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UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ-UFPI CAMPUS SENADOR HELVIDIO NUNES DE BARROS A COLUNA PRESTES: as marcas da passagem dos Revoltosos no inconsciente coletivo dos habitantes do Tabuleiro dos Pio (1924-1926) PICOS, PI 2013

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1

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PIAUÍ-UFPI

CAMPUS SENADOR HELVIDIO NUNES DE BARROS

A COLUNA PRESTES: as marcas da passagem dos Revoltosos no

inconsciente coletivo dos habitantes do Tabuleiro dos Pio (1924-1926)

PICOS, PI

2013

2

LEIANE PIO BARROS

A COLUNA PRESTES: as marcas da passagem dos Revoltosos no

inconsciente coletivo dos habitantes do Tabuleiro dos Pio (1924-1926)

Monografia apresentada ao curso de Licenciatura

Plena em História, do Campus Senador Helvídio

Nunes de Barros, da Universidade Federal.

Orientador: Dr. Johny Santana de Araújo

PICOS, PI

2013

3

AUTORIZAÇÃO PARA DIVULGAÇÃO NO SITE

Eu, LEIANE PIO BARROS, abaixo identificado (a) como autor (a), autorizo a biblioteca da

Universidade Federal do Piauí a divulgar, gratuitamente, sem ressarcimento de direitos autorais, o

texto integral da publicação abaixo discriminada, de minha autoria, em seu site, em formato PDF,

para fins de leitura e/ou impressão, a partir da data de hoje.

Picos-PI, 17 de abril de 2013.

FICHA CATALOGRÁFICA

Serviço de Processamento Técnico da Universidade Federal do Piauí Biblioteca José Albano de Macêdo

B277c Barros, Leiane Pio.

A Coluna Prestes:as marcas da passagem dos Revoltosos no inconsciente coletivo dos habitantes do Tabuleiro dos Pio (1924-1926). – 2013.

CD-ROM : il. ; 4 ¾ pol. (58p.) Monografia(Licenciatura Plena em História) – Universidade

Federal do Piauí. Picos-PI, 2013. Orientador(A): Prof. Dr. Johny Santana de Araújo 1. Tenentismo. 2. Coluna Prestes. 3. Memória. 4.

Tabuleiro dos Pio I. Título. CDD 981.812 2

4

5

AGRADECIMENTOS

Meu primeiro agradecimento faço a Deus. Obrigado por minha existência, por estar

comigo sempre, me orientar e mostrar que tudo que sou e tudo que vier a ser é dádiva adquirida

de tua vontade e não minha. Não posso ver seu rosto, mais sinto tua presença em minha vida. Sua

luz ilumina meu caminho e é nele que acredito.

Agradeço a todas as pessoas que, de alguma maneira, colaboraram na construção desse

trabalho:

A meu marido Fernando, que enfrentou comigo desde o primeiro momento todas as

dificuldades. Sei que foram várias as vezes que você se dedicou a nossa família, desempenhando

ao mesmo tempo papel de pai e mãe, quando eu ficava ausente. Você mostrou companheirismo

nas horas mais necessárias. Sou grata por suas valorosas “dicas”, sua total sinceridade quando te

pedia opinião. Obrigada por ter tido paciência e compreensão quando mais precisei. Minhas

filhas e você são o maior presente que a vida me deu.

A meus pais, referências em minha vida, os responsáveis por formar a personalidade que

tenho hoje. Obrigada por acreditarem em mim, me apoiarem e estarem comigo em todas as horas.

A minha avó Maria Do Carmo que me acompanhou até o povoado Tabuleiro dos Pio. A

senhora foi maravilhosa, desempenhou um papel fundamental no trabalho, foi minha parceira.

A meu orientador Johny que acreditou no meu trabalho desde o primeiro instante.

Obrigado por seu incentivo e apoio. “Quando crescer, quero ser igual ao senhor”.

A professora Francelina Macedo que se disponibilizou e cedeu entrevista para o trabalho,

além de me receber gentilmente em sua casa sempre que precisei.

A minha saudosa amiga Oligiane, não poderia deixar de agradecer. Sempre esteve

comigo, quando a aflição batia, era com ela que compartilhava, sempre me enchia de palavras

positivas, me escutava e nesse momento foi importante poder contar com você.

A colega Wellika Aparecida que me emprestou seus livros várias vezes. Obrigada.

6

A todos os depoentes deste trabalho que cederam entrevistas e me receberem

agradavelmente em suas residências, sem vocês não teria sido possível realizar esse trabalho.

A todos, meus sinceros agradecimentos, torçam por mim, estou apenas dando os

primeiros passos de minha carreira.

7

DEDICATÓRIA

Este trabalho é dedicado a minha família,

especialmente, ao meu marido, que demonstrou

companheirismo nas horas mais necessárias, as

minhas filhas que são minha fonte de inspiração e

a meus pais que sempre acreditaram em mim.

8

A história parece um cemitério em que o espaço é

medido e onde a cada instante é preciso encontrar

lugar para novas sepulturas. (Maurice

Halbwachs)

9

RESUMO

A Coluna Prestes é referência quando trabalhamos a idéia de política partidária de esquerda, visto

que foi uma manifestação contra o abuso de poder e contra as desigualdades sociais do país.

Agora, a essa História faltam ressaltar acontecimentos relevantes acerca do assunto. Por isso, o

objetivo do trabalho é analisar as marcas da Coluna Prestes, sua passagem em Picos e Tabuleiro

dos Pio no período de 1924-1926. Usamos como fonte a memória de quem viveu na época da

Coluna e a transmitiu na condição de tradição oral antes de partir. Utilizamos assim a História

Oral e conceitos construídos por Maurice Halbwachs sobre Memória Coletiva, e Eclea Bósi

relacionados à memória e narrativas de velhos, visto que foram coletadas entrevistas com os

descendentes mais velhos da família Pio, que guardaram no inconsciente coletivo um episódio

que marca de forma negativa a passagem daqueles homens e mulheres, que para eles ficaram

conhecidos como “revoltosos”. Para compreender o que significou a Coluna buscamos ainda uma

revisão bibliográfica sobre sua formação e circunstâncias que a determinaram.

Palavras-Chaves: Tenentismo; Coluna Prestes; Memória; Tabuleiro dos Pio.

10

ABSTRACT

The Coluna Prestes is a reference work when the idea of party politics of the left, since it was a

protest against the abuse of power and against social inequalities in the country. Now, the missing

highlight this history relevant events on the subject. Therefore, the objective of this study is to

analyze the marks of the Coluna Prestes, its passage in Picos e Tabuleiro dos Pio in the period

1924-1926. We use memory as a source of whom lived at the time of the Coluna and passed on

condition of oral tradition before leaving. We use well the Oral History and concepts built by

Maurice Halbwachs on Collective Memory, and Ecléa Bosi related to memory and narratives of

elderly, since interviews were collected with the descendants older family Pio, who kept in the

collective unconscious that one episode mark negatively the passage of those men and women

who were known to them as "rebels". To understand what the Coluna meant still seek a literature

review about your background and circumstances that determined.

Keywords: Tenentismo; Coluna Prestes, Memory; Tabuleiro dos Pio.

11

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 12

1 1 – O TENENTISMO: A GÊNESE DA COLUNA PRESTES 16

1.1 A Revolta do Forte de Copacabana 19

1.2 O Levante de São Paulo, 1924 20

2 – UM VAZIO HISTORIOGRÁFICO: A PASSAGEM DA COLUNA

PRESTES PELO POVOADO TABULEIRO DOS PIO

24

2.1 Um Desconhecido Conhecido: Os Revoltosos em Tabuleiro dos Pio 28

3 – A NARRATIVA DOS MORADORES 30

3.1 As marcas no local e no inconsciente 37

CONSIDERAÇÕES FINAIS 51

REFERÊNCIAS 53

ENTREVISTADOS

55

APÊNDICES 56

12

INTRODUÇÃO

Dentre os muitos temas de considerável importância que compõem o quadro da história

política brasileira, desperta-me o interesse em pesquisar o processo histórico no qual se insere a

Coluna Prestes.

Os livros que falam sobre o assunto colocam-na como movimento de libertação,

moralidade, igualdade e transformação social. Um empreendimento tomado pela classe militar

tida como rebelde, que insatisfeita, lançou-se contra o governo do então presidente Arthur

Bernardes, defrontando com as forças oligárquicas1, sendo considerado um sinônimo de

resistência social. Porém dentro dessa ideologia2, colocada sempre sobre olhar positivo, falta

acrescentar fatos que fizeram parte desse momento e que, no entanto, não estão ocultos,

precisando ser mais explorados, por isso a pesquisa foi desenvolvida, com o intuito de aprofundar

questões que se relacionam a esse momento histórico.

Analisaremos as versões que existem sobre o movimento, porém sobre o olhar de quem

viveu o momento e o transmitiu na condição de Tradição Oral antes de partir.

Sendo assim, tenho fascínio pelo assunto, porque desde criança ouvi várias narrativas

serem contadas pelos familiares mais velhos, a respeito de uma grande revolta que havia passado

na cidade de Picos e pelo povoado Tabuleiro dos Pio, local de descendência de minha família.

A grande revolta a qual eles se referiam foi na verdade a passagem da Coluna Prestes, que

na década de 1920, passou duas vezes nessa região e em uma delas deixaram rastros de medo,

dor, morte e sofrimento, visto que travaram combate com civis, inclusive da família Pio, o que

teria gerado um grande desentendimento ocasionando a morte de três pessoas, sendo duas da

família Pio e um integrante da própria Coluna.

As marcas da morte e os relatos fizeram com que esse fato sempre estivesse presente na

minha memória, e com o passar do tempo, aquela curiosidade de criança, foi sendo alimentada, e

a idéia de procurar saber mais sobre a história dos revoltosos não saiu de minha mente.

1 A Coluna Prestes. Disponível em:

http://www.eunapolis.ifba.edu.br/informatica/Sites_Historia_EI_31/tenentismo/PG2.html, acesso em 30/03/2013. 2 Idem

13

Anos mais tarde, durante o ingresso no curso de história, encontrei oportunidade de falar,

estudar e pesquisar sobre o assunto. O destino quis que me tornasse historiadora, sendo este um

privilégio, o qual carrego com orgulho. A História que sempre esteve presente nas falas de meus

familiares, agora se transforma em objeto de estudo de minha pesquisa, sendo assim ao tempo

que trabalho no oficio de historiadora, compreendo mais sobre parte da história de meus

antepassados. Isso torna o trabalho mais delicado, porque sobre mim pesa o fato de está

investigando as minhas raízes, porém no caráter imparcialidade fui criteriosa, o que não

desconfigurou o trabalho.

A possibilidade de estudar essa História, só foi possível devido às contribuições deixadas

pela Escola dos Annales3 que mostrou uma nova modalidade de produção, novas fontes, novas

metodologias e novas abordagens temáticas. Uma nova visão historiográfica, voltada a uma

perspectiva social, valorizando como fonte a tradição oral, a qual foi colocada como metodologia

na elaboração desse trabalho.

Nessas condições a pesquisa foi auxiliada por pessoas que conhecem sobre o episódio

específico. No quesito conceitos, nos apoiamos na História Oral, visto que foram tomados

depoimentos coletados voluntariamente por pessoas mais velhas que moram em Picos e em

Tabuleiro dos Pio, por isso, convém salientar, a importância na análise de depoimentos e na

relação entre História e Memória.

“O avanço da História Oral se encaixa no âmbito das transformações da historiografia

que passou a considerar as experiências particulares, deslocando a análise do geral para

o especifico, enfatizando com isso trajetórias de vida e projetos individuais. O relato

pessoal passou a ser visto como fonte capaz de fornecer importantes dados sobre a

experiência individual coletiva.”4

Ao trabalhar com a questão da memória apoiei-me em conceitos construídos por Maurice

Halbwachs no que se refere à memória coletiva, e a inserção do individuo em grupos e a forma de

manifestar as lembranças.

“Admitamos, contudo, que as lembranças pudessem se organizar de duas maneiras:

tanto se agrupando em torno de uma determinada pessoa, que as vê de seu ponto de

vista, como se distribuindo dentro de uma sociedade grande ou pequena, da qual são

3 SOUSA, Rainer. A Escola dos Annales e o marxismo. Disponível em: http://www.brasilescola.com/historia/a-

escola-dos-annales-marxismo.htm, acesso em 30/03/2013. 4 NASCIMENTO, Francisco de Assis de Sousa. Teatro Dialógico: Benjamim Santos em incursão pela História e

memória do Teatro brasileiro, Niterói 2009 , pg. 18

14

imagens parciais. Portanto, existiriam memórias individuais e, por assim dizer

memórias coletivas. Em outras palavras, o individuo participaria dos dois tipos de

memória.”5

Outra autora que colaborou com o desenvolvimento da pesquisa e serviu de referencial

teórico foi Eclea Bosi, que em seu livro intitulado Memória e Sociedade: lembranças de velhos,

levanta uma questão que é fundamental para compreensão desse trabalho. Ela questiona: Para que

servem os velhos? Servem para lembrar, lembrar muito e lembrar bem. Conclusão simples que

pode ser tirado do seu complexo livro. Ela diz:

“O narrador é um mestre do ofício que conhece seu mister: ele tem o dom do conselho.

