como exemplo temos o terremoto no Haiti no início de 2010. Em menos de 24 horas após o desastre, algumas IMFs já estavam prestando suporte à população. Em uma semana, quase todas as agências do país já estavam operando, liberando as poupanças e emprestando dinheiro para que as pessoas pudessem se reerguer após o desastre (NEWSWEEK, 2010; MICROFINANCE FOCUS, 2010). Estes e outros fatos semelhantes podem ser encontrados em vários artigos na imprensa.

26

grupos – e até entre as famílias destes membros – são decorrentes de atritos

surgidos no interior dos grupos solidários. O quadro se agrava ainda mais a partir do

momento em que o inadimplente definitivamente não possui recursos para pagar

suas prestações. Desta forma, os outros membros do grupo – muitas vezes com o

apoio da família e amigos – apelam para atitudes mais agressivas. Em Bangladesh,

a autora observou que é comum as pessoas se reunirem publicamente para

humilhar uma família inadimplente. Também é muito comum que entrem na casa

desta família e retomem o bem financiado, para então vendê-lo e assim recuperar o

dinheiro do empréstimo. Se o bem financiado não for de valor suficiente para cobrir o

valor devido, ou se for algo consumível e que o inadimplente já tenha feito seu uso,

o grupo pode tomar outros bens da família que nada tenham a ver com o

empréstimo. Podem inclusive levar toda a comida da casa, e a família inadimplente

nada mais terá para comer. Em casos extremos, podem até mesmo tomar a casa

desta família para recuperar o dinheiro, despejando todos os moradores para a rua.

De acordo com Bateman e Chang (2009), esta constante pressão social e a

tendência para a violência – somadas à reformulação de valores que as

microfinanças fazem no sentido de condicionar a sobrevivência individual em função

do sucesso empreendedor – acabam destruindo os laços de solidariedade,

confiança e experiência conjunta, tão característicos das comunidades pobres. E

esta situação se torna ainda mais crítica quando as IMFs, buscando atingir metas

absurdas de retorno dos empréstimos – como veremos adiante –, passam a

pressionar seus agentes de crédito6. Embora estes não participem diretamente de

ações coletivas como as que foram citadas acima, são totalmente coniventes com

elas a partir do momento em que eles têm pleno conhecimento do fato. E são mais

coniventes ainda na medida em que incitam estas ações, pressionando os outros

membros do grupo inadimplente com ameaças de que não obterão futuros

empréstimos sem o pagamento daquele que está em débito (KARIM, 2008). Esta

pressão que os mutuários constantemente sofrem se confirma nas seguintes

palavras de uma cliente do Banco Grameen:

6 Agente de crédito é a melhor tradução que encontramos para field officer. A função deste funcionário seria a de acompanhar as comunidades em que estão sendo implantados projetos de microfinanças. Ele teria a função de verificar se as pessoas estão utilizando os empréstimos de acordo com a proposta dada à IMF bem como se elas estão conseguindo obter rendas destes investimentos. Além disso, ele tem a função de acompanhar as famílias e fazer com que elas sigam as regras impostas pela agenda social da instituição.

27

“Não é bom quebrar a casa de alguém, mas nós somos forçados a fazer isto. É assim que nós conseguimos empréstimos do Banco Grameen e outras ONGs. Eles nos pressionam para recuperarem o dinheiro, então nós todos vamos juntos e forçamos o membro inadimplente a nos dar o dinheiro. Não nos preocupamos em fazermos isto.” (Ibidem, p. 23, tradução nossa).

Ocorre também que os agentes de crédito, sob a constante pressão que

citamos a pouco, muitas vezes passam a tomar atitudes ofensivas com seus clientes

para garantir o pagamento das prestações. Habitantes de Arampur, um vilarejo

situado no norte de Bangladesh, acusam exatamente este problema. Eles afirmam

que é comum sofrerem violência física ou abusos psicológicos quando não podem

realizar os pagamentos. Por vezes, as mulheres sofrem até mesmo abuso sexual. É

comum também que os agentes retomem os bens financiados sem o consentimento

do mutuário. Desta forma, o pagamento dos empréstimos acabou se tornando uma

despesa de alta prioridade nos lares pobres, ao lado da comida e de medicamentos

(CONS; PAPROCKI, 2008). Esta pressão por parte dos agentes pode ser constatada

nas palavras de um morador do vilarejo:

“Eles usam muitos tipos de força para conseguir o dinheiro de volta... torturando pessoas ou arrastando pessoas... é uma injustiça séria. Digamos que eu diga ao agente de crédito que 'eu não posso te pagar a prestação hoje, meu filho está doente.' E então eu trago o médico para minha casa e ele está sentando e dando remédio para meu filho. Então o agente de crédito vem e diz 'por que você pode comprar remédio para o seu filho, mas não pode me dar a prestação?' Que jeito é este de tratar alguém?” (Ibidem, p. 2, tradução nossa).

Outros efeitos colaterais podem surgir desta constante pressão que os

agentes de crédito sofrem por parte das IMFs. Por estarem a maior parte do tempo

ocupados em recuperar os empréstimos, eles não podem acompanhar os clientes

de sua agência com a frequência necessária. Desta forma, fica muito difícil para eles

saberem como e onde está sendo aplicado o dinheiro dos mutuários,

acompanhamento fundamental para a saúde do modelo Grameen. Assim, muitas

vezes os empréstimos são destinados ao consumo ou ao pagamento de outros

empréstimos contraídos com outras IMFs, possibilitados – e necessários, como

veremos adiante – exatamente por esta falta de acompanhamento. Outro problema

– para o modelo – que decorre desta situação de descaso é que os mutuários

28

acabam não seguindo os princípios determinados pelas agendas sociais redigidas

pelas IMFs. Muitas vezes, o mutuário nem mesmo sabe o conteúdo delas, conforme

observado por Karim (2008) em Bangladesh, onde poucas pessoas conheciam

qualquer item do “The Sixteen Decisions” do Banco Grameen. Isto também ocorre

pelo fato de que estas pessoas geralmente contraem empréstimos de várias IMFs

ao mesmo tempo, de modo que teriam que decorar várias agendas diferentes.

Muito embora cada instituição exija que seus clientes sejam fiéis apenas a ela

mesma (Ibidem), conforme observamos a pouco não é bem isto o que ocorre. As

pessoas emprestam de várias fontes diferentes, por diversos motivos. Parcialmente

isto se deve ao quadro anterior, mas outros problemas podem causar este fato. Por

hora, chamaremos atenção a dois deles. Em primeiro lugar, logicamente podemos

supor que, a partir do momento em que os empréstimos não estão disponíveis

sempre de imediato – devido ao modo como funcionam os grupos solidários –, uma

pessoa pode se ver obrigada a recorrer a outras instituições caso necessite de

recursos para alguma emergência do cotidiano. De acordo com Jason Cons e Kasia

Paprocki (2008), este problema é evidente no vilarejo de Arampur, onde as pessoas

frequentemente se tornam dependentes de novos empréstimos durante as épocas

de fome. Muitos habitantes do vilarejo afirmam que não querem mais tomar

empréstimos das IMFs, mas durante estas épocas eles não têm outra escolha: “Eu

não quero mais tomar empréstimos de microcrédito, […] mas em tempos de

problemas graves de comida não temos outro caminho” (Ibidem, p. 3, tradução

nossa). Situações semelhantes foram percebidas por Karim (2008) em Bangladesh,

onde a principal crítica das pessoas é que as IMFs ajudam elas, mas bem que

poderiam ser mais humanas.

Em seguida, podemos considerar que o pagamento de débitos atrasados em

outras IMFs – ou até mesmo na própria instituição – é o problema que mais

frequentemente leva as pessoas a tomarem novos empréstimos, sendo que várias

vezes são os próprios agentes de crédito que incentivam as pessoas a tomá-los

para que possam cobrir débitos em haver. O que percebemos aqui é que os

mutuários acabam entrando em um ciclo onde tomam um empréstimo para pagar o

outro, e assim sucessivamente. Todo este quadro se revela na declaração de um

morador de Arampur:

29

“Os funcionários das ONGs vêm para nossa casa e tentam nos fazer entender os benefícios do microcrédito. Depois de obter o empréstimo, se nós falhamos em pagar as prestações em dia ele nos pressionam. Então, nós somos obrigados a tomar outro empréstimo para pagar o empréstimo anterior.” (CONS; PAPROCKI, 2008, p. 3, tradução nossa).

Portanto, podemos considerar que as microfinanças, muito além de ajudarem

as pessoas a saírem ou mesmo conviverem com a pobreza – ajudando-as a

estabelecerem seus negócios e livrando-as dos agiotas locais, ou mesmo servindo

de paliativo para as despesas cotidianas – as submete a uma situação de

dependência da qual elas dificilmente escapam. Deste modo, se torna válido

afirmarmos que quanto maior o número de instituições de microfinanças com as

quais uma pessoa mantenha relações, mais endividada ela vai ficar (KARIM, 2008).

