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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
ADRIANA ORTEGA CLÍMACO
HISTÓRIA E FICÇÃO NA REPRESENTAÇÃO DE EVA PERÓN: margens confluentes
RIO DE JANEIRO
2017
ADRIANA ORTEGA CLÍMACO
HISTÓRIA E FICÇÃO NA REPRESENTAÇÃO DE EVA PERÓN: margens confluentes
1 volume
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Letras Neolatinas como quesito para a
obtenção do Título de Doutora em Letras
Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos).
Orientadora: Professora Doutora Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva.
Rio de Janeiro
2017
CIP - Catalogação na Publicação
Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com osdados fornecidos pelo(a) autor(a).
O639hOrtega Clímaco, Adriana História e ficção na representação de Eva Perón:margens confluentes / Adriana Ortega Clímaco. -- Riode Janeiro, 2017. 184 f.
Orientadora: Cláudia Heloisa Impellizieri LunaFerreira da Silva. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Riode Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de PósGraduação em Letras Neolatinas, 2017.
1. Eva Perón. 2. Ficção. 3. Imaginário. 4.História. 5. Literatura argentina. I. HeloisaImpellizieri Luna Ferreira da Silva, Cláudia,orient. II. Título.
ADRIANA ORTEGA CLÍMACO
HISTÓRIA E FICÇÃO NA REPRESENTAÇÃO DE EVA PERÓN: margens confluentes
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Letras Neolatinas da Universidade Federal do
Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos
necessários para a obtenção do título de Doutora
em Letras Neolatinas (Estudos Literários
Neolatinos).
Aprovada em:___/___/____
___________________________________________________________________________
Profa. Dra. Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva – UFRJ
Presidente
___________________________________________________________________________
Prof. Dra. Elena Palmero González - UFRJ
___________________________________________________________________________
Prof. Dra. Ana Cristina dos Santos - UERJ
___________________________________________________________________________
Prof. Dra. Elda Firmo Braga – UERJ
___________________________________________________________________________
Profa. Dra. Suely Reis Pinheiro – UFF
___________________________________________________________________________
Profa. Dra. Silvia Inés Cárcamo de Arcuri – UFRJ
___________________________________________________________________________
Prof. Dr. Luciano Prado da Silva – UFRJ
À saudosa memória de minha mãe, Salete Ortega.
Para meu pai, Lourival Ortega.
Para meu amores, André Gustavo e Dandara.
AGRADECIMENTOS
A minha família, em especial aos meus sogros, Antônio e Jandyra Clímaco: sem sua acolhida
e ajuda tudo seria muito mais difícil.
A Elizabeth e Isabela Mattozinho pelo cuidado amoroso de Dandara.
Aos amigos pelo apoio constante.
A Professora Cláudia Heloisa Iméllizieri Luna Ferreira da Silva pela paciência e orientação
precisa.
Aos Professores integrantes da Banca de Exame desta tese, Elena Cristina Palmero González,
Ana Cristina dos Santos, Elda Firmo Braga, Suely Reis Pinheiro, Silvia Inés Cárcamo de Arcuri,
Luciano Prado da Silva.
Ao Instituto Federal de São Paulo pelo afastamento para escrita desta tese.
RESUMO
CLÍMACO, Adriana Ortega. História e ficção na representação de Eva Perón: margens
confluentes. Rio de Janeiro, 2016. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) – Faculdade de
Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
O tema do presente trabalho é a relação entre história e ficção na representação de Eva Perón.
São analisadas a autobiografia La razón de mi vida, de Eva Perón, o romance Santa Evita, de
Tomás Eloy Martínez, e a biografia Evita: jirones de su vida, de Felipe Pigna. Apresentam-se
questões relativas ao efeito de historicidade construído na narratividade do discurso histórico,
bem como os mecanismos de ficcionalização da matéria histórica. As obras foram analisadas a
partir dos conceitos de história e historiografia de Bloch, Certeau, White e Benjamin; ficção,
de Iser; autobiografia, pacto autobiográfico e autoficção, de Pozuelo Yvancos, Lejeune,
Bourdieu e Alberca; hagiografia, de Certeau, e imaginário, de Le Goff. Verificou-se em La
razón de mi vida, a representação autobiográfica, em Santa Evita, a hagiográfica e, em Evita:
jirones de su vida, a política. Foram observados os elementos criadores do efeito de
historicidade, por um lado, e os ficcionalizadores da história, por outro. A reflexão considerou
também o imaginário evitista na confluência entre as margens da história e da ficção.
PALAVRAS-CHAVE: Eva Perón – Ficção – Imaginário – História – Literatura argentina
RESUMEN
CLÍMACO, Adriana Ortega. História e ficção na representação de Eva Perón: margens
confluentes. Rio de Janeiro, 2016. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) – Faculdade de
Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.
El presente trabajo tiene como finalidad la relación entre historia y ficción en la representación
de Eva Perón. Se analizan la autobiografía La razón de mi vida, de Eva Perón, la novela Santa
Evita, de Tomás Eloy Martínez, y la biografía Evita: jirones de su vida, de Felipe Pigna. Se
presentan cuestiones a cerca del efecto de historicidad construido en la narratividad del discurso
histórico, así como los mecanismos de ficcionalización de la materia histórica. Se analizaron
las obras a partir de los conceptos de historia e historiografía de Bloch, Certeau, White y
Benjamin; ficción, de Iser; autobiografía, pacto autobiográfico y autoficción, de Pozuelo
Yvancos, Lejeune, Bourdieu e Alberca; hagiografía, de Certeau, e imaginario, de Le Goff. Se
verificó en La razón de mi vida, la representación autobiográfica, en Santa Evita, la
hagiográfica y, en Evita: jirones de su vida, la política. Se observaron los elementos creadores
del efecto de historicidad, por un lado, y los ficcionalizadores de la historia, por otro. La
reflexión consideró también el imaginario evitista en la confluencia entre las orillas de la
historia y la ficción.
PALAVRAS-CLAVE: Eva Perón – Ficción – Imaginario – Historia – Literatura argentina -
ABSTRACT
CLÍMACO, Adriana Ortega. História e ficção na representação de Eva Perón: margens
confluentes. Rio de Janeiro, 2016. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) – Faculdade de
Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 20167
The aim of this work is relating history and fiction in the representation of Eva Perón. The
autobiography La razón de mi vida by Eva Perón, the novel Santa Evita by Tomás Eloy
Martínez, and the biography Evita: jirones de su vida by Felipe Pigna were analyzed. They
present issues about the effect of historicity built on the narrativity of historical discourse, as
well as the mechanisms for the fictionalization of historical matter. The works were analyzed
from history and historiography concepts by Bloch, Certeau, White and Benjamin; from fiction
by Iser; autobiography, autobiographical Pact and autofiction by Pozuelo, Yvancos Lejeune,
Bourdieu and Alberca; hagiography by Certeau, and imaginary by Le Goff. In La razón de mi
vida, the autobiographical representation was found, in Santa Evita, the hagiographic
representation and in Evita: jirones de su vida, politics. The elements observed were the effect
of historicity, on the one hand, and the fictionalizers of history, on the other. The study also
considered the imaginary of Evita at the confluence between the margins of history and fiction.
KEYWORDS: Eva Perón – Fiction – Imaginary – History – Argentine literature
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 13
1 ENTRE A HISTÓRIA E A FICÇÃO 19
1.1 O efeito de historicidade 27
1.2 O espaço biográfico 38
1.3 O imaginário: confluência da história e da ficção 51
2 REPRESENTAÇÃO AUTOBIOGRÁFICA DE EVA PERÓN 54
2.1 Pacto autobiográfico e formação de si na narrativa 54
2.2 Relato autobiográfico da infância: construção de si vinculada ao projeto
político peronista 62
2.3 Lar e família: alegorias da nação 68
2.4 Efeito de historicidade em La razón de mi vida 73
3 REPRESENTAÇÃO HAGIOGRÁFICA DE EVA PERÓN 81
3.1 Origens: infância de Eva Perón em Santa Evita 82
3.2 Evita longe de ser Evita: do anonimato à ascensão 86
3.3 Nomes de Evita 93
3.4 Irrupção do maravilhoso: maldições, milagres e relíquias de “Santa” Evita 98
3.5 Modo de narrar: autoficção, metáfora animal e alegoria da história 105
4 REPRESENTAÇÃO POLÍTICA DE EVA PERÓN 114
4.1 Efeito de historicidade em Evita: jirones de su vida 114
4.1.1 De “Cholita” a “Esa mujer”: cronologização da biografia de Eva Perón 115
4.1.2 Visão panorâmica: contextualizão 122
4.1.3 Definir ideias: conceitualização 127
4.1.4 Discussão das fontes e versões 129
4.1.5 Autor historiador 133
4.2 Ficcionalização da história 136
4.2.1 Marcas de si: subjetividade 136
4.2.2 Contando uma história: enredo e diálogo 144
5 MARGENS CONFLUENTES: IMAGINÁRIO EVITISTA 147
5.1 O mito de Evita 147
5.2 Margens confluentes 157
CONSIDERAÇÕES FINAIS 163
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 167
ANEXO A 178
ANEXO B 182
13
INTRODUÇÃO
A presente tese doutoral propõe investigar a relação entre história1 e ficção na
representação de Eva Perón (1919-1952) na autobiografia La razón de mi vida (1951), no
romance Santa Evita (1995), de Tomás Eloy Martínez (1934-2010), e na biografia histórica
Evita: jirones de su vida (2012), de Felipe Pigna (1959), obras ficcional e não ficconal,
respectivamente. O tema das obras é a vida de Eva Maria Duarte de Perón (1919-1952),
conhecida como Evita, mulher do ex-presidente da Argentina, Juan Domingo Perón (1895-
1974), figura emblemática para o Peronismo (movimento político derivado do nome do ex-
presidente), caracterizado, dentre outras razões, por políticas trabalhistas.
Em sua autobiografia, La razón de mi vida, Eva Perón dedicou-se a apresentar os
fundamentos de seu interesse pelas causas populares e seu apoio ao presidente Perón, seu
marido.
Em linhas gerais, Santa Evita tematiza, além da vida e morte de Eva Perón, o
sequestro e a ocultação de seu cadáver embalsamado. Neste romance que é também uma
biografia ficcional, o mito de Evita é recriado através da união entre história e ficção como
principal procedimento narrativo.
A biografia Evita: jirones de su vida, escrita pelo historiador Felipe Pigna, relata
eventos da vida de Eva Perón, apresentando farta documentação para situá-la historicamente a
partir de seu papel na política argentina.
A questão da relação entre a história e a ficção, de suas similaridades e diferenças, do
que emerge na confluência de suas margens motiva-me há tempos, razão pela qual graduei-
me em letras após concluir a graduação em história. Refletir sobre variadas representações
forjadas na tessitura discursiva permite conhecer um pouco mais da experiência humana e de
seu imaginário.
A motivação para o estudo desta temática relacionada à representação de Eva Perón
surgiu após a análise de Santa Evita que realizei, anteriormente, em dissertação de mestrado.2
Na ocasião, considerei como sua característica principal a relação entre história e ficção,
verifiquei a relativização dos limites desses campos em duas margens complementares:
ficcionalização da história e efeito de historicidade da ficção (CLÍMACO, 2014, p. 59, 60). A
1 Na presente tese, opto pelo uso da palavra história com inicial minúscula, seguindo o uso mais comum entre os
teóricos da história e da literatura nos quais se apoia este trabalho, não se fazendo, portanto, distinção gráfica da
história como disciplina dos demais sentidos da palavra. 2 A dissertação foi publicada sob o título História e ficção em Santa Evita (CLÍMACO, 2014).
14
identificação dos procedimentos relativizadores no romance levou-me a questionar se estes
também estariam presentes em obra não ficcional. Por este motivo, optei por analisar a
autobiografia LRMV3 e a biografia EJSV. Além disso, retomo o estudo de SE para analisar o
relato da biografia de Evita como vida de santo, hagiografia.
Para situar os autores com relação às suas obras, expõem-se a seguir alguns dados de
suas biografias.
María Eva Duarte de Perón nasceu em 1919, em Los Toldos, província de Buenos
Aires. Filha natural de Juana Ibarguren e de Juan Duarte, que não a reconheceu, fato este que
marcou sua infância. Mudou-se para a capital aos quinze anos e ali iniciou sua carreira de
atriz. Em 1944, conheceu Perón durante um ato beneficente para as vítimas de um terremoto
em San Juan. Casaram-se em 1946. Desenvolveu intenso trabalho ao lado de seu marido. A
partir de sua iniciativa, fundou o ramo feminino do Partido Peronista e instituições de
assistência como a Fundação Eva Perón, dentre outras, à qual dedicava até dezoito horas
diárias de trabalho.
Por sua dedicação aos mais humildes, foi por eles reverenciada, carinhosamente
chamada de Evita, embora seus opositores reservassem-lhe epítetos desrespeitosos como
“Essa mulher”, “Égua”, etc. Tornou-se um dos expoentes do peronismo, talvez mais popular
que o próprio Perón, embora sempre declarasse estar a sua sombra. Escreveu LRMV,
publicado em 1951, Mi mensaje, editado postumamente, e uma obra pouco conhecida,
Historia del peronismo, segundo Alicia Poderti (2010, p. 78), igualmente editada
postumamente, fruto das aulas sobre peronismo que ministrou na Escola Superior Peronista.
Faleceu em 26 de julho de 1952, vítima de câncer de útero, doença que a deixou muito
debilitada nos últimos meses de vida.4
Autor de SE, Tomás Eloy Martínez (1934-2010), argentino, nascido em Tucumán,
além de escritor literário teve intensa atuação como jornalista e professor universitário de
literatura. Sua longa carreira no jornalismo e na escrita de romances é destacada por Oviedo
(2001, p. 407). Recebeu o Prêmio Ortega y Gasset, organizado e outorgado pelo jornal El
País, em 2009, na categoria Trajetória, por sua produção jornalística. As fronteiras entre
jornalismo e literatura diluem-se em sua carreira. Livros como La pasión según Trelew
(1974); Lugar común la muerte (1979); El sueño argentino (1999) y Requiém por un país
3 Ao longo do texto, as obras do corpora e suas citações serão identificadas pelas siglas: LRMV (La razón de mi
vida; (SE) Santa Evita e EJSV (Evita: jirones de su vida). 4 O verbete do Diccionario del peronismo (PODERTI, 2010) sobre Eva Duarte de Perón está transcrito no Anexo
A (p. 178).
15
perdido (2003) são relatos e crônicas testemunhais que exemplificam a narração da realidade
como ficção.
Martínez foi redator em periódicos, em Buenos Aires, como Primera Plana,
Panorama e La Opinión. No exílio, permaneceu na Venezuela entre 1975 e 1983, e lá fundou
e dirigiu o jornal El Diario de Caracas. No México, em Guadalajara, anos depois, organizou
o jornal Siglo 21. Além disso, foi colaborador permanente de La Nación, Argentina, El país,
Espanha, e The New York Times Syndicate. Em 2009, na Argentina, foi incorporado como
membro da Academia Nacional de Jornalismo. Em sua carreira acadêmica, fez conferências e
cursos em universidades dos Estados Unidos, Europa e América Latina, além de ser professor
emérito da Universidade de Rutgers, em Nova Jersey, na qual dirigiu o Programa de Estudos
Latino-Americanos.
A biografia publicada no site da fundação que leva seu nome, a Fundación Tomás
Eloy Martínez, menciona que talvez Martínez tenha obtido mais projeção internacional como
romancista. Publicou seu primeiro romance, Sagrado, em 1969, depois La mano del amo
(1991), El vuelo de la reina (Prêmio Internacional Alfaguara, 2002), El cantor de tango
(2004) e Purgatorio (2008). Os romances La novela de Perón (1985) e SE (1995), destaques
da literatura contemporânea, tornaram-no o autor mais traduzido da Argentina.
Sobre Martínez e suas obras La pasión según Trelew (1974), La novela de Perón
(1985) e SE (1995), comenta Jorge Carrión:
su biografía entre tres países – Argentina, Venezuela y los Estados Unidos – y su
dedicación tanto a la creación literaria como a la docencia impulsaron la difusión de
esas grandes crónicas en que la ficción es puesta al servicio de la posible verdad
histórica. (CARRIÓN, 2012, p. 25)
Autor de EJSV, Felipe Pigna nasceu em Mercedes, província de Buenos Aires, em
1959. Professor de História, dirige o Centro de Difusão da História Argentina da
Universidade Nacional de San Martín. Historiador que segue linha revisionista da história
argentina, Pigna goza de prestígio neste país, aproximando a história ao grande público
através de diferentes meios: livros, artigos em jornais e revistas, histórias em quadrinhos,
programas em rádio e televisão, filmes, páginas na internet e nas redes sociais, nas quais
interage com o público.
Exemplificando sua atuação na difusão de temas históricos junto ao grande público,
destaca-se a série televisiva que dirigiu, Algo habrán hecho por la historia argentina,
transmitida pelo Canal 13 e Telefé, que chegou a alcançar 25 pontos de audiência no horário
principal e obteve o Prêmio Martín Fierro 2006 e 2007 de melhor programa cultural argentino
e o Prêmio Clarín de melhor programa jornalístico em 2006 e 2009. Atualmente, conduz o
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ciclo de entrevistas ¿Qué fue de tu vida? no Canal 7. Dirigiu o projeto “Ver a história” que
originou o documentário 200 anos de história argentina, série exibida em treze capítulos pela
TV Pública e pelo Canal Encontro. Apresentou a série de documentários sobre os
bicentenários, Unidos pela Historia, do History Channel, que foi transmitida simultaneamente
em toda a América Latina e recebeu o Prêmio Martín Fierro de melhor documentário em
2011.
Publicou El mundo contemporâneo (1999), La Argentina contemporânea (2000),
Pasado en presente (2001), Historia confidencial (2003), Los mitos de la historia argentina
(2004), Los mitos de la historia argentina 2 (2005), La larga noche de la dictadura y La
noche de los bastones largos (2006, em conjunto com María Seoane), Los mitos de la historia
argentina 3 (2006), La historieta argentina (2007, coleção de histórias em quadrinhos), Evita
(2007), José de San Martín: documentos para su historia (2008), Los mitos de la historia
argentina 4 (2008), Historias de nuestra historia: una historia animada para chicos y no tan
chicos (seis volumes, 2009), 1810, La otra historia de nuestra Revolución fundadora (2010),
Libertadores de América (2010, Prêmio Manuel Alvar, em Madrid), Mujeres tenían que ser
(2011), Los mitos de la historia argentina 5 (2013), Al gran pueblo argentino, salud (2014),
La voz del gran jefe (2014).
As produções historiográficas de Felipe Pigna alcançam grande difusão, como dito
anteriormente. Parece interessante observar este fenômeno de divulgação da história
argentina. Não se propõe aqui uma investigação da história da leitura ou da recepção destas
obras, mas verificar um elemento que parece estar relacionado a este gosto pela história,
especificamente, pela história produzida por Pigna: o modo como se constrói a narração dos
eventos históricos. Além disso, o papel do autor historiador como produtor da história.
Cabe ressaltar o motivo pelo qual escolhi, ao invés da obra Evita (2007), para compor
o corpus da tese EJSV (2012) publicadas, respectivamente, em comemoração aos cinquenta e
cinco e aos sessenta anos de falecimento de Eva Perón. A segunda publicação é versão
revisada da primeira sem, contudo, as fotografias ali apresentadas. A primeira publicação
parece destinar-se ao público em geral, ávido por leituras sobre Evita, e não especificamente
aos acadêmicos. Isto se verifica, graficamente, através da diagramação desse livro em
tamanho grande (28 x 21 cm), para valorizar as fotografias, sendo o outro, em tamanho menor
(23 x 15 cm). Além disso, na segunda publicação, o autor discorre sobre a necessidade de
apresentar Evita como ente político, preocupação não evidenciada no texto anterior.
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Assim, a tese de doutorado reúne o corpus apresentado composto por obras de caráter
híbrido, narrativas de histórias de vida, para responder aos seguintes problemas de pesquisa:
em primeiro lugar, como se dá a relação entre história e ficção na construção da representação
de Eva Perón; em segundo lugar, que elementos presentes nas obras relativizam tal relação,
ficcionalizando a matéria histórica, por um lado, e criando o efeito de historicidade da ficção,
por outro; qual o papel do historiador na criação do efeito de historicidade.
As hipóteses iniciais para resolução desses problemas são: em LRMV, Eva Perón
constrói uma representação de si vinculada ao projeto político peronista; em SE, a
representação de Eva Perón é feita seguindo o gênero hagiográfico, e que tal gênero contribui
para a criação do efeito de historicidade; a metáfora animal, presente em SE, constitui o modo
de narrar do romance; a biografia EJSV apresenta elementos ficcionalizadores da matéria
histórica em sua composição e, ao mesmo tempo, transforma ficção em relato histórico; a
autoria do historiador realiza o efeito de historicidade.
No primeiro capítulo, Entre a história e a ficção, discuto o conceito de história como
ciência dos homens no tempo, segundo Marc Bloch, e uma construção regida por um conjunto
de práticas científicas, de acordo com Michel de Certeau, além de uma narrativa, como
apontado por Hayden White, e o papel do historiador alegorista, segundo Walter Benjamin.
Sobre a ficção, apoio-me na reflexão proposta por Wolfgang Iser. Após essas considerações, o
capítulo apresenta os demais conceitos constituintes da fundamentação teórica deste trabalho,
dividindo-se em três partes: o efeito de historicidade, o espaço biográfico e o imaginário na
confluência da história e da ficção.
A respeito do efeito de historicidade, observo como este é criado de modo textual na
narratividade e paratextualmente. Como elementos textuais criadores do efeito de
historicidade são identificadas as notas, as citações, o tratamento do tempo, a objetividade, a
conceitualização, a cronologização, a criação do enredo e a argumentação. Quanto ao
elemento paratextual, a presença do nome próprio do historiador autor com seu duplo
reconhecimento – dos pares e do público – possibilita o efeito de historicidade.
As obras que compõem o corpora dessa pesquisa são vistas como integrantes de um
espaço biográfico constituído por autobiografia (LRMV), biografia ficcional (SE) e biografia
histórica (EJSV). Reflito sobre autobiografia, pacto autobiográfico e autoficção, lançando mão
das discussões de Pozuelo Yvancos, Lejeune, Bourdieu e Alberca. Sobre hagiografia, apoio-
me em Certeau e Jolles.
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Enquanto caminhava a pesquisa, a questão do imaginário surgiu claramente como o
elemento que resulta da confluência entre a história e a ficção, por este motivo este capítulo
teórico também apresenta reflexões sobre este conceito, a partir das proposições de Jacques
Le Goff.
No segundo capítulo, Representação autobiográfica de Eva Perón, analiso LRMV.
Identifico o pacto biográfico e a construção de si na narrativa, o relato da infância relacionado
ao projeto político peronista. Observo também a construção do lar e da família como alegorias
da nação. Apresento os elementos que possibilitam o efeito de historicidade na obra: autoria e
pacto autobiográfico; construção do enredo; detalhes; referências a personagens e instituições
reais; menção de datas históricas; citação de documentos; conceitualização e fotografias.
No terceiro capítulo, Representação hagiográfica de Eva Perón, analiso SE. Observo
como a narrativa apresenta elementos do relato da hagiografia, construindo ficcionalmente a
vida de Evita como um relato de “Vida de santo”5, narrando suas origens; sua ascensão, seus
nomes e designativos. Observo a irrupção do maravilhoso e, por fim, o modo de narrar
composto de autoficção, metáfora animal e alegoria da história.
No quarto capítulo, Representação política de Eva Perón, analiso EJSV. Identifico os
elementos criadores do efeito de historicidade, por um lado, (cronologização,
contextualização, discussão de fontes e versões, e autoria do historiador) e que revelam a
ficcionalização da história, por outro (subjetividade, enredo e diálogo).
No quinto capítulo, Margens confluentes: o imaginário evitista, discuto o mito de
Evita em sua dicotomia, antiperonista e peronista, e o relaciono às representações
autobiográfica, hagiográfica e política, refletindo sobre o imaginário evitista na confluência
entre a história e a ficção.
Por fim, apresento as Considerações finais e as Referências bibliográficas, bem como
os Anexos A, B e C.
5 A hagiografía também é conhecida como “Vida de santo”.
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1. ENTRE A HISTÓRIA E A FICÇÃO
Ao refletir sobre história e ficção, parto da lacuna apontada por Cristine F. Mattos, em
“Para uma reflexão teórica na leitura de obras de Tomás Eloy Martínez” (2003) para o
desenvolvimento da presente pesquisa. Mattos, ao refletir teoricamente sobre as obras de
Tomás Eloy Martínez, afirma que SE permite adentrar universos de fronteiras movediças
entre a literatura e a história. A autora observa que faltariam aos trabalhos que analisam a obra
martineziana desbravar complexa rede estrutural produtora do apagamento das fronteiras
literária e histórica. Destaca que o texto de Martínez pode ser definido pela presença
simultânea de gêneros e subgêneros, ao invés de se buscar optar por um entre os diversos
gêneros (CLÍMACO, 2014, p. 20).
A fundamentação teórica do presente trabalho articula, portanto, conceitos de história,
ficção, narrativa de extração histórica, elementos relativizadores dos limites entre história e
ficção, hagiografia, biografia e imaginário.
Quanto à conceituação de história, trabalho com a concepção de Marc Bloch da
história como a ciência dos homens no tempo e não, simplesmente, a ciência do passado
(1992, p. 26). Desta forma, não se toma o passado como tempo privilegiado, voltando-se a
história para a existência humana.
Ampliando essa concepção, acrescento a teoria proposta por Michel de Certeau
(2000). Para este autor, a história é uma operação que segue um conjunto de práticas
científicas. Tais práticas envolvem a pesquisa, o tratamento dos fatos e sua divulgação na
forma textual (CERTEAU, 2000, p. 22). Essa operação histórica possui um duplo efeito: por
um lado, historiciza o atual, presentifica uma situação vivida; por outro, a imagem do passado
mantém o seu valor primeiro de representar aquilo que falta. Do presente, parte-se para o
passado, buscando-se uma compreensão para uma falta, objetivando preencher uma lacuna. A
historiografia, portanto, nesta concepção, está em permanente construção, é inacabada. O
historiador identifica lacunas no trabalho de outros pesquisadores, na abordagem tradicional
ou costumeira de determinado evento. Estas lacunas são disfarçadas pelo historiador,
formando o não dito, o silêncio sobre o que não se pode verificar, afinal o historiador não
confessa em sua produção o que não localizou, o que faz com que seu discurso pareça
completo, fechado, acabado (CLÍMACO, 2014, p. 23).
Certeau verifica uma função na história que, enquanto escrita, possui caráter didático,
passa valores e permite à sociedade contar-se (2000, p. 55). O autor reflete sobre a
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textualidade da história: seu tecido organiza unidades de sentido e nelas opera transformações
cujas regras são determináveis. Desta forma, a historiografia torna-se objeto semiótico, na
medida em que constitui um relato ou um discurso próprio (ibdem, p. 51). Através do texto, a
história se dá a conhecer e isto revela que trabalha sobre o limite, situada com relação a outros
discursos, recortando seu objeto de análise e desenvolvendo sua própria discursividade
(ibdem, p. 50). Nesta tese, reflete-se sobre a discursividade peculiar da história, a
historicidade.
Sobre os limites, Certeau (2000, p. 55) afirma que, ao ultrapassá-los, a história
deixaria seu lugar, decompondo-se em ficção (narração do que aconteceu) ou reflexão
epistemológia (elucidação de suas regras de trabalho). Seria, portanto, possível entender seus
limites como perceptíveis, bem marcados por imposições e particularidades (ibdem, p. 66)
que permitem ao discurso produzido a partir da pesquisa historiográfica seu reconhecimento
por outros historiadores. A história é mediatizada pela técnica, segundo o autor (ibdem, p. 78),
colocando-se ao lado da ciência na medida em que prioriza seu modo próprio de constituir-se.
A não utilização das técnicas da história a colocariam ao lado da literatura.
A ficção, por sua vez, não está presa a limites. Embora regida por um conjunto de
técnicas, a ficção é livre. Seu conjunto de técnicas textuais visa à produção de um sentido que
permita a manifestação do espírito e da arte, não exatamente a um domínio, a um campo
científico, se comparada à história.
Em comum, narrador literário e historiador possuem a escrita para contar suas
histórias e divulgar suas pesquisas, respectivamente. É o modo de narrar que difere. O
historiador constrói o discurso histórico, com recursos textuais tais como notas, citações,
discussão de fontes, etc., específicos ao gênero narrativa histórica. Seu discurso objetiva a
construção de um conteúdo verificável, perceptível, atestável a partir da materialidade dos
documentos, das fontes. No entanto, cabe destacar, a história não é apenas o fato, o evento
relatado ou vislumbrado no documento, mas o relato, a narrativa que se constrói sobre ele.
Nesse sentido, é o historiador quem, por meio da escrita, do discurso, historiciza um fato,
ampliando a história que passa a ser fato mais o discurso sobre ele produzido.
Escritor e historiador criam mundos. Entretanto, o poder criativo do escritor literário
revela-se mais abrangente: personagens, cenários, situações e diálogos nascem de sua
imaginação. Sua prática narrativa não é restringida por nada. Não há necessidade de
demonstração da veracidade dos eventos que narra. Aceita-se naturalmente o imaginário
21
como suficiente para a narrativa. O papel do imaginário na composição da narrativa permite
distinguir ficção e relato histórico.
Para refletir sobre ficção, utilizo o conceitual elaborado por Wolfang Iser (1983, p.
386), que observa que esta compõe uma tríade com o real e o imaginário. O texto literário
ficcional permite a realização do imaginário através dos atos de fingir, que são três: seleção,
combinação e autodesnudamento (ISER, 1999, p. 68). O imaginário adquire aparência de real
através dos atos de fingir. Desta forma, o mundo é representado como se fosse real.
O processo efetuado pelo autor de escolha de elementos presentes no mundo
contextual para integrar o fictício é denominado por Iser ato de seleção, o primeiro ato de
fingir (ISER, 1999, p. 68). Relacionado a este está o segundo, o ato de combinação, através
do qual relações intratextuais são criadas, possibilitando novas composições e ultrapassagem
de limites (ibdem, 1999, p. 69). Completando os atos de fingir, tem-se o terceiro,
autodesnudamento da ficcionalidade. Por meio deste ato, a literatura se dá a conhecer como
ficção, portanto algo diverso da realidade (ISER, 1983, p. 397).
Iser utiliza a expressão “como se” para explicar o modo como o mundo ficcional
representado no texto é considerado: “como se fosse real”. Isso significa que essa
representação ocorre para um determinado fim: causar reações sobre o mundo (ISER, 1983, p.
402). Isto é possível porque se irrealiza o mundo do texto, transformando-o em análogo, em
explicação do mundo, ativando assim o imaginário com a participação do leitor (ibdem, p.
406).
Segundo Jorge Carrión, a ficção está presente em textos de não-ficção:
O conflito entre Ficção e História, com suas mil metamorfoses (Religião e Ciência,
Utopia e Realidade, Sonho e Vigília, Mentira e Verdade, Especulação e
Demonstração), é o mais apaixonante de todos os que constituem, como uma tensão
vibrátil e dinâmica, ao ser humano. A não ficção é incapaz de resolver esse
problema, mas o congela provisoriamente, o põe em quarentena. Contorna-o.
(CARRIÓN, 2012, p. 26, tradução nossa).6
Importa, também, para esta pesquisa o conceito de narrativa de extração histórica,
definido por André Trouche (2006). Este conceito permite refletir sobre a narrativa que enceta
diálogo com a história, como forma de produção de saber e como intervenção transgressora.
Trouche considera em seu trabalho a existência da relação entre história e ficção na literatura,
sob formas textuais diversas, antes do advento do gênero romance histórico no século XIX. 6 No original: El conflicto entre Ficción e Historia, con sus mil metamorfoses (Religión y Ciencia, Utopía y
Realidad, Sueño y Vigilia, Mentira y Verdad, Especulación y Demostración), es el más apasionante de todos los
que constituyen, como una tensión vibrátil y dinámica, al ser humano. La no-ficción es incapaz de resolver ese
problema insoluble, pero lo congela provisionalmente, lo pone en cuarentena. Le da vuelta. (CARRIÓN, 2012,
p. 26)
22
Desta forma, elimina a tendência da crítica a tomar o romance histórico tradicional como
modelo para as obras que apresentam diálogo com a história. Com este conceito, o autor
abrange não apenas o romance e o romance histórico, mas outras formas narrativas não
classificadas como romance, enfatizando o discurso que transfere à ficção retomar e
questionar a experiência histórica, procedimento comum ao processo literário hispano-
americano (CLÍMACO, 2014, p. 55).
Fiz opção pelo conceito de narrativa de extração história em História e ficção em
Santa Evita (CLÍMACO, 2014, p. 55), devido à sua distinção com relação a outros conceitos
como: romance histórico (LUKÁCS, 1977), novo romance histórico latino-americano
(MENTON, 1993), também chamado por alguns de romance histórico hispano-americano, e
metaficção historiográfica (HUTCHEON, 1991).
Seymour Menton, em desdobramento do romance histórico de Lukács, desenvolve o
conceito de novo romance histórico latino-americano para designar a produção literária latino-
americana escrita a partir de 1979. Menton aponta que tais obras possuem como
característica: subordinação da reprodução mimética de determinado período histórico, em
graus distintos, à apresentação de algumas ideias filosóficas; distorção consciente da história
mediante omissões, exageros e anacronismos; ficcionalização de personagens históricos;
metaficção ou comentários do narrador sobre o processo de criação; intertextualidade; e
presença de conceitos bakhtinianos – dialogismo, carnavalização, paródia e heteroglosia
(MENTON, 1993, p. 42-44). Segundo o autor, para que uma obra possa ser reconhecida
como romance histórico, há um marco temporal: sua ação deve desenvolver-se total ou
parcialmente num passado não experimentado diretamente pelo autor (ibdem, p. 32). Isto
exclui de seu estudo romances que, embora possuam dimensões históricas, abordam um
período experimentado diretamente pelo autor (ibdem, p. 33).
Penso que este é um falso problema, tanto do ponto de vista ficcional, quanto do
historiográfico, pois a valorização de uma concepção de história que privilegia a visão
retrospectiva foi abandonada no século XX, a partir da Escola dos Annales (CLÍMACO,
2014, p. 51). Além disso, outro ponto discutível do posicionamento de Menton diz respeito à
característica do novo romance latino-americano que trata da história de forma a distorcê-la
através de omissões, exageros e anacronismos (MENTON, 1993, p. 43).
Considero válida não apenas apresentar uma possível distorção da história por meio de
métodos que apontam para a construção da paródia, mas discutir a história como uma
23
construção que se dá através da elaboração de versões históricas fictícias, apontando-se para
sua textualização (CLÍMACO, 2014, p.52).
Estou de acordo com Trouche para quem a classificação novo romance histórico
latino-americano, como proposta por Menton, é apressada, devido à existência de um enorme
abismo entre o romance histórico tradicional e as narrativas produzidas nas últimas décadas
(1980-2000), na América Latina (TROUCHE, 2006, p. 29).
A terminologia metaficção historiográfica, proposta por Linda Hutcheon (1991)
também tenta explicar a relação entre história e ficção, sendo caracterizadora do pós-
modernismo na literatura. Segundo Hutcheon, são assim classificados os romances famosos,
populares e autorreflexivos que, paradoxalmente, aproximam-se de acontecimentos e
personagens históricos (HUTCHEON, 1991, p. 21). Ainda segundo a autora, a recusa da
pretensão da verdade histórica e o aproveitamento das mesmas verdades e mentiras do
registro histórico são observáveis nas metaficções historiográficas (ibdem, p. 152).
Esse é um ponto a se criticar na definição de Hutcheon, visto que, como apontado por
Alcmeno Bastos (2007, p. 44), não é apropriada a questão da verdade ou da mentira do
registro histórico pois isso não é um problema para a ficção. Além disso, a história não tem
pretensão à verdade. Esta se refere ao verificável, ao que possa ser comprovado por
documentos nos quais se apoia o historiador, sendo isto absolutamente desnecessário à ficção
(CLÍMACO, 2014, p. 54).
Uma classificação genérica estrita não se constitui uma preocupação na presente tese,
por isso considero o corpus selecionado como narrativas de extração histórica. Cabe ressaltar
que, de acordo com Trouche (2006, p. 32), uma das tendências atuais que se revela bastante
proveitosa e com estudos de maior êxito e densidade é a que aponta no sentido da
relativização dos limites entre história e ficção. Isto associado ao já dito, anteriormente, sobre
o trabalho de Cristine Mattos, indica a motivação para a presente tese.
Em meu trabalho História e ficção em Santa Evita (2014), procurei seguir esta linha
investigativa, tendo como objetivo principal verificar a relativização dos limites entre história
e ficção em SE, ou seja, a dissolução das margens entre esses dois campos. Identifiquei e
analisei, nesta narrativa de extração histórica, as estratégias, os procedimentos, os recursos
textuais que permitem o que chamei de ficcionalização da matéria histórica por um lado e, por
outro, os que criam o efeito de historicidade na ficção, sem que estas margens sejam
intransponíveis, ou seja, são margens complementares (CLÍMACO, 2014, p. 59).
24
Tomo de empréstimo a expressão “efeito de historicidade”, utilizada por Alcmeno
Bastos (2007, p. 106), para designar o que acontece quando recursos ficcionais substitutivos,
como criação de personagens, eventos e instituições análogas a personagens, eventos e
instituições de extração histórica documentada são empregados na ficção.
Os procedimentos identificados em SE como ficcionalizadores da história foram: a
matéria histórica e o mito; a quebra da linearidade temporal, os personagens históricos e sua
ficcionalização; o narrador que se apresenta como autor e personagem de sua narrativa e, por
fim, as metáforas e os símbolos (CLÍMACO, 2014, p. 70).
É possível afirmar que a narrativa está composta de duas margens complementares: de
um lado, os elementos ficcionalizadores da história; do outro, os que criam um efeito de
historicidade na ficção. No meio ou misturando-se a eles, fundindo-os, a metaficção, criando
uma narrativa ficcional que não substitui a narrativa histórica, antes questiona e tematiza o
que a história silenciou. Os elementos que criam o efeito de historicidade em SE são: a
elaboração de documentos históricos; o tratamento dado aos documentos; as notas; o ensaio e
a intertextualidade (CLÍMACO, 2014, p. 123).
Diluem-se, em SE, as margens entre ficção e história. A ficcionalização da história e a
criação do efeito de historicidade da ficção visam a discutir a produção da história, dando voz
ao que esta havia silenciado. O não dito é colocado em discussão. A produção da história é
questionada. A ficção pode ousar por em cena o que foi descartado, omitido, silenciado pela
escrita da história. Não substitui a história, nem a nega, pode-se dizer que a complementa
(CLÍMACO, 2014, p. 177). Nesta tese, reflito sobre essas margens também em obra não
ficcional, produto de pesquisa histórica, portanto historiografia, escrita da história. Em que
medida a ficção se faz presente em LRMV e em EJSV, é uma das perguntas a responder.
Faz-se necessária, portanto, a conceituação de meta-história formulada por Hayden
White (1995). O teórico afirma que o trabalho histórico é manifestamente “uma estrutura
verbal na forma de um discurso narrativo em prosa” (WHITE, 1995, p. 11). Tal discurso tem a
pretensão de “ser um modelo, ou ícone, de estruturas e processos passados no interesse de
explicar o que eram representando-os.” (ibdem, p. 18). Chama trabalho histórico tanto a
história quanto a filosofia da história que combinam dados, explicações sobre esses dados e
uma estrutura narrativa. Aponta que o conteúdo estrutural profundo que comportam é poético
e linguístico em sua natureza, sendo o paradigma aceito daquilo que deve ser uma explicação
histórica. Tal paradigma “funciona como o elemento “meta-histórico” em todos os trabalhos
históricos” (ibdem, p. 11).
25
Enfatiza White que meta-histórico não se refere aos conceitos teóricos dos quais se
utiliza o historiador para dar a suas narrativas o aspecto explicativo. Distingue três estratégias
que criam a impressão explicativa: explicação por argumentação formal, explicação por
elaboração de enredo e explicação por implicação ideológica (WHITE, 1995, p. 12). O plano
meta-histórico seria mais profundo, um nível no qual
o historiador realiza um ato essencialmente poético, em que prefigura o campo
histórico e o constitui como um domínio no qual é possível aplicar as teorias
específicas que utilizará para explicar “o que estava realmente acontecendo” nele.
Esse ato de prefiguração pode, por sua vez, assumir certo número de formas cujos
tipos são caracterizáveis pelos modos linguísticos em que estão vazados. (WHITE,
1995, p. 12, grifo do autor)
White denomina esses tipos de prefiguração como os quatro tropos da linguagem
poética: metáfora, metonímia, sinédoque e ironia (1995, p. 12). Destaca que muito se fez para
aproximar a história da ciência, discutindo-se os elementos que permitem classifica-la numa
das modalidades científicas, mas pouca atenção se deu aos seus elementos artísticos. Para o
autor (ibdem, p. 13), compõem a base meta-histórica de todo trabalho histórico o modo
tropológico dominante e seu protocolo linguístico concomitante. Quanto ao trabalho de
seleção operado pelo historiador, White, a partir de seus estudos sobre a consciência histórica
oitocentista, conclui que “os melhores fundamentos para escolher uma perspectiva da história
em lugar de outra são em última análise antes estéticos ou morais que epistemológicos”
(ibdem, p. 14).
White busca contribuir para a discussão acerca do problema do conhecimento
histórico que permeou o século XIX: “que significa pensar historicamente e quais são as
características inconfundíveis de um método especificamente histórico de investigação?”
(WHITE, 1995, p. 17). Aponta como no século XX essas questões ainda não obtiveram uma
resposta definitiva. Afirma que autores como Valéry, Heidegger, Sartre, Lévi-Strauss e
Foucault expressaram dúvidas a respeito de uma consciência especificamente “histórica”,
“sublinharam o caráter fictício das reconstruções históricas e contestaram as pretensões da
história a um lugar entre as ciências.” (ibdem, p. 17). Pensar sobre o componente poético,
figurativo, ficcional da obra EJSV é um dos objetivos desse trabalho.
Importa também a esta pesquisa a crítica de Walter Benjamin (1987) ao historicismo
contrapondo-o ao materialismo histórico. Para Benjamin, o historicismo considera o tempo
como linear, cronológico, espacializado em quantidades iguais; o passado seria uma imagem
eterna; ignora a importância do historiador na construção da história, com isto o historiador
historicista atuaria de modo imparcial e desconectado de seu tempo, descrevendo a história
26
como espetáculo na perspectiva dos vencedores, manifestando empatia com os monumentos
dos vencedores. Já o materialismo histórico, segundo sua definição, não se preocupa com um
nexo causal entre momentos da história; possui percepção qualitativa do tempo; discerne a
história dos vencidos, propondo-se a contá-la, por entender que o passado poderia ser outro. O
historiador alegorista, materialista histórico, dedica-se à produção de uma história capaz de
explodir o continuum de uma história sem significado, trazendo à tona um passado saturado
de agoras.
Em Benjamin, verifica-se o presente como ponto de partida para o historiador. O autor
preocupa-se com a ascensão do fascimo e isso faz com que reflita sobre a história e a postura
acrítica do historicismo, como se evidencia em sua sexta tese sobre a história:
Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo "como ele de fato foi".
Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de
um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela
se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha
consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a
recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como
seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que
quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem
também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas
da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os
mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem
cessado de vencer. (BENJAMIN, 1987, p. 224)
Em seu estudo sobre Benjamin, Penido (1989, p. 67) afirma que, através da alegoria, o
historiador alegorista vislumbra a salvação das coisas. O alegorista descontextualiza o objeto
que se transforma em morto, deixando de significar por si próprio. Este objeto, para irradiar
novos sentidos, depende da ação do alegorista, que é, portanto, arbitrária. Assim, o historiador
deve proceder com os documentos tal qual o alegorista com os objetos. Os fragmentos da
história devem ser descontextualizados e receber outros sentidos. Cabe ao historiador utilizar
os cacos da história como citações, dando-lhes novo sentido. Historiador e alegorista são
onipotentes. O historiador está comprometido com uma história que resgata as intenções
fracassadas – esse é o seu foco de luz sobre os documentos.
A nona tese sobre a história apresentada por Benjamin é de grande importância nesta
pesquisa, visto que o narrador de SE estabelece seu modo de narrar segundo a concepção de
história nela mencionada:
Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que
parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão
escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse
aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de
acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína
sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os
mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em
27
suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele
irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de
ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.
(BENJAMIN, 1987, p. 226)
O historiador, para Benjamin, deve construir uma experiência com o passado. O
narrador em SE, comportando-se como um historiador alegorista, assim o faz em sua
representação hagiográfica de Eva Perón.
1.1 O efeito de historicidade
Há uma propriedade que permite à história contar-se: a narratividade. Tal propriedade
lança mão de formas e estratégias discursivas que possibilitam ao narrador, no caso, ao
historiador, transformar em discurso os fatos acontecidos, relacionando-os em causa e efeito,
estabelecendo assim um modo inteligível de configuração do real. Desta forma, os leitores
podem ter acesso àquilo que aconteceu.
Refletindo sobre a narratividade da história, pergunto-me em que ela difere da ficção.
O que faz com que um relato seja pertencente ao discurso histórico e outro ao literário,
questiono. A relação entre história e ficção é tema sobre o qual se debruçaram pensadores os
mais diversos desde a Antiguidade e, obviamente, tal questão está longe de se resolver
definitivamente. Interessa-me pensar em alguns aspectos relacionados ao modo como se
constroem tais discursos: o que confere um caráter histórico a determinada narratividade,
portanto, como adquire historicidade um discurso, ou ainda, o que cria esse efeito?
Não me refiro exclusivamente ao sentido de historicidade como histórico, logo
presente num espaço e numa temporalidade. Faço menção a propriedades que constituem a
textualidade do discurso histórico diferenciando-o de outros discursos; àquilo que Krzysztof
Pomian chama “marcas de historicidade”:
Toda narrativa comporta de fato elementos, signos ou fórmulas que devem,
supostamente, conduzir o leitor para fora de seu texto; sinais ou fórmulas que
apontam na direção de uma realidade exterior à própria narrativa, se não
extratextual, assinalando que a narrativa que os contém não pretende ser auto-
suficiente. Que ela pretende, de um lado, proceder a atos de percepção, leitura,
observação, reconstrução ou quantificação. E que pretende, de outro lado, ser
composta de afirmações que podem ser controláveis por operações (...). São esses
signos e fórmulas que designamos pelo nome de marcas de historicidade. Eles
podem aparecer indissoluvelmente integrados ao próprio texto da narrativa. Podem
também se inscrever na apresentação material da obra e, especialmente, em sua
tipografia. Em todos os casos, como primeiros indicadores do caráter da narrativa,
eles permitem que o leitor as classifique, logo de início entre as histórias, ainda que
seja necessário rever seu julgamento após um exame mais aprofundado. (POMIAN,
2003, p. 20)
28
Como já dito anteriormente, a expressão “efeito de historicidade” foi utilizada por
Alcmeno Bastos (2007, p. 106), para se referir ao emprego na ficção de recursos ficcionais
que fazem analogia a personagens, eventos e instituições de extração histórica documentada,
gerando no leitor a sensação de estar diante do que realmente aconteceu. Por sua vez, “efeito
de historicidade” remete ao “efeito de real” produto de reflexão de Roland Barthes (2004, p.
178) que assim denomina o fato de, na história objetiva, o “real” não ser nunca mais do que
um significado não formulado, abrigado atrás da onipotência aparente do referente.
Barthes analisa o discurso de historiadores clássicos como Heródoto, Maquiavel,
Bossuet e Michelet, buscando neles traços distintivos do discurso histórico (2004, p. 163).
Segundo o autor, a observação da enunciação, do enunciado e da significação permite tecer
algumas considerações.
Quanto à enunciação, o discurso histórico parece comportar dois tipos regulares de
embreantes (shifters): embreantes de escuta e os de organização. Os do primeiro tipo
designam “toda menção das fontes, dos testemunhos, toda referência a uma escuta do
historiador, recolhendo um alhures do seu discurso e dizendo-o” (BARTHES, 2004, p. 164,
grifo do autor). O autor pontua que explicitar tal escuta é uma escolha, pois é possível não se
referir a ela. No entanto, os historiadores optam por fazê-la porque visam à objetividade
científica. Já os do segundo tipo são os signos pelos quais o historiador organiza seu próprio
discurso, retomando-o e modificando-o; indicam um movimento do discurso em relação a si
mesmo, revelando a coexistência de dois tempos – o tempo da enunciação e o tempo da
matéria enunciada (ibdem, p. 165).
Dessa confluência temporal originam-se fatos de discurso tais como a aceleração da
história, o aprofundamento do tempo histórico e as inaugurações do discurso histórico. Sobre
o primeiro, Barthes (2004, p. 165) destaca que um capítulo que cobre séculos pode conter o
mesmo número de páginas de outro que cobre apenas alguns anos. Quanto mais se aproxima
do tempo do historiador, mais forte é a pressão da enunciação e mais lentamente caminha a
história, o que demonstra a ausência de isocronia o que atenta implicitamente contra a
linearidade do discurso. O segundo refere-se às idas e vindas na história como, por exemplo,
as digressões com retorno no tempo, para explicar cada personagem introduzido no relato. Por
fim, as inaugurações do discurso histórico são os lugares onde se encontram o começo da
matéria enunciada e o exórdio da enunciação.
As formas de inauguração do discurso da história compreendem a abertura
performativa, em que “a palavra é um ato solene de fundação” (BARTHES, 2004, p. 167)
29
sendo seu modelo poético, e o prefácio, ato caracterizado de enunciação que pode ser
prospectiva, quando analisa o discurso a seguir, ou retrospectiva, quando julga o discurso.
Segundo Barthes,
A entrada da enunciação no enunciado histórico, através dos shifters organizadores,
tem por finalidade não tanto dar ao historiador a possibilidade de exprimir a sua
“subjetividade”, como geralmente se diz, quanto “complicar” o tempo crônico da
história confrontando-o com outro tempo, que é o do próprio discurso, e que se
poderia chamar, por condensação, o tempo-papel; em suma, a presença, na narração
histórica, de signos explícitos de enunciação visaria a “descronologizar” o “fio”
histórico e a reconstituir, mesmo a título de mera reminiscência ou nostalgia, um
tempo complexo, paramétrico, de modo algum linear, cujo espaço profundo
lembraria o tempo mítico das antigas cosmogonias, também ele ligado por essência
à palavra do poeta ou do adivinho; os shifters de organização atestam, com efeito –
mesmo por certas digressões de aparência racional –, a função preditiva do
historiador: é na medida em que ele sabe o que ainda não foi contado que o
historiador, tal qual o agente do mito, tem necessidade de duplicar o escoamento
crônico dos acontecimentos por referências ao tempo próprio de sua palavra. (2004,
p. 167, grifo do autor)
Os embreantes de destinação estão geralmente ausentes no discurso histórico que é,
aparentemente, um discurso sem tu, embora sua estrutura implique, na realidade um “sujeito”
da leitura. São encontrados, segundo Barthes, “apenas quando a história dá uma lição” (2004,
p. 168). Mais frequentes são os signos do enunciador:
todos os fragmentos de discurso em que o historiador, sujeito vazio de enunciação,
vai-se pouco a pouco enchendo de predicados variados destinados a fundá-lo como
uma pessoa provida de uma plenitude psicológica, ou ainda (o termo é
preciosamente repleto de imagens) de uma continência. (BARTHES, 2004, p. 168,
grifo do autor)
Ao preencher-se, o enunciador ausenta-se de seu discurso, consequentemente, este
carece de qualquer signo que remeta ao emissor da mensagem histórica, fazendo com que a
história pareça contar-se sozinha: a isto corresponde o discurso histórico dito objetivo
(BARTHES, 2004, p. 169). É estabelecida uma ilusão referencial, visto que o enunciador
pretende deixar o referente falar por si só.
A respeito do enunciado do discurso histórico, Barthes reflete que este deve prestar-se
a um recorte que produza unidades do conteúdo. Tais unidades são representativas do que fala
a história (BARTHES, 2004, p. 170). O historiador precisa nomear os objetos históricos. A
palavra da qual se utiliza para fazê-lo pode economizar uma situação ou sequência de ações;
“ela favorece a estruturação na medida em que, projetada em seu conteúdo, ela própria é uma
pequena estrutura” (ibdem, p. 172).
O autor aponta que o estatuto de um processo histórico é assertivo, o que se conta é o
que foi, não o que não foi ou o que foi duvidoso, e que há três classes de conteúdo no
enunciado histórico: a primeira que “cobre todos os segmentos do discurso que remetem a um
30
significado implícito, segundo um processo metafórico” (BARTHES, 2004, p. 173); a
segunda formada por fragmentos do discurso de natureza arrazoadora; e a terceira que
comporta funções da narrativa ou pontos cardeais de onde o enredo pode tomar um
andamento diferente (ibdem, p. 174). Há, portanto, apresentação de evento de modo a ser
compreensível, argumentação sobre este e uma narrativa de enredo na constituição do
discurso histórico.
Sobre a significação, Barthes chama a atenção para uma história que não significa,
cujo discurso limita-se a uma série de anotações, como, por exemplo, cronologias e anais. Já
no discurso histórico constituído (“forrado”), os fatos relatados funcionam quer como índices,
quer como núcleos cuja sequência tem valor indicial, e mesmo quando os fatos fossem
apresentados de maneira anárquica, eles significariam pelo menos a anarquia e remeteriam a
uma certa ideia da história humana (BARTHES, 2004, p. 175).
Os níveis de significados do discurso histórico relacionam-se intimamente: há um
nível imanente à matéria enunciada, que detém todos os sentidos que o historiador dá
voluntariamente aos fatos que relata. Podem ser: as lições morais ou políticas que o
historiador tira de certos episódios. Se esta lição é contínua, atinge-se um segundo nível: um
significado que transcende ao discurso histórico, transmitido pela temática do historiador
(BARTHES, 2004, p. 175). Preencher o sentido da história é o objetivo do discurso histórico:
“o historiador é aquele que reúne menos fatos do que significantes e os relata, quer dizer,
organiza-os com a finalidade de estabelecer um sentido positivo e de preencher o vazio da
série pura” (ibdem, p. 176).
O discurso histórico produz-se a partir de elaboração ideológica e do imaginário.
Barthes considera imaginário como “a linguagem pela qual o enunciante de um discurso
(entidade puramente linguística) “preenche” o sujeito da enunciação (entidade psicológica ou
ideológica)” (2004, p. 176). Destaca ainda que o fato histórico, a partir do momento em que a
linguagem intervém, só pode ser definido de modo tautológico, visto que o notado procede do
notável, no entanto, paradoxalmente, o notável é aquilo que é digno de memória, portanto, de
ser notado. Segundo Barthes, esse é o paradoxo da pertinência do discurso histórico:
o fato nunca tem mais do que uma existência linguística (como termo de um
discurso), e, no entanto, tudo se passa como se essa existência não fosse senão a
“cópia” pura e simples de uma outra existência, situada num campo extra-estrutural,
o real. (BARTHES, 2004, p. 176)
O discurso histórico opera duplamente: num primeiro momento, o referente é
destacado do discurso, é exterior, fundador, é seu regulador; num segundo momento, é o
próprio significado que é rechaçado, confundido no referente, “o referente entra em relação
31
direta com o significante e o discurso, encarregado apenas de exprimir o real” (BARTHES,
2004, p. 177, grifo do autor). A história tem a pretensão de ser um discurso realista e, ao
produzir-se, como já mencionado anteriormente, cria o efeito do real (ibdem, p. 178).
O papel do historiador na criação do efeito de historicidade ao produzir seu discurso
histórico está na construção que faz através da escrita, com elementos textuais, e em fazer uso
de um imaginário que o consagra como autoridade (a isso, voltaremos mais adiante).
A intencionalidade do historiador, autor do discurso histórico, na criação das marcas
de historicidade é destacada por Pomian:
Considera-se histórica uma narrativa quando ela apresenta marcas de historicidade
que certificam a intenção do autor de permitir que o leitor saia do texto e quando
essas marcas programam as operações supostamente aptas a permitir a verificação
das alegações feitas ou a reprodução dos atos cognitivos dos quais tais alegações são
a finalização. Em suma: uma narrativa é considerada histórica quando exibe a
intenção de submeter-se a um controle de sua adequação à realidade extratextual do
passado do qual trata. (POMIAN, 2003, p. 21)
As marcas de historicidade textuais são criadas na narrativa através da palavra e
remetem a uma exterioridade. Além das que permitem ao leitor a verificação dos fatos que o
historiador encadeia e narra em sua construção, como as notas e as citações, há também outras
pistas que possibilitam reconhecer o discurso histórico, tais como o tratamento do tempo, a
objetividade, a conceitualização, a criação do enredo e a argumentação.