A ele foi dado abranger uma vida inteira[...] Seu talento de narrar vem da experiência,

sua lição, ele extrai da própria dor; sua dignidade é a de conta-lá até o fim, sem medo.”6

Tomando por esse caminho entrevistamos as seguintes pessoas: Prof.ª Francelina Macedo,

Srª. Francisca Pio Feitosa, Srª. Maria de Jesus Pio da Silva, Srª. Helena Pio de Sousa Silva, Srª.

Teresa Pio Leal, Srª. Maria do Carmo Pio Borges, Srª. Eva Feitosa Borges, Sr. Manoel Borges

Gonçalves e o Padre José Pio.

A essas pessoas foram feitas as seguintes perguntas referentes à Coluna: O que foi a

Coluna Prestes no seu entendimento, já ouviu algo sobre o assunto? Revoltosos se relacionam

com pessoas boas ou ruins? Quais as marcas deixadas durante a passagem dos Revoltosos nessa

região? Houve reação? Trouxe consequências? Quais?

Discutindo com essa fonte de memória, através dos depoimentos, e buscando averiguar

mais informações, lançamos mão da pesquisa documental como revistas, jornais, livros,

fotografias. Além de uma visita ao museu Ozildo Albano, em Picos e ao acervo particular de

algumas famílias. Todas essas fontes foram essenciais para a realização da análise histórica.

O texto foi organizado da seguinte forma:

No primeiro capítulo fizemos um levantamento biográfico referente à Coluna Prestes e

sua formação, buscando resignificar o contexto da época da Velha República, no intuito de

melhor compreender como e porque se deu a Grande Marcha. No segundo capítulo buscamos

compreender um vazio historiográfico acerca da passagem da Coluna Prestes pelo povoado

5 HALBAWACHS, Maurice. A memória Coletiva; Tradução: Beatriz Sidou.- São Paulo: Centauro, 2006. p. 71.

6 BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos, 3ª edição. São Paulo: Companhia de letras, 1994, p.

480.

15

Tabuleiro dos Pio, analisando particularmente os sinais de um desconhecido conhecido da

população, através das más informações prestadas pelo estado e o poder local como um todo. No

terceiro através da narrativa dos moradores, procuramos identificar as principais marcas no local

e no inconsciente da população.

Sendo assim, a pesquisa terá grande relevância, visto que auxiliará no desenvolvimento da

pesquisa historiográfica, que no caso especifico encontra-se vazio, precisando ser estudado, além

do que servirá para relembrar à sociedade picoense e da comunidade de Tabuleiro dos Pio, o que

significou a passagem da Coluna Prestes compreendendo esse momento histórico, que evidencia

múltiplos olhares sobre um episódio particular e ao mesmo tempo de vital importância para os

estudos da passagem da Coluna Prestes pelo Brasil.

16

1. O TENENTISMO: A GÊNESE DA COLUNA PRESTES

O presente capítulo tem por objetivo mostrar como se deu a origem da Coluna Prestes, o

nosso objeto de pesquisa. Para tal, faremos também uma breve apresentação de outras revoltas,

tais como a Revolta do Forte de Copacabana (1922), a Coluna Paulista (1924), que eclodiram

neste período da nossa história. Neste sentido, pretendemos fazer uma abordagem do surgimento

do Tenentismo que teve como expressão máxima – a Coluna Prestes.

A partir da leitura do livro de Nelson Werneck Sodré intitulado, A coluna Prestes: Analise

e Depoimento7, o livro de Leôncio Basbaum

8 com o título, História sincera da República de

1889 a 1930 e por último, o livro Organizado por Jorge Ferreira e Lucília de Almeida Neves

Delgado9, O Tempo do Liberalismo Excludente: da Proclamação da República à Revolução,

sendo que, deste último será utilizado especificamente o texto intitulado Tenentismo e Crises

Políticas na Primeira República, escrito por, Mário Cléber Martins Lanna Júnior.

Faremos uma breve apresentação do contexto político, econômico e social da sociedade

brasileira no final do século XIX e início do século XX, para tal, a leitura de Nelson Werneck

Sodré nos possibilitou uma observação do contexto econômico da época. Neste sentido,

apresentaremos os aspectos que culminaram em insatisfações por parte de um segmento dessa

sociedade – o setor Militar. Sendo assim, para compreender como se deram tais acontecimentos

se faz necessário situá-los nos quadros da época. E sobre o frenético século XX, Rubem Barboza

vai dizer que, “Há algo que não se pode dize do século XX: que foi um tempo de brumas,

silêncios e mistérios. Tudo nele foi a céu aberto agressivamente iluminado, escancarado e

estridente” 10

.

Na situação mundial, havia dois episódios de repercussão global, o abalo gerado pela I

Guerra Mundial, que, “abalou a estrutura do regime e resultou em nova repartição das áreas

7SODRÉ, Nelson Werneck. A coluna Prestes: Análise e depoimento - São Paulo, Círculo do Livro, s/data.

8 BASBAUM, Leôncio. História sincera da República de 1889 a 1930. São Paulo, Ed. Alfa Ômega, 1975/1976.

9 LANNA JÚNIOR, Tenentismo e Crises Políticas na primeira República. IN: O Tempo do Liberalismo

Excludente: da Proclamação da República à Revolução. FERREIRA, Jorge, DELGADO, Lucília de Almeida

Neves. (Orgs.) -. 2. Ed, Civilização Brasileira, 2006. 10

FILHO, Rubem Barboza. Século XX: uma introdução em forma de prefácio, IN: AGGIO, Alberto e LAUERTA,

Milton ( Orgs.) Pensar o século XX problemas políticos e história nacional da América Latina. São Paulo, Ed.

EDUSP, 2003, p. 16

17

dependentes pelas instituições imperialistas, e a Revolução de Outubro, que abriu a nova era da

história da humanidade e rompeu o monopólio capitalista no mundo” 11

Com o pós-guerra, abriu-

se uma turbulenta fase marcada por crises políticas, financeiras, culturais que romperam com os

velhos padrões. A população brasileira no início deste período estava vivenciando o pós-guerra e,

no plano econômico:

[...] 1920 é o segundo ano após o fim da I Guerra Mundial, que funcionará como barreira

alfandegária acidental, obrigando-nos a produzir muita coisa antes importada: trata-se

nos momentos iniciais da etapa de desenvolvimento industrial que ficaria conhecido

como o de „substituição de importações‟. 12

No entanto, o aumento da exportação não supria o aumento da população. No que tangem

os aspectos do setor agrário, “a superioridade agrícola voltada para o mercado externo – não era,

entretanto, o elemento fundamental da estrutura de Produção – a monocultura”.13

Neste contexto, a crise mundial chega ao Brasil, o que gerou insatisfações nos setores

político, econômico e agrícola, afinal a monocultura do café era a principal fonte de renda do

Brasil, diante desta perspectiva, “em 1920, irrompe a crise mundial que vai afetar as estrutura

econômicas dependentes: como é público e notório” 14

neste momento econômico o capitalismo

estava assolando a fortaleza principal do Brasil – o café, a economia monocultora mostrava

claramente sua deficiência.

O Tenentismo surge dentro destas circunstâncias, somadas ao inconformismo militar,

então, o que se pode afirmar do Tenentismo? Esse movimento era dotado de um reformismo

oriundo da classe média – clero, estudantes, camponeses. Esse movimento surgiu na década de

1920, e é considerado como um marco relevante para se compreender as crises do período

republicano brasileiro. Pode também ser referido como uma “ação política ou a ideologia de uma

ação” 15

.

Para o historiador Lanna Júnior16

esse movimento pode ser compreendido por dois

aspectos: o movimento e a ideologia, sendo assim, para melhor entender a gênese da coluna

11

Idem, Ibidem. P, 10 12

Idem, ibidem, p, 11 13

Idem, Ibidem. p, 11 14

O Estado de São Paulo, 31 de agosto de 1920. Apud, SODRÉ. Werneck. S/d, p. 13 15

HOUAISS, Antônio Vilar. Rio de Janeiro, Ed Objetiva, 2001, p, 2694 Apud: LANNA JÚNIOR, 2006, p. 315 16

Idem, Op. Cit. p. 315

18

através do sistema de ideias que moveu estes revoltosos, faz-se necessário que possamos

compreender que, “relacionadas aos ideais e objetivos que moveram a jovem oficialidade na

década de 1920 e no início da década de 1930, e as questões gerais, relacionadas ao papel das

forças, em específico do exército, na política brasileira” 17

Para Nelson Werneck Sodré, “o reformismo tenentista é a expressão política da pequena

classe média brasileira”. Para compreendermos o Tenentismo faz-se necessário uma apresentação

de outros movimentos importantes, Revolta do Forte de Copacabana e a Coluna Paulista que,

juntas, engrossaram as fileiras dos “revoltosos”. O período que vai desde 1920 a 1927

corresponde a uma fase considerada pelos historiadores como heróica e que neste período

ocorreram movimentos de conspiração contra as oligarquias políticas que dominavam as forças

políticas brasileiras. Com inúmeras insatisfações as classes médias populares acreditavam que as

mudanças que almejavam só poderiam ser “feitas através das armas18

” · Para além de uma luta de

classes insatisfeita com a realidade política e econômica, as lutas que envolveram os levantes

tenentistas foram, segundo o parecer historiográfico de Lanna Júnior:

Fundamentalmente, o Tenentismo se manteve fiel à defesa da ordem e das instituições.

Não tinha uma proposta militarista, no sentido de um governo militar, mas era elitista.

Propunha a mobilização política através da revolução e da entrega do poder para

políticos que eles entendessem como honestos. Caráter elitista que pregava a mudança a

partir de cima.19

Entendemos que para compreendermos as revoltas faz-se necessário toda uma apresentação

do contexto da época, que culminou em inúmeros levantes, que pretendiam revolucionar – afinal

foram várias revoltas que ocorreram, no entanto, fazemos o seguinte questionamento: será que

essas revoltas pretendiam uma transformação através da Revolução para todos os setores da

classe urbana? Ou este movimento era mesmo elitista? Existem algumas correntes que possuem

um viés de entendimento bem diferenciado para compreensão do movimento tenentista.

A primeira, considerada mais tradicional, caracteriza o Tenentismo como um movimento

originário das classes médias urbanas e que pretendiam representar apenas o interesse da pequena

burguesia que neste período se sentia excluída das decisões políticas. A segunda corrente contesta

17

Idem, Op. Cit. p. 315 18

Expressão utilizada pelo historiador LANNA Júnior, op. cit., p. 317 19 Op. Cit. p. 316

19

a absolutização da origem e observa esse movimento a partir do caráter institucional direcionando

os objetivos desse movimento como de interesse institucional militar. Uma terceira corrente

possui uma visão mais global do movimento e leva em conta todos os aspectos observados pelas

correntes acima mencionadas. Anita Leocádia a nosso ver possui uma visão relevante, mas ao

mesmo tempo romântica sobre o tema. Neste sentido:

Dentro dos debates desta temática, merece ser mencionado também o trabalho de Anita

Prestes, que interpreta o Tenentismo como um movimento político-social e a Coluna

Prestes como um movimento da mesma natureza que se transformou numa organização

militar com características populares.20

Entendemos que foi necessário esse mergulho no século XX, para podermos compreender

os aspectos políticos, sociais e econômicos que forjaram o movimento tenentista. Movimento

esse que, como uma colcha de retalhos foi constituído de vários levantes que, uma vez costurados

aqueceram a crise gerada pelas insatisfações dessa sociedade com o poder Republicano deste

período.

1.1 A Revolta do Forte de Copacabana

A revolta do Forte de Copacabana, ocorrida a 5 de julho de 1922 no Rio de Janeiro, fora

constituída por uma conspiração Militar que marchou do Realengo às orlas da Vila Militar. Fez

parte dos primeiros movimentos relacionados ao Tenentismo. “Teria sido a ação mais espetacular

e heróica nos momentos iniciais” 21

· Correspondeu ao movimento que impulsionou outros

levantes contra as tropas legalistas do governo. O Forte de Copacabana foi o cenário onde

ocorreu uma revolta liderada por militares que protestavam contra o governo. Com desejos

revolucionários esses oficiais do exército iniciaram seus combates bombardeando alvos

estratégicos: a ilha de Catanduva, Ilha das Cobras, O Forte do Vigia, o depósito naval e o quartel

general.

20

PRESTES, 1997, Apud: FERREIRA, Marieta Moraes de, e PINTO, Surama Conde Sá. A Crise dos anos 1920 a

1930. IN: O Tempo do Liberalismo Excludente: da Proclamação da República à Revolução. FERREIRA, Jorge,

DELGADO, Lucília de Almeida Neves. (Orgs.) -. 2. Ed, Civilização Brasileira, 2006 p.402. 21

LANNA JÚNIOR, Tenentismo e Crises Políticas na primeira República. IN: O Tempo do Liberalismo

Excludente: da Proclamação da República à Revolução. FERREIRA, Jorge, DELGADO, Lucília de Almeida

Neves. (Orgs.) -. 2. Ed, Civilização Brasileira, 2006. P. 317

20

No entanto, foram retaliados com firmeza e sem piedade pelas forças legalistas do governo.