3.2 Microfinanças e o desenvolvimento a partir do mercado

Com base no discorrido até o momento, podemos considerar que a principal

característica das microfinanças é que elas pressupõem o desenvolvimento social

através do mercado. Se somarmos a esta característica a ênfase que o modelo dá

ao empreendedorismo individual acima de qualquer outra forma (BATEMAN;

CHANG, 2009), podemos conceber que as microfinanças têm uma profunda

afinidade com o discurso neoliberal. Neste prospecto, uma consideração que

devemos ter a respeito é que as IMFs buscam acima de tudo a

autossustentabilidade de seus programas, de maneira que eles possam sobreviver

sozinhos com os próprios recursos arrecadados. Para isto, elas necessitam garantir

a maior taxa possível de retorno dos empréstimos possível. Para alcançar este

objetivo, as instituições não podem simplesmente contar com a boa vontade dos

mutuários. Conforme discutimos anteriormente, ao basear sua metodologia nos

grupos solidários, o modelo Grameen proporciona uma maior garantia no retorno

dos empréstimos. Também apresentamos as implicações que podem surgir a partir

da implementação destes grupos. Agora, veremos como estes grupos beneficiam as

instituições.

Conforme apresentamos anteriormente, a pressão social que há entre os

membros dos grupos já constitui em si mesma uma vantagem para as IMFs, pois ela

30

garante o retorno de boa parte dos empréstimos. Mas além desta vantagem, o

sistema de grupos solidários proporciona diversas outras. De acordo com Rankin

(2007), ele proporciona às IMFs uma grande economia em custos com funcionários

e uma rápida expansão de suas atividades. No que diz respeito à economia com

funcionários, a autora observa que no Nepal as IMFs mantêm em média uma

relação de 200 clientes por funcionário, muito maior do que em qualquer outro

modelo de banco existente. Quanto à rápida expansão, esta se deve justamente

pela primeira vantagem: como apenas um funcionário pode atender vários clientes,

contratando poucos empregados uma IMF pode atingir um grande público em um

curto espaço de tempo. E podemos apresentar mais vantagens ainda.

Como os próprios membros são responsáveis pela aprovação dos clientes, as

instituições deixam de gastar quantias significativas – e tempo – com a obtenção de

dados das pessoas para fins de aprovação de crédito. Mais ainda, elas não

precisam investir em funcionários para realizar o monitoramento de seus clientes: os

próprios membros do grupo realizam este trabalho, informando qualquer

irregularidade ao seu agente de crédito (Idem, 2001). E é justamente por este

constante monitoramento que muitas vezes as IMFs são informadas de qualquer

possível inadimplência antes mesmo que ela se concretize e se torne definitiva. E

ainda, caso este fato venha a ocorrer, como vimos anteriormente a própria

comunidade obriga o inadimplente a quitar sua dívida, livrando as IMFs de

semelhante esforço (KARIM, 2008).

Por estes motivos e por outros apresentados ao longo de nossa discussão,

podemos considerar que os grupos solidários se mostram muito mais vantajosos

para as instituições do que para seus membros. E eles somam ainda mais uma

vantagem às IMFs: mantendo as taxas de pagamento dos empréstimos em

proporções elevadas, maiores e mais numerosos serão os investimentos públicos e

privados e os subsídios recebidos de órgãos internacionais (Ibidem). Por sua vez,

como podemos concluir, as IMFs podem chegar a um ponto em que se tornam

autossustentáveis, não tendo mais tanta necessidade de obter capital externo.

Assim, passam a se gerir sozinhas, longe dos olhos de investidores e de órgãos

financiadores (BATEMAN; CHANG, 2009).

Com base em Rankin (2001), podemos então perceber as microfinanças

31

como uma materialização da noção neoliberal de desenvolvimento. Ao mesmo

tempo em que as IMFs geram rendimentos, famílias pobres podem ser beneficiadas.

Em outras palavras, as microfinanças proporcionam a estas famílias serviços

financeiros que potencialmente melhorariam suas vidas. Em troca, as instituições

logram rendimentos dos juros cobrados, os quais mantêm suas operações. Logo,

podemos concluir que as IMFs oferecem empréstimos não apenas para promover o

desenvolvimento, mas também para promoverem a si mesmas. Todo este quadro

pode ser constatado nas palavras do chefe de desenvolvimento do Rural Financial

Markets Development Scheme do Nepal:

“Eu não estou dizendo que não é responsabilidade de ninguém atender às necessidades de crédito dos pobres do campo. Estou dizendo que ao invés este setor pode ser lucrativo. Uma vez que este setor é o que basicamente compõe o Nepal, nós temos que desenvolver meios para que seja lucrativo fazer negócios bancários lá. [...]” (Ibidem, p. 27, tradução nossa).

O problema surge quando as instituições colocam a geração de renda acima

do desenvolvimento social, conforme Rankin (2001, 2007) observa no Sudeste

Asiático. Nesta região, podemos notar que as IMFs passaram a se preocupar acima

de tudo com a saúde financeira de seus programas, relegando a segundo plano o

desenvolvimento social. Em 2003 a autora constatou, através de diversas

entrevistas, que vários administradores de ONGs nepalesas – estas em geral

procurando expandir suas áreas de atuação para as microfinanças – acreditavam

que a sustentabilidade financeira das IMFs era o objetivo principal das

microfinanças.

Logo, podemos considerar que as IMFs se preocupariam mais com questões

financeiras do que com questões sociais. E quando não investem suas energias na

manutenção da autossustentabilidade, este discurso facilmente se torna um discurso

de rentabilidade. De acordo com Bateman e Chang (2009), várias IMFs acabam se

afastando tanto dos princípios de desenvolvimento que acabam se tornando

verdadeiros negócios. Desta forma, muitos altos executivos das IMFs enriquecem

impudentemente, ao ponto de por vezes adquirirem a propriedade definitiva das

instituições, se livrando de qualquer interferência externa. Como exemplo podemos

citar o caso do Banco Compartamos, do México. De acordo com os autores, os altos

executivos desta instituição se tornaram multimilionários em pouco mais de uma

32

década, às custas de juros exorbitantes cobrados de seus mutuários.

Portanto, podemos concluir que a cura da pobreza não consiste no objetivo

central de todas IMFs. Algumas descobriram na pobreza um novo mercado a ser

explorado, e muito rentável. Como veremos mais adiante, isto é inerente ao

neoliberalismo. Isto tudo se torna mais claro nas palavras de um diretor do Banco

Grameen, que pode ser considerada como a instituição que mais insiste na

promoção das microfinanças como cura para a pobreza: “Porque você está

surpreso? O Banco Grameen é um negócio e não caridade.” (KARIM, 2008, p. 20,

tradução nossa).

Desta forma, as microfinanças representam um avanço controverso. Um

avanço do Estado sendo o responsável pelo desenvolvimento social para outro em

que os próprios indivíduos são responsáveis por suas próprias sortes. Assim, os

programas de governo deixam de se preocupar com problemas sociais e

econômicos, os quais passam a ser incididos diretamente sobre a capacidade de

autossuficiência dos indivíduos. Estes, além de terem que financiar a si próprios, são

assim obrigados a pagar juros exorbitantes que sustentam todo este sistema

(RANKIN, 2007; KARIM, 2008; TOWNSEND et al., 2004 Apud ESMAIL, 2008).

3.3 Relação das microfinanças com o Estado

Para a lógica neoliberal, o mercado livre de regulamentações estatais e

agindo de acordo com a própria vontade é um meio que colabora tanto com o seu

crescimento quanto com a provisão de bem-estar à população pobre. Desta

maneira, a lógica que corre por trás das microfinanças pode ser associada

perfeitamente à lógica incutida no neoliberalismo. Ao mesmo tempo em que elas

permitem a geração de receitas, elas ajudam o pobre. E esta associação passa a

ser ainda mais verdadeira a partir do momento em que constatamos que as

microfinanças colaboram com a liberalização e a desregulamentação das

instituições de mercado. (RANKIN, 2007; ESMAIL, 2008).

De acordo com Rankin (2001, 2007), podemos observar uma grande pressão

por parte das ONGs sobre governos do Sudeste Asiático, onde a partir da metade

dos anos 80 passaram a realizar profundas mudanças nas suas economias a fim de

33

satisfazerem as condições impostas pelas organizações internacionais e IMFs.

Karim (2008) constata que o problema é que muitas vezes as ONGs, estreitamente

ligadas a países e organizações com forte poderio econômico, passam a representar

acima de tudo os interesses destes. Estas imposições buscam uma maior

liberalização do mercado na região: a liberalização do setor bancário, a entrada de

investimento estrangeiro, a desregulamentação de bancos comerciais e a

privatização de bancos públicos, além da promoção das microfinanças como

ferramentas únicas de desenvolvimento estão entre as principais exigências. Os

governos – muitos simpáticos às políticas públicas de bem-estar – negociaram estas

condições até onde puderam, mas com o passar do tempo foram abrindo mão do

seu domínio sobre o desenvolvimento social. Desta forma, boa parte dos programas

de desenvolvimento nepaleses, os quais eram baseados em subsídios

governamentais, deram lugar às IMFs e ao investimento privado. Estes subsídios

interferiam nas atividades do meio privado, afetando a livre concorrência de mercado

e retardando o desenvolvimento do setor financeiro, e por isso tiveram seu fim.

Desta forma, concordamos com Bateman e Chang (2009) quando constatam

que as microfinanças cooperam com a privatização do bem-estar social. Conforme

Rankin (2001) observa, a adoção das microfinanças pelos planejadores de Estado

como ferramenta de combate à pobreza representa uma transferência das políticas

públicas de desenvolvimento social do domínio do Estado ao domínio do mercado.