A respeito das marcas que pretendem fazer este discurso verídico e crível, portanto,
passíveis de verificação, Pomian (2003, p. 21) alerta para o fato de que essa deve poder ser
executada por todo leitor competente, a menos que as fontes tenham sido destruídas em
acidentes comprovados após a redação. Notas e citações que não são possíveis de serem
verificadas por seu caráter ficcional não constituem o discurso histórico. Neste caso, o leitor
estará indiscutivelmente diante de obra ficcional.
Trabalhar a partir de fontes e explicitá-las são normas da profissão de historiador
(PROST, 2015, p. 39). A construção de fatos documentáveis permite que o texto do
historiador receba um status de ciência, isto porque garante que, ao invés de sequências de
opiniões subjetivas, a história expressa a verdade, aquilo que se pode comprovar (ibdem, p.
54).
Segundo Prost, diferencia o historiador profissional do amador ou do romancista o uso
das regras da crítica e da erudição, sendo a crítica uma atitude aprendida, integrante do
conjunto de práticas do ofício de historiador (PROST, 2015, p. 61). O texto de história erudita
manifesta-se por sinais exteriores e, em particular, por seu aparato crítico e pelas notas de
32
rodapé: “As notas na margem inferior de página são essenciais para a história: elas constituem
o sinal tangível da argumentação. A prova só é aceitável se for verificável.” (ibdem, p. 235).
Da mesma forma, as citações compõem o discurso histórico. O historiador traz a
palavra de outros historiadores para seu texto e com eles dialoga, estabelecendo a rede de
saber à qual se vincula sua produção. Segundo Certeau, o uso da citação produz um efeito de
verdade que serve de certificação ou confirmação:
a linguagem citada tem por função comprovar o discurso: como referencial, introduz
nele um efeito de real; e por seu esgotamento remete, discretamente, a um lugar de
autoridade. Sob este aspecto, a estrutura desdobrada do discurso funciona à maneira
de uma maquinaria que extrai da citação uma verossimilhança do relato e uma
validade do saber. Ela produz credibilidade. (CERTEAU, 2000, p. 111)
O tratamento do tempo por parte do historiador é, também, marca de historicidade. O
tempo da história é um tempo objetivado que,
visto do presente, é um tempo já decorrido, dotado consequentemente de certa
estabilidade e que pode ser percorrido ao sabor da investigação. O historiador
remonta o tempo e faz o movimento inverso; pode acompanhá-lo, mentalmente, nos
dois sentidos, embora saiba muitíssimo bem que ele se escoa apenas em um sentido.
(PROST, 2015, p. 104).
O trânsito no tempo é operação peculiar da história. Geralmente, no discurso,
apresenta-se de forma linear para facilitar o relato e a compreensão, visto que para estabelecer
e explicar relações de causalidade torna-se difícil apresentar a simultaneidade dos eventos,
ainda assim há alguns recursos, como o flasback, na narração dos eventos históricos.
Prost afirma que o tempo objetivado apresenta duas características complementares:
em primeiro lugar, exclui a perspectiva teleológica, o que impede a admissão de um tempo
claramente orientado e, em segundo lugar, permite fazer prognósticos, ressaltando a diferença
entre profecia e prognóstico: este último avança do presente para o futuro, apoia-se no
diagnóstico respaldado no passado (PROST, 2015, p. 105). Não estou totalmente de acordo
com a ideia da exclusão da perspectiva teleológica, pois, como já mencionado nesta pesquisa,
o que é transformado em fato histórico é aquilo que é da ordem do notável para o qual
buscam-se explicações. Ora, isto poderia supor uma certa orientação temporal, ainda que
puramente produto de elaboração textual.
Para Prost, o tempo dos historiadores e a biografia individual compartilham
características:
Cada qual pode reconstruir sua história pessoal, objetivá-la até certo ponto, como
remontar, relatando suas lembranças, do momento presente até a infância ou inverter
o movimento a partir da infância até o começo da vida profissional, etc. A memória,
a exemplo da história, serve-se de um tempo já decorrido. (PROST, 2015, p. 106).
Entretanto, destaca o autor, a diferença fundamental está na objetivação:
33
O tempo da memória, o da lembrança, nunca pode ser inteiramente objetivado,
colocado à distância, e esse aspecto fornece-lhe sua força: ele revive com uma
inevitável carga afetiva. É inexoravelmente flexionado, modificado, remanejado em
função das experiências ulteriores que o investiram de novas significações. (PROST,
2015, p. 106)
A história não é uma memória. Seus tempos dependem de registros diferentes. Fazer
história, em lugar de registrar lembranças, ou imaginar para atenuar a ausência de lembranças,
é construir um objeto científico, historicizá-lo, construir sua estrutura temporal, espaçada,
manipulável (PROST, 2015, 106).
Como o tempo não é dado ao historiador, faz-se necessário que o construa num
trabalho próprio ao seu ofício. Essa construção se dá em duas tarefas: estabelecer uma
cronologia, isto é, classificar os acontecimentos na ordem do tempo, e periodizar, recortar o
tempo em períodos. A periodização “permite pensar a um só tempo, a continuidade e a
ruptura” (PROST, 2015, p. 107). Ainda segundo Prost, periodizar é “identificar rupturas,
tomar partido em relação ao variável, datar a mudança e fornecer-lhe uma primeira definição.
Entretanto, no interior de um período, a homogeneidade prevalece.” (ibdem, p. 107). Através
da periodização, abrem-se os caminhos da interpretação do objeto. É preciso frisar que “cada
objeto histórico tem sua periodização” (ibdem, p. 111), como a de Eva Perón, na biografia de
Felipe Pigna, como analiso mais adiante.
A narração, a elaboração de enredo, possibilita o trabalho com o tempo da história
visto que este “não é uma reta, nem uma linha quebrada feita por uma sucessão de períodos,
nem mesmo um plano: as linhas entrecruzadas por ele compõem um relevo. Ele tem espessura
e profundidade” (PROST, 2015, p. 114).
A objetividade textual constitui marca de historicidade. O discurso histórico é um
texto objetivado e digno de crédito. Nele, o eu é proscrito, aparece, no máximo, no prefácio,
quando o autor explicita suas intenções. O historiador tenta excluir sua personalidade do texto
que produz, evitando implicar-se e manifestar emoções. Promove o ocultamento de si,
aparecendo em raras oportunidades, como no início ou fim de capítulo, notas e discussões
com outros historiadores, ou sob formas atenuadas, pelo emprego de “nós” que associa autor e
leitores ou por uma referência à corporação de historiadores através de expressões mais
impessoais, por exemplo, “diz-se”. Acabada, a obra limita-se a fornecer enunciados objetivos
(PROST, 2015, p. 238).
As referências feitas a outros historiadores mostram o pertencimento à profissão e, “ao
inserir-se em uma espécie de hipertexto coletivo, seu estudo vem completá-lo em
34
determinados aspectos e contradizê-lo ou renová-lo em outros” (PROST, 2015, p. 239). O
diálogo com os pares é, portanto, fundamental.
Já o leitor, geralmente, está ausente no texto do historiador, que não o consulta ou com
ele assume uma relação didática, isto porque a posição que o historiador pretende ocupar é a
do próprio saber objetivo constituído pela profissão, sendo seu discurso “um saber que se
enuncia ou melhor ainda, se manifesta” (PROST, 2015, p. 239).
Outra operação realizada pelo historiador e que gera historicidade é a
conceitualização. O historiador lança mão de um repertório de conceitos ao analisar fatos já
mencionados anteriormente por outros e, caso estes não consigam expressar o que tenta dizer,
elabora novos conceitos. Resultante do mesmo tipo de operação intelectual, a generalização
ou o resumo, os conceitos são abstrações utilizadas pelos historiadores para compará-las à
realidade (PROST, 2015, p. 123). A conceitualização é, portanto, um procedimento e busca da
história para organizar a realidade histórica; entretanto essa organização é relativa e sempre
parcial, “porque o real nunca se deixa reduzir ao racional, ele comporta sempre uma parte de
contingência e as particularidades concretas transtornam necessariamente a ordem
irrepreensível dos conceitos” (ibdem, p. 124). Ou seja, ainda que seja uma ordem imperfeita,
incompleta e desigual, a conceitualização consegue, de alguma forma, ordenar a realidade.
Por meio da instrumentalidade dos conceitos, os historiadores buscam consolidar a
organização da realidade; além disso levam o passado a exprimir sua especificidade e suas
especificações (ibdem, p. 131).
Destaca-se, uma vez mais, a história como um ofício, uma prática decorrente de um
aprendizado. Isto supõe a existência de um conjunto de técnicas a aprender, a dominar. Não é
por menos que muitos historiadores referem-se à corporação, à oficina da história. A produção
dos demais, dos que vieram antes, ou mesmo contemporâneos, é incorporada e discutida pelo
historiador, que a faz avançar, por isso é que Prost afirma que “é necessário ser historiador
para fazer história” (PROST, 2015, p. 133) e ao mesmo tempo, de modo paradoxal, “ao fazer
história é que alguém se torna historiador” (ibdem, p. 134).
A história organiza-se como enredo, mais um elemento indicativo de historicidade. A
elaboração literária e retórica específica, associada à linguagem, faz com que o livro de
história seja facilmente reconhecível como tal. O modo de narrar do historiador, como elabora
seus fatos e suas interpretações deve ser observado. Penso que a historicidade constrói-se na
narratividade:
As narrativas têm a característica de descrever um percurso no tempo, seu plano,
para não falar de seu título é, principalmente, cronológico. No mínimo, partem de
35
um primeiro elemento para chegarem a um segundo elemento mais tardio e
explicam como se fez a passagem do primeiro para o segundo; por outras palavras, é
necessário e basta, para haver uma narrativa, que haja dois acontecimentos, ou
situação, por ordem do tempo. (PROST, 2015, p. 213)
Qualquer objeto histórico é passível de narração. Múltiplos procedimentos literários
tornam a exposição mais viva e significativa, numa construção que não é necessariamente
linear. As mudanças são explicadas pela narrativa, assim como as permanências; naturalmente
isso implica numa busca das causas e intenções. A construção do enredo consiste, logo, em
configurar um tema. Este não é encontrado pronto pelo historiador; deve ser construído e
modelado. O historiador cria o enredo, um ato fundador, que “incide, também sobre as
personagens e os cenários; implica a escolha dos atores e dos episódios” além de determinar
“o plano em que o historiador se coloca” e a constituição dos fatos (PROST, 2015, p. 219):
A criação de enredos configura, portanto, a obra histórica e, inclusive, determina sua
organização interna. Os elementos adotados são integrados em um cenário, através
de uma série de episódios ou de sequências meticulosamente ordenados. A
disposição cronológica é a mais simples, sem implicar qualquer tipo de imposição.
(PROST, 2015, p. 220).
Dentre os recursos empregados na criação de enredos, em seu aspecto literário, tem-se
o flashback, a pluralidade dos tempos e a panorâmica. “A história é um enredo no sentido
literário do termo: o dos romances, peças de teatro e filmes.” (PROST, 20115, p. 221), sendo
que, segundo Paul Veyne, “a história é um romance real” (1998, p. 11), no sentido de que
narra acontecimentos verdadeiros. Considero o termo “verdadeiros” no sentido de
verificáveis, passíveis de comprovação, e não a história como verdade em contraposição à
ficção, mentira. A oposição à ficção não é a verdade, e sim a não-ficção.
Prost chama a atenção para o fato de que a narração distingue-se da narrativa
contemporânea de ação, porque o narrador não é o ator, nem o espectador imediato da ação;
ele aparece depois da ocorrência e já conhece o desfecho, ele faz seu relato, porque está
separado dela por um intervalo de tempo inscrito na própria trama dos enunciados; além
disso, a narração implica o conhecimento prévio do desenrolar e do desfecho do enredo, e a
descrição em forma de relato é construída como argumentação (PROST, 2015, p. 223, 224).
Como ao narrar, faz-se uma explicação, o historiador fornece explicações em sua
narrativa: “A narrativa é constituída por unidades diferentes em ritmo e em escala, ela articula
constatações de regularidades e sequências factuais, assim como elementos de prova e de toda
a espécie a serviço de uma argumentação.” (PROST, 2015, p. 224). Logo, a argumentação é
incorporada à narrativa, sendo um “desenvolvimento analítico, ponto por ponto, das razões
que servem de justificativa à explicação” (ibdem, p. 229). Isto permite afirmar que a
36
argumentação presente no enredo criado pelo historiador constitui marca de historicidade,
pois, embora utilize a imaginação, esta não é livre, tampouco ilimitada, como na ficção.
Outro elemento da narratividade do enredo são os personagens. Ora, o historiador não
tem a liberdade do romancista para criá-los livremente. Apresenta personagens reais, com
seus nomes próprios – marcas registradas, segundo Alcmeno Bastos (2004, p. 87) –, que
incorporam ao texto toda a semântica que carregam:
enquanto o romance deve revelar, aos poucos, as características dos personagens –
incógnitos para o leitor – cujos nomes próprios haviam sido citados desde o começo,
a história recebe personagens já bem definidos, sobrecarregados com todos os
saberes acumulados pela tradição e pela historiografia. (PROST, 2015, p. 243)
Além dos nomes próprios, são marcas registradas também os pontos de referência do
cenário criado no enredo, estes constituem, segundo Prost, recursos que despertam a
imaginação do leitor, tais como pequenos detalhes aparentemente inúteis e o recurso à cor
local (PROST, 2015, p. 246). De acordo com Alcmeno Bastos, são as datas históricas, os
nomes de ruas e estabelecimentos bem como de produtos ou técnicas utilizadas que permitem
evocar a época narrada (2004, p. 87).
Até o momento, expus os elementos textuais que criam o efeito de historicidade. Passo
agora a abordar as marcas de historicidade extratextuais. São elas: o reconhecimento do
historiador por seus pares, pelas instituições de pesquisa e de ensino superior, e da opinião
pública, a fama do historiador, ou melhor dizendo, o conhecimento prévio que se tem acerca
dele e de sua produção anterior. Ora, o mesmo escrutínio pelo qual a história passou ao se
constituir como disciplina e, logo, em etapa posterior, como ciência, se impõe a cada
produção historiográfica, ainda que isso fique no campo do não dito.
Considerando a história uma prática social, um duplo reconhecimento – dos pares e do
público – consagra o historiador (PROST, 2015, p. 15). A história presentifica-se na
sociedade através de disciplina universitária, de livros e de grandes personagens, mas também
“por um grupo de pessoas que se afirmam historiadores com o acordo de seus colegas e do
público” (ibdem, p. 33).
O reconhecimento dos pares guarda relação com o lugar institucional ocupado pelo
historiador, o modo como dialoga com outros historiadores, bem como a utilização rigorosa
das normas da profissão, como já exposto nesta pesquisa, mas que recordamos: o trabalho a
partir de documentos e a citação das fontes. Esse reconhecimento não é um selo de qualidade
visível na capa do livro de história, obviamente, mas são suas teses tomadas como
proposições verdadeiras, dignas de crédito e de figurarem ao lado de outras na corrente de
produção do saber histórico erudito. Ou seja, que um historiador seja citado, que a leitura de
37
sua obra seja recomendada aos alunos dos cursos superiores, que com ele os pares dialoguem,
que refutem ou acatem suas posições, reconhecendo-as como científicas, merecedoras de
análise e que, por meio delas, a ciência histórica caminhe. Sobre isto, afirma Prost: “para ser
revestido de autoridade, o texto do historiador deverá ser qualificado não só pelo saber que ele
reivindica, mas pela inscrição desse saber na grande obra da corporação erudita” (PROST,
2015, p. 271).
A opinião pública também importa. Atualmente,
o controle da mídia e o acesso ao grande público detêm, atualmente, uma
importância profissional: a reputação dos historiadores não surge apenas na
intimidade das salas de aulas das faculdades – de passagem, superlotadas –,
tampouco na ambiência em surdina, erudita e alusiva dos júris de tese ou dos
comitês de redação das revistas cultas, mas é suscitada também entre o grande
público pela intervenção na mídia, televisão e revistas. (PROST, 2015, p. 46)
A história acaba, assim, por dispor de um duplo mercado: o acadêmico e o do grande
público. Alguns historiadores transitam apenas no acadêmico, alguns, por outro lado, apenas
no midiático, e isso gera pode gerar desconfiança por parte dos primeiros. No entanto, há
aqueles que se tornam expoentes por figurarem nos dois mercados com sucesso, como é o
caso de Felipe Pigna, objeto de estudo desta pesquisa. No Brasil, apenas para traçar um
paralelo, não há historiadores que atendam ao interesse da vulgarização da história com a
mesma popularidade de Pigna na Argentina. Aqui, a tradição maior está entre os jornalistas
como Eduardo Bueno e Laurentino Gomes.
Este duplo mercado, segundo Prost, traduz a dupla realidade da profissão de
historiador que desempenha uma função social. Atende a uma demanda social: a história
científica e a história comemorativa (PROST, 2015, p. 47). O autor chama a atenção para um
risco de contaminação do julgamento científico pelo midiático. Tal risco consistiria na
validação no primeiro mercado (acadêmico) dos méritos conquistados no segundo
(comercial), isto é, que a reputação do historiador se faça por jornalistas e não por seus pares
(ibdem, p. 48).
Esse mercado editorial de vulgarização da história que cresce, em particular, na
Argentina, objeto de estudo na presente pesquisa, com grande público consumidor de obras
desse tipo, é ávido por história memorial, identitária, segundo Prost: “uma história que lhes
sirva de diversão relativamente ao presente e que suscite sua ternura ou sua indignação. Se o
historiador não responder a essa demanda, ele ficará confinado em um gueto acadêmico”
(PROST, 2015, p. 271). No entanto, cabe ressaltar, isto – o reconhecimento midiático – não
constitui uma preocupação comum aos historiadores (acadêmicos).
38
Definido o efeito de historicidade, passo às considerações sobre biografia para
complementar as margens entre história e ficção.
1.2 O espaço biográfico
Analisaremos o “espaço biográfico” no qual transitam as representações de Eva Perón
a partir da autobiografia, LRMV, da biografia ficcional, SE, e da biografia, EJSV.
A expressão espaço biográfico, como proposta por Leonor Arfuch (2010, p. 12),
define o “terreno no qual formas discursivas clássicas começam a entrecruzar-se e a
hibridizar-se”. A autora analisa diversas formas narrativas tradicionais que tratam da própria
vida, tais como memórias, correspondências, diários íntimos, etc.; e apresenta a irrupção de
novas formas autobiográficas no mundo contemporâneo, sendo a entrevista a mais importante
em seu trabalho. Destaca a autora a narratividade como característica comum às formas do
espaço biográfico:
A multiplicidade das formas que integram o espaço biográfico oferece um traço
comum: elas contam, de diferentes modos, uma história ou experiências de vida.
Inscrevem-se assim, para além do gênero em questão, numa das grandes divisões do
discurso, a narrativa, e estão sujeitas, portanto, a certos procedimentos
compositivos, entre eles, e prioritariamente, os que remetem ao eixo da
temporalidade. (ARFUCH, 2010, p. 111)
Tomo, portanto, de empréstimo a expressão para me referir ao corpora desta pesquisa,
refletindo sobre autobiografia, autoficção e biografia na análise das obras.
Segundo Pozuelo Yvancos, a autobiografia é um gênero que, desde sua origem, joga
com seu estatuto dual, no limite entre a construção de uma identidade, que possui muito de
invenção, e a relação de alguns fatos que se apresentam como reais. Para o autor, a
autobiografia não é um gênero ficcional, “é um gênero que transpassa muitas vezes a fronteira
da ficção para instalar-se em outro território” (2006, p. 17, tradução nossa).7 Como gênero
fronteiriço, multiforme, convencional e historicamente movediço (ibdem, p. 21), está
vinculada a outros gêneros e práticas discursivas, como as confissões, o testemunho, a
memória, dentre outros.
A diferença básica entre biografia e autobiografia é que, nesta, um indivíduo relata sua
vida, conta sua história, suas experiências de vida; seu tema essencial são as realidades
experimentadas de forma concreta por um sujeito que trata de refletir sobre as mesmas; seu
autor, portanto, é alguém para quem essa vida é importante. De acordo com Gusdorf (1991, p.
7 No original: “es un género que traspasa muchas veces la frontera de la ficción para instalarse en otro territorio”.
39
12, tradução nossa), “ninguém melhor que o próprio interesado para fazer justiça a si mesmo,
e é precisamente para esclarecer os mal entendidos, para restabeler uma verdade incompleta
ou deformada, por que o autor da autobiografía impõe-se a tarefa de apresentar ele mesmo sua
história”.8 Já na biografia, uma pessoa alheia à vida que se narra tenta estabelecer sua
estrutura interna, através de dados observados ou dos relatos feitos por outro sujeito
(WEINTRAUB, 1991, p. 19).
Para Lejeune (2008, p. 15), o contrato de leitura, o pacto autobiográfico, identifica o
eu textual com o eu do autor e isto origina e especifica o gênero autobiográfico. Segundo o
autor, há autobiografia quando a obra possui estas características: quanto à forma da
linguagem, é uma narração, em prosa; quanto ao tema, trata da vida individual, da história de
uma personalidade; quanto a situação do autor, há identidade entre autor (cujo nome remete a
uma pessoa real) e narrador; e, por fim, quanto à posição do narrador, há identidade entre
narrador e personagem principal, e a perspectiva da narração é retrospectiva.
Assim, a identidade de nome entre o autor, o narrador e o personagem da narração da
vida constitui a autobiografia. Tal identificação é fruto de um pacto ou contrato de leitura,
firmado pelo nome próprio que confere um estatuto referencial ao texto, isto é, que faz com
que este seja passível de ser submetido a uma prova de verificação (POZUELO YVANCOS,
2006, p. 28). O nome do autor caracteriza um tipo especial de discurso: “dizer que um escrito
é de um autor é resgatá-lo da palavra anônima e indiferente... é situá-lo numa posição ou
estatuto que está fora e dentro do texto, no limite dos textos” (ibdem, p. 55, grifo do autor).
O objetivo da autobiografia é dar sentido a uma totalidade de vida, embora não o faça
de modo a simplesmente relatar a cronologia dos eventos vividos. Diferente do diário íntimo,
o relato não se faz dia a dia, cobrindo toda a existência, mas buscando temporalidades maiores
e o estabelecimento de um nexo causal e explicativo entre fatos. Daí a afirmação de
Weintraub sobre sua constituição como um tecido no qual se embrenha a autoconsciência
através da inter-relação entre experiências. Tal inter-relação feita na autobiografia pode ter
como funções a autoexplicação, o autodescobrimento, o autoesclarecimento, a autoformação,
a autoapresentação ou a autojustificação. Segundo o autor, essas funções são entrelaçadas,
porque se centram sobre o conhecimento consciente de sua relação e suas experiências (1991,
p. 19). Para Gusdorf (1991, p. 14, tradução nossa), a autobiografia consiste numa tarefa de
salvação pessoal:
8 No original: “nadie mejor que el propio interesado puede hacer justicia a sí mismo, y es precisamente para
aclarar los malentendidos, para restablecer una verdad incompleta o deformada, por lo que el autor de la
autobiografía se impone la tarea de presentar él mismo su historia”.
40
A confissão, o esforço de rememoração, é, ao mesmo tempo, busca de um tesouro
escondido, de uma última palavra libertadora, que redime em última instância um
destino que duvidada de seu próprio valor. Trata-se, para aquele que embarca na
aventura, de concluir um tratado de paz, e alcançar uma nova aliança, consigo
mesmo e com o mundo. O homem maduro ou já envelhecido que converte sua vida
em narração crê oferecer testemunho de que não viveu à toa; não elege a revolta, e
sim a reconciliação, e a leva a cabo no mesmo ato de reunir os elementos dispersos
de um destino que lhe parece ter valido a pena viver. A obra literária na qual ele se
oferece como exemplo é o meio de aperfeiçoar esse destino, de levá-lo a um bom
fim.9
Dito de outra forma, a autobiografia não é uma simples recuperação do passado tal
como foi; isto seria uma caricatura. O indivíduo que recorda e narra eventos não é o mesmo
que os viveu, está, agora, no momento em que escreve, marcado pela experiência e busca a si
mesmo através de sua história (GUSDORF, 1991, p. 13). É um exercício psicológico intenso
colocar-se em contato consigo mesmo, refletir sobre suas intenções, sobre os motivos de suas
ações e narrá-los:
O autor de uma autobiografía impõe-se, como tarefa, o contar sua própria história;
trata-se, para ele, de reunir os elementos dispersos de sua vida pessoal e de agrupá-
los num esquema de conjunto. O historiador de si mesmo gostaria de desenhar seu
próprio retrato, mas, igual a um pintor que apenas fixa um momento de sua
aparência exterior, o autor de uma autobiografia trata de conseguir uma expressão
coerente e total de todo o seu destino. (GUSDORF, 1991, p. 12, tradução nossa)10
Para Christine Delory-Momberger (2009, p. 99), essa representação da vida faz-se
através da linguagem, na sintaxe da narrativa. A vida é transformada em uma ou em várias
histórias. Segundo a autora, biografia são as figuras da vida representada, que não devem ser
confundidas com a realidade:
as formas às quais os indivíduos recorrem para biografar sua vida não são apenas
seus feitos, elas não lhes pertencem propriamente e eles não podem decidir, eles
mesmos, integralmente, sobre elas: são formas coletivas que pertencem à história, à
cultura, ao social e que obedecem às variações e às evoluções sócio históricas.
(DELORY-MOMBERGER, 2009, p. 99, grifo da autora)
Embora as autobiografias de homens e mulheres públicos possam ser consideradas
documentos históricos, o historiador necessita cotejá-las com os fatos oficiais, reconstruindo-
9 No original: “La confesión, el esfuerzo de rememoración, es, al mismo tiempo, búsqueda de un tesoro
escondido, de una última palabra libertadora, que redime en última instancia un destino que dudaba de su propio
valor. Se trata, para aquel que embarca en la aventura, de concluir un tratado de paz, y alcanzar una nueva
alianza, con uno mismo y con el mundo. El hombre maduro o ya envejecido que convierte su vida en narración,
cree ofrecer testimonio de que no ha vivido en balde; no elige la revuelta, sino la reconciliación, y la lleva a cabo
en el acto mismo de reunir los elementos dispersos de un destino que le parece que ha valido la pena vivir. La
obra literaria en la que él se ofrece como ejemplo es el medio de perfeccionar ese destino, de llevarlo a buen fin”.
10 No original: “El autor de una autobiografía se impone como tarea el contar su propia historia; se trata, para él,
de reunir los elementos dispersos de su vida personal y de agruparlos en un esquema de conjunto. El historiador
de sí mismo querría dibujar su propio retrato, pero, al igual que el pintor solo fija un momento de su apariencia
exterior, el autor de una autobiografía trata de lograr una expresión coherente y total de todo su destino”.
41
os através de comprovações indispensáveis. Isto porque o autobiógrafo nem sempre relata o
que realmente aconteceu. Ao estabelecer um fio para a meada dos fatos a partir de suas
motivações íntimas, o narrador pode proporcionar uma revanche à história, visto que atua
como um leitor que revisita sua experiência:
A autobiografia é uma segunda leitura da experiência, e mais verdadeira que a
primeira, visto que é tomada de consciência: na imediatez do vivido, envolve-me
geralmente o dinamismo da situação e me permite tomar em consideração as
complexidades de uma situação no tempo e no espaço. (GUSDORF, 1991, p. 13,
tradução nossa)11
A autobiografia contém em si uma narrativa de formação: relata como um indivíduo
tornou-se quem é, seu desenvolvimento, num processo vital. Estabelece-se no relato a gênese
de uma individualidade e suas relações com a sociedade de modo que se justifique, ao menos
para o autobiógrafo, a relevância do que narra. Formação de si, um caminhar orientado a um
fim, um destino, uma forma realizada de si. Com isto, o horizonte da autobiografia é finalista
ou teleológico. Parte-se do que já se sabe, de feitos já realizados e, alguns, acabados, para o
estabelecimento de suas causas e motivações. A leitura que faz o narrador de sua própria vida
é retrospectiva: "é a partir do fim que se articulam as relações de causa e efeito e que o
movimento da aprendizagem ganha sentido para o leitor, ou seja, encontra, ao mesmo tempo,
sua orientação e sua significação” (DELORY-MOMBERGER, 2009, p. 102). Isto é
observado e analisado na autobiografia de Evita, LRMV, em que ela explica como se tornou
quem era, buscando, em sua narrativa, as origens de sua personalidade e de suas ações
políticas.
O autobiógrafo coloca-se num local estratégico de onde é possível ter uma visão
retrospectiva e total da vida; com isso impõe a ordem do presente sobre o passado. Do que
antes se viveu como acontecimento, agora se observam os resultados, numa relação de causa e
consequência:
Ao sobrepor esta visão presente e consumada de um acontecimento passado, esse
recebe um significado distinto que no momento em que estaba acontecendo não
possuía. O sentido do passado é inteligível e significativo em função de sua
compreensão no presente. Assim ocorre também com todo intento de compreensão
histórica: os fatos históricos são situados de forma que se estabelece entre eles uma
relação retrospectiva da qual careciam no momento em que aconteceram.
(WEINTRAUB, 1991, p. 21, tradução nossa)12
11 No original: “La autobiografía es una segunda lectura de la experiencia, y más verdadera que la primera,
puesto que es toma de conciencia: en la inmediatez de lo vivido, me envuelve generalmente el dinamismo de la
situación y me permite tomar en consideración las complejidades de una situación en el tiempo y el espacio”.
12 No original: “Al sobreponer esta visión presente y consumada de un acontecimiento pasado ése cobra un
significado distinto que en el momento en que estaba teniendo lugar no poseía. El sentido del pasado es
inteligible y significativo en función de su comprensión en el presente. Así ocurre también con todo intento de
42
Os elementos da experiência passada são escolhidos e extraídos do contexto no qual se
situavam anteriormente e são recombinados, porque agora o narrador autobiográfico, como
um historiador de si mesmo, acredita que tenham um sentido que antes podem não ter
possuído. Essa relação se opõe à ordem cronológica. De modo semelhante ao historiador na
escrita da história, o narrador interpreta e orienta a vida na escrita a partir do sentido que
agora atribui ao evento. O que predomina é a visão que tem de si o autobiógrafo no momento
da escrita:
O valor tanto da história como da autobiografía é derivado do fato de que, em sua
interpretação do passado, ambas apresentam como significativas determinadas
partes desse passado. Em ambos casos os diferentes fragmentos que conformam o
incoerente conjunto da realidade da vida foram previamente classificados e,
posteriormente, selecionados alguns deles aos quais se lhes atribuiu um lugar
apropriado num modelo de significados mais completo. (WEINTRAUB, 1991, p.
21, tradução nossa)13
Segundo Pozuelo Yvancos (2006, p. 24), o discurso construído na autobiografia é,
portanto, autentificador, visto que o narrador escreve sua vida como a verdade, pretendendo
que seu relato seja lido como a verdadeira imagem que de si mesmo testemunha. O autor
chama a atenção para o fato de que o contexto determina o quanto o “eu” (o sujeito do relato)
é fingido ou corresponde a uma realidade histórica. O limite entre o romance em primeira
pessoa e o relato autobiográfico é contextual, neste o sujeito de enunciação é uma pessoa real,
histórica, documentável, naquele não é.
Observa-se que o modo de narrar dos gêneros biográficos apresenta a vida como
processo, sendo a autobiografia inseparavelmente unida à concepção do eu. Esse eu é
apresentado como modelo humano. Isto traz à lembrança o gênero hagiográfico, que também
nos interessa nessa pesquisa. O relato da vida de santo também é um gênero presente no
espaço biográfico. Importa considerar que, para ser modelo, o santo deve possuir algumas
características ou conjunto de valores, seguindo um padrão de modos de conduta que a
hagiografia ou autobiografia reescrevem.
Em suas origens, a autobiografia está relacionada à hagiografia e também às
confissões (Confissões de Santo Agostinho), logo à retórica da veracidade (POZUELO
comprensión histórica: a los hechos pasados se les sitúa de forma que se establece entre ellos una relación
retrospectiva de la que carecían en el momento en que tuvieron lugar”.
13 No original: “El valor tanto de la historia como de la autobiografía se deriva del hecho de que, en su
interpretación del pasado, ambas presentan como significativas determinadas partes de ese pasado. En ambos
casos los diferentes fragmentos que conforman el incoherente conjunto de la realidad de la vida han sido
previamente clasificados y, posteriormente, seleccionados algunos de ellos a los que se les ha asignado un lugar
apropiado en un modelo de significados más completo.”
43
YVANCOS, 2006, p. 60), mantendo-se esta presente na autobiografia, enquanto que o relato
das façanhas maravilhosas permanece na hagiografia. No estatuto autobiográfico atual,
permanece o ato de apoiar-se numa verdade, num pacto de sinceridade que estabelece com os
leitores, e seu testemunho pode ser válido a outros indivíduos, como exemplo. Isso não
significa que tudo o que diz é verdade e, sim, que tudo é apresentado como se fosse verdade, e
é esse pacto o que separa a autobiografia das ficções ou narrativas com formas
autobiográficas.
Pozuelo Yvancos destaca a presença de lacunas, não ditos, na autobiografia: “calar é
ocultar algo que se deveria dizer” (2006, p. 44): além dos esquecimentos, há também a opção
pessoal por não falar. Isto pode ser observado mais facilmente na autobiografia de
personalidades públicas, em que há documentação com a qual é possível cotejar o texto, caso
se queira fazer este tipo de inventário, o que não é exatamente o que proponho neste trabalho.
No entanto, não há como ignorar o quanto a autobiografia de uma personalidade pública pode
relacionar-se a instituições, como se deu com a de Eva Perón, distribuída em escolas públicas,
como leitura básica do Partido Peronista.
Isto permite afirmar que a autobiografia se situa num horizonte não-ficcional
(POZUELO YVANCOS, 2006, p. 69). Se pensamos nas margens do gênero, sua aproximação
está na confluência com o não-ficcional. Mais próxima da ficção, ou melhor, inteiramente
presente nela está a autoficção.
O romance SE, além de apresentar a biografia de Eva Perón e a história do sequestro e
desaparecimento de seu cadáver embalsamado, apresenta autoficção. Segundo Alberca (2007,
p. 31), o fundamento das autoficções é a identidade visível ou reconhecível do autor, narrador
e personagem do relato. Na obra mencionada, o narrador, que tem o mesmo nome do autor,
Tomás Eloy Martínez, narra alguns acontecimentos de sua vida relacionando-a à escrita do
romance de modo metaficcional, jogando com a possível confusão entre pessoa e
personagem, como menciona Alberca (2007, p. 32): confundem-se pessoa e personagem, ou
se faz da própria pessoa um personagem, insinuando que esse personagem é e não é o autor,
numa ambiguidade calculada ou espontânea.
Na autoficção, o autor pode criar múltiplas realidades:
O autor de autoficções não se conforma somente com contar a vida que viveu, mas
em imaginar uma das muitas vidas possíveis que lhe poderia haver tocado a sorte de
viver. De modo que o escritor de autoficções não trata apenas de narrar o que foi,
mas também o que poderia ter sido. Isso lhe permite viver, nas margens da escritura,
vidas distintas da sua. (ALBERCA, 2007, p. 33)14
14 No original: “El autor de autoficciones no se conforma sólo con contar la vida que ha vivido, sino en imaginar
una de las muchas vidas posibles que le podría haber tocado en suerte vivir. De manera que el escritor de
44
A autoficção é a mais desconcertante e transgressora das estratégias autobiográficas
dos “romances do eu”, segundo Alberca (2007, p. 130). Não é autobiografia, pois não
estabelece o pacto biográfico de narrar a verdade; nem romance autobiográfico, porque não se
apresenta claramente dissimuladora. Seu campo é o da indeterminação, por vezes, pelas
múltiplas possibilidades de interpretação que apresenta:
A autoficção establece um estatuto narrativo novo, cuja hibridez talvez não dê
resultados sempre interessantes ou significativos, mas se caracteriza por propor algo
diferente do romance autobiográfico. Na medida em que não disfarça a relação com
o autor, como o faz o romance autobiográfico, a autoficção se separa deste e, na
medida em que cobra ou integra a ficção em seu relato, aparta-se radicalmente da
proposta do pacto autobiográfico. Não basta reconhecer ou atestar elementos
biográficos no relato para considerá-lo uma autoficção e para identificar os
personagens romanescos com seu autor, e sim uma calculada estratégia para
autorrepresentar-se de maneira ambígua. (ALBERCA, 2007, p. 130, tradução
nossa)15
A autoficção apresenta-se como história imaginada e estas são contadas para melhor
entender o real, “para vê-lo melhor desde o cruzamento entre o verdadeiro e o fingido, o dado
e o suposto” (ALBERCA, 2007, p. 15, tradução nossa).16 A autoficção apela à suspensão da
tendência à credulidade, recordando ao leitor que pode ser mentira aquilo que é apresentado
como verdade pelos formadores de opinião em nossa sociedade.
Após esta reflexão sobre autobiografia e autoficção, passo a discutir a biografia. Cabe
observar que esta compartilha das características de que o narrador é conhecedor da totalidade
dos eventos narrados e de que segue uma estrutura linear, contínua e organizada, justamente
para melhor apresentar sua teleologia.
Segundo Bakhtin (2003, p. 139), a biografia é a descrição de uma vida. É a narrativa
da vida de alguém, seja figura pública ou não, viva ou já falecida. A narrativa biográfica
resulta da seleção, descrição e análise de uma trajetória individual.
Carlo Ginzburg afirma que, a partir da análise da micro história, é possível
compreender uma determinada época (1996, p. 13). Embora nem sempre a vida de um grande
autoficciones no trata sólo de narrar lo que fue sino también lo que pudo haber sido. Esto le permite vivir, en los
márgenes de la escritura, vidas distintas a la suya”.
15 No original: “La autoficción estabelece un estatuto narrativo nuevo, cuya hibridez puede que no dé resultados
siempre interesantes o significativos, pero se caracteriza por proponer algo diferente a la novela autobiográfica.
En la medida que no disfraza la relación con el autor; como lo hace la novela autobiográfica, la autoficción se
separa de ésta, y en la medida que reclama o integra la ficción en su relato se aparta radicalmente de la propuesta
del pacto autobiográfico. No basta con reconocer o atestiguar elementos biográficos en el relato para
considerarlo una autoficción y para identificar los personajes novelescos con su autor, sino una calculada
estrategia para autorepresentarse de manera ambigua”.
16 No original: “para verlo mejor desde el cruce entre lo verdadero y lo fingido, lo dado y lo supuesto”.
45
vulto da história de um país possa ser considerada micro história, ainda assim a biografia
deste grande personagem histórico pode ser representativa das estruturas de uma sociedade.
Biografias que revelam, ou alegam revelar, segredos íntimos dos biografados atraem o
interesse de muitos leitores. Janet Malcom (1995, p. 16) afirma que “a biografia é o meio pelo
qual os últimos segredos dos mortos famosos lhes são tomados e expostos à vista de todo
mundo” e enfatiza a tolerância do leitor para com as biografias mal escritas, como fruto de
uma espécie de cumplicidade entre ele e o biógrafo (1995, p. 17). Isto parece apontar para
algumas das biografias escritas por jornalistas, que têm alimentado um crescente interesse
pelo gênero. As biografias escritas por historiadores nem sempre caem no gosto do público.
São baseadas em documentos que são mencionados pelo historiador, sem que este
necessariamente se preocupe com uma narratividade que disfarce tal informação.
A biografia escrita por Felipe Pigna, embora elaborada por um historiador, não faz
parte das obras rejeitadas pelo público. Um dos motivos é que trata de uma personagem
histórica muito importante para a história argentina, que divide opiniões: Evita é amada ou
odiada em igual intensidade. Importa destacar que a biografia foi lançada em 2012, ano em
que sua morte completou sessenta anos. Além disso, seu autor é um historiador renomado e
conhecido do público. Tudo isto contribui para que a obra seja lida por milhares de pessoas na
Argentina.
Afirma Giovanni Levi que a biografia está no centro das preocupações dos
historiadores, que a tratam de modo ambíguo:
em certos casos, recorre-se a ela para sublinhar a irredutibilidade dos indivíduos e de
seus comportamentos a sistemas normativos gerais, levando em consideração a
experiência vivida; já em outros, ela é vista como o terreno ideal para provar a
validade de hipóteses científicas concernentes às práticas e ao funcionamento efetivo
das leis e das regras sociais. (LEVI, 2005, p. 167)
Segundo Levi (2005, p. 168), no que se refere às relações entre história e narrativa, a
biografia constitui canal privilegiado através do qual questionamentos e técnicas peculiares à
literatura se transmitem à historiografia. O autor menciona os obstáculos documentais que os
historiadores precisam enfrentar ao escrever o gênero biografia, destacando que alguns são, às
vezes, instransponíveis: chegar aos atos e pensamentos da vida cotidiana do biografado, suas
dúvidas, incertezas; apreender e descrever o caráter fragmentário e dinâmico da identidade;
trabalhar com momentos contraditórios de sua construção (LEVI, 2005, p. 168). Tal
problemática se dá, porque as fontes de que o historiador dispõe não fornecem informações
sobre os processos de tomada de decisões, apenas sobre os resultados destas, ou seja, sobre os
atos (ibdem, p. 173).
46
Quanto à possibilidade de escrever a vida de um indivíduo, Levi cita o termo “ilusão
biográfica” de Bourdieu, a necessidade de reconstruir o contexto, a “superfície social” em que
age o indivíduo, numa pluralidade de campos, a cada instante (2005, p. 169). Penso que aqui
está a abertura para a ficcionalização da história, visto que o historiador biógrafo, ao narrar,
precisa urdir um enredo para apresentar a trajetória percorrida pelo biografado. Tal trajetória
é, no dizer de Bourdieu, uma construção, e o biógrafo precisa evitar cair no absurdo de
compreendê-la “como uma série única e, por si só, suficiente de acontecimentos sucessivos”
(Bourdieu, 2005, p. 189). Segundo Bourdieu, a narrativa de história de vida “pressupõe que a
vida é uma história que é, inseparavelmente, o conjunto dos acontecimentos de uma existência
individual concebida como uma história e o relato desta história” (2005, p. 183).
Tomando como base a informação de que, no Brasil, embora as biografias atraiam o
grande público, grande parte delas não foi escrita por historiadores, Vavy Borges (2005, p.
212) destaca que historiadores parecem não se preocupar com a produção desse gênero e
apresenta como hipótese para isso o fato de que talvez estejam presos à obrigatoriedade de
produzir publicações acadêmicas. Segundo a autora, a maioria dessas biografias parecem não
satisfazer os historiadores porque oscilam entre idealizar de modo simplista a personagem e
por apresentar falsas polêmicas em torno de pessoas famosas, com objetivos de ampliar as
vendas, destacando o anedótico e não o essencial.
Borges classifica as biografias em três tipos: artigo de dicionário biográfico;
monografia de circunstância e a biografia dita “científica” ou “literária”. O primeiro tipo
consiste num breve resumo da vida de uma pessoa pública, por vezes famosa. O segundo, em
elogios fúnebres ou ligados a uma circunstância particular (breves, muitas vezes presentes na
imprensa escrita). Por fim, o último tipo refere-se a obras mais importantes, com preferência
pela narrativa e finalidade histórica que, por conseguinte, trabalham com documentação
numerosa e variada (BORGES, 2005, p. 213).
Sobre o sucesso de vendas de biografias no Brasil nas últimas décadas, aponta Benito
Schmidt (1997, p. 3) que as obras que conquistaram o público e a crítica são de jornalistas,
que apresentam pesquisa minuciosa e estilo envolvente. No entanto, no campo do
conhecimento histórico, a produção, no Brasil e no mundo, é igualmente rica e importante.
Em seu artigo, Schmidt propõe-se a discutir as semelhanças e diferenças entre as biografias
escritas por historiadores e jornalistas. Declara que, embora não pretenda fazer reserva de
mercado da biografia para os historiadores, irá demonstrar as “minúcias que só o historiador
vê”, respondendo ao comentário de Fernando de Morais, jornalista, autor das biografias de
47
Assis Chateaubriand e Olga Benário, que teria declarado que se servia da produção acadêmica
em seu trabalho, mas que havia minúcias que só o jornalista vê (SCHMIDT, 1997, p. 4).
Dentre as razões para a emergência do gênero biográfico entre jornalistas e
historiadores, Schmidt identifica o processo de busca, no passado, de trajetórias individuais
que possam servir como inspiração para condutas no presente, como resposta à perda de
referenciais ideológicos e morais que marcam a sociedade contemporânea. Além disso, inclui
o voyeurismo, mais ou menos velado, que impele à investigação da vida privada dos outros,
para demolir mitos ou satisfazer a curiosidade dos leitores que se identificam com os deslizes
e equívocos das grandes personalidades públicas. Isso ajuda a explicar o gosto por biografias
(SCHMIDT, 1997, p.4).
No que tange aos historiadores, as tendências atuais do conhecimento histórico
exercem influência no redespertar do gênero. Esse retorno da biografia relaciona-se à crise do
paradigma estruturalista que determinava que a história deveria tratar das estruturas e relações
que comandam os mecanismos econômicos, organizam as relações sociais e engendram as
formas do discurso, independentemente das percepções e intenções dos indivíduos. Os
historiadores atuais, em contrapartida, buscaram restaurar o papel do indivíduo na construção
dos laços sociais. Esta mudança implica no recuo da história quantitativa e serial e no avanço
da microhistória, isto sem mencionar as aproximações da história com a antropologia e o
resgate das histórias de vida, bem como com a literatura e suas técnicas narrativas de
construção de personagens (SCHMIDT, 1997, p. 5).
No jornalismo, o crescimento das biografias tem relação com o New Jornalism,
surgido nos anos 1960, tendo como expoentes Truman Capote, Tom Wolfe e Norman Mailer,
e definido como um gênero que aplica as técnicas da ficção a textos de não-ficção. Verifica-se
que tanto na história quanto no jornalismo, está presente a influência da literatura
(SCHMIDT, 1997, p. 5).
Essa influência da literatura marca as semelhanças entre biografias escritas por
jornalistas e por historiadores: a criação dos personagens, com seus conflitos interiores, seus
pensamentos, sentimentos, etc.; a invenção e introdução de licenças poéticas; o hibridismo do
gênero biográfico formado a partir de fontes documentais, bem como interpretação e ficção; e,
finalmente, uso do flasback no tratamento do tempo (SCHMIDT, 1997, p. 7, 8).
Quanto às diferenças, observam-se o tratamento diferenciado de fontes de pesquisa, o
conteúdo ficcional e o tratamento da conjuntura. Segundo Schmidt, a historiografia
permaneceu fiel à tradição da crítica aos documentos questionando a sua produção, prática
48
nem sempre observada nos trabalhos jornalísticos, visto que estes nem sempre colocam em
suspeição as fontes. Quanto ao conteúdo ficcional, este é maior nas biografias elaboradas por
jornalistas, prática verificada no New Jornalism, que se aproximou da literatura trazendo para
o texto jornalístico os diálogos, monólogos interiores, teorizações ensaísticas, o recurso do
fluxo de consciência, e as descrições detalhadas para dar impressão mais completa da
realidade produzida no relato, o que neste trabalho identificamos como “efeito de
historicidade” (SCHMIDT, 1997, p. 10, 11).
Na história, a margem para a invenção é mais limitada: “Afinal, os historiadores, por
dever de ofício, têm um compromisso muito mais cabal com sujeitos históricos concretos, que
existiram na realidade e que chegam até o presente através dos documentos” (SCHMIDT,
1997, p. 13). No caso da historiografia, a invenção é registrada através de modalizadores
discursivos, tais como: “provavelmente”, “talvez”, “é possível afirmar”, etc. De modo
resumido, o historiador explicita o uso que faz da imaginação, ao passo que nem sempre isto é
feito pelo jornalista. Também na história, é maior o interesse pela explicação de questões mais
amplas, da conjuntura, a partir da vida do biografado, ligando o homem ao seu contexto
(SCHMIDT, 1997, p. 14).
Interessa a esta pesquisa investigar os elementos que relacionam história e ficção na
biografia de Evita (EJSV), que pode ser classificada como “científica” ou “literária”, se
tomamos o conceitual de Vavy Borges, bem como o papel do autor historiador como criador
da historicidade. Além disso, efetuar a análise da biografia ficcional SE escrita por um
romancista que também é jornalista e que apresenta em seu texto as influências de sua área de
atuação profissional. Esta biografia ficcional utiliza em seu modo de narrar outro modelo
biográfico: a hagiografia.
O termo hagiografia refere-se ao relato escrito da vida dos santos e é utilizado, desde o
século XVII, para designar tanto o estudo crítico dos diferentes aspectos relacionados ao culto
aos santos quanto os textos cujas temáticas centrais são os santos e seu culto, como vidas,
tratados de milagres, relatos de trasladações, viagens espirituais, martirológios, etc. (SILVA,
2008, p. 7). Segundo Dosse (2015, p. 137), “esse gênero literário privilegia as encarnações
humanas do sagrado e ambiciona torná-las exemplares para o resto da humanidade”.
Os primeiros pesquisadores do gênero hagiográfico foram Jean Bolland e seus
discípulos, chamados de Bollandistas, no século XVII. Preocupavam-se com a crítica das
fontes e em determinar o que entendiam por valor histórico desses documentos, além de
preparar edições de textos hagiográficos (SILVA, 2008, p. 7).
49
No século XX, com a Escola dos Annales e sua busca por novas fontes para o estudo
da história, a hagiografia ganha papel de destaque como documentação importante para o
conhecimento da Idade Média. Nas últimas décadas, o estudo da hagiografia renovou-se, pois
a mesma é considerada como ponto de partida para diversas investigações, que vão muito
além dos fenômenos religiosos ou teológicos, como apontado por Sonia Gajano (2006, p.
449).
A produção hagiográfica destinava-se a fixar a memória histórica dos heróis da nova
fé. Tratava-se, em alguns casos, de testemunhos diretos, às vezes autobiográficos, sobre o
martírio do santo e sobre a veneração que suscitou em determinada comunidade. A
hagiografia é, portanto, um texto literário construído de acordo com padrões narrativos para
tornar conhecido um personagem e difundir seu culto (GAJANO, 2006, p. 455). Seu caráter é
didático e propagandista de um modelo de santidade a seguir, que valorizava “a piedade leiga,
a penitência, a vida comunitária, a pobreza voluntária, a pregação pública, o trabalho
assistencial” (SILVA, 2008, p. 8).
Como gênero literário, a hagiografia “privilegia os atores do sagrado (os santos) e visa
à edificação (uma ‘exemplaridade’)” (CERTEAU, 2000, p. 266), diferindo da história, ao
narrar não o que se passou, mas o que é exemplar. De acordo com Dosse (2015, p. 137), o
regime de verdade da hagiografia é distinto do que se espera do historiador, portanto, a
hagiografia distancia-se do pacto de verdade pressuposto na escrita histórica.
André Jolles (1976, p. 43) destaca a capacidade da língua de representar a existência
de um santo, de maneira análoga, e de constituir santos. Há na hagiografia um caráter criativo,
manifesto através da narratividade, na emergência de formas próprias de cada comunidade
falar e contar suas histórias (SANTOS; DUARTE, 2010, p. 4).
Compostas segundo os modelos retóricos de biografia do mundo antigo, as vidas de
santos apresentam um sentido de biografia que diverge do sentido contemporâneo. Na
biografia antiga, narravam-se os feitos cotidianos dos personagens em forma de exaltação
fantasiosa. O homem antigo esperava encontrar nessas biografias edificação e um repositório
de modelos de condutas.
No mundo contemporâneo, rejeitam-se as biografias fantasiosas. Uma biografia
contemporânea forja-se na possibilidade de apresentar dados verdadeiros, verificáveis da vida
de alguém, algo que possa ser tomado como exemplo, mas que seja uma situação real. Esta
biografia é encerrada pela morte do biografado. A hagiografia não se encerra com a morte,
pois esta não significa o fim da carreira do santo. Os milagres narrados começam após a
50
morte. Desta forma, a hagiografia é um relato da sobrevivência após a morte (JOLLES, 1976,
p. 42).
Segundo Baños Vallejo (1989), o gênero hagiográfico na Idade Média distinguia-se
não pela forma dos textos, mas por seu conteúdo. Para este autor, caracterizaria o texto
hagiográfico a apresentação de três elementos fundamentais: as ações realizadas em vida pelo
santo e que retratam o seu desejo pela santidade, a morte vista como processo de
aperfeiçoamento e, finalmente, os milagres post-mortem, como sinal do êxito e comprovação
da santidade desejada pelo santo.
Michel de Certeau (2000, p. 270) destaca o caráter festivo desses textos. Para o autor,
a hagiografia está situada ao lado do descanso e do lazer, correspondendo à abertura espiritual
e contemplativa. Embora seja exemplar, também diverte, oscilando entre o crível e o incrível,
apresentando novas possibilidades, visto que se localizam na hagiografia o falso, o popular e
o arcaico (ibdem, p. 271).
Segundo Certeau (2000, p. 273), na estrutura discursiva da hagiografia, há construção
da imagem a partir de elementos semânticos; genealogias (para estabelecer a origem nobre do
santo); esquemas escatológicos (que invertem a ordem política para substituí-la pela celeste e
transformam pobres em reis); circularidade (uma ordem reconduz à outra); ambiguidade;
história como epifania (o relato de como uma vocação se manifestou); relato dramático;
alternância entre um tempo de provações (combates solitários) e um tempo de glorificações
(milagres públicos).
De modo diferente da biografia, que apresenta a vida em processo, acompanhando
uma evolução das potencialidades individuais, a hagiografia, segundo Dosse, “postula que
tudo está na origem” (2015, p. 138). Decorre disto a importância da infância. É comum nos
relatos hagiográficos remontar à infância, para apresentar o santo como inteiro, imutável,
ainda que tenha passado por conversão. Há na hagiografia, ainda de acordo com Dosse
(ibdem, p. 139), “o desaparecimento do santo e uma construção singular dos testemunhos de
sua vida, com a ideia de mostrar que a própria lógica de sua existência sempre foi orientada
pela intenção de sacrificar-se pelos semelhantes”. Observa-se a construção da ideia de um
destino orientado e isto é possível porque já se conhece a vida do santo em sua totalidade.
1.3 O imaginário: confluência da história e da ficção
51
A história e a ficção têm em comum a narrativa no aspecto formal, material,
reconhecível textualmente. Já no aspecto imaterial comungam do imaginário. Como
construtor de representações e configurações sociais, o imaginário é objeto da história e da
ficção, sendo também formado por estas. Dito de outra forma, no imaginário confluem as
margens da história e da ficção.
Ao abordar novos interesses da história nos anos 1980, Jacques Le Goff (1994) refletiu
sobre o imaginário para definir seu objeto de estudo, a sociedade medieval. Em sua reflexão,
Le Goff distingue imaginário de outros conceitos aos quais está relacionado, mas que não
totalizam sua compreensão: representação, simbólico e ideologia. Quanto à representação,
esclarece que o vocábulo
engloba todas e quaisquer traduções mentais de uma realidade exterior percebida. A
representação está ligada ao processo de abstração. A representação de uma catedral
é a ideia de catedral. O imaginário pertence ao campo da representação, mas ocupa
nele a parte da tradução não reprodutora, não simplesmente transposta em imagem
do espírito mas criadora, poética no sentido etimológico da palavra. (LE GOFF,
1994, p. 11)
Assim, “o imaginário faz parte de um campo de representação e, como expressão do
pensamento, se manifesta por imagens e discursos que pretendem dar uma definição da
realidade” (PESAVENTO, 1995, p. 15). Por meio do imaginário, uma sociedade pode
construir-se, estabelecer sua identidade, sua cultura, seu poder e os modelos de conduta para
seus membros (ibdem, p. 16).
Segundo Roger Chartier, a representação tanto pode permitir ver algo ausente como
exibir uma presença. Ela é o “instrumento de um conhecimento mediato que faz ver um
objeto ausente através da sua substituição por uma “imagem” capaz de o reconstituir em
memória e de o figurar tal como ele é" (CHARTIER, 1990, p. 20). Além disso, a
representação associa-se à imaginação. Tomar o aparente pelo real é próprio da imaginação
humana (ibdem, p. 21).
De acordo com Le Goff, “os documentos sobre os quais o historiador trabalha podem
todos, sem dúvida, encerrar uma parte de imaginário” (LE GOFF, 1994, p. 13). Isto porque as
fontes exprimem “não só as situações concretas, mas também um imaginário do poder, da
sociedade, do tempo, da justiça, etc.” (ibdem, p. 13).
Le Goff distingue um conjunto de documentos privilegiados para a história do
imaginário: as obras literárias e as artísticas. Segundo o historiador, esses documentos são
produções do imaginário e há necessidade da interdisciplinaridade para sua análise (1994, p.