Permaneceram no forte alguns oficiais, dentre eles, O tenente Newton, O tenente Siqueira

Campos e quatorze soldados – esse grupo protagonizou aquilo que foi considerado pela história,

o feito mais heróico do Tenentismo, “a marcha dos dezoito do Forte”. Como saldo desse combate

truculento os revoltosos, tiveram em suas fileiras a morte de dois de seus combatentes: os

tenentes Nilton Prado, e Mário Carpenter.

Siqueira Campos e Eduardo Gomes sobreviveram aos embates e tornaram-se grandes

líderes do Tenentismo. Outro alvo estratégico desse embate foi a Vila Militar que não rendeu

sucesso para as tropas revolucionárias, tal proeza foi liderada pelo tenente Buys e foi considerada

uma campanha ingênua e logo foi desarticulada. Outro levante se formou em solidariedade à

prisão do tenente Buys, este levante foi constituído por Oficiais e alunos da Escola Militar do

Realengo, foram liderados pelo Coronel Xavier de Brito, lutaram contra as tropas do governo e

foram derrotados.

Sendo assim, entendemos que, “todos esses movimentos não partiam de uma ação conjunta

e sistemática, mas comungavam da mesma motivação, denominadas por eles de „Revolução‟” 22

.

No entanto, percebemos que esses levantes que ocorreram nos períodos de 05 a 08 de julho foram

retaliados pelas forças da República. E o que resultou no final destes embates políticos é que,

“[...] foram julgados e sentenciados pelo artigo 107 do Código Penal, „ considerado como

pretendentes a mudanças violentas da forma de governo e da constituição do país” 23

.

1.2 O Levante de São Paulo, 1924

Esse movimento foi considerado pela historiografia brasileira, como “inaugural dessa fase

do Tenentismo” 24

. Foi uma rebelião que ocorreu na cidade de São Paulo, no período de 5 a 28 de

Julho, o marco principal deste levante foi à expulsão do Governo estadual pelos partidários do

Tenentismo. Foram duramente retaliados pelas forças legalistas, mas utilizaram uma estratégia

22

Idem, op. Cit. p. 319 23

Idem, Op. Cit. p, 319 24

Idem, Op. Cit. p, 319

21

diferente, para não serem completamente aniquilados fugiram em direção ao sul do Estado25

.

Acabaram formando a Coluna Paulista ou Coluna Miguel Costa que durou de julho de 1924 até

agosto de 1925. Encontrou-se com a Coluna Prestes no Sul do Brasil e partiram para o Norte do

Brasil, com ares de aventureiros revolucionários, partiram com desejo de conquista, conquistar o

Brasil desconhecido, ou seja, estes revolucionários partiram com o desejo de expandir o

movimento para o país inteiro.

No entanto, iremos discorrer sobre alguns aspectos que constituíram este movimento.

Segundo Mário Cléber Martins Lanna Júnior26

, “o movimento foi anteriormente articulado pelos

oficiais com a escolha de um chefe, o general Isidoro Dias Lopes e a definição das bases

regionais que foram expressivas em São Paulo e Rio Grande do Sul”.

Possuíam como estratégia ocupar os principais prédios públicos da cidade de São Paulo.

Houve conflitos acirrados entra as tropas da Marinha e do Forte de Itaipu. Houve também, quem

se entregasse sem resistência. No entanto os enfrentamentos entre revoltosos e tropas do governo

ocorreram inexoravelmente. “o movimento objetivava uma revolução nacional, esperava-se

objetivar uma cadeia de revoltas em outras regiões do país, o que derrubaria o Presidente da

República” 27

.

Outros movimentos que ocorreram na Marinha, e em outros Estados, como, Amazonas,

Mato Grosso e Sergipe e no Distrito Federal (RJ) acoplaram-se ao Tenentismo paulista. Vale

ressaltarmos que esses movimentos não foram pensados nem tão pouco planejados, “surgiram por

contágio” 28

. No entanto, esse Tenentismo que se alastrou por outros estados, possuía suas

peculiaridades e semelhanças. No Amazonas esse movimento contou com a ajuda de civis e

possuía um caráter nacionalista popular amazonense. No Rio Grande do Sul esse movimento

possuía vínculo com os oficiais rebeldes da capital paulista.

A Coluna Paulista retirou-se para Foz do Iguaçu, houve uma sublevação no Rio Grande do

Sul, no dia 29. Os Oficiais ocuparam várias cidades do Rio Grande do Sul, dentre elas, Santo

Ângelo, São Luís, Uruguaiana e São Borja. Os revoltosos neste momento foram comandados por

25

Idem, op. Cit p, 319 26

Op. Cit. 320 27

Op. Cit. p, 320/321 28

CARONE, Apud: LANNA JÚNIOR, 2006 p. 327

22

oficias que já possuíam experiência de outros combates Antônio de Siqueira Campos

(sobrevivente da Marcha do Forte) e Luís Carlos Prestes.

Os revoltosos neste momento iniciavam a revolta com uma quartelada. Possuíam com

estratégia básica de combate, “o corte das comunicações, contavam com a requisição de veículos,

combustíveis, automóveis e gênero alimentícios em nome da revolução sempre atentos a

„manutenção da ordem e respeito à propriedade particular‟” 29

. Depois da invasão a cidade era

entregue a um civil. Houve também entre os militares aqueles que se conservaram fiéis às forças

legalistas da República, essas tropas fieis atacaram os revoltosos, com esse ataque os revoltosos

fugiram e se encontraram com a Coluna de Honório Lemos em Caçapava. Diante de tais

circunstâncias os revoltosos possuíam como estratégia os destacamentos móveis que possuíam

missões específicas, porém nem sempre esses destacamentos possuíam êxito, sobre este assunto,

Lanna Júnior cita:

O primeiro destes destacamentos foi liderado por João Alberto e Juarez Távora e a

coluna de Honório Lemos aquele teve a missão de atacar Alegrete e esta, de se dirigir

para Quaraí. O ataque em Alegrete foi Catastrófico por falta de munição [...] As seguidas

derrotas sofridas pelos jovens oficiais obrigaram-nos a concentrar suas forças em São

Luís “esteve, portanto, esta cidade ocupada pelos revolucionários durante o período que

decorre de 29 de outubro a 27 de dezembro quando a mesma foi abandonada para ser

iniciada a grande marcha para o norte. Formava-se em São Luís a Coluna Prestes [...] 30

Liderada por Luís Carlos Prestes a coluna, que levou o nome do seu líder foi a maior

expressão do Tenentismo, viajou rumo ao norte cortando os Estados do Maranhão, Pará, Goiás,

Sergipe e Piauí. A Coluna Prestes foi constituída pelo contingente de dois batalhões: o do Rio

Grande do Sul e de São Paulo, que a partir da marcha para o norte pretendiam expandir suas

ideias revolucionárias e contra a República daquele período.

A Marcha da Coluna trouxe consigo muito mais do que o ideário revolucionário, tornou-se

uma lenda, a sua passagem causava alvoroço pelas populações locais. A estratégia das oligarquias

locais era a de criar uma áurea nebulosa ao redor da Coluna e as notícias inquietantes sobre a

mesma corroboraram com a construção do medo e do pavor das populações a respeito dos

„revoltosos‟ era assim que os integrantes da Coluna Prestes eram conhecidos. Dentro destas

29

CARONE, Apud: LANNA JÚNIOR, 2006 p. 328 30

Idem, op. Cit. p, 328/329

23

circunstâncias a Coluna era repelida pela população que fugia amedrontada. A Coluna foi

também combatida por milícias mercenárias arregimentada pelas forças oligárquica locais,

E contribuía para a pouca simpatia da Coluna com a população rural, e aos pequenos

núcleos urbanos a propaganda do governo, „ que apregoavam não passarem os

revolucionários de um bando desorganizados e mal armado de ladrões, estupradores e

assassinos. Também contribuíam para criar hostilidades à Coluna as potreadas e as

requisições revolucionárias‟, fonte do mito da Coluna e seus poderes sobrenaturais. 31

Diante dos aspectos apresentados surge o questionamento: O que os revoltosos da Coluna

pretendiam? Segundo Basbaum a Coluna deu subsídios ideológicos e possuía os seguintes

ideários:

Convidado a propor um programa de frente único que, a seu ver poderia aglutinar o

povo, e os Revolucionários de 1922 e 1924, e da Coluna com o apoio de seus

companheiros, apresentou os seguintes pontos: voto secreto, alfabetização, justiça,

liberdade de imprensa e organização, melhoria para os operários.32

No próximo capitulo, utilizaremos à memória de nossos entrevistados, que conhecem

sobre a passagem dos revoltosos por Tabuleiro dos Pio, e apoiados em suas lembranças,

reconstituiremos o cenário da época, os atos e atores envolvidos no processo, levando em

consideração, que já são memórias passadas de geração a geração, que foram assimiladas através

de Tradição Oral, visto que os principais envolvidos já morreram, mais antes de partir deixaram

gravados na memória coletiva de seus familiares, por isso tivemos o cuidado em levantar crítica

de confiabilidade.

31

FORJAZ, 1977, p. 100 Apud LANNA Júnior. 2006, p. 334 32

BASBAUM, Leôncio. História sincera da República. São Paulo alfa ômega, 1975/76

24

2 – UM VAZIO HISTORIOGRÁFICO: A PASSAGEM DA COLUNA PRESTES PELO

POVOADO TABULEIRO DOS PIO

O presente capítulo tem como principal objetivo narrar como ocorreu a passagem da Coluna

Prestes no povoado Tabuleiro dos Pio33

. Nessa região, aconteceram fatos relevantes na década de

1920, que ficaram gravados no inconsciente coletivo dos habitantes desse povoado, e que

permanecem vivos em suas memórias, principalmente, entre familiares que perderam parentes

envolvidos em confronto com os integrantes da Coluna Prestes, os quais ficaram conhecidos

nesse momento por “Revoltosos” 34

.

Sendo assim, para compreendermos essa marca entrevistamos um conjunto de pessoas que

residem no povoado, e que estavam dispostos a falar sobre o assunto. Valorizamos a memória

individual visto que colhemos depoimentos isoladamente, e mesmo assim percebemos que entre

eles foi comum a forma de lembrar sobre o ocorrido, seus pontos de vista os insere em conceitos

relacionados a memória coletiva, por isso compartilho com Maurice Halbwachs que diz:

Admitamos, contudo, que as lembranças pudessem se organizar de duas maneiras: tanto

se agrupando em torno de uma determinada pessoa, que as vê de seu ponto de vista,

como se distribuindo dentro de uma sociedade grande ou pequena, da qual são imagens

parciais. Portanto, existiriam memórias individuais e, memórias coletivas [...] Se essas

duas memórias se interpenetram com freqüência, especialmente se a memória

individual, para confirmar algumas de suas lembranças, para torná-las mais exatas, e até

mesmo para preencher algumas de suas lacunas, pode se apoiar na memória coletiva,

nela se deslocar e se confundir com ela em alguns momentos, nem por isso deixaram de

seguir seu próprio caminho, e toda essa contribuição é assimilada. 35

Na construção do trabalho, foi necessário compreender conceitos relacionados à História Oral, por

isso lanço a citação de Lucília de Almeida Neves Delgado, que desenvolveu pesquisas utilizando a mesma

metodologia.

É um procedimento metodológico que busca, pela construção de fontes e documentos,

registrar, através de narrativas induzidas e estimuladas, testemunhas e testemunhos,

versões e interpretações sobre a história em suas múltiplas dimensões: factuais,

33

Tabuleiro dos Pio é um povoado pertencente ao município de Picos-PI, localizado ao Norte da cidade, distante 22

Km. Comunidade tipicamente rural, habitada por descendentes mais velhos da família Pio, que na década de 1920 foi

atacada pelos integrantes da Coluna Prestes. 34

Denominação dada aos integrantes da Coluna Prestes no Norte e Nordeste. PRESTES, Anita Leocádia. A Coluna

Prestes.- 2. ed. – São Paulo: Editora Brasiliense, 1991.p.235. 35

HALBWACHS,Maurice. A memória Coletiva; Tradução: Beatriz Sidou. - São Paulo: Centauro, 2006. p. 71.

25

temporais, espaciais, conflituosas, consensuais. Não é, portanto, um compartimento da

história vivida, mas um registro de depoimentos sobre essa história vivida [...] Portanto,

a História Oral é um procedimento, um meio, um caminho de produção do

conhecimento histórico.36

Fazendo uso dessa metodologia, e na condição de tradição oral, tentaremos esclarecer ou a

vir tornar público um episódio que faz parte da história da comunidade Tabuleiro dos Pio, e que,

no entanto, estar desconhecido pela historiografia oficial.