Ela vai mais longe ainda ao observar que, ao passo em que os países em

desenvolvimento – não possuindo soberania econômica – falham em prover serviços

básicos à população como saúde e educação, vemos que ONGs cada vez mais

assumem a responsabilidade de suprir tais necessidades. As IMFs, por sua vez,

tomam para si nos locais onde estão incorporadas o papel de provedor único do

desenvolvimento social. Por outro lado, Rankin considera que, muito antes da

liberalização econômica implicar na desregulamentação do Estado, ela é

responsável por um reescalonamento do poder deste para o nível local. Desta

forma, o neoliberalismo dialoga com as estruturas políticas e culturais subnacionais

através da extensão do poder do Estado. Em outras palavras, as microfinanças

agem no sentido de trazer a racionalidade neoliberal a lugares que antes não eram

acessíveis, através de programas de desenvolvimento coerentes com o

34

neoliberalismo.

Aqui, de acordo com Rankin (2001), as conexões entre racionalidade política

e estratégia governamental favorecem os mercados de modo que estes possam

exercer poderes de administração. Desta forma, a ideia de que o mercado é quem

deve administrar as políticas de desenvolvimento aos poucos passa a ser

incorporada pela população7. Podemos observar este quadro nas palavras de um

administrador do Banco Central do Nepal, apresentadas no trabalho da autora: “[...]

As pessoas estão começando a acreditar, de fato, que um sistema financeiro

baseado no conceito de liberalização é melhor que um baseado no regime

administrativo” (BISTA AND PRADHAN, 1996 Apud Ibidem, p. 26, tradução nossa).

Partindo do mesmo princípio, Karim (2008) afirma que as IMFs podem ser

consideradas como mecanismos através dos quais a ideologia neoliberal se

incorpora à mentalidade do povo. Conforme a autora observa em Bangladesh, as

IMFs têm um papel crucial na vida econômica e social das pessoas. Deste modo,

acaba sendo fácil para as instituições incutirem nas pessoas a ideia de

desenvolvimento através do mercado. Para Bateman e Chang (2009), as

microfinanças representam um pouco mais do que isso. Elas não só são um

mecanismo através do qual o povo incorpora ideias neoliberais, mas também um

meio de proteger este sistema. Os autores partem do princípio de que os sistemas

de bem-estar estão sendo desmantelados ao redor do mundo. Isto gera uma

situação crítica, pois as pessoas se encontram literalmente abandonadas pelos seus

governos. Então surgem as microfinanças, que agem como uma válvula de escape

para os problemas causados pelo neoliberalismo, algo no que as pessoas podem se

apegar e sentirem que são apoiadas pelo mercado, se sentindo seguras de modo

que não se voltem contra ele.

Por sua vez, podemos afirmar que os serviços oferecidos pelas IMFs fazem

com que as famílias pobres se tornem responsáveis pelos seus próprios destinos.

Isto se deve ao fato de que a adoção das microfinanças como programas de

governo facilita às administrações a assumirem uma posição isenta de culpa pelos

problemas sociais, utilizando o argumento de que o pobre pode custear os serviços

7 Este quadro é tão crítico em alguns países que, a exemplo de Bangladesh, as pessoas de certas localidades se referem às ONGs como sakar, palavra que significa Estado no idioma bengali (SCOTT, 2006 Apud KARIM, 2008).

35

de que necessitar utilizando os serviços de microfinanças. Deste modo, as

microfinanças podem ser consideradas, dentro da lógica neoliberal, as sucessoras

do bem-estar social. Mais ainda, de acordo com Rankin (2001), cada indivíduo

passa a ser responsável pelo sucesso econômico não só de sua família mas

também da comunidade como um todo. Portanto todos passam a ter a obrigação de

se empenhar no próprio sucesso, de modo que reflita no avanço de toda a

comunidade, enquanto que o Estado, por sua vez, se isenta de qualquer obrigação

(BATEMAN; CHANG, 2009).

Desta forma, podemos considerar que o mercado, através das microfinanças,

acaba regulando o comportamento das pessoas (RANKIN, 2001). Bateman e Chang

(2009) veem as microfinanças como um meio através do qual os neoliberais podem

deslegitimar qualquer possibilidade do pobre utilizar o processo democrático ou a

pressão popular para demandar programas públicos que atendam as suas

necessidades. Assim, agem como um mecanismo que mantém o poder e a

liberdade das elites estabelecidas. Mais ainda, podemos considerar que os países

em desenvolvimento são estimulados – por diversas organizações internacionais,

como vimos anteriormente – a utilizarem programas de microfinanças para

flexibilizarem o mercado de trabalho, enfraquecendo a classe trabalhadora e

fortalecendo as estruturas vigentes.

Por fim, Bateman e Chang (2009) consideram que as microfinanças

colaboram com a legitimação do empreendedorismo como valor central de cada

sociedade. Porém, um problema que devemos considerar é que os frutos colhidos

por um empreendedor de um país em desenvolvimento nunca serão tão vantajosos

quanto aqueles colhidos por um empreendedor de um país com uma economia

fortemente estabelecida. Logo, ao invés de reverter quadros de desigualdade, as

microfinanças os mantém, de modo que absorvem os problemas decorrentes do

neoliberalismo e não oferecem qualquer afronta às estruturas que historicamente

são as principais responsáveis pela criação e perpetuação da pobreza.

36

4 AS MICROFINANÇAS NO PLANO NEOLIBERAL

Dentro da lógica neoliberal, podemos dizer que as microfinanças representam

um mecanismo perfeito para a promoção do desenvolvimento social. Como vimos

anteriormente, elas buscam substituir o Estado na assistência a famílias pobres, se

apresentando como uma alternativa eficiente para as políticas públicas de

desenvolvimento e mostrando que o desenvolvimento social pode ser assumido pelo

mercado. Mas o que as torna tão afins com o neoliberalismo é que, ao mesmo

tempo em que o meio privado pode gerenciar as atividades de desenvolvimento

social e atender as necessidades básicas de bem-estar das parcelas pobres da

população, ele pode obter consideráveis receitas a partir dos seus serviços.

O que propomos aqui é analisar como as microfinanças colaboram com a

incorporação de políticas neoliberais por parte dos Estados, para então

compreendermos como elas afetam a sociedade como agentes difusoras da

ideologia neoliberal. Em um primeiro momento, veremos que elas são um artifício

utilizado por organizações multilaterais e países desenvolvidos para a imposição –

aos países em transição e desenvolvimento – de políticas orientadas pela ideologia

neoliberal em lugar das políticas públicas. Finalmente, prosseguiremos com a

discussão buscando compreender como o neoliberalismo age através das

microfinanças, a partir do momento em que estas passam a assumir o controle do

desenvolvimento social.

Para alcançar os objetivos propostos adotaremos uma metodologia simples. A

partir da análise de documentos obtidos através da Internet, buscaremos evidências

que validem nossa hipótese. Conforme seja necessário, utilizaremos estes dados

em conjunto com outras declarações publicadas por estes órgãos. Em seguida,

buscaremos articular estas informações com trabalhos acerca do neoliberalismo,

sendo que Giddens e Bresser-Pereira assumirão o papel central da discussão, ao

mesmo tempo em que procuraremos apresentar nossas inferências a respeito.

4.1 Algumas considerações sobre o neoliberalismo

37

Antes de prosseguirmos com nossa discussão, convém levarmos em conta

algumas considerações a respeito do neoliberalismo. Em primeiro lugar, devemos ter

em mente que ele surgiu como “uma reação teórica e política veemente contra o

Estado intervencionista e de bem-estar” (ANDERSON, 1995, p. 9). A partir desta

constatação, podemos levar em conta dois princípios que são fundamentais ao

neoliberalismo: primeiro, que o papel do Estado deve ser reduzido ao máximo; em

seguida, que as políticas sociais não devem ser atribuições dele.

O primeiro princípio, o do Estado mínimo, considera que o papel do Estado

deve ser reduzido em todas as esferas da sociedade onde seja possível. Desta

forma, o mercado poderia compreender mais atividades e assim assumir o seu lugar

como verdadeiro palco da sociedade. De acordo com Bresser-Pereira (2009), os

neoliberais consideram que o papel do Estado deve ser de mero regulador da

economia, de modo que ele não deve assumir atividades produtivas, nem promover

a proteção social, e ainda deixar de regular os mercados – em especial os mercados

financeiros –, pois estes teriam a capacidade de se autorregularem. Desta forma, ao

Estado caberia apenas o papel de complementar as atividades do mercado,

devendo sempre favorecê-lo para que ele tenha uma ação mais efetiva. Para o

neoliberalismo, este seria o único caminho para que as economias em transição e

desenvolvimento consigam engatilhar o rumo do desenvolvimento e assim

proporcionarem níveis de bem-estar a sua população semelhantes aos dos países

desenvolvidos (MORAES, 2002).

Em seguida, a partir do momento em que o mercado possuísse autonomia

própria, ele automaticamente seria capaz de prover o bem-estar a sociedade. De

acordo com Giddens (1998), o neoliberalismo considera que os mercados são

máquinas que não param nunca e, a partir do momento em que têm a liberdade

necessária para agir – livres das regulamentações estatais –, eles promovem um

crescimento ininterrupto. Desta forma, tendo liberdade de ação, os mercados iriam

sempre “entregar o bem máximo à sociedade” (Ibidem, p. 20, tradução nossa). O

Estado, por sua vez, deveria evitar gastos com políticas públicas, deixando ao

mercado o controle de tais atividades.