13). Afirma o autor que
52
quem se interessa pelo imaginário de uma época tem de olhar para o lado das
produções características desse imaginário: a literatura e a arte. E já é tempo de
abolir as barreiras universitárias que se erguem entre a história “pura” (que o mesmo
é dizer mutilada), a história da literatura (e da língua, ou melhor, das línguas) e a
história da arte (e das imagens). (LE GOFF, 1994, p. 21)
Anteriormente, mencionamos neste trabalho a definição de Wolfgang Iser, segundo a
qual, a ficção compõe uma tríade com o real e o imaginário (ISER, 1983, p. 386) e sua
afirmação de que o texto literário ficcional permite a realização do imaginário através dos atos
de fingir, que são três: seleção, combinação e autodesnudamento (ISER, 1999, p. 68). Logo, o
imaginário adquire aparência de real através dos atos de fingir. Desta forma, o mundo é
representado como se fosse real. Portanto, perceber nos textos literários as representações
neles presentes é abrir portas ao estudo do imaginário que constitui a vida social.
O imaginário é um domínio da história, porque “tudo na vida dos homens e das
sociedades está também na história e necessita de um tratamento histórico” (LE GOFF, 1994,
p. 15). A vida do homem está ligada tanto a imagens (iconográficas e mentais) quanto a
realidades palpáveis. O imaginário alimenta o homem e o faz agir, “é um fenômeno coletivo,
social e artístico” (ibdem, p. 16).
Na compreensão do imaginário como “[...] uma forma de entendimento que encara a
realidade não só como “o que aconteceu”, mas também como “o que foi pensado” ou mesmo
“o que se desejou que acontecesse” (PESAVENTO, 1995, p. 17), nela ouvimos o eco
aristotélico da história como o que aconteceu e a poesia como o que poderia ter acontecido.
Que a história tenha percebido que o imaginário é seu campo de estudo e tenha se
voltado não a psiquismos ou meras subjetividades, mas a documentos que são produções
materiais, palpáveis, que permitem ver representações de mundo, enriquece a compreensão
das sociedades, das relações humanas, relações de poder, religiosidade, sentimentos, em
suma, tudo o que envolve a ação humana.
Cabe ressaltar que as imagens que interessam aos historiadores são, segundo Le Goff,
as imagens coletivas (1995, p. 16). Isto porque seu interesse está no conjunto da sociedade,
não apenas na história individual. Com isso, na análise de um texto autobiográfico em que
uma figura de poder narra suas memórias e encadeia os eventos de sua história, é preciso ler
nas entrelinhas a representação que constrói de si mesma e desse poder que exerce, como
veremos mais adiante na análise de LRMV.
O imaginário comporta ainda as instâncias da utopia e da ideologia, visto que a utopia
é a projeção no domínio do imaginário “de uma sociedade radicalmente outra, de um mundo
em tudo melhor que o mundo real”; entretanto “o imaginário social não se resume às ideias,
53
imagens utópicas, mas elas lhe dão um suporte poderoso, como forma específica de ordenação
de sonhos e desejos coletivos” (PESAVENTO, 1995, p. 22).
Quanto à ideologia, esta se presentifica porque no processo de formação do imaginário
coletivo intervêm manifestações e interesses precisos: “Não se pode esquecer que o
imaginário social é uma das forças reguladoras da vida coletiva, normatizando condutas e
pautando perfis adequados ao sistema” (PESAVENTO, 1995, p. 23). Sandra Pesavento
identifica três instâncias de realização do imaginário: “a do suporte na concretude do real, a
da utopia e a ideológica” (PESAVENTO, 1995, p. 23). Segue a historiadora:
O imaginário social se expressa por símbolos, ritos, crenças, discursos e
representações alegóricas figurativas.
O imaginário é, pois, representação, evocação, simulação, sentido e significado, jogo
de espelhos onde o “verdadeiro” e o aparente se mesclam, estranha composição onde
a metade visível evoca qualquer coisa de ausente e difícil de perceber. Persegui-lo
como objeto de estudo é desvendar um segredo, é buscar um significado oculto,
encontrar a chave para desfazer a representação do ser e do parecer.
Não será este o verdadeiro caminho da História? Desvendar um enredo, desmontar
uma intriga, revelar o oculto, buscar a intenção? (PESAVENTO, 1995, p. 24)
Seria possível apontar que a ficção pode ajudar a responder essas questões, embora
não tenham sido a ela direcionadas. Enredo, intriga, oculto, intenção são elementos próprios
da representação ficcional, configurados no imaginário. Desta forma, as margens da história e
da ficção confluem no imaginário.
Ao estudar as representações de Eva Perón na literatura, adentrarei o imaginário
argentino a respeito do peronismo, do mito de Evita, da identidade nacional, sem no entanto
me ater às transformações operadas ao longo do tempo. Isto, por si só, demandaria outro
trabalho de pesquisa. Busco refletir sobre três diferentes gêneros (autobiografia, biografia e
biografia ficcional) e suas diferentes representações.
54
2. REPRESENTAÇÃO AUTOBIOGRÁFICA DE EVA PERÓN
O índice dos capítulos da obra autobiográfica de Eva Perón revela seu objetivo de
narrar a si mesma como alguém incumbido de uma missão, por isso o título La razón de mi
vida. A autobiografia divide-se em três partes: primeira, “Las causas de mi misión”; segunda,
“Los obreros y mi misión”; e, por fim, a terceira e última parte, “Las mujeres e mi misión”.
No prólogo, Eva Perón dedica o texto a seu marido, Juan Domingo Perón, atribuindo-
lhe o mérito de haver dado a ela oportunidade de ser quem é: “yo no era ni soy nada más que
una humilde mujer... un gorrión en una inmensa banda de gorriones… Y él era y es el cóndor
gigante que vuela alto y seguro entre las cumbres y cerca de Dios” (LRMV, p. 10).17 O modo
apaixonado e insistente como se refere a Perón demonstra que não apenas constrói a si mesma
em sua escrita, como elabora o caráter de pai da pátria do presidente.
Evita toma a si a autoria do texto, embora alguns digam que foi escrito por um
jornalista a quem ela teria ditado. Segundo Alicia Poderti (2010, p. 123), alguns estudos,
como o de Juan José Sebrelli, apontam o jornalista espanhol Manuel Panella da Silva como
autor do texto original. A questão da autoria feminina é, por vezes, um problema. Isto porque
muitos não admitiam a capacidade da mulher de ser escritora, de manejar bem a linguagem
para, através dela, dar-se a conhecer, relatando seu íntimo e suas intenções. Tomarei aqui o
testemunho de Evita relativo à autoria de sua obra como verdadeiro, ainda que uma verdade
para a narrativa, isto é, intratextual, pois não há meios de, no momento, empreender uma
caçada pelo possível autor, visto que nem estudiosos chegaram a um consenso.
LRMV foi o livro mais difundido de Eva Perón (PODERTI, 2010, p. 122). Tornou-se
manual de leitura obrigatória das escolas; entretanto, após a destituição de Perón, em 1955,
sua reprodução e difusão foram proibidas.
2.1 Pacto autobiográfico e formação de si na narrativa
O pacto autobiográfico, característica que configura o texto autobiográfico, através do
contrato de leitura que se estabelece entre narrador e leitor, no qual aquele se compromete
com o estatuto da veracidade, isto é, apresenta seu relato como se fosse verdade, está presente
17 Tradução nossa: “eu não era nem sou nada mais que uma humilde mulher... um pardal numa imensa revoada
de pardais... E ele era e é o condor gigante que voa alto e seguro entre os cumes e perto de Deus”.
55
em LRMV desde as primeiras linhas: Eva Perón declara que seu testemunho é humilde e
sincero (p. 10).
Sua motivação para escrever parte do desejo de pensar sobre sua vida e explicar por
que se envolveu com a causa dos trabalhadores (LRMV, p. 13). Propõe-se a responder as
críticas que recebe, embora diga que não pretende refutar a ninguém e que seu desejo é que os
homens e mulheres do povo saibam como se sente e o que pensa, estabelecendo, portanto, seu
público alvo: os mais humildes (LRMV, p. 14). Escreve de modo simples e direto, com
parágrafos curtos, muitos com apenas uma frase, e capítulos pequenos, a maioria com duas ou
três páginas apenas.
Ao longo da edição há fotografias, em preto e branco, todas com legenda explicativa,
apresentando Eva Perón em seu trabalho diário de ajuda social, ou em eventos de gala, sempre
muito bem vestida, ou discursando ao povo. Algumas fotografias apresentam-na junto a Perón
e outras retratam as grandes manifestações populares que reuniam multidões. É possível supor
que as fotografias que compõem a obra, fornecendo detalhes, são procedimentos para criação
do efeito de historicidade, teriam uma função a desempenhar: a comprovação do que foi
relatado. Por exemplo, na fotografia em que Eva Perón saúda de dentro do carro dirigido por
seu motorista, no trajeto de volta para casa após jornada estafante de trabalho. A fotografia foi
tomada de modo a mostrar uma torre ao fundo com um relógio que marca quatro horas e
quarenta minutos; a legenda diz: “Eva Perón abandona su despacho del ministerio de Trabajo
y Previsión, en la madrugada, después de haber cumplido una jornada de más de 18 horas de
agotadora labor.” (LRMV, p. 187).18
Em seu relato, várias vezes Eva Perón reafirma o pacto autobiográfico, tecendo
comentários sobre sua escrita, aproximando o leitor ao apresentar-se em tom íntimo, simplista
e emocionado, por vezes, apelativo. Mostra-se como uma amiga dos trabalhadores, cumprindo
assim seu intento de fazer com que estes conheçam o peronismo e possam, através dela,
chegar a Perón:
Todo eso me parece que se va convirtiendo en una charla demasiado larga.
Con razón a veces el General Perón me dice que hablo mucho.
Pero todas estas cosas las escribo a medida que brotan de mi corazón. Tengo miedo
de olvidarme de algo que pueda hacer comprender a mis lectores cómo es mi misión
en la Nueva Argentina de Perón.
No porque yo tenga necesidad de ser comprendida.
No. Pero me interesa que mis amigos comprendan un poco más a Perón y a su
pueblo… a sus descamisados.
Por eso me esfuerzo en tantas explicaciones.
18 Tradução nossa: “Eva Perón deixa seu escritório no ministério de Trabalho e Previsão, na madrugada, depois
de ter cumprido uma jornada de mais de 18 horas de trabalho esgotador”.
56
Dios quiera que sirvan para algo; y yo seré feliz. (LRMV, p. 185)19
Em outro trecho, ela explica:
Quisiera hablar de todo. Pero esto dejaría de ser lo que yo quise que fuera: una
simple explicación de lo que a mucha gente le parece inexplicable, y se convertiría
en una descripción de cosas que en realidad no se poden conocer bien si no se las ve.
(LRMV, p. 247)20
Ou ainda: … me he propuesto a escribir la verdad. (LRMV, p. 264)21
Além da escrita em primeira pessoa, do nome próprio compartilhado entre autora e
narradora, e das declarações que afirmam o apoio do texto sobre verdades, ou seja, a
apresentação dos fatos como reais, o texto autobiográfico conforma sua organização de modo
a dar sentido a uma totalidade de vida, como afirma Weintraub (1991, p. 19). Dessa forma,
como vimos, o relato contém uma narrativa de formação que conta como um indivíduo
chegou a ser quem é, o processo de seu desenvolvimento vital.
A escrita de Eva Perón tem o claro propósito de construir a si mesma e a Perón, bem
como aos seus opositores, e apresentar o projeto justicialista.22 Ao final de seu relato, afirma
que não escreveu para a história, mas para o presente extraordinário que lhe tocou viver, para
que seu povo e o mundo inteiro sentissem que se aproxima um novo dia para a humanidade: o
dia do Justicialismo (LRMV, p. 317).
Suas origens na infância merecem comentário a parte e estão no próximo subcapítulo
em que abordo a construção que a narradora faz de si vinculando-se ao projeto peronista.23
Apresenta-se a si mesma como indignada com a injustiça (LRMV, p. 19); rebelde
inconformada que, frente à desigualdade, acreditava que um dia tudo mudaria, embora não
19 Tradução nossa: “Tudo isso parece que está se transformando numa conversa muito longa.
Com razão, às veces, o General Perón me diz que falo muito.
Mas todas essas coisas escrevo à medida que brotam de meu coração. Tenho medo de me esquecer de algo que
possa fazer meus leitores compreenderem como é minha missão na Nova Argentina de Perón.
Não porque eu tenha necessidade de ser compreendida.
Não. Mas me interessa que meus amigos compreendam um pouco mais Perón e seu povo... seus descamisados.
Por isso me esforço em tantas explicações.
Deus queira que sirvam para algo; e eu serei mais feliz”.
20 Tradução nossa: “Queria falar de tudo. Mas isto deixaria de ser o que eu quis que fosse: uma simples
explicação do que a muita gente parece inexplicável, e se converteria numa descrição de coisas que na realidade
não podem ser bem conhecidas se não são vistas”.
21 Tradução nossa: “... me propus a escrever a verdade”.
22 Ideologia política na qual se baseou o movimento surgido na Argentina em meados do século XX em torno da
figura de Juan Domingo Perón (militar, político e presidente argentino, 1895-1974).
23 p. 62.
57
soubesse que teria parte em tal transformação (LRMV, p. 23). Isto exemplifica o horizonte
finalista ou teleológico da autobiografia em que o narrador faz leitura retrospectiva de sua
própria vida (DELORY-MOMBERGER, 2009, p. 102).
O divisor de águas em sua vida, o fato que a levou a envolver-se ativamente na vida
política de seu país aconteceu, segundo narra, enquanto Perón esteve preso na ilha Martín
García, em 1945, quando militares queriam que se retirasse dos cargos de secretário de
Trabalho e Previsão, ministro da Guerra e vicepresidente da Nação que ocupava no governo
de Edelmiro Farrell. Eva Perón, ao realizar várias diligências, buscando entre os conhecidos e
amigos de Perón quem pudesse ajudá-lo, sofre agressões quando passa de carro por um grupo
que lhe desfere vários golpes. Essa agressão servirá como um “batismo de dor” (LRMV, p.
43). Evita sentiu-se grata ao povo trabalhador que saiu às ruas para exigir a libertação de
Perón e decidiu fazer algo por eles, ajudá-los em suas necessidades. O clamor popular surtiu
efeito, e Perón foi libertado. Segundo Alicia Poderti (2010, p. 135, tradução nossa): “Esta
detenção marcou um rito na história do peronismo, pois ao ser libertado produziu-se a marcha
do 17 de outubro, na qual o povo o consagrou como líder dos oprimidos”.24
Eva Perón apresenta-se como vocacionada para uma missão: cuidar dos trabalhadores
da Argentina: “No, no creo que fué el azar la causa de todo esto que soy, en mi país y para mi
pueblo. Creo firmemente que he sido forjada para el trabajo que realizo y la vida que llevo”
(LRMV, p. 49).25 Explica: “Yo creo firmemente que, en verdad, existe una fuerza
desconocida que prepara a los hombres y a las mujeres para el cumplimiento de la misión
particular que cada uno debe realizar” (LRMV, p. 50).26
Ao abordar o tema da vocação e do destino, introduz um capítulo (“Sobre mi
elección”, LRMV, p. 54)27 em que cede a narração a Juan Perón, o qual relata, a partir de suas
memórias, sua eleição pelo destino ou pela Providência (divina) para guiar o povo argentino.
Segundo ele, o destino se apresenta, mas a vontade humana é que decide se irá ou não cumprir
o destino. Como vontade humana entende-se em seu breve relato o homem predestinado e o
povo, que precisam, juntos, ajudar o destino:
24 Em português: “Esta detención marcó un hito en la historia del peronismo, pues al ser libertado se produjo la
marcha del 17 de octubre, en la que el pueblo lo consagró como líder de los oprimidos”.
25 Tradução nossa: “Não, não creio que foi a sorte a causa de tudo isto que sou em meu país e para meu povo.
Creio firmemente que fui forjada para o trabalho que realizo e a vida que levo”.
26 Tradução nossa: “Eu creio firmemente que, na verdade, existe uma força desconhecida que prepara os homens
e as mulheres para o cumprimento da missão particular que cada um deve realizar”.
27 Tradução nossa: “Sobre minha eleição”.
58
Yo estoy al frente de mi pueblo no sólo por decreto del destino. Estoy porque, sin
saberlo, tal vez, me preparé para esto como si hubiese sabido que algún día iba a
tocarme esta responsabilidad y este privilegio.
Y puedo afirmar y demostrar también que mi pueblo se preparó paciente, aunque
inconscientemente, también para esta hora de su destino. (LRMV, p. 54)28
Juan Perón aponta as circunstâncias que concorreram para seu destino: ter nascido no
local em que nasceu (Lobo, cidade da província de Buenos Aires); ter escolhido ser militar;
ter sido preparado pela vida, em seu lar; as viagens que fez à Europa; sua participação na
revolução de 1943 e a do povo em sua libertação da prisão, em 1945 (LRMV, 1951, p. 55-57).
Conclui ele:
Mi elección no es evidentemente una cosa del azar. La Providencia hizo su parte,
indudablemente, y de eso siempre doy gracias a Dios.
Pero el pueblo y yo le ayudamos.
La clave del porvenir reside en cuidar precisamente que eso no deje de ocurrir entre
nosotros. (LRMV, p. 58)29
Segue Eva Perón na construção de si através da escrita e aproveita o fim do turno em
que cedeu a palavra a Perón para iniciar um capítulo em que se apresenta como “demasiado
peronista”30 (LRMV, p. 59): “Ahora ya puede compreender quien haya leído el capítulo
precedente que siendo así Perón en su grandeza, que unida a su sencillez lo hacen genial, sea
yo como soy: fervorosa y fanáticamente peronista”.31 Eva Perón constrói-se em oposição a
Perón de modo a se complementarem: ele – inteligência; preparado para a luta; culto; enorme;
a figura; ela – coração; disposta a tudo sem saber nada; sensível; pequena, a sombra (LRMV,
p. 63). Esta ideia irá culminar na alegoria dos pais da pátria, como analiso mais adiante nesta
tese.
Descreve-se Eva Perón como intuitiva. Segundo ela, sua intuição é uma maneira de ser
da inteligência (LRMV, p. 73). Como complementar a Perón em sua obra justicialista, coloca-
se como mediadora entre ele e o povo: “Yo elegí ser ‘Evita’... para que por mi intermedio el
28 Tradução nossa: “Eu estou à frente do meu povo não apenas por decreto do destino. Estou porque, sem sabê-
lo, talvez, me preparei para isto como se tivesse sabido que algum dia iria caber-me esta responsabilidade e este
privilégio.
E posso afirmar e demonstrar que meu povo se preparou paciente, mesmo que inconscientemente, também para
esta hora de seu destino”.
29 Tradução nossa: “Minha eleição não é evidentemente uma coisa do acaso. A Providência fez sua parte,
indubitavelmente, e por isso sempre dou graças a Deus.
Mas o povo e eu o ajudamos.
A chave do porvir reside em cuidar precisamente para que isso não deixe de ocorrer entre nós”.
30 Tradução nossa: “peronista demais”.
31 Tradução nossa: “Agora já pode compreender quem tenha lido o capítulo precedente que sendo assim Perón
em sua grandeza, que unida a sua simplicidade o fazem genial, seja eu como sou: fervorosa e fanaticamente
peronista”.
59
pueblo y sobre todo los trabajadores encontrasen siempre libre el camino de su Líder”
(LRMV, p. 84).32
Como mediadora, não é simplesmente uma primeira dama. De modo bastante
perspicaz, discute sobre sua dupla designação – Eva Perón e Evita – a partir de seu papel
político. Compara a atuação pública ao teatro, remetendo à sua experiência como atriz,
descrevendo-se como uma esposa de presidente “distinta del modelo antiguo” (LRMV, p.
86).33 Diz que este seria um papel simples e agradável que ela poderia representar no teatro ou
no cinema. No entanto, não nasceu para isso, para “esa clase de teatro” (LRMV, p. 87),34
porque não só ela é diferente, mas porque Perón não é um simples presidente: é o condutor do
povo argentino (LRMV, p. 88). Este fato faz com que sua atuação seja distinta e lhe confere
uma dupla personalidade:
A la doble personalidad de Perón debía corresponder una doble personalidad en mí:
una, la de Eva Perón, mujer del Presidente, cuyo trabajo es sencillo y agradable,
trabajo de los días de fiesta, de recibir honores, de funciones de gala; y otra, la de
Evita, mujer del Líder de un pueblo que ha depositado en él toda su fe, toda su
esperanza y todo su amor.
Unos pocos días al año, represento el papel de Eva Perón; y en ese papel creo que
me desempeño cada vez mejor, pues no me parece difícil ni desagradable.
La inmensa mayoría de los días soy en cambio Evita, puente tendido entre las
esperanzas del pueblo y las manos realizadoras de Perón, primera peronista
argentina, y éste sí que me resulta papel difícil, y en el que nunca estoy totalmente
contenta de mí.
De Eva Perón no interesa que hablemos.
Lo que ella hace aparece demasiado profusamente en los diarios y revistas de todas
partes.
En cambio, sí interesa que hablemos de ‘Evita’; y no porque sienta ninguna vanidad
en serlo sino porque quien comprenda a ‘Evita’ tal vez encuentre luego fácilmente
comprensible a sus “descamisados”, el pueblo mismo, […]. (LRMV, p. 88)35
32 Tradução nossa: “Eu escolhi ser ‘Evita’... para que por meu intermédio o povo e sobretudo os trabalhadores
encontrassem sempre livre o caminho de seu Líder”.
33 Tradução nossa: “distinta do modelo antigo”.
34 Tradução nossa: “esse tipo de teatro”.
35 Tradução nossa: “À dupla personalidade de Perón deveria corresponder uma dupla personalidade em mim:
uma, a de Eva Perón, mulher do Presidente, cujo trabalho é simples e agradável, trabalho dos dias de festa, de
receber honrarias, de funções de gala; e outra, a de Evita, mulher do Líder de um povo que depositou nele toda
sua fé, toda sua esperança e todo seu amor.
Uns poucos dias no ano represento o papel de Eva Perón; e esse papel creio que o desempenho cada vez melhor
pois não me parece difícil nem desagradável.
A imensa maioria dos dias, por outro lado, sou Evita, ponte estendida entre as esperanças do povo e as mãos
realizadoras de Perón, primeira peronista argentina, e este sim que me resulta papel difícil, e no qual nunca estou
totalmente contente comigo.
De Eva Perón não interessa que falemos.
O que ela faz aparece muito profusamente nos jornais e revistas de todo lugar.
Entretanto, interessa sim que falemos de ‘Evita’, e não porque sinta alguma vaidade em sê-lo e sim porque quem
compreender ‘Evita’ talvez ache logo facilmente compreensível seus ‘descamisados’, o povo mesmo, [...]”.
60
Afirma que quando escolheu ser Evita, elegeu o caminho do seu povo (LRMV, 1951,
p. 90). Percebe-se que ser Eva Perón era um fato natural, enquanto a outra faceta de sua
personalidade era uma escolha pessoal, entretanto sente-se mais natural sendo Evita, pois não
precisa adotar poses como quando é Eva, além de ter uma experiência possivelmente inédita
(LRMV, p. 93): “... como Eva Perón represento un viejo papel que otras mujeres en todos los
tempos han vivido ya; pero como Evita vivo una realidad que tal vez ninguna mujer haya
vivido en la historia de la humanidad”.36 Prefere ser chamada de Evita (LRMV, p. 91), no
entanto, nem todos podem chamá-la assim, apenas o povo peronista, os humildes
trabalhadores, mulheres e crianças: “Prefiero ser Evita a ser la mujer del Presidente de la
República, si ese “Evita” sirve para algo a los descamisados de mi Patria” (LRMV, p. 157).37
Ser Evita é realizar sua ambição: ser a mediadora entre Perón e o povo (LRMV, p. 95).
Coloca-se, portanto, como sua sombra e apresenta-se como leal aos trabalhadores que nela
confiam, pelos quais se mostra sectária ao colocar-se sempre ao seu lado (LRMV, p. 114, 119,
123).
Dispõe-se a se sacrificar em favor do povo: “... he de seguir luchando hasta dar la vida
si fuese necesario: porque una deuda de cariño como la que yo tengo con el pueblo no se
termina de pagar sino con la vida” (LRMV, p. 189).38 De fato, gastou-se no trabalho diário em
atendimento ao povo ao qual era grata pelo modo como agiu quando Perón estava preso, em
1945, indo às ruas para exigir sua libertação. Trabalhava até a madrugada, como já
mencionado, e diz que não é por propaganda que trabalha de modo desorganizado até dezoito
horas por dia; é porque os pedidos são urgentes: “El que sufre no puede esperar” (LRMV, p.
193).39
Cria a imagem de uma humilde mulher que tudo faz por amor aos descamisados40 do
seu povo e do mundo inteiro (LRMV, p. 240). Além da humildade, destaca o idealismo que
36 Tradução nossa: “... como Eva Perón represento um velho papel que outras mulheres em todos os tempos já
viveram; mas como Evita vivo uma realidade que talvez nenhuma mulher tenha vivido na história da
humanidade”.
37 Tradução nossa: “Prefiro ser Evita a ser a mulher do Presidente da República, se esse ‘Evita’ serve para algo
para os descamisados de minha Pátria.”
38 Tradução nossa: “... hei de seguir lutando até dar minha vida se necessário for: porque uma dívida de carinho
como a que eu tenho com o povo não se termina de pagar a não ser com a vida.”
39 Tradução nossa: “Aquele que sofre não pode esperar”.
40 O termo no singular refere-se a uma pessoa comum, pertencente à classe trabalhadora, que aderia ao partido
peronista (ACADEMIA ARGENTINA DE LETRAS, 2008, p. 302). O termo é derivado do léxico da Revolução
Francesa – sans culotes (sem calções) (PODERTI, 2010, p. 65). Era o modo como os opositores ao peronismo
61
aprendeu com Perón: “Más idealista que yo, infinitamente más que yo, es el mismo Perón”
(LRMV, p. 253).41
Apresenta-se como leitora. Leu com Perón Vidas Paralelas, de Plutarco, tendo ficado
com forte impressão sobre a biografia de Alexandre. Relata que leu muitas biografias célebres
e crê que Perón não se parece com nenhum gênio militar nem político da história (LRMV, p.
254), superando-os.
Importa recordar que, segundo Pozuelo Yvancos (2006, p. 24), a autobiografia contém
um discurso autentificador, através dele o narrador descreve sua vida como a verdade,
pretendendo que seu relato seja lido como a verdadeira imagem de si.
Além de construir a si mesma em seu relato, constrói a imagem de Perón. Chama o dia
em que o conheceu de seu “dia maravilhoso”, dizendo que, a partir dali, começou a viver sua
verdadeira vida (LRMV, p. 31). Descreve o marido como interessado nas questões do povo.
Ele é seu tema, sua inspiração (LRMV, p. 68). Com ele aprendeu tudo o que sabe sobre
atuação política e vida pública (LRMV, p. 69). Atribui a ele seu método de trabalho que
apenas imita (LRMV, p. 107). Apresenta-o como plenipotente, um atributo quase divino
(LRMV, p. 121), e embora ele tudo tenha em mãos, fará apenas o que for a vontade do povo
(LRMV, p. 142). Ele é o Primeiro Trabalhador Argentino (LRMV, p. 143), o condutor que
possui uma alma extraordinária (LRMV, p. 145).
Seus opositores também têm sua imagem construída através de um processo de
designação. Eva Perón chama-os de “homens comuns”: “Los hombres comunes son los
eternos enemigos de toda cosa nueva, de todo progreso, de toda idea extraordinaria y por lo
tanto de toda revolución” (LRMV, p. 36).42 Designa-os também como “almas estreitas”: “que
no conciben como cosas reales, ni la generosidad, ni el amor, ni la fe, ni siquiera la esperanza”
(LRMV, p. 153).43 Outros termos para referir-se aos críticos são: medíocres e eternos
incrédulos (LRMV, p. 251). Identifica o grupo político dos opositores como a oligarquia,
chamando-os de inimigos do povo e atribui a eles comportamento de cães (LRMV, p. 296).
referiam-se aos trabalhadores humildes, mas é ressignificado por Perón e Evita que o utilizam em seus discursos
de modo íntimo e carinhoso.
41 Tradução nossa: “Mais idealista que eu, infinitamente mais que eu, é o próprio Perón”.
42 Tradução nossa: “Os homens comuns são os eternos inimigos de toda coisa nova, de todo progresso, de toda
ideia extraordinária e por tanto de toda revolução”.
43 Tradução nossa: “que não concebem como coisas reais, nem a generosidade, nem o amor, nem a fé, nem
sequer a esperança”.
62
Sem possibilidade de conciliação, rejeita tudo o que vem da oligarquia, porque “¡Nada de la
oligarquia puede ser bueno!” (LRMV, p. 297).44
Os peronistas são designados por oposição aos não peronistas. Se estes são homens
comuns, aqueles são homens extraordinários; possuem a alma larga, pronta a aceitar as
transformações; são superiores, homens de fé; são o povo que confia em seu líder; formam,
segundo Perón, a maior beleza do país (LRMV, p. 168) Dentre os peronistas, estão os
trabalhadores humildes, os descamisados, cujo cuidado Perón recomendou a Evita (LRMV, p.
46).
Considerando que, na autobiografia, o narrador constrói uma imagem de si que
pretende verdadeira, pode-se afirmar que, da mesma forma, em seu discurso, ao elaborar a
construção dos outros seres que designa, tem por objetivo que esta seja tomada como a
realidade destes seres.
2.2 Relato autobiográfico da infância de Eva Perón: construção de si vinculada ao
projeto político peronista
Tendo em mente que as narrativas constituem os sujeitos e que isto se dá,
principalmente, na reelaboração de experiências passadas, como apontado por Arfurch (2013,
p. 76), a imagem de Evita constrói-se em seus relatos autobiográficos. Sua memória opera
como produtora de explicações para seu comportamento adulto, ou como fontes documentais
de sua existência histórica.
No peronismo, Evita cumpria um papel emblemático de luta contra as injustiças
sociais. Ao relatar sua infância, Evita assenta as origens de tal luta em si mesma. Não é difícil
imaginar que tenha sofrido privações quando criança. Entretanto, ao rememorá-las em adulta
e as relacionar a sua vida pública, realiza uma construção de si condizente com o projeto
político peronista. Constrói a imagem de alguém que tenta solucionar os problemas que
enfrentou, porque reconhece que são comuns à grande parcela da sociedade argentina,
aproximando-se, assim, dos pobres, dos trabalhadores humildes, daqueles que eram alvo de
sua ação política, como alguém que “veio de baixo” e que, devido a essa condição, é capaz de
compreendê-los e trabalhar para suprir suas necessidades.
O peso do testemunho pessoal, memorialístico, estabelece um efeito de realidade
(BARTHES, 1972, p.43): é o detalhe, a confissão íntima, o coração aberto revelando-se. Em
44 Tradução nossa: “Nada que vem da oligarquia pode ser bom”.
63
LRMV (1951), Eva Perón apresenta-se de forma clara, facilmente compreensível, visando
atingir grande parcela da sociedade. Como já mencionado, esse livro foi tornado leitura
obrigatória para estudantes, segundo a Lei Nacional 14.126 - Decreto 2915/1952.
No relato das memórias de Eva Perón, estão as origens de sua vocação artística e de
seu ódio pelas injustiças sociais. Afirma que sempre quis declamar, como se fosse dotada de
um pendor natural, e que na escola teve oportunidade de se iniciar na vida artística:
“Recordaba que, siendo una chiquilla, siempre deseaba declamar. Era como si quisiese decir
siempre algo a los demás, algo grande, que yo sentía en lo más hondo de mi corazón.”
(LRMV, p. 22).45 Com tal vocação, era esperado que saísse de sua localidade para a cidade
grande.
Eva configura um imaginário sobre a cidade a partir da visão da criança pobre do
interior. Aos sete anos de idade, visita Buenos Aires pela primeira vez e se desilude ao
verificar a existência da pobreza também lá, pois acreditava que, na cidade, só havia riqueza.
Compara a tristeza que sentiu ao constatar ali a pobreza com a que sentiu ao perder a ilusão
infantil sobre os Reis Magos:
Un día – habría cumplido ya los siete años – visité la ciudad por vez primera.
Llegando a ella descubrí que no era cuanto yo había imaginado. De entrada vi sus
barrios de “miseria”, y por sus calles y sus casas supe que en la ciudad también
había pobres y que había ricos. (LRMV, p. 24)46
Em seu relato, Eva Perón estabelece a relação entre passado e presente, o que
comprova o afirmado neste trabalho sobre a construção de suas origens:
Aquella comprobación debió dolerme hondamente porque cada vez que de regreso
de mis viajes al interior del país llego a la ciudad me acuerdo de aquel primer
encuentro con su grandeza y su miseria; y vuelvo a experimentar la sensación de
íntima tristeza que tuve entonces. (LRMV, p. 25)47
Observa-se que a memória é construída a partir do presente. Em LRMV, Evita narra
sua infância tendo em mente quem é e o papel que desempenha, como se vê nos seguintes
fragmentos:
45 Tradução nossa: “Recordava que, sendo menina, sempre desejava declamar. Era como se quisesse dizer
sempre algo aos demais, algo grande, que eu sentia no mais fundo do meu coração”.
46 Tradução nossa: “Um dia – tinha completado já os sete anos – visitei a cidade pela primeira vez. Chegando a
ela descobri que não era como eu tinha imaginado. De cara vi seus bairros miseráveis, e por suas ruas e suas
casas soube que na cidade também havia pobres e que havia ricos”.
47 Tradução nossa: “Aquela comprovação deve ter me doído profundamente porque cada vez que volto de
minhas viagens ao interior do país chego à cidade e me lembro daquele primeiro encontro com sua grandeza e
sua miséria; e volto a experimentar a sensação de íntima tristeza que tive então”.
64
He tenido que remontarme hacia atrás en el curso de mi vida para hallar la primera
razón de todo lo que ahora me está ocurriendo. (LRMV, p. 15)48
... tuve que ir a buscar, en mis primeros años, los primeros sentimientos que hacen
razonable, o por lo menos explicable… (LRMV, p. 16)49
He hallado en mi corazón un sentimiento fundamental que domina desde allí, en
forma total, mi espíritu y mi vida: ese sentimiento es mi indignación frente a la
injusticia. (LRMV, p. 16, grifo da autora)50
Ao mencionar sua vocação artística desde a infância, também a recupera a partir do
presente e a relaciona aos discursos que proferia às multidões: “¡Cuando ahora hablo a los
hombres y mujeres de mi pueblo siento que estoy expresando ‘aquello’ que intentaba decir
cuando declamaba en las fiestas de mi escuela!” (LRMV, p. 22).51 Sua experiência passada
contribuiu para seu bom desempenho ao dirigir-se às massas.
Para justificar o tratamento dispensado às crianças no peronismo, que as considerava
“as únicas privilegiadas” (LRMV, p. 205), Evita narra o modo como experimentou a pobreza
na infância, a carência e a percepção da divisão social e da má distribuição de renda. Afirma
que desde que se pode recordar sempre sentiu doer a injustiça e explica como isto a afetou:
“De cada edad guardo el recuerdo de alguna injusticia que me sublevó desgarrándome
intimamente.” (LRMV, p. 16).52
Relata que adquiriu na infância consciência da diferença de classes, da desigualdade
social e que sempre pensava nisso. De modo engenhoso, escapa da possibilidade de ser
desmentida ao afirmar que era frequente pensar nesse assunto, embora acredite que nunca o
havia comentado com outras pessoas, nem sequer sua mãe (LRMV, p. 17).
Preocupando-se em expressar algo com exatidão temporal, o que aumenta o efeito de
historicidade, ou seja, leva o leitor a receber o fato como se efetivamente houvesse
acontecido, sendo portanto real tal informação, menciona idade exata ao afirmar que, aos onze
anos de idade, aprendeu que a existência de pobres deve-se à existência de ricos (em que pese
48 Tradução nossa: “Tive que me reportar até atrás no curso da minha vida para encontrar a primeira razão de
tudo o que agora está me ocorrendo”.
49 Tradução nossa: “... tive que buscar, em meus primeiros anos, os primeiros sentimentos que fazem razoável ou
pelo menos explicável...”
50 Tradução nossa: “Achei em meu coração um sentimento fundamental que domina desde ali, em forma total,
meu espírito e minha vida: esse sentimento é minha indignação diante da injustiça”.
51 Tradução nossa: “Quando agora falo aos homens e mulheres de meu povo, sinto que estou expressando
‘aquilo’ que tentava dizer quando declamava nas festas de minha escola.”
52 Tradução nossa: “De cada idade guardo a recordação de alguma injustiça que me revoltou destroçando-me
intimamente”.
65
todo o simplismo e reducionismo que se possa apontar), quando ouviu tal afirmação da boca
de um adulto. Manifesta sua inclinação em acreditar mais na sinceridade, franqueza e bondade
dos pobres que na dos ricos (LRMV, p. 18), mas não aprofunda a questão.
Desnaturaliza a pobreza e a riqueza, apontando-se como diferente de grande parte da
população que geralmente as consideravam naturais, conformando-se. Ela seria, portanto,
desde a infância, uma indignada:
Ahora pienso que la gente se acostumbra a la injusticia social en los primeros años
de la vida. Hasta los pobres creen que la miseria que padecen es natural y lógica. Se
acostumbran a verla o a sufrirla como es posible acostumbrarse a un veneno
poderoso.
Yo no pude acostumbrarme al veneno y nunca, desde los once años, me pareció
natural y lógica la injusticia social. (LRMV, p. 19)53
É possível afirmar que um dos objetivos do peronismo, ao tornar LRMV leitura
obrigatória pelos estudantes, era a formação política do cidadão, forjando uma consciência de
classe trabalhadora, embora muito relacionada ao personalismo de Perón.
Eva Perón segue na afirmação de sua natureza indignada: “[...] ha nacido conmigo,
una particular disposición del espíritu que me hace sentir la injusticia de manera especial, con
una rara y dolorosa intensidad” (LRMV, p. 20)54 e assegura que essa característica de sua
personalidade é força motriz para suas ações. No entanto, revela-se surpresa ao mencionar que
nunca havia pensado que teria participação direta na luta por justiça social (LRMV, p. 21).
A ideia de um destino a cumprir permeia toda a autobiografia, mas há um capítulo
especialmente dedicado a esse tema, o capítulo X, “Vocación y Destino”.55 Já no parágrafo
inicial temos a afirmação de sua vocação, manifestando caráter personalista: “No, no fue el
azar la causa de todo esto que soy, en mi país y para mi Pueblo. Creo firmemente que he sido
forjada para el trabajo que realizo y la vida que llevo” (LRMV, p. 49).56
A afirmação de seu próprio destino manifesto explica porque se interessou por
políticas como a para a infância, por exemplo, que consistia em mobilizar crianças e
adolescentes, através de sucessivos eventos com grande visibilidade pública, nos quais havia
53 Tradução nossa: “Agora penso que as pessoas se acostumam à injustiça social nos primeiros anos da vida. Até
os pobres creem que a miséria que padecem é natural e lógica. Acostumam-se a vê-la ou a sofrê-la como é
possível acostumar-se a um veneno poderoso.
Eu não pude acostumar-me ao veneno e nunca, desde os onze anos, me pareceu natural e lógica a injustiça
social”.
54 Tradução nossa: “[...] nasceu comigo uma particular disposição do espírito que me faz sentir a injustiça de
maneira especial, com uma estranha e dolorosa intensidade”.
55 Tradução nossa: “Vocação e Destino”.
56 Tradução nossa: “Não, não foi o acaso a causa de tudo isto que sou, em minha vida e para meu povo. Creio
firmemente que fui forjada para o trabalho que realizo e a vida que levo”.
66
distribuição de brinquedos, bolsas de estudos, etc.; e de diversos dispositivos institucionais
que objetivavam reparar e recompor as desigualdades sociais que teriam afetado diversas
gerações para, assim, chegar a construir outro tipo de reprodução social e política
(PANELLA, 2011, p. 65). O objetivo era a formação integral do cidadão desde a infância.
Ganhando-se a criança, ganhavam-se as futuras gerações.
Dentre as várias atividades concernentes à política da infância, criaram-se locais como
a República das Crianças e o Mundo da Infância, projetos que tinham em comum o fato de
serem instituições educativas mais que lugares de diversão.
Colocou-se em prática uma pedagogia baseada no jogo como via de aprendizagem
(PANELLA, 2011, p. 77). Tudo voltado, exclusivamente, para atender às crianças pobres.
Segundo Bustelo (2007, p. 23), a família, a escola e os meios de comunicação são as
três instituições que deixam marcas no desenvolvimento da infância e da adolescência. O
peronismo percebeu isto e atuou com políticas públicas de acolhimento e formação infantil.
Quando a Fundação Eva Perón, criada em 1948, fazia doação a uma determinada
família, o impacto era sentido por todos os seus integrantes: colchões, máquinas de costura,
casas, etc., geravam gratidão e, em muitos, paixão por Evita.
Distribuir brinquedos, fazer com que as crianças brincassem, revela um aspecto de
vanguarda no tratamento da infância pelo peronismo, além da compreensão de que, ao jogar,
repetidas vezes, a criança encena a vida em sociedade, estabelecendo padrões possíveis de
comportamentos e hábitos futuros, como observou Benjamin (2002): “Pois é o jogo, e nada
mais, que dá luz a todo hábito”.
Com o ideal declarado de substituir a ideia de beneficência pela de “justiça social”, a
Fundação Eva Perón dedicou-se a dar assistência econômica e social aos mais pobres, às mães
solteiras e aos idosos, e configurou um novo ator social: a criança. As crianças passam a ser
“um verdadeiro exército reserva do peronismo, munidos de brinquedos que se converteriam
em silenciosos estímulos do projeto político nacional” (PASCUTTI, 2008, p. 22, tradução
nossa).57
A quantidade de brinquedos distribuídos foi inédita:
Até 1954, foram distribuídos em cada período de festas natalinas entre dois e três
milhões de brinquedos, segundo os registros da revista Juguetes, editada nessa
década pela pujante Câmara Argentina da Indústria do Brinquedo. “Uma cifra
enorme se se tem em conta que a população infantil era de quatro milhões e meio de
crianças”, aponta a licenciada em Ciencias da Educação Daniela Pelegrinelli, quem
57 No original: “un verdadero ejército reserva del peronismo, munidos de juguetes que se convertirían en callados
resortes del proyecto político nacional”.
67
investigou o laço que ligou nesses anos o Estado com a infância. (PASCUTTI, 2008,
p. 22, tradução nossa)58
Criou-se a ideia de que os brinquedos eram necessários ao bem-estar infantil e que era
um direito das crianças possuí-los. A questão infantil foi assim politizada. As crianças
tornam-se objeto de políticas públicas. Distribuir brinquedos era considerado obrigação do
Estado (PASCUTTI, 2088, p. 22).
Segundo Daniela Pelegrinelli, antes do peronismo, a maioria dos brinquedos na
Argentina eram importados. As crianças, praticamente, não possuíam brinquedos, porque
esses não eram considerados necessários, nem havia meios de comercializá-los. Para mudar
isso, são conjugados vários elementos: substituição das importações; incremento de fábricas
de brinquedos nacionais, e a divulgação de teorias pedagógicas e psicológicas que apontavam
a importância dos brinquedos. Como passam ao cotidiano, os brinquedos tornam-se desejados
e
foi sobre uma nova expectativa que se ancoraram as políticas de distribuição
massiva propicidadas pelo governo peronista, e também o que tornou tão reparadora
essa distribuição. A indústria do brinquedo consolidou-se graças a essa fonte de
recursos que se renovava a cada ano, e as crianças estabeleceram através do
brinquedo recebido um vínculo direto com o Estado. (PELEGRINELLI apud
PASCUTTI, 2008, p. 28, tradução nossa)59
As crianças são tomadas como sujeitos políticos e o brinquedo passa a ser um símbolo
da relação inédita entre Estado e infância. Conclui Pelegrinelli que, atualmente, as crianças
não são sujeitos de políticas públicas e sim de um mercado para o qual são apenas fontes de
recursos.
É interessante observar que embora em várias memórias autobiográficas da infância
grande importância seja dada ao espaço, como observou Pozuelo Yvancos (2006, p. 112), que
o chamou veículo configurador da memória autobiográfica infantil, no caso aqui analisado, o
que faz essa configuração da memória de Eva Perón parece ser a reafirmação constante de sua
vocação, seu destino manifesto, sua aptidão adquirida ou aprimorada pelo que sofreu na
infância e ao longo da vida, as características marcantes que manifestou em sua participação
58 No original: “Hasta 1954, se repartieron en cada período de fiestas navideñas entre dos y tres millones de
juguetes, según los registros de la revista Juguetes, editada en esa década por la pujante Cámara Argentina de la
Industria del Juguete. “Una cifra enorme si se tiene en cuenta que la población infantil era de cuatro millones y
medio de niños”, acota la licenciada en Ciencias de la Educación Daniela Pelegrinelli, quien investigó el lazo
que ligó en esos años al Estado con la infancia. (PASCUTTI, 2008, p. 22)
59 No original: “fue sobre una nueva expectativa que se anclaron las políticas de reparto masivo propiciadas por
el gobierno peronista, y también lo que tornó tan reparador ese reparto. La industria juguetelera se consolidó
gracias a esa fuente de recursos que se renovaba cada año, y los niños establecieron a través del juguete recibido
un vínculo directo con el Estado”.
68
política que, nela, teriam surgido ainda na infância. É a tentativa de assentar origens, de
explicar seu papel de destaque político.
Reafirma-se, neste trabalho, o relato memorialístico autobiográfico de Evita
relacionado ao seu envolvimento na vida pública argentina, o modo como sua narrativa
constrói sua imagem de “Benfeitora da Nação” e “Porta Voz dos Humildes”, assentando em
sua infância as bases de sua indignação contra as injustiças sociais tendo sido seu caráter
forjado por aquilo que sofreu.
2.3 Lar e família: alegorias da nação
Ao realizar a formação de si, de Perón e do povo peronista em seu texto
autobiográfico, Eva Perón elabora alegorias com as quais descreve a nação argentina: lar e
família. Resumidamente, a pátria deve ser administrada como um lar que abriga a família
formada pelo pai, Perón, a mãe, Evita, e os filhos, o povo.
Relata Eva Perón que, para levar adiante seu projeto de governo, era necessário a
Perón o apoio popular. No contato com o povo, percebeu que havia um trabalho modesto, mas
que precisava ser feito: o atendimento das necessidades urgentes dos trabalhadores. Ao
abordar esse assunto, introduz a ideia da família:
Entre las esperanzas de los descamisados había muchas pequeñas ilusiones que
depositaban en Perón como los hijos piden a sus padres.
En todas las familias los pedidos y las exigencias varían mucho: los mayores quieren
cosas de importancia, los menores piden juguetes. En la familia grande que es la
Patria también los pedidos que se presentan al Presidente, que es el padre común,
son infinitos. (LRMV, p. 83)60
Se a pátria é o lar, Perón é o pai e Evita, a mãe. O pai é “símbolo da geração, da posse,
da dominação, do valor... Ele é uma representação de toda forma de autoridade: chefe, patrão,
professor, protetor, deus” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2012, p. 678). Já a mãe, como
matriz de vida, simboliza “a segurança do abrigo, do calor, da ternura e da alimentação”
(ibdem, p. 580).
O lar, formador do povo, é cuidado pela mãe e nele serão formados os homens e
mulheres excepcionais dos quais a nova idade justicialista necessita (LRMV, p. 309). Eva
60 Tradução nossa: “Entre as esperanças dos descamisados havia muitas pequenas ilusões que depositavam em
Perón como os filhos pedem a seus pais.
Em todas as famílias os pedidos e as exigências variam muito: os mais velhos querem coisas importantes, os
mais novos pedem brinquedos. Na família grande que é a Pátria também os pedidos que se apresentam ao
Presidente, que é o pai comum, são infinitos”.
69
Perón declara: “¡Es que me siento verdadeiramente madre de mi pueblo!” (LRMV, p. 314).61
E, como mãe, apresentou-se para trabalhar junto ao povo, atendendo aos “pequeños pedidos”
(LRMV, 83)62 e, assim, tornou-se “Evita”, para ser a mediadora entre Perón e o povo, numa
relação que não terminará em divórcio:
Yo elegí ser “Evita”... para que por mi intermedio el pueblo y sobre todo los
trabajadores, encontrasen siempre libre el camino de su Líder.
La solución no pudo ser mejor ni más práctica.
Los problemas de gobierno llegan a Perón todos los días a través de sus ministros,
de los funcionarios o de los mismos interesados; pero cada uno de ellos no puede
disponer sino de escasos minutos de la jornada agotadora de un Presidente como
Perón.
En cambio los problemas del pueblo llegan al conductor todos los días, durante el
almuerzo o la cena, en las tardes apacibles de los sábados, en los domingos largos y
tranquilos y llegan por mi voz leal y franca en circunstancias propicias, cuando el
ánimo del General está libre de toda inquietud apremiante.
Así el pueblo puede estar seguro de que entre él y su gobierno no habrá divorcio
posible. Porque, en este caso argentino, para divorciarse de su pueblo, el Jefe de
Gobierno deberá empezar por divorciarse ¡de su propia mujer! (LRMV, p. 85)63
A narradora manifesta consciência de que seu papel de mediadora entre Perón e o
povo constitui o motivo pelo qual é rechaçada pela oligarquia (LRMV, p. 98). Relata que sua
obra “nació de un entendimiento mutuo e simultaneo entre mi corazón, el de Perón y el alma
grande de nuestro pueblo” (LRMV, p. 157).64
A situação do lar, ou seja, da Argentina antes de Perón é descrita como complicada
para os trabalhadores pobres. Havia poucos ricos e muitos pobres. O produto da lavoura,
como o trigo, era destinado aos privilegiados do exterior e não ao povo argentino (LRMV, p.
158). Assim sendo, no primeiro centenário, nas palavras de Eva Perón, o país apresenta
semeadura de pobreza e de miséria nos campos e nas cidades. A narradora diz que no
61 Tradução nossa: “É que me sinto verdadeiramente mãe de meu povo.”
62 Tradução nossa: “pequenos pedidos”.
63 Tradução nossa: “Eu escolhi ser ‘Evita’... para que por meu intermédio o povo e sobretudo os trabalhadores
encontrassem sempre livre o caminho de seu Líder.
A solução não pode ser melhor nem mais prática.
Os problemas de governo chegam a Perón todos os dias através de seus ministros, dos funcionários ou dos
próprios interessados; mas cada um deles não pode dispor senão de escassos minutos da jornada esgotadora de
um Presidente como Perón.
No entanto os problemas do povo chegam ao condutor todos os dias, durante o almoço ou o jantar, nas tardes
aprazíveis dos sábados, nos domingos compridos e tranquilos e chegam por minha voz leal e franca em
circunstâncias propícias, quando o ânimo do General está livre de toda inquietude premente.
Assim o povo pode estar certo de que entre ele e seu governo não haverá divórcio possível. Porque, neste caso
argentino, para se divorciar de seu povo, o Chefe de Governo deverá começar por se divorciar de sua própria
mulher!”
64 Tradução nossa: “nasceu de um entendimento mútuo e simultâneo entre meu coração, o de Perón e a alma
grande de nosso povo”.
70
momento em escreve (final de 1950), o quadro ainda não mudou totalmente, mas restava
pouco dele (LRMV, p. 159).
O justicialismo é apresentado na narrativa autobiográfica como solução para os
problemas da Argentina e, por extensão, de todos os países do mundo: “Cuando el mundo sea
justicialista reinará el amor... y reinará la paz” (LRMV, p. 251).65 Eva Perón tece críticas ao
socialismo e ao comunismo, sobretudo porque estes se fundamentam em ideias que lhe
parecem alheias ao povo argentino. Segundo ela, deveria haver uma solução caseira, isto é,
procedente dos próprios argentinos (LRMV, p. 27). Paradoxalmente, considera que o
justicialismo seria uma solução para o mundo inteiro, ou seja, rejeita a importação de ideias
políticas para o seu país, mas deseja exportar aos demais a doutrina política que professa.
Além da importação de ideias alheias, Eva Perón critica os dirigentes trabalhistas
socialistas, chamando-os de falsos dirigentes, trabalhadores aliados à oligarquia, opondo a
eles os de boa fé e verdadeiro espírito sindical (LRMV, p. 110).
Em sua proposição acerca do justicialismo, aproxima-o do cristianismo, afirmando que
assim como aos humildes e aos pobres foi anunciado o nascimento de Cristo, Perón se dedica
a lutar pela felicidade dos descamisados (LRMV, p. 217), sendo um imitador de Cristo
(LRMV, p. 255), e ela mesma, como Cristo, quer sacrificar-se em favor deles: “Si alguna vez
lo molesto a Dios con algún pedido mío es para eso: para que me ayude a dar la vida por mis
descamisados” (LRMV, p. 219).66
Através de suas obras de justiça social (lares para mães desempregadas, para crianças,
para idosos, etc.), pretende fazer ver “que era verdad luminosa el cristianismo humanista de la
doctrina de Perón” (LRMV, p. 227). Defende que as estruturas físicas sejam luxuosas, assim
como se arruma impecavelmente para receber os trabalhadores, porque considera que eles
merecem ser bem tratados e que poderia ela mesma vir a precisar usar o lar de idosos
futuramente (LRMV, p. 228).
De modo ufanista e milenarista, considera o justicialismo uma pré-condição para o
pleno estabelecimento do cristianismo:
Nadie más que Perón le muestra a la humanidad un nuevo camino, dándole una
nueva esperanza. La humanidad cree que todo le ha salido mal y que ya no hay
ninguna solución para sus males. Incluso cree que el mismo cristianismo ha
fracasado… Y Perón le dice francamente:
― No. Lo que ha fracasado no es el cristianismo. Son los hombres los que han
fallado aplicándole mal. El Cristianismo no ha sido todavía bien probado por los
65 Tradução nossa: “Quando o mundo for justicialista reinará o amor... e reinará a paz”.
66 Tradução nossa: “Se vez por outra incomodo a Deus com algum pedido meu é para isso: para que me ajude a
dar a vida por meus descamisados”.
71
hombres porque nunca el mundo fue justo… El Cristianismo será verdad cuando
reine el amor entre los hombres y entre los pueblos; pero el amor llegará solamente
cuando los hombres y los pueblos sean justicialistas. (LRMV, p. 257, 258)67
Para Eva Perón, a Argentina tem o futuro por vir, enquanto a Europa olha para o
passado (LRMV, p. 236). Por isso, manifesta desejo de sair pelo mundo pregando o
justicialismo (LRMV, p. 251). Como missionária, sente-se impelida por um ordenamento e
apregoa o fim dos privilégios oligarcas utilizando a expressão “neste século”, como se, de
fato, o governo de Perón fosse o governo de felicidade esperado no porvir do milênio cristão:
“Creo, como que hay sol, que la “vida social”, así como la sociedad aristocrática y burguesa
que la vive son dos cosas que se van... ¡Este siglo acabará con ellas!” (LRMV, p. 303).68
Relaciona intimamente sua vocação e missão a seu papel social como mulher.
Estabelece um modelo de mulher e tece críticas às oligarcas e às feministas. Segundo ela, as
mulheres da oligarquia são preocupadas apenas com vida social, salões e festas, e a obra
social que elas desenvolvem, chamada de beneficência, nada mais é que ostentação da
riqueza. Apresenta suas obras como de decadentes sociedades de damas de beneficência, as
quais as desenvolveram apenas para se reconciliarem com suas consciências (LRMV, p. 221).
Essas mulheres possuem vida vazia e fácil, são pertencentes a outra raça de mulheres (LRMV,
p. 303), cuja vida social não tem objetivos: “Llena de apariencias, de pequeñeces, de
mediocridades y de mentiras, todo consiste en representar un papel tonto y ridículo” (LRMV,
p. 304).69 Para Eva Perón, essa representação é diferente da teatral, pois no teatro representa-
se o que existiu ou pode existir; na vida social, as mulheres nada representam (LRMV, p.
304).
Opõe a essas mulheres as do povo, designadas como autênticas e cuidadoras do lar.
Segundo Eva Perón, a mulher autêntica refugia-se silenciosa nos lares do povo e cria o povo.
Essa mulher não foi aclamada por intelectuais ou poetas nos salões sociais (LRMV, p. 307). A
importância do lar está na formação dos novos homens e mulheres: “No será tanto en las
67 Tradução nossa: “Ninguém mais que Perón mostra à humanidade um novo caminho, dando-lhe uma nova
esperança. A humanidade crê que tudo saiu muito mal e que já não há nenhuma solução para seus males.
Inclusive crê que o próprio cristianismo fracassou... E Perón lhe diz francamente:
― Não. O que fracassou não foi o cristianismo. Foram os homens os que falharam aplicando-o mal. O
Cristianismo não foi ainda bem provado pelos homens porque o mundo nunca foi justo... O Cristianismo será
verdade quando reinar o amor entre os homens e entre os povos, mas o amor chegará somente quando os homens
e os povos forem justicialistas”.
68 Tradução nossa: “Creio, como que existe sol, que a ‘vida social’, assim como a sociedade aristocrática e
burguesa que a vive são duas coisas que se vão... Este século acabará com elas”.
69 Tradução nossa: “Cheia de aparências, de minúcias, de mediocridades e de mentiras, tudo consiste em
representar um papel tolo e ridículo”.