Contudo, para apresentar essa parte da história, fez se necessário embasar a pesquisa nas

seguintes questões: O que sabe sobre a passagem dos revoltosos em Tabuleiro? Quem ou o que é

o revoltoso? Como foi a passagem desses revoltosos no povoado? O que cometeram? Toda ação

corresponde a uma reação, no caso, qual a reação ao revoltoso? Quem foi mais atingido quando

os revoltosos passaram nesse povoado?

Essas questões foram colocadas ao grupo de entrevistados.

Os depoimentos foram coletados por meio de pessoas mais idosas que assimilaram

conhecimento através de narrativas contadas por pais, avôs etc. Maurice Halbwachs cita o

seguinte referente ao assunto:

A criança também está em contato com seus avós, e através deles remonta a um passado

ainda mais remoto. Os avós se aproximam das crianças, talvez porque, por diferentes

razões, uns e outros se desinteressam pelos acontecimentos contemporâneos em que se

prende a atenção dos pais. March Bloch diz: “Em sociedades rurais, é bastante comum

que, durante o dia, quando o pai e a mãe estão ocupados nos campos ou nos mil

trabalhos da casa, as crianças pequenas sejam confiadas á guarda dos „velho‟ e é destes,

tanto e até mais do que dos pais, que estas recebem o legado de costumes e tradição de

todo tipo”(“Mémoire collective, traditions et coutumes”, Revue de synthèse historique,

1925, nºs 118-120, p. 79).37

Utilizando esse meio procuremos nos embasar em autores que já trabalharam e trataram

sobre o assunto, então verifico semelhança com o trabalho de Eclea Bósi, que em seu livro

Memória e Sociedade: Lembranças de velhos trabalhou com narrativas de pessoas mais velhas.

Ela diz:

36

DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História Oral, Memória, Tempo, Identidade. Belo Horizonte:

Autêntica, 2006. P. 15-16. 37

HALBWACHS Maurice. A Memória Coletiva (Fichamento). Disponível em: http://issofoi.blogspot.com.br/,

postado em 10 de fevereiro de 2009, acesso em 05/04/2013.

26

A memória não é um sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do

passado, tal como foi e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma

imagem construída pelos materiais que estão agora, à nossa disposição, no conjunto de

representações que povoam a nossa consciência atual. Por mais nítida que se pareça a

lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na

infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se

e, com ela, nossas ideias, nossos juízos de realidade e de valor. O simples fato de

lembrar o passado no presente exclui as identidades de um e do outro e propõe a sua

diferença em termos de ponto de vista. (p. 55)38

Seu livro valoriza experiências das pessoas mais idosas, suas contribuições. Na velhice, as

pessoas tornam-se a memória da família, do grupo, da sociedade.

Tomando o mesmo caminho que a autora Eclea Bósi, nos colocamos a ser ouvintes sobre o

episodio de Tabuleiro dos Pio.

Fomos ao mesmo tempo sujeito e objeto. Sujeito enquanto indagávamos, procurávamos

saber. Objeto enquanto ouvíamos , registrávamos, sendo como um instrumento de receber

transmitir suas lembranças. (p. 38)39

Ao ouvir os relatos dessas pessoas, nasceu imediatamente o interesse em saber mais sobre o

assunto, e a curiosidade de nos perguntar: Por que os narradores descrevem os integrantes dessa

forma? Por que cometeram essas ações nesse povoado? Por que as ações dos integrantes da

Coluna, em Tabuleiro dos Pio, não condizem com os seus ideários? Por que feriram o código de

conduta do movimento? Porque não está contado nos livros que tratam do assunto? Porque a

historiografia oficial não escreveu sobre o episodio?

A busca em procurar biografia para responder as nossas indagações sobre a passagem da

Coluna Prestes em Tabuleiro dos Pio foi constante, infelizmente não encontramos tantas fontes

escritas sobre o assunto, isso nos coloca a refletir sobre o vazio historiográfico que existe

referente a esse episódio.

A pesquisadora Wellika Aparecida40

, que tratou sobre o mesmo assunto, afirma que

também enfrentou a mesma dificuldade, em seu trabalho ela diz:

Após termos realizado uma breve revisão historiográfica sobre o tema, podemos

observar que existe um vazio histográfico com relação à passagem da Coluna Prestes

38

BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembrança dos velhos. 3. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 55. 39

Idem, p. 38 40

APARECIDA Wellika. A passagem da Coluna Prestes por Picos. Monografia de Graduação apresentada junto à

Universidade Federal do Piauí em 2012.

27

pela cidade de Picos e regiões, especialmente no que diz respeito às representações

populares sobre a Coluna e os revoltosos (p. 29).

A vasta produção historiográfica existente relata sempre a marcha da Coluna como digno de

apreciação, visto que é caracterizada como movimento de libertação, que lutava contra o governo

e as injustiças sociais do Brasil. Coloca sempre a figura heróica de Luis Carlos Prestes, o

Cavalheiro da Esperança, e sua belíssima atuação.

Prestes virou mito: sua figura passou a encarnar todas as esperanças das populações

urbanas, ansiosas por mudanças, que não sabiam definir ao certo, mas confiantes de que

o Cavaleiro da Esperança saberia conduzir o país pelo caminho de sua libertação e

prosperidade.” (p. 49)41

Compreendo essa questão de formar uma visão heroica a Prestes a partir da leitura do texto

de Manuel Domingos, ele afirma:

Um dos aspectos mais notáveis desse movimento foi a sua capacidade de apresentar

heróis ao país. [...] Os acontecimentos geradores de heróis são momentos privilegiados,

intensos, da elaboração ideológica. Herói é símbolo, e os símbolos são gerados (ou

“construídos”, na expressão usada por Lucien Febre nos anos 20 e posta em moda, na

atualidade, por Derrida) num processo complexo, multifacetário, onde a criatividade

humana está potencializada como resultado da agudização de conflitos sociais. [...] O

herói tem obrigatoriamente algo fantástico, de sobrenatural. Assim como seu oposto, o

vilão pode e deve ter traços de homem comum, jamais por ser um homem comum. Do

contrário não cumpre o papel sóciopolítico a que estar destinado: o de galvanizar

atenções, portar bandeiras, legitimar ordens estabelecidas, representar causas. Ou ainda

de servir de modelo, inspirar comportamentos paradigmáticos a membros de um

coletivo. Historicamente, no Ocidente, a origem dos heróis confunde-se com o

surgimento de conceitos de puro e impuro, do bem e do mal.42

A visão positiva sobre a Coluna Prestes, sempre é colocada, porém, o que não é colocado

com freqüência nessa história e a forma que a Coluna encontrou para empreender a marcha

durante tanto tempo. O que sabemos através da historiografia oficial é que a Coluna se manteve

através de doações e de apoio recebido da própria população.

Mais essa justificativa leva a fazer a seguinte pergunta: E onde a Coluna não encontrou

apoio, o que ela fez para se manter? Sabemos que em determinadas regiões a população

desconhecia o ideário da Coluna, não a prestigiava ou a reconhecia como algo favorável. O

povoado Tabuleiro dos Pio é uma dessas regiões, lá eles não sabiam o que significava a passagem

41

Idem 42

DOMINGOS, Manuel. Lendas dos Revoltosos. Disponível em

http://www.nacionalidades.net/textos/MDN_Lendas%20dos%20Revoltosos.pdf, acesso em 05/04/2013.

28

daqueles homens. Na elaboração do trabalho percebesse que a marca registrada na memória

coletivada dos entrevistados, é negativa, associam apenas o fato a medo, dor e sofrimento.

Sendo assim, precisaremos abordar o assunto, mostrando a formação desse personagem, e

sua relação com a população, visto que ele se protagonizou nas falas de nossos entrevistados.

2.1 Um Desconhecido Conhecido: Os Revoltosos em Tabuleiro dos Pio

No decorrer de nossa pesquisa, percebemos que existiu um personagem o qual nossos

entrevistados denominaram sempre de “Revoltosos”, a maioria desconhecia a denominação

legítima de Coluna Prestes, palavra que especifica o movimento.

Observamos que para eles o Revoltoso era sinônimo de rebeldia, baderna e desordem

social. Se questionássemos ou tratássemos por revolucionários ou integrantes da Coluna Prestes,

nada respondiam, porém se indagássemos, utilizando o nome Revoltoso, logo surgiam vários

conceitos para eles.

Nossa preocupação nessa etapa da pesquisa foi então descobrir como se criou esse

personagem na memória coletiva dessas pessoas, e ao pesquisarmos compreendemos que o nome

Revoltoso está relacionado ao contexto o qual foi criado. Onde a representação construída no

imaginário do sertanejo seria a de que a Coluna era algo ruim, prejudicial. Criou a imagem de

desordeiros, bagunceiros, ladrões, isso tudo para amedrontar e enfraquecer a Coluna durante sua

passagem.

Em Tabuleiro dos Pio e em outras regiões a população resistiu à Coluna, e em determinados

momentos, combateu-a, isso porque o governo e os latifundiários patrocinaram uma imagem

negativa sobre a mesma, daí conclui-se o porquê da falta de cordialidade em algumas regiões e a

denominação “Revoltosos” dada aos integrantes da Coluna.

O governo e os coronéis43

criaram essa imagem para desequilibrar a Coluna, e ao mesmo

tempo justificar a quebra da “paz interna” que reinava em território piauiense. Essa foi a manobra

43

Idem

29

encontrada pelo governo para desorientar a Coluna, ao tempo que impregnavam no subconsciente

dos sertanejos a personalidade negativa dos integrantes da Coluna.

Além disso, a imagem negativa da Coluna, difundida pelas autoridades locais e

federais, através de intensa propaganda, contribuía para afastar mais ainda as

populações rurais dos revolucionários (p. 338).

O professor Francisco Alcides do Nascimento também nos ajudou, ele faz considerações

sobre como foi formada a personalidade do revoltoso. Ele coloca:

Não se pôde sentir os reflexos da passagem da Coluna. O governo tratou de criar uma

imagem da mesma, que metia medo nos sertanejos e até nos homens dos centros

urbanos44

.

44

Francisco Alcides do Nascimento

30

3 A NARRATIVA DOS MORADORES

O governo ajudou a formar o personagem revoltoso no inconsciente coletivo das pessoas, e

percebemos que ele prevalece até hoje, vindo acompanhado ainda de muito medo, como podemos

observar no depoimento da Sra. Francisca Pio que diz:

Esse tal de revoltoso não era coisa boa não, eu me lembro que minha mãe falava que eles

passaram tirando o sussego de muita gente aqui em Tabuleiro, que ele não respeitava

novo, velho, criança, muier....ninguém mesmo. Eu merma ainda hoje tenho medo desse

tal de revoltoso, já pensou se ele volta aqui? Ele e coisa bem distante de Deus, fez

absurdos, aqui só deixou marca ruim mesmo, tomara que ele não passe nunca mais aqui

e nem em canto nenhum. (FRANCISCA PIO)

Constatamos nas afirmações da Senhora Francisca Pio, o raciocínio embasado pelas teorias

do professor Francisco Alcides Nascimento, a de que o governo alicerçava o combate à Coluna,

tanto instrumentado pelo aparato bélico do Estado, quanto alimentando o medo e

consequentemente a repulsa dos moradores sertanejos às tropas revolucionárias.

Outra opinião sobre a formação do revoltoso no inconsciente coletivo da população de

Tabuleiro dos Pio pode ser construída tomando o depoimento da professora Francelina Macedo.

Os revolucionários adentraram em Tabuleiro dos Pio acredito que em junho ou julho de

1926, na segunda passagem da Coluna nessa região, porque a primeira foi em dezembro

de 1925, mas eles não marcharam para essa direção.

Figura 1- Francisca Pio, moradora do Tabuleiro, teve dois tios assassinados pelas tropas da coluna na

passagem pelo povoado.

31

Segundo a mesma, vários fatores podem ter contribuído para que o levante de Tabuleiro

tivesse proporções tão intensas. A citar a localização de difícil acesso, entre serras e rio, local

ideal para montarem uma guarda provisória, o que de fato aconteceu, aliado à ilusão de que por

Tabuleiro havia muitos fazendeiros com mantimentos e recursos que poderiam abastecer as

tropas, principalmente alimentos e animais. “Os revolucionários vinham informados de que o

povoado era próspero, estava em período de moagem de cana, que lá possuíam bons animais.”

Mas há também fortes indícios de que a Coluna foi infiltrada por saqueadores,

desordeiros, estupradores, por pessoas inclusive ligadas ao próprio governo que

queriam macular a imagem e os ideais da Coluna. Violência armada existiu, era típico

da Revolução, eu não estou negando isso, diversas passagens nos mostram, mas

também, muitos excessos que são atribuídos à mesma vieram, na verdade, de indivíduos

que usaram a Coluna a mando do governo e das oligarquias rurais que os incentivavam

a cometer tais atos. Isso demonstrou ainda que à medida que crescia a tropa e a marcha

avançava pelas veredas do Norte e Nordeste, o comandante Prestes perdia

gradativamente o controle da situação, uma vez que as atitudes destonavam dos

objetivos inicialmente traçados.