Porém, em muitos dos países considerados em transição ou

38

desenvolvimento, por diversos motivos que não entram em questão8, as políticas

neoliberais não são constantes nas agendas de seus governos. Em contrapartida,

estes governos muitas vezes necessitam de recursos externos para que possam

conduzir seus programas, recursos estes geralmente fornecidos por organizações

multilaterais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI),

organizações bilaterais como a Agência dos Estados Unidos para o

Desenvolvimento Internacional e outras organizações de doadores internacionais

compostas por grandes empresas multinacionais. Este órgãos impõem diversas

condições para que sejam liberados recursos a estes governos, de modo que eles

se veem obrigados a realizar profundas reformas políticas no cumprimento destas

exigências (UGÁ, 2004). Deste modo, podemos concluir que para os governos que

não têm opção a não ser os recursos oferecidos por estas organizações, a atitude

que lhes resta é de se adequar aos desígnios dos órgãos internacionais.

Convém constatarmos como o neoliberalismo assumiu um papel central nesta

questão. A partir dos anos 1980, estas organizações começaram a superestimar as

políticas neoliberais, que defendiam a substituição das políticas públicas de

desenvolvimento por iniciativas lideradas pelo mercado, apresentando uma solução

aos problemas decorrentes das administrações social-democratas a partir de

diversas equações matemáticas prontas para entrar em ação e resolver tais

problemas da maneira mais eficiente possível (ANDERSON, 1995; BRESSER-

PEREIRA, 2009). De acordo com Perry Anderson (1995), ele se constituiu como um

movimento ideológico de escala mundial, como nunca antes fora produzido pelo

capitalismo. Podemos considerar que seu principal objetivo era “transformar todo o

mundo à sua imagem” (Ibidem, p. 23), se constituindo como uma corrente ideológica

hegemônica em todo o globo. As organizações internacionais, por sua vez, não

escaparam ilesas, e passaram a ser as grandes promotoras do neoliberalismo.

Assim, vemos atualmente que os diversos governos que dependem dos

recursos providos por estes órgãos se viram – e por vezes ainda se veem –

obrigados a adotarem o modelo neoliberal em diversas frentes de suas

administrações. O meio privado pode assim encontrar, nestes países, a liberdade

8 Convém apenas considerarmos que muitos governos destes países não adotam políticas neoliberais e muitas vezes são contra tais políticas. Os motivos que levam a tal não interessam ao desenvolvimento da presente discussão.

39

que busca para conduzir suas atividades com uma maior eficiência – obtendo

maiores receitas – e ao mesmo tempo assumir um novo mercado, o do

desenvolvimento social – muito rentável em algumas áreas, como as microfinanças

–, do qual os governos abriram mão.

4.2 Imposição do neoliberalismo através das microfinanças

Conforme percebemos ao longo da discussão, as microfinanças representam

um modelo de desenvolvimento totalmente conivente com a ideologia neoliberal. A

partir dos anos 1990, elas passaram a ser adotadas pelas organizações

internacionais como iniciativas fundamentais na promoção do desenvolvimento

social. Não temos dados empíricos que mostrem em que proporção o

desenvolvimento humano absorve os recursos providos por estes órgãos, e muito

menos o quanto é direcionado para as microfinanças. Mas se levarmos em conta os

números – até dezembro de 2007 as microfinanças já haviam arrecadado 11,7

bilhões de dólares de seus financiadores (CGAP, 2009) – e a popularidade das

microfinanças, podemos assumir que elas recebem boa parte destes recursos.

Desta forma, elas podem se constituir como um meio através do qual práticas

neoliberais sejam impostas aos governos dependentes destes recursos, pois como

vimos a pouco os órgãos internacionais costumam fazer imposições políticas na

concessão destes.

Se assumirmos esta proposição como verdadeira, podemos considerar que

em um aspecto mais geral há duas formas das microfinanças serem utilizadas para

induzir os governos à adoção de práticas neoliberais. A primeira delas é a imposição

direta, por parte dos órgãos internacionais, da adoção de políticas que favoreçam o

neoliberalismo. Os motivos que estão por trás destas imposições não entram em

questão na presente discussão. O que devemos levar em conta é que, a partir dos

anos 1980, organizações como o Banco Mundial e o FMI vêm atuando tanto como

formuladores de recomendações políticas quanto como disseminadores de políticas

neoliberais para os países de periferia (UGÁ, 2004). Podemos tomar como exemplo

o relatório A/53/223 da ONU (1998b), onde podemos notar o papel central do Banco

Mundial nestas questões. De acordo com o relatório, o Consultative Group to Assist

40

the Poor (CGAP)9 se associou a esta organização na expectativa de utilizar sua

influência para “trabalhar” com os governos e criar um ambiente de negócios

propício às IMFs. Constatamos ainda que o CGAP atuou junto ao Banco Mundial em

diversos projetos que promoveram mudanças nas políticas governamentais de

vários países, a fim de criar este ambiente favorável às microfinanças. Podemos

assumir então, com base nestas evidências, que as microfinanças sejam um meio

através do qual estas entidades possam impor medidas como as propostas pelo

Consenso de Washington10.

De acordo com Ugá (2004), o Banco Mundial apresenta em seus relatórios

que o Estado deve realizar reformas para que se adapte ao mundo que se

transforma, procurando aumentar a sua eficiência. Desta forma, o Estado teria que

“retrair a sua atuação, de modo a tornar-se um catalisador, facilitador e parceiro dos

mercados” (Ibidem, p. 57). Em seguida, “os Estados devem complementar os

mercados e não substituí-los” (BANCO MUNDIAL, 1997, p. 18 Apud Ibidem, p. 57),

adotando políticas que proporcionem um melhor desempenho dos mercados. Nesta

lógica, podemos considerar que, embora o Banco Mundial não se dirija – nestes

documentos – às microfinanças explicitamente como meios para o desenvolvimento

social, elas estão perfeitamente de acordo com suas intenções, pois a partir do

momento em que elas assumem o desenvolvimento social, o papel do Estado se

retrai e o mercado adquire mais espaço. Em outras palavras, o Estado agiria no

sentido de promover regulamentações – ou desregulamentações – que facilitassem

a implementação das microfinanças, ao passo que estas passariam a assumir o

desenvolvimento social.

O relatório A/53/223 da ONU (1998b) nos permite perceber este quadro de

maneira mais clara no contexto das microfinanças. Aqui, a entidade aconselha aos

países em desenvolvimento a instituírem programas de microfinanças que sigam o

modelo do United States Small Business Administration, uma entidade norte-

americana totalmente financiada pelo governo e que opera através do setor privado

proporcionando suporte a pequenas empresas. Desta forma, podemos considerar

9 O CGAP é uma entidade vinculada ao Banco Mundial voltada ao combate à pobreza, adotando as microfinanças como tema central de suas campanhas.

10 O Consenso de Washington é o conjunto de medidas neoliberais proposto em 1989 que passou a ser adotado pelas diversas organizações internacionais como um receituário de políticas, o qual era imposto aos países em desenvolvimento que passavam por dificuldades nos anos 1990 – e até hoje – para que pudessem realizar a renegociação de suas dívidas externas (UGÁ, 2004).

41

que a organização sugere a estes países a promoção do setor privado como

gerenciador das atividades de microfinanças. Em outras palavras, podemos dizer

que estas recomendações sugerem que o desenvolvimento social seja liderado pelo

mercado.

Em seguida, devemos considerar que há uma tendência cada vez maior em

direcionar estes recursos diretamente ao meio privado, anulando o intermédio do

Estado (MORAES, 2002). Assim, diversas instituições de microfinanças que atuam

no âmbito internacional estão recebendo recursos diretamente de órgãos como o

CGAP, e não mais por intermédio dos governos (CGAP, 1997). Desta forma, se um

governo deseja que estas IMFs operem em seu país – de modo a receber os

recursos fornecidos pelos órgãos internacionais por intermédio delas –, ele deve

ajustar – leia-se: liberar – suas políticas de modo que elas favoreçam a

implementação e a atuação destas instituições. Podemos considerar que, deste

modo, os grandes órgãos internacionais induzem indiretamente a adoção de

políticas neoliberais, utilizando as IMFs como justificativa de suas pretensões.

Mas além destas duas formas que mencionamos, há também uma outra

possibilidade cabível. Devemos considerar que os Estados podem ter interesse em

adotar as microfinanças por vontade própria, utilizando recursos próprios ou não.

Supomos que isto se dê por parte de governos neoliberais que buscam aliviar suas

responsabilidades com o desenvolvimento social, mas de acordo com Anderson

(1995), qualquer governo, mesmo aqueles que se dizem de esquerda, acaba

adotando práticas neoliberais. O autor ainda considera os social-democratas os

“mais resolutos em aplicar políticas neoliberais” (Ibidem, p. 15).

Constatamos isto em uma publicação do CGAP (1998). Em 1998, havia uma

crescente demanda por parte dos governos de várias partes do mundo por diretrizes

que guiassem a implementação de leis e regulamentações que proporcionassem a

implementação de programas de microfinanças. Frente a esta demanda, o órgão via

a necessidade de estabelecer um gabinete que tratasse de questões deste tipo, de

modo que atualmente uma de suas áreas de atuação é o suporte a governos na

implementação de políticas que possibilitem a implementação de serviços de

microfinanças (CGAP, 2010a). Em uma breve descrição de sua abordagem, eles

consideram que “marcos políticos e legais precisam ser adaptados para que os

42

governos possam exercer seu papel fundamental, como facilitadores dos serviços

financeiros aos pobres” (Ibidem, tradução nossa). Esta passagem nos permite não

apenas confirmar a observação de Vivian Ugá (2004), no que diz respeito aos

órgãos internacionais disseminando a ideologia neoliberal, mas também nos permite

perceber a colaboração das microfinanças no que diz respeito ao favorecimento do

mercado. Assim, podemos considerá-las como disseminadoras do neoliberalismo.