72
escuelas sino en los hogares donde se ha de formar la nueva humanidade que quiere el
Justicialismo de Perón” (LRMV, p. 308).70
Sente-se a humilde representante de todas as mulheres do povo. Como elas, está à
frente de um lar – a pátria:
El gran hogar venturoso de esa Patria mía que conduce Perón hacia sus más altos
destinos.
¡Gracias a él, el “hogar” que al principio, fue pobre y desmantelado, es ahora justo
libre y soberano!
¡Todo lo hizo él!
Sus manos maravillosas convirtieron cada esperanza de nuestro pueblo en un millar
de realidades.
Ahora vivimos felices, con esa felicidad de los hogares, salpicada de trabajos y aun
de amarguras… que son algo así como el marco de la felicidad.
En este gran hogar de la Patria yo soy lo que una mujer en cualquiera de los infinitos
hogares de mi pueblo. (LRMV, p. 311)71
Na valorização do lar como alegoria da pátria, Eva Perón faz críticas às mulheres que
não se dedicam a ele, sobretudo as feministas, sobre as quais apresenta vários lugares comuns.
Seriam elas: mulheres ressentidas com a mulher e o homem, solteiras entradas em anos e feias
(LRMV, p. 265). Declara que não queria ser como elas (LRMV, p. 266):
Sentía que el movimiento femenista en mi país y en todo el mundo tenía que cumplir
una misión sublime… y todo cuanto yo conocía del feminismo me parecía ridículo.
Es que, no conducido por mujeres sino por “eso” que aspirando a ser hombre, dejada
de ser mujer ¡y no era nada!, el feminismo había dado el paso que va de lo sublime a
lo ridículo.72
No entanto, funda o movimento feminista peronista, sendo sua primeira ação a luta
pelos direitos políticos da mulher: dar à mulher o direito de votar (LRMV, p. 269). Para Eva
Perón, o principal era votar para conquistar direitos, o grande direito de ser simplesmente
mulheres e poder cumprir sua missão na humanidade; em sua narrativa, revela que se
interessa mais pela mulher que pelos seus direitos políticos (LRMV, p. 271). Eva Perón
afirma que se a mulher trabalha substituindo o homem, não é feminismo, é masculinização do
70 Tradução nossa: “Não será tanto as escolas senão nos lares onde se formará a nova humanidade que quer o
Justicialismo de Perón.”
71 Tradução nossa: “O grande lar venturoso dessa Pátria minha que conduz Perón até seus mais altos destinos.
Graças a ele, o ‘lar’ que, ao princípio, foi pobre e desmantelado, é agora mesmo livre e soberano!
Tudo ele fez!
Suas mãos maravilhosas converteram cada esperança de nosso povo num milhar de realidades.
Agora vivemos felizes, com essa felicidade dos lares, salpicada de trabalhos e ainda de amarguras... que são algo
assim como o marco da felicidade.
Neste grande lar da Pátria eu sou o que é uma mulher em qualquer dos infinitos lares de meu povo”.
72 Tradução nossa: “Sentia que o movimento feminista em meu país e em todo o mundo tinha que cumprir uma
missão sublime... e tudo quanto eu conhecia do feminismo me parecia ridículo. É que, não conduzido por
mulheres senão por ‘isso’ que aspirando a ser homem, deixava de ser mulher (e não era nada!), o feminismo
havia dado o passo que vai do sublime ao ridículo”.
73
sexo feminino, visto que a missão da mulher é formar um lar (LRMV, p. 273). Segundo ela, o
primeiro objetivo de um movimento feminino deve ser o lar: “Nacimos para construir
hogares” (LRMV, p. 276),73 no entanto reconhece a falta de direitos das donas de casa e
defende que haja uma remuneração para que essas mulheres sejam economicamente
independentes. Para isso também seria necessário elevar a cultura das mulheres para que ela
não caísse na delinquência ou na prostituição, que são frutos da escravidão econômica da
mulher (LRMV, p. 281). Seu propósito é dar ao lar um prestígio que este nunca conheceu,
afirma, declarando o milenarismo justicialista uma vez mais, ao dizer que de nada valeria um
movimento feminino num mundo sem justiça social, por isso o justicialismo deve estar em
todo o mundo (LRMV, p. 282).
Em sua visão de mundo, as organizações não funcionam bem porque não contam com
a presença criadora da mulher: “Tal vez por no habernos invitado a sus grandes
organizaciones sociales el hombre ha fracasado y no ha podido hacer feliz a la humanidad”
(LRMV, p. 284).74 Defende um mundo idealizado no qual as mulheres, tendo suas
necessidades e as de suas famílias providas, pudessem dedicar-se inteiramente ao lar, e que
fossem felizes como ela o é em sua vida doméstica com seu marido (LRMV, p. 314).
2.4 Efeito de historicidade em LRMV
Analisando o texto autobiográfico LRMV, passo a observações sobre os procedimentos
criadores do efeito de historicidade, o que determina, em seu modo de narrar, que essa obra
seja lida como não ficção, e os eventos que contém assumidos como realidade. São eles: a
autoria e o pacto autobiográfico; a criação do enredo (intimidade e sentido à vida); detalhes,
referências a personagens e instituições reais; menção de datas históricas; citação de
documentos, conceitualização e fotografias.
O nome próprio compartilhado entre autor, narrador e personagem central caracteriza
a autobiografia e confere ao texto autobiográfico uma aura de real, visto que o relato é tomado
como testemunho veraz. Sendo o autor figura pública, como Eva Perón, sua narrativa pode ser
cotejada com outras biografias e com a historiografia, ainda que nem sempre o leitor proceda
a tal verificação. Dá-se então que se configura um imaginário a respeito da veracidade do que
73 Tradução nossa: “Nascemos para construir lares”.
74 Tradução nossa: “Talvez por não nos terem convidado para suas grandes organizações sociais o homem
fracassou e não pode fazer feliz a humanidade”.
74
é relatado, pois haveria a possibilidade de verificação, logo os eventos são tomados como se
fossem reais, porque quem relata é quem viveu a vida.
O pacto aubiográfico já mencionado neste trabalho contribui para o efeito de
historicidade. O leitor suspende a descrença e aceita o contrato de leitura em que a autora e
narradora, Eva Perón, declara relatar o que realmente aconteceu de modo fidedigno.
Em seu relato, Eva Perón cria um enredo para narrar sua história, buscando dar um
sentido a sua própria vida. Nisto, a narradora autobiógrafa aproxima-se do historiador, que dá
sentido à história, estabelecendo relações de causalidade entre eventos, bem como aponta
mudanças e permanências na evolução dos fatos narrados. O enredo criado por Eva Perón
caracteriza-se pelo tom intimista com que apresenta os fatos. Aproxima o leitor de suas
considerações, como se o convidasse a participar de uma conversa e também a visitar suas
obras (LRMV, p. 247).
Chama o leitor à reflexão, apresentando justificativa para que seu texto não seja
recebido como propaganda política, apoiando-se em testemunho de outro (Perón) e buscando
identificação com os problemas comuns a todos:
Si este libro estuviera dirigido a hacer propaganda tal vez no debiera haber escrito
estas páginas un poco triste.
Pero nosotros ― dice siempre Perón ― venceremos con la verdad.
No diremos nunca, que vivimos sin problemas ni preocupaciones. Eso sería mentira
y nadie nos creería.
[…]
Este capítulo tal vez desentone en la mitad de estos apuntes destinados a explicar mi
misión.
Pero quienes quieran conocer bien todo el cuadro que es la vida mía, no sólo
deberán ver las luces… También será útil que conozcan los dolores. (LRMV, p.
236).75
O último capítulo tem o sugestivo título de “No me arrepiento”.76 Nele, o tom
intimista, de conversa com o leitor, que aproxima o leitor da narrativa e produz efeito de
historicidade, é manifesto:
Creo que ya he escrito demasiado.
Yo solamente quería explicarme y pienso que tal vez no lo haya conseguido sino a
medias.
75 Tradução nossa: “Se este livro estivesse dirigido a fazer propaganda talvez não devesse ter escrito estas
páginas um pouco triste.
Mas nós ― diz sempre Perón ― venceremos com a verdade.
Não diremos nunca que vivemos sem problemas nem preocupações. Isso seria mentira e ninguém acreditaria em
nós.
[...]
Este capítulo talvez desentone na metade destas notas destinadas a explicar minha missão.
Mas quem quiser conhecer bem todo o quadro que é a minha vida, não só deverá ver as luzes... Também será útil
que conheça as dores.”
76 Tradução nossa: “Não me arrependo”.
75
Pero seguir escribiendo sería inútil. Quien no me haya comprendido hasta aquí,
quien no me haya “sentido”, no me sentirá ya aun cuando siguiera estos apuntes por
mil páginas más.
Aquí veo ahora a mi lado verdaderas pilas de papel fatigado por mi letra grande… y
creo que ha llegado el momento de terminar.
[…]
No me arrepiento por ninguna de las palabras que he escrito. ¡Tendrían que borrarse
primero en el alma de mi pueblo que me las oyó tantas veces y que por eso me
brindó su cariño inigualable!
¡Un cariño que vale más que mi vida! (LRMV, p. 316, 317).77
A inserção de detalhes constitui outra forma pela qual o efeito de historicidade é
criado. Em várias partes de seu texto autobiográfico, Eva Perón detalha seu trabalho e sua
atuação junto às crianças, às mulheres e aos trabalhadores descamisados como, por exemplo,
ao explicar onde e como realiza seu trabalho de ajuda social:
Fuí a la Secretaría de Trabajo y Previsión porque en ella podía encontrarme más
fácilmente con el pueblo y con sus problemas; porque el Ministro de Trabajo y
Previsión es un obrero, y con él “Evita” se entiende francamente y sin rodeos
burocráticos; y porque además allí se me brindaron los elementos necesarios para
iniciar mi trabajo.
Allí recebo a los obreros, a los humildes, a quienes me necesitan por cualquier
problema personal o colectivo.
Los funcionarios de la casa colaboran conmigo en la solución de los problemas
gremiales, reuniendo todos los antecedentes, examinándolos en sí mismo y en sus
repercusiones económicas y sociales. (LRMV, p. 104)78
O detalhe tem o papel de rechear a narrativa, fazendo com que o imaginário acerca da
realidade dos eventos narrados se estabeleça. A informação numérica, embora não tão precisa,
a respeito da organização dos trabalhadores também constitui exemplo de detalhamento: “Más
de 4 millones de obreros agrupa solamente la Confederación General del Trabajo, que es la
77 Tradução nossa: “Creio que já escrevi demais.
Eu somente queria me explicar e penso que talvez não tenha conseguido senão pela metade.
Mas continuar escrevendo seria inútil. Quem não tiver me compreendido até aqui, quem não tiver me ‘sentido’,
não me sentirá mesmo que continuasse essas notas por mil páginas mais.
Aqui vejo agora ao meu lado, verdadeiras pilhas de papel cansado por minha letra grande... e creio que chegou o
momento de terminar.
[...]
Não me arrependo por nenhuma das palavras que escrevi. Teriam que se apagar primeiro na alma do meu povo
que as ouviu de mim tantas vezes e que por isso me ofereceu seu carinho inigualável!
Um carinho que vale mais que minha vida!”
78 Tradução nossa: “Fui para a Secretaria de Trabalho e Previsão porque nela podia me encontrar mais facilmente
com o povo e com seus problemas; porque o Ministo do Trabalho e Previsão é um trabalhador, e com ele ‘Evita’
se entende francamente e sem rodeios burocráticos; e porque ademais ali me foram oferecidos os elementos
necessários para iniciar meu trabalho.
Ali recebo aos trabalhadores, aos humildes, a quem me necessita por qualquer problema pessoal ou coletivo.
Os funcionários da casa colaboram comigo na solução dos problemas gremiais, reunindo todos os antecedentes,
examinando-os em si mesmo e em suas repercussões econômicas e sociais”.
76
Central Obrera, y todos unidos se han definido en favor de la Doctrina Justicialista de Perón”
(LRMV, p. 118).79
Em sua autobiografia, Eva Perón trata especificamente de seu trabalho, que considera
sua missão, portanto não trata de outras pessoas que não sejam as crianças, as mulheres e os
trabalhadores, designando-os coletivamente, sem citar nominalmente ninguém a não ser seu
marido, o presidente Perón. Isto parece indicar a importância central que Eva lhe dedica em
seu relato como em sua vida e missão, reforçando seu papel de mediadora entre Perón e o
povo. Como visto anteriormente neste trabalho, a narradora constrói a si mesma e a Perón em
seu relato. Várias vezes cita suas palavras, ou menciona algo que teria aprendido com ele: “De
Perón aprendí a tratar con los hombres” (LRMV, p. 71);80 “Del mismo Perón que siempre
suele decir: “el amor es lo único que construye”, he aprendido lo que es una obra de amor y
cómo debe cumplirse” (LRMV, p. 99).81
Algumas vezes, chega a questionar se exagera em tanto mencioná-lo: “Puedo seguir
hablando de Perón? Aunque alguien diga ― ¡y vaya si se ha dicho! ― que eso no es elegante
ni es inteligente, tengo que seguir haciendo el elogio de mi Líder” (LRMV, p. 67).82 Por
diversas vezes, menciona o golpe sofrido por Perón, em 1945, quando era vice presidente, sua
prisão e o modo como o povo protestou exigindo sua libertação: “Desde que Perón se fué
hasta que el pueblo lo reconquistó para él ― ¡y para mí! ― mis días fueron jornadas de dolor
y de fiebre” (LRMV, p. 42).83
Em sua narrativa, Eva Perón dedica a Perón todo o trabalho, todo esforço, toda ação,
alimentando o personalismo peronista: “Yo creo que Perón y su causa son suficientemente
grandes y dignos como para recibir el ofrecimiento total del movimiento feminista de mi
Patria” (LRMV, p. 62).84 Para Eva, a palavra de Perón, por si só, é suficiente para definir algo
79 Tradução nossa: “Mais de 4 milhões de obreiros agrupa somente a Confederação Geral do Trabalho, que é a
Central Obreira, e todos unidos se definiram em favor da Doutrina Justicialista de Perón”.
80 Tradução nossa: “Com Perón aprendi a tratar com os homens.”
81 Tradução nossa: “Do mesmo Perón que sempre costuma dizer: ‘o amor é o único que constrói”, aprendi o que
é uma obra de amor e como deve se completar.”
82 Tradução nossa: “Posso continuar falando de Perón? Mesmo que alguém fale ― e como falaram! ― que isso
não é elegante nem é inteligente, tenho que continuar fazendo o elogio de meu Líder.”
83 Tradução nossa: “Desde que Perón se foi até que o povo o reconquistou para ele ― e para mim! ― meus dias
foram jornadas de dor e de febre.”
84 Tradução nossa: “Eu creio que Perón e sua causa são suficientemente grandes e dignos para receber o
oferecimento total do movimento feminista de minha Pátria”.
77
como verdade: “El General Perón ha dicho que no sería posible el Justicialismo sin
sindicalismo. Y esto es verdad, primero, porque lo ha dicho el General Perón y segundo,
porque efectivamente es verdad” (LRMV, p. 118).85
Possibilita a criação do efeito de historicidade a referência a instituições reais. No
relato autobiográfico, são mencionados a Secretaria de Trabalho e Previsão convertida por
Perón em Ministério de Trabalho e Previsão; o Partido Peronista Feminino; a Casa de
Governo; o Lar da Empregada. Além destas instituições, é mencionado no texto um local: a
Praça de Maio, palco das manifestações peronistas, do encontro do povo para reivindicar
direitos ou para comemorar datas históricas.
As datas históricas mencionadas também conferem efeito de historicidade à narrativa.
Eva Perón cita as duas grandes datas peronistas: o 17 de outubro, Dia da Lealdade, e o 27 de
novembro, dia da Secretaria de Trabalho e Previsão (LRMV, p.141, 144). Além destas datas,
são citados o Natal e o Dia dos Reis e também outubro de 1945, quando Perón esteve preso:
Pero las fuerzas conjuradas de la oligarquia y de los poderes internacionales
pudieron en un momento más que el pueblo y que mi voluntad.
Fue en octubre de 1945.
Esa es una historia conocida. (LRMV, p. 56)86
A frase “essa é uma história conhecida” envolve o leitor na narrativa, ativando sua
memoria e reafirmando o pacto autobiográfico, o relato comprometido em dizer a verdade
sobre os acontecimentos.
A autobiografia traz um capítulo inteiro dedicado às cartas que Evita recebe do povo
trabalhador. Essa menção a um conjunto de documentos passíveis de verificação contribui
para a criação do efeito de historicidade. Como exemplo, tem-se o comentário de Eva Perón
acerca das cartas infantis e a citação de uma delas, embora não haja identificação do
remetente:
Las cartas de los niños tienen siempre un especial privilegio.
¡Me gusta leerlas cuando quiero descansar un poco, o tal vez reconfortarme de
alguna desilusión en los otros aspectos de mi lucha!
Son tan puros y tan ingenuos.
Como cuando por ejemplo una descamisadita de ocho años me escribe diciéndome
textualmente:
“Querida Evita: yo quiero para los Reyes cualquier cosa con tal de tener un recuerdo
suyo, pero no tengo ninguna bicicleta”.
85 Tradução nossa: “O General Perón disse que não seria possível o Justicialismo sem sindicalismo. E isto é
verdade, primeiro, porque foi dito pelo General Perón e segundo, porque efetivamente é verdade”.
86 Tradução nossa: “Mas as forças conjuradas da oligarquia e dos poderes internacionais puderam, num
momento, mais que o povo e que minha vontade.
Foi em outubro de 1945.
Essa é uma história conhecida.”
78
Toda la carta es eso; pero, ¿quién se niega a mandarle un “recuerdo”? (LRMV, p.
174).87
Finalizando a análise sobre os elementos que possibilitam a criação do efeito de
historicidade, temos a conceitualização presente na narrativa. Eva Perón define termos
relacionados ao peronismo confirmando o aspecto formativo e didático da obra, que não
apenas contém formação de si e de Perón, mas também do povo peronista. Os conceitos aqui
observados são: Revolução, descamisado e justiça social.
O ano de 1943 é definido como o primeiro ano da Revolução (LRMV, p. 141), quando
Perón converteu o “velho e inútil” Departamento Nacional do Trabalho na Secretaria de
Trabalho e Previsão. Segundo Eva Perón, nesse dia começou a revolução, um dia de triunfo
para Perón, e para os trabalhadores “el primer día de sol después de una larga noche de
zozobras y de explotación oligárquica” (LRMV, p. 141).88
O conceito de descamisado também é forjado na narrativa autobiográfica: é o povo
trabalhador que luta por Perón, que exigiu sua libertação em 1945, não necessariamente um
despossuído em termos materiais, mas todos os que sofreram por Perón são autênticos
descamisados:
Para mí por eso descamisado es el que se siente pueblo. Lo importante es eso; que se
sienta pueblo y ame y sufra y goce como pueblo, aunque no vista como pueblo, que
esto es lo acidental. Un oligarca venido a menos podrá ser materialmente
descamisado pero no será un descamisado auténtico. (LRMV, p. 117, grifo da
autora)89
Eva Perón (1951, p. 117) declara que nem todo descamisado é trabalhador, mas todo
trabalhador é descamisado e deve a eles a vida de Perón.
Na esteira da definição de descamisado, Eva Perón conceitua trabalhadores. Segundo
ela, estes, em primeiro lugar, são descamisados; em segundo, são parte integrante do povo a
87 Tradução nossa: “As cartas das crianças têm sempre um especial privilégio.
Gosto de lê-las quando quero descansar um pouco, ou talvez me reconfortar de algum desapontamento nos
outros aspectos de minha luta!
São tão puras e ingênuas.
Como quando, por exemplo, uma descamisadinha de oito anos me escreve dizendo-me textualmente:
‘Querida Evita, eu quero para os Reis qualquer coisa sua para guardar de lembrança, mas não tenho nenhuma
bicicleta’.
Toda a carta é isso; mas quem se nega a lhe enviar uma ‘lembrança’?”
88 Tradução nossa: “o primeiro dia de sol depois de uma longa noite de soçobras e de exploração oligárquica.”
89 Tradução nossa: “Para mim, por isso, descamisado é o que se sente povo. O importante é isso; que se sinta
povo e ame e sofra e goze como povo, mesmo que não vista como povo, que isso é o acidental. Um oligarca
falido poderá ser materialmente descamisado, mas não será um descamisado autêntico’.
79
cuja causa ela se dedica e, em terceiro, são o sustentáculo da Revolução, portanto “El
movimiento peronista no podría definirse sin ellos” (LRMV, p. 118).90
Conceitua também o elemento principal da doutrina justicialista, a ideia de justiça
social, que teria aprendido com Perón, definindo-a a partir do que não é, para destacar o modo
como foi vista até então a obra que realiza em seu país que, com Perón e o justicialismo,
começa uma nova era:
No es filantropia, ni es caridade, ni es limosna, ni es solidaridad social, ni es
beneficencia. Ni siquiera es ayuda social, aunque por darle un nombre aproximado
yo le he puesto eso.
Para mí, es estrictamente justicia. (LRMV, p. 182)91
A ideia de justiça social traz a noção de que tudo pertence ao povo e o que se dá a eles
é plenamente devido: “Yo no hago outra cosa que devolver a los pobres lo que todos los
demás les debemos, porque se lo habíamos quitado injustamente” (PERÓN, 19951, p. 188).92
Por fim, as fotografias presentes na narrativa contribuem para o efeito de historicidade.
Há um conjunto de vinte e três fotografias ao longo do livro. A maioria possui legenda
explicativa, apenas não as possuem aquelas que são utilizadas para ilustrar as partes nas quais
a obra é dividida: primeira parte, Las causas de mi misión; segunda, Los obreros y mi misión,
e, por fim, a terceira, Las mujeres y mi misión.93 As fotografias são em preto e branco, exceto
as de Evita e Perón, logo na abertura do livro.
As fotografias são um elemento importante na criação do imaginário acerca da
realidade. Segundo Susan Sontag (1977, p, 13),
Ao nos ensinar um novo código visual, as fotos modificam e ampliam nossas ideias
sobre o que vale a pena olhar e sobre o que temos o direito de observar. Constituem
uma gramática e, mais importante ainda, uma ética do ver. Por fim, o resultado mais
extraordinário da atividade fotográfica é nos dar a sensação de que podemos reter o
mundo inteiro em nossa cabeça – como uma antologia de imagens.
Verifica-se, portanto, o direcionamento que a apresentação da fotografia faz no relato
ao que o narrador objetiva focalizar, isto porque as fotos são “experiência capturada”
(SONTAG, 1977, p. 14).
90 Tradução nossa: “O movimento peronista não poderia se definir sem eles”.
91 Tradução nossa: “Não é filantropia, nem é caridade, nem é esmola, nem é solidariedade social, nem é
beneficência. Nem sequer é ajuda social, embora para lhe dar um nome aproximado eu tenha lhe posto isso. Para
mim, é estritamente justiça.”
92 Tradução nossa: “Eu não faço outra coisa que devolver aos pobres o que todos os demais lhes devemos,
porque tínhamos tirado deles injustamente”.
93 Tradução nossa: “As causas de minha missão”; “Os trabalhadores e minha missão”; “As mulheres e minha
missão”.
80
O efeito de historicidade se estabelece na observação das fotografias que compõem o
texto autobiográfico autenticando-o, como uma prova:
Fotos fornecem um testemunho. Algo de que ouvimos falar mas de que duvidamos
parece comprovado quando nos mostram uma foto.
Uma foto equivale a uma prova incontestável de que determinada coisa aconteceu. A
foto pode distorcer; mas sempre existe o pressuposto de que algo existe, ou existiu, e
era semelhante ao que está na imagem (SONTAG, 1977, p, 16).
Essa autoridade conferida pela fotografia está assentada na presunção de veracidade,
no entanto as fotografias também são interpretação da realidade, embora nem sempre sejam
tomadas dessa forma por quem as vê: “Embora em certo sentido a câmera de fato capture a
realidade, e não apenas a interprete, as fotos são uma interpretação do mundo tanto quanto as
pinturas e os desenhos” (SONTAG, 1977, p. 17).
As fotografias cumprem um papel importante no estabelecimento de posições morais:
“Fotos não podem criar uma posição moral, mas podem reforçá-la e podem ajudar a
desenvolver uma posição moral embrionária” (SONTAG, 1977, p. 28). Dessa forma, ao
apresentar na autobiografia fotografias de multidões de trabalhadores aclamando Perón numa
das datas comemorativas do peronismo, a ideia que se tem é a de comprovação da narrativa.
Mostrar fotos torna visível e real um determinado acontecimento: “Um evento conhecido por
meio de fotos certamente se torna mais real do que seria se a pessoa jamais tivesse visto as
fotos” (ibidem, 1977, p. 30).
Busquei analisar, neste tópico, os elementos que criam o efeito de historicidade na
narrativa autobiográfica LRMV, possibilitando ao leitor tomar como realidade todo o relato:
autoria e pacto autobiográfico; criação do enredo; detalhes, referências a personagens e
instituições; menção de datas históricas; citação de documentos; conceitualização e
fotografias. A seguir, analiso a representação hagiográfica de Eva Perón em SE.
81
3. REPRESENTAÇÃO HAGIOGRÁFICA DE EVA PERÓN
Como já mencionado nesta pesquisa, sendo relato da vida de santo, a hagiografia
destina-se à fixação da memória dos heróis da fé, apresentando testemunhos diretos sobre o
martírio do santo e sua posterior veneração. É um texto literário construído segundo padrões
narrativos para tornar conhecido um personagem e difundir seu culto (GAJANO, 2006, p,
455). Por tratar do maravilhoso, a hagiografia não se insere no pacto de veracidade
pressuposto pela escrita da história.
As características do texto hagiográfico, segundo Baños Vallejo (1989) são as ações
realizadas em vida, a morte como processo de aperfeiçoamento e os milagres post-mortem.
Além disso, Certeau (2000, p. 273) identifica na hagiografia genealogias, esquemas
escatológicos (inversão da ordem), circularidade, ambiguidade, a história como epifania
(como se manifestou a vocação), relato dramático, alternância entre um tempo de provações
(combates solitários) e um tempo de glorificações.
Na narrativa de extração histórica SE, os elementos do gênero hagiográfico
encontram-se presentes. Embora a hagiografia seja uma fórmula literária oficializada pela
Igreja Católica como “escrita de memória que responde às necessidades de institucionalização
do culto aos santos ao longo da história do catolicismo” (SANTOS; DUARTE, 2010, p. 2),
cabe ressaltar que a hagiografia em SE não se relaciona ao catolicismo. Nisto há transgressão
dos cânones oficiais: Evita é representada como santa, mas santa popular. Não é santa
católica, não é reconhecida santa pela Igreja, mas pelo seu povo, os descamisados da
Argentina, os Montoneros94 e os que nela acreditam, como o próprio narrador de SE, que se
diz curado de forte depressão após narrar sua história.
Dentre os vários temas evocados no repertório da hagiografia, Certeau (2000, p. 275)
destaca o corpo e o bestiário, ambos conectados ao poder divino e à santidade, além do relato
da metamorfose operada no santo a partir de uma viagem. Tais temas são verificados em SE.
O corpo embalsamado, insepulto, sequestrado, ocultado, incorruptível, que retorna à
Argentina dezesseis anos após seu sequestro, é símbolo do mito de Evita no romance. O
bestiário também se faz presente. Há um constante zumbido de abelhas que atormenta o
Coronel Moori Koenig, um dos personagens históricos ficcionalizados, responsável pela
operação de sequestro e ocultação do cadáver de Evita, que enlouquece ao longo deste
processo. O tema da viagem transformadora também é explorado: a viagem que Evita faz à
94 Grupo guerrilheiro surgido nos anos 1970, na Argentina, cujo objetivo estratégico era construir um movimento
peronista armado para tomar o poder e desenvolver o socialismo nacional (PODERTI, 2010, p. 141).
82
Europa, representando Perón, e de lá retorna, segundo a narrativa de extração histórica, mais
convicta de seu papel no peronismo.
No presente capítulo, analiso a representação hagiográfica de Eva Perón no romance
SE discutindo suas origens, seus nomes, o maravilhoso e a alegoria da história, a autoficção e
o efeito de historicidade.95
3.1 Origens: infância de Eva Perón
Em SE, vários gêneros são mesclados para compor a narrativa do mito de Evita. São
esmiuçados eventos e circunstâncias de sua biografia, com especial destaque para o sequestro
e a ocultação de seu cadáver embalsamado, discutindo-se, metaficcionalmente, a elaboração
do romance e do próprio mito de Evita.
Dentre os eventos biográficos narrados, estão aqueles relacionados à infância de Eva
Perón: suas origens, vida em família, dificuldades pelas quais passou e como as venceu. Tais
eventos são reconstituídos, principalmente, como memórias de sua mãe, Juana Ibarguren.
Sobre as origens de Eva Perón, o narrador em SE, homônimo do autor, Tomás Eloy
Martínez, destaca que veio de “baixo”, era pobre, filha natural, atriz medíocre que, ao
começar a trabalhar, era uma “joven de facciones tristonas y busto escuálido” (SE, p. 82).96
No entanto, se transformou rapidamente após conhecer Perón, e tempos depois “tenía la
mirada llena de cicatrices y hablaba con voz imperativa” (SE, p. 84).97 Sua origem foi
determinante em sua trajetória e atuação. Pensava em solucionar os problemas mais
elementares da classe baixa (trabalho, casa, saúde) talvez porque ela mesma não teve estas
coisas. Pensava na justiça social, porque talvez ela própria tenha sido humilhada pelas
senhoras das entidades de caridade. Presenteava as crianças com brinquedos, porque quiçá ela
mesma não os teve na infância. Queria desesperadamente ser atriz, porque não tinha voz.
95 Em minha dissertação de mestrado, História e ficção em Santa Evita, como já mencionado, realizei ampla
investigação sobre as relações entre literatura e história.
96 Em português: “jovem de traços tristonhos e busto esquálido” (p. 71).
Utiliza-se, daqui para frente, em todas as notas contendo a tradução, a edição em português publicada no Brasil
pela Companhia das Letras, cuja referência completa encontra-se nas referências bibliográficas.
97 Em português: “Tinha o olhar cheio de cicatrizes e falava com voz imperiosa” (p. 73).
83
Tratava o povo como provavelmente gostaria que a tivessem tratado. Sua origem a define; se
não fosse pobre e ilegítima, provavelmente não conheceria tão bem os grasitas.98
A partir dos registros feitos pelo Coronel Moori Koenig, um dos personagens centrais
em SE, responsável pela operação de sequestro do cadáver de Evita, o romance relata a
confusão quanto aos dados referentes ao nascimento de Eva Perón. Esta teria nascido em 7 de
maio de 1919, em Los Toldos, e recebido o nome de María Eva Ibarguren. No entanto, na
certidão de casamento com Perón é nomeada como María Eva Duarte, nascida em Junín, em 7
de maio de 1922.
Questionam-se no romance os motivos que a teriam levado a efetuar essas alterações
em seu registro de nascimento, e se conclui que teriam sido efetuadas porque Eva e Perón
eram romancistas e atores que elaboravam e encenavam representações de si mesmos:
El casamento no es falso pero casi todo lo que dice el acta sí lo es, de principio a fin.
En el momento más solemne e histórico de sus vidas, los contrayentes – así se decía
entonces – decidieron burlarse olímpicamente de la historia. Perón mintió el lugar de
la ceremonia y el estado civil; Evita mintió la edad, el domicilio, la ciudad donde
había nacido. Eran imposturas evidentes, pero pasaron veinte años antes de que
alguien las denunciara. En 1974, sin embargo, el biógrafo Enrique Pavón Pereyra las
declaró verdaderas en su obra Perón, el hombre del destino. Otros historiadores se
conforman con transcribir el acta y no discuten su falsía. A ninguno se le ocurrió, sin
embargo, preguntarse por qué Perón y Evita mentían. No necesitaban hacerlo. ¿Evita
se añadió tres años para que el novio no le doblara la edad? ¿Perón se fingió soltero
por pudor de ser viudo? ¿Evita imaginó que había nacido en Junín porque era hija
ilegítima en Los Toldos? Esos detalles nimios ya no les inquietaban. Mintieron
porque habían dejado de discernir entre mentira y verdad, y porque ambos, actores
consumados, empezaban a representarse a sí mismos en otros papeles. Mintieron
porque habían decidido que la realidad sería, desde entonces, lo que ellos quisieran.
Actuaron como actúan los novelistas. (SE, p. 143)99
A hagiografia presente em SE apresenta-se subvertida, visto que seu narrador não cria
uma origem nobre para Evita, mas apresenta a dúvida que se estabelece sobre esta origem.
98 Segundo o Diccionario del habla de los argentinos (2008), o adjetivo coloquial depreciativo grasa refere-se
ao que expressa ou manifesta vulgaridade. O que se conclui, portanto, é que ao empregá-lo no diminutivo, Evita
estabelecia uma relação de carinho com os trabalhadores pobres, considerados vulgares pelas classes alta e
média.
99 Em português: “O casamento não é falso, mas o é quase tudo o que se escreveu no livro, do princípio ao fim.
No momento mais solene e histórico de suas vidas, os contratantes ― como se dizia então ― decidiram zombar
olimpicamente da história. Perón mentiu o lugar da cerimônia e seu estado civil; Evita mentiu a idade, o
endereço e a cidade onde nasceu. Eram imposturas evidentes, mas teriam que se passar vinte anos para que
alguém as denunciasse. Em 1974, no entanto, o biógrafo Enrique Pavón Pereyra as declarou verdadeiras em seu
livro Perón, el hombre del destino. Outros historiadores limitaram-se a transcrever a ata sem por em discussão
sua falsidade. Nenhum deles, entretanto, cogitou perguntar-se por que Perón e Evita mentiam. Não precisavam
fazê-lo. Evita aumentou sua idade em três anos para que o noivo não chegasse a ter o dobro? Perón fingiu ser
solteiro por pudor de sua viuvez? Evita inventou ter nascido em Junín porque em Los Toldos era filha ilegítima?
Esses detalhes triviais não os incomodavam. Mentiam porque já não discerniam a mentira da verdade, e porque
ambos, atores consumados, começavam a representar a si mesmos em outros papéis. Mentiram porque tinham
decidido que a realidade seria, a partir daquele momento, o que eles quisessem. Atuaram como atuam os
romancistas.
84
Segundo o historiador Felipe Pigna (2012, p. 16), a certidão de nascimento que
originou a de casamento era falsa e a original, que constava no Registro Civil de General
Viamonte, havia sido destruída. Com a adulteração pretendia-se reparar sua condição de filha
natural. Seu pai, Juan Duarte, não era casado com sua mãe, Juana Ibarguren e, embora tenha
registrado os outros quatro filhos que teve com ela, não quis reconhecer a última, María Eva,
por isso esta recebeu apenas o nome da mãe. Além do nome Duarte, a data de nascimento foi
alterada para que se pudesse afirmar que seus pais haviam sido casados, já que, em 1922,
Duarte havia se tornado viúvo.
Não ter o reconhecimento do pai marcaria profundamente a Cholita, como era
carinhosamente chamada Eva em sua família (EJSV, p. 15). Como filha natural, María Eva
Ibarguren sofria preconceito. Na reconstrução de suas origens, portanto, Eva Perón tem sua
certidão de nascimento alterada, resolvendo, ainda que fictícia e ilusoriamente, a questão de
sua paternidade.
Em SE, como já vimos, a narração dos primeiros anos de Eva Perón dá-se a partir do
relato memorialístico de sua mãe, Juana Ibarguren. Segundo o narrador, as memórias de
Juana, compiladas pelo Coronel Moori Koenig, são relatadas em meio à angústia de não saber
onde está o corpo de sua filha. Embora tenha peregrinado em busca de informações, como
tantas outras mães durante a ditadura que viria anos depois, Juana falece antes que o cadáver
de Evita retorne à Argentina.
Juana Ibarguren conta como as visitas do pai, Juan Duarte, foram escasseando, sua
indiferença e recusa em reconhecer Eva como filha. Este fato é também mencionado no
romance através das anotações das investigações realizadas pelo Coronel Moori Koenig:
Todos, salvo la última, fueron reconocidos por el padre. Cuatro meses después del
nacimiento de Eva María, Juan Duarte se marchó de Los Toldos para siempre.
Visitó una o dos veces a los bastardos, pero con impaciencia, distraído, ansioso por
desaparecer de su pasado. (SE, p. 136)100
Lembra um acidente sofrido por Evita quando tinha apenas quatro anos de idade. Esse
acidente poderia tê-la desfigurado completamente: o azeite fervente cai sobre seu rosto
quando mexe numa frigideira no fogão. Durante a cicatrização, seu rosto ficou coberto de
crostas que tentava arrancar, mas sua mãe, para impedi-la, amarrou suas mãos. Quando as
crostas caíram, Evita não tinha cicatrizes:
En vez de las cicatrices le asomó esa piel fina, traslúcida, de alabastro, de la que
tantos hombres se iban a enamorar más tarde. No le quedó una estría ni una mancha.
100 Em português: “Todos, exceto a última, foram reconhecidos pelo pai. Quatro meses depois do nascimento de
Eva María, Juan Duarte deixou Los Toldos para sempre. Visitou os bastardos uma ou duas vezes, mas com
impaciência, distraído, ansioso por desaparecer de seu passado” (p. 118).
85
Pero ningún milagro es impune. Evita debió pagar su salvación con otros insultos de
la vida, otros engaños, otras desdichas. (SE, p. 369)101
Observa-se, nesse fragmento, a atribuição da beleza de seu rosto adulto a um evento
doloroso e traumático. O milagre, acaso ou a tenacidade de sua mãe ao impedi-la de tocar o
rosto enquanto cicatrizava fez com que sua aparência ficasse ainda melhor. A menção aos
homens que atraiu revela esse movimento de narrar o passado sempre a partir do presente, ou
tendo-o em conta, como se buscasse, ao rememorar, uma explicação para o momento atual.
Da mesma forma, a concepção de que as penas que sofreu, as dificuldades pelas quais passou,
ocorreram em consequência de haver recebido a dádiva da beleza. Somente é possível fazer
tais conjecturas observando o presente. O que permite à mãe de Evita fazer esse tipo de
relação é que esta é feita com a segurança da totalidade da vida. Evita está morta, e morreu
jovem, pouco tempo depois de haver alcançado tanta influência na condução do país, tendo
passado por dores e sofrimento. Isso possibilita à sua mãe tentar encontrar uma explicação ou
algo que indicasse seu destino. É comum que isso aconteça com figuras públicas que se
destacaram positiva ou negativamente: busca-se em suas origens algum indício de seu destino.
Sobre a morte de Juan Duarte, Juana recorda que os outros filhos sentiram o
falecimento do pai, mas Evita não, “Ella jugaba, indiferente” (SE, p. 370). Contrariando a
família de Juan e a expectativa social de ocultação da concubina, Juana comparece ao velório,
para que os filhos pudessem se despedir do pai:
Evita no alcanzaba a ver el cuerpo y tuve que levantarla en brazos. Cuando la
acerqué al ataúd, advertí que tenía los labios apretados y la mirada desierta. “Tu
papá”, le dije. Ella se volvió hacia mí y me abrazó sin expresión, sólo porque debía
abrazar a alguien y no quería tocar aquellos despojos de un desconocido. (SE, p.
374)102
A indiferença da pequena Eva é facilmente explicável pelo fato de Juan Duarte ser
praticamente um estranho a ela, com quem pouco teve contato.
A figura de infância que se explora no romance é a da criança bastarda. Sua origem
ilegítima associada à pobreza em que viveu, na infância e até tornar-se atriz de sucesso,
funcionam como modeladores de seu caráter e de sua atuação política. A narrativa de tais
eventos, portanto, visaria a apresentar o quanto Evita era excepcional.
101 Em português: “Em lugar das cicatrizes, o que apareceu foi aquela pele fina, translúcida, de alabastro, pela
qual tantos homens depois iriam se apaixonar. Não ficou uma só estria, uma só mancha. Mas nenhum milagre
acontece impunemente. Evita teve de pagar sua salvação com outros insultos da vida, outros enganos, outras
desgraças” (p. 316).
102 Em português: “Evita não conseguia ver o corpo e eu precisei erguê-la nos braços. Quando a aproximei do
caixão, reparei que tinha os lábios apertados e o olhar deserto. ‘É seu pai’, falei. Ela se virou para mim e me
abraçou sem expressão, só porque tinha que abraçar alguém e não queria tocar naqueles despojos de um
desconhecido” (p. 321).
86
Não há memória autobiográfica de Evita no romance. A única menção que a própria
faz é do momento em que abandona a infância. Em uma conversa com sua mãe, relê uma
carta que enviou a Perón desde Madrid, quando ali estava em viagem oficial: “Salí de Junín
cuando tenía trece años, y a esa edad, ¿qué puede hacer de horrible una pobre muchacha?”
(SE, p. 44).103 Evita temia que, estando distante, Perón acreditasse em boatos. Verifica-se
nessa carta a preocupação em fazer as datas conferirem: diz que saiu aos treze anos (em
1935), logo, de acordo com a certidão de nascimento forjada. Isto demonstra a construção da
personagem como consciente da elaboração de sua própria imagem e do quanto esta carta,
naquele momento privada, poderia tornar-se pública.
Além da representação da infância de Eva Perón, SE apresenta sua trajetória de atriz
iniciante à primeira dama argentina, Mãe dos descamisados.
3.2 Evita longe de ser Evita: do anonimato à ascensão
Expressão utilizada pelo narrador de SE (p. 309) para fazer referência à versão
segundo a qual a menina Eva Duarte teria sido levada à Buenos Aires por Magaldi: “Em
1934, Evita estaba lejos de ser Evita. Magaldi, en cambio, conocía una fama sólo comparable
a la de Gardel”.104
Apresentando-se como um historiador não convencional, um investigador que recorre
a todo e qualquer tipo de fonte, o narrador comenta que encontrou numa coleção de revistas
de celebridades, Sintonía, uma notícia sobre uma apresentação de Mario Pugliese (Cariño) e o
dueto Magaldi-Noda em Junín, em 10 e 11 de novembro de 1934. Com esta informação,
deduz que nessa turnée Magaldi conheceu Evita e Cariño teria sido testemunha. Como
desconfia das informações dos biógrafos de Evita que tendem a defender a versão de que ela
teria chegado sozinha a Buenos Aires, e também não dá crédito a que Magaldi, um grande e
conhecido cantor, tivesse introduzido Evita na rádio, decide entrevistar Cariño para saber o
que de fato aconteceu.
Martínez narrador afirma que a geradora do boato sobre Magaldi foi a própria Evita
quem teria confiado a seus primeiros amigos da rádio e eles fizeram a história circular, mas
Cariño seria o único que sabia a verdade (SE, p. 310). Encontra-o em 1964, trinta anos depois
103 Em português: “Saí de Junín quando tinha treze anos e, nessa idade, o que pode fazer de tão horrível uma
pobre moça?” (p. 39).
104 Em português: “Em 1934, Evita estava longe de ser Evita. Magaldi, ao contrário, gozava de uma fama
somente comparável à de Gardel” (p. 266).
87
da apresentação em Junín, já decadente, com problemas de locomoção, desenvolvendo outras
funções não relacionadas à arte. Afirma ser fiel a seu relato, no entanto não sabe se o que
narra é fiel à verdade (SE, p. 311).
Segundo Cariño, em Junín, lhes recomendaram almoçar na pensão de Juana Ibarguren.
Lá, Magaldi encantou a todos. A única que parecia indiferente era a filha menor, Eva, e isto
incomodou a Magaldi. Evita tinha quinze anos e é descrita como faceira. Magaldi contou a
Cariño que Juana lhe pediu que apadrinhasse Evita em Buenos Aires, e que ele depois de
muito relutar, decidiu fazê-lo (SE, p. 316).
Quando partem de Junín para Buenos Aires, Evita vai com eles no trem: “Fue una
escena de radioteatro, me contó Cariño: el príncipe azul rescataba de su infortunio a la
provincianita pobre y poco agraciada” (SE, p. 317).105 Para Martínez narrador, “Todo sucedía
más o menos como en la ópera de Tim Rice y Lloyd Webber, aunque sin castañolas” (SE, p.
317).106
De modo discreto, o narrador, transcrevendo o que lhe relatou Cariño, aborda o
relacionamento de Magaldi e Evita:
Desde esa noche, Magaldi fue um hombre dividido. Pasaba la mañana y parte de la
tarde en la pensión de la avenida Callao donde vivía Evita. Allí compuso sus más
hermosas canciones de amor. “Quien eres tú” y “Cuando tu me quieras”, sentado en
una silla de cuero de potro. (SE, p. 318)107
Segundo Cariño, Magaldi perde seu contrato na rádio e a oportunidade de apresentar
Evita, o que a enfurece. Passa a envergonhar-se dela e a não querer mais vê-la. Em conversa
com Cariño, este sugere a Evita que volte para Junín, e sua resposta é quase profética: “A mí
de Buenos Aires sólo me sacan muerta.” (SE, p. 319).108
O narrador diz que, ao contrário do que pensam os biógrafos, quem encaminhou a vida
de Evita não foi Magaldi, foi Cariño. Várias vezes a socorreu, pagando sua estadia na pensão,
ou repartindo refeições. Um dia, após encontrá-la e ela chorar, ele a leva para casa e chama
por telefone Edmundo Guibourg, colunista de “Crítica”, pedindo-lhe um trabalho para Evita.
105 Em português: “Foi uma cena de radionovela, contou-me Cariño: o príncipe encantado resgatava de seu
infortúnio a provincianazinha pobre e sem graça” (p. 273).
106 Em português: “Tudo acontecia mais ou menos como na ópera de Tim Rice e Lloyd Webber, só que sem
castanholas” (p. 317).
107 Em português: “A partir dessa noite, Magaldi foi um homem dividido. Passava a manhã e parte da tarde na
pensão da avenida Callao onde Evita morava. Ali ele compôs suas mais lindas canções de amor, “Quién eres tú”
e “Cuando tú me quieras”, sentado em uma cadeira de couro de potro” (p. 273).
108 Em português: “De Buenos Aires eu só saio morta” (p. 274).
88
Ela debutou no teatro Comédia, em 28 de março de 1935, interpretando uma mucama em La
señora de los Pérez.
Embora o relato de Cariño afirme que Evita chegou a Buenos Aires em novembro de
1934, o narrador, ao iniciar sua narrativa, descrevendo momentos que antecederam a morte de
Evita, compara sua condição atual com a da menina que chegou à capital em 1935:
No parecia la misma persona que había llegado a Buenos Aires en 1935 con una
mano atrás y otra adelante, y que actuaba en teatros desahuciados por una paga de
café con leche. Era entonces nada o menos que nada: un gorrión de lavadero, un
caramelo mordido, tan delgadita que daba lástima. Se fue volviendo hermosa con la
pasión, con la memoria y con la muerte. Se tejió a sí misma una crisálida de belleza,
fue empollándose reina, quién lo hubiera creído. (SE, p. 11)109
Como o tempo não se apresenta de modo linear em SE, não há construção de sua
transformação paulatinamente. Após essa menção de 1935, há outra de Eva Duarte, em 1939,
a partir de informações extraídas de fichas do serviço de inteligência militar que estavam em
poder do Coronel Moori Koenig em seu confinamento As fichas que tratam de 1939 trazem
informações sobre seus romances e mudanças de domicílio: teve um caso com o dono da
revista Sintonía e se mudou de uma pensão na rua Sarmiento para um apartamento na
passagem Seaver, envolveu-se com o empresário dono de Jabón Radical, mas continuou
vendo em segredo o dono da revista.
Em janeiro de 1940, também relatado nas fichas, conheceu o cabeleireiro Julio
Alcaraz. Evita é descrita como “de una palidez enfermiza, de una belleza trivial, no inspiraba
pasión sino compasión. Y sin embargo quería llevarse el mundo por delante” (SE, p. 292,
grifo do autor).110
As informações sobre Evita, em 1943, são introduzidas na narrativa através da
conversa com o amigo Emilio Kaufman, pai de uma ex namorada, já falecida, de Martínez
narrador. A indagação que faz Kaufman sobre o que fez Evita neste ano, em que pouco
trabalhou, fornece ocasião para tratar do assunto.
Durante toda a conversa, o narrador e seu amigo referem-se a Eva Duarte como Evita,
embora ela ainda estivesse longe de sê-lo. Evita é apresentada como “una pobre atriz de
109 Em português: “Não parecia a mesma pessoa que havia chegado a Buenos Aires em 1935 com uma mão na
frente e outra atrás e que se apresentava em teatros miseráveis em troca de um café com leite. Naquela época ela
era nada ou menos que nada: um pardal ciscando migalhas, uma bala cuspida, tão magrinha que dava até pena.
Foi ficando linda com a paixão, com a memória e com a morte. Teceu para si mesma uma crisálida de beleza, foi
incubando-se rainha, quem diria” (p. 11).
110 Em português: “de uma palidez doentia, de uma beleza trivial, não inspirava paixão e sim compaixão. E no
entanto queria ser a dona do mundo” (p. 251, grifo do autor).
89
segunda” (SE, p. 246)111 que trabalhava onde era possível, como atriz, como modelo de
fotografias ou em publicações pornográficas.
Quando Kaufman diz que conheceu Eva, Martínez narrador pede-lhe que conte o que
aconteceu. Após ouvir seu relato, diz que nunca mais pôde dormir até o momento em que
escreveu a história (SE, p. 246).
Kaufman saía com uma atriz, Mercedes Printer, com quem conversava sobre tudo, e
ela lhe falou sobre Evita, que é descrita como alguém que dá pena: “Es debilucha, enfermiza”
(SE, p. 247),112 diz Mercedes, acrescentando que simpatizou com ela. Tornaram-se amigas
durante uma atuação em Rosario; compartilhavam homens, comida e camarim: “A ella le
interesaban los empresários, los hombres con plata, aunque fueron viejos y panzones, y yo a
mi lo que me gustaba era la milonga. Ni ella ni yo teníamos un mango” (SE, p. 248).113
Mercedes conta que ela estava se recuperando de uma longa enfermidade e pede a Kaufman
que convide um amigo para que saiam todos juntos.
O narrador faz uma digressão e comenta a transformação surpreendente e inesperada
de Evita, e a memória de Kaufman a ela relacionada:
Si no fuera por el significado que los hechos iban a tener después, a la luz de la
historia, Emilio se habría olvidado de todo. No sabía – no podia saber – que, com el
tiempo, aquella chica iba a ser Evita. Tampoco Evita lo sabía. La historia tiene esas
trampas. Si pudiéramos vernos dentro de la historia, dijo Emilio, sentiríamos terror.
No habría historia, porque nada querría moverse. (SE, p. 248)114
Kaufman conta sua impressão de Evita quando a conheceu:
A Emilio le pareció insulsa, invulnerable al quebranto de la enfermedad y de la
pena. Lo que más impresionaba en ella, me dijo, era la blancura. Tenía un cutis tan
pálido que se le veían al trasluz los mapas de las venas y las lisuras del pensamento.
No había en ella nada físico que atrajera, dijo, ninguna fuerza eléctrica para bien ni
para mal. (SE, p. 248)115
111 Em português: “uma pobre atriz de segunda” (p. 211).
112 Em português: “é fracote, vive doente” (p. 212).
113 Em português: “Ela só queria saber de empresários, homens endinheirados, mesmo que fossem uns velhos
barrigudos, e eu gostava era de farra. As duas sem um puto no bolso” (p. 212).
114 Em português: “Se não fosse pelo significado que os fatos iriam ganhar mais tarde, à luz da história, Emilio
teria esquecido tudo. Não sabia ― não podia saber ― que, com o tempo, aquela moça iria ser Evita. Evita
também não o sabia. A história tem dessas armadilhas. Se pudéssemos nos ver dentro da história, disse Emilio,
ficaríamos apavorados. Não haveria história, porque todo mundo ficaria imóvel” (p. 213)
115 Em português: “Emilio a achou insossa, invulnerável ao quebranto da doença e do sofrimento. O que mais
impressionava nela, disse Emilio, era sua brancura. Tinha uma cútis tão pálida que chegava a transluzir os mapas
das veias e as lisuras do pensamento. Seu corpo não tinha nada de atraente, disse ele, nenhuma força elétrica,
nem para o bem, nem para o mal” (p. 213).
90
Na ocasião, Evita estava triste e só se animou quando foram a Fantasio, um local onde
se reuniam os produtores de Argentina Sono Film e as atrizes da moda. Emilio sente vergonha
de apresentá-la a seus amigos, mas atende a seu pedido. Um produtor, Atilio Mentasti, a
destrata e recebe um olhar de ódio. Nesse ponto da narrativa, o narrador realiza breve
digressão para comentar sobre uma característica de Evita no futuro – a vingança:
Desde que llegó a Buenos Aires la habían desairado y vejado tantas vezes que ya
nada la sorprendía: acumulaba em su memoria un largo catálogo de injurias que
pensaba vengar tarde o temprano. La de Mentasti fue una de las peores. Nunca lo
perdonó, porque no quería perdonar a nadie. Si Eva llegó a ser alguien, me dijo
Emilio, fue porque se propuso no perdonar. (SE, p. 250)116
Kaufamn diz que Eva lhe perguntou o que faria se Mercedes engravidasse. Ele diz que
a levaria para abortar, porque nenhum dos dois poderia ter um filho. A conversa estranha
continua e Eva indaga o que ele faria se ela tivesse o filho sem ele saber. Após sua resposta –
que iria querer ver o filho, mas nunca mais Mercedes, Eva conclui que homem e mulher
pensam diferente.
Quando partem, Kaufman e Mercedes levam-na para casa. Depois de deixá-la,
Mercedes lhe diz que Evita estava desesperada, mas Emilio não concorda. Mercedes então
conta que ela estava grávida e fez um aborto no qual quase morreu e do qual levou quase dois
meses para se recuperar. Por esse afastamento, sua carreira quase terminou, porque ficou sem
trabalho, mas uma nota na revista “Antena”, a salvou: “Si Eva Duarte no trabaja es porque no
le ofrecen papeles a su altura” (SE, p. 253),117 além de um romance com o tenente coronel que
dirigia as rádios.
Mercedes conta que todos os homens com os quais Evita se envolveu eram casados e
ela estava num estado de indiferença em que não amava ninguém. Seu estado emocional a
preocupava, pois temia que pudesse cometer suicídio (SE, p. 253).
Emilio Kaufman encontra novamente Eva em 1950, quando já era Evita, mas:
― No me reconoció ― dijo Emilio ―, o fingió que no me reconocía. Era otra.
Parecía llena de luz. Parecía que en vez de un alma tuviera dos, o muchas. Pero la
tristeza seguía rondándola. Cuando ella menos se daba cuenta, la tristeza le tocaba el
hombro y le recordaba el pasado. (SE, p. 253)118
116 Em português: “Desde que chegara a Buenos Aires, tinha sido destratada e vexada tantas vezes que nada mais
a surpreendia: acumulava em sua memória um longo catálogo de injúrias que, mais dia, menos dia, pensava
vingar. A de Mentasti foi uma das piores. Nunca o perdoou, porque não queria perdoar ninguém. Se Eva chegou
a ser alguém, disse Emilio, foi porque resolveu não perdoar” (p. 214).
117 Em português: “Se Eva Duarte não trabalha é porque não lhe oferecem papéis à altura” (p. 217). 118 Em português: “― Não me reconheceu ― disse Emilio ―, ou fingiu não me reconhecer. Era outra. Parecia
cheia de luz. Parecia que em vez de uma alma tivesse duas, ou muitas. Mas a tristeza continuava ali, rondando.
Quando ela menos esperava, a tristeza cutucava seu ombro para lhe lembrar o passado” (p. 217).
91
Martínez narrador desconfia do relato de Kaufman e coteja as informações ali contidas
com memórias de outras pessoas (SE, p. 253). O narrador utiliza os relatórios do serviço de
inteligência militar que estavam em poder do Coronel Moori Koenig para confirmar a
informação sobre o afastamento de Eva, em 1943. O Coronel lê a ficha em que se perguntava:
Durante los primeiros siete meses de 1943, la Difunta desapareció. No actuó en la
radio ni en el teatro. Las revistas de espectáculos casi no la nombran. ¿Qué sucedió
en ese lapso? Estuvo enferma, prohibida, retirada en Junín? Tradujo, con desgano,
la última línea: “Mercedes Printer, que la acompañó en el Otamendi y Miroli, ha
contado…” (SE, p. 287, grifo do autor)119
Em setembro de 1943, Evita foi contratada na Rádio Belgrano “para interpretar a las
grandes mujeres de la historia” (SE, p. 183).120 Com um salário melhor, conseguiu se mudar
para um apartamento modesto na rua Posadas. O narrador destaca sua péssima dicção e o fato
de que “para la gente de bien, que oía poca radio, Evita era sólo una cómica que entretenía a
los coroneles y a los capitanes de fragata. Nadie pensaba en ella como un peligro” (SE, p.
183).121
Segundo a narrativa, Eva conheceu Perón em janeiro de 1944, durante um festival
beneficente em favor das vítimas do terremoto de San Juan (SE, p. 189). De acordo com o
narrador, Eva estava acompanhando o tenente coronel Aníbal Imbert, diretor dos Correios e
Telégrafos, a quem devia o favor de lhe haver conseguido o contrato com a Rádio Belgrano.