Figura 2 – Professora Mestre Francelina Macedo, realizou pesquisas sobre o tema, focando Picos e Tabuleiro,

pertence à quinta geração da família do pequeno proprietário rural Zé Pio, cujos filhos foram assassinados

pelas tropas da Coluna em Tabuleiro, na década de 1920.

A estratégia usada pelo governo serviu para que os moradores, temerosos dos embates, não

se aproximassem, não ajudassem ou compreendessem as razões daquela passagem em

determinados estados, desconheciam seus propósitos, objetivos, podemos relacionar o assunto

com a citação de Anita Leocadia45

que diz:

A Coluna falava outro idioma, tinha outra ideologia, seus objetivos eram outros. Sua

retórica liberal visava à moralização dos costumes políticos, o cumprimento da

constituição de 1891, algumas reformas políticas que não pusessem em questão a ordem

45

PRESTES, Anita Leocádia. Uma epopeia brasileira: a Coluna Prestes. São Paulo:Ed. Moderna, 1995.

32

estabelecida. Tratava- se de substituir os políticos corruptos por outros homens, que

saberiam regenerar o país.

Ainda segundo a mesma fonte, o medo não deixava que os habitantes se habilitassem a

conhecer a essência do movimento. Seu ideário. Por isso os participantes da Coluna faziam uso

da força para adquirirem mantimentos e animais para dar continuidade ao percurso.

Nessas condições – às quais se somavam a necessidade que as tropas rebeldes tinham

de fazer requisições de mantimentos, munições e animais, assim como alguns excessos

cometidos, inevitáveis em tais circunstancias -, era natural que se espalhasse o pânico

entre as populações rurais das localidades por onde a Coluna ia passando.46

Outro autor que escreveu sobre esse personagem foi Manoel Domingos, que descreve como

seria o revoltoso.

Homens barbudos, lutando contra o governo, montados a cavalo, armados, lenço

vermelho no pescoço, carentes de banho e roupa limpa, com sotaque esquisito,

dispostos a tudo, sempre escapulindo, quebrando o sossego de todos, levando as

montarias que encontravam47

Foi observado que em suas lembranças todos descrevem o revoltoso com características

ruins. Em suas memórias mostram sentimento de dor, medo, sofrimento e crueldade, quando

falam sobre ele. Nesse momento Maurice Halbwachs reforça ao considerar:

Para que nossa memória se auxilie com a dos outros, não basta que eles nos tragam seus

depoimentos: é necessário ainda que ela não tenha cessado de concordar com suas

memórias e que haja bastante pontos de contato entre uma e outra para que a lembrança

que nos recordam possa ser reconstruída sobre um fundamento comum48

O depoimento do Padre Pio, também descendente da família Pio, delineia este raciocínio,

ao enfocar que o desconhecimento dos ideais da Coluna gerava a violência, uma vez que as

oligarquias já haviam criado junto à população a imagem de “revoltosos” desordeiros, perversos,

e desleais, que confiscavam bens em nome de uma revolução que não se tinha nem ideia acerca

do que viesse a ser.

Não resta dúvida que um líder para sustentar mil e quinhentos homens entre veredas

entre a década de 1920 e 1930, no sertão nordestino, o que o diga aqui em Tabuleiro

dos Pio. Não é fácil, havia que se apelar para violência. Por outro lado, considere o

seguinte, o que é você está na sua casa, e entrar uma pessoa ainda que cheia de boas

intenções e dizer por exemplo como aconteceu em Tabuleiro dos Pio, vamos criar um

fato hipotético para compreender melhor, me der seu carro novo, vou pegá-lo

46

PRESTES, Anita Leocádia. Uma epopeia brasileira: a Coluna Prestes. São Paulo:Ed.Moderna, 1995. 47

Idem 48

Maurice Halbwachs e a questão da memória. Disponível em:

http://www.espacoacademico.com.br/056/56carvalhal.htm, acesso em 05/04/2013

33

emprestado em nome da revolução, quando nós ganharmos a revolução, eu venho ti

devolver o carro. Você nunca viu essa pessoa, não tinha acesso a comunicação, a

escola, nem mesmo sabe que revolução é essa, de que forma você reagiria?

Figura 3 - Padre José Pio Feitosa é descente da família de Zé Pio, quinta geração.

Os aspectos contraditórios da atuação da Coluna pelo Nordeste Brasileiro e seus embates

com os nativos são retratados pelo sacerdote Pio nos seguintes termos:

Então por que jugarmos um nativo, um membro de uma população ribeirinha, de uma

comunidade qualquer no Nordeste que reagisse mal a um revoltoso, como eles chamam.

O termo revoltoso marca justamente a forma como as oligarquias, como o poder

politico local, tratava a Coluna Prestes, não tinha Coluna Prestes, eram os revoltosos, e

significa alguém que está contra a ordem, baderneiro, a única imagem que eles tinham

da Coluna antes da sua chegada é exatamente essa, então a partir do momento em que a

Coluna chegava fugiam, morrendo de medo ou então se levantavam em uma luta

armada, contra a população que eles mesmos defendiam.

A Coluna durante seu trajeto no interior do país pode presenciar o extremo abandono

material em que viviam algumas populações rurais e urbanas do Brasil. Mas, a vigilância em

torno do controle do Estado era identificada em cada reação. Esse percurso foi marcado por

várias dificuldades, desentendimentos e arbitrariedades. Para se reabastecer e garantir a

manutenção da longa marcha, a Coluna utilizou de vários meios, tanto lícitos como ilícitos.

A princípio os revolucionários passaram a se organizarem através de contatos estabelecidos

e por meio das boas relações com a população, porém em algumas regiões que desconheciam

sobre os objetivos da Coluna, encontravam resistência e nem sempre conseguiam se relacionar de

forma harmônica e hospitaleira.

34

A propaganda governista passava a afastar a Coluna dos povoados, e com a mesma

percorrendo o interior do país precisava se manter, encontrou dificuldade em desmistificar esse

pensamento.

O governo tratou de criar uma imagem da mesma, que metia medo nos sertanejos e até

nos habitantes dos centros urbanos. Em Floriano e Teresina, as pessoas que puderam,

deixaram a cidade, o fizeram, indo para propriedades na zona rural. O simples boato da

chegada da Coluna fez com que o comércio fechasse as portas (NASCIMENTO, p. 26)

Devido a essa dificuldade, a Coluna teve que mudar de comportamento em determinadas

regiões, visto que, necessitando de reabastecimento encontrava obstáculos que faziam com que

seus integrantes usassem de outras formas para adquirirem o que queriam.

Em algumas regiões havia reciprocidade e até conhecimento sobre o que a Coluna Prestes

representava e porque lutava. Nessas regiões os membros recebiam amparo e não precisam usar

da força para conseguirem o que queriam e precisavam. Observemos o trecho a seguir que foi

extraído do livro de Jorge Amado. O cavaleiro da esperança: a vida de Luis Carlos Prestes:49

A Coluna passava em frente de um rancho de barro batido, coberto de palha. Nele vivia

Joel, igual a milhares de sertanejos do Brasil. A Coluna passava, ele queria lhe

presentear com algo, agradecer de alguma maneira aos soldados da liberdade o quinhão

de esperança que lhe deram. Se adiantou até Luiz Carlos Prestes, levava uma cuia de

farinha na mão. Era tudo que havia de alimento no seu rancho. E disse: __General, tá

aqui essa farinha, é tudo que eu tenho para comer no meu rancho... Dê pros soldados...

Voltou ao rancho e achou que era pouco. Ele possuía também um burro, com o qual

ganhava a farinha que comia. Tomou-o pelo cabresto, se adiantou novamente até

Prestes: __General, tá aqui esse burrinho que é tudo que eu tenho para viver... Monte

nele, não vá mais de a pé...

Não se trata de contraditório, são apenas diferentes visões expostas. Joel é uma

personagem de um livro de ficção, porem, revela os anseios do comunista engajado Jorge

Amado. Esta face da Coluna Prestes é realmente a ideal, diante dos aspectos conjunturais da

Velha República, em contraponto ao que defendiam os líderes da revolução. Retrata ainda que

parte da população sertaneja que compreendia os objetivos da marcha tencionava lutar, ser útil. A

natureza voluntária do sertanejo engrossava as fileiras da Coluna em Marcha pelo Nordeste, neste

caso, narrando uma passagem das tropas pelo Piauí.

49

AMADO, Jorge. O cavaleiro da esperança: a vida de Luis Carlos Prestes. Companhia das Letras, 2011.

35

Voltou ao rancho e achou que era pouco, amiga. Mas ele não tinha mais nada que dar,

mais nada possuía no mundo. Sim, amiga, ainda possuía algo, possuía a sua vida que

podia dar pela liberdade. Pela terceira vez se adiantou até prestes. Nada conduziu nas

mãos mulatas, mas ia sorrindo de alegria: - General - disse - agora leve a mim... Me dê

um fuzil, já lhe dei tudo que tinha, agora me dê um lugar na sua Coluna... Foi assim,

amiga, que o soldado Joel entrou para a Coluna Prestes no alto sertão do Piauí.50

No entanto, em outras onde a população era mais interiorana, não tinham conhecimento

sobra a Coluna, encontravam resistência, e para dar continuidade ao projeto, empreitavam ações

usando a força para adquirirem sua manutenção. Devido essas ações a passagem da Coluna

Prestes pelo povoado Tabuleiro dos Pio ficou gravada na memória coletiva dos seus habitantes de

forma negativa e sanguinária.

Lourenço Moreira Lima51

em seu livro A Coluna Prestes (marchas e combatentes) trás uma

justificativa para os atos de vandalismo que surgiram durante a passagem da Coluna, mostrando

que as acusações estariam caindo nas pessoas erradas. Para ele os causadores da desordem eram

militares das forças legalistas que vinham em perseguição à Coluna, e usando o nome da mesma

patrocinavam atos vândalos, marcando a trajetória da Coluna de forma negativa. O autor defende

o porquê dos revolucionários às vezes revidarem em determinadas regiões e menciona a ação de

pessoas externas que penetraram na Coluna usando-a para própria sorte. Observemos a citação:

No Piauí, como aconteceu nos outros lugares por onde passamos, formaram-se à nossa

retaguarda, bandos de ladrões que saqueavam os povoados abandonados, praticando

toda a sorte de tropelias. As tropas bernardescas, por sua vez, também arrasavam as

propriedades e cometiam as maiores violências contra os habitantes, furtando,

roubando, incendiando, estuprando mulheres e matando os homens com ferocidade

inaudita. Não procuro com isso eximir as nossas forças da responsabilidade de muitos

prejuízos causados ao povo, mas, mostrar que a maioria das acusações que nos fora

feita era caluniosa. Como tive oportunidade de dizer, as nossas forças foram obrigadas à

prática de certas medidas extremas de represálias, mas somente naquelas localidades

cujos habitantes se armavam e nos recebiam a bala.

Quem nos conta outra versão para a forma de tratamento estabelecida em Tabuleiro Pio é a

dona Maria de Jesus, que dá exemplo do que os revoltosos teriam feito com um filho de criação

do senhor José Pio, em forma de punição teriam forçado o menino a falar vários cavalos da tropa

dentro do rio Guaribas, segundo dona Jesus:

Os revoltosos quando passaram aqui em Tabuleiro, pegaram o filho de criação do véi

Zé Pio (o Ri) e obrigaram a lavar todos os cavalos lá no rio, perto da Taboca. Eles não

50

Idem 51

Lourenço Moreira Lima em seu livro A Coluna Prestes (marchas e combatentes)

36

acharam pouco bateram nele com chicote, e olha que ele no tempo era só um menino

piqueno, mais tão ruim eles eram que não levaram em consideração. Acho que eles

fizeram isso com ele, bem porque esse era mais pretinho. Meu avô sempre gostou de

cuidar de gente, lá nunca faltava um acolhido em sua casa.

A fala da entrevistada retrata também a outra face do preconceito, desta vez, por parte de

membros da Coluna, que entendiam que qualquer nativo de cor negra era jagunço ou filho de

jagunço, então teria que sofrer, independente da idade ou das condições em que fosse encontrado.

O depoimento acima refere-se ao filho adotivo de Zé Pio, Francisco, na época com 8 anos,

segundo a mesma, torturado às margens do Rio Guaribas e obrigado a lavar 30 animais de

montaria.

Encontra-se, por outro lado, que desvios de comportamentos eram repreendidos com

firmeza, porém dentro da própria Coluna existiam desordeiros que se infiltravam com outros

objetivos e esses tratavam de espalhar pavor e desordem. Essa infiltração de pessoas de má índole

infringe o código de conduta do movimento, porque usavam o nome da Coluna, por isso é preciso

reconhecer que não havia dentro do movimento um projeto maior de organização política.