4.3 Enfraquecimento das políticas públicas

Não encontramos nenhum estudo que apontasse a redução de políticas

públicas em função da implementação de programas de microfinanças, e a produção

destes dados seria muito dispendiosa para nós no presente momento. Desta forma,

nos basearemos em algumas constatações para fundamentar nossa discussão

sobre o possível efeito que as microfinanças causam nas políticas públicas, mas não

poderemos afirmar que estas realmente acabam com o advento das microfinanças.

Assim, partiremos do princípio de que as políticas públicas são ao menos sejam

enfraquecidas nesta relação.

Antes de tudo, convém considerarmos que o neoliberalismo surgiu como uma

reação ao Estado de bem-estar (ANDERSON, 1995). Podemos considerar que as

políticas públicas não têm papel no plano neoliberal, o qual busca a substituição

delas por serviços fornecidos pelo mercado. Se tomarmos as microfinanças para

analisar este quadro, podemos perceber que há basicamente dois momentos a partir

do momento em que políticas de cunho neoliberal passam a fazer parte das

agendas de governo.

Em primeiro lugar, há a pressão por parte dos órgãos internacionais para que

os países não desenvolvidos adotem tais políticas. Para compreendermos esta

constatação, convém tomarmos uma análise feita por Rankin (2007) no Nepal. A

autora constata que organizações como o Banco Mundial e o FMI, em conjunto com

os bancos com atividades no local, estavam pressionando o governo nepalês de

modo que este abandonasse seus programas de subsídio aos pobres em favor das

microfinanças. De acordo com a autora, o argumento do Banco Mundial era que

estes programas estavam comprometidos e que deviam dar espaço às

43

microfinanças para que elas pudessem expandir e ter um maior alcance social. Aqui

podemos perceber o momento em que as políticas públicas são abandonadas pelo

Estado devido a imposições dos órgão internacionais ou do próprio mercado, de

acordo com o que discutimos a pouco. O caso do Nepal, conforme fora constatado

por Rankin, nos mostra perfeitamente este movimento. Podemos ver como as

políticas públicas veem seu fim – como o subsídio governamental nepalês aos

pobres – quando interferem nas atividades do mercado, logicamente em um

contexto neoliberal.

Um outro momento seria o da promoção do bem-estar através do meio

privado. Podemos tomar como exemplo o Grameen Kalyan, uma empresa

estabelecida em 1996 em Bangladesh e associada ao Banco Grameen. Ela objetiva

a provisão de serviços de bem-estar a seus clientes, como financiamentos

estudantis e planos de saúde pré-pagos (GRAMEEN, 2010). Esta empresa – assim

como qualquer outra instituição semelhante – pode ser vista como um exemplo da

substituição de políticas públicas de bem-estar por serviços de mercado. Com base

em Giddens (1998), podemos dizer que ela é fruto de uma sociedade com

intervenção estatal frouxa. Assim, para o neoliberalismo, a sociedade civil gera

automaticamente mecanismos de solidariedade, a partir do momento em que o

Estado retrai o seu papel. Em seguida, o crescimento econômico liderado pelo

mercado seria o meio de se prover o acesso ao bem-estar. Desta forma, podemos

dizer que as microfinanças, a grosso modo, expandindo seu mercado e atendendo

mais pessoas, proporcionariam o acesso aos serviços providos por empresas como

o Grameen Kalyan, representando uma perfeita substituição do Estado pelo

mercado.

Porém, conforme Bresser-Pereira (2010) constata, o neoliberalismo nega o

conceito de interesse público. Analisando as microfinanças dentro do contexto

neoliberal, não temos como concebê-las como meios efetivos de acesso ao bem-

estar. A lógica do mercado é o lucro, a promoção do individualismo e da competição,

onde cada um é responsável por seu próprio destino (Idem, 2009). No mercado cada

um defende os seus próprios interesses. Como ele é “um mecanismo de

coordenação baseado na competição” (Ibidem, p. 13), não há objetivos comuns, pois

os padrões vão sendo estabelecidos pelos concorrentes no decorrer da competição.

44

Mais além, ele dispensa qualquer definição de metas e objetivos, e mais ainda o

estabelecimento de meios para alcançar um fim qualquer. Somando isso ao

individualismo presente no neoliberalismo, temos um quadro de desordenação dos

interesses reais da sociedade.

Desta forma, podemos considerar que tanto uma empresa que busque a

provisão de bem-estar, quanto uma IMF que forneça recursos para que as pessoas

tenham acesso ao bem-estar privado, devem estar acima de tudo focadas na sua

própria subsistência e não no bem comum, a fim de sobreviver à competitividade da

economia neoliberal. Se elas não se manterem focadas neste sentido, suas chances

de sobrevivência na intensa competição do mercado são mínimas. Sendo assim,

podemos considerar que as microfinanças, operando em um contexto neoliberal,

não podem ser consideradas as melhores substitutas das políticas públicas,

provendo desenvolvimento social e acesso ao bem-estar. O Estado, por sua vez, o

qual deveria gerenciar os interesses comuns da sociedade e proporcionar o bem-

estar à sociedade, encontra-se enfraquecido por uma neoliberalismo que favorece

constantemente o mercado.

4.4 A privatização da pobreza

Como vimos, há uma constante promoção da implementação das

microfinanças no lugar de programas de desenvolvimento governamentais. O

problema é que a preocupação com o desenvolvimento social há muito deixou de

ser o centro das atenções das IMFs. Podemos considerar inclusive que esta não é

nem mesmo a preocupação das organizações internacionais, que veem a

sustentabilidade das instituições como o objetivo principal das microfinanças.

Podemos observar este ponto de vista dos órgãos internacionais no relatório

A/53/223 da ONU (1998b):

“Na falta da sustentabilidade a longo prazo, operações de microcrédito se

tornam operações de bem-estar ou caridade. Enquanto estas últimas

[instituições], em algumas circunstâncias, têm seu próprio lugar no

desenvolvimento, elas não devem se caracterizar como instituições de

microcrédito.” (Ibidem, tradução nossa).

45

A partir do momento em que estas instituições se tornam autossustentáveis e

independentes dos governos e organizações internacionais, elas passam a atuar

fundamentalmente como empresas – mesmo quando são geridas por ONGs, as

quais supostamente deveriam proporcionar o bem-estar no contexto neoliberal.

Desta forma, a questão do desenvolvimento social passa de vez para o segundo

plano. Ao invés de se focarem na prestação de serviços que promovam o

desenvolvimento social, elas passam a ver esta área como um mercado altamente

rentável. Mais ainda, cobram juros exorbitantes, a fim de sustentar uma estrutura em

constante expansão – atrás de novos consumidores a serem explorados – ou para

sustentar os altos padrões de vida de seus executivos (BATEMAN; CHANG, 2009;

RANKIN, 2001).

A questão que fica aqui é se o Estado deve ou não impor regras que regulem

a exploração deste mercado, de modo que obrigue estas empresas a

proporcionarem o desenvolvimento social ao invés de obterem elevadas taxas de

renda. De acordo com os neoliberais, a função do Estado seria apenas a de

promover a concorrência neste setor e evitar a adoção de políticas

regulamentadoras. Assim, delegando estas questões à capacidade do mercado de

se autorregular, os preços se estabilizariam e os juros chegariam a um valor justo.

Desta forma, o dever do Estado seria simplesmente o de promover a competição no

setor, e este se ajustaria da melhor maneira possível em favor da sociedade

(BRESSER-PEREIRA, 2009). De acordo com o Banco Mundial, este seria o papel

que o Estado deveria exercer (UGÁ, 2004).

O CGAP (2010b), em sua lista de recomendações políticas dirigidas a

implementação das microfinanças, considera que regular os empréstimos fornecidos

pelas IMFs – impondo um limite nos juros – seria ao pobre mais desvantajoso do

que pagar taxas de juros abusivas. Justificam pelo argumento de que um limite de

juros imposto politicamente muitas vezes não é compatível com os custos

administrativos de milhares de pequenos empréstimos. Assim, ou as instituições não

teriam meios de se autossustentar e expandir para novos mercados, ou o setor não

seria interessante para a inciativa privada – ficando abandonado. Nos dois casos, os

pobres acabariam ficando sem serviços financeiros. Podemos então considerar que

46

para o CGAP é melhor que os pobres paguem juros muito mais altos em um primeiro

momento até que o setor se autorregule com o passar do tempo, o que é

perfeitamente compatível com os pressupostos neoliberais, que objetivam a

desregulamentação governamental e o livre preço.

Mas devemos levar em consideração que as microfinanças, devido ao próprio

modo como são estruturadas, se tornam um meio que nem o mercado e muito

menos o Estado podem controlar. Se um mercado competitivo se ajusta

automaticamente às necessidades da sociedade, poderíamos supor – dentro da

lógica neoliberal – que os juros dos empréstimos seriam reduzidos com o tempo.

Mas como vimos anteriormente, o que ocorre é que aqueles que dependem das

microfinanças, além de estarem acostumados a pagar juros altos no mercado

informal, são totalmente dependentes das IMFs, pois acabam entrando em ciclos de

dependência (CONS; PAPROCKI, 2001; KARIM, 2008). Se levarmos em conta estes

motivos, podemos compreender a liberdade que as IMFs têm para cobrar de seus

clientes juros muito acima dos de mercado. Esta situação é tão significativa que

mesmo um mercado extremamente competitivo, como é o das microfinanças, não

tem condições de reduzir substancialmente estes juros.