Embora o acompanhasse, queria conhecer o “coronel del pueblo” (SE, p. 190),122 “sentía que
algo los predestinaba a estar juntos: Perón era el redentor, ella la oprimida” (SE, p. 191).123
O narrador coloca em sua boca a frase “gracias por existir”,124 que Eva teria dito a
Perón quando falou com ele pela primeira vez e isso o teria impressionado. Segundo o
narrador, ela não se lembra em LRMV de haver dito tal frase, mas ele, pesquisando para sua
escrita, assistiu a dezesseis noticiários de vários países sobre o terremoto e o festival
119 Em português: “Durante os primeiros sete meses de 1943, a Falecida desapareceu. Não atuou no rádio nem
no teatro. As revistas de espetáculos quase não citam seu nome. O que aconteceu nesse período? Esteve doente,
proibida, reclusa em Junín? Traduziu a última linha, por pura inércia: ‘Mercedes Printer, que a acompanhou no
Otamendi y Miroli, contou que...’” (p. 246, grifo do autor).
120 Em português: “para interpretar as grandes mulheres da história” (p. 159).
121 Em português: “Para a gente de bem, que ouvia pouco rádio, Evita não passava de uma comediante ao gosto
de coronéis e capitães-de-fragata. Ninguém pensava nela como um perigo” (p. 159).
122 Em português: “Coronel do Povo” (p. 165).
123 Em português: “sentia que alguma coisa os predestinava a estarem juntos: Perón era o redentor, ela a
oprimida” (p. 166). 124 Em português: “obrigada por existir”.
92
beneficente guardados pelo Arquivo Nacional de Washington e viu o momento em que ela
disse esta frase (SE, p. 192).
Em outubro de 1945, após o episódio de sua prisão e posterior aclamação popular,
Perón casa-se com Eva (SE, p. 88). Em 1947, Eva já era outra pessoa. Foi capa da revista
Time ao retornar da viagem que fez à Europa
que los corresponsales bautizaron como “la travesía del arco iris”. No tenía ningún
cargo oficial, pero en todas las partes la recibieron los jefes de Estado, el Papa, las
multitudes. En Río de Janeiro, penúltima escala de su viaje, los cancilleres
americanos le dieron la bienvenida e interrumpieron su conferencia para brindar por
ella. Los que no le habían prestado atención como actriz la odiaban ya como ícono
del peronismo analfabeto, bárbaro y demagogo. (SE, p. 183)125
O tema da viagem transformadora é presente no gênero hagiográfico, no entanto,
curiosamente, em SE, não se aborda detidamente a viagem à Europa, considerada por outros
biógrafos como um divisor de águas para Eva Perón, inclusive por ela própria em sua
autobiografia. Há apenas um vislumbre de sua transformação no trecho citado acima em que
se reconhece a importância da viagem. Em outro ponto da narrativa, diz que Evita assistiu
sozinha a um documentário sobre sua viagem, mas ordenou que ele fosse destruído (SE, p.
220).
Sua principal obra, a Fundação de Ajuda Social María Eva Duarte de Perón, foi
fundada em 1948, com o objetivo de oferecer “uma vida digna a las clases sociales menos
favorecidas” (SE, p. 189).126 Com o trabalho na fundação, aproxima-se ainda mais das classes
populares, fato que, posteriormente, alimentará seu mito. Segundo o narrador, o primeiro
elemento que constrói o mito de Evita é sua ascensão meteórica “desde el anonimato de
pequeños papeles en la radio hasta un trono en el que ninguna mujer se había sentado: el de
Benefactora de los Humildes y Jefa Espiritual de la Nación” (SE, p. 183).127
Martínez narrador destaca como tornou-se autoritária, chegando a atuar como um
homem, de acordo com os códigos culturais da época. Mandava demitir atores por capricho
ou vingança, dava ordens nas horas mais impróprias, não dormia atendendo seus
descamisados (SE, p. 184). Eva Perón torna-se Evita, a mãe dos descamisados, representando
125 Em português: “que os correspondentes batizaram de ‘a travessia do arco-íris’. Não ocupava nenhum cargo
oficial, mas aonde quer que fosse era recebida por chefes de Estado, pelo papa, por multidões. No Rio de
Janeiro, penúltima escala de sua viagem, os chanceleres americanos foram dar-lhe as boas-vindas e
interromperam a conferência de cúpula para erguer um brinde em sua homenagem. Aqueles que não tinham
reparado nela como atriz agora a odiavam como ícone do peronismo analfabeto, bárbaro e demagogo” (p. 160).
126 Em português: “uma vida digna às classes sociais menos favorecidas” (p. 164).
127 “do anonimato de papéis secundários no rádio a um trono jamais ocupado por mulher alguma: o de Benfeitora
dos Humildes e Chefe Espiritual da Nação” (p. 159).
93
o mais importante e destacado papel de sua vida. Desenvolveu uma personalidade forte que
polarizou o país entre os que a amavam e os que a odiavam, fato que gerou uma série de
formas de designá-la, como analisado a seguir.
3.3 Nomes de Evita
Amada pelos descamisados e pelos grasitas, Eva Perón é por eles carinhosamente
chamada Evita, que também a chamam Mãe – La madre de los descamisados. Isto
imediatamente permite remeter à figura da mãe no Cristianismo, a Mãe de Cristo, Maria,
Nossa Senhora, como chamada pelos devotos. A Mãe Evita também é “Santa Evita”, no
entanto é santa no culto popular, não reconhecida, muito menos oficializada pela Igreja
Católica. Evita é reverenciada pelo povo e canonizada pela cultura pop.
A expressão “Santa Evita” utilizada por Tomás Eloy Martínez para nomear seu
romance é difundida a partir da canção homônima de Andrew Lloyd Webber e Tim Rice
(música e letra, respectivamente) integrante do musical Evita (1976). Nesta canção, crianças
fazem uma prece a Evita, unindo suas vozes às de trabalhadores em louvor à Mãe Evita, SE.
Alvo das atenções peronistas através da Fundação de Ajuda Social María Eva de Perón, na
canção, as crianças expressam sentimento semelhante à devoção religiosa:
Santa Evita
[Children:]
Please, gentle Eva, will you bless a little child?
For I love you, tell Heaven I'm doing my best
I'm praying for you, even though you're already blessed
Please, mother Eva, will you look upon me as your own?
Make me special, be my angel
Be my everything wonderful perfect and true
And I'll try to be exactly like you
Please, holy Eva, will you feed a hungry child?
For I love you, tell Heaven I'm doing my best
I'm praying for you, even though you're already blessed
Please, mother Eva, will you feed a hungry child?
For I love you ([Che:] Turn a blind eye, Evita)
Tell Heaven I'm doing my best ([Che:] Turn a blind eye)
I'm praying for you, even though you're already blessed
[Workers:]
Santa SE
Madre de todos los ninos
De los tiranizados, de los descamisados
94
De los trabajadores, de la Argentina.128 (WEBBER; RICE, 1976)
O reconhecimento público de Evita mostra-se através do modo como é chamada.
Gerou amor ou aversão. Evita despertava sentimentos apaixonados, enquanto os humildes
amavam-na, a elite a odiava: “Los argentinos que se consideraban depositários de la
civilización veían en Evita una ressurrección obscena de la barbarie. (...) La súbita entrada en
escena de Eva Duarte arruinaba el pastel de la Argentina culta” (SE, p. 70). No romance, o
narrador aponta os apelativos com os quais os militares a mencionavam: “a Evita se le decía
“esa mujer”, pero en privado le reservaban epítetos más crueles. Era la Yegua o la Potranca,
lo que en el lunfardo129 de la época significaba puta, copera, loca” (SE, p. 22). Enumera
outros, além destes: “Bicha, Cucaracha, Friné, Estercita, Milonguita, Butterfly” (SE, p. 131).
O narrador esclarece em nota de pé de página:
Yegua y Potranca eran formas corrientes de aludir a Evita entre los oficiales
opositores a Perón desde, por lo menos, comienzos de 1951. Friné y Butterfly fueron
apodos puestos de moda por las columnas de Ezequiel Martínez Estrada en el
semanario Propósitos. Bicha y Cucaracha eran, según Botana [Helvio Botana],
nombre de la vagina en el lunfardo carcelario. Estercita y Milonguita derivan del
tango “Milonguita”, compuesto en 1919 – año del nacimiento de Evita – por Samuel
Linning y Enrique Delfino. Su estrofa más celebrada es ésta: ¡Estercita! / Hoy te
llaman Milonguita, / flor de lujo y de placer, / flor de noche y cabaret. / !Milonguita!
/ Los hombres te han hecho mal, y hoy darías toda tu alma / por vestirte de percal.
(SE, p. 131)130
128 Versão brasileira por Claudio Botelho (2013):
CRIANÇAS: Oh, doce Eva / Abençoai, olhai por nós / As crianças / E nós pedimos louvor / Rezamos que Deus /
Vos proteja de toda dor
Oh, mãe Evita / Vosso olhar sobre nós derramai / Com bondade /Como um anjo / Sede o véu que nos cobre de
toda aflição / E seremos nós / A vossa oração!
Oh, santa Eva / Vinde a nós, alimentai / As crianças / E nós pedimos louvor / Rezamos que Deus / Vos proteja de
toda dor
CHE: Evita, eles são crianças / É fácil laçar
CRIANÇAS & TRABALHADORES: Santa, Santa Evita / Madre de todos los niños / De los tiranizados / De los
descamisados / De los trabajadores / Del’Argentina
TRABALHADORES: Santa, Santa Evita / Madre de todos los niños / De los tiranizados / De los descamisados /
De los trabajadores /Del’Argentina
CHE: Para quê ser chefe de estado / Se podes virar santa?!
129 Gíria tradicionalmente empregada em Buenos Aires e seus arredores por imigrantes e marginais. Parte de seus
vocábulos e locuções difundiram-se na linguagem coloquial e no resto do país, segundo o Diccionario del habla
de los argentinos (2008, p. 416).
130 Em português: “Yegua [égua] e Potranca eram maneiras de os oficiais opostos a Perón se referirem
corriqueiramente a Evita desde, pelo menos, 1951. Friné [lendária prostituta da Roma antigua] e Butterfly
[borboleta] foram apelidos lançados por Ezequiel Martínez Estrada na sua coluna do semanário Propósitos.
Bicha [eufemismo para cobra] e Cucaracha [barata] eram, conforme Botana, nomes para vagina na gíria
carcerária portenha. Estercita e Milonguita derivam do tango “Milonguita”, composto em 1919 ― ano do
nascimento de Evita ― por Samuel Linning e Enrique Delfino. Sua estrofe mais celebrada é a seguinte: Estercita
/ Hoje te chamam Milonguita, / Flor de luxo e de prazer, / flor de noite e cabaré. / Milonguita! / Os homens te
fizeram mal, / e hoje darias toda a alma / por vestir-te de percal” (p. 114).
95
Apesar dos apelidos depreciativos, o modo carinhoso e familiar com o qual é
chamada, Evita, revela o sentimento daqueles que lhe outorgaram variados títulos honoríficos:
Abanderada de los Humildes, Dama de la Esperanza, Collar de la Orden del
Libertador General San Martín, Jefa Espiritual y Vicepresidente Honorario de la
Nación, Mártir del Trabajo, Patrona de la provincia de La Pampa, de la ciudad de La
Plata y de los pueblos de Quilmes, San Rafael y Madre de Dios. (SE, p. 20)131
No romance, o tratamento do cadáver perpetua a dicotomia dos modos de nomear
Evita. O embalsamador, doutor Pedro Ara, queria proteger e preservar o cadáver, e a ele se
referia de modo respeitoso, chamando-o Senhora (SE, p. 132). Em oposição, o coronel Moori
Koenig nutria ódio pelo cadáver e queria destruí-lo, ainda que não o pudesse fazer. Para
referir-se a ele, Koenig alterna nomes depreciativos e outros cheio de respeito, como um
resultado da transformação que nele se opera a partir do contato com o cadáver, pelo qual
desenvolve ideia fixa: Esa mujer, Persona, Madre.
Chamá-la Senhora, substantivo similar ao da Virgem Maria – Nossa Senhora – indica
passagem ao âmbito do sagrado. De Senhora, Evita passa a Santa, Santa Evita, Nossa Mãe
(SE, p. 262, 390). Seu nome original, María Eva, poderia ser tomado como um vaticínio de
seu destino mítico. De acordo com a tradição judaico-cristã, Eva foi a primeira mulher, a mãe
da humanidade e também a primeira pecadora. Seu primeiro nome, María, por sua vez, é o da
mãe, da protetora de todos, da bondosa consoladora que intercede diante de Deus por seus
filhos, a compadecida.
Há controvérsias sobre a ordem de seus nomes. O narrador de SE (1995, p. 135))
menciona que examinou documentos sobre seu nascimento, e que um deles traz a informação
de que seu nome seria Eva María Ibarguren. Tal informação é possível de ser encontrada
extratextualmente: em seu primeiro registro escolar, em Junín, consta Eva María
(NAVARRO, 1994, p. 1994). Provavelmente, este fato que pode ter sido um simples erro
gerou especulações e há quem afirme, como Alicia Poderti (2010, p. 77), que seu nome seria
Eva María e que, para o casamento com Perón, foi alterado, colocando-se o nome da santa
antes do nome da pecadora, da mesma forma como foi alterada a data de seu nascimento. Não
há como precisar tal informação, apenas se chama a atenção para o fato objetivo de que em
seu nome, não importando a ordem, estava o que Evita representava: a santa e a pecadora.
O termo Persona, com o qual o coronel Moori Koenig designa o cadáver, é utilizado
também por Milton Galarza, capitão que integrou o operativo de sequestro e ocultação do
131 Em português: “Defensora dos Humildes, Dama da Esperança, Colar da Ordem do Libertador General San
Martín, Chefe Espiritual e Vice-presidente Honorária da Nação, Mártir do Trabalho, Padroeira da província de
La Pampa, das cidades de La Plata, Quilmes, San Rafael e Madre de Dios” (p. 19).
96
cadáver liderado pelo coronel. Galarza, ao transportar o cadáver em um caminhão, sofre um
acidente que o desfigura. No hospital, recebe a notícia da morte de dois soldados no acidente,
mas “Persona, para variar, estaba ilesa” (SE, p. 326). Sobre as consequências do acidente,
apresentado como uma das maldições do cadáver, diz o narrador:
En el relámpago del accidente, Galarza había perdido a la vez la carrera, la salud y la
confianza en sí mismo. Los vidrios del parabrisas lo habían desfigurado. Un corte
profundo en los músculos flexores le impedía mover la mano izquierda. Su esposa, a
la que había compadecido y despreciado, ahora lo compadecía a él. Ninguno de los
destinos con los que había soñado se cumplieron: no había ascendido a mayor;
estaba obligado a retirarse del ejército, los fantasmas de los tobas y mocovíes a los
que había matado en Clorinda le atormentaban las noches. Había odiado a Perón aun
antes de que fuera Perón; había conspirado para matarlo un vergonzoso día de 1946.
Ahora, ya no pensaba en él. Sólo odiaba a Persona, que había tejido la red de su
desgracia. (SE, p. 327)132
O capitão Galarza também sofre transformação. É designado para levar o cadáver à
Itália, sob identidade falsa. Durante a viagem de navio, desenvolve o hábito de conversar com
o cadáver, imaginando que ouve respostas:
Le referia las incontables enfermidades de su mujer y la infelicidad de una vida sin
amor: “Te hubieras separado”, le decía Persona. “Hubieras pedido perdón”. Oía fluir
la voz entre las torres de la carga o al otro lado del casco, en el mar. Pero cuando
regresaba al camarote se repetía que la voz sólo podía estar adentro de él, en alguna
hondura del ser que desconocía. ¿Y si Dios fuera una mujer?, pensaba entonces. ¿Si
Dios moviera sus pechos dulcemente y fuera una mujer? Eso a quien le importaba.
Dios podía ser lo que quisiera. Nunca había creído en Él, o en Ella. Y no era el
momento de empezar. (SE, p. 334)133
Perto do fim da viagem, tem uma percepção: “La amaba: se dijo. Amaba a Persona, y
la odiaba” (SE, p. 335).134 O tema do amor e ódio relacionado a Eva Perón é recorrente.
Persona traduz-se do espanhol para o português como “pessoa”, mas não apenas isso,
sua utilização no romance permite fazer referência ao conceito junguiano. De acordo com
Jung (2000, p. 30), a persona é a máscara do ator com a qual encobrimos a face que não
132 Em português: “No relâmpago do acidente, Galarza tinha perdido de uma só vez a carreira, a saúde e a
confiança em si mesmo. Os vidros do pára-brisa o desfiguraram. Um corte profundo nos músculos flexores o
impedia de mexer a mão esquerda. Sua mulher, por quem tanta pena e desprezo ele sentira agora era quem sentia
pena dele. Nenhum daqueles destinos com que ele tanto sonhara se tinha cumprido: não fora promovido a major,
era obrigado a deixar o Exército, os fantasmas dos índios que assassinara em Clorinda vinham atormentar suas
noites. Tinha odiado Perón antes mesmo de ele ser Perón; tinha conspirado para matá-lo em um vergonhoso dia
de 1946. Agora, não pensava mais nele. Todo seu ódio era para Pessoa, que havia tecido a rede de sua desgraça”
(p. 281).
133 Em português: “Relatava-lhe as incontáveis doenças de sua mulher e a infelicidade de sua vida sem amor.
“Você devia ter se separado”, dizia Pessoa. “Pedido perdão a ela.” Ouvia a voz entre as colunas de carga ou do
outro lado do casco, no mar. Mas quando voltava ao camarote repetia a si mesmo que a voz só podia estar dentro
dele, em algum recanto do ser que desconhecia. E se Deus fosse mulher?, pensava então. E se Deus balançasse
seus peitos docemente e fosse uma mulher? Quem é que ligava para isso? Deus podeia ser o que bem entendesse.
Nunca acreditara n’Ele, ou n’Ela. E agora não era o momento de começar” (p. 287).
134 Em português: “Ele a amava: disse consigo. Amava Pessoa e a odiava” (p. 288).
97
mostramos ao mundo; é o que não se é realmente, mas sim aquilo que os outros e a própria
pessoa acham que se é; “é o sistema da adaptação ou estilo de nossa relação com o mundo”
(JUNG, 2000, p. 128). A persona constitui, portanto, a face polida que apresentamos aos
outros, adaptando-nos às mais diversas situações.
Esclarece Jung (2000, p. 128) que o perigo está no eu identificar-se com a persona de
modo a não alternar os papéis sociais que representa. Ora, isto remete ao ocorrido com o
próprio coronel Moori Koenig, designado na narrativa como Coronel, que tem sua psique
alterada em contato com o cadáver de Evita, tornando-se obsessivamente o responsável pelo
corpo, não querendo afastar-se dele, a ponto de perturbar sua vida familiar e profissional, ou
seja, o Coronel não alterna suas personas, passa a apresentar apenas uma: a face do coronel
incumbido da missão de sequestrar e ocultar o cadáver. A passagem a seguir exemplifica essa
proposição:
El Coronel llevaba meses atormentándose por haber dejado marchar a Evita. Nada
tenía sentido sin Ella. Cuando bebía (y cada noche de soledad bebía más), se daba
cuenta de que era una estupidez seguir llevándola de un lado a otro. ¿Por qué tenía
que entregarla a gente desconocida para que la cuidara? ¿Por qué no le permitían
hacerlo a él, que la iba a defender mejor que nadie? Lo mantenían lejos de su
cuerpo, como si se tratara de una novia virgen. Era una estupidez, pensaba, tomar
tantas precauciones con una mujer casada, ya mayor, que desde hacía más de tres
años estaba muerta. Dios mío, cómo la extrañaba. ¿Era él quien daba las órdenes o
eran otros? Se había perdido a sí mismo. Esa mujer o el alcohol o la fatalidad de ser
un militar lo habían perdido. (SE, p. 255)135
Nas fichas que escrevia sobre Evita, o Coronel
la llamaba a veces Persona, a veces Difunta, a veces ED o EM, abreviando Eva
Duarte y Esa Mujer. Cada vez era más Persona y menos Difunta: él lo sentía en su
sangre que se enfermaba y cambiaba, y en otros como el mayor Arancibia y el
teniente primero Fesquet, que ya no eran los mismos. (SE, p. 257)136
Aos olhos do Coronel, Eva Perón, mesmo morta, assume uma de suas personas, um de
seus papéis sociais, a representação da mulher transformadora, diante da qual todos sofrem
modificações. Desta forma, o cadáver de Eva Perón personifica Evita, guardando
135 Em português: “Durante meses o Coronel se atormentou por ter deixado Evita partir. Nada fazia sentido sem
Ela. Quando bebia (e cada noite de solidão ele bebia mais), percebia que era uma estupidez continuar a levá-la de
um lugar para o outro. Por que tinha de entregá-la a pessoas desconhecidas para que cuidassem dela? Por que
não a deixavam com ele, que iria defendê-la melhor do que ninguém? Eles o mantinham longe de seu corpo,
como de uma noiva virgem. Era uma besteira, pensava ele, tomar tantas precauções com uma mulher casada, já
madura, morta fazia mais de três anos. Meu Deus, que saudade sentia dela. Afinal, era ele quem dava as ordens
ou eram os outros? Tinha perdido a si próprio. Essa mulher, ou o álcool, ou a fatalidade de ser um militar o
perderam” (p. 219).
136 Em português: “às vezes a chamava de Pessoa, às vezes de Falecida, às vezes ED ou EM, abreviando Eva
Duarte e Essa Mulher. Era cada vez mais Pessoa e menos Falecida: ele podia sentir em seu próprio sangue, que
estava mudando e adoecendo, e nos outros, como o major Arancibia e o tenente Fesquer, que já não eram os
mesmos” (p. 220).
98
permanentemente o papel mais destacado que representou e torna-se uma das relíquias de seu
culto, além de funcionar como um dos elementos que permitem a irrupção do maravilhoso na
obra, como analisado a seguir.
3.4 A irrupção do maravilhoso: maldições, milagres e relíquias de “Santa” Evita
A hagiografia relaciona-se ao imaginário do sagrado, ao qual também aflui o mito.
Segundo Mircea Eliade (2004, p. 11), o mito narra uma história sagrada; para os antigos, os
mitos relatavam uma gênese divina, ou seja, de que modo algo foi produzido e começou a ser,
a partir dos feitos dos deuses. Frente à manifestação do sagrado, entendido como algo distinto
do profano, o homem vê-se diante de uma realidade outra, sobrenatural, maravilhosa. Ao
manifestar o sagrado, um objeto qualquer pode tornar-se outra coisa, simbolizar novos
sentidos. É possível dizer que isto ocorre com Evita e seu corpo. Eva Perón, a partir de sua
participação na vida política da Argentina, torna-se, depois de sua morte, um mito. E seu
corpo simboliza este mito.137
O cadáver embalsamando antecipa a promessa presente no imaginário cristão da
incorruptibilidade alcançável no porvir, quando todos comparecerão diante de Deus para
julgamento de suas obras recebendo prêmio ou castigo, gozo ou sofrimento eterno. No
imaginário cristão, a imagem do corpo possui grande produtividade. A Igreja constitui o corpo
místico de Cristo. Observa-se o corpo não como é em sua essência, individual, mas ampliado,
como representação do coletivo.
À época de publicação do romance SE (1995) já se haviam passado quarenta e três
anos desde a morte de Eva Perón. Entretanto, Evita continuava (e continua ainda hoje) sendo
uma referência para os argentinos. É um dos personagens históricos sobre quem mais se
escreveu na Argentina, permitindo a atualização de seu mito sob variadas formas.
Estabelecer uma origem para o santo cuja vida se narra é uma preocupação na
hagiografia. Destaca-se no romance a origem humilde de Evita, pobre, filha natural, atriz
medíocre que, no entanto, se transformou rapidamente após conhecer Perón. A origem de
Evita é apresentada como determinante em sua trajetória e atuação. Seu desejo de solucionar
os problemas elementares da classe baixa (sobrevivência, trabalho, moradia e saúde) reflete as
carências e privações pelas quais passou. Da mesma forma, seu desejo de justiça social está
relacionado às humilhações que sofreu na infância, assim como sua ação de presentear
137 O último capítulo deste trabalho, “Margens confluentes: o imaginário evitista”, analisa a mitologia de Evita.
(p. 147)
99
brinquedos às crianças se associa à falta deles em sua meninice. A ideia apresentada é que a
origem de Evita a define e gera identificação com os pobres; justamente por ter sido pobre e
ilegítima conhece tão bem os grasitas.
Evita converte-se em objeto de culto popular, segundo Martínez narrador, que
comenta: “Las flores silvestres y las velas encendidas son, para el culto popular, ofrendas
inseparables de los retratos de Evita, que se veneran como si fuesen santos o vírgenes
milagrosas. Y con la misma unción, ni más ni menos” (SE, p. 194).138
O narrador apresenta uma lista de alguns dos cem itens que fazem parte das relíquias
de Evita das quais tem conhecimento, dentre os quais um canário embalsamado que havia
presenteado a alguém; a mancha de batom que deixou numa taça de champagne; os
exemplares autografados de LRMV; uma bata exibida num local que ficou conhecido como o
Museu do Sudário e, por fim, a principal relíquia: “el cuerpo momificado de la propia Evita”
(SE, p. 194).139
Com o embalsamamento do cadáver, Perón tinha expectativa de eternizar Evita. O
corpo está no plano do visível, mostrado. O cadáver, do invisível, oculto, ocultado. Um
cadáver que não se corrompe altera, transgride as leis naturais de decomposição e
desaparecimento. Um cadáver que não se sepulta, nem se destrói, altera a ordem das coisas. O
cadáver de Evita não é ocultado segundo as regras normais de sepultamento (e posterior
decomposição). É embalsamado para ser exibido, mostrado. No entanto, é ocultado, pois é
sequestrado e escondido em local não sabido por vários anos. Tudo isto contribui para o
crescimento do mito de Evita.
Ao contrário do observado por Eliane Moraes (2010) sobre o corpo como
representação da fragmentação humana na modernidade, manifesta nas artes plásticas no final
do século XIX e meados do século XX de forma dilacerada, decomposta, sendo a mesa de
dissecação fundamental para a dilaceração, o corpo de Evita representaria unidade. A mesa de
embalsamamento, as técnicas da taxidermia mantêm a unidade do cadáver, representando,
portanto, a permanência, não de Evita, pois é corpo morto, logo sem alma, mas de um ideal
coletivo. O cadáver esvaziado de alma individual atraiu para si e em si aglutinou a alma da
nação.
138 Em português: “As flores silvestres e as velas acesas são, para o culto popular, oferendas inseparáveis dos
retratos de Evita, que são venerados como as imagens de santos ou virgens milagrosas. E com a mesma devoção,
nem mais, nem menos” (p. 168).
139 Em português: “o corpo mumificado da própria Evita” (p. 169).
100
Os militares golpistas, após a queda de Perón, ficam sem saber o que fazer com o
cadáver, dada sua alta carga de significação. Embora contrariados, reconheciam que o cadáver
de Evita representava a nação:
– Usted sabe muy bien lo que está en juego – dijo el Coronel y se levantó a su vez. –
No es el cadáver de esa mujer, sino el destino de la Argentina. O las dos cosas, que a
tanta gente le parecen una. Vaya a saber cómo el cuerpo muerto e inútil de Eva
Duarte se ha confundiendo con el país. No para las personas como usted o como yo.
Para los miserables, para los ignorantes, para los que están fuera de la historia. Ellos
se dejarían matar por el cadáver. Si se hubiera podrido, vaya y pase. Pero al
embalsamarlo, usted movió la historia de lugar. Dejó a la historia dentro. Quien
tenga la mujer, tiene el país en un puño, ¿se da cuenta? El gobierno no puede
permitir que un cuerpo así ande a deriva. (SE, p. 34)140
Observa-se, com este diálogo, que o corpo de Evita, símbolo de seu mito, poderia dar
significado às pessoas, retirando-as da marginalidade e exclusão, inserindo-as na história.
Caso não houvesse sido embalsamado, se decomporia e assim a história seguiria seu curso.
No entanto, conservado o cadáver, mantêm-se as esperanças de uma sociedade diferente na
qual os descamisados teriam vez. Os militares temiam que o povo, apossando-se do cadáver,
fizesse a revolução. As esperanças do povo não estavam mais nas ações de Evita, mas num
símbolo de fé. Enquanto viva, Evita comunicava esperança. Mesmo morta, ainda exala
esperança, catalisa expectativa, por isso o povo aferra-se a seu corpo morto, logo, este corpo é
sequestrado e ocultado pelos militares para quem Evita morta é mais perigosa do que viva
(SE, p. 25).141
O romance, misturando história (não ficção) e ficção, apresenta a tese de que o doutor
Pedro Ara havia feito duas cópias em cera do cadáver e que isto teria possibilitado aos
militares sua ocultação em alto grau de dificuldade, pois teriam enviado o corpo real e as
cópias a lugares diferentes e distantes. Observa-se que a existência de cópias do cadáver era
140 Em português: “― O senhor sabe muito bem o que está em jogo ― disse o Coronel, levantando-se por sua
vez. ― Não é o cadáver dessa mulher, mas o destino da Argentina. Ou as duas coisas, que para tanta gente
parecem uma só. Sabe-se lá como o corpo morto e inútil de Eva Duarte se foi confundindo com o país. Não para
pessoas como o senhor ou como eu. Mas para os miseráveis, para os ignorantes, para os que estão fora da
história. Esses são capazes de se deixar matar por causa do cadáver. Se tivesse apodrecido, isso logo passaria.
Mas ao embalsamá-la o senhor tirou a história de lugar. Pôs a história aí dentro. Quem tiver a mulher, terá o país
em suas mãos, entende? O governo não pode permitir que um corpo assim fique a deriva” (p. 31).
141 A ideia da sacralização de corpos de políticos na Argentina é recorrente. Segundo Cláudio Negrete, autor de
Necromanía, historia de una pasión argentina, em artigo especial para a Folha (2011): “A morte exerce um
papel central e exagerado na vida dos argentinos. Com o tempo, desenvolvemos uma cultura própria à qual dei o
nome de “necromania”, ou seja, o hábito de repetir abusos e excessos com a morte e seus principais
protagonistas, os mortos.
Porque aqui os mortos parecem desfrutar de boa saúde, se deslocam pelo país, são usados como instrumentos de
lutas pelo poder, como objetos de satisfação pessoal. Continuamos obcecados em remover as cinzas dos
próceres, em festejar as datas em que morreram e convertê-las em feriados turísticos”.
O tema, por si só, mereceria um trabalho a parte, no entanto, não é possível empreendê-lo no momento.
101
uma especulação que circulava nos meios de comunicação durante o período em que esteve
desaparecido o corpo. Tal especulação, no romance, ganha estatuto de veracidade.
Os militares têm consciência da transformação do cadáver num símbolo, como afirma
Arancibia, o Louco:
Si hubiéramos matado al embalsamador, el cuerpo se habría corrompido solo. Ahora
es un cuerpo demasiado grande, más grande que el país. Está demasiado lleno de
cosas. Todos le hemos ido metiendo algo adentro: la mierda, el odio, las ganas de
matarlo de nuevo. Y como dice el Coronel, hay gente que también ha metido su
llanto. Ya ese cuerpo es como un dado cargado. El presidente tiene razón. Lo mejor
es enterrarlo, creo. Con otro nombre, en otro lugar, hasta que desaparezca. (SE, p.
154)142
Martínez narrador afirma, misticamente, o poder transformador do cadáver de Evita.
Diante deste “el sentido común de las personas terminaba por moverse de lugar. Qué sucedía
no se sabe. Les cambiaba la forma del mundo” (SE, p. 27).143 Em sua narrativa, o doutor
Pedro Ara envolveu-se afetivamente com o cadáver enquanto o manuseava durante o processo
de embalsamamento e resistiu a entregá-lo aos militares quando ordenado, embora sem
sucesso. Da mesma forma, o Coronel misturava ódio e amor pelo cadáver, golpeando-o,
submetendo-o a necrofilia, mutilando-o, chegando a enlouquecer quando se vê afastado por
seus superiores das operações de ocultação. Apresenta-se a ideia de que o cadáver traria
alguma maldição, como se percebe no diálogo entre o narrador e a viúva do Coronel:
(…) Toda la gente que anduvo con el cadáver acabó mal.
– No creo en esas cosas – me oí decir.
La viuda se puso de pie y yo sentí que era hora de irme.
– ¿No cree? – Su tono había dejado de ser amistoso. – Que Dios lo ampare,
entonces. Si va a contar esa historia, debería tener cuidado. Apenas empiece a
contarla, usted tampoco tendrá salvación. (SE, p. 59)144
O narrador sente-se preso num malefício, sente-se mal, recebe diagnóstico de
hipertensão (SE, p. 76). Menciona-se a maldição de Tutankamon através do Coronel Moori
142 Em português: “Se tivéssemos matado o embalsamador, o corpo teria se corrompido sozinho. Agora é um
corpo grande demais, maior que o país. Está muito cheio de coisas. Todos nós fomos enfiando alguma coisa
nele: a merda, o ódio, a vontade de matá-la de novo. E como diz o Coronel, também tem gente que enfiou seu
choro. É como um dado viciado. O presidente tem razão. O melhor a fazer é enterrá-lo, eu acho. Com outro
nome, em outro lugar, até que desapareça” (p. 133).
143 Em português: “o senso comum das pessoas acabava deslocado. Ninguém sabia dizer o que ocorria. Aquilo
lhes alterava a forma do mundo” (p. 24). 144 Em português: “― Todas as pessoas que estiveram com o cadáver acabaram mal.
― Eu não acredito nessas coisas ― ouvi eu mesmo dizer.
A viúva levantou-se, e senti que havia chegado o momento de ir embora.
― Não acredita? ― Seu tom já não era amistoso. ― Neste caso, que Deus o proteja. Se pretende contar essa
história, deveria ter cuidado. Assim que começar a contá-la, o senhor não vai ter salvação” (p. 52).
102
Koenig que utilizava o pseudônimo de Lord Carnavon, “arqueólogo inglês que despertó a
Tutankamón de su descanso eterno y pagó esa osadía con la vida” (SE, p. 78).145
Além do Coronel, outros sofrem as maldições, como por exemplo o tenente Eduardo
Arancibia que esconde o cadáver em sua casa, e entra num processo de loucura, misturando a
leitura do Livro dos mortos com práticas necrófilas, conduzindo sua família à tragédia: uma
noite, Arancibia confunde sua esposa grávida com um ladrão e a mata (SE, p. 270).
Segundo Barthes (1978, p. 199), tudo o que é susceptível de ser julgado por um
discurso, pode constituir um mito. O cadáver, significante carregado de significado, torna-se
símbolo do mito de Evita. Por isso seu papel central na narrativa. O mito de Evita e seu
símbolo conferem identidade aos argentinos: “Esse cadáver somos todos nosotros. Es el país”
(SE, p. 387).146 Narrá-lo faz parte do processo de autoconhecimento experimentado pelo
narrador:
Hubo un momento en que me dije: Si no la escribo, voy a asfixiarme. Si no trato de
conocerla escribiéndola, jamás voy a conocerme yo. […] Desde entonces, he remado
con las palabras, llevando a SE en mi barco, de una playa a otra del ciego mundo.
No sé en qué punto del relato estoy. Creo que en el medio. Sigo, desde hace mucho,
en el medio. Ahora tengo que escribir otra vez. (SE, p. 390)147
Distante do cadáver, o Coronel percebia seu próprio vazio: “Soy un argentino, se
decía. Soy un espacio sin llenar, un lugar sin tempo que no sabe adónde va” (SE, p. 359).148
Se ser um argentino equivale a ser um espaço vazio, conhecer Evita seria preencher-se,
encontrar sua própria história.
Contribui para a mística do cadáver a representação do velório em várias capitais de
províncias e cidades distritais, onde a defunta era representada por fotografias (SE, p. 20). Em
seu serviço fúnebre, em Buenos Aires, recebeu honras de chefe de Estado, tendo seu velório
durado doze dias na sede da Secretaria do Trabalho. Mas em locais distantes, a representação
do velório permite aos pobres que não puderam peregrinar até a capital do país participar de
seu serviço fúnebre. Jorge Luís Borges, antiperonista, relata em seu conto El simulacro um
145 Em português: “arqueólogo inglês que perturbou o descanso eterno de Tutankâmon e pagou essa ousadia com
a própria vida” (p. 67).
146 Em português: “Esse cadáver somos todos nós. É o país” (p. 331)
147 Em português: “Houve um momento em que disse a mim mesmo: Se eu não a escrever, vou acabar asfixiado.
Se não tentar conhecê-la pela escritura, nunca vou conhecer a mim mesmo. [...] Desde então, tenho remado com
as palavras, levando Santa Evita em meu barco, de uma praia a outra do cego mundo. Não sei em que ponto do
relato estou. Acho que no meio. Continuo, há muito tempo, no meio. Agora tenho que escrever outra vez” (p.
335).
148 Em português: “Sou argentino, dizia a si mesmo. Sou um espaço sem preencher, um lugar sem tempo que não
sabe aonde vai” (p. 308).
103
destes velórios representados, no qual um homem recebe os pêsames como Perón e uma
boneca representa Evita falecida.
Em SE, o cadáver é tomado como boneca. Escondido num cinema desativado, El
Rialto, em Palermo, atrás da tela (o que remete à saída de cena da atriz Eva Duarte e mesmo
da personagem pública Evita após representar seu papel de maior sucesso na política
argentina), é encontrado pela menina Yolanda, filha do projetor de filmes José Nemesio que,
para manter o segredo, diz-lhe que o cadáver é uma boneca grande. Yolanda chama-o de Pupé
(boneca) e com ele passa a brincar em segredo até o momento em que o cadáver é transferido
para outro esconderijo (SE, p. 235).
Na narrativa, confundem-se política e misticismo. Enquanto o Coronel e seus
subordinados cumpriam ordens superiores para desaparecimento do cadáver de Evita, um
grupo misterioso, identificado apenas pela alcunha Comando da Vingança (CV), seguia seus
passos. Quando o Coronel pensava ter encontrado um esconderijo definitivo para o cadáver
nômade, surgiam flores e velas, o Comando da Vingança montava seu altar de devoção à
Evita, aterrorizando aqueles que pensavam que ninguém mais sabia de seus planos. Além dos
altares nos locais mais inesperados, o Comando da Vingança envia mensagens ao Coronel,
perturbando-o. O corpo sempre era encontrado pelo Comando da Vingança onde quer que o
escondesse. O inimigo parecia ser movido por uma obsessão mais profunda que a sua (SE, p.
256). Isto parece indicar que nem todos os militares eram contrários ao peronismo.
Segundo Beatriz Sarlo (2005, p. 96), o corpo de Evita é duplo – real e político –,
portanto fundamental ao regime peronista. Sarlo insiste que a doença que acometeu Evita fez
com que a importância de seu corpo crescesse, pois o transformou sem causar dano à sua
beleza, dando-lhe, ao contrário, um ar sublime e trágico (2005, p. 102). O caráter sublime
completou-se com sua morte: “A infinitude do sublime só se alcança pela via do excesso
passional” (2005, p. 108). A beleza de Evita se transformou, ampliando sua possibilidade de
investimento imagético.
Como é do conhecimento geral, Evita não se tornou santa realmente, mas de acordo
com o narrado em SE (1995), houve essa intenção por parte de seus fiéis:
Hasta su santidad fue convirtiéndose, con el tiempo, en un dogma de fe. Entre mayo
de 1952 – dos meses antes de que muriera – y julio de 1954, el Vaticano recibió casi
cuarenta mil cartas de laicos atribuyendo a Evita varios milagres y exigiendo que el
Papa la canonizara. El prefecto de la Congregación para la Causa de los Santos
respondía a todas las solicitudes con las fórmulas usuales: “Cualquier católico sabe
que para ser santo hay que estar muerto”. Y después, cuando ya la estaban
embalsamando: “Los procesos son largos, centenarios. Tened paciencia”. Las cartas
fueron tornándose cada vez más perentorias. Se quejaban de que, para ser santa,
María Goretti había esperado sólo cuarenta y ocho años y Teresa de Lisieux poco
más de veinticinco. Más llamativo, decían, era el caso de santa Clara de Asís, a
104
quien el impaciente Inocencio IV quería canonizar en el lecho de muerte. Evita
merecía más: únicamente la virgen María la superaba en virtudes. Que el Sumo
Pontífice tardara en admitir una santidad tan evidente era – leí en los diarios – “una
afrenta a la fe del pueblo peronista”. (SE, p. 66)149
Um sinal de sua santidade é relatado pelas primas de Julio Alcaraz, o cabelereiro de
Evita. Relatam que tiveram uma visão de Evita como uma santa elevando-se sobre a multidão
ao final de seu pronunciamento no Cabildo Aberto em que se anunciaria sua candidatura à
Vice-presidência:
“Vimos su cutis de porcelana”, me dijo la del bócio; “le vimos los dedos largos
como de pianista, la aureola luminosa alrededor del pelo”... La interrumpí: “Evita no
tiene ningua aureola”, dije. “A mí no me podés vender ese boleto”. “Sí tiene”, porfió
la de nariz más grande. “Todos se la vimos. Al final, cuando se despidió, también la
vimos elevarse del palco un metro, metro y medio, quién sabe cuánto, se fue
elevando en el aire y la aureola se le notó clarísima, había que ser ciega para no
darse cuenta. (SE, p. 118)150
O narrador não oferece nenhuma explicação para esse evento. Não lhe dedica sequer
um comentário. Isto não significa que não tivesse importância, pois, se assim fosse, não
haveria porque inclui-lo na narrativa. O modo como é narrado, simplesmente mencionado,
sem explicação, aproxima-se das narrativas do maravilhoso, nas quais não se esclarecem os
eventos miraculosos que apenas acontecem, irrompem, gerando efeito no leitor que irá
interpretar os fatos a sua maneira. Não há explicação, não há um motivo. O maravilhoso
simplesmente está ali e dali opera seu propósito, sua intenção de comunicar desestabilizando
certezas, gerando despertamento e tomada de consciência de formas ou comportamentos que
podem estar automatizados e irrefletidos, já não mais percebidos, apenas presentes, repetidos
mecanicamente sem reflexão. Como característico da hagiografia, o maravilhoso “caracteriza-
se pela raridade e pelo espanto que suscita, em geral admirativo. Ele afeta primariamente o
olhar e implica qualquer coisa de visual” (LE GOFF, 2002, p. 106).
149 Em português: “Até sua santidade, com o tempo, foi se tornando um dogma de fé. Entre maio de 1952 ― dois
meses antes de sua morte ― e julho de 1954, o Vaticano recebeu quase quarenta mil cartas de fiéis atribuindo
diversos milagres a Evita e exigindo que o papa a canonizasse. O prefeito da Congregação para a Causa dos
Santos respondia todos os pedidos com as fórmulas de praxe: ‘Qualquer católico sabe que para ser santo é
preciso estar morto’. E depois, quando já estava sendo embalsamada: ‘Os processos são longos, centenários.
Tende paciência’. As cartas foram se tornando cada vez mais contundentes. Reclamavam de que, para se tornar
santa, Maria Goretti havia esperado somente quarenta e oito anos, e Teresa de Lisieux pouco mais de vinte e
cinco. Mais gritante, diziam, era o caso de santa Clara de Assis, a quem o impaciente Inocêncio IV queria
canonizar ainda no leito de morte. Evita merecia mais: somente a Virgem Maria a superava em virtudes. O fato
de o Sumo Pontífice demorar a admitir uma santidade tão evidente era ― foi o que li nos jornais ― ‘uma afronta
à fé do povo peronista’.” (p. 57).
150 Em português: “‘Vimos sua pele de porcelana’, disse a do bócio; ‘vimos seus dedos longos de pianista, a
auréola luminosa em volta do cabelo’... Eu a interrompi: ‘Evita não tem nenhuma auréola’, disse. ‘Comigo essa
não cola.’ ‘Tem sim, teimou a nariguda. ‘Todo mundo viu. No fim, na hora de se despedir, também vimos como
ela levitava sobre o palco, um metro, um metro e meio, sei lá quanto, foi subindo no ar e a auréola apareceu
direitinho, só sendo cega para não ver.’”
105
O culto ao qual pertence a relíquia sagrada que é o cadáver de Evita é político.
Destina-se a uma época específica de surgimento e auge de políticas de ascensão da classe
trabalhadora no cenário econômico da Argentina. É dirigido não só a Evita, mas a Perón,
como culto personalista, que aponta para um retorno místico, apropriado pelos Montoneros na
resistência à ditadura militar dos anos 1970. Evita multiplica-se: “Transfigurada en mito,
Evita era millones” (SE, p. 65).151
3.5 Modo de narrar: autoficção, metáfora animal e alegoria da história
Em História e ficção em Santa Evita (CLÍMACO, 2014, p. 107), identifiquei como um
dos elementos ficcionalizadores da história a apresentação do narrador como autor e
personagem do romance. Na ocasião, embora não tenha tratado o assunto como autoficção,
observei como o narrador homônimo do autor revela-se no terceiro capítulo da obra, momento
em que a narrativa passa a ser feita em primeira pessoa:
A inclusão do “eu”, ou seja, da primeira pessoa do singular, é um indício da
ficcionalização da história. Afinal, no texto histórico, o “eu” é proscrito, desaparece,
exclui-se a personalidade do historiador que se ofusca [...]. (CLÍMACO, 2014, p.
109)
SE não é uma autoficção, mas a contém em meio ao seu hibridismo. Na autoficção, o
narrador não conta apenas a vida que viveu, mas pode imaginar muitas vidas possíveis,
narrando não só o que foi, mas também o que poderia haver sido (ALBERCA, 2007, p. 33).
Isto entabula tentativas de entender o real, segundo Alberca (2007, p. 13), permite vê-lo na
encruzilhada entre o verdadeiro e o fingido.
O narrador de SE impressiona-se com os relatos sobre os malefícios que se abatiam
sobre os que se aproximam do cadáver de Evita. Conta duas advertências que recebe: uma da
viúva do Coronel Moori Koenig, quando a entrevista e a outra do filho de Raimundo Massa
que lhe escreve: “Si usted me andaba buscando, ya no me busque. Si usted va a contar la
historia, tenga cuidado. Cuando empiece a contarla, no va a tener salvación.” (SE, p. 77).152
Embora decida não se deixar levar por superstições, o narrador imagina que Evita
passa a rondá-lo. Pergunta-se: “¿Yo busco a Evita o Evita me busca a mí?” (SE, p. 203).153
151 Em português: “Transfigurada em mito, Evita era milhões” (p. 57).
152 Em português: “Se o senhor estava me procurando, não procure mais. Se vai contar a história, tenha cuidado.
Quando começar a contá-la, não vai ter mais salvação” (p. 66).
153 Em português: “Eu estou atrás de Evita ou é Evita quem está atrás de mim?” (p. 176)
106
Apresenta a ideia da narrativa como detentora de um poder curativo, ou seria apenas um
milagre de “Santa” Evita o que o faz curar-se da depressão que sofria, chegando a estar
acamado. O que o levantou da cama foi a história de Evita. Quando recebeu o telefonema do
militar que queria lhe contar o que havia acontecido ao corpo, sentiu que recuperava o ânimo:
“Con alivio, advertí que mi depresión estava retirándose sola. Volví a ver la realidad como un
vasto presente donde todo, por fin, es posible” (SE. p. 388).154
Na autoficção presente no romance analisado, o narrador personagem constrói-se
como um indivíduo que narra não apenas a história do corpo embalsamado de Evita, mas
também sua experiência pessoal com o mito que descreve, além de sua transformação ao
longo do processo de investigação e escrita. Sua experiência não é narrada como a verdade
sobre Evita, mas como uma das possíveis versões que permitem compreender sua história,
através da representação hagiográfica.
Associada ao maravilhoso e ao hagiográfico no modo de narrar de SE é perceptível a
metáfora animal. Para sua abordagem, lanço mão da reflexão de Marcuschi (2000) sobre
metáfora e de Ferreira (2005) sobre metáfora animal. Para Marcuschi (2000, p. 75), a
metáfora está relacionada à teoria do conhecimento:
não é apenas um simples recurso linguístico catalogado entre os tropos ou figuras de
linguagem, mas um modo específico de conhecer o mundo, que, ao lado do
conhecimento lógico-racional, tem sua razão de ser e instaura uma série de valores
de outra maneira perdidos ou não entendidos. (grifo do autor)
Esclarece ainda o autor que a metáfora é mais que uma transferência de significado ou
uma comparação abreviada, podendo ser, do ponto de vista operacional, um instrumento para
analisar a capacidade criativa de alguém, mas do ponto de vista psicológico, a criação de
novos universos de conhecimento, pois criaria uma realidade nova (MARCUSCHI, 2000, p.
75).
Considerando que a metáfora surge no campo da linguagem, mas não permanece
neste, pois cria uma realidade nova não necessariamente linguística, Marcuschi a define como
um modo novo de conhecer e comunicar o mundo assim conhecido. De certo modo, é um
recurso que reestrutura da realidade, cria novas áreas de experiência que fogem ao indivíduo
vinculado a sua realidade puramente factual. As expressões metafóricas sugerem aspectos que
as palavras em seu “significado literal” não podem apresentar (MARCUSCHI, 2000, p. 81).
Para o autor, a metáfora funda a comparação. Isto porque sugere um conhecimento novo
154 Em português: “Com alívio, notei que minha depressão estava recuando sozinha. Voltei a ver a realidade
como um vastro presente onde tudo, por fim, era possível” (p. 333).
107
fornecido por uma intuição e por um pensamento que não se baseia em comparação alguma,
nem segue uma lógica (ibdem, p. 85).
Especificamente, quanto à metáfora animal, Ferreira (2005) aponta que, na literatura,
tais metáforas seguem posicionamento antropocêntrico sob influência das ideologias
segregacionistas (que separam seres humanos e animais), tomando os animais como
empréstimo para explicar pessoas, suas características físicas, emocionais, ou
comportamentos. Muitas obras seguem a velha tradição de retratar uma pessoa como animal
para revelar mais claramente um aspecto de seu caráter.
A partir destas reflexões, analiso o uso da imagem da borboleta não apenas como
símbolo de Evita e de sua metamorfose na representação elaborada no romance, mas como o
próprio modo de narrar deste, visto que o narrador, metaficcionalmente, declara sua opção de
realizar a narrativa como a borboleta com a qual sonhara e, assim, relativiza os limites entre
história e ficção. Esse tratamento da metáfora animal parece indicar a ultrapassagem do
antropocentrismo geralmente registrado na representação literária dos animais.
Não é fácil a leitura de SE. No entanto, isso não a faz ser pouco prazerosa. Sua
complexidade, fruto de seu hibridismo genérico manifesto num plano geral relacionado ao
tema – ficção e história – e, no plano específico, da mescla de gêneros textuais diversos, como
cartas, entrevistas, depoimentos, dentre outros, instiga a imaginação do leitor. Além disso, seu
modo de narrar contribui para tornar esse romance complexo. Vários aspectos aí confluem: a
dupla temporalidade da narrativa – a morte para a frente (as aventuras pelas quais passa o
cadáver embalsamado de Evita) e a vida para trás (sua biografia); o autor que se inclui como
narrador e personagem; a ficcionalização da história e o efeito de historicidade e, por fim, a
presença da metáfora animal.
Dois insetos são mencionados na história narrada: abelha e borboleta, apresentados de
forma coletiva e individual, respectivamente. As abelhas surgem no momento em que o
Coronel Moori Koenig, após ser designado para cuidar da operação de sequestro e ocultação
do cadáver, combina encontrar-se com a mãe da ex-Primeira Dama, Juana Ibarguren, para lhe
comunicar que o Exército se encarregaria do corpo. No momento seguinte à conversa
telefônica em que acertam o encontro, o Coronel aproxima-se das janelas do seu escritório.
Verifica, com surpresa, a presença de abelhas nas copas das árvores (SE, p. 121).
O narrador informa que Juana igualmente surpreendeu-se com as abelhas que enchem
seu jardim: “La madre había salido a respirar el aire de la mañana y de pronto descubrió en lo
108
alto el zigzagueo del enjambre. Regresó a la casa para contar el prodigio [...]” (SE, p. 121).155
Enquanto conversam, o Coronel comenta com Juana o zumbido das abelhas e diz que é
estranho e, além disso, manifesta estranheza ao constatar que a rádio não menciona esse
fenômeno por ele chamado de praga (SE, p. 130).
Avançando a narrativa, no momento em que uma das cópias do corpo de Evita, sob o
pseudônimo de María M. de Magaldi, é enterrada por Arancibia (o Louco), no cemitério da
Chacarita, ouve-se o zumbido das abelhas na escuridão (SE, p. 172). Em outra situação,
quando o Coronel e o Louco estão no caminhão que guarda provisoriamente o cadáver,
vigiando para que o Comando da Vingança não os surpreenda durante a noite, ouvem seu
zumbido agudo. O Coronel diz que as abelhas foram atraídas pelas flores, no entanto o Louco
lembra-lhe que não há flores onde estão. Procuram as abelhas, mas não as encontram. O
Coronel acaba cochilando. É despertado pelas vozes do lado de fora, comandadas por
Galarza. Ao abrir a porta do caminhão, vê, sob o chassis, as velas acesas e as flores colocadas
pelo Comando da Vingança (SE, p. 211-212).
Para o Coronel, as abelhas estão associadas à perturbação que sente crescer em seu
íntimo devido às dificuldades da operação que coordena, as várias vezes em que precisa
mudar de lugar o corpo de Evita que, embora seja escondido, sempre aparece rodeado por
flores e velas a mando de um grupo que não se revela claramente e que se apresenta sob o
sugestivo nome de Comando da Vingança. Além da possibilidade de ser descoberto e de vir a
ser objeto dessa vingança, começa a perturbá-lo a intrigante forma como o Comando da
Vingança sempre descobre o paradeiro do corpo de Evita.
As passagens em que as abelhas são mencionadas destacam o zumbido do enxame.
Podemos pensar no quanto esse som persistente é incômodo. Ao mesmo tempo, podemos
também lembrar-nos que abelhas não têm por hábito estar fora da colmeia, a não ser que seja
em busca de alimentos, ou seja, há algo que igualmente as incomoda.
No Dicionário de símbolos, de Chevalier e Gheerbrant (2011), a abelha representa o
trabalho incansável, nas suas formas coletiva e individual, caracterizado pela disciplina e
organização. Para os egípcios antigos, as abelhas estavam relacionadas ao Sol, pois teriam
nascido das lágrimas de Rá, o deus do Sol, ao caírem sobre a Terra. A abelha simboliza a
alma e o verbo, a poesia, a eloquência e a inteligência. Se por um lado, causam dor, devido ao
ferrão, por outro, prazer, com o mel. É possível, portanto, afirmar que as abelhas representam
o Comando da Vingança em seu incansável labor de, secreta e sorrateiramente, obter
155 Em português: “A mãe tinha saído para respirar o ar da manhã e de repente descobriu acima dela o
ziguezague do enxame. Entrou na casa para contar o prodígio [...]” (p. 106).
109
informações precisas sobre as ações dos militares encarregados de esconder o cadáver de
Evita. Esse comando é uma presença não revelada, mas incômoda, como o constante zumbido
das abelhas.
A utilização de animais para representar seres humanos, ou ações humanas, é comum
na literatura. Isso configura um aspecto da chamada representação antropomórfica dos
animais em textos literários, como observado por Ferreira (2005), que indica como a literatura
tem tomado o animal de empréstimo para explicar o humano. No entanto, outra presença
animal em SE parece indicar a ultrapassagem de uma mera representação humana: tem-se no
modo de narrar uma alegoria animal, ou seja, um inseto, a borboleta, além de representar
Evita, designa o modo como a narrativa se dá, ou seja, o movimento das asas em
descompasso: uma se move para frente, a história da morte de Evita; a outra se move para
trás, sua biografia.
A borboleta é metáfora de Evita, pois o narrador declara que a contaria como uma
borboleta. Associar a mulher à borboleta é frequente na literatura e em outras artes. Segundo
Chevalier e Gheerbrant (2007, p. 138-139), por sua graça e ligeireza, a borboleta é um
emblema da mulher e simboliza também a inconstância. Importa destacar como as
metamorfoses pelas quais passa também são aspectos produtivos de seu simbolismo: a
crisálida é o ovo que contém a potencialidade do ser; a borboleta que sai dele é um símbolo de
ressurreição. A borboleta é associada analogicamente à chama, pela presença de suas cores e
do bater de suas asas. Pode ser também a forma assumida pela alma ao deixar o corpo dos
mortos, segundo uma crença popular da Antiguidade greco-romana. A metáfora da borboleta
aplicada a Evita revela-se perfeita, justamente pela transformação radical que experimentou
em sua vida. De moça pobre, sem instrução nem grandes atrativos, como é descrita pelos que
a conheceram nos seus primeiros tempos em Buenos Aires, chegou ao posto de Primeira
Dama, considerada de grande beleza e ícone da moda. Sua metamorfose é destacada em SE:
quando chegou a Buenos Aires, em 1935,
era entonces nada o menos que nada: un gorrión de lavadero, un caramelo
mordido, tan delgadita que daba lástima. Se fue volvendo hermosa con la
pasión, con la memoria y con la muerte. Se tejió a sí misma una crisálida de
beleza, fue empollándose reina, quién lo hubiera creído. (SE, p. 11)156
156 Em português: “Naquela época ela era nada ou menos que nada: um pardal ciscando migalhas, uma bala
cuspida, tão magrinha que dava até pena. Foi ficando linda com a paixão, com a memória e com a morte. Teceu
para si mesma uma crisálida de beleza, foi incubando-se rainha, quem diria” (p. 11).