A Coluna não poderia se transformar num exército revolucionário, movido por um ideal

libertário, se não incutisse em seus combatentes uma atitude de respeito e solidariedade

em relação ao povo que mantinha contato. Desde o início, ainda no Rio Grande do Sul,

o comando da Coluna deu grande importância ao tratamento que os seus soldados

deviam dispensar à população civil das localidades por onde passavam. Qualquer

arbitrariedade era punida com grande rigor; em alguns casos de maior gravidade,

chegou-se ao fuzilamento dos culpados, principalmente, quando houve desrespeito a

famílias e, em particular, às mulheres.52

”.

52

PRESTES, Anita Leocádia. Uma epopéia brasileira: a coluna prestes. São Paulo: Moderna, 1995.p.63

Figura 4 - Moradora do Tabuleiro Maria de Jesus Pio relata o preconceito da coluna para com habitantes

negros, tratados como jagunços

37

Com o medo que se instalava, os coronéis formavam os batalhões patrióticos, que são na

verdade homens de confiança dos coronéis. Segundo Nascimento “o fato deu margem ao

surgimento de “Batalhões patrióticos” em diversos municípios piauienses, decididos a deslocar-se

à Capital, o que de fato ocorreu, para defenderem o governo constituído e a autonomia do Estado

(NASCIMENTO, 1994, p. 21)53

Os Batalhões Patrióticos, no entanto, não impedem a invasão dos revolucionários em

território piauiense, e assim sendo, coronéis utilizavam de acusações públicas contra a Coluna

para prejudicá-la e enfraquecê-la. A população de Tabuleiro dos Pio, ao que nos consta, não

recebeu a Coluna com violência, pelo contrário, a comunidade foi violentada e revidou, mas os

relatos dos entrevistados dão fortes sinais de que a ideia de revoltoso apresentada pelo poder

constituído era extremamente negativa entre os habitantes do lugar.

3.1 As marcas no local e no inconsciente

O combate inicial deixou um saldo de três mortes: Antônio e Isaac Pio, filhos de Zé Pio

(sepultados pelos sobreviventes, nesta capela, em Tabuleiro) e um integrante da Coluna, chamado

pelos companheiros de Capitão Tomé, cujo corpo foi deixado ao relento, às margens do Rio

Guaribas.

Conforme relatos da memória de pessoas idosas residentes em Tabuleiro dos Pio, a

passagem da Coluna Prestes pelo referido povoado ocorreu em julho de 1926, na sua segunda

passagem em sertões piauienses.

Procuramos assim, transcrever como ocorreu a passagem da Coluna Prestes no povoado,

baseado nos depoimentos dos membros da família Pio. A partir desse momento iremos nos referir

aos integrantes da Coluna como revoltosos, porque essa nomenclatura é a utilizada para se referir

a esse bando.

Nessa etapa fez se necessário refazer através das lembranças dos entrevistados o cenário, no

caso Tabuleiro dos Pio, os atores que protagonizaram, os membros da família de José Pio e o

38

integrante da Coluna de nome Capitão Tomé, os atos, a discussão que teria gerado um combate e

ao fim deste, um saldo contando três vítimas fatais. Mostraremos como os revoltosos agiram em

Tabuleiro dos Pio, seus efeitos, suas propostas, ações e reações.

Antes de colocarmos as falas dos narradores, procuramos obras que mencionam a passagem

da Coluna no povoado. Percebemos que nas poucas encontradas, predominam a idéia

marginalizada da Coluna, porque fazem referência ao bando, relacionando o momento a uma

visão negativa, pois se observa que as marcas que ficaram são de ameaças, dor, medo,

sofrimento, atrito, desentendimento e morte, vinculando a passagem da Coluna a uma idéia de

tragédia coletiva.

O livro do Jornalista Chico Castro, intitulado A Coluna Prestes no Piauí: (República do

Vintém) é um dos poucos que menciona a passagem dos revoltosos no Piauí passando pelo

povoado Tabuleiro dos Pio.

Uma cena trágica viria a acontecer ali em 1926. Os revoltosos andavam procurando

cavalos velozes, que pudessem dar-lhes fuga. Muitos moradores esconderam os animais

com medo das requisições um dele, Isaac, apanhou muito para descobrir o paradeiro

dos quadrúpedes. Mas nada contou. Depois, pegaram Pedro Pio e o espancaram. Então,

um capitão avançou para Isaac com a chibata em punho. O rapaz derrubou-o ao chão

em uma luta feroz. Pedro Pio, vendo o irmão naquela sofreguidão, pegou uma arma e

apunhalou diversas vezes o revoltoso matando-o. Ao saber do ocorrido, muitos

revoltosos voltaram ao local e incendiaram a casa dos rapazes. Esta história foi contada

por Pedro Pio ao Sr. Antonio Fontes Ibiapina”54

Ao lermos o trecho da obra acima citada, compreendemos o principal motivo do ataque dos

revolucionários à família de José Pio; o interesse em conquistar cavalos velozes. Essa seria a

razão da marcha empreender trajetória, passando por aquela comunidade, interesse em se

reabastecer e assim garantir sua manutenção.

A Revista Foco, expondo “As catástrofes” em edição comemorativa, Picos: 111 anos

também coloca o episódio ocorrido no povoado Tabuleiro dos Pio. O local onde se deu a mais

famosa batalha do período em que os Revoltosos estiveram na cidade de Picos, pertencia à

família do senhor José Pio Gonçalves. O pequeno produtor rural teve dois filhos assassinados

54

CASTRO, Chico A Coluna Prestes no Piauí: (a república do Vintém) – Brasília: Senado Federal Conselho

editorial, 2008 p. 257. (Edições do senado federal, V. 90 p. 20).

39

pelos revoltosos. O terceiro filho, chamado Pedro Pio, contou ao senhor Antônio Fontes Ibiapina,

o Pebinha, o que se passou:

Os revoltosos procuravam cavalos velozes, que pudessem dar-lhe fuga. Os irmãos,

avisados da invasão por colonos vindos da cidade, esconderam os seus melhores

animais. Os integrantes da Coluna desconfiaram e resolveram pressionar. Pegaram Isaac,

surraram, mas este nada contou. Depois pegaram Pedro Pio e disseram: „você vai

descobrir‟. E bateram nesse também. (IBIAPINA)55

Percebe-se a intensidade da violência e as táticas da Coluna para cumprir seus objetivos e

sobreviver em meio a terras hostis. Entretanto, este método é outro ponto contraditório, quanto às

táticas de guerrilha orientadas pelo próprio comandante Prestes, que estabelece como necessário a

união com os moradores, a liberdade, a leitura dos desejos da população nativa e

fundamentalmente o seguinte princípio:

Sempre que se dominar uma região, por menor que seja o tempo de tal dominação,

satisfazer as reivindicações do povo (distribuição de víveres, de roupas, dinheiro,

ferramentas, etc.), queimar a papelada dos cobradores de impostos e dos juízes e polícias

e se for possível, distribuir a terra dos grandes latifundiários. (PERICÁS, 2010, p. 218)

Ao contrário, era orientado nas táticas de guerrilha escritas por Prestes jamais saquear

pequenos armazéns, não levar mais sacrifício e sofrimento à população, sobretudo era ordenado

zelar pelos camponeses e pequenos proprietários rurais. Leia-se:

Evite o máximo possível atacar os pequenos comerciantes e mesmo os camponeses ricos

que não estejam direta ou abertamente contra o povo, nem deles, nem da população

pobre, não tomar coisa alguma, tomar dinheiro dos ricos para pagar tudo o que for

comprado a tais elementos, o máximo respeito pela vida, honra e bens de todos.

(PERICÁS, 2010, p. 218-219)

55

In: Revista foco, edição comemorativa, 111 anos, 2001, p.22.

Figura 5 - Pedro Pio, à direita, sobrevivente dos ataques sofridos na comunidade Tabuleiro.

Foto: Arquivos de família.

40

O que ocorreu em Tabuleiro destona de tais orientações, mostrando que Prestes perdera o

controle de sua tropa, e principalmente, a imagem que a população pobre, a quem defendia, fazia

dos Revoltosos já era bastante comprometida. Observa-se que no depoimento de Ibiapina, o

Pebinha, os filhos do considerado pelos revolucionários, grande senhor de terras, trabalhavam

com jumentos, animais de pouco valor, carregando cana para uma moagem de subsistência da

própria família, era julho de 1926.

Após algum tempo, vendo que nada conseguiam, soltaram ele56

. Nisso, viram Isaac, que

vinha da roça, onde tinha ido deixar os jumentos. Ora, jumentos não lhes interessavam,

pois não eram velozes, mas por causa dos cabrestos que o rapaz trazia nas mãos

entenderam achar cavalos. Um dos revoltosos disse ao capitão, chefe de sua guarnição:

„eles já pegaram os cavalos e os carregaram. „Chegamos tarde, não conseguimos pegá-

los‟. Disse ainda que o jovem devia saber de algo sobre a fuga dos animais. Ouvindo

isso, o irmão tentou defendê-lo, dizendo que o jovem já havia sido castigado, mas eles

não ouviram. O capitão disse: „Se é assim, vamos surrá-lo novamente‟. O rapaz foi

detido e levado à presença do chefe dos revoltosos. Percebendo que ia apanhar de novo,

disse: „um homem só não me surra não. Só apanhei porque eram muitos‟, afirmou,

referindo-se à primeira vez.(IBIAPINA, 2001, P. 22)

Figura 6 - Antônio de Moura Fontes Ibiapina é irmão do Escritor e jurista João Nonon de Moura Fontes

Ibiapina. De privilegiada memória, Pebinha relata à revista Foco a dor de haver perdido, em Picos e em

Tabuleiro, grandes amigos no embate entre a Coluna e a população local.

O relato do entrevistado denota que a natureza da agressão fere não apenas ao nativo de

poucas posses, mas principal e letalmente o código de honra da Revolução, à revelia dos

ensinamentos de Prestes.

O capitão, zangado, avançou, com a chibata em punho, no intuito de golpeá-lo. O jovem,

então, agarrou a arma e o derrubou. Seguindo-se uma luta corporal. O outro irmão, já

solto, foi ajudá-lo. Tirando um punhal, o capitão tentou atingi-lo, mas o feitiço virou

contra o feiticeiro. Um dos irmãos, Pedro Pio, tomou o punhal e o apunhalou diversas

56

Ele é uma referência a Pedro Pio, que já havia apanhado para entregar cavalos.

41

vezes. Depois, passou a arma ao companheiro, Isaac, que terminou o serviço.

(IBIAPINA, 2001, P. 22)

São citadas ainda na narrativa do entrevistado características relacionadas a fibra, coragem

e violência.

Os revoltosos tinham fibra de homens corajosas e vingativos. Mesmo quando estavam

morrendo, ao ouvir as palavras de Isaac, que dizia: „Eu não disse que um sozinho não me

surrava‟, o capitão respondeu: „Disse e provou, Guará57

, mais de tua família não fica

nem galinha‟. A residência da família foi incendiada e o corpo do rapaz assassinado não

pôde ser sepultado. „Outra família, a dos Feliciano, foi quem tomou a iniciativa de

providenciar o enterro‟. (IBIAPINA, 2001, P. 22)

A revista intitula o episodio colocando como batalha em Tabuleiro dos Pios, mas na

verdade, contextualizando a palavra, nesse momento, poderíamos substituí-la por outras, como

briga, desentendimento, combate etc., visto que compreendemos que a palavra batalha em si se

configura em dimensões bem maiores, com mais envolvidos. Diferente do que ocorreu em

Tabuleiro dos Pio onde participaram apenas poucas pessoas.

A citação da revista trás muito mais do que a descrição do ocorrido em Tabuleiro dos Pio,

ao lado das lembranças dos entrevistados mostram traumas coletivos que o episódio representou

para a comunidade e as regiões vizinhas, que tomando conhecimento se manifestavam contrárias

aos revolucionários, justamente por conta dessas ações. O caso de Tabuleiro dos Pio é a marca

maior da atuação dos Revoltosos na região, máxima expressão de crueldade e vandalismo.

Outra versão sobre o ocorrido na comunidade Tabuleiro dos Pio foi colhida do livro do Sr.

Pio Borges Gonçalves. As teias de meu destino. Nesse livro ele transcreve toda a sua trajetória de

vida, momentos que o marcaram, nele narra com detalhes o que teria ocorrido no seu povoado

com sua família.

Corriam os anos de 1923, 1924, 1925 e 1926, quando em julho, minha família sofria

profundo golpe com a revolução de 1926, cujos revolucionários acossados pelas forças

do governo, se espalharam pelos interiores de Estados e cidades, passando por Picos e

pelo Tabuleiro e carregando todos os animais disponíveis, inclusive o jumento Bastos.

A casa foi invadida e saqueada.

O autor, que é o filho caçula de Zé Pio, atualmente reside no Paraná e relata inicialmente

de uma forma técnica a conjuntura da formação e do desempenho da Coluna, diante do que

pretendiam os Revolucionários. Abaixo, o mesmo escritor já desfecha palavras de alto teor

pejorativo para com o comandante Tomé, morto em combate pelos irmãos Pio na região do

57

Expressão que o Revoltoso utilizou referindo-se a Isaac, análoga a lobo selvagem.

42

Tabuleiro, demonstrando a repulsa que marca o episódio encravado na sua memória, desde julho

de 1926.