Finalmente, o Estado pode fazer menos ainda a respeito. Depois que ele abre

mão do desenvolvimento social em favor da iniciativa privada, a única opção seria

regulamentar o setor. Mas de acordo com os neoliberais, ele deve ser apenas

regulador, e ainda favorecendo os mercados sempre que puder (ANDERSON,

1995). Deste modo, uma ação destas poderia ser vista como uma intervenção, e

veria uma forte resistência por parte do setor privado. Até mesmo a própria

sociedade poderia se voltar contra a regulamentação pois, como vimos

anteriormente, as pessoas interiorizam, por intermédio das IMFs, a ideia de

desenvolvimento e liberdade através do mercado (KARIM, 2008). Portanto, podemos

considerar que qualquer regulamentação que tenha um potencial efeito negativo às

IMFs – de acordo com a lógica neoliberal – veria uma forte oposição nos mais

variados níveis da sociedade.

4.5 A mentira da capacitação através das microfinanças

47

De acordo com Anderson (1995), um outro princípio essencial do

neoliberalismo é que a competição é saudável e move o mercado – e portanto a

sociedade. Mas além disso, o neoliberalismo defende que a desigualdade é

necessária para o bom funcionamento da economia, pois apenas assim ela se

dinamizaria a ponto de proporcionar a competição de mercado. Logo, podemos

supor que, para que o neoliberalismo funcione perfeitamente, famílias pobres devem

existir. E isto se comprova na medida em que o neoliberalismo se apresenta como

um produtor de desigualdade. Ugá (2004) observa este efeito nos diversos países

que adotaram as práticas neoliberais – notadamente aquelas do Consenso de

Washington –, onde houve uma “piora na distribuição de renda e um aumento no

desemprego” (Ibidem, p. 57).

Conforme Ugá (2004) observa nos relatórios do Banco Mundial, a

organização tende a ver a sociedade dicotomizada entre “os indivíduos que

conseguem atuar no mercado de trabalho” (Ibidem, p. 58), e aqueles “incapazes de

integrar-se aos mercados – os pobres” (Loco citato). De acordo com a autora, os

pressupostos que tendem a associar a pobreza com a falta de capacidades são

tirados dos trabalhos de Amartya sem, que abordam esta questão da capacidade

social. Para Sen (2001 Apud UGÁ, 2004; 1992 Apud GIDDENS, 2007), a igualdade

e a desigualdade não se dão necessariamente em proporção à carência – ou não –

de bens sociais e materiais, mas variam de acordo com a capacidade da pessoa de

utilizar estes bens. Em outras palavras, aquele que não é capaz – o pobre – é

aquele que não tem a liberdade de buscar o seu bem-estar, ou seja, não tem

oportunidades.

Para o Banco Mundial, são estes os únicos sujeitos que deveriam ser

atendidos pelo Estado, pois aqueles que são capacitados podem sobreviver

sozinhos ao mundo do mercado. Como as orientações do Banco Mundial veem o

problema da pobreza na capacidade das pessoas em sobreviver ao mundo do

mercado, elas se limitam a indicar propostas que buscam aliviar o problema neste

sentido. Assim, quando as microfinanças se apresentam como algo capaz de ajudar

o pobre a investir em seu negócio e melhorar de vida, supostamente elas oferecem

oportunidades semelhantes àquelas que os mais abastados da sociedade têm –

embora em menor escala. Do mesmo modo que um sujeito de uma classe mais alta

48

pode obter um empréstimo e investir em seu negócio, o pobre também pode. A única

diferença é que os resultados obtidos pelo primeiro sempre serão muito maiores que

os obtidos pelo segundo. Porém, de acordo com Giddens (2007), não é apenas a

igualdade de oportunidades que pode favorecer as classes dominadas. Também é

necessária uma redistribuição de riqueza e renda, pois conforme destaca o autor, “a

desigualdade de resultados de uma geração é a desigualdade de oportunidades da

geração seguinte” (Tobin, 1999 Apud Ibidem, p. 256).

De acordo com Ugá (2004), e conforme podemos constatar no Relatório do

Banco Mundial de 2000/2001, o Banco Mundial considera que o dever do Estado de

cuidar dos pobres – incapacitados – seja de maneira limitada, destinando as tarefas

de desenvolvimento totalmente ao mercado (BANCO MUNDIAL, 2001). Assim, o

papel do Estado seria apenas o de se fazer presente “em um primeiro momento, no

sentido de aumentar as capacidades dos pobres” (UGÁ, 2004, p. 60) e, a partir do

momento em que estes estejam capacitados a entrarem na competição do mercado,

o Estado já não tem mais obrigação alguma em suportar estes indivíduos.

Como vimos anteriormente, uma das prerrogativas das microfinanças é que,

através de pequenos empréstimos, as pessoas podem gerar meios de obtenção de

renda e assim saírem da pobreza. Podemos então considerar que, de acordo com o

discorrido até aqui, as microfinanças capacitam o pobre por meio de empréstimos,

dando a ele a oportunidade de sobrevivência na intensa competição que é o mundo

do mercado. Por outro lado, devemos considerar que o efeito causado pelas

microfinanças na vida de um sujeito é de certa forma negativo, pois ela capacita o

pobre aos olhos do Estado, mas ao mesmo tempo não oferece a ele praticamente

nada além do que já tinha de costume. Elas agem em um sentido controverso: ao

invés delas efetivamente capacitarem as pessoas permitindo que elas percebam

uma melhoria no próprio bem-estar, elas simplesmente agem no sentido de

proporcionar um certo conforto no convívio diário com a pobreza (ROSENBERG,

2010; CONS; PAPROCKI, 2008).

Mas mesmo assim os simpatizantes das microfinanças afirmam que a cada

ano elas tiram milhares de pessoas da pobreza e melhoram as condições de vida de

outras milhões. Embora as estatísticas variem drasticamente, em geral elas apontam

que várias pessoas conseguem ao menos melhorar consideravelmente suas

49

condições de vida através dos serviços de microfinanças. Mas as estatísticas não

apontam quem eram os pobres que emergiram, de onde eles vieram. Giddens

(2007) percebe este problema em diversas estatísticas sobre a desigualdade e a

pobreza, as quais não levaram em conta as circunstâncias econômicas individuais.

O autor compreende que a pobreza não é uma condição permanente, que as

pessoas geralmente entram e saem da pobreza ao longo de suas vidas. Porém, os

estudos que Giddens analisou são referentes a países desenvolvidos, donos de

economias mais sólidas e de uma estrutura que oferece mais possibilidades às

pessoas.

Logicamente, não é esta a situação nos países em transição e

desenvolvimento. Aqui, muitas pessoas nascem na pobreza, morrem na pobreza, e

provavelmente se dará o mesmo nas suas gerações seguintes. Vamos tentar trazer

o quadro de Giddens para dentro da pobreza. É logico afirmar que existem

diferentes níveis de pobreza, mas vamos considerar os dois principais de acordo

com o Banco Mundial. No Relatório do Banco Mundial de 2000/2001, podemos ver

que existem 2,8 bilhões de pobres no mundo, os quais vivem com menos de 2

dólares por dia, e 1,2 bilhão de extremamente pobres, que vivem com menos de 1

dólar por dia (BANCO MUNDIAL, 2001). O que devemos considerar é que estas

pessoas provavelmente não estão em uma posição fixa, de modo que muitos dos

extremamente pobres que estão aqui podem ter sido os pobres do ano anterior, e

vice versa.

De acordo com Giddens (2007), pesquisas realizadas no Reino Unido

detectaram um alto grau de mobilidade de renda entre as pessoas, de modo que

algumas pessoas chegavam ao nível de pobreza daquele país. Porém, estas

pesquisas revelam que a maioria das pessoas conviveram com a pobreza apenas

por breves intervalos, de modo que ela não se caracterizara como algo permanente.

Se aproximarmos esta observação de Giddens ao nosso quadro, podemos assumir

que dentro da pobreza há pessoas pobres que por vezes se encontram

extremamente pobres. Também devemos considerar a possibilidade de que existem

pessoas entrando e saindo da pobreza nos países não desenvolvidos, do mesmo

modo que Giddens observara na Europa Ocidental.

Desta relação, concluímos que as microfinanças são realmente efetivas até

50

certo ponto. Podemos assumir que as pessoas que estão acostumadas a viver na

pobreza – em oposição à extrema pobreza – potencialmente acabam voltando para

sua situação anterior após passarem por uma época de crise. E o mesmo é válido

para aquele que não é pobre e acaba experimentando a pobreza. Assim, podemos

considerar que as microfinanças são ferramentas efetivas para estas pessoas,

dando apoio a elas para poderem voltar às suas condições anteriores após um

momento de privação de suas capacidades – no sentido dado por Sen –, e

provavelmente é assim que seja.

Na mesma medida, podemos considerar que as microfinanças são realmente

eficientes como apontam as estatísticas. Como a pobreza é extremamente instável,

não sabemos quantas dessas pessoas entraram e saíram da pobreza – e da

extrema pobreza – repetidamente, pelo fato destas pesquisas não considerarem a

realização individual da qual Giddens tratara a pouco. Mas por outro lado, devemos

considerar que várias pessoas que estão na pobreza – bem como na extrema

pobreza – permanecem estagnadas – ou conseguiram sair da extrema pobreza mas

não passaram da pobreza. Não temos evidências de que situação existe e nem que

estas pessoas acabam sendo prejudicadas, mas podemos fazer algumas

considerações neste sentido.