110
Evita passou por transformação, da mesma forma que a lagarta se metamorfoseia para
se tornar borboleta. Este é um esforço solitário, empreendido pela lagarta sem auxílio.
Quando aplica a Evita a metáfora da borboleta, o narrador leva o leitor a considerar seu
caráter autônomo (CLÍMACO, 2014, p. 116).
Além de representar Evita, a metáfora animal constitui o próprio modo de narrar do
romance, transformando-se em alegoria deste. O narrador relata o sonho que teve e como esse
sonho deu-lhe a forma da narrativa:
Pasaron algunas noches y soñé con Ella. Era una enorme mariposa
suspendida en la eternidad de un cielo sin viento. Un ala negra se henchía
hacia adelante, sobre un desierto de catedrales y cementerios; la otra ala era
amarilla y volaba hacia atrás, dejando caer escamas en las que fulguraban los
paisajes de su vida en un orden inverso al de la historia […]. (SE, p. 65)157
Segundo o narrador, o romance parece as asas da borboleta sonhada, com a história da
morte caminhando para a frente, e a da vida avançando para trás (SE, p. 65).
Metaficcionalmente, o romance apresenta discussão sobre sua própria elaboração. A partir da
descrição do funcionamento das asas da borboleta vislumbrada em sonho, o narrador dá a
entender, exemplificando, o modo como se dá sua narrativa. Mas, afinal, o que significa dizer
que uma narrativa se parece com uma borboleta imóvel no ar, embora esteja voando? A
resposta podemos vislumbrar em Walter Benjamin (1987), em sua nona tese sobre a História.
Ao comentar o quadro de Paul Klee, Angelus Novus, Benjamin faz uma alegoria da história,
comparando o anjo que ali está representado com o que seria o anjo da história. Este olharia,
da mesma forma que o do quadro, para o passado, enquanto voasse para o futuro, impelido
por uma tempestade, enquanto o progresso faria crescer sob seus pés um amontoado de
escombros. Vida e morte. Passado e futuro. As teses de Benjamin revelam seu pessimismo
com o modo de narrar da história e propõem uma nova maneira de contá-la, de forma que esta
tivesse correspondência com o presente, sem a necessidade da clausura da linearidade
temporal dos eventos.
SE é, portanto, construído mesclando romance história e ficção, com tempos
sobrepostos, idas e vindas, para não apenas contar aos leitores a biografia de María Eva
Duarte de Perón, Evita, mas também para discutir a história e a historiografia. O romance não
se constitui por si só numa refutação do discurso histórico, mas apresenta outras versões para
157 Em português: “Passaram-se algumas noites e sonhei com Ela. Era uma enorme mariposa pairando na
eternidade de um céu sem vento. Uma asa preta lançava-se para a frente, sobre um deserto de catedrais e
cemitérios; a outra asa era amarela e voava para trás, deixando cair as escamas onde refulgiam as paisagens de
sua vida em uma ordem inversa à da história [...]” (p. 56).
111
os fatos, considerando a história não como pronta, dada, natural, e sim em elaboração, uma
construção, produto de cultura.
Martínez narrador, como um historiador alegorista, vai além das fontes ditas oficiais
para narrar sua versão da história. Apresenta outras versões, convoca personagens,
testemunhas outras para, por meio delas, fazer surgir diferentes possibilidades de
compreensão dos eventos narrados. Um exemplo é a entrevista com o cabeleireiro de Evita,
Julio Alcaraz, autor do famoso penteado de sua imagem imortalizada com os cabelos louros
presos em um coque. Para não apoiar-se apenas em história oral, o narrador informa que as
memórias de Alcaraz são confirmadas pelo acervo que guardava numa pequena sala nos
fundos de seu salão de beleza. Esta sala possuía as paredes revestidas de espelhos o que
permite ao narrador uma digressão a respeito de uma metáfora com Evita que estava destinada
a ser milhares ou sobre a escrita da história, um presságio de que a mesma realidade iria
repetir-se várias vezes, sucessivamente (SE, p. 83).
Ao terminar de transcrever o relato de Alcaraz, Martínez narrador reflete
metaficcionalmente sobre o relato dos fatos, concluindo que a realidade não se pode contar
nem repetir, apenas inventá-la novamente. Pensava que ao fim da transcrição, teria toda a
história, mas se deu conta de que era letra morta. Busca em documentos o que aconteceu, mas
não encontra Evita: “En esa parva inútil de documentos, Evita nunca era Evita” (SE, p. 98).158
Por isso, decide dar a ela o seu lugar na história, através da criação ficcional. Escreve um
roteiro cinematográfico de um documentário tentando reconstruir a história da sua candidatura
frustrada à Vice-presidência do país. Diz que quer a verdade em seu relato: “En aquel tempo,
el aleteo de la verdade era essencial para mí. Y no había verdade posible si Evita no estaba
allí.” (SE, p. 98).159 Em seu desejo de apresentar uma versão verdadeira, queria que alguém
pudesse confirmar os fatos que narra ou que lhe ajudasse a ajustá-los para que coincidissem
com alguma ilusão de verdade. Lembrou-se de Alcaraz (SE, p. 98).
Na discussão a respeito do roteiro, o cabeleireiro lhe esclarece vários pontos, com sua
autoridade de testemunha ocular e aprova sua escrita: “Lo que usted ha escrito está bien, qué
quiere que le diga. Hizo lo que pudo. Es la historia oficial. La otra no está filmada. Está fuera
158 Em português: “Naquela montanha inútil de documentos, Evita nunca era Evita” (p. 85).
159 Em português: “Naquele tempo, a pulsação da verdade era algo essencial para mim. E não havia verdade
possível se Evita não estivesse ali” (p. 85).
112
del cine. Y ni siquiera se podría inventar, porque la atriz principal ha muerto” (SE, p. 115).160
Chama a atenção nesse ponto a afirmação da existência de outra história paralela a oficial.
E se o diálogo entre Alcaraz e Martínez narrador roteirista parece ter se encerrado no
restaurante – espaço público –, quando Martínez está no banheiro – espaço privado – Alcaraz
ali entra e lhe diz que falta algo ao filme, o principal, algo que só ele viu (SE, p. 115). Saem
do banheiro e do restaurante, e enquanto caminham, Alcaraz lhe conta o que aconteceu depois
do Cabildo Abierto, na residência presidencial, narra os bastidores da história, algo próprio do
âmbito privado. Neste ponto, Martínez narrador opta por outra vez deixar o relato de Alcaraz
correr livremente: Perón e Evita discutem fortemente, pois ele quer que ela renuncie à
candidatura que aparentemente acabou de aceitar. Ela se recusa. Ele lhe joga no rosto,
rudemente, sua doença, o câncer do qual, até o momento, ela não tinha conhecimento e que,
fatalmente, a impedirá de assumir o compromisso de concorrer à Vice-presidência.
A história buscada não está nas imagens documentais, não está nas entrevistas oficiais,
nem nos documentos analisados pelo narrador. Está na memória do cabelereiro de Evita, que
a conheceu na intimidade e pode, por isso, testemunhar sem que o vissem e o percebessem, o
que de fato aconteceu. Esta memória é ativada a partir da discussão do roteiro que, a partir de
agora, deixa de importar para o narrador, pois já cumpriu seu propósito. Sua opção por narrar
o acontecido fora da discussão do roteiro, parece indicar que queria manter o que realmente
ocorreu fora dos holofotes, longe das explicações oficiais.
Verifica-se em SE o caráter hagiográfico da narração sobre Eva Perón, narração esta
que centraliza o cadáver como símbolo do mito de Evita, enfatizando-se os elementos que
permitiram sua ascensão no ideário político peronista desde sua origem humilde. Ao mesclar
história e ficção, o romance busca não apenas relativizar os limites entre estes dois campos,
mas possibilita intento de compreender o fenômeno político Evita com maior liberdade na
elaboração ficcional que alegoriza a história do que seria possível numa reflexão sociológica
ou histórica, campos em que a imaginação criativa está submetida a maior ordenamento e
controle. Concluída a análise da representação hagiográfica de Eva Perón em SE, passo à
reflexão sobre sua representação política em EJSV.
160 Em português: “Esse seu roteiro até que não está mal. O senhor fez o possível. É a história oficial. A outra
não foi filmada. Está fora do cinema. E nem pode ser inventada, pois a atriz principal está morta” (p. 100),
113
4. REPRESENTAÇÃO POLÍTICA DE EVA PERÓN
Escrita pelo historiador Felipe Pigna e publicada no ano do sexagésimo aniversário de
falecimento de Evita, a biografia EJSV (2012), tem como objetivo, declarado em prefácio,
contar, de modo detalhado e analítico, a vida de uma mulher que se converteu em uma das
figuras célebres da humanidade. Pigna distingue o tratamento que faz do tema de outros já
realizados. Segundo ele, muitos autores a subestimaram, estudando-a de modo folclórico, no
entanto seu objetivo é demonstrar que Eva Perón foi um sujeito político que compartilhou
com Perón a liderança carismática do peronismo (EJSV, p. 9).
Considero as principais peculiaridades deste texto o fato de se construir como
biografia não ficcional e de ter sido escrita por um historiador, diferente do romance e da
autobiografia analisados, o que se torna um elemento possibilitador do efeito de historicidade,
além dos vários outros que a tessitura apresenta, como veremos mais adiante.
Analiso, portanto, nesta biografia que apresenta uma representação política de Eva
Perón, as relações entre história e ficção. Para tal, discuto os elementos criadores do efeito de
historicidade e os que revelam a ficcionalização da história.161
4.1 Efeito de historicidade em EJSV
Em EJSV (2012), o efeito de historicidade manifesta-se através de elementos como:
cronologização; contextualização; conceitualização; discussão das fontes e versões e autoria
do historiador.162 A cronologização refere-se à classificação dos acontecimentos na ordem do
tempo, periodizando, ou seja, recortando-o em períodos, permitindo refletir sobre a
continuidade e a ruptura. Através da contextualização, o historiador situa o biografado em
meio aos acontecimentos de seu tempo, expondo o cenário de sua atuação como sujeito
histórico relacionado a outros personagens e eventos históricos. A conceitualização é a
operação pela qual o historiador elabora definições ou recorre a conceitos já existentes,
aplicando-os em sua organização textual da história. Com isto, faz-se necessário ao trabalho
historiográfico apresentar e discutir fontes e versões de outros historiadores sobre os fatos que
161 Como já mencionado, a análise apresenta outros procedimentos relativizadores dos limites entre história e
ficção de modo a complementar a pesquisa efetuada na dissertação de mestrado e publicada sob o título História
e ficção em Santa Evita (2014).
162 Elementos discutidos no tópico “O efeito de historicidade”, no Capítulo 1 desta tese, “Entre a história e a
ficção”.
114
narra, fundamentando sua seleção particular. Estes são os elementos textuais relativos à
criação do efeito de historicidade. A esta pesquisa interessa também refletir sobre um
elemento extratextual de historicidade que consiste na autoria do historiador.
4.1.1 De “Cholita” a “Esa mujer”: cronologização da biografia de Eva Perón
Uma característica do texto biográfico é o tratamento linear do tempo. Isto se verifica
em EJSV que apresenta a cronologia de Eva Perón através da elaboração de uma periodização
que nomeia os capítulos a partir da identificação de rupturas: “Cholita”, “Eva Duarte”, “Eva
Perón”, “El viaje del Arco Iris” [A viagem do Arco Íris], “La compañera Evita” [A
companheira Evita], “Evita, La eterna vigia” [Evita, a eterna vigia] e, por fim, “Esa mujer”
[Essa mulher].
A representação de Eva Perón elaborada por Pigna organiza-se de modo cronológico,
o que ajuda a transmitir um sentido de desenvolvimento. Isto é próprio do gênero biográfico
que visa a apresentar a vida em suas fases como, no dizer de Arfuch (2010, p. 159), “viagem
temporal e suas estações obrigatórias: a infância, a juventude, a maturidade, a morte”.
O primeiro capítulo trata de sua infância, de seu nascimento, em 1919, em Los Toldos,
até sua ida definitiva para Buenos Aires, em 1935, em busca do sonho de ser atriz. A palavra
“Cholita” que nomeia o capítulo é o seu apelido familiar de infância (EJSV, p. 15). O capítulo
discute sua condição de “filha natural” não reconhecida pelo pai, fruto de uma relação de
concubinato de Juan Duarte com Juana Ibarguren que gerou no total cinco filhos. O fato de
ser filha natural a fez passar por várias situações difíceis de discriminação e marginalização,
segundo a moral da época, e isto a teria marcado profundamente (EJSV, p. 19). Outra
circunstância marcante em sua infância foi a pobreza enfrentada por sua família. Pigna cita a
autobiografia de Eva Perón, LRMV, para fundamentar o quanto a pobreza foi uma marca
indelével para ela. Além disso, aproxima Eva de outros milhões de crianças argentinas da
época que enfrentavam a desigualdade social: “El Estado de entonces estaba muy lejos de ser
benefactor, y para todos regían las leyes de mercado, con sus pocas ofertas y todas las
demandas” (EJSV, p. 20).163
Relata a mudança da família de Los Toldos para Junín tentando fugir da crise
econômica. Em Junín, sua irmã, Elisa, era empregada dos correios e sua mãe, costureira. Ali,
Eva começa a dar sinais de sua vocação artística nas brincadeiras com seus irmãos, pintando o
163 Tradução nossa: “O Estado de então estava muito longe de ser benfeitor, e para todos regiam as leis de
mercado, com suas poucas ofertas e todas as suas demandas.”
115
rosto ou fantasiando-se e colecionava fotografias de suas atrizes preferidas. Gostava de recitar
poemas e escutar rádio: “La radio la hacía soñar; se imaginaba triunfando en algún teatro de
Buenos Aires, se iba de la miseria del día a día, hasta que la realidad la volvía a dejar en su
casa” (EJSV, p. 29).164
Viaja a Buenos Aires pela primeira vez, com sua mãe, em 1933, para fazer um teste na
Radio Belgrano. Não obtém êxito, mas a viagem à cidade grande lhe causou forte impressão
(EJSV, p. 30). Ajudada por sua filha Blanca, Juana Ibargurem abre uma pensão na qual serve
refeições para aumentar a renda famíliar (EJSV, p. 31). Isto amplia a rede social da família,
duas de suas irmãs casam-se com comensais habituais. Pigna registra o debut de Eva como
recitadora na rádio e seu primeiro namoro (EJSV, p. 32). Indica também sua mudança sozinha
para Buenos Aires, onde a esperava seu irmão, Juan, descartando as hipóteses que alegam que
teria partido acompanhada:
Eva llegaba a Buenos Aires con una pequena valija y enormes sueños de triunfar, de
ser actriz, de ser ella la que apareciera en las tapas de Sintonía y las revistas que
alimentaban su fantasia desde que tenía uso de ilusión. Tenía quince años y una vida
por estrenar.
[…]
Era flaquita, de un pelo negro muy corto que enmarcaba unos bellos ojos negros de
mirada triste y curiosa a la vez. Llegaba dispuesta a conquistar la gran ciudad. Su
fértil imaginación no le alcanzaba para percibir hasta donde llegaría aquella
conquista. (EJSV, p. 33, 34)165
O capítulo dois, “Eva Duarte”, apresenta o início de sua carreira em Buenos Aires e as
dificuldades que enfrentou, inclusive para se alimentar. Estreia no teatro em março de 1935,
na peça La señora de Pérez, no papel de uma mucama. Recebeu uma crítica de uma linha no
diário Crítica, em Buenos Aires: “muy correcta en su breve intervención Eva Duarte”166 e
outra mais extensa num periódico de Junín que saudou a conterrânea (EJSV, p. 39).
Pigna, dando sinais da representação de Eva como mulher que teve vários amores,
menciona seus amantes. Além disso, narra as várias companhias de teatro pelas quais Eva
passou, destacando as dificuldades financeiras que enfrentou (EJSV, p. 48).
164 Tradução nossa: “A rádio a fazia sonhar; imaginava-se triunfando em algum teatro de Buenos Aires, saía da
miséria do dia a dia, até que a realidade a fazia voltar para casa”.
165 Tradução nossa: “Eva chegava a Buenos Aires com uma pequena valise e enormes sonhos de triunfar, de ser
atriz, de ser ela a que aparecia nas capas de Sintonia e das revistas que alimentavam sua fantasia desde começou
a sonhar. Tinha quinze anos e uma vida por estrear.
[...]
Era magrinha, de um cabelo muito curto que emoldurava uns belos olhos negros de olhar triste e curioso por vez.
Chegava disposta a conquistar a cidade grande. Sua imaginação fértil não chegava a perceber até onde chegaria
aquela conquista”.
166 Tradução nossa: “Muito correta em sua breve intervenção Eva Duarte”.
116
A primeira atividade política de Eva é assinalada com a informação de sua
participação na fundação de uma entidade gremial que defendia os interesses dos
trabalhadores da radiofonia, a Associação Radial Argentina, em 1943 (EJSV, p. 69). Na rádio,
começa a interpretar uma série de mulheres importantes da história naquele que foi, segundo
Pigna, o melhor contrato de sua carreira, isto porque os libretos, pela primeira vez, eram
escritos para ela (EJSV, p. 70). O fato de ter interpretado mulheres históricas é vez ou outra
tomado como um dos influenciadores de sua atuação política futura.
Finalmente, o capítulo menciona o encontro entre Eva Duarte e Juan Perón por ocasião
de atividade artística beneficente em prol das vítimas do terremoto de San Juan (1944). Este é
um ponto de ruptura para a passagem ao capítulo seguinte, “Eva Perón”, no qual narra as
transformações vividas por Eva após conhecer Perón e se tornar sua esposa. Na ocasião,
Perón era ministro de Guerra e ajudou a respaldá-la em sua carreira. Começam a morar juntos.
O relacionamento de ambos não é bem visto pelos oficiais das forças armadas.
Eva começa um programa de rádio para exaltar o governo, em geral, e a Perón, em
particular: “Cada emisión tomaba un tema identificado con la orientación del gobierno o,
mejor dicho, de Perón” (EJSV, p. 86).167 Tal programa de rádio passa a ser emitido pela rádio
estatal, o que aumenta sua difusão. Com isto, começa a construir-se uma imagem de Eva
através de seus discursos. Em alguns deles, a fala de Eva era entremeada à de Perón cuja
figura se exaltava (EJSV, p. 87).
Pigna narra os alvores do Peronismo. A partir do seu intenso trabalho na Secretaria de
Trabalho e Previsão, Perón ganha popularidade (EJSV, p. 96). Cresce também a oposição a
ele (EJSV, p. 99) que é forçado a renunciar e preso em outubro de 1945 (EJSV, p. 101). Eva
entra na política nessas circunstâncias, ao mesmo tempo em que é convertida em pária social,
com o cancelamento de seus contratos. O historiador relata o episódio de uma agressão que
ela sofreu e que foi por ela entendido como um batismo de dor (EJSV, p. 105).
Após sua libertação com intensa participação popular, Perón e Eva decidem se casar
(EJSV, p. 113), e “tras los hechos del 17 de octubre y su casamento con Perón, Eva se metió
de lleno en la política respaldando a su marido” (EJSV, p. 116).168 Pigna dá informações
167 Tradução nossa: “Cada emissão abordava um tema identificado com a orientação do governo ou, melhor dito,
de Perón”.
168 Tradução nossa: “depois dos fatos do 17 de outubro e seu casamento com Perón, Eva entrou de cheio na
política respaldando seu marido”.
117
sobre a campanha de Perón à presidência da nação, destacando que é a primeira vez que uma
mulher acompanha o marido em campanha.
Perón é vitorioso (EJSV, p. 121). Após a divulgação dos resultados das eleições, Eva
faz seu primeiro discurso político, agradecendo o apoio feminino na campanha e anunciando
seu desejo de lutar pelo direito das mulheres ao voto (EJSV, p. 122). Uma função tradicional
da primeira dama era assumir os trabalhos de beneficência, no entanto Eva desenvolve a ideia
de ajuda social: “Evita decidió cortar por lo sano e iniciar por su cuenta la tarea, no de
“beneficencia” sino de solidaridad y ayuda social” (EJSV, p. 126).169
Pigna cita relato de Perón de, que contra sua vontade, Eva transforma-se numa mulher
da política:
Yo nunca quise que Evita se transformara alguna vez em uma mujer “de la política”.
Ella era mi mujer y como tal “hacía” política. (...) Evita terminó de uma vez y para
siempre con la imagen passiva de la mujer en la historia argentina, y lo hizo desde el
sitio más encumbrado al que puede aspirar una mujer, que es el de primera dama,
porque demostró no sólo que la pasividad nos es sinónimo de virtud sino que ese
puesto de primera dama debe ser una extensión de la obra política del gobierno. (...)
Digámoslo así: gracias que estuve yo para moderar su ímpetu que, a pesar de todo,
en muchas ocasiones me superó. (EJSV, p. 128)170
O quarto capítulo, “El viaje del Arco Iris”, narra a viagem de três meses que fez à
Europa, em 1947, representando Perón e como esta modificou sua vida. A jornada começa
pela Espanha, a partir de convite feito pelo general Franco que havia firmado acordos
econômicos com a Argentina. Pigna comenta que, entre os membros da comitiva de Eva,
estava o jornalista e escritor Francisco Muñoz Azpiri, que havia sido guionista da série
“Mujeres ilustres” que Eva havia interpretado no radioteatro, para que colaborasse na
elaboração dos seus discursos (EJSV, p. 137). É possível, a partir deste fato, verificar o
quanto estavam relacionados representação teatral e política para Eva, como se desempenhar
um papel ainda estivesse em suas funções.
O capítulo seguinte, “La compañera Evita”, narra a transformação de Eva em Evita, ou
seja, a protetora dos descamisados e grasitas, dos trabalhadores e do povo humilde argentino:
Evita estaba de vuelta en el país y como se lo había prometido a sus descamisados a
su llegada de la Gira del Arco Iris, el lunes ya estaba trabajando en la Secretaría,
169 Tradução nossa: “Evita decidiu tomar medidas drásticas e iniciar por sua conta a tarefa, não de ‘beneficência’,
mas de solidariedade e ajuda social”.
170 Tradução nossa: “Eu nunca quis que Evita se transformasse numa mulher ‘da política’. Ela era minha mulher
e como tal ‘fazia’ política. [...] Evita acabou de uma vez por todas com a imagem passiva da mulher na história
argentina, e o fez desde o lugar mais alto ao qual pode aspirar uma mulher, o de primeira dama, porque
demonstrou não somente que a passividade não é sinônimo de virtude senão que esse posto de primeira dama
deve ser uma extensão da obra política do governo. [...] Digamos assim: ainda bem que eu estava lá para modelar
seu ímpeto que, apesar de tudo, em muitas ocasiões me superou”.
118
atendiendo a la gente personalmente durante interminables jornadas. Algo había
cambiado en ella. Comenzaba a darle más importancia a generar y ocupar un lugar
en la política, y por ende en la historia, que a competir en lujos, elegancia y
reconocimiento con las damas de “alta sociedad”. De ser la señora María Eva Duarte
de Perón se convertía en la compañera Evita. (EJSV, p. 179).171
Pigna destaca que essa mudança, embora sempre mencionada, não era a principal: “el
cambio sustancial estaba en assumir el papel de portavoz del peronismo y, más aún de los
trabajadores y los humildes de la Argentina” (EJSV, p. 179).172 Para Pigna, havia começado
sua transformação em dirigente política, tanto no discurso como em sua recheada agenda de
atividades (EJSV, p. 180). O historiador defende a tese segundo a qual
la transformación de Eva Duarte de Perón en Evita, su coliderazgo del peronismo y
su transformación no sólo en su abanderada sino en su símbolo, fue parte esencial de
la construcción de la Argentina peronista en esos años. (EJSV, p. 182)173
Outro ponto importante da atuação política de Evita destacado por Pigna o manejo por
parte desta de dois dos três ramos do peronismo: o Partido Peronista Feminino e a
Confederação Geral do Trabalho (EJSV, p. 206). O terceiro era o Partido Peronista Masculino
presidido por Perón.
Em meio à sua frenética atividade política, Evita recebe o diagnóstico de câncer de
útero em 1950 e, de acordo com Pigna, comete um erro fatal ao recusar submeter-se a
cirurgia: “Su salud fue empeorando mientras se obstinaba en negarse a aceptar lo inevitable:
encarar seriamente el tratamiento de su gravísima enfermedad. Comenzaba la lucha más
desigual entre Evita y un enemigo” (EJSV, 246).174
O sexto capítulo, “Evita”, trata do avanço de sua enfermidade e da quase candidatura à
vice-presidência da nação. Evita é caracterizada como uma paciente rebelde que rejeita o
tratamento (EJSV, p. 251). Surge a ideia de sua candidatura à vice-presidência (EJSV, p.
256). Sua atividade política segue intensa e, com as aulas de História do Peronismo, na Escola
171 Tradução nossa: “Evita estava de volta no país e como havia prometido a seus descamisados na sua chegada
da Volta do Arco Íris, na segunda-feira já estava trabalhando na Secretaria, atendendo às pessoas pessoalmente
durante intermináveis jornadas. Algo havia mudado nela. Começava a dar mais importância a gerar e ocupar um
lugar na política, e por extensão na história, que a competir em luxos, elegância e reconhecimento com as damas
da ‘alta sociedade’. Da senhora María Eva Duarte de Perón se converteria na companheira Evita”.
172 Tradução nossa: “a mudança substancial estava em assumir o papel de portavoz do peronismo e, mais ainda
dos trabalhadores e dos humildes da Argentina”.
173 Tradução nossa: “a transformação de Eva Duarte de Perón em Evita, sua coliderança do peronismo e sua
transformação não só em sua porta voz mas em seu símbolo, foi parte essencial da construção da Argentina
peronista naqueles anos”.
174 Tradução nossa: “Sua saúde foi piorando enquanto se obstinava em se recusar a aceitar o inevitável: encarar
seriamente o tratamento de sua gravíssima enfermidade. Começava a luta mais desigual entre Evita e um
inimigo”.
119
Superior Peronista, consagra-se como voz doutrinária do movimento (EJSV, p. 259). A
oposição vê negativamente o que lhe parece ser um endeusamento de Evita (EJSV, p. 260).
Pigna registra a publicação de LRMV, em 15 de outubro de 1951, afirmando que o
livro foi por ela ditado a Manuel Penella da Silva, um jornalista espanhol (EJSV, p. 283).
Além disso, cita a expressão “Santa Evita” mencionada por Perón: “La gente cantaba
“mañana es San Perón”, reclamando el feriado del día siguiente, a lo que Perón respondió:
“como este 17 de octubre fue dedicado a mi esposa, en vez de San Perón, hagamos Santa
Evita” (EJSV, p. 285, grifo nosso).175
O sétimo capítulo, “La eterna vigia”, narra seu falecimento, as honras póstumas e o
embalsamamento de seu corpo. Várias homenagens são feitas ainda em vida e havia também
um fervor religioso entre os descamisados: “Altares y capillas improvisadas se levantaban en
todo el país para rezar por su salud” (EJSV, p. 319).176 A oposição seguia ferrenha:
Un ambiente de desolación y tristeza comenzaba a invadir los barrios populares
mientras manos anónimas – como mencionamos en el capítulo anterior – pintaban
“¡Viva el cáncer!”. Eran manos que venían de barrios donde le deseaban larga vida
al cáncer y corta vida a su odiada enemiga. (EJSV, p. 320).177
No entanto, Eva sabia que permaneceria na memória do povo (EJSV, p. 322). Evita
falece no dia 26 de julho de 1952 (EJSV, p. 324). Perón ordena seu embalsamamento,
alegando que esta era a vontade de Eva (EJSV, p. 326). O taxidermista espanhol Pedro Ara dá
início aos trabalhos de preservação do cadáver. Segundo Pigna, o país ficou paralisado
durante o luto que chegou a durar quinze dias (EJSV, p. 328). Altares são erguidos em toda a
nação. Evita recebeu honras de Chefe de Estado, e seu corpo ficou guardado na sede da CGT
(EJSV, p. 329). A notícia de sua morte repercute em todo o mundo (EJSV, p. 331).
O último capítulo, “Esa mujer”, narra o sequestro de seu cadáver pelos militares na
Revolução Libertadora, e seu posterior retorno à Argentina. Após o falecimento de Evita, a
crise econômica se agrava: “La prosperidad parecía haberse ido con la muerte de Evita, y para
sus ‘descamisados’ los mejores años de sus vidas quedarían indisolublemente ligados a los
175 Tradução nossa: “As pessoas cantavam ‘amanhã é São Perón’, reclamando o feriado do dia seguinte, ao que
Perón respondeu: ‘como este 17 de outubro foi dedicado a minha esposa, em vez de São Perón, façamos Santa
Evita” (grifo nosso).
176 Tradução nossa: “Altares e capelas improvisadas se levantaram em todo o país para rezar por sua saúde”.
177 Tradução nossa: “Um ambiente de desolação e tristeza começava a invadir os bairros populares enquanto
mãos anônimas – como mencionamos no capítulo anterior – pintavam “Viva o câncer”. Eram mãos que vinham
de bairros nos quais desejavam vida longa ao câncer e curta vida a sua odiada inimiga”.
120
tiempos en que ‘la abanderada de los humildes’ estaba viva” (EJSV, p. 337).178 Pigna
representa Evita como insubstituível, tanto à frente da Fundação, quanto na presidência do
Partido Peronista Feminino.
Surgem disputas de poder na CGT (EJSV, p. 338). Além disso, cresce o rancor dos
opositores diante das várias homenagens a Eva Perón, considerada um símbolo nacional
(EJSV, p. 341). Pigna destaca o clima de revanchismo e ódio de classes que se instala no país
com a Revolução Libertadora que destitui Perón: destruição da Cidade Infantil, demolição da
residência presidencial e da casa de Eva, abandono da construção do Hospital das Crianças,
etc. “La furia de la ‘desperonización’ alcanzó grados inauditos bajo el gobierno de Aramburu”
(EJSV, p. 347).179 Uma série de proibições a respeito do peronismo são feitas por decreto em
1956 (EJSV, p. 348). Os militares decidem pelo sequestro do cadáver e sua ocultação. O
Coronel Moori Koenig, encarregado do operativo, desenvolveu obsessão pelo cadáver e o
translada por várias partes da cidade (EJSV, p. 353).
Segundo Pigna, a resistência peronista parecia seguir a pista do cadáver e isto
acentuava o problema que os “libertadores” tinham em mãos. Com apoio da Igreja Católica, o
corpo é levado para a Itália e enterrado sob o nome falso de María Maggi de Magistris (EJSV,
p. 357). O cadáver, para os peronistas, ganha uma nova dimensão com seu desaparecimento
(EJSV, p. 358). Os Montoneros sequestram o ex presidente Aramburu e exigem a restituição
do corpo de Evita (EJSV, p. 363). Aramburu é executado e seu corpo só é entregue em troca
do cadáver de Evita que é devolvido a Perón em Madrid (EJSV, p. 367). Este regressa ao país
com sua terceira esposa, María Estela Martínez, conhecida como Isabelita, mas sem o cadáver
de Evita. Em 1974, a organização Montoneros sequestra o cadáver de Aramburu exigindo a
repatriação do corpo de Evita (EJSV, p. 371). Isabelita, então presidente da Argentina, aceita
e o cadáver retorna ao país em novembro de 1974. Primeiro depositado num ataúde aberto
coberto com um vidro que permitia sua exibição, o cadáver ficou na Quinta de Olivos,
residência presidencial. Por fim, foi depositado na Recoleta. Pigna afirma que Evita era
temida pelos militares, “aun después de muerta” (EJSV, p. 370).180
O historiador apresenta seu objeto – Eva Perón – através de uma periodização linear,
narrando sua transformação no decorrer do tempo de pessoa comum em ente político. A
178 Tradução nossa: “A prosperidade parecia ter ido com a morte de Evita, e para seus ‘descamisados’ os
melhores anos de suas vidas ficariam indissoluvelmente ligados aos tempos em que ‘a porta voz dos humildes’
estava viva”.
179 Tradução nossa: “A fúria da ‘desperonização’ alcançou graus inauditos sob o governo de Aramburu”.
180 Tradução nossa: “mesmo depois de morta”.
121
cronologização feita por Pigna, portanto, permite ao leitor acessar os eventos com clareza
numa sequência bem encadeada e é um dos elementos criadores do efeito de historicidade.
4.1.2 Visão panorâmica: contextualização
Relacionar o homem ao seu tempo é um dos objetivos do biógrafo. Expor e comentar
questões mais amplas que a experiência de vida individual do biografado, além de fornecer
objetividade à narrativa biográfica, confere ao texto efeito de historicidade, pois o contexto
refere-se a fatos e eventos conhecidos da história nacional ou internacional. Em EJSV, a
contextualização é frequente nos parágrafos iniciais de capítulos, mas também pode ser
encontrada em outras partes. Por exemplo, antes da narrativa do nascimento de Eva Perón,
mencionam-se questões conjunturais, perfazendo um panorama de 1919 no pós Primeira
Guerra Mundial, citando Europa, Estados Unidos, México e Argentina:
El mundo estaba agitado allá por 1919. El 28 de junio, las grandes potencias
vencedoras de la sangrienta Primera Guerra Mundial se pondrían finalmente de
acuerdo en el Salón de los Espejos del Palacio de Versalles. Allí decidirían el
reparto de Europa y se unirían para combatir al naciente primer Estado socialista del
mundo, que luego sería conocido como la Unión Soviética. (EJSV, p. 13)181
Segue o historiador biógrafo listando a fundação do Partido Nacional Fascista, na
Itália, por Benito Mussolini, e do Partido Nacional Socialista Alemão dos Trabalhadores, na
Alemanha, com participação de Adolf Hitler; a Lei Seca, nos Estados Unidos; o assassinato
de Emiliano Zapata, no México, e, chegando à Argentina, a ascensão do tango e o governo de
Yrigoyen. Com relação a este, o evento relatado é o massacre conhecido com “Semana
Trágica”, modo como o governo terminou com um protesto de trabalhadores. Ao comentar
este evento, Pigna introduz dois personagens que serão várias vezes mencionados ao longo da
biografia – as damas de caridade e a Igreja:
Terminada la matanza, las damas de caridad y la jerarquía de la Iglesia católica
lanzaron una colecta para reunir fondos para “darle limosna a los pobres”. Lo hacían
evidentemente en defensa propia según ellas mismas confesaban: “Dime: ¿qué
menos podrías hacer si te vieras acosado o acosada por una manada de fieras
hambrientas, que echarles pedazos de carne para aplacar el furor y taparles la boca?
Los bárbaros ya están a las puertas de Roma”. (EJSV, p. 14)182
181 Tradução nossa: “O mundo estava agitado lá por 1919. Em 28 de junho, as grandes potências vencedoras da
sangrenta Primeira Guerra Mundial entrariam finalmente em acordo no Salão dos Espelhos do Palácio de
Versalhes. Ali decidiriam a divisão da Europa e se uniriam para combater o nascente primeiro estado socialista
do mundo, que logo seria conhecido como a União Soviética”.
182 Tradução nossa: “Terminada a matança, as damas de caridade e a hierarquia da Igreja católica lançaram uma
coleta para reunir fundos para ‘dar esmola aos pobres’. Faziam-no evidentemente em defesa própria segundo ele
as mesmas confessavam: ‘Diga-me: que mais poderia fazer se se visse assediado ou assediada por uma manada
122
Neste cenário, é registrado o nascimento de Eva Perón:
Sonaba el tango y resonaban los ecos de aquella massacre cuando en el campo “La
Unión”, cercano a la pequeña localidad bonaerense conocida como Los Toldos, en el
partido de General Viamonte, a las cinco de la mañana del lluvioso 7 de mayo de
1919 nacía María Eva, la futura Eva Perón. (EJSV, p. 15)183
O contexto internacional é entremeado à narrativa como, por exemplo: “Mientras
María Eva crecía, la Argentina vivía la terrible crisis iniciada en octubre de 1929 en Estados
Unidos y extendida como una peste a todo el mundo” (EJSV, p. 24).184 A partir do
detalhamento da informação sobre a Crise de 1929, o narrador introduz a informação sobre as
migrações internas na Argentina para, então, mencionar a mudança da família de Eva de Los
Toldos para Junín, em 1930 (EJSV, p. 25). Além de entremeado à narrativa, o contexto
permite ao historiador tecer críticas:
Evita era una migrante más en Buenos Aires. Era parte de un proceso histórico que
no la tuvo como protagonista sino como víctima. Una entre millones que habían
dejado su tierra empobrecida buscando un horizonte en la gran ciudad que iba
diversificando su economía. Gobernaba el país, gracias a un escandaloso y
persistente fraude electoral, la más rancia oligarquía ganadera, que se desentendía de
los dramas sociales de la mayoría de la población y se dedicaba prolijamente a
aprovechar los beneficios colaterales de la crisis: compraba por monedas campos
que antes valían millones; monopolizaba los créditos que los bancos oficiales les
negaban a los chacareros, peones y trabajadores; rebajaba los sueldos de sus
asalariados y aumentaba notablemente sus márgenes de ganancia, predicando el
sacrificio ajeno “para salir de la crisis” y practicando el despilfarro gracias a aquel
sacrificio. (EJSV, p. 35)185
A partir dessa informação sobre o governo argentino na década de 1930, Pigna relata
como as crianças pobres viviam, enfrentando desnutrição, dificuldades para estudar, e
enfermidades. O historiador apresenta a “década infame” como o cenário no qual Eva
procurava trabalho em Buenos Aires: “Durante sus primeros meses en Buenos Aires, Eva
de feras famintas, que lhes jogar pedaços de carne para aplacar o furor e lhes tapar a boa? Os bárbaros já estão às
portas de Roma’.”
183 Tradução nossa: “Soava o tango e ressoavam os ecos daquele massacre quando no campo ‘La Unión’,
próximo a pequena localidade bonoarense conhecida como Los Toldos, na comarca de General Viamonte, às
cinco da manhã do chuvoso 7 de maio de 1979 nascia Maria Eva, a futura Eva Perón”.
184 Tradução nossa: “Enquanto María Eva crescia, a Argentina vivia a terrível crise iniciada em outubro de 1929
nos Estados Unidos e estendida como uma peste a todo o mundo”.
185 Tradução nossa: “Evita era mais uma migrante em Buenos Aires. Era parte de um processo histórico que não
a teve como protagonista e sim como vítima. Uma entre milhões que haviam deixado sua terra empobrecida
buscando um horizonte na cidade grande que ia diversificando sua economia. Governava o país, graças a uma
escandalosa e persistente fraude eleitoral, a mais rançosa oligarquia pecuarista, que era indiferente aos dramas
sociais da maioria da população e se dedicava excessivamente a aproveitar os benefícios colaterais da crise:
comprava por uma ninharia campos que antes valiam milhões; monopolizava os créditos que os bancos oficiais
negavam aos pequenos agricultores, peões e trabalhadores; abaixava os salários de seus assalariados e aumentava
notavelmente suas margens de lucro, pregando o sacrifício alheio ‘para sair da crise’ e praticando esbanjamento
graças àquele sacrifício”.
123
vivía en una humilde pensión de la zona de Congreso. Sobrevivía, como millones de
argentinos, aquella “década infame” (EJSV, p. 36).186
O funeral do famoso cantor de tango, Carlos Gardel, em 1936, é apresentado como
contexto para o narrador falar sobre o processo de modernização da Avenida Corrientes187 e
seus teatros, para narrar o início das atividades teatrais de Eva (EJSV, p. 44). As necessidades
pelas quais Eva passava são relacionadas à crise do teatro que, por sua vez, ressentia-se da
crise nacional:
El teatro fue la actividad cultural que más se resintió con la crisis económica: las
compañías duraban una temporada y sólo estrenaban comedias ligeras y sainetes con
bajos costos de producción. El teatro de revista mantenía su éxito en Buenos Aires,
pero según los productores, Eva no reunía las condiciones exigidas por el género.
Vivía con lo justo y se alimentaba a mate cocido y bizcochos y algún que otro café
con leche con medialunas. (EJSV, p. 48)188
Em alguns momentos, a contextualização é sobre obras teatrais ou funções artísticas
contemporâneas às apresentações de Eva: “Por entonces, Aníbal Troilo, “Pichuco”, había
debutado con su orquestra en el Marabú, estrenando Mi tango triste” (EJSV, p. 51).189 Por
vezes, a informação sobre o contexto é incrementada por mais detalhes em nota de rodapé,
como a nota 31 que esclarece sobre o teatro Marabú, informando sua localização e sua
importância na noite portenha. A menção a estabelecimentos com detalhes sobre seu
funcionamento marca a narrativa com dados extraídos da realidade, ajudando a conformar o
imaginário sobre a historicidade dos eventos da biografia de Eva como narrados.
Pigna utiliza o recurso de misturar temporalidades ao acrescentar informações futuras
ao panorama de época apresentado, antecipando situações:
Aquel verano del ’44 parecía uno más en Buenos Aires. Hacía un calor asfixiante y
los balnearios de la costanera estaban a pleno, alegrando a las mayorías que ni
soñaban con Mar del Plata, refugio todavía de las clases altas que gozaban de sus
mansiones y sus playas exclusivas sin siquiera imaginar que en apenas dos o tres
años serían “invadidos” por la chusma, que gozaría de su flamante derecho a
vacaciones pagas y llenaría los nuevos hoteles sindicales, que daría una nueva
fisionomía a la “perla del Atlántico”. Pero por ahora, en aquellos días de enero el
coronel Perón era apenas el secretario de Trabajo y Previsión y no asomaba aún
186 Tradução nossa: “Durante seus primeiros meses em Buenos Aires, Eva vivia numa humilde pensão da zona
do Congresso. Sobrevivia como milhões de argentinos, aquela década infame”.
187 Uma das principais e mais famosas de Buenos Aires.
188 Tradução nossa: “O teatro foi a atividade cultural que mais se ressentiu com a crise econômica: as
companhias duravam uma temporada e só estreavam comédias ligeiras e sainetes com baixos custos de
produção. O teatro de revista mantinha seu éxito em Buenos Aires, mas segundo os produtores, Eva não reunia
as condições exigidas pelo gênero. Vivia com o dinheiro contado e se alimentava com chá e biscoitos e um ou
outro café com leite e pão.”
189 Tradução nossa: “Naquela época, Aníbal Troilo, ‘Pichuco’, havia debutado com sua orquestra no Marabú,
estreando Mi tango triste.”
124
como una figura amenazante en el imaginario de los ricos de Argentina. (EJSV, p.
72)190
Ao tratar sobre a obra de ajuda social de Evita em oposição à beneficência das
senhoras oligarcas, Pigna contextualiza a Sociedade de Beneficência de Buenos Aires,
narrando um breve histórico da mesma desde a sua fundação, em 1823, até a intervenção do
governo peronista na entidade, em 1946. Esta contextualização enseja a crítica de Pigna à
história oficial: “La historia oficial, que ha sido tan ‘piadosa’ y ‘distraída’ con la Sociedad de
Beneficencia, reservó toda su ‘agudeza’ y ‘perspicacia’ para cuestionar hasta en sus más
mínimos detalles la monumental obra social de Eva Perón” (EJSV, p. 126).191
A narrativa da viagem de Eva Perón à Espanha em celebração aos acordos comerciais
que socorreram este país num momento de crise é acompanhada por informação crítica sobre
o contexto mais atual, mais aproximado da escrita da biografia, embora sem maiores
esclarecimentos, dando a entender que o narrador imagina dirigir-se a leitores que têm
conhecimento sobre os eventos que narra:
Durante la crisis de 2001 el hambreado pueblo argentino esperó una actitud de
reciprocidad histórica por parte del gobierno español, que por entonces estaba en
manos del derechista José María Aznar. Pero el amigo hispánico del presidente
norteamericano George W. Bush y defensor de las empresas españolas que habían
saqueado la Argentina en los ’90, se encogió de hombros y fue el pueblo español y
no su gobierno el que transformó el recuerdo en solidaridad. (EJSV, p. 137)192
O contexto dos debates e atos sobre a candidatura de Evita à vice-presidência é, no
plano internacional, o da Guerra Fria, e no nacional, o da oposição das Forças Armadas e de
setores da Igreja. Tal contexto é apresentado pelo historiador com marcas de subjetividade:
Eran tiempos en que la guerra fría lucía sus peores galas. El “héroe del Pacífico”,
aquel general Douglas MacArthur que había supervisado la ocupación del Japón
después de los miles de muertos de Hiroshima y Nagasaki, se peleaba con el
presidente norteamericano Harry Truman por la estrategia que debían seguir en la
guerra de Corea. MacArthur pidió que arrojaran la bomba atómica sobre la
190 Tradução nossa: “Aquele verão de 1944 parecia mais um em Buenos Aires. Fazia um calor asfixiante e os
balneários da costa estavam lotados, alegrando as maiorias que sonhavam com Mar del Plata, refúgio ainda das
classes altas que gozavam de suas mansões e suas praias exclusivas sem sequer imaginar que em apenas dois ou
três anos seriam ‘invadidos’ pela gentinha, que gozaria de seu flamejante direito a férias remuneradas e encheria
os novos hotéis sindicais, o que daria uma nova fisionomia à ‘pérola do Atlântico’. Mas por agora, naqueles dias
de janeiro o coronel Perón era apenas o secretário de Trabalho e Previsão e não aparecia ainda como uma figura
ameaçante no imaginário dos ricos da Argentina”.
191 Tradução nossa: “A história oficial, que foi tão ‘piedosa’ e ‘distraída’com a Sociedade de Beneficência,
reservou toda sua ‘agudeza’ e ‘perspicácia’ para questionar até em seus mínimos detalhes a monumental obra
social de Eva Perón”.
192 Tradução nossa: “Durante a crisde de 2001 o esfomeado povo argentino esperou uma atitude de reciprocidade
histórica por parte do governo espanhol, que naquela época estava nas mãos do direitista José María Aznar. Mas
o amigo hispânico do presidente George W. Bush e defensor das empresas espanholas que haviam saqueado a
Argentina nos anos 1990, deu de ombros e foi o povo espanhol e não seu governo o que transformou a
lembrança em solidariedade”.
125
recientemente proclamada República Popular China. Truman no estuvo de acuerdo y
MacArthur se tuvo que ir con su “heroísmo” a otra parte. Pero aunque el conflicto
no salió de las “armas convencionales”, lo cierto es que el mundo volvía a estar en
guerra y crecía el protagonismo de los círculos castrenses. Los camaradas militares
de Perón fueron los primeros en expresar su enojo y preocupación por la candidatura
de Evita. Bajo sus gorras bien calzadas, aquellas mentes machistas no querían
siquiera imaginarse a una mujer y mucho menos a “esa mujer” presidiendo
unaeceremonia militar y dando órdenes a los uniformados. Ni mucho menos la
hipótesis de máxima, la muerte de Perón violenta, accidental o natural, y la asunción
de “la Eva” a la primera magistratura y, por lo tanto, al cargo inherente de
comandante en jefe de las Fuerzas Armadas del aire, mar y tierra. (EJSV, p. 261).193
O último exemplo de contextualização apresentado neste trabalho é o que menciona as
mudanças ocorridas na economia e na política argentina após a morte de Evita:
Si, como aseguraba el doctor Ara, el cuerpo de Evita permanecía “intacto”, todo
alrededor comenzaba a cambiar. Los signos de la crisis económica que se venía
incubando desde hacía más de dos años empezaban a volverse indisimulables. […]
El país iniciaba los tiempos sin Evita con un Plan de Emergencia Económica, al que
pronto se sumaría la puesta en marcha del Segundo Plan Quinquenal, orientado al
aumento de inversiones (incluidas las extranjeras) y de la “productividad”, con
incrementos salariales que empezaban a retrasarse con respecto al costo de vida.
(EJSV, p. 337, grifo do autor).194
A contextualização, como já mencionado, é um dos elementos que possibilitam o
efeito de historicidade justamente por ser uma das principais marcas da biografia escrita pelo
historiador que demonstra ter conhecimento não apenas sobre a vida do biografado como
também do contexto em que este viveu, possibilitando a inserção do sujeito em seu tempo.
Com isto, por um lado, o autor constrói sua imagem de historiador que segue um conjunto de
práticas investigativas e maneja um amplo conhecimento sendo, portanto, digno de
consideração, e, por outro lado, o leitor pode dar crédito ao ofício do historiador manifesto em
sua narrativa.
193 Tradução nossa: “Eram tempos em que a Guerra Fria mostrava sua pior face. O ‘herói do Pacífico’, aquele
general Douglas MacArthur, que havia supervisionado a ocupação do Japão depois dos milhares de mortos de
Hiroshima e Nagasaki, lutava com o presidente norteamericano Harry Truman pela estratégia que deveriam
seguir na Guerra da Coreia. MacArthur pediu que lançassem a bomba atômica sobre a recentemente proclamada
República Popular da China. Truman não esteve de acordo e MacArthur teve que ir com seu ‘heroísmo’ a outra
parte. Mas embora o conflito não tenha saído das ‘armas convencionais’, o certo é que o mundo voltava a estar
em guerra e crescia o protagonismo dos círculos castrenses. Os camaradas militares de Perón foram os primeiros
a expressar seu aborrecimento e preocupação com a candidatura de Evita. Sob seus quepes bem ajustados,
aquelas mentes machistas não queriam sequer imaginar uma mulher e muito menos ‘essa mulher’ presidindo
uma cerimônia militar e dando ordens aos uniformizados. Nem muito menos a hipótese máxima da morte de
Perón, violenta, acidental ou natural, e a assunção ‘da Eva’ à primeira magistratura e, por tanto, ao cargo inerente
de comandante em chefe das Forças Armadas do ar, mar e terra.”
194 Tradução nossa: “Se, como assegurava o doutor Ara, o corpo de Evita permanecia ‘intacto’, tudo ao redor
começava a mudar. Os signos da crise econômica que vinha se incubando desde mais de dois anos começavam a
se tornarem indissimuláveis. [...] O país iniciava os tempos sem Evita com um Plano de Emergência Econômica,
ao qual logo se somaria a colocação em marcha do Segundo Plano Quinquenal, orientado ao aumento de
investimentos (incluídos os estrangeiros) e da ‘produtividade’, com incrementos salariais que começavam a se
defasar com relação do custo de vida”.
126
4.1.3 Definir ideias: conceitualização
Seguindo o levantamento dos elementos que conferem efeito de historicidade ao texto
biográfico, remeto ao ato de elaborar conceitos e explicitá-los na narrativa biográfica. Este
procedimento integrante do conjunto de práticas que compõem o ofício do historiador é
empregado com vistas a organizar a realidade histórica, tornando-a compreensível aos
leitores.
Em EJSV, este recurso é pouco utilizado. O historiador, por vezes, incorpora em sua
narrativa conceitos elaborados por outros como, por exemplo, “década infame”. Segundo
Pigna, o período recebeu essa qualificação pelo jornalista José Luis Torres, de quem cita as
palavras a seguir:
[...] infamaron esa década, con la más total y absoluta falta de escrúpulos políticos y
morales. […] No importaban los preceptos constitucionales. Se tomaron las medidas
necessárias para burlarlos, estableciendo la norma de investir con la representación
popular precisamente a los ciudadanos a quienes el pueblo negaba su sufragio. Éstos
con frecuencia eran elegidos entre los más venales servidores de las satrapías
dominantes, y los sátrapas mismos se sentaban en las bancas parlamentares para
defender sus propios negocios, vigilando al mismo tiempo la lealtad de sus adictos.
(EJSV, p. 37)195
Pigna, ao narrar a concentração de multidões de trabalhadores, na Praça de Maio, em
17 de outubro de 1945, para reivindicar a libertação de Perón, aclamando-o, quando solto, por
fim, naquele que seria o primeiro 17 de outubro da história peronista, recorre à expressão
“aluvião zoológico”, indicando que foi forjada anos depois do acontecimento pelo dirigente
radical Ernesto Sanmartino (EJSV, p. 109). O historiador define o poder do qual fez uso Evita
como “innovador y disruptivo”,196 que não lhe foi dado, pura e simplesmente, por Perón, mas
que por ela foi construído (EJSV, p. 9). Em relação ao peronismo, Eva Perón é designada
como “uno de los símbolos más claros del movimento” (EJSV, p. 11).197
Pigna tece críticas à história social, herdeira da história liberal clássica, pois se revela
indulgente com o modelo agroexportador excludente vigente na Argentina antes do
peronismo, no entanto crítica em relação ao peronismo de modo geral e, em particular, de Eva
195 Tradução nossa: “[…] infamaram essa década com a mais total e absoluta falta de escrúpulos políticos e
morais. [...] Não importavam os preceitos constitucionais. Tomaram as medidas necessárias para burlá-los,
estabelecendo a norma de investir com a representação popular precisamente os cidadãos a quem o povo negava
seu voto. Estes com frequência eram eleitos entre os mais venais servidores das satrapias dominantes, e os
sátrapas mesmos se sentavam nas bancas parlamentares para defender seus próprios negócios, vigiando ao
mesmo tempo a lealdade de seus agregados”
196 Tradução nossa: “inovador e disruptivo”.
197 Tradução nossa: “um dos símbolos mais claros do movimiento”.
127
Perón. O historiador posiciona-se na corrente historiográfica mais recente que busca tratar
Evita como um sujeito político. Inscreve sua produção junto a obras que reconhecem,
elogiosamente ou não, o protagonismo político de Evita, de modo complementar a Perón ou
até mesmo em concorrência com ele (EJSV, p. 10).
Integra a conceitualização operada por Pigna a definição de Evita como um mito,
apresenta as razões para tal:198
Evita, sin dudas, reúne todas las condiciones para ser un mito: llegó a lo más alto
partiendo desde muy abajo, murió joven y en el esplendor de una vida donde la
historia se tiñe con el rosa y el negro de las respectivas leyendas. Despertó hacia ella
todos los sentimientos menos uno: la indiferencia. Para unos era el “hada rubia”, la
“abanderada de los humildes”, la “compañera Evita”; para otros, “esa mujer”, “la
Eva”. (EJSV, p. 10)199
Um conceito de Pigna define “uma nova forma de fazer política”: a fusão do
personalismo do chefe com a mobilização social (EJSV, p. 122).
Define ainda o Estado peronista como “Estado benfeitor”:
El estado peronista puede incluirse dentro de la corriente política mundial de
posguerra denominada del “Estado benefactor”, que integró a los sectores populares
al consumo y a ciertos niveles de bienestar, bajando de esta forma la conflictividad
social. (EJSV, p. 185)200
A Revolução Libertadora é definida pelo historiador como golpe de Estado e o
governo que se estabelece na ocasião como antiperonista: “Luego del golpe de Estado de
1955, cuando el gobierno antiperonista incautó los bienes de la Fundación [...]” (EJSV, p.
211).201 O recurso da formulação de novos conceitos é pouco utilizado, porque Pigna, em sua
metodologia, parece preferir o recurso da citação de outros historiadores e biógrafos,
apresentando e discutindo várias versões sobre os eventos que narra, como discutiremos a
seguir.
198 O aspecto relacionado ao mito é abordado no capítulo “Margens confluentes: o imaginário evitista” (p. 147)
199 Tradução nossa: “Evita, sem dúvida, reúne todas as condições para ser um mito: chegou ao mais alto partindo
de muito baixo, morreu jovem e no esplendor de uma vida onde a história se tinge com o rosa e o negro das
respectivas lendas. Despertou para si todos os sentimentos menos um: a indiferença. Para uns, era a ‘fada loura’,
a ‘portavoz dos humildes’, a ‘companheira Evita’; para outros, ‘essa mulher’, ‘a Eva’”.
200 Tradução nossa: “O estado peronista pode ser incluído dentro da corrente política mundial do pós-guerra
denominada de “Estado benfeitor”, que integrou os setores populares ao consumo e a certos níveis de bem-estar,
diminuindo desta forma a conflitividade social”.
201 Tradução nossa: “Logo depois do golpe de Estado de 1955, quando o governo antiperonista confiscou os bens
da Fundação [...].”
128
4.1.4 Discussão das fontes e versões
Como já mencionado, parte do ofício do historiador consiste em apresentar as fontes,
os documentos nos quais se baseia ou dos quais discorda, bem como as versões sobre os
acontecimentos narrados, realizando assim sua discussão. Isto é próprio do discurso histórico,
que tem como pretensão ser um discurso verificável, portanto precisa apresentar os
documentos que atestam a veracidade do narrado. O leitor pode aceitar tal informação,
assumindo o pacto de leitura, ou pode, se quiser, inventariar e recorrer às fontes para
comprovar o que foi lido. Sendo assim, a discussão de fontes e versões constitui um dos
elementos criadores do efeito de historicidade em EJSV .