Prenderam meu irmão, Pedro, que se achava doente e lhe exigiram a entrega de um

cavalo de montaria de meu outro irmão Antonio Pio, já tendo este sido antes preso pelos

rebeldes para servi-lhes de guia, enquanto pôde fugir para ver se salvava o seu próprio

cavalo que pastava dentro de uma roça, onde havia um engenho de cana em que se fazia

rapadura. Numa fatal oportunidade os três se encontraram e meu irmão Pedro Pio, que

estava doente, e havia levado tapas, sem poder reagir, recebeu ordens de regressar à

casa. O facínora, que era e alta patente e encontrava-se armado com revólver, punhal e

chicote, decidiu ficar com o outro irmão que estava aparecendo e por certo havia

escondido o cavalo de que era o próprio dono.

Observa-se que a narrativa de Piozionho, como é conhecido o escritor, confere com as

mesmas informações prestadas por Pebinha, já anteriormente relatadas.

Voltando meu irmão Pedro, primitivamente preso, mandou o revolucionário de nome

Capitão Tomé, segundo soube seu pai, que ele se afastasse, ordenando que Antonio,

falecido em combate, se aproximasse. Falando com o mesmo, a respeito do tal cavalo

que, segundo ele insurreto, o Antonio havia escondido, não foi bem entendido, pois

Antonio era surdo, ao que levou uma chibatada, dizendo ao revolucionário que não o

batesses, “porque um home só não seria capaz de lhe bater”.

Observa-se que o jovem Antoninho Pio aparece nas narrativas de Piozinho primeiro que o

outro irmão Isaac, narrado em primeiro plano por Pebinha.

Temendo o revolucionário a disposição de meu irmão e ainda a aproximação de Pedro,

primitivamente preso e que ainda se encontrava perto, perguntou-lhe quem era aquele

com quem falava, dizendo-lhe certamente, a aproximação dos dois irmãos, mandando

que um se retirasse enquanto dialogava com o outro e lhe dava nova chibatada. Ato

contínuo foi pelo meu irmão Antonio agarrado e derrubado, sem que pudesse fazer uso

de qualquer arma.

O ápice da luta é narrado com dor pelo escritor Piozinho, ao colocar as circunstâncias e

principalmente a diferença de oportunidade entre ambos.

Meu irmão Pedro, que se achava doente e já recebera ordens de regressar para casa não

se contendo e vendo nosso irmão em luta, procurou ajudá-lo na difícil e quase

impossível empreitada. Derrubado, o revolucionário e já com meu outro irmão

procurando desarmá-lo, conseguiu finalmente tirar-lhe o punhal que carregava e o

revólver, enquanto chegava Pedro Pio. Vendo-se perdido o bandido derrubado e

esforçando-se para se livrar dos dois irmãos, começou a gritar pelos seus companheiros

que se achavam próximos, todos montados e armados de todas as armas modernas,

enquanto meus irmãos o apunhalavam e lhe cortavam a garganta.

43

Até este momento, Piozinho não faz qualquer menção à morte de Isaac, prosseguindo

apenas no depoimento acerca das represálias que teria sofrido seu pai, Zé Pio, o qual o revoltoso

prometera vingança implacável, de acordo com os relatos de Pebinha.

Tudo isso aconteceu tão rapidamente que os demais revolucionários, já quase perto dos

mesmos, começaram a atirar, ocasião em que Antonio Pio foi baleado, enquanto o

Pedro Pio sobrevivente podia fugir ainda com dificuldade pelo cansaço de luta e,

também, pelo seu precário estado de saúde, resultante da malária que ainda sofria.

Ficava assim o saldo de duas mortes, um revolucionário enterrado ali mesmo e um dos

meus irmãos deixado no local. Meu pai que se achava em casa, distante, recebia, com

os revolucionários que o haviam detido, noticias de que “haviam matado o Capitão

Tomé e morto o assassino”. Todos correram para o local, tendo o meu pai sido preso e

levado também.

Zé Pio é torturado, mas ironicamente, pelas mãos de um deles, dos revoltosos, escapa da

morte, nesse trecho, também são mencionados, por Piozinho, abusos do bando para com a sua

mãe.

Diante do fato consumado, quando meu pai viu o seu filho morto e eles revolucionários

sabendo que era seu filho, acharam que se tratava de emboscadas e passaram uma corda

no pescoço de meu pai para o enforcarem, levando-o até em casa onde consumariam o

gesto. Nossa casa estava repleta de rebeldes, enquanto minha mãe, Josefa, fazia almoço

para eles. Um comandante, achando que o meu pai nada tinha a ver com o fato,

procurou salvá-lo da morte ordenando que ele fosse buscar um copo d‟água, enquanto

mandava a tropa recuar. Assim pôde meu pai fugir e minha mãe também, ficando a casa

entregue à sanha dos revolucionários que tudo saquearam e ainda a queimaram. Foi

uma calamidade e simultaneamente uma feliz decisão de um humanitário comandante,

dando aos meus pais ocasião de fugirem.

Além desta investida, ocorrida pela manhã em 16 de julho de 1926, outros bandos

menores continuaram a passar pelo Tabuleiro, durante todo o dia, sinais de que poderiam ser de

fato pertencentes à Coluna, ou não, apenas aproveitando a catástrofe para roubar famílias rurais,

conforme já mencionada na fala da Professora Francelina Macedo e confirmada nesta passagem

também na narrativa do escritor Piozinho.

Era mais ou menos meio dia, enquanto tudo isto ocorria. Enterrado o revolucionário

pelos próprios companheiros, o tempo corria, enquanto não cessava a passagem de

outras tropas pelos mesmos lugares, até o anoitecer, quando a família toda espalhada e

vendo e tomando conhecimento de tudo por alguns homens que haviam sido presos

pelos soldados para guiá-los, voltavam para casa, depois de terem podido fugir.

Observa-se que a memória é eivada por diferentes nuances, nos termos de Ecléa Bosi,

(1994), pois embora os abalos exteriores não modifiquem o essencial, há inegavelmente um

processo de desfiguração que o passado sofre ao ser remanejado. É mais que uma questão de

44

memória, de lembrança, há casos em que é ideal mesmo. Isaac, segundo o depoente Adão Pio, foi

encontrado morto ao lado de Antoninho, entretanto, Piozinho, na narrativa abaixo, coloca a

intermitência destes episódios. Leia-se:

Os relatos confirmam que Foi nesta ocasião que meu irmão Isaac, vendo a residência

queimada e tomando conhecimento de que toda família havia sido morta na roça,

dirigiu-se para lá e enquanto passava uma cerca, foi também baleado e morto. Somente,

quase à noite pôde a família providenciar o enterro dos dois irmãos, uma vez que, os

revolucionários já haviam seguido viagem para saquearem outras localidades,

dirigindo-se para Oeiras e Floriano no Piauí. Ficávamos assim, a zero e eu também

pude ver os meus irmãos mortos, não assistindo o enterro porque acompanhei meu pai

para outra parte da roça, temendo mais acidentes.

Mediante as narrativas, expõem-se marcas no inconsciente coletivo das pessoas que

tiveram perdas irreparáveis causadas pelos Revoltosos, entre as quais, estas relatadas acima pelo

escritor Pio Borges Gonçalves, em cujo conteúdo encontra-se dor e revolta.

Perguntada acerca do assunto, a senhora Eva Feitosa, moradora da localidade reforça o teor

dos relatos:

No Tabuleiro teve isso, mas eles não encontram facilidade não. Os filhos do vei José

Pio não levavam desaforos pra casa, lá na Taboca eles brigaram. Foi confusão grande.

Eles queriam a pulso levar os cavalos, mas Isaac e Antonino, como eles não entregaram

de jeito nenhum a confusão começou. Negar uma coisa a eles (revoltosos) era mesmo

que pedir para morrer, mais com os fios de Zé Pio eles se ferraram, eles (revoltosos)

mataram, mais um deles também ficou.

Na fala da entrevistada acima, presente o sentimento de mágoa aliada à revanche. Abaixo,

o sentimento de perda e de injustiça, de investida não criteriosa contra uma família de

agricultores é colocado por Helena Pio, sobrinha das vítimas.

Figura 7 - Helena Pio de Sousa Silva é filha de Francisco Pio Irmão, neta de Zé Pio

45

Esse tal de revoltosos, coisa boa aqui ele não fez se fosse não tinha mal tratado tanta

gente. A família de Zé Pio não merecia passar o que passaram. Da muita dó falar disso,

porque mexe com a dor de perde pessoas que a gente quer bem. Eles sofreram demais.

Eu digo que foi o pior dia da vida de Zé Pio, o homem que sofreu. Olha que cê ta em sua

casa e ser pego desprevenido, sem tempo de fazer nada, ser batida e roubado sem ta

devendo nada é ainda tirar de você dois filhos, e de arrasar qualquer coração. Só não

mesmo daqueles infeliz que carregavam o cão nos coro.

Sobre as perdas sofridas, Dona Chica de Seu Tota, filha de Pedro Pio, que foi combatente,

se reporta aos fatos ao colocar que

A família era grande, não só a dele, era de costume a gente ter muitos filhos. Ele teve 9,

mas perdeu 02 só de uma lapada, o revoltoso fez esse mal a ele (Zé Pio), quando viram o

tamanho do estrago. E só não mataram mais gente, porque o povo se escondeu na mata.

Ainda hoje tem o resto da casa um pouquinho de tijolo jogado, lá perto do pé de

tumarina.

Figura 8 - Chica de Tota é filha do sobrevivente Pedro Pio.

É como se a cada vez que passassem pelo local tivessem que rememorar desfeita,

violência, maus-tratos, num cenário que antes de se transformar em escombros, teve que ser

morte para ser compreendido. Fica bem no centro do povoado. Lá estas moradoras se reuniram

para falar sobre o episódio.

46

Na foto, Helena Pio, Francisca Pio, Maria de Jesus Aldenora Pio, Tereza Pio e Eva Pio, todas pertencentes à

terceira geração da família de Zé Pio.

Como se percebe, existem fatos que retratam a violência de ambas as partes. Desde as

táticas de guerrilha, passando aos diferentes choques culturais e errôneos juízos de valor feitos,

tanto por membros dos revoltosos, quanto por nativos. Diante das diferentes situações, Francisco

Alcides pondera que

É fundamental que se busque entender a dinâmica interna do movimento, não apenas em

suas causas e consequências. Quais são os atores envolvidos em todo o processo, seus

papéis distintos e as relações internas. A compreensão e aprofundamento deste tema de

nossa história tornam-se fundamentais para o entendimento das estruturas econômicas,

políticas, sociais e ideológicas que são construídas a partir deste movimento que

perpassa a simples análise dos fatos e das ações políticas e militares decorrentes das

revoltas da época da Coluna Prestes.

Este mesmo raciocínio é ratificado por Hélio Silva (2004), ao apresentar a marcha da

coluna como uma espécie de combates entre vencidos, ou heróis sem títulos.

Criaram-se muitas lendas em torno deles. Os revolucionários eram conduzidos por um

grupo de idealistas, a maior parte dos quais permaneceu para o resto de suas vidas.

Foram heróis, mas seus inimigos não foram covardes. Quando a coluna não podia vencer

as tropas regulares, preferia evadir-se. Nunca pretenderam defrontar uma tropa muito

mais numerosa e muito melhor aparelhada. Seu objetivo era demorar no tempo e

prolongar na distância a luta desigual. (SILVA, 2004, p.162 e 163).58

O certo é que marcas ficaram. A exemplo, a capela da comunidade, erguida para guardar

os restos mortais de Isaac e Antônio Pio, mortos pelos Revoltosos. Depois o templo se

58

SILVA, Hélio. A marcha da coluna prestes: 1923/1926. 3ª ed. São Paulo: Editora Três, 2004.

47

transformou em local de celebração religiosa, congregando os moradores daquele lugar.

Atualmente, ao lado da capela encontra-se também o cemitério de Tabuleiro.

As marcas no local e no inconsciente da população ainda são bastante vivas, como estas da Capela de São

José, erguida em memória às vítimas. Templo particular de Tabuleiro. Nos fundos, o cemitério. A tradição

católica e as marcas do acontecimento levaram o povo a cultuar com fervor religioso os jazigos dos mortos na

tragédia.

A religiosidade é explicada pelo padre Pio Feitosa, como um dos fatores de superação,

que tem ajudado as pessoas a conviverem com o fato, zelando pela memória de seus entes

queridos. Ele afirma que essa tradição religiosa já vem desde os seus ancestrais, ligando inclusive

o nome Pio que se transforma em sobrenome de família.