Primeiro, podemos considerar que como elas não conseguem utilizar as

microfinanças para saírem da pobreza, acabam entrando em ciclos de dependência

pelos motivos que já citamos anteriormente. São também aquelas pessoas que

utilizam os empréstimos apenas para estabilizarem o consumo, pois eles não

contribuem com o aprimoramento de suas condições de vida. Podemos ir mais além,

se considerarmos que elas não alcançaram o sucesso através das microfinanças e

agora são prejudicadas em uma situação onde políticas públicas foram

abandonadas, precisando agora financiar suas necessidades mais básicas.

De acordo com Giddens (1998), o neoliberalismo pressupõe que pessoas que

tenham habilidade e determinação podem assumir posições na sociedade de acordo

com suas capacidades. Isto justificaria uma sociedade onde o mercado livre cria

várias desigualdades econômicas, pois cada um é responsável por si e todos podem

alcançar o sucesso. As microfinanças, por sua vez, apenas colaboram com o

agravamento deste quadro.

51

Se apresentam como instrumentos que dão capacidade às pessoas para

sobreviverem, e o diferencial para superarem a pobreza seria justamente a

habilidade e a determinação de cada um em melhor aproveitar os empréstimos. O

Banco Mundial recomenda que o Estado cuide apenas de seus incapazes (UGÁ,

2004), e ele faz isso fortalecendo as microfinanças, as quais não capacitam estes,

mas faz parecer com que estejam capacitados. Percebemos aqui um círculo vicioso.

Algumas pessoas entram e saem da pobreza, outras só veem sua situação piorar.

Como o neoliberalismo considera a desigualdade necessária para o bom

funcionamento da economia como um todo (ANDERSON, 1995), podemos dizer que

as microfinanças têm um papel de destaque aqui. Os governos, por sua vez, se

isentam de qualquer responsabilidade pela pobreza ou pela geração dela.

Vemos aqui que a partir do momento em que o Estado vê estas pessoas

como capacitadas – competitivas no mercado –, ele simplesmente não se vê mais

obrigado a suportá-las. Assim, podemos assumir que as microfinanças colaboram

com a formação de um quadro onde o Estado, não tendo a obrigação – e nem

mesmo a atribuição – de suportar o desenvolvimento dos capacitados (UGÁ, 2004),

não se torna responsável nem mesmo pelos pobres – pois agora são vistos como

capacitados. Aquilo que Giddens (2007) viu como um problema a pouco se verifica

aqui: as oportunidades são as mesmas, a distribuição dos resultados não. Assim, o

Estado passa a ver que aqueles que têm acesso às microfinanças têm a mesma

chance que as classes mais abastadas da sociedade. Porém, nas palavras do autor,

“sempre haverá pessoas para quem as oportunidades serão necessariamente

limitadas, ou que são deixadas para trás enquanto outros se saem bem” (Ibidem, p.

256). E podemos considerar que as microfinanças contribuem justamente para isso.

4.6 A exploração de uma classe abandonada

Desta forma, podemos considerar que as microfinanças, antes de

promoverem a ascensão social do pobre, promovem o mercado, o neoliberalismo.

Este que de acordo com Anderson (1995) vê a desigualdade como um objetivo

intrínseco. Sendo assim, considerando as microfinanças como políticas neoliberais,

não podemos percebê-las como mecanismos que buscam melhorar as condições de

52

vida dos pobres. De certo modo, podemos considerá-las como mecanismos que

perpetuam a desigualdade necessária ao neoliberalismo, ocultando o problema e

isentando o Estado de qualquer culpa. E como o desemprego é um “mecanismo

natural e necessário de qualquer economia eficiente” (Ibidem, p. 16), podemos ainda

supor que as microfinanças são úteis no sentido de absorver a crescente massa de

desempregados das economias neoliberais, ajudando o Estado a ocultar um

problema que muitas vezes produziu artificialmente, a fim de manter uma economia

saudável de acordo com os padrões neoliberais. Fica então nas mãos do indivíduo –

e da sua capacidade – a sua sobrevivência no mundo do mercado (UGÁ, 2004).

Deste modo, como os Estados devem deixar o desenvolvimento para os

mercados – regidos pelas classes dominantes –, ao mesmo tempo em que se

isentam de qualquer responsabilidade de prover o bem-estar da população,

podemos considerar que as microfinanças acabam fortalecendo a dominação das

classes pobres. As microfinanças são programas neoliberais e, de acordo com

Bresser-Pereira (2009), o neoliberalismo é uma ideologia adotada pelos ricos contra

os pobres e trabalhadores. Conforme constatamos diversas vezes ao longo desta

discussão, elas são mais efetivas na exploração dos pobres do que propriamente na

capacitação deles. Assim, podemos dizer que elas fortalecem o poder das classes

dominantes, sustentando o que Bateman e Chang (2009) constataram ao notar que

as microfinanças contribuem com o silêncio das classes dominadas.

Para aprofundarmos este quadro, podemos levar em consideração uma

discussão de Paul Singer (1996). De acordo com o autor, a Terceira Revolução

Industrial, o momento pelo qual estamos passando, onde a tecnologia cria novos

ramos de produção especializados que exigem níveis mais altos de escolaridade, ao

mesmo tempo em que elimina “grande quantidade dos postos de trabalho ocupados

por operários semi-qualificados” (Ibidem, p. 10), está acabando com o emprego e

com as garantias sociais. Desta forma, as relações de produção caminham para um

sentido onde “uma massa crescente de empregos está mergulhando na

informalidade” (Loco citato), diminuindo salários e acabando com as garantias

trabalhistas. Devemos também levar em conta que o barateamento dos meios de

transporte, proporcionado pelo progresso técnico, permite que a mão de obra de

países distantes, mais barata devido a altos índices de desemprego e legislações

53

trabalhistas frouxas, possam ser exploradas diretamente pelos países

desenvolvidos.

O que proponho é que analisemos este quadro tendo em mente as

microfinanças. Em primeiro lugar, devemos levar em consideração o simples fato de

que as IMFs “emprestam” dinheiro aos pobres. Considerando que estas pessoas

devem trabalham para pagar os empréstimos – mesmo que por vezes tenham que

apelar a outras IMFs para pagarem suas prestações11 – e este trabalho é

frequentemente informal, podemos considerar que as microfinanças colaboram com

o aumento deste tipo de trabalho, induzindo o fim das garantias trabalhistas das

classes pobres. Em seguida, devemos relembrar que o custo de manutenção de

uma IMF é extremamente baixo – devido principalmente à estrutura de grupos

solidários, geridos pelos próprios mutuários –, e infinitamente menor do que o de

uma grande indústria de produção.

Queremos chegar no seguinte ponto: as microfinanças se constituem como

um meio extramente barato e eficiente de se explorar as classes dominadas.

Dizemos isto pelo fato de que os próprios mutuários se responsabilizam em

encontrar um meio rentável, investir o dinheiro, recuperar o dinheiro através do

trabalho e ainda retornar altos lucros – em forma de juros altos, garantidos por eles

mesmos através dos grupos solidários – ao investidor estrangeiro. Este, por sua vez,

investe em empreendimentos estabelecidos em terras longínquas sem sair de casa,

sem se preocupar com a construção de centros de produção, com o transporte da

produção – utilizando nosso ágil transporte físico proporcionado pelo progresso

técnico – e com o comércio da produção, pois todas estas etapas já foram

cumpridas pelo próprio mutuário. O investidor faz apenas uma aplicação em um

fundo de microfinanças e espera por um tempo até que o pobre tenha trabalhado o

seu dinheiro, e tudo isso proporcionado pela revolução tecnológica.

Assim, podemos concluir que as microfinanças não só fortalecem os quadros

de dominação e exploração das classes pobres, mas se apresentam como uma

nova tática de exploração da força de trabalho destas classes. Uma exploração onde

11 Aqui devemos considerar que os mutuários paguem boa parte de suas dívidas através do trabalho, ou então o sistema de microfinanças, sobrevivendo da transferência de recursos de uma IMF à outra, em algum momento não teria mais como se sustentar. Analisar esta possibilidade não entra em questão na presente discussão, mas podemos constatar que as grandes instituições de microfinanças crescem de maneira muito sustentável a cada ano.

54

o capitalista nem sequer tem a necessidade de se preocupar com gastos estruturais

e de produção, os quais simplesmente são delegados ao pobre. Este, por sua vez,

tem a obrigação de fazer o dinheiro render de acordo com as taxas impostas pelas

IMFs. O capitalista, o trabalho de recolher e usufruir dos frutos. Podemos assim

considerar que as IMFs representam, acima de qualquer questão ideológica, o

interesse do meio privado dos países desenvolvidos, que visa tão somente a

obtenção de lucros sobre as classes pobres. Bresser-Pereira (2009) foi muito

coerente quando constatou que nos últimos 30 anos uma “coalizão de ricos rentistas

e de uma classe média de brilhantes profissionais financeiros usou o neoliberalismo

como instrumento ideológico para se enriquecer” (Ibidem, p. 15). Podemos situar as

microfinanças exatamente aqui e, muito mais além, outras inúmeras instituições

neoliberais, possivelmente de natureza tão exploratória quanto a das microfinanças.