Pigna descarta a hipótese de Eva ter partido de Junín para Buenos Aires com o cantor
Agustín Magaldi, chamando tal possibilidade de lenda:
La leyenda dice que Evita partió de Junín hacia Buenos Aires a principios de 1935
acompañada por Agustín Magaldi. Pero lo cierto es que el cantor, que había actuado
en la ciudad en 1929 con su compañero de dúo, Pedro Noda, sólo volvió a hacerlo
en diciembre de 1936, cuando Eva llevaba más de un año de radicación en Buenos
Aires. (EJSV, p. 32)202
No entanto, ao apresentar uma carta de Eva dirigida à sua mãe, Joana Ibarguren, diz
que ela partiu “aparentemente sola, como sugiere esta carta” (EJSV, p. 33).203 O advérbio
“aparentemente” e o verbo “sugere” indicam a modalização do discurso de forma a não se
comprometer evitando-se a afirmação contundente que seria: “ela partiu só, como afirma esta
carta”. Mais adiante na narrativa, Pigna retorna de modo mais assertivo à questão da ida de
Eva para Buenos Aires com Magaldi, afirmando que a jovem atriz iniciante buscava espaço
de divulgação nas revistas e que “tiempo después comenzó a construirse la versión falsa de
que había venido a Buenos Aires con Agustín Magaldi” (EJSV, p. 37).204 Cita a declaração de
Eduardo del Castillo, que foi redator na Subsecretaria de Informações da Presidência da
Nação, constante na obra La vida de Eva Perón. Testimonios para su historia, de Otelo
Borroni e Roberto Vacca, publicado em 1970. Segundo este relato, Magaldi limitou-se a
202 Tradução nossa: “A lenda diz que Evita partiu de Junín para Buenos Aires no início de 1935 acompanhada
por Agustín Magaldi. Mas o certo é que o cantor, que havia atuado na cidade em 1929 com seu companheiro de
dueto, Pedro Noda, só voltou a fazê-lo em dezembro de 1936, quando Evita já estava há mais de um ano
radicada em Buenos Aires”.
203 Tradução nossa: “aparentemente sozinha, como sugere esta carta”.
204 Tradução nossa: “tempo depois começou a se construir a versão falsa de que havia vindo para Buenos Aires
com Agustín Magaldi”.
129
conectar Eva com uma prima da atriz Maruja Gil Quesada, que a ajudou, alojando-a em seu
apartamento (EJSV, p. 37).
Sobre o encontro de Eva com Perón, no evento beneficente no Luna Park, o
historiador apresenta e discute várias versões:
Quién sirvió de nexo para que Eva ocupase uno de esos asientos es ya un tema
mítico, con versiones para todos los gustos: desde el autor de tangos y guionista
cinematográfico Homero Manzi – según les contó a Borroni y Vacca su compañero
del grupo FORJA, Arturo Jauretche – hasta quien luego sería el popular animador de
televisión, Roberto Galán, pasando por Imbert y el teniente coronel Domingo
Mercante, mano derecha y “corazón” de Perón. (EJSV, p. 75)205
Segundo Roberto Galán, ele teria apresentado Eva a Perón (EJSV, p. 75). Outra versão
é a do filho de Domingo Mercante, segundo a qual seu pai foi quem os apresentou (EJSV, p.
76). Após apresentar as duas versões que extraiu da obra Eva Perón la biografia (1995), de
Alicia Dujovne Ortiz, Pigna não se compromete em escolher uma delas e afirma que: “Lo
certo es que esa noche, Evita y Rita Molina ocuparon esos asientos vacíos al lado de Perón e
Imbert” (EJSV, p. 76).206
O autor apresenta ainda as versões de Perón e Evita. Comenta que a versão de Perón é
diferente das anteriores embora as combine. A principal diferença é que Perón menciona que
prestou atenção em Eva antes do evento beneficente, durante uma reunião com vários artistas
para organização do show. Uma vez mais, Pigna não se compromete com a aceitação dessa
versão; chega a lançar dúvidas, ao afirmar que: “Es imposible saber qué parte de ese relato es
histórico y cuál integra el mito, pero por eso mismo vale la pena transcribirlo, tratándose de
Evita” (EJSV, p. 76).207 A versão de Perón foi extraída por Pigna da obra Vida íntima de
Perón. La historia privada según su biógrafo personal (2011), de Enrique Pavón Pereyra.
Por fim, Pigna cita Eva Perón, em LRMV (1951) e no testemunho a uma amiga: “Eva
se limitaría a decir que fue su “día maravilloso”, el que cambia una vida, pero a una amiga le
confió cómo fue aquella noche” (EJSV, p. 78).208 O depoimento dessa amiga, que Pigna não
205 Tradução nossa: “Quem serviu de nexo para que Eva ocupasse um desses assentos já é um tema mítico, com
versões para todos os gostos: desde o autor de tangos e roteirista cinematográfico Homero Manzi – segundo
contou a Borroni e Vacca seu companheiro do grupo FORJA, Arturo Jauretche – até quem logo seria o popular
animador de televisão, Roberto Galán, passando por Imbert e o tenente coronel Domingo Mercante, mão direita
e ‘coração’ de Perón.”
206 Tradução nossa: “O certo é que essa noite, Evita e Rita Molina ocuparam esses assentos vazios ao lado de
Perón e Imbert.”
207 Tradução nossa: “É impossível saber que parte dsse relato é histórico e qual inegra o mito, mas por isso
mesmo vale a pena transcrevê-lo, tratando-se de Evita”.
208 Tradução nossa: “Eva limitaría-se a dizer que foi seu ‘dia maravilhoso’, o que muda uma vida, mas a uma
amiga confiou como foi aquela noite”.
130
identifica, consta em Evita íntima. Los sueños, las alegrías, el sufrimiento de la mujer más
poderosa del mundo (1997), de Vera Pichel. Segundo tal depoimento, sentar-se ao lado de
Perón foi iniciativa de Eva que aproveitou a oportunidade quando viu o assento vazio ao seu
lado. Sentou-se, logo começaram a conversar, e acabado o evento, foram embora juntos
(EJSV, p. 79).
A disposição dos vários testemunhos na biografia feita pelo autor, que deixou o de
Evita para o final parece indicar que esta seria a versão que traz a realidade dos fatos. No
entanto, o fato de não haver identificado quem fala, ou seja, quem foi a amiga à qual Eva
confiou o segredo, indica incerteza quanto a essa versão. Entretanto, essa parece encaixar-se
melhor na representação que Pigna faz de Eva Perón como ser autônomo e consciente de seu
magnetismo e poder, que mais adiante irão se manifestar na política. Destaco o quanto o
historiador é detalhista ao mencionar os relatos, os nomes dos produtores desses testemunhos
e dos biógrafos que os registraram. Isto confere à narrativa efeito de historicidade.
Sobre a formação política de Eva, Pigna afirma que vários testemunhos mencionam
sua presença nas reuniões que Perón fazia com dirigentes políticos, conservadores e radicais
em sua residência. Segundo o historiador:
En esas reuniones, Eva pudo familiarizarse con conceptos y términos políticos.
Perón, que hacia el final de su vida insistirá en que Evita era “obra” suya, recordará
que por aquellos días “me seguía como una sombra, me escuchaba atentamente,
asimilaba mis ideas, las elaboraba en su cerebro hirviente y agilísimo y seguía mis
directivas con una precisión excepcional. (EJSV, p. 89)209
Outra versão mencionada por Pigna é a de que Evita já desenvolvia atividade sindical
“como socia fundadora de la Asociación Radial Argentina, creada en agosto de 1943 y
reconocida oficialmente el 6 de mayo de 1944 en un acto encabezado por el propio Perón.”
(EJSV, p. 89).210
Um evento importante para o peronismo é a libertação de Perón no dia 17 de outubro
de 1945. Embora tenha se criado a ideia de que Evita teve grande participação para que Perón
fosse solto da prisão, Pigna afirma categoricamente:
Evita estuvo lejos de tener un rol protagónico en aquellas jornadas que culminarían
el 17 de octubre: no era una figura conocida en el ámbito general y faltaban un par
de años de intensa labor para que su palavra tuviera el valor de una orden entre los
“descamisados”. Pero nadie podrá negarle su tesón y que hizo lo que estuvo a su
209 Tradução nossa: “Nessas reuniões, Eva pode familiarizar-se com conceitos e termos políticos. Perón, que até
o final de sua vida insistirá que Evita era ‘obra’ sua, recordará que por aqueles dias ‘me seguia como uma
sombra, me escutava atentamente, assimilava minhas ideias, elaborava-as em seu cérebro fervente e agilíssimo e
seguia minhas diretrizes com uma precisão excepcional”.
210 Tradução nossa: “como sócia fundadora da Associação Radial Argentina, criada em agosto de 1943 e
reconhecida oficialmente em 6 de maio de 1944 num ato encabeçado pelo próprio Perón”.
131
alcance para lograr la libertad de su compañero. Andando el tiempo y sobre todo
después de su muerte, se construirá la imagen de una Eva que iba de un lado a otro
para arengar a los trabajadores. (EJSV, p. 111)211
Pigna menciona o relato de uma ativista trabalhadora na indústria têxtil, Mariana
Tedesco, que afirma a participação de Eva; o testemunho de um dirigente metalúrgico
trotskista, Ángel Perelman, segundo o qual Eva percorreu as ruas de carro difundindo a ideia
da greve geral; e a biografia escrita por Vera Pichel que a vê como “propulsora da marcha”.
Entretanto recorre ao relato da própria Eva Perón para fundamentar sua afirmação de que não
houve tal protagonismo. A afirmação de Eva é que o povo e Perón protagonizaram o 17 de
outubro:
no vamos a engañarnos, si no hubiera sido por las fuerzas leales y por el pueblo
argentino, no habríamos podido hacer nada por el general Perón sino debatirnos en
la impotencia. […] ¡Nadie dio el toque de salida! ¡El pueblo salió sólo! No fue la
señora de Perón. Tampoco fue la Confederación General del Trabajo. ¡Fueron los
obreros y los sindicatos todos los que por sí mismos salieron a la calle! La
Confederación General del Trabajo, la señora de Perón, todos nosotros lo
deseábamos. ¡Pero fue una eclosión popular! Fue el pueblo el que se dio cita sin que
nadie se lo hubiera indicado. (EJSV, p. 113)212
Pigna esclarece, em nota de rodapé, que esse relato de Evita consta na obra Historia
del peronismo, de Eva Perón, fruto das transcrições dos cursos que deu na Escola Superior
Peronista, afirmando que “en su momento tenía cierto valor de ‘versión oficial’ de los hechos”
(EJSV, p. 113).213 O historiador parece assim justificar sua escolha dessa versão sem
questionar sua produção.
Sobre o casamento de Perón e Eva, o autor menciona a cerimônia civil em Junín, em
22 de outubro de 1945, e a religiosa em La Plata, em 10 de dezembro do mesmo ano. O
historiador transcreve a certidão de casamento registrada no cartório em Junín e destaca:
Varios datos que figuran en el acta no eran ciertos: Juan Perón era viudo, y no
‘soltero’; Eva alteró su edad, lugar de nacimiento y, formalmente, sus datos de
filiación […], y tanto ella como su hermano y testigo, Juan Duarte, declaraban un
domicilio de conveniencia y no el real. Ninguna de esas falsedades invalidaba el
211 Tradução nossa: “Evita esteve longe de ter um rol protagônico naquelas jornadas que culminariam no 17 de
outubro: não era uma figura conhecida no âmbito geral e faltavam ainda um par de anos de intenso trabalho para
sua palavra tivesse o valor de uma ordem entre os ‘descamisados’. Mas ninguém poderá negar-lhe seu afinco e
que fez o que esteve ao seu alcance para conseguir a liberdade de seu companheiro. Avançando o tempo e
sobretudo depois de sua morte, se construirá a imagem de uma Eva que ia de um lado a outro para atiçar os
trabalhadores”.
212 Tradução nossa: “não vamos nos engañar, si não fosse pelas forças leais e pelo povo argentino, não teríamos
podido fazer nada pelo general Perón a não ser debater-nos na impotência. [...] Ninguém deu o toque de saída! O
povo saiu sozinho! Não foi a senhora de Perón. Tampouco foi a Confederação Geral do Trabalho. Foram os
trabalhadores e os sindicatos todos os que por si mesmos saíram às ruas! A Confederação Geral do Trabalho, a
senhora de Perón, todos nós o desejávamos. Mas foi uma eclosão popular! Foi o povo que marcou o encontro
sem que ninguém o tivesse indicado”.
213 Tradução nossa: “em seu momento tinha certo valor de ‘versão oficial’ dos fatos”.
132
consentimiento, la identificación o la capacidad para celebrar el matrimonio. (EJSV,
p. 115)214
Documentos de diversos tipos compõem o conjunto consultado por Pigna para
escrever sua biografia de Eva Perón. Na relação da bibliografia, seção constante ao final
(EJSV, p. 371-378), apresenta a relação das obras consultadas divididas em: bibliografia
específica (autobiografias e biografias de Evita); bibliografia geral (sobre o peronismo, a
política e a economia); publicações periódicas (artigos sobre Evita e a história argentina);
publicações digitais (sobre Evita e alguns de seus discursos); documentários (sobre Evita);
entrevistas realizadas pelo autor (a três pessoas) e coleções de jornais e revistas (cita apenas as
nacionais, não registra aqui as internacionais Times e World Report, por ele citadas na
biografia (EJSV, p. 155, 156)). A citação, ao longo da biografia, desse vasto conjunto de
documentos confere autoridade ao discurso do historiador, configurando-se o efeito de
historicidade. O leitor vê-se diante de um autor que maneja um amplo arsenal de informações
e autores nos quais afirma basear seu relato biográfico.
4.1.5 Autor historiador
O efeito de historicidade recebe um grande aporte com a inscrição do nome próprio do
historiador autor do texto biográfico. Sendo este autor conhecido midiaticamente, como é o
caso de Felipe Pigna, fato já mencionado na introdução deste trabalho, o reconhecimento não
apenas do seu estilo, mas do gênero de obra que escreve já se manifesta. É o historiador
reconhecido pelo leitor que sabe que tem em mãos uma obra de história, portanto não
ficcional, e sim acadêmica ou científica, que incorpora em seu discurso os documentos nos
quais se fundamenta, para atestar sua veracidade.
Sobre as características de uma obra e sua autoria, Michel Foucault indaga:
O que é uma obra? O que é pois essa curiosa unidade que se designa com o nome
obra? De quais elementos ela se compõe? Uma obra não é aquilo que é escrito por
aquele que é um autor? Vemos as dificuldades surgirem. Se um indivíduo não fosse
um autor, será que se poderia dizer que o que ele escreveu, ou disse, o que ele
deixou em seus papéis, o que se pode relatar de suas exposições poderia ser
chamado de “obra”? (FOUCAULT, 2001, p. 269)
Não são questões de fácil resolução, no entanto quero refletir um pouco sobre essas
indagações: ser reconhecido como autor implicaria em já ter escrito antes. Ora, sendo assim,
214 Tradução nossa: “Vários dados que figuram na certidão não eram certos: Juan Perón era viúvo, e não
‘solteiro’; Eva alterou sua idade, lugar de nascimento e, formalmente, seus dados de filiação [...], e tanto ela
como seu irmão e testemunha, Juan Duarte, declararam um endereço de conveniência e não o real. Nenhuma
dessas falsidades invalidava o consentimento, a identificação ou a capacidade para celebrar o casamento”.
133
não haveria um discurso inaugural. Penso que a qualidade da obra escrita, apesar de ser a
primeira, cria o imaginário a respeito do autor e suas outras obras a partir desta enfrentarão
uma expectativa que pode ser confirmada ou não.
A assinatura do autor reveste-se de grande importância. Afirma Foucault (2010, p.
272) que “o nome do autor é um nome próprio, apresenta os mesmos problemas que ele”.
Entretanto não é um nome próprio como outro qualquer. É um nome que carrega as marcas de
um estilo de escrita, além dos gêneros nos quais essa escrita transita. Continua Foucault
(2001, p. 273):
um nome de autor não é simplesmente um elemento em um discurso (que pode ser
sujeito ou complemento, que pode ser substituído por um pronome, etc.); ele exerce
um certo papel em relação ao discurso: assegura uma função classificatória, tal nome
permite reagrupar um certo número de textos, delimitá-los, deles excluir alguns,
opô-los a outros. Por outro lado, ele relaciona os textos entre si.
O nome do autor, portanto, caracteriza um modo de ser do discurso. Afirma Foucault
que o fato de haver um nome de autor indica que o texto é distinto do cotidiano, é “uma
palavra que deve ser recebida de uma certa maneira e que deve, em uma dada cultura, receber
um certo status” (FOUCAULT, 2001, p. 273).
O status que a biografia assinada por Felipe Pigna, historiador, recebe é o de texto
historiográfico. Cabe ressaltar que qualquer texto assinado pelo autor mencionado receberia
esse status numa primeira impressão, porém o que confirma o status é a leitura. É possível que
este autor queira, hipoteticamente falando, escrever um romance. Seus leitores, se não forem
avisados de que a obra se trata de um romance, precisarão reconhecer as marcas do gênero
romance para não serem iludidos pensando tratar-se de um texto historiográfico, gênero mais
comum e frequente ao autor até o momento.
De modo arguto, Foucault conclui que a função-autor é “característica do modo de
existência, de circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de uma
sociedade” (FOUCAULT, 2001, p. 274). Dito de outra forma: depende do reconhecimento
dos tipos relativamente estáveis de um conjunto de enunciados, ou seja, do gênero do
discurso, segundo Bakhtin (2003). No caso de um autor acadêmico, mas também conhecido
popularmente nas mídias, como é o caso de Pigna, o reconhecimento das marcas do discurso
historiográfico torna-se mais evidente.
Assim como na autobiografia há o pacto autobiográfico, na biografia também se
estabelece um pacto de leitura. Em EJSV, o autor, através da introdução que funciona como
um prefácio, estabelece as bases sobre as quais se assenta o pacto de leitura acordado com o
leitor: explicita seu objetivo; identifica em que ponto estão os debates sobre o tema e
134
esclarece sua posição. Seu objetivo é contar aos leitores “lo más detallada y analíticamente
posible la vida de una mujer que se convirtió en una de las figuras célebres de la humanidad”
(EJSV, p. 9).215 Com esta declaração inicial, o autor qualifica sua abordagem de pesquisador
capaz de apresentar detalhes e análises críticas. Cabe lembrar que os detalhes conferem ao
texto efeito de realidade, como afirmou Barthes (1972, p. 43). Cada capítulo contém dezenas
de notas de rodapé destinadas a detalhar afirmações, informações e fornecer referências
bibliográficas.
O historiador identifica que, comumente, Evita é tratada de modo folclórico, como o
são as tradições e os mitos populares, mas sua abordagem difere desta ao tratar do que Evita
realmente foi: um sujeito político que “compartió con Perón el liderazgo carismático del
peronismo, demostró una gran capacidad de conducción y construcción política, llegando a
manejar dos de las tres ramas del movimento: la feminina y la sindical” (EJSV, p. 9). Além
disso, destaca Pigna, o trabalho social de Evita forneceu-lhe um lugar no imaginário popular.
Como já mencionado no subcapítulo sobre o debate das fontes, nesta introdução, Pigna
faz críticas à história social por estudar o peronismo como um “fenômeno”, sem buscar
entendê-lo historicamente nem compreender sua complexidade como um movimento que
mudou a história e tem implicações na contemporaneidade: “Se parte en esos textos de una
ajenidad aparentemente dada por la pertinencia al campo intelectual y a partir de allí se
procede a juzgar aquel processo como una anormalidad institucional y social” (EJSV, p. 9).216
É, portanto, uma história indulgente com as etapas anteriores ao peronismo e sua economia
excludente e crítica feroz ao peronismo e à Evita. Segundo Pigna, nos últimos anos surge uma
nova abordagem sobre Evita que busca apresentar sua atuação política e seu protagonismo, e é
nessa corrente que insere a biografia que escreveu (EJSV, p. 10).
Com isso o historiador evidencia sua posição, e o leitor pode decidir se aceita ou não o
pacto como proposto. O leitor que reconheceu o nome do autor e, a partir disso, criou
expectativas relacionadas à leitura que faria quanto ao seu gênero (biografia histórica) e ao
estilo (a marca pessoal do autor). Resumindo, a autoria do historiador, um elemento
paratextual, soma-se aos procedimentos intratextuais – cronologização, contextualização,
conceitualização, discussão das fontes e versões – para criar o efeito de historicidade.
215 Tradução nossa: “o mais detalhada e analiticamente possível a vida de uma mulher que se converteu em uma
das figuras célebres da humanidade”.
216 Tradução nossa: “Parte-se nesses textos de uma alheiabilidade aparentemente dada pela pertença ao campo
intelectual e a partir daí se procede a julgar aquele processo como uma anormalidade institucional e social”.
135
4.2 Ficcionalização da história
O texto analisado, como já diversas vezes mencionado, é a biografia de uma
personalidade histórica argentina. Obviamente, portanto, a matéria de que trata é de extração
histórica, contudo o texto apresenta em sua construção elementos que permitem apontar a
ficcionalização da história. Importa ressaltar que a biografia escrita por Pigna não perde com
isso seu caráter de obra historiográfica. Atento simplesmente para a narrativa constitutiva da
história que, neste aspecto, aproxima-se da ficção sem, no entanto, nela transformar-se.
Refiro-me, portanto, aos mecanismos discursivos na escrita da história que levaram ao
questionamento de seus métodos científicos por apresentarem, às vezes, recursos poéticos e
figurativos, como discutido por White (1995).
Os elementos identificados como ficcionalizadores da história em EJSV são:
subjetividade; enredo e diálogo.
4.2.1 Marcas de si: subjetividade
A subjetividade em EJSV, ou seja, o meio pelo qual o autor dá-se a conhecer, revela-se
através de juízos de valor; adjetivação; modo poético de narrar; comunicação com o leitor e
indefinição. Em vários pontos de seu texto, Pigna foge da objetividade de historiador e emite
juízos de valor. Especificamente, no prefácio, dá abertura à subjetividade, relatando medidas
da Revolução Libertadora, deixando entrever uma visão apaixonada e triunfante sobre Evita:
El odio de sus encarnizados enemigos la sobrevivió. Dinamitaron el lugar donde
murió para evitar que se convirtiera en un sitio de culto, prohibieron su foto, su
nombre y su voz, pasaron con sus tanques por las casitas de la Ciudad Infantil hasta
convertirla en ruinas, abandonaron la construcción del hospital de niños más grande
de la América porque llevaría su nombre, echaron a ancianos de los hogares
modelos, quemaron hasta las frazadas de la Fundación, destrozaron pulmotores
porque tenían el escudo con su cara, secuestraron e hicieron desaparecer su cuerpo
por 16 años. Pero como sospecharon los autores de tanta barbarie, todo fue inútil.
(EJSV, p. 11)217
Através de juízos de valor, o autor exprime sua opinião a respeito dos eventos que
narra. Um exemplo de juízo de valor é o modo como se refere às mães das crianças que
discriminavam a menina Eva Duarte por sua condição de filha natural:
217 Tradução nossa: “O ódio de seus encarniçados inimigos a sobreviveu. Dinamitaram o lugar onde morreu para
evitar que se convertesse num local de culto, proibiram sua foto, seu nome e sua voz, passaram com seus tanques
pelas casinhas da Cidade Infantil até convertê-la em ruínas, abandonaram a construção do maior hospital infantil
da América porque levaria seu nome, despejaram anciãos dos lares modelos, queimaram até as mantas da
Fundação, destroçaram respiradores porque tinham o escudo com seu rosto, sequestraram e fizeram desaparecer
seu corpo por 16 anos. Mas como suspeitaram os autores de tanta barbárie, tudo foi inútil”.
136
Aquellas senhoras de doble moral justificaban su actitud cruel y discriminadora en la
defensa de las “buenas famílias” que incluían a sus maridos que, como ellas bien
sabían, embarazaban a sus amantes fuera de sus hogares “bien constituidos”,
generando aquellos niños en los que estas nobles damas ejercían su venganza.
(EJSV, p. 26)218
Ao juízo de valor, soma-se a adjetivação, o modo como o autor qualifica pessoas,
situações e comportamento, deixando entrever sua posição como, por exemplo, quanto à
moral da época em que Eva viveu a primeira infância:
Aquella doble moral, obscena y machista, aceptaba y hasta festejaba en secreto estas
dobles vidas, entendido como “necesidades masculinas” el mantenimiento de dos
relaciones paralelas. Pero para “la segunda” y sus hijos no había piedad. Maria Eva
era una hija natural. Lo natural no era bueno por entonces, y los “hijos naturales”
quedaban fuera de aquella peculiar naturaleza humana. Desde chiquita, Eva tuvo que
ubicarse por ahí, en los suburbios de la vida. (EJSV, p. 20)219
No fragmento citado, observa-se a utilização do recurso das aspas para introduzir no
discurso os designativos do pensamento comumente aceito na sociedade a respeito da
marginalização dos filhos das relações de concubinato. Com isto, além de indicar que este não
é o seu pensamento, o autor torna vívido esse modo de pensar e o apresenta ao leitor.
Em outro momento da narrativa biográfica, encontramos adjetivação:
Volvió al teatro en agosto de 1940, con la compañía cómica de Leopoldo y Tomás
Simari que estrenaba Corazón de manteca, de Hicken, y luego actuó en una obra del
título premonitorio: ¡La plata hay que repartirla!, de Antonio Botta, donde
interpretaba a una gitana. (EJSV, p. 60, grifo nosso)220
O autor classifica como premonitório o título da peça em que Eva atuou. Isto indica o
conhecimento prévio que o biógrafo possui sobre a integralidade da vida da biografada. São
as políticas que, futuramente, irá desenvolver no peronismo junto aos trabalhadores que aqui
dão sinais. Esse vislumbre parece indicar a hipótese de que o teatro, o rádio e o cinema
formaram a personagem política Evita.
O uso de adjetivos verifica-se também quando o autor comenta a divulgação na mídia
que Eva começa a ter em seu início de carreira como atriz: “Evita Duarte era una estrella en
ascenso. Si bien algunas revistas trataban de mostrar una imagem de “trepadora” o “arribista”, 218 Tradução nossa: “Aquelas senhoras de dupla moral justificavam sua atitude cruel e discriminadora na defesa
das ‘boas famílias’ que incluíam seus maridos que, como elas bem sabiam, engravidavam suas amantes fora de
seus lares ‘bem construídos’, gerando aquelas crianças nas quais estas nobres damas exerciam sua vingança”.
219 Tradução nossa: “Aquela dupla moral, obscena e machista, aceitava e até festejava em segredo estas vidas
duplas, entendida como ‘necessidades masculinas’ a manutenção de duas relações paralelas. Mas para ‘a
segunda’ e seus filhos não havia piedade. María Eva era uma filha natural. O natural não era bom naquela época
e então os ‘filhos naturais’ ficavam fora daquela peculiar natureza humana. Desde pequenina, Eva teve que ficar
por aí, nos subúrbios da vida”.
220 Tradução nossa: “Voltou ao teatro em agosto de 1940, com a companhia cômica de Leopoldo e Tomás Simari
que estreava Coração de manteiga, de Hicken, e logo depois atuou numa obra de título premonitório: O
dinheiro tem que ser repartido, de Antonio Botta, onde interpretava uma cigana” (grifo nosso).
137
estaba luchando para sobrevivir en ese mundo complejo y despiadado” (EJSV, p. 62).221
Neste fragmento, observa-se o recurso das aspas uma vez mais, para indicar opinião alheia da
qual possivelmente discorda, pois ao classificar o mundo como complexo e sem piedade,
parece manifestar desculpas para o comportamento da atriz.
A obra social de Eva Perón recebe o qualificativo de monumental ao ser confrontada à
da Sociedade de Beneficência. O uso de aspas neste fragmento que tece críticas à história
social não indicam discurso alheio, mas ironia:
La historia oficial, que ha sido tan “piadosa” y “distraída” con la Sociedad de
Beneficencia, reservó toda su “agudeza” y “perspicacia” para cuestionar hasta en sus
más mínimos detalles la monumental obra social de Eva Perón. (EJSV, p. 126)222
O autor não poupa juízo de valor e adjetivação ao referir-se ao General Franco, ditador
que governava a Espanha, quando Evita lá esteve em sua viagem pela Europa:
[...] La multitud irrumpió en vítores cuando salió con Franco a los balcones del
Palacio Real. Curiosamente, el representante de las ideas más retrógradas y
reaccionarias, el heredero ideológico de los conquistadores y genocidas de América,
lucía en su pecho la condecoración que le otorgó el gobierno argentino: la Orden del
Libertador de América José de San Martín, el hombre que liberó medio continente
del dominio absolutista español. El “Generalísimo” trataba de absorber algo del
carisma de Evita, mientras le imponía la Orden de Isabel la Católica, la reina que
junto a su marido, el también católico rey Fernando, inició el genocidio americano.
Un Franco desconocido dijo, como si estuviesse emocionado: […]. (EJSV, p. 146)223
O fragmento revela crítica não só aos históricos reis espanhóis, Isabel e Fernando, mas
também à Igreja, ao apresentar o adjetivo “católico” como identificação dos sujeitos do
genocídio efetuado na América.
O Papa Pio XII recebe um qualificativo em sua descrição: “[...] Papa de doble moral
que había colaborado con Mussolini y Hitler y ahora lo hacía con sus camaradas
sobrevivientes” (EJSV, p. 158).224 Pigna apresenta não apenas seu juízo de valor, como a tese
221 Tradução nossa: “Evita Duarte era uma estrela em ascensão. Embora algumas revistas tratassem de mostrar
uma imagem de ‘trepadora’ ou ‘arrivista’, estava lutando para sobreviver nesse mundo complexo e
desapiedado”.
222 Tradução nossa: “A história oficial, que foi tão ‘piedosa’ e ‘distraída’ com a Sociedade de Beneficencia,
reservou toda sua ‘agudeza’ e ‘perspicácia’ para questionar até em seus mais íntimos detalhes a monumental
obra social de Eva Perón”.
223 Tradução nossa: “[…] A multidão irrompeu em vivas quando saiu com Franco aos balcões do Palácio Real.
Curiosamente, o representante das ideias mais retrógradas e reacionárias, o herdeiro ideológico dos
conquistadores e genocidas da América, luzia em seu peito a condecoração que lhe outorgou o governo
argentino: a Ordem do Libertador de América José de San Martín, o homem que libertou meio continente do
domínio absolutista espanhol. O ‘Generalíssimo’ tratava de absorver algo do carisma de Evita, enquanto lhe
impunha a Ordem de Isabel a Católica, a rainha que junto ao seu marido, o também católico rey Fernando,
iniciou o genocídio americano. Um Franco desconhecido disse, como se estivesse emocionado: [...]”.
224 Tradução nossa: “Papa de dupla moral que havia colaborado com Mussolini e Hitler e agora o fazia com seus
camaradas sobreviventes”.
138
de que o encontro de Evita com o Papa tinha como fim discutir as bases de um acordo para
ajudar ex-nazistas, refugiando-os em solo argentino.
A caracterização dos opositores ao peronismo feita pelo historiador também apresenta
juízo de valor e adjetivação:
Ciertos sectores de las clases medias y altas no toleraban el ascenso de miembros de
la clase trabajadora hacia posiciones de poder que creían reservadas para ellos.
Algunos personajes que nunca se habían preocupado por la democracia, los derechos
humanos y las libertades públicas, que de manera complaciente habían apoyado las
represiones conservadoras, aparecían ahora como paladines de la libertad
denunciando los atropellos del peronismo. Lamentablemente, este ímpetu libertario
les desaparecerá con la caída de Perón y no verán como antidemocráticos ni los
fusilamientos ni las detenciones de la llamada “Revolución Libertadora”. (EJSV, p.
190)225
Novamente, há o recurso de antecipar eventos que, na narração de temporalidade
linear, só seriam comentados bem mais adiante, como a Revolução Libertadora, ocorrida em
1955. Isto afirma o conhecimento do historiador e sua capacidade avaliativa, embora de modo
bastante subjetivo. Semelhante recurso emprega o autor ao comentar sobre os lares de
acolhimento de crianças, idosos, mães trabalhadoras:
El concepto inovador de estos hogares rompía con los tradicionales depósitos de
ancianos y les devolvia su dignidade. En 1955, las obras de otros tres hogares de la
Fundación, en las províncias de Córdoba, Santa Fé y Tucumán, fueron suspendidas
por el golpe que derrocó a Perón. (EJSV, p. 227)226
O historiador designa, ainda, os opositores como inimigos movidos por pensamento
primitivo e mesquinho:
Los enemigos de Evita se indignaban cuando veían la magnitud de sus logros y
decían que la ayuda social de la Fundación era demagógica y “excesiva”, partiendo
del primitivo y mezquino concepto de que todo aquello era demasiado para “esa
gente acostumbrada a conformarse con poco”, por la que sentían un indisimulable
desprecio, que se iba tornando cada vez más recíproco. (EJSV, p. 214).227
As aspas indicam o discurso direto, a fala alheia, o modo de pensar dos opositores com
o qual não compartilha o autor.
225 Tradução nossa: “Certos setores das classes médias e altas não toleravam a ascensão de membros das classes
trabalhadoras a posições de poder que acreditavam reservadas para eles. Alguns personagens que nunca tinham
se preocupado com a democracia, os direitos humanos e as liberdades públicas, que de maneira complacente
tinham apoiado as repressões conservadoras, apareciam agora como paladinos da liberdade denunciando os
atropelos do peronismo. Lamentavelmente, este ímpeto libertário desaparecerá com a queda de Perón e não
verão como antidemocráticos nem os fuzilamentos nem as detenções da chamada “Revolução Libertadora”.
226 Tradução nossa: “O conceito innovador destes lares rompia com os tradicionais depósitos de anciãos e lhes
devolvia sua dignidade. Em 1955, as obras de outros três lares da Fundação, nas províncias de Córdoba, Santa Fé
e Tucumán, foram suspensas pelo golpe que derrubou Perón.”
227 Tradução nossa: “Os inimigos de Evita indignavam-se quando viam a magnitude de suas conquistas e diziam
que a ajuda social da Fundação era demagógica e ‘excessiva’, partindo do primitivo e mesquinho conceito de
que tudo aquilo era demais para ‘esa gente acostumada a se conformar com pouco’, por quem sentiam um
indissimulável desprezo, que ia se tornando cada vez mais recíproco.”
139
Além dos juízos de valor e da adjetivação, constitui marca de subjetividade e,
portanto, de ficcionalização da história, em EJSV, o modo poético com que o autor narra
alguns eventos, construindo um breve enredo para apresentar situações. Um exemplo é a
narração da chegada da mãe de Evita, Juana Ibarguren, com seus filhos ao enterro de seu pai,
Juan Duarte, que vivia com a família oficial:
Todas las miradas se clavaran en Juana y su prole. Las señoras y los señores
“respetables” no podían creer lo que veían. “Cómo se atreve”, era en aquella tórrida
mañana de verano la frase menos original, que competía con “qué coraje” y “qué
descaro”. (EJSV, p. 21)228
Outro exemplo do modo de narrar poético está na narração sobre o dia da votação em
que Perón havia se candidatado pela primeira vez à Presidência, em 1943, tendo sido eleito:
El 24 de febrero hacía un calor terrible en Buenos Aires: era una jornada
“bochornosa” como les gustaba de decir a los speakers de las radios y escribir a los
redactores de los diarios. Pero lo sería en más de un sentido para la oposición que
descontaba su triunfo. (EJSV, p. 121)229
De modo subjetivo e poético, como narrador onisciente, o historiador narra o estado de
ânimo de Evita:
Evita estava enferma y enojada. Le parecía absolutamente injusto que lo que no
habían logrado los contreras, los gorilas – que todavía no se llamaban así pero
actuaban cono tales –, lo consiguiera su precaria salud. No podía ser que perdiera
esta guerra a muerte por culpa de un mal que surgía de ella misma, de algo que la
atacaba desde adentro, cuando se sentía tan fuerte e invencible para enfrentar y
derrotar a todo lo que quisiera destruirla desde afuera. Se enojaba con los que
querían cuidarla. Indignada con el mundo y con su suerte, repetía: “No tengo
tiempo, los tratamientos son para los oligarcas, para los que no trabajan; mis grasitas
no pueden esperar más, ya esperaron demasiado”. (EJSV, p. 252)230
A informação introduzida por “parecia-lhe” indica o conhecimento pleno do narrador
onisciente. No entanto, sendo o texto biográfico e historiográfico, deveria apresentar a
documentação ou o relato no qual se baseia para fazer tal afirmação. Isto não é feito. Pigna
não apresenta nenhuma fonte. Da mesma forma, procede com a declaração em discurso direto
228 Tradução nossa: “Todos os olhares se cravaram em Juana e sua prole. As senhoras e senhores ‘respeitáveis’
não podiam acreditar no que viam. ‘Como se atreve’, era naquela tórrida manhã de verão a frase menos original,
que competia com ‘que coragem’ e ‘que descaramento’”.
229 Tradução nossa: “Em 24 de fevereiro fazia um calor terrível em Buenos Aires: era uma jornada
‘mormacenta’, como gostavam de dizer os speakers das rádios e escrever os redatores dos jornais. Mas o seria
em mais de um sentido para a oposição que descontava seu triunfo”.
230 Tradução nossa: “Evita estava doente e enjoada. Parecia-lhe absolutamente injusto que o que não tinham
conseguido os opositores, os gorilas – que ainda não eram chamados assim mas atuavam como tais –, o
conseguisse sua precária saúde. Não podia ser que perdesse esta guerra para a morte por culpa de um mal que
surgia dela mesma, de algo que a atacava de dentro, quando se sentia tão forte e invencível para enfrentar e
derrotar a tudo o que quisesse destruí-la de fora. Irritava-se com os que queriam cuidar dela. Indignada com o
mundo e com sua sorte, repetia: ‘Não tenho tempo, os tratamentos são para os oligarcas, para os que não
trabalham; meus grasitas não podem esperar mais, já esperaram demais”.
140
indicado pelas aspas. Embora tenha uma aparência de discurso baseado em documentação,
isto se revela muito frágil porque o historiador não cita a fonte. O mais provável é que seja
especulação para apresentar uma visão de Evita, mais um exemplo de ficcionalização
portanto.
Segue na mesma linha, em outro momento, a narração sobre o sentir de Evita: “Sería
su último 17 de octubre. Eva seguramente lo presentía y por eso su discurso tuvo tanto sabor a
despedida” (EJSV, p. 284).231 A afirmação do pressentimento intensificada pela locução
adverbial “com certeza” precisaria da prova testemunhal para ser investida de objetividade, no
entanto, apesar de ficcional, visto tal prova não ter sido apresentada, apela à credulidade do
leitor que permanece fiel ao pacto biográfico, pois esta é uma afirmação em meio a outras
que, sim, contam com o estatuto da prova.
O recurso da ficcionalização é empregado de forma mais amiúde à medida que a
narração aproxima-se da morte de Evita. A narração passa a um tom mais emocional, em
determinados momentos como, por exemplo, no fragmento abaixo:
Crecía en ella la ansiedad, que se iba convirtiendo en desesperación por todo lo que
le quedaba por hacer. También sentía bronca por la certeza del inmenso alívio, de la
perversa alegría que provocaba su sufrimiento y su inevitable final en sus enemigos,
que no habían dudado en pintar en una parede cercana a la residencia “Viva el
cáncer”. (EJSV, p. 295)232
O leitor que já leu a respeito da história de Evita sabe que a inscrição na parede é real,
entretanto Pigna não apresenta fonte quando a menciona, possivelmente contando com o
conhecimento prévio do leitor. Esse fato real ao lado da descrição dos sentimentos de Evita,
também sem comprovação documental, além da profecia post eventum233 sobre sua morte,
parecem ter o efeito de afirmar a onisciência do narrador que segue ficcionalizando os fatos
históricos:
Seis días después, el 7 de mayo, cumplía 33 años. Pesaba 37 kilos y le pesaba
horriblemente ese saberse morir, esa maldita sensación de irse con tantas cosas por
hacer, con tantos hospitales, hogares y escuelas por inaugurar. Se preguntaba y
preguntaba: ¿Por qué me tengo que morir yo? Por qué me estoy muriendo y no se
mueren tantos hijos de puta que no hacen otra cosa que pensar en sí mesmos y en
231 Tradução nossa: “Seria seu último 17 de outubro. Eva com certeza o presentia e por isso seu discurso teve
tanto gosto de despedida”.
232 Tradução nossa: “Crescia nela a ansiedade, que ia se convertendo em desespero por tudo o que lhe ficava por
fazer. Também sentia irritação pela certeza do imenso alívio, da perversa alegria que provocava seu sofrimento e
seu inevitável fim em seus inimigos, que não haviam duvidado em pixar numa parede próxima à residência
‘Viva o câncer’”.
233 Refere-se ao acontecimento que teve lugar antes que o texto fosse escrito.
141
cómo joder a los demás? Evita sabía que no habría más cumpleaños, que aquél sería
el último, el número 33; como Jesús, se atrevió a pensar. (EJSV, p. 305)234
Na narrativa, em algumas ocasiões, o narrador dirige-se ao leitor apenas para retornar
a um ponto específico, “cómo vimos en el capítulo anterior” (EJSV, p. 253)235; para introduzir
uma contextualização, como em “Recordemos que, en el marco de la guerra, Estados Unidos
había incluído al celuloide en la lista de artículos “estratégicos”, que sólo eran providos a
naciones aliadas” (EJSV, p. 93),236 quando comenta a produção de filmes na Argentina no
contexto da Segunda Guerra; para indicar ironicamente a situação da Sociedade de
Beneficência que movimentava altas somas de dinheiro, mas não para repartir entre os pobres,
tampouco para remunerar bem os funcionários, “El lector podrá pensar que las enfermeras,
médicos, mucamas y asistentes de la Sociedad cobraban muy buenos sueldos, porque a ellos
también alcanzaba la “beneficencia”; [...]” (EJSV, p. 126);237 ou para fornecer meios de os
leitores verificarem com seus próprios olhos aquilo que descreve:
Si los lectores desean vivir la muy interesante experiencia de conocer cómo era una
de estas instituciones y de palpar de cerca la calidez y el lujo, pueden acercarse a
Lafinur 2988 en la ciudad de Buenos Aires, sede actual del Museo Evita, donde
funcionaba el Hogar de Tránsito Nº 2, que milagrosamente sobrevivió a la furia de
los “libertadores”. (EJSV, p. 225)238
Esta abertura à metalinguagem possibilita ao autor levar de volta o leitor à construção
da narrativa. Indica ficcionalização da história pois reafirma que há um narrador que manipula
os dados e os organiza como melhor lhe aprouver segundo os propósitos de sua narrativa.
Outro ponto que revela subjetividade é a expressão de incertezas. Ao narrar o velório
de Evita, o historiador diz que diante de seu ataúde, enquanto passava a multidão, havia choro
e desmaios e faz o seguinte relato: “En aquellos días murieron unas veinte personas por
234 Tradução nossa: “Seis días depois, em 7 de maio, completaría 33 anos. Pesava 37 quilos e lhe pesava
horrivelmente saber que ia morrer, essa maldita sensação de se ir com tantas coisas por fazer, com tantos
hospitais, lares e escolas por inaugurar. Perguntava-se e perguntava: Por que eu tenho que morrer? Por que
estou morrendo e não morrem tantos filhos da puta que não fazem outra coisa que pensar em si mesmos e em
como foder aos demais? Evita sabia que não haveria mais aniversários, que aquele seria o último, o número 33;
como Jesus, atreveu-se a pensar”.
235 Tradução nossa: “como vimos no capítulo anterior”.
236 Tradução nossa: “Recordemos que, no marco da guerra, Estados Unidos havia incluído o celuloide na lista
dos artigos ‘estratégicos’, que só eram vendidos a nações aliadas.”
237 Tradução nossa: “O leitor poderá pensar que as enfermeiras, médicos, criadas e assistentes da Sociedade
recebiam salários muito bons, porque eles também eram alcançados pela beneficência; [...]”.
238 Tradução nossa: “Se os leitores desejam viver a muito interesante experiência de conhecer como era uma
destas instituições e de notar de perto a calidez e o luxo, podem se aproximar de Lafinur 2988 na cidade de
Buenos Aires, sede atual do Museu Evita, onde funcionava o Lar de Trânsito Nº 2, que milagrosamente
sobreviveu à fúria dos ‘libertadores’”.
142
aplastamientos, avalanchas e infartos” (EJSV, p. 329, grifo nosso).239 Essa imprecisão
numérica através do pronome indefinido mostra a incerteza, consequentemente, a ausência de
objetividade. É uma informação que poderia, ou talvez devesse, ser suprimida, visto que o
historiador tem um compromisso com aquilo que se pode verificar, no entanto, no texto,
cumpre o papel de enfatizar a extensão e magnitude do desespero do povo pela morte de sua
líder. No parágrafo seguinte, mais uma imprecisão, agora pronominal:
En la misma ciudad, en algunos barrios selectos escaseaba el champagne
demandado por los enemigos de “la yegua” que no paraban de brindar, lejos de la
peligrosa mirada de la servidumbre que “insolentemente” se había tomado franco
por su cuenta para estar junto a su abanderada. (EJSV, p. 329, grifo nosso)240
A ausência de identificação dos bairros, designados apenas pelo pronome indefinido
“alguns”, indica a subjetividade do evento narrado que tem aparência de lenda ou boato. É
uma informação que não é imprescindível ao relato, mas que intensifica a polaridade existente
na Argentina naquele momento e que culminará na Revolução Libertadora e na perseguição
aos peronistas. Por meio dela, é possível vislumbrar a opinião do historiador que incorpora o
discurso alheio ao seu através do recurso das aspas, indicando que, para ele, Evita não é égua,
nem a falta ao serviço seria uma insolência.
Além dessa indefinição relativa à linguagem, há imprecisão quanto a fontes, também,
na forma da omissão como, por exemplo, ao citar o famoso estilista: “Christian Dior
sucumbió al deseo de vestirla y declaró años más tarde: ‘a la única reina que vestí fue a Eva
Peron’.” (EJSV, 168).241 Considerando-se a hipótese de que tal declaração seja de
conhecimento público, ainda assim precisaria ser respaldada na biografia histórica pela
citação da fonte. Outro exemplo de omissão de fonte é a afirmação de que a autobiografia de
Evita, LRMV (1951), foi ditada a um jornalista espanhol, Manuel Penella de Silva (EJSV, p.
283). A hipótese aqui, uma vez mais, é que a informação pode ter sido dada pelo próprio
jornalista, no entanto omitida a fonte na biografia, a declaração é tomada como versão
definitiva.
A indefinição observada nesses fragmentos é algo que poderia destoar do conjunto de
informações fornecidas pelo historiador em sua biografia, porque poderia ser tomada como
239 Tradução nossa: “Naqueles días, morreram umas vinte pessoas por pisoteamentos, avalanches e infartos”
(grifo meu).
240 Tradução nossa: “Na mesma cidade, em alguns bairros seletos escasseava o champanhe reivindicado pelos
inimigos ‘da égua’ que não paravam de brindar, longe do perigoso olhar dos serviçais que ‘insolentemente’
haviam tirado folga por sua conta para estar junto de sua porta voz” (grifo nosso).
241 Tradução nossa: “Christian Dior sucumbiu ao desejo de vesti-la e declarou anos depois: ‘a única rainha que
vesti foi Eva Perón’”.
143
inverdade, no entanto trabalho com as perspectiva da ficcionalização da história que necessita
de um enredo narrativo para contar-se de modo atraente ao leitor não acadêmico.
Com tais marcas de subjetividade, em conjunto, quais sejam: juízos de valor;
adjetivação; modo poético de narrar; comunicação com o leitor e indefinição; o texto
biográfico revela ficcionalização da história visto que não oculta o autor, nem se apresenta
objetivamente, de acordo com o gênero historiográfico (embora a neutralidade seja um mito)
e, além disso, traz criação ficcional de situações e pensamentos.
4.2.2 Contando uma história: enredo e diálogo
O diálogo na narrativa permite a troca de ideias apresentando a comunicação de forma
mais direta. Na biografia analisada, não há uso da marca formal tradicional, o travessão. O
texto é citado entre aspas, indicando a alternância dos sujeitos, seguido de breves indicações
por parte do narrador quanto a quem fala que, talvez, fossem dispensáveis, no entanto
constituem um meio de indicar uma interpretação da situação. Este recurso marca a
ficcionalização da história, visto que o evento, o ato dos trabalhadores sobre a fórmula Perón-
Perón para a Presidência, poderia ter sido narrado de modo objetivo, entretanto o narrador
revela-se um criador de enredos que disponibiliza aos personagens de sua narrativa um
momento de fala direta.
A narrativa refere-se ao dia 22 de agosto de 1951, ocasião em que o Partido
Justicialista apresentaria seus candidatos para concorrer à eleição presidencial em um ato
público, o “Cabildo Abierto del Justicialismo”, para o qual o governo havia direcionado toda
sua infraestrutura: “Los trenes y los ómnibus desde todos los puntos del país fueron gratuitos.
A los manifestantes llegados de todas las partes se los alojó, se les proveyó de viandas y se les
agasajó con asados, bailes, funciones de cine y teatro” (EJSV, p. 264).242 Uma grande
multidão reuniu-se no local, na interseção entre as avenidas 9 de Julio e Belgrano, em frente
ao Ministério de Obras Públicas: “Habían venido de todos lados. Eran famílias enteras que
pugnaban por ver a Evita” (EJSV, p. 265).243
O historiador narra de modo a antecipar os acontecimentos, um recurso que prende a
atenção dos leitores, declarando a decepção que o povo irá sofrer, visto que se reuniu com um
242 Tradução nossa: “Os trens e os ônibus de todos os pontos do país foram gratuitos. Os manifestantes chegados
de todas as partes foram alojados, providos de alimentos e obsequiados com churrascos, bailes, sessões de
cinema e teatro.”
243 Tradução nossa: “Tinham vindo de todos os lados. Eram famílias inteiras que lutavam para ver Evita”.
144
propósito, mas sairá desconcertado com o resultado do ato (EJSV, p. 265). Enquanto
discursam o líder da CGT, José Espejo, seguido de Perón, o povo grita em coro o nome de
Evita: “Sólo hubo silencio cuando Evita subió al palco y se acercó al micrófono...” (EJSV, p.
266). 244 Em sua fala, a líder diz que o povo está de pé contra a oligarquia, e o povo grita:
“Con Evita, con Evita, con Evita...”, 245enquanto ela faz um balanço da obra do governo e
tenta dissuadir a multidão que esperava que ela fosse candidata junto a Perón.
O povo não aceita e começa o diálogo que mais se parece uma discussão de Evita com
a multidão:
Y allí se escuchó claramente la palabra que nadie quería escuchar: “Compañeros.
Compañeros…, compañeros. Compañeros: yo no renuncio a mi puesto de lucha, yo
renuncio a los honores…” y agregó: “Yo haré, finalmente, lo que decida el pueblo.
¿Ustedes creen que si el puesto de vicepresidenta fuera un cargo y si yo hubiera sido
una solución no habría contestado que sí?” Pero la gente no quería más evasivas y
gritaba: “Contestación, contestación”. Y Evita respondió: “Compañeros: por el
cariño que nos une, les pido por favor no me hagan hacer lo que no quiero hacer. Se
lo pido a ustedes como amiga, como compañera. Les pido que se desconcentren”.
Nada parecía calmar la multitud y Evita probó: “Compañeros: ¿Cuándo Evita los ha
defraudado? ¿Cuándo Evita no ha hecho lo que ustedes desean? Yo les pido una
cosa: esperen a mañana”. José Espejo no tuvo una muy buena idea cuando dijo por
el micrófono: “Compañeros: La compañera Evita nos pide dos horas de espera. Nos
vamos a quedar aquí. No nos moveremos hasta que nos dé la respuesta favorable”.
Se ganó una mirada fulminante de Perón que empezó a repetir insistentemente:
“Levanten este acto, ¡basta ya!”. (EJSV, p. 267)246
O narrador cria um enredo no qual apresenta o breve e intenso diálogo sem mencionar
diretamente os documentos nos quais se baseia. Pelo uso das palavras “se escutou”, “gritava”,
“ganhou um olhar fulminante”, é possível afirmar que talvez tenha se apoiado em
documentários ou vídeos de noticiários da época que lhe forneceram a imagem que descreve
em sua narrativa. Conclui a história da candidatura frustrada contando que o Partido Peronista
Feminino e integrantes do secretariado da CGT proclamaram oficialmente, no dia 28 de
agosto de 1951, a candidatura de Eva Perón sem que ela tivesse confirmado. Três dias depois,
244 Tradução nossa: “Só houve silêncio quando Evita subiu ao palco e se aproximou do microfone…”.
245 Tradução nossa: “Com Evita, com Evita, com Evita…”.
246 Tradução nossa: “E ali se escutou claramente a palabra que ninguém queria escutar: ‘Companheiros,
Companheiros... companheiros. Companheiros: eu não renuncio ao meu posto de luta, eu renuncio às honras...” e
acrescentou: “Eu farei, finalmente, o que o povo decidir. Vocês crêem que se o posto de vicepresidente fosse um
cargo e se eu tivesse sido uma solução não teria respondido que sim?’ Mas as pessoas não queriam mais evasivas
e gritavam: “Contestação, contestação”. E Evita respondeu: ‘Companheiros: pelo carinho que nos une, peço-lhes
por favor não me façam fazer o que não quero fazer. Peço a vocês como amiga, como companheira. Peço-lhes
que se desconcentrem’. Nada parecia acalmar a multidão e Evita experimentou: ‘Companheiros: Quando Evita
os defraudou? Quando Evita não fez o que vocês desejam? Eu lhes peço uma coisa: esperem amanhã’. José
Espejo não teve uma ideia muito boa quando disse pelo microfone: ‘Companheiros: A companheira Evita nos
pede duas horas de espera. Vamos esperar aqui. Não nos moveremos até que nos dê a resposta favorável’.
Ganhou um olhar fulminante de Perón que começou a repetir insistentemente: ‘Suspendam esse ato, já basta!’”.
145
finalmente, Evita anuncia pela cadeia de rádio sua decisão, que passou à história peronista
como o “Día del Renunciamiento” (EJSV, p. 269).247
Pigna retoma a objetividade ao discutir várias interpretações para a renúncia, que se
voltam sobre as razões de sua pré-candidatura e o apoio que teria recebido ou não por parte de
Perón (EJSV, p. 269). Para os antiperonistas, Perón havia sido pressionado pelos militares e
pela Igreja a pedir que não se candidatasse. Esta versão também é defendida por Borroni e
Vacca, biógrafos citados pelo historiador. Já outra biógrafa, Marysa Navarro, segundo o autor,
relaciona outras questões à oposição militar e da Igreja: a saúde de Evita e a posição adotada
por Perón (EJSV, p. 270). Segundo alguns peronistas, Evita não queria ocupar esse cargo e
esse teria sido um modo de impedir as eleições internas pela vice-presidência no partido. Para
sustentar essa versão e revelando sua concordância, Pigna cita o ex deputado Rodolfo Decker
e o jornalista Dardo Cabo:
La idea de promover la fórmula Perón-Eva Perón, sabiendo que no llegaría a feliz
término, le servía a Perón para obturar el segundo término del binomio, un lugar
conflictivo que parecía ocupado indiscutiblemente por su mujer y que le permitiría,
tras el “renunciamiento”, presentar el hecho consumado de la postulación del
veterano e inofensivo Hortencio Quijano. La candidatura del viejo radical
antipersonalista y vicepresidente decorativo en ejercicio desmentía, a quien quisiera
verlo, la versión de que Evita no sería candidata por razones de salud, ya que don
Hortencio padecía un cáncer tan fulminante que no lo dejaría asumir su cargo. Murió
el 3 de abril de 1952, dos meses antes de que Perón asumiera, por segunda vez y sin
vice, la presidencia. (EJSV, 272)248
O modo de narrar essa versão dos fatos constitui a consumação do enredo criado que,
junto ao diálogo e à subjetividade, ficcionaliza a história, deixando transparecer a construção
da narratividade.
Desta forma, observei a relação entre a história e a ficção na representação política de
Eva Perón, em EJSV, uma biografia histórica, que apresenta elementos textuais e paratextual,
criadores do efeito de historicidade, por um lado, como a cronologização, a contextualização,
a conceitualização, a discussão das fontes (textuais) e a autoria do historiador (paratextual); e
que, por outro lado, revelam a ficcionalização da história, tais como subjetividade, enredo e
diálogo.
247 Tradução nossa: “Dia do Renunciamento”.
248 Tradução nossa: “A ideia de promover a fórmula Perón-Eva Perón, sabendo que não chegaria a feliz término,
servia a Perón para obturar o segundo termo do binômio, um lugar conflitivo que parecia ocupado
indiscutivelmente por sua mulher e que lhe permitiria, depois do ‘renunciamento’, apresentar o fato consumado
da postulação do veterano e inofensivo Hortencio Quijano. A candidatura do velho radical antipersonalista e vice
presidente decorativo em exercício desmentia, a quem quisesse vê-lo, a versão de que Evita não seria candidata
por razões de saúde, já que don Hortencio padecia um câncer tão fulminante que não o deixaria assumir seu
cargo. Morreu em 3 de abril de 1952, dois meses antes de que Perón assumisse, pela segunda vez e sem vice, a
presidência”.
146
5. MARGENS CONFLUENTES: O IMAGINÁRIO EVITISTA
A análise da relação entre história e ficção na representação de Eva Perón,
considerando a representação autobiográfica, a hagiográfica e a política, levou-nos ao
elemento que une as obras constituintes do corpora desta pesquisa e que está na confluência
entre os dois campos: o mito de Evita. Este manifesta-se no imaginário a respeito da ex
primeira dama argentina, construído social e literariamente, nutrindo-se da literatura, por um
lado, e a ela alimentando, por outro.
Para não resvalar e cair na análise puramente sociológica, para a qual me faltariam
elementos, além de que sairia do foco de análise desta pesquisa, este capítulo apresenta a
reflexão sobre o mito de Evita a partir das próprias obras que analiso ao longo deste trabalho.
Com este fim, inicio com a apresentação do mito evitista num contexto mais amplo, apoiada
em obras que fizeram sua cronologia, para depois relacionar as três representações analisadas,
observando o imaginário evitista.
5.1 O mito de Evita
Logo após sua morte, Evita converteu-se num mito ou em vários mitos, de acordo com
Beatriz Sarlo (1999, p. 302, tradução nossa), “pois sobre ela projetaram-se distintas imagens
identificadoras do peronismo: a providente, a mediadora entre o líder e seu povo e a
combativa e militante”.249 A singularidade de Eva, segundo Sarlo (1995, p. 22), explica o
fascínio, o ódio, a devoção com que foi cercada. A ensaísta aponta também a
excepcionalidade de Eva Perón que a transformou num mito:
Seu caráter excepcional não se mantém só pela beleza, nem pela inteligência, nem
pelas ideias, nem pela capacidade política, nem sequer pela origem social, nem por
sua história de interiorana humilhada que vai à forra quando chega ao topo. Existe
algo de tudo isso: Eva seria uma soma em que cada elemento é relativamente
comum, mas esses elementos, todos juntos, formam uma combinação desconhecida,
perfeitamente apta a construir uma personagem para um cenário também novo,
como era a política de massas do pós-guerra. [...] Muito daquilo que, depois, foi a
base de seu magnetismo corporal estava na origem de seu fracasso como aspirante
ao mundo superpovoado da indústria cultural argentina. Sua diferença, que a
favoreceu na cena política, não a impulsionara na cena do radioteatro nem do
cinema. (SARLO, 1995, p. 21)
249 No original: “pues sobre ella se proyectaron distintas imágenes identificadoras do peronismo: la providente, la
mediadora entre el líder y su pueblo y la combativa y militante”.
147
Para Sarlo (2005, p. 21), a aparência de Eva, insignificante no mundo do espetáculo,
era excepcional na cena política. O fato de ser deslocada, de estar fora do lugar, unido à
paixão que Eva sentiu pelo marido e, depois, pela ação política contribuiu para sua
excepcionalidade. Até mesmo suas roupas têm importância no seu estado de exceção: “A
roupa de Eva foi um negócio de Estado para um regime que descobriu as formas modernas da
propaganda política e o peso decisivo da iconografia” (ibdem, p. 75).
Na mitologia evitista, há espaço para Evita rainha, rainha da moda, a única rainha
vestida por Christian Dior, segundo suas palavras. A beleza do corpo jovem de Eva
proporcionava ao regime a sustentação da ficção que fundava sua própria figura
dupla: de um lado, como ela o repete dezena de vezes em La razón de mi vida, a
mulher humilde e ignorante que é a mulher do presidente; de outro, a manifestação
concreta do regime peronista, como intérprete e representante do líder. (SARLO,
2005, p. 98)
De acordo com Rosano, a figura de Eva Perón guarda uma hibridização das lógicas de
representação do Estado e as da indústria cultural: “Apenas ela foi capaz de misturar-se com a
multidão e ganhar, assim, no imaginário popular, um lugar de lenda” (2005, p. 19, tradução
nossa).250
Segundo Marysa Navarro (2012, p. 98), a mitologia evitista possui vitalidade
exuberante ainda hoje; contém aspectos das duas visões antagônicas a respeito de Evita, com
forte predomínio da mais negativa; é mais poderosa que os fatos aos quais supostamente se
refere, isto porque muitos desses fatos são, segundo a autora, comprovadamente falsos. A
atualidade do mito evitista manifesta-se no próprio corpora desta pesquisa ao pensarmos na
distância temporal que SE e EJSV guardam entre si, publicadas em 1995 e 2012,
respectivamente (a quarenta e três e a sessenta anos da morte de Evita), e entre LRMV,
publicada em 1951.
A oposição peronismo e antiperonismo tem forte influência na mitologia evitista
manifestando-se em duas visões diametralmente opostas da mesma pessoa. Inicio a reflexão
pela visão antiperonista, da qual farei breve apanhado, atendo-me, posteriormente, ao mito
como manifesto no corpora da pesquisa, mais aproximado da mitologia peronista.
A mitologia da antievita foi propagada pelos opositores ao governo peronista,
sobretudo após a Revolução Libertadora (1955) que não apenas retirou Perón do poder como,
de modo revanchista, condenou toda realização peronista bem como manifestações de apoio
ao regime. A versão da antievita recebeu influência, principalmente, da obra La mujer del
250 No original: “Sólo ella fue capaz de entremezclar-se con la multitud, y ganarse así en el imaginario popular
un lugar de leyenda”.
148
látigo,251 de Mary Main, romancista e jornalista norteamericana que representa Evita como
uma “mulher dura, má atriz, ressentida e sedenta de vingança por sua origem social e a vida
difícil que teve” (NAVARRO, 2012, s/p, tradução nossa).252
Outras duas obras contribuem para a visão negativa do mito de Evita, também
chamado por Navarro de mito da Mulher Maravilha, justamente por apresentar uma Super
Mulher que tudo controla e domina (2002, p. 32); são elas: Bloody precedent, de Fleur
Cowles, e El mito de Eva Duarte, de Américo Ghioldi.253 A jornalista norteamericana Fleur
Cowles constrói em sua biografia de Eva Perón uma representação em que Encarnación
Ezcurra, esposa de Juan Manuel de Rosas, seria antecedente da primeira dama peronista,
seguindo a mesma linha de Américo Ghioldi que também as havia relacionado (NAVARRO,
2002, p. 22). Segundo Suzana Rosano (2005, p. 124), a biografia escrita por Cowles afirma
que Encarnación e Evita usaram o casamento para construir seu próprio prestígio e poder; e a
escrita por Ghioldi defende que o mito de Eva foi criado intencionalmente pelo governo
peronista.
Segundo esse ponto de vista antiperonista, Perón representava a versão moderna do
passado bárbaro argentino identificado com o regime de Rosas: “Encarnación Ezcurra era o
antecedente de Evita, porque Rosas era o antecedente histórico de Perón. Rosas foi ‘o
primeiro tirano argentino’, segundo palavras de Américo Ghioldi, e Perón, o segundo”
(NAVARRO, 2002, p. 24, tradução nossa).254 O velho conflito entre liberais e nacionalistas
na Argentina acentuou-se durante a Segunda Guerra Mundial em que os liberais vêem crescer
os “nazifascistas locais”. Com o golpe militar de 1943, a polarização entre liberais ou
“democráticos” e nacionalistas ou “nazifascitas locais” aumentou com a oposição ao governo
militar. A oposição identificava o nazifascismo com as políticas adotadas pelo governo,
sobretudo as tomadas pelo Secretário do Trabalho, Juan Perón. Foram porta-vozes dessa
perspectiva o Departamento de Estado dos Estados Unidos, no campo internacional, e grande
parte dos partidos políticos, no nacional, principalmente o Partido Socialista. A oposição, com
251 Publicada em Nova York, em 1952, sob pseudônimo de María Flores. Publicada na Argentina com o nome
verdadeiro da autora, Mary Main, após a Revolução Libertadora.
252 No original: “mujer dura, mala actriz, ressentida y sedienta de venganza por su origen social y la vida difícil
que había tenido”.
253 Bloody precedent (Antecedente sangrento) foi publicada em Nova York, em 1952. El mito de Eva Perón foi
publicada no Uruguai, também em 1952. Apenas a última foi publicada na Argentina logo após a Revolução
Libertadora.
254 No original: “Encarnación Ezcurra era el antecedente de Evita porque Rosas era el antecedente histórico de
Perón. Rosas fue ‘el primer tirano argentino’, según palabras de Américo Ghioldi, y Perón, el segundo”.
149
apoio da Embaixada dos Estados Unidos, uniu-se contra Perón nas eleições de 1946, no
entanto este foi vitorioso. Os conservadores não se recuperaram da derrota e a esquerda
perdeu sua base natural, a classe trabalhadora, para Perón. Embora o governo norteamericano
com o passar do tempo mude sua política exterior com a Argentina, a imprensa
norteamericana continua vendo Perón como um ditador nazifascista. Os liberais argentinos
também não mudam de opinião e passam a vê-lo como o novo Rosas, portanto o “Segundo
Tirano”. Estabelece-se no país uma política maniqueísta: de um lado, uma oposição frustrada,
furiosa e impotente, de outro, um governo exultante, arrogante e personalista (NAVARRO,
2002, p. 24-25).
É nesse contexto que surge a mitologia evitista que, segundo Navarro, no aspecto
antiperonista, dá forma a uma criatura irreal, extraordinária e cheia de contradições, existente
apenas em sua imaginação: a Mulher Maravilha em sua encarnação argentina, que elege seu
homem e o põe no governo, torna-se autoritária e enriquece, é ambiciosa, fria e calculista. Um
exemplo da sua atuação como super heroína seria sua atuação na crise de 1945, quando teria
tirado Perón da prisão e o levado em triunfo pelas ruas até a Casa Rosada para que discursasse
às multidões (2002, p. 32). No entanto, sabe-se, como apontado por Pigna (EJSV, p. 111) e
também pela própria autobiografia de Evita (LRMV, p. 42) que esta não teve grande
participação neste evento, tendo sido o clamor popular responsável pela libertação de Perón,
ou seja, cristalizou-se no imaginário uma ideia sobre o evento que não corresponde ao que
realmente aconteceu. Isto comprova a afirmação de Navarro de que os relatos nos quais apoia-
se esse mito antiperonista são pobres em fatos concretos e em fontes, mas são aceitos como se
fossem verdades inquestionáveis (2002, p. 34).
Outro exemplo dado por Navarro (2002, p. 39) do quanto o discurso antiperonista
pretende ser um relato histórico e assim é aceito, embora seja ficção, é a atuação de Evita,
como Mulher Maravilha, que cria a Fundação Eva Perón para vingar-se por ter sido rejeitada
pelas senhoras da sociedade de beneficência. No entanto, segundo a autora, a passagem dessa
instituição ao Estado não foi decisão de Evita. Resultou de um processo de modernização do
Estado, parte de um plano elaborado por vários governos, sendo o primeiro passo dado em
1943, quando foi criada a Direção Nacional de Saúde Pública e Assistência Social. Afirma a
autora que embora o conto do enfrentamento de Evita com as oligarcas pareça mais
interessante que a apresentação pormenorizada de documentos e decretos que comprovam o
contrário ele pouco tem a ver com a realidade (2002, p. 41). Segundo Andrés Avellaneda
150
(2002, p. 3), isto ocorre, porque, em matéria de literatura e política, interessa mais a
discursividade (ficcional) do que a referencialidade.
Compõe o mito antiperonista a ideia de Eva como forte e Perón fraco e covarde,
“única explicação possível para que um homem pudesse permitir que sua esposa ganhasse
tanto poder e influência” (NAVARRO, 2002, p. 36, tradução nossa).255 A autora destaca,
assim como Pigna, o quanto é significativo que nessas biografias, bem como em muitas obras
peronistas, não seja mencionada a atuação política de Evita. Muitas obras antiperonistas são
especulativas e apresentadas com o objetivo de revelar “a verdadeira Evita”, “a outra face de
Evita”, contar “sua verdadeira história” como se apenas eles tivessem acesso à verdade.
Detinham-se em temas como seus amantes, seu péssimo desempenho como atriz, sua
personalidade vingativa e ambiciosa, buscando revelar um retrato íntimo, sem no entanto
apresentar fontes ou provas (NAVARRO, 2002, p. 36):
Mas ao deixar de lado sua atuação política e ignorar o papel que desempenhava na
política argentina, arrancavam-na do político, silenciavam-na e a despolitizavam,
produzindo-se assim uma situação extraordinária já que Evita foi a fundadora e
presidente de um partido político, o Partido Peronista Feminino, que trabalhou
decididamente para que as mulheres argentinas se organizassem e votassem em
Perón em 1951, era a celebrada “Porta-voz dos Descamisados”, o laço de união
entre Perón e a Confederação Nacional do Trabalho (CGT), a única mulher que fazia
parte do Conselho Superior do Partido Peronista e, durante um tempo, foi candidata
a vice-presidência da Argentina. Uma mulher que, quando descobriu a política,
apaixonou-se perdidamente por ela, e que desde 1946 até quando caiu enferma em
1951, praticamente não deixou de fazer política. (NAVARRO, 2002, p. 36, tradução
nossa)256
Ao mesmo tempo em que se difundia um retrato despolitizado de Evita, o governo de
Aramburu parecia ter clareza sobre o significado político e emocional de Eva para os
peronistas e o simbolismo de seu cadáver embalsamado, razão pela qual os militares
desaparecem com o corpo, transformando-a, segundo Navarro (2002, p. 37), na primeira
desaparecida das ditaduras que se seguiriam. Além disso, o rigor antiperonista da primeira
década da Revolução Libertadora acabou por tornar irresistível a fantasia do peronismo.
Dessa forma, como aponta Andrés Avellaneda (2002, p. 1), o peronismo foi um fato maldito
255 No original: “única explicación posible para que un hombre pudiera permitir que su esposa ganara tanto poder
e influencia”.
256 No original: “Pero al dejar de lado su actuación política e ignorar el papel que desempeñaba en la política
argentina, la arrancaban de lo político, la silenciaban y la despolitizaban, produciéndose así una situación
extraordinaria ya que Evita fue la fundadora y presidente de un partido político, el Partido Peronista Femenino,
que trabajó denodadamente para que las mujeres argentinas se empadronaran y votaran por Perón em 1951, era
la celebrada ‘Abanderada de los Descamisados’, el lazo de unión entre Perón y la Confederación Nacional del
Trabajo (CGT), la única mujer que formaba parte del Consejo Superior del Partido Peronista y, durante un
tiempo, fue candidata a la vicepresidencia de la Argentina. Una mujer que cuando descubrió la política, se
apasionó perdidamente por ella, y que desde 1946 hasta que cayó enferma en 1951, prácticamente no dejó de
hacer política”.
151
brevemente depois de 1955, com a literatura antiperonista; começou a deixar de sê-lo nos
anos 1960 e 1970, no reexame da relação entre literatura, sociedade e política; e reciclou-se,
por fim, como intertexto dos mitos sociais argentinos na literatura recente.
Para Suzana Rosano (2005, p. 14), Eva Perón foi condenada por muitos argentinos
baseados num imaginário associado a um estereótipo de feminilidade: a mulher como centro,
protetora do lar; no entanto este mesmo estereótipo permitiu a construção da representação de
Evita pela narrativa oficial peronista. Essa aproximação no fundo do imaginário evitista entre
os dois pólos é possível, porque, segundo Sarlo (1995, p. 21), as qualidades de seu corpo “não
esgotam nenhum mito, mas sustentam todos eles. A paixão move o corpo coberto pelos
vestidos [...].”
A paixão a que se refere Sarlo apresenta-se em forma narrativa em LRMV, obra
autobiográfica em que Eva Perón constrói uma imagem de si vinculada ao projeto político
peronista, como já mencionado, e lança as bases do que viria a ser o mito evitista. Para uma
sociedade patriarcal, Eva apresenta-se como mulher, em segundo plano, sempre ao lado de
Perón. Reafirma o papel da mulher como esposa e mãe, responsável pelo lar e pela família,
alegorizando inclusive a pátria e o povo como lar e família. Ao elaborar a primazia de Perón,
Eva chega ao ponto de apagar parte de sua identidade em sua autobiografia, não mencionando
seu passado como atriz, relatando o encontro com Perón e como este transformou sua vida.
Chama a atenção o quanto Eva, embora tenha papel protagônico no peronismo, insiste em
colocar-se fora do centro, no entanto apresentando-se como um modelo a ser seguido em sua
devoção a Perón. Isto talvez se deva ao intento de buscar um local de fala sem romper
completamente com os valores sociais vigentes. Ao mesmo tempo, o peronismo, ao tornar
esse discurso oficial, um verdadeiro “manifesto peronista”, mostra-se bastante habilidoso ao
aglutinar as massas a Perón através da instrumentalidade de Evita.
Nas bases da mitologia evitista, estão a eleição de Evita para cumprir um destino; sua
mediação entre Perón e o povo, e o fanatismo com o qual devota seus esforços ao líder. Eva
credita a uma força que pode ser chamada de Deus, destino ou providência, sua eleição para
realização de uma missão para a qual não foi forçada, mas aceitou cumpri-la generosamente
(LRMV, p. 50), desde que conheceu Perón. Ora, o encontro aproximado ao que,
religiosamente, chama-se “conversão”, Eva teve com Perón. Esse fato que transformou sua
vida que, pela leitura de sua autobiografia, poderia ser entendida como dividida em dois
períodos: antes e depois de Perón. Antes, período que não merece consideração, apenas no
que se refere ao que serviu para moldar seu caráter e pôde ser utilizado pela causa peronista
152
como, por exemplo, sua indignação frente à injustiça. E depois, quando tudo passa a ter
sentido e suas ações ganham importância, pois são fruto de indignação frente à injustiça e
paixão pela justiça social motivada por seu marido e líder. Perón é, desta forma, apresentado
como um tipo de Cristo, aquele no qual creram os humildes quando surgiu menino em Belém
(LRMV, p. 38). O texto de LRMV contém vários elementos messiânicos, sendo Evita também
um tipo de Cristo, ao assumir função mediadora. Assim como o Filho na concepção cristã é o
mediador entre Deus e os homens, estava Evita entre Perón e o povo cumprindo idêntica
função. Essas características messiânicas são, segundo o discurso de Evita, voltadas à
construção de uma ordem social cristã oposta ao liberalismo e ao comunismo, como bem
observou Rosano (2005, p. 54), o que possibilitou que os Montoneros a tomassem como líder
nos anos 1970.
O modo como Eva dá a conhecer em sua autobiografia seu caráter geminado, isto é,
composto por duas personalidades que se manifestam de acordo com a função social que
desempenha, também se torna uma das bases de seu mito. Deixa Eva Duarte para trás, e já
nem a menciona mais, passa a ser Eva Perón que contém em si Evita. No trato social e
político como primeira dama, é Eva Perón, mas quando está diante do povo é Evita e este
papel que desempenha, o melhor papel e seu desempenho mais bem sucedido, é o seu
preferido. Como Evita, ela é a ponte estendida entre Perón e o povo, a mediadora.
A tarefa mediadora é cumprida por Evita de modo exagerado, fanático. Poderia aqui
afirmar de outro modo: sobre sua tarefa mediadora, Evita declara-se exagerada e fanática. No
entanto, esse discurso, se confrontado com fatos, revela-se verdadeiro, visto que é sabido que
trabalhava longas jornadas em atendimento ao povo, com urgência em fazer justiça social,
deixando-se consumir. Isto alimenta o mito crístico: a ideia de que entregou sua vida em prol
dos mais necessitados. Além disso, o fato de que seu discurso possa ser comprovado por seus
atos ajuda aos seus simpatizantes a fixar a ideia de que seu relato é verdadeiro.
Cabe ressaltar que esse empenho fanático devotado a Perón é exemplar, destinado a
formar as bases peronistas, sendo LRMV tomado como um catecismo do peronismo. Nesse
catecismo, relata-se a história de amor de uma mulher por um homem que é alegoria do amor
deste homem pela nação. Uma mulher que, como uma santa, dedica-se intensamente a ajudar
seu povo a entender a luta do “santo” líder revelando a motivação para sua frenética e
laboriosa atividade de justiça social, enumerada em seu texto, à semelhança do bíblico Atos
dos Apóstolos.
153
Concordo com Rosano (2005, p. 57), que afirma que LRMV está na ordem dos
sentimentos, portanto não segue os parâmetros da racionalidade. É um contrato de amor entre
Perón e o povo, que sela o pacto de lealdade do peronismo com as massas através da
identificação de Evita com o povo. Desta forma, esta mulher converte-se no pilar fundamental
da eficácia simbólica do peronismo. Observo que esta obra escrita de modo simples, como já
mencionado anteriormente, com bastante clareza, sem rodeios, atingiu seu público, que
também se viu, pouco tempo depois, em meio aos eventos de seu falecimento, seu funeral, a
derrocada do governo peronista e o desaparecimento de seu cadáver. Tudo isto contribuiu
para o imaginário evitista.
Em SE, discutem-se os motivos pelos quais Evita tornou-se um mito (SE, p. 183-197):
ascensão meteórica; morte precoce; atuação política; amor de conto de fadas; fetichismo
popular; justiça social e, por fim, monumento inconcluso.
Em apenas quatro anos, Eva saiu do anonimato de papeis medíocres na rádio para
ocupar o posto de Primeira Dama e ser entronizada como a única mulher Benfeitora dos
Humildes e Chefe Espiritual da Nação (SE, p. 183). O fato de isto ter ocorrido em pouco
tempo contribuiu para impactar o povo, sobretudo porque sua intensa atividade como Evita
parecia anunciar seu fim próximo. Da mesma forma, causou admiração e repulsa aos que se
tornariam com o passar do tempo seus opositores ferrenhos: “Los que no le habían prestado
atención como actriz la odiaban ya como ícono del peronismo analfabeto, bárbaro y
demagogo” (SE, p. 184).257
O narrador comenta sua atuação pública que se parecia à de um macho, para os
códigos culturais da época. A afirmação de que embora Evita sempre se colocasse atrás do
marido, ele parecia a sombra, é confirmada com a citação de um escritor:
En una de sus invectivas memorables, Ezequiel Martínez Estrada definió así la
pareja: ‘Todo lo que le faltaba a Perón o lo que poseía en grado rudimentario para
llevar a cabo la conquista del país de arriba abajo, lo consumó ella o se lo hizo
consumar a él. En ese sentido también era una ambiciosa irresponsable. En realidad,
él era la mujer y ella el hombre’. (SE, p. 184)258
Sua morte precoce coloca Evita ao lado de mitos argentinos como o músico e cantor
Carlos Gardel e o líder revolucionário Che Guevara, falecidos aos 44 e 39 anos,
respectivamente. Se falecer jovem chama a atenção, é ainda mais notável a morte aos 33 anos, 257 Em português: “Aqueles que não tinham reparado nela como atriz agora a odiavam como ícone do peronismo
analfabeto, bárbaro e demagogo” (p. 160).
258 Em português: “Em uma de suas invectivas memoráveis, Ezequiel Martínez Estrada definiu o casal deste
modo: ‘Tudo aquilo que fazia falta a Perón, ou que possuía em grau rudimentar, para levar adiante a conquista
do país de ponta a ponta, ela consumou ou o fez consumar. Neste sentido, também era uma ambiciosa
irresponsável. Na verdade, ele era a mulher, e ela o homem” (p. 160).
154
a idade que Cristo tinha ao morrer. Além da vida de Eva e suas realizações, esse ponto
também remete ao imaginário de sua sacralização. O narrador de SE destaca que a mitologia
dos que morrem cedo se alimenta não apenas do que fizeram em vida, mas também do que
poderiam fazer caso ainda vivessem (SE, p. 185). Além disso, afirma o narrador que a morte
de Evita foi uma tragédia coletiva a que assistiram multidões, assumindo a analogia de Evita
como a nação, ideia apresentada em LRMV: “Desde que se difundieron los partes médicos
sobre la enfermedad hasta que su catafalco fue llevado a la CGT […] Evita y la Argentina
pasaron más de cien días muriéndose” (SE, p. 185).259 Seu funeral pomposo, com honras de
Chefe de Estado, somado ao embalsamamento de seu cadáver contribuiu para o mito evitista.
O cadáver embalsamado torna-se um corpo híbrido entre a vida e a morte, gerando várias
especulações, sobretudo com o seu sequestro e desaparecimento.
A menção à atuação política em SE ao discutir o mito limita-se a apontar a criação da
fundação de ajuda social que levou seu nome (SE, p. 189), seguindo a narrativa do
enfrentamento de Evita com as damas da sociedade de beneficência, sem mencionar os
aspectos levantados por Navarro e mencionados nesta pesquisa a respeito da estatização da
ajuda social como uma política pública e não apenas um trabalho da Mulher Maravilha Evita
que teria enfrentado as oligarcas para empreendê-lo. Outras formas de participação efetiva e
decisiva de Evita na política, como a criação e presidência do Partido Peronista Feminino, não
são neste momento mencionadas. O narrador rejeita a ideia de que Evita resignou-se a ser
vítima, como a mesma diz em sua autobiografia. Segundo ele, Eva não tolerava que houvesse
vítimas, porque isso a lembrava que ela havia sido uma, por isso lutava para redimir a todas
que encontrava (SE, p. 186).
O seu amor de conto de fadas é relatado em SE seguindo a forma com que Eva o
narrou em LRMV ou, dito de outra forma, é possível ouvir ecos da autobiografia de Evita na
biografia ficcional, visto que ambas relatam o momento em que Eva conheceu Perón como
um encontro que estava predestinado a acontecer e como alegoria da nação: Perón era o
redentor e ela, a oprimida (SE, p. 191).
O fetichismo popular conferiu grande importância ao mito (SE, p. 193-194). Vários
objetos tocados por Evita passaram a fazer parte do seu culto, sendo seu próprio cadáver o
principal símbolo e também relíquia. Tal fetichismo, aliado aos relatos do que se recebeu de
doação das mãos de Evita contribuíram para a composição do mito. Segundo o narrador de
SE, cada família peronista tem uma história a contar a respeito de algo que recebeu de Evita:
259 Em português: “Desde a divulgação dos primeiros boletins médicos sobre a doença até a condução de seu
féretro à CGT [...] Evita e a Argentina passaram mais de cem dias morrendo” (p. 161).
155
um colchão, uma máquina de costura ou o enxoval de noiva, dentre outros itens, alimentam a
tradição oral, fazendo o agradecimento ser infinito e que os netos, na hora de votar, pensem
em Evita (SE, p. 195).
O Monumento ao Descamisado havia sido uma ideia de Evita, para homenagear os
trabalhadores, no entanto, com sua morte, o projeto original foi modificado passando a render
homenagem à própria primeira dama. Não chegou a se realizar, mas a memória fúnebre de
Evita permaneceu naquele local. De modo poético, o narrador alimenta o mito contando como
ela aparece ali todas as tardes anunciando tempos sombrios, e como os tempos têm sido
sombrios, a credulidade dos devotos se mantém (SE, p. 196).
Estes elementos, apresentados em SE sob a forma de um ensaio, fazem indagar por
que a biografia ficcional dedicou-se a refletir sobre os motivos pelos quais Evita transformou-
se em mito. Considero que o faz porque constrói literariamente sua própria versão deste mito,
lançando outros elementos no imaginário evitista. Apresenta discussão sobre a imagem de
Evita na literatura, esclarecendo que o fascínio pelo corpo morto começou antes mesmo da
doença, em 1950, com o romance El examen, de Julio Cortázar. Menciona outras obras, como
o Libro Negro de la Segunda Tiranía, publicado em 1958; as Catilinarias, de Martínez
Estrada; os contos “Ella”, de Juan Carlos Onetti, e “El simulacro”, de Borges; o drama Eva
Perón, de Copi; os contos de Evita vive (en cada hotel organizado), de Néstor Perlongher.
Discute também a atualização do mito evitista no musical Evita, de Tim Rice e Andrew Lloyd
Webber. Tantas manifestações, porque
Cada quien construye el mito del cuerpo como quiere, lee el cuerpo de Evita con las
declinaciones de su mirada. Ella puede ser todo. En la Argentina es todavía la
Cenicienta de las telenovelas, la nostalgia de haber sido lo que nunca fuimos, la
mujer del látigo, la madre celestial. Afuera es el poder, la muerta joven, la hiena
compasiva que desde los balcones del más allá declama: ‘No llores por mí,
Argentina’. (SE, p. 203)260
Martínez narrador tem uma experiencia com o mito, declara que avança entre o mítico
e o verdadeiro, entre obscuridade e luz, se perde, mas Ela o encontra: “Ella no cesa de existir,
de existirme: hace de su existencia una exageración” (SE, p. 204).261 Mais do que teorizar
sobre o mito, experimenta-o quase religiosamente. A ficção possibilita essa representação.
Já em EJSV, o historiador apresenta, brevemente, as condições reunidas por Evita para
ser um mito: “llegó a lo más alto partiendo desde muy abajo, murió joven y en el esplendor de 260 Em português: “Cada um lê o mito do corpo como quer, lê o corpo de Evita com as declinações de seu olhar.
Ela pode ser tudo. Na Argentina ela ainda é a Cinderela das telenovelas, a nostalgia de ter sido o que nunca
fomos, a mulher justiceira, a mãe celestial. Fora do país, é o poder, a morta jovem, a hiena compassiva
declamando nos balcões do além: ‘Não chores por mim, Argentina’” (p. 176).
261 Em português: “Ela não cessa de existir; de existir-me: faz de sua existência um exagero” (p. 177).
156
una vida donde la historia se tiñe con el rosa y el negro de las respectivas leyendas” (EJSV, p.
10).262 As principais razões, portanto, são novamente a ascensão meteórica e a morte precoce,
elementos também presentes em SE, como observado. O autor destaca ainda a polarização da
sociedade entre os favoráveis e os contrários ao peronismo, o que levou ao rigor maniqueísta
com que Eva Perón foi tratada. No entanto, ela sobreviveu através do amor do seu povo,
convertendo-se em Santa e logo depois em ícone revolucionário da Juventude Peronista nos
anos 1970. Da mesma forma, sobreviveu no ódio de seus inimigos que tentaram a todo custo
apagar sua memória, mas foi inútil (EJSV, p. 10, 11). Evita sobrevive.
Embora o historiador não tenha a mesma liberdade do romancista para criar como
quiser seu enredo, pois está limitado pelas regras do seu campo de atuação, é possível
vislumbrar seu posicionamento através de seu modo de narrar, sua seleção vocabular, o modo
como recorta o tema e o aborda, como já mencionado anteriormente nessa pesquisa. Cabe
refletir, portanto, se a pretensão da objetividade plena é possível de alcançar. Há os
mecanismos vários para ocultar o autor, restringir a subjetividade, mas estes não se
confundem com neutralidade, visto que esta sim é impossível de existir. Todo o texto está
marcado por tomada de posição, já desde a perspectiva de realizar uma representação política,
elemento pouco trabalhado nas variadas representações de Eva Perón de que se tem notícia,
como afirma o próprio Felipe Pigna (EJSV, p. 9) e também Marysa Navarro (2005, p. 36).
O imaginário evitista compõe-se portanto de história e ficção, ou seja, está na
confluência de suas margens, sendo por ambas alimentado, com grande produtividade, mesmo
na atualidade, a sessenta e cinco anos da morte de Eva Perón.263
5.2 Margens confluentes
É importante atentar para as semelhanças entre história e ficção, mas também para as
diferenças. Reconhecer que um campo não anula o outro e sim que cada um permanece em
seu domínio, embora suas margens possam confluir para um imaginário. Determinar em que
medida cada área atua na formação do imaginário coletivo seria tarefa hercúlea que
demandaria pesquisa acerca da recepção dos textos, algo possível, sem dúvida, entretanto não
neste momento em que o foco está especificamente nas narrativas.
262 Tradução nossa: “Chegou ao mais alto partindo de muito baixo, morreu jovem e no esplendor de uma vida
onde a história se tinge com o rosa e o negro das respectivas lendas”.
263 Sobre a extensa produção literária sobre Eva Perón, ver o Anexo A.
157
A motriz da questão que motivou esta pesquisa centra-se no modo de narrar e não
exatamente na determinação de uma versão histórica. Tal modo de narrar ou tais modos de
narrar construtores de cada representação – autobiográfica, hagiográfica e política – são
observáveis na dinâmica da narratividade da história, por um lado, e da historicidade da
ficção, por outro. A alegoria das margens confluentes aponta para o imaginário, o caldeirão
onde se misturam os vários mitos de Evita, ali onde ela pode ser tudo, pode enfim “ser
milhões”.
Selecionei três situações mencionadas ou não nas obras analisadas para refletir sobre
sua presença ou ausência, bem como semelhanças e diferenças de abordagem, associando-as
às representações de Eva Perón nelas construídas: a condição de filha natural, o encontro com
Perón e a morte, o sequestro e o desaparecimento do corpo de Eva. Tais situações foram
selecionadas por serem relevantes na sua biografia e possibilitarem a discussão a respeito das
diferentes representações e o imaginário.
Embora vários biógrafos indiquem a condição de filha natural de Eva Perón (Ibarguren
e não Duarte) como responsável por sua percepção ainda na infância da injustiça, em LRMV
ela não é sequer mencionada. Isto seria admitir a falsificação da certidão de nascimento que a
tornou filha legítima para casar-se com Perón; não que isso fosse uma exigência legal, mas
Eva apaga sua história antes de se encontrar com o general. O pouco que menciona é sobre a
infância pobre e sua compreensão ainda criança da caridade como ostentação da riqueza. A
necessidade que sentiu de forjar uma certidão de nascimento para então, finalmente, nela ser,
ainda que soubesse fictíciamente reconhecida pelo pai há muito falecido, e o fato de não
comentar essa adversidade permite refletir não apenas sobre o quanto isto a incomodava, mas
também sobre o quanto era fruto de seu tempo, presa às imposições sociais, apesar de em
muitos aspectos havê-las rompido.
Em SE a ilegitimidade de Evita é mencionada quando o narrador comenta os dados
falsos na certidão de casamento de Perón e Eva: ele mentiu sobre o lugar da cerimônia e o
estado civil; ela sobre a idade, o domicílio, a cidade em que nasceu (SE, p. 143). O narrador
discute as fontes utilizadas pela historiografia e critica o fato de alguns biógrafos e
historiadores tomarem como verdadeiros os dados presentes na certidão. Pergunta-se os
motivos que teriam levado os nubentes a tal feito e, dentre os vários questionamentos que faz,
indaga se Evita disse que nasceu em Junín porque em Los Toldos era ilegítima (SE, p. 144). A
representação hagiográfica não se macula com essa falsidade, afinal é comum que o santo
158
passe por um período de engano ou de ignorância antes que sua santidade seja manifesta e que
isto seja relatado em sua narrativa de vida.
A questão dos filhos naturais ocupa parte considerável do primeiro capítulo de EJSV,
“Cholita”. Discute-se o quanto ser ilegítimo no início do século XX era um estigma social.
Pigna dedica-se a comentar os mitos que se criaram a partir do nascimento de Eva Perón,
propondo-se a esclarecer os fatos. Menciona a certidão de casamento que revela a adulteração
efetuada na certidão de nascimento de Eva com vistas a reparar sua condição de filha natural:
Fue inscripta por su madre como María Eva Ibarguren. El cambio en la partida de la
condición civil de sus padres, de concubinos a casados, debía ir necesariamente
acompañado de la modificación de la fecha de nacimiento de María Eva, porque
Duarte estaba casado, no precisamente con Juana, y recién en 1922 cambió su estado
civil por el de viudo. Esta alteración en la fecha eliminaba entonces la condición de
“hija adulterina” de Evita. La modificación se produjo en 1945, en los días previos a
la boda con Perón, cuando Evita fue anotada con estos datos ficticios en el acta
número 728, documento que originariamente correspondía a un bebé muerto a los
dos meses de vida, llamado Juan José Uzqueda”. (EJSV, p. 16)264
O historiador segue explorando o tema, discutindo por que Juan Duarte recusou-se a
reconhecer Eva, embora conclua que não se sabe muito bem o motivo. O mais notável é sua
observação de que a condição de natural levava fatalmente à discriminação social e jurídica
(EJSV, p. 19). Portanto, é desse ponto de partida que arranca a representação política de Eva
Perón, demonstrando de quão baixo ascendeu, de uma condição de marginalidade.
A segunda situação cuja abordagem é comparada nas três obras é o encontro de Eva e
Perón. Em LRMV, esse dia é descrito como um divisor de águas. Eva descreve-se naquele
momento como alguém que imaginava que sua vida não sofreria grandes mudanças, havia se
resignado a ser vítima e a viver uma vida monótona (LRMV, p. 32). Contudo o dia em que
sua vida coincidiu com a de Perón deu-se a maravilha: começou sua verdadeira vida, aquela
para a qual havia sido forjada e vocacionada. Como já abordado anteriormente neste trabalho,
Perón é descrito como o melhor dos homens ao lado de quem Eva se coloca (LRMV, p. 35).
Faz-se necessário à narrativa autobiográfica este momento epifânico que estabelece
um antes e um depois na vida de Eva, que se concentra justamente em narrar sua vida a partir
deste evento. Declara aprender com Perón, seguir seu exemplo, descobrindo assim sua
264 Tradução nossa: “Foi registrada por sua mãe como María Eva Ibarguren. A mudança na certidão da condição
civil de seus pais, de concubinos a casados, devia ir necesariamente acompanhada da modificação da data de
nascimento de María Eva, porque Duarte estava casado, não exatamente com Juana, e recentemente em 1922
mudou seu estado civil para o de viúvo. Esta alteração na data eliminada então a condição de ‘filha adulterina’
de Evita. A modificação se produziu em 1945, nos dias anteriores ao casamento com Perón, quando Evita foi
registrada com esses dados fictícios na certidão número 758, documento que originariamente correspondia a um
bebê morto aos dois meses de vida, chamado Juan José Uzqueda”.
159
verdadeira vocação que não é a representação artística, mas a encarnação da mediadora entre
Perón e o povo, representando o papel de Evita.
O dia em que Eva conheceu Perón é abordado em SE com um intertexto de LRMV
como introdução: “En La razón de mi vida, Evita describió su encuentro con Perón como uma
epifania: se creyó Saulo en el camino de Damasco, salvada por una luz que caía del cielo”
(SE, p. 189).265 O fato é elaborado a partir do esclarecimento sobre o que motivou o
ajuntamento de pessoas (o terremoto ocorrido em San Juan, em 1944 e o show beneficente em
prol das vítimas) e das fontes consultadas (noticiários filmados de vários países aos quais
assistiu nos Arquivos Nacionais de Washington). O narrador é preciso: revela a hora exata do
encontro e identifica as pessoas que cercavam Eva. De modo onisciente, relata que ela queria
muito conhecer o “coronel do povo” a quem ouvia pela rádio e com quem fantasiava um
encontro (SE, p. 190). Segue narrando os sentimentos de Eva, o modo como se sentia
predestinada a conhecê-lo, o que a faz tomar o assento contíguo ao seu e a entabular uma
breve conversa com uma frase de efeito com a qual surpreende o coronel: “Gracias por
existir” (SE, p. 192).266 Com isto, o narrador cria uma memória ficcional que preenche uma
lacuna na história, afinal não se sabe o que de fato foi dito.267
O narrador emite opinião sobre a versão dada por Eva em LRMV, classificando-a
como muito verbal e confrontando-a com as imagens dos noticiários a que alega ter assistido,
indica que apenas a frase curta foi dita. Segundo ele, as imagens mostram o momento em que,
ao final do evento, Eva sai do local acompanhada por Perón, com a mão em suas costas, como
quem tomou posse da história e a leva aonde quer (SE, p. 193). Essa observação faz ecoar as
versões do mito da antievita que considera Perón um fraco, dominado por Eva, o que nos leva
a perceber que os elementos que compõem a mitologia evitista aparecem em ambos lados, o
positivo e o negativo.
Na biografia histórica, o tema do encontro ocasiona oportunidade para discutir
diferentes versões sobre quem teria sido a pessoa que facilitou para que Eva se sentasse ao
lado de Perón (EJSV, p. 75). Após apresentar tais versões, o historiador conclui que o certo é
que Eva e uma colega atriz ocuparam os lugares vazios ao lado de Perón (EJSV, p. 76). Além
disso, comenta a versão de Perón, que mescla as anteriores, para por fim discutir as versões de
265 Em português: “Em La razón de mi vida, Evita descreveu seu encontro com Perón como uma epifania: ela se
sentiu como Saulo a caminho de Damasco, salva por uma luz caída do céu” (p. 164).
266 Em português: “Obrigada por existir” (p. 167).
267 Em entrevista a Juan Pablo Neyret, “Novela significa licencia para mentir”, Tomás Eloy Martínez afirma
haver criado a frase que passa a ser intertexto para outras obras ficcionais.
160
Evita. Se, em LRMV, Eva limitou-se a dizer que aquele foi seu dia maravilhoso, a uma amiga
confiou como de fato tudo aconteceu: agiu por impulso, sem ajuda, ao posicionar-se perto de
Perón, iniciou uma conversa animada e, ao final do evento, foram embora juntos. A essa
amiga Evita teria dito ainda que Perón gostava de mulheres decididas (EJSV, p. 79). Uma vez
mais, surge a ideia do comando feminino, da mulher decidida, ideia agora corroborada pelo
testemunho da amiga. No entanto, no texto biográfico, essa amiga não é identificada, sem que
se ofereçam explicações para essa indeterminação. Com isto, podemos indagar se não estamos
uma vez mais diante de puro mito.
O tema da morte de Eva e o sequestro de seu cadáver é central em SE, dispensando
outros comentários além dos já realizados neste trabalho. Como a representação ali efetuada é
hagiográfica, o cadáver embalsamado, principal relíquia do culto evitista e símbolo de seu
mito, constitui o principal elemento do enredo da narrativa da biografia ficcional. A história
que se narra não é apenas a da vida de Evita, mas sobretudo as aventuras pela quais passa seu
corpo no longo tempo em que esteve ocultado. Não se abordam, no romance, as ações dos
Montoneros que, com o sequestro e execução do ex-presidente Aramburu, que havia sido
responsável, por sua vez, pelo sequestro do cadáver de Evita, provocaram a entrega deste a
Perón e, posteriormente, sua repatriação. O narrador encerra seu relato fazendo-o convergir ao
início, como se o relato do mito evitista tivesse de ser retomado uma e outra vez, iluminando
outros pontos de seu repertório, ampliando o caráter circular do mito.
Já em EJSV, o historiador apresenta várias versões sobre o momento final de Eva
Perón, concluindo que todas coincidem num ponto: o horário em que ocorreu (EJSV, p. 324).
O dado objetivo, pontual, é o mais fácil de ser obtido num momento como este, em que cada
um guarda sua lembrança pessoal com o ente que está prestes a partir. Como já vimos no
capítulo anterior desta tese, a biografia relata a decisão de Perón de realizar um funeral
massivo e de conservar o corpo, segundo ele para cumprir a vontade de Evita; o início dos
trabalhos de taxidermia com o Dr. Pedro Ara; o luto nacional e o velório multitudinário; as
repercussões ao redor do mundo e, por fim, o breve descanso do cadáver embalsamado na
sede da CGT. O historiador narra também como o rancor dos contrários a Evita acirrou-se
com tantas homenagens póstumas; a Revolução Libertadora; o sequestro do cadáver que não
foi entregue à família como havia sido pedido; o revanchismo contra o peronismo deposto; a
fúria da “desperonização”; os relatos de maldições que acometeram os que ocultavam o
cadáver; o sepultamento do cadáver na Itália; o sequestro e a execução de Aramburu pelos
161
Montoneros; a devolução do cadáver. Conclui seu relato com uma breve discussão sobre
como, ainda depois de morta, Evita desperta medo aos militares (EJSV, p. 370).
Essa profusão de informações, com ampla discussão de fontes, revela o trabalho
historiográfico em tentar narrar de modo completo o que aconteceu. Embora pretenda ser um
discurso objetivo, não se furta de mencionar e apresentar algumas questões que mais parecem
aproximadas a um relato mítico como, por exemplo, as maldições que cercavam o cadáver e o
temor que Evita ainda infunde, a tantos anos de sua morte e estando agora seu corpo guardado
em caixa forte no cemitério da Recoleta. Aqui cabe ainda uma observação: apesar da
sacralização política de seu corpo, ele é ponto turístico na cidade de Buenos Aires, recebendo
inúmeros visitantes diariamente. Evita tornou-se um símbolo não apenas político, mas pop.
No imaginário evitista, na confluência entre história e ficção, Eva pode ser milhões.
Conclui-se que LRMV estabeleceu as bases do mito evitista, SE discutiu e atualizou o
mito, enquanto EJSV pretende ser um relato mais objetivo embora, em alguns momentos,
apresente ficcionalização. Desta forma, as representações alimentam o imaginário evitista nas
margens confluentes entre a história e a ficção.
162
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A relação entre história e ficção na representação de Eva Perón consistiu no tema desta
tese. Analisei as obras La razón de mi vida, de Eva Perón, Santa Evita, de Tomás Eloy
Martínez, e Evita: jirones de su vida, de Felipe Pigna, observando nelas, respectivamente, as
representações autobiográfica, hagiográfica e política de Eva Perón. Busquei responder
questões relativas à relação entre história e ficção na construção destas representações,
identificando os elementos que relativizam os limites entre esses dois campos, ficcionalizando
a matéria histórica, por um lado, e criando o efeito de historicidade, por outro. Além disso,
questionei o papel do historiador na construção do efeito de historicidade, bem como o
imaginário evitista na confluência das margens entre a história e a ficção.
Nesta pesquisa de tese, considerei a história como ciência dos homens no tempo,
privilegiando a experiência humana, segundo Marc Bloch; como uma construção que segue
um conjunto de práticas, de acordo com Michel de Certeau, e, ainda, como uma narrativa,
segundo Hayden White. Sobre a ficção, utilizei o conceitual de Wolfgang Iser sobre os atos de
fingir através dos quais o texto literário permite a realização do imaginário que adquire
aparência de real. Apoiei-me também nas considerações de Walter Benjamin sobre o
historiador alegorista como aquele que dá sentido à história e constrói sua experiência com o
passado.
Discuti o efeito de efeito de historicidade criado, textualmente, na narratividade da
história e, paratextualmente, com a autoria do historiador. Como elementos textuais criadores
do efeito de historicidade, foram identificadas: notas, citações, tratamento do tempo,
objetividade, conceitualização, cronologização, criação do enredo e argumentação. Quanto ao
elemento paratextual, a presença do nome próprio do historiador com seu duplo
reconhecimento – dos pares e do público – possibilita o efeito de historicidade.
Identifiquei as obras constituintes do corpora desta pequisa como integrantes de um
espaço biográfico constituído por autobiografia (La razón de mi vida), biografia ficcional
(Santa Evita) e biografia histórica (Evita: jirones de su vida).
Trabalhei com a noção da autobiografia como um gênero fronteiriço, multiforme e
movediço, segundo Pozuelo Yvancos, para o qual ganha importância o pacto autobiográfico,
segundo Lejeune, através do qual se estabelece um contrato de leitura entre autor e leitor. A
autobiografia relaciona-se também à concepção do eu apresentado como modelo. Discuti a
respeito da autoficção a partir de Alberca, considerando o seu fundamento a identidade
163
reconhecível entre autor, narrador e personagem do relato, além da possibilidade de o
narrador criar múltiplas realidades. Sobre biografia, utilizei os aportes de Bakthin que a
definiu como descrição de uma vida resultante da seleção, descrição e análise de uma
trajetória individual. Com estes elementos, o biógrafo urde um enredo, sendo a biografia,
portanto, uma construção, segundo Pierre Bourdieu.
Comentei o redespertar do gênero biográfico entre jornalistas e historiadores. Estes
últimos buscam restaurar o papel do indivíduo na construção dos laços sociais. Ambos,
jornalistas e historiadores, são influenciados pela literatura na produção biográfica que,
embora apresentem semelhanças, como criação de personagens, introdução de licenças
poéticas, interpretação e ficção, e uso do flasback no tratamento do tempo, também
apresentam diferenças, que se referem ao tratamento diferenciado das fontes de pesquisa, o
conteúdo ficcional e o tratamento da conjuntura.
Sobre hagiografia, refleti, observando seu caráter de um discurso que visa à
exemplaridade, segundo Certeu, portanto um relato de sobrevivência após a morte, como
apontado por Jolles.
Percebi o imaginário na confluência entre as margens da história e da ficção. De
acordo com Jacques Le Goff, o imaginário faz parte de um campo de representação, a partir
de uma perspectiva criadora, sendo um domínio da história. Observei que a percepção, nos
textos literários, das representações, possibilita abrir portas ao estudo do imaginário.
Em La razón de mi vida, analisei a representação autobiográfica de Eva Perón.
Verifiquei o pacto autobiográfico, a construção de si na narrativa como uma mulher humilde e
vocacionada para a missão de cuidar dos trabalhadores de seu país; o relato de sua infância no
qual se verifica sua vinculação ao projeto político peronista. Além disso, observei que Eva
Perón constrói em seu relato alegorias da nação: lar e família. Nesta construção alegórica, ela
é a mãe, Perón, o pai, e o povo são os filhos. Eva Perón apresenta-se como mediadora entre
Perón e os trabalhadores.
Concluí que o efeito de historicidade é criado, nesta obra, a partir dos seguintes
elementos: a autoria e o pacto autobiográfico; a construção do enredo (que dá intimidade e
sentido à vida); os detalhes; as referências a personagens e instituições reais; a menção de
datas históricas; a citação de documentos, a conceitualização e as fotografias. Estes
elementos, em conjunto, possibilitam ao leitor tomar como realidade todo o relato.
Analisei, em Santa Evita, a representação hagiográfica de Eva Perón. A narrativa
apresenta elementos constituintes do modelo do relato da vida de santo. Eva Perón é
164
representada como santa popular. Discuti a apresentação, nesta biografia ficcional, de suas
origens na infância, sua ascensão, seus nomes e designativos, a irrupção do maravilhoso, a
autoficção, a metáfora animal e a alegoria da história.
Concluí que sua origem e infância humildes são relacionadas à identificação posterior
com os pobres, os descamisados e grasitas; sua atuação política atraiu admiração e repulsa
resultando em múltiplas e antagônicas formas de designá-la; na obra, o maravilhoso irrompe
através dos milagres e maldições da “Santa” Evita, sendo a principal relíquia de seu culto seu
cadáver embalsamado. Concluí também que, com a autoficção, o narrador homônimo do autor
se inclui na narrativa, relatando sua experiência com “Santa” Evita e com a construção de sua
narrativa; através da metáfora animal, a história é alegorizada na narrativa, constituindo-se o
narrador como um historiador alegorista que questiona as fontes, apresenta outras versões,
convoca personagens outros para testemunharem, demonstrando que a história, está, portanto,
também nas fontes desconsideradas pela “história oficial”. Logo, ao mesclar história e ficção,
o romance possibilita intento de compreender o fenômeno político Evita com maior liberdade
visto ser elaboração ficcional.
Em Evita: jirones de su vida, analisei a representação política de Eva Perón. A
peculiaridade deste texto reside em sua constituição como biografia não ficcional escrita por
um historiador renomado em seu país. Foram identificados os elementos criadores do efeito
de historicidade, por um lado, e os que revelam a ficcionalização da história, por outro.
Concluí que a cronologização, a contextualização, a conceitualização, bem como a
discussão das fontes e versões constituem os elementos textuais que possibilitam a a criação
do efeito de historicidade. Além destes, também confere historicidade à narrativa a autoria do
historiador, um elemento paratextual. Quanto à ficcionalização da história, esta se revela a
partir da subjetividade, da criação do enredo e da presença do diálogo na narrativa.
Verifiquei que o historiador, em Evita: jirones de su vida, apresenta seu objeto através
de uma representação linear, narrando sua transformação no decorrer do tempo de pessoa
comum em ente político. Contextualiza a vida de Eva Perón apresentando os principais
eventos na história geral e da Argentina, relacionando a biografada como sujeito histórico ao
seu tempo. Pigna lança mão de conceitos já existentes e elabora outros para organizar a
realidade histórica. Discute fatos e versões, dialogando, assim, com outros biógrafos e
autores. Concluí, também, que a autoria do historiador confere efeito de historicidade ao texto
biográfico. A partir do nome próprio do historiador são reconhecidos pelos leitores seu estilo
e o gênero de sua obra. Sua assinatura caracteriza um modo de ser do discurso. Evita: jirones
165
de su vida, é recebida, portanto, como texto historiográfico, pelo público leitor que com ele
estabelece o pacto de leitura.
O modo de narrar apresenta ficcionalização da história por meio da subjetividade, ou
seja, o modo pelo qual o autor se dá a conhecer. São eles: juízos de valor, adjetivação, modo
poético de narrar, comunicação com o leitor e indefinição. Além da subjetividade, há o enredo
relacionado ao diálogo. São mecanismos, portanto, através dos quais a objetividade que se
espera do historiador (em que pese o mito da neutralidade) é deixada de lado, transparecendo
a construção da narrativa.
Por fim, analisei o imaginário evitista presente na confluência entre história e ficção,
ou seja, entre as representações autobiográfica, biográfica e ficcional de Eva Perón.
Apresentei o mito de Evita em sua dicotomia: antiperonista e peronista, concluindo que o
mito tem grande produtividade na literatura e nas outras artes ainda hoje. Comparei as três
representações com relação ao imaginário e concluí que a representação autobiográfica
presente em La razón de mi vida estabelece as bases do mito; a representação hagiográfica em
Santa Evita discute e atualiza o mito e, finalmente, Evita: jirones de su vida pretende ser mais
objetiva embora, em alguns momentos, apresente ficcionalização.
Desta forma, as representações alimentam o imaginário evitista nas margens
confluentes entre a história e a ficção.
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177
ANEXO A
PODERTI, Alicia. Eva Duarte de Perón. In: DICCIONARIO del peronismo. Buenos Aires:
Biblos, 2010. p. 76-79.
EVA DUARTE DE PERÓN (1919-1952). Fuente de una fascinación sin fronteras, Evita es el
pretexto para que se iniciara una historia mítica en la Argentina y en el mundo. Depositaria
del amor y del odio de generaciones transhistóricas y transterritoriales, esta mujer fue
conocida con múltiples apelativos: “hada protectora”, “compañera Evita”, “la señora”,
“madona de los humildes”, “dama de la esperanza”, “abanderada de los descamisados”,
“puente de amor entre Perón y los descamisados”, “jefa espiritual de la Nación”, “Eva de
América”. Otros calificativos aludían a la primera dama en las diferentes publicaciones que
circulaban en la época, sobre todo después de su deceso: “permanente creadora”, “compañera
del líder”, “mártir del trabajo”, “eterna en el alma de su pueblo”, “pura pasión argentina”,
“rosa perfecta”, “la Cenicienta de las pampas”, “esa mujer”, “rubia señora de la revolución”,
“madre total de todos los seres desvalidos”…
A esas valencias se agrega una constelación de otros epítetos como “la mujer del látigo”, “la
partiquina”, “fierecilla indomable”, “mujerzuela”, “trepadora”, “mujer pública”, “muñeca
rubia”, “serpiente venenosa”, “hada demagógica”, “advenediza”, “prostituta sagrada”,
“rebelde primitiva”, “mina cruel”, entre otras denominaciones emanadas del discurso
antiperonista.
Enrique Pavón Pereyra cita la opinión de la narradora María Granata: “Con todos los
caracteres de la predestinación, aparece en ella la Conductora”. El final del relato de David
Viñas, “La señora muerta”, descarga un sentimiento peyorativo a través de un personaje que,
ante la multitud que llora la muerte de Eva, exclama indignado: “¡Es demasiado por la yegua
ésa!”, según consigna Sergio Olguín.
Entre “nombres” positivos y negativos se esculpe la personalidad multifacélica de esta mujer:
“Se llamaba Eva María Ibarguren pero la madre, dona Juana Ibarguren, la presentaba como
Duarte. Cuando se hizo actriz, se llamó Eva Duarte. Cuando se casó con Perón, doña María
Eva Duarte de Perón. María antes que Eva. Era menester, para presentarla en sociedad, que la
buena, la madre de Jesucristo, precediese a la mala, nuestra primera madre pecadora, porque
las niñas decentes deben llamarse María Esther o María Rosa pero nunca al revés. Cuando
volvió de su viaje a Europa y comenzó su carrera frenética de trabajadora social, se volvió
178
Eva Perón. Y cuando el pueblo la amó, pasó a llamarse Evita, el único nombre que ella
siempre reconoció como suyo”. Todos estos “nombres” reflejan la polarización en torno a la
imagen de Evita: la Evita sexual y la Evita política términos de Marysa Navarro.
Nació en Los Toldos, provincia de Buenos Aires, en 1919. En su libreta cívica, cuya copia
facsimilar incluye Pavón