Depois da permanência no lugar denominou como fazenda Tabuleiro dos Pio, o

sobrenome Pio não era de família, o nome de José Pio, inicialmente era apenas José

Gonçalves, mas devido o fato de José Pio ter nascido no dia 05 de Abril, dia que se

comemora e celebra a memória de São Pio V que foi papa da igreja católica, era hábito

da família colocar o nome das pessoas acompanhando o calendário cristão da igreja, seu

nome teria ficado por isso José Pio Gonçalves, o José também devido os pais serem

católicos fieis e devotos de São José, padroeiro dos proprietários rurais. Como ele

gostou do nome, ele colocou em seus filhos, e esses deram continuidade em suas

descendências, perpetuando até hoje na quinta geração. (PADRE PIO FEITOSA)

Desde início a presença da religião foi marcante, mostrando como sua influência

predominava nos meios, fato que pode ser confirmado no depoimento do Padre Pio, quando faz

referencia ao cotidiano da casa de Sr. José Pio, que tinha sempre uma sala grande para acolherem

famílias mais pobres da vizinhança que necessitassem de atos religiosos, tipo batismo e

casamento. Eles tinham o espaço reservado em sua casa para acolherem e festejarem esses

momentos.

48

O ano de 1927 foi a data em que se celebrou a missa de um ano de falecimento dos

filhos de José Pio. No mesmo dia ele também casou sua filha Adelina que foi a doadora

da imagem de São José a qual deu o nome a capela da comunidade, e a qual existe até

hoje. O casamento de sua filha aconteceu depois da missa dos seus filhos Isaac e

Antonino que aconteceu na capela. A cerimônia foi na sala grande da casa da família,

onde acontecia as celebrações. Ele aproveitou a data da missa dos filhos e comemorou o

casamento de sua filha. Ele contava com a presença de muitos amigos que o prestigiava

ao tempo que prestavam solidariedade. No dia foi motivo de dor e alegria. Dor por

conta das mortes, alegria por conta da união. Apesar de não ser a ocasião mais

agradável, o pai [José Pio] contou com a certeza da vinda de todos os seus conhecidos.

Era daquelas ocasiões de juntarem todos os amigos e familiares, e servir muita comida.

E uma coisa que minha avó sempre dizia, era que comida sempre tinha muita, tinha que

fazer para sobrar e não faltar.

Ao lado, ver-se o título eleitoral da senhora Adelina Pio. Ela contava que escapou da sanha dos revoltosos,

foragindo-se numa localidade distante conhecida como Chapada do Cristovinho.

Ao desenvolvermos a pesquisa descobrimos que a passagem da longa marcha no Povoado

Tabuleiro dos Pio deixaram marcas profundas, no inconsciente coletivo dos habitantes desse

povoado, junto a elas as lembranças das pessoas que envolvidas perderam suas vidas.

49

A mesma Capela de São José da Comunidade Tabuleiro dos Pio, fundada em 1927, vista por outro ângulo. Zé

Pio já havia iniciado o projeto de fundação do cemitério ao ter sepultado o primeiro dos filhos Raimundo, em

seguida os vizinhos continuaram ao ter sepultados os dois que foram assassinados.

Além de falar de religião, o sacerdote mostra zelo pela história e memória do povoado.

A fundação da Capela do povoado Tabuleiro Pio, está ligado à morte dos filhos do

fazendeiro José Pio, meu bisavô, que em 1926 sofreu com os danos da passagem das

tropas rebeldes por essa região. José Pio foi banido do direito mais sagrado que a

família podia ter, que é sepultar os parentes com todas as honras fúnebres. Até onde

sabemos no dia em que aconteceram as mortes, o restante da família Pio estava

desesperada e foragida nos canaviais com medo que pudessem acontecer mais mortes,

por isso não tiveram condições de sepultar Isaac e Antonino, quem fez isso naquele

momento foi uma família conhecida por Felicianos, que eram vizinhos e amigos da

família de José Pio. A família de Zé Pio só veio a retorna para sua residência depois de

um mês, e ainda com medo dos revoltosos estarem por ali.

O zelo pelo local, segundo o padre Pio, entrevistado, representa mais que a tradição

católica, de certa forma, incorpora também uma espécie de dívida para com as vítimas que não

tiveram honras fúnebres.

Inconformado com as perdas, claro mais por conta dos filhos, o pai que era muito

católico, ficou indignado com o fato dos filhos não terem tido as honras merecidas.

Uma das preocupações dos Pio naquele tempo era de ver seus parentes partirem bem

vestidos, em bons caixões, mostrando que se preocupavam com a aparência até nessas

horas, e com os filhos de José Pio não teria sido assim. Meu bisavô [José Pio] não se

conformava nem aceitava o fato dos filhos terem sido enterrados como mendigos, nem

se quer missa de sétimo dia tiveram, que é de tradição cristã e como bons católicos

precisaram de ajuda espiritual para superarem esse momento e quem prestou essa

assistência na época foi o Padre João Hipólito que era amigo pessoal da família. O

sepultamento dos seus filhos foi feito ao lado de outro irmão que se chamava Raimundo

que teria morrido aos quartoze anos e teria sido enterrado já próximo a residência de

José Pio. O pai depois de um ano, isso já em 1927 encontrou oportunidade de

homenagear os filhos, depois de reestruturem a fazenda Tabuleiro, decidiu fundar a

capela da comunidade, justamente onde os filhos estavam enterrados para homenageá-

los e ao mesmo tempo cultuar a religião católica e sua devoção a São José.

Nem simpatia, nem apatia, a palavra era medo do desconhecido mesmo, que exigia correr,

lutar ou morrer. a chamada guerra de movimento foi sangrenta e deixou saldos tenebrosos na

história de Picos, embora Prestes a referisse como necessária, justa e oportuna.

A guerra no Brasil, qualquer que seja o terreno, é a “guerra de movimento”. Para nós,

revolucionários, o movimento é a vitória. A guerra de reserva é a que mais convém ao

50

governo que tem fábricas de munição, fábricas de dinheiro e bastantes analfabetos para

jogar contra as nossas metralhadoras. 59

(DEPOIMENTO DE PRESTES)

Embora as regras de conduta fossem todas em torno de objetivos definidos, ficou

evidenciado que a Coluna, em sua marcha pelo Brasil, tentava fazer justiça, queimando livros e

listas de cobranças de impostos, soltando os prisioneiros e destruindo os instrumentos de tortura

que encontrava. Mas ao contrário do que imaginavam inicialmente em seus integrantes, o

comportamento dos revolucionários não conquistava a simpatia dos humildes e injustiçados.

Como também não era suficiente para mobilizá-los a uma participação ativa na luta.

A própria Anita Leocádia, se reportando acerca da questão agrária, admite que, a

oficialidade da Coluna não tinha a menor idéia do problema da terra, não avaliava a importância

dessa questão para o trabalhador rural. Por isso não foi capaz de propor ao homem do campo um

programa que o atraísse. Era sintomático que a Coluna tratasse o fazendeiro e o trabalhador rural

do mesmo jeito. Prestes é explicito: “ Essa noção de classe, nós não tínhamos ainda. Tratavamos,

às “vezes, o fazendeiro melhor do que o camponês.” 60

59

PRESTES, Anita Leocádia. A Coluna Prestes. 3ª ed. São Paulo, Brasiliense, 1991, p.421. 60

Idem, P. 108

51

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Face ao estudo realizado, se tivermos que concluir algo a esta altura, será pela

inconclusão, ou pelo menos a existência de muitas versões para o mesmo fato. Cumpre, nesta

direção, reforçar, diante dos objetivos deste trabalho, que a visão historiográfica de heróis da

Revolução é compatível com muitos fatos e objetivos da Marcha. A súmula de suas ações era

realmente liberdade e justiça.

Há entretanto, que se atentar para uma nova historiografia, haja visto a constatação

de que pessoas que lutaram e falaram em nome do Cavaleiro da Esperança cometeram excessos

indeléveis; não libertando, oprimindo; não cultivando a esperança, matando-a. Em Tabuleiro dos

Pio, como em todo o sudeste piauiense, estas faces de morte e vida se cruzam, deixando

profundas marcas por onde passaram.

Quanto aos motivos, encontram-se muitos. A própria gênese da Coluna Prestes, forjada

numa conjuntura política administrativa oligárquica, burocrática e corrupta teria desencadeado os

principais levantes armados, capitaneados por militares de média e alta patentes, com o apoio de

outros segmentos da população brasileira. É o caso da Revolta do Forte de Copacabana e do

Levante de São Paulo.

Mas consideramos, ainda nesse liame, que movimentos que eclodem no eixo sul e sudeste

do país em meados da década de 1920 e percorrem o país, adentrando o norte e nordeste

chegaram com muitas de suas práticas destonantes de seus objetivos, tendo sido o que ocorreu,

em parte, com a Grande Marcha pela liberdade.

Constatamos, neste particular, que a passagem da Coluna por Picos foi marcada por

saques e prisões, entre as quais, a do então intendente (prefeito) Elizeu Pereira Nunes, torturado,

feito refém, após os revoltosos terem neutralizado as forças legalistas. Conforme já relatado, em

suas táticas de guerrilha a Marcha se afasta dos grandes centros, buscando proteção para seus

próprios homens, bem como, buscando a ampliação de seus contatos com a população rural,

tendo sido assim que chegaram a Tabuleiro. O isolamento e a própria geografia do lugar os teria

levado a estabelecer-se, montar uma guarda provisória e estudar a região de forma mais acurada.

52

Sucessivos erros de visão acerca dos tipos humanos que encontrariam pela frente os

levariam a cometer excessos como açoites de pequenos agricultores, trabalhos forçados, lutas,

incêndios, torturas e mortes, com perdas de ambos os lados. O vazio historiográfico desta

passagem requisita a lembranças de velhos descendentes das vítimas do massacre.

Reconhecemos que os integrantes da Coluna não foram amistosamente bem recebidos em

Tabuleiro, até porque já havia da parte da comunidade, inúmeras referências ruins a um

desconhecido, conhecido pelas informações da ideologia oficial, tratando-o não como

libertadores, justiceiros e sim como saqueadores, bandidos, desordeiros, estupradores e ladrões de

dinheiro, de ouro, de alimentos e de animais de montaria.

Como consequência, o saldo de três mortes, além de espancamentos e incêndios de casas

e pequenos engenhos de subsistência marcam preponderantemente a memória coletiva de

Tabuleiro, de modo que, passadas nove décadas que separam cinco gerações da família Pio deste

episódio, as marcas estão no meio físico e cultural, como também no inconsciente, à medida que

cada habitante do lugar externa a dor da perda e da desonra a que seus ancestrais foram

submetidos.

São lutas de heróis vencidos, povo e revolucionário, pelo medo, pela ignorância, pelos

choques culturais que dificultaram a aproximação entre ambos.

53

REFERÊNCIAS

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Letras, 2011.

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54

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ENTREVISTADOS

BORGES, Francisca Pio de Sousa.

BORGES, Eva Feitosa.

FEITOSA, Francisca Pio.

GONÇALVES, José Pio.

IBIAPINA, Antônio de Moura Fontes

LEAL, Teresa Pio.

RIBEIRO, Francelina Macedo de Holanda.

SILVA, Maria de Jesus Pio da.

SILVA, Helena Pio de Sousa.

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APÊNDICE

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Roteiro de entrevista

1- O senhor (a) está disponível para me conceder espontaneamente está entrevista?

2- Qual o seu nome completo? Qual a sua idade?

3- O senhor (a) conhece a família Pio? Qual o seu grau de parentesco com ela?

4- Conhece alguma coisa sobre a passagem da coluna prestes em Picos? Mais exatamente no

Povoado Tabuleiro dos Pio? Já ouviu falar sobre esse assunto?

5- Conhece alguma coisa sobre a passagem DOS REVOLTOSOS em Picos? Mais

exatamente no Povoado Tabuleiro dos Pio?

6- Para o senhor (a) o que ti lembra o nome revoltoso?

7- Esse nome faz relação com algum fato conhecido pelo (a) senhor (a)?

8- Esse acontecimento foi contado ao senhor (a) por quem?

9- Como o (a) senhor (a) conseguiu absorver esse assunto?

10- O que o senhor (a) sabe a respeito da passagem da coluna prestes em Picos na década de

vinte?

11- Qual o principal fato que marca a sua memória a respeito da passagem dos “revoltosos”

nessa região?

12- Qual a principal representação que o (a) senhor (a) faz quando se fala dos revoltosos?

Como consegui lembrar dele?

13- Como foram as principais atitudes que esse grupo tomou quando chegou até o povoado

Tabuleiro dos Pio?

14- Por que escolheram justamente passar por aquele povoado?

15- As histórias que você ouviu falar sobre esse mesmo assunto coincidem? Possuem o

mesmo contexto?

16- Quais são as pessoas que você conhece que estão envolvidos nesse episodio, conhecido

como Batalha no Tabuleiro dos Pio?

17- O (a) senhor (a) tem noticia se outras pessoas já procuraram o povoado Tabuleiro dos Pio

para pesquisarem sobre o assunto? Já houve outra oportunidade para o senhor (a) falar

sobre o assunto?

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18- O (a) senhor (a) continua contando essa mesma história a alguns de seus parentes? Eles

se interessam pelo assunto?

19- O (a) senhor (a) acha importante esse trabalho que estou fazendo?

20- Pensa que existe necessidade de transmitir esses conhecimentos a outros parentes, para

assim compartilhem dessa história apesar de antiga?