55

5 CONCLUSÃO

A emergência dos programas de microfinanças é relativamente recente,

datando a pouco mais de 30 anos atrás. Desta forma, estudos que as tomem como

tema central fora do âmbito da Economia se mostram poucos, de modo que o tema

fora pouco discutido pelas Ciências Sociais até o momento. Mas muito além de

representarem números e equações, as microfinanças representam a esperança de

milhões de pessoas ao redor do globo, e o mau uso desta ferramenta tende a gerar

graves consequências. Um exemplo do problema é o que Bateman e Chang (2009)

constataram na Índia: aproximadamente 160 mil fazendeiros se suicidaram entre

1997 e 2006, devido ao crescente débito que viam ao entrarem nos intermináveis

ciclos de dependência.

Porém, dentre os trabalhos de cunho sociológico ou antropológico – que

constituem a maioria em nossa área – uma boa parte tende a ser parcial, figurando

as microfinanças como ferramentas totalmente positivas, apresentando-as como a

solução da pobreza no mundo. Diversos podem ser os motivos daqueles que

publicam tais trabalhos. Por sua vez, os trabalhos publicados pela Ciência Política

podem ser considerados os mais satisfatórios no sentido de uma análise crítica das

microfinanças. Estes em geral buscam analisar as reais interferências das

microfinanças nas políticas de Estado, em geral colocando-as em um contexto

neoliberal. Tomando estes estudos por base, podemos perceber o quanto as

microfinanças são afins do neoliberalismo. Partimos deste pressuposto, a fim de

descobrir como que elas agem no sentido de inculcar esta ideologia às nações em

transição e desenvolvimento, para então percebermos como elas afetam a

sociedade.

Ao longo do trabalho, procuramos realizar um constante diálogo entre os

diversos estudos adotados de referência à nossa discussão. Dentre as conclusões

que pudemos tirar ao longo deste processo, a principal é que as microfinanças têm

um potencial efeito negativo para a sociedade. Podemos considerar que elas são

basicamente a mercantilização da pobreza. Muito antes das microfinanças

proporcionarem um meio pelo qual pessoas pobres melhoram suas condições de

56

vida e saem da pobreza, percebemos que elas simplesmente ajudam estas pessoas

a conviverem com a situação. Esta ação poderia ser considerada positiva, se não

escondesse todo um imbricamento que contribui com a perpetuação da dominação

das parcelas marginalizadas da sociedade.

Esta perpetuação se dá por diversas formas, basicamente mantendo os

pobres na situação em que se encontram. Em primeiro lugar, vimos que os

mutuários entram frequentemente em ciclos de dependência dos quais dificilmente

saem. Quando não conseguem pagar a prestação de um empréstimo, é comum que

tomem empréstimos de outras instituições a fim de quitarem aqueles que estão em

débito. A obsessão pelo pagamento dos empréstimos por parte das instituições

acaba submetendo o pobre a situações constrangedoras, e muitas vezes são seus

agentes de crédito que pressionam os mutuários para que tomem novos

empréstimos.

Percebemos também que os grupos solidários são muito mais solidários com

as instituições de microfinanças do que com os próprios mutuários. Conforme

pudemos constatar, eles barateiam os custos de operação dos empréstimos,

proporcionando uma rápida expansão e uma receita considerável às instituições.

Verificamos também que o objetivo principal das instituições é simplesmente a

geração de receita, seja para se manterem autossustentáveis, seja para

sustentarem seus executivos e investidores.

Finalmente, no que diz respeito às relações entre as microfinanças e o

Estado, pudemos notar que elas frequentemente assumem o papel deste perante às

populações pobres. O neoliberalismo pressupõe que o desenvolvimento social deva

ser liderado pelo mercado, e é exatamente assim que as microfinanças agem. Aos

Estados, constantemente pressionados pelas organizações internacionais a

desregulamentarem suas economias, resta a tarefa de liberarem o mercado – e

deste modo as microfinanças – de modo que este possa atuar de maneira mais livre

na sociedade. Ao mesmo tempo, o Estado não pode induzir o desenvolvimento

social e nem capacitar as pessoas. Portanto, podemos concluir que as microfinanças

estimulam a privatização dos serviços de bem-estar, antes providos pelos Estados

através de políticas públicas.

Em seguida, passamos a nossas próprias inferências e análises tomando por

57

base trabalhos publicados por Giddens e Bresser-Pereira. Nossa primeira

constatação fora que as diversas organizações que representam os interesses das

grandes economias, representadas principalmente pelo Banco Mundial em nosso

trabalho, se utilizam das microfinanças para imporem políticas neoliberais aos

Estados que dependem de seus recursos. Isto se confirma na medida em que estes

órgãos fornecem recursos para as microfinanças e estas passam a ter um papel de

maior destaque nas políticas de desenvolvimento social.

Para que um país receba recursos para o desenvolvimento social, ele deve

promover programas de microfinanças. Para que estes programas possam se

estabelecer, o governo deve realizar uma série de alterações em suas

regulamentações, de modo que as microfinanças possam operar. Assim, elas

contribuem para que o mercado aos poucos passe a assumir o que antes era

domínio das políticas públicas, ao passo que o Estado abandona diversas de suas

políticas sociais.

Em seguida, vimos que as instituições de microfinanças estão muito mais

interessadas em gerar receitas do que em efetivamente promoverem o

desenvolvimento social. Deste modo, os pobres não recebem serviços adequados e

se encontram ainda mais submissos às classes dominantes, pois não veem nenhum

progresso em suas condições de vida. Mais ainda, ficam dependentes de uma

instituição gerida pelo mercado, controlado por estas mesmas classes dominantes.

Mas esta não é a única forma das microfinanças contribuírem com a perpetuação e

a dominação da pobreza.

O neoliberalismo pressupõe que pessoas que tenham a capacidade

necessária para concorrer no mercado não precisam da assistência do Estado.

Vimos então que as microfinanças agem no sentido de capacitar as pessoas, mas

apenas aos olhos do Estado. Na verdade, as pessoas continuam dependentes de

assistência, mas os governos se isentam de qualquer responsabilidade atribuindo

ela ao próprio indivíduo: caso este não obtenha sucesso, é por incompetência

própria.

Finalmente, podemos considerar as microfinanças como uma nova forma de

explorar a força de trabalho das classes baixas, e isto de forma mais profunda do

que em uma indústria de manufatura, por exemplo. O capitalista fornece dinheiro ao

58

pobre e este se responsabiliza por todas as etapas da produção, da escolha de uma

atividade rentável até a comercialização do produto ou do serviço. O investidor então

recolhe um lucro considerável sob a forma de juros muitas vezes exorbitantes.

Constatamos insistentemente ao longo desta discussão que as microfinanças

têm mais efeitos negativos do que positivos, submetendo as parcelas pobres da

população à mercê da especulação capitalista. Isto em certa medida é verdade, mas

devemos considerar que analisamos as microfinanças em um contexto neoliberal.

Assim, o que constantemente criticamos não foi as microfinanças em si, mas como

elas são utilizadas por uma ideologia de ricos contra pobres, o neoliberalismo.

Logicamente, em um contexto destes, qualquer ideia adotada, por mais humanitária

que seja, pode ser completamente distorcida.

Para Bresser-Pereira (2010), a hegemonia neoliberal, após o crash de 2008,

provavelmente está muito próxima de encontrar seu fim. Talvez agora o mundo volte

a considerar os ensinamentos de Keynes, que por tantos anos lideraram o maior

crescimento da história do capitalismo. Provavelmente isto se dará através da

Terceira Via, a nova onda social-democrata que Giddens tanto promove, que aos

poucos assume o centro das atenções.

As microfinanças tem aqui um grande potencial. Nas mãos de um mercado

desregulamentado, elas são muito mais efetivas em gerar receitas do que em ajudar

pessoas pobres. Talvez nas mãos de um governo mais forte, devidamente

regulamentadas, elas venham exercer devidamente o papel que tanto contestam. Se

tornem um apoio às famílias pobres para que possam realmente empreender e

melhorarem suas vidas.

Mas também devemos considerar que não é apenas o acesso ao dinheiro que

traz prosperidade. Se fosse este o caso, com um cartão de crédito qualquer

indivíduo de classe média com a capacidade de empreender se tornaria milionário.

Programas de microcrédito devem vir juntos com educação, saúde e oportunidades.

O relatório da ONU que citamos algumas vezes em nossa discussão prevê que as

microfinanças devem vir acompanhadas de serviços básicos como a educação

(1998b), mas poucas IMFs oferecem algum serviço que ensine as pessoas a

empreender. E quando oferecem, conforme Bateman e Chang (2009) constataram,

incentivam as pessoas a praticarem as mesmas atividades a que estão

59

acostumadas, as quais nunca sustentariam um padrão de vida melhor.

Portanto, as microfinanças não tem utilidade alguma para o pobre se não

forem apoiadas por um Estado forte, que proporcione as ferramentas mais básicas

para a prosperidade de seu povo. Ao invés de oferecermos dinheiro ao pobre em um

mundo competitivo e cruel, onde queremos que ele esteja em desvantagem para

assim largarmos na dianteira e conseguirmos as melhores posições em uma corrida

injusta e desumana, devemos oferecer a ele oportunidades. Devemos proporcionar

uma educação universal e de qualidade, para que ele possa fazer o melhor uso

possível do dinheiro que colocamos em suas mãos. E apenas a educação não

basta: devemos dar ao pobre a oportunidade de melhorar sua vida, de utilizar o

conhecimento a seu favor. As microfinanças podem ser esta oportunidade. E apenas

a partir deste momento é que poderemos considerá-las dignas do respeito que têm

hoje.

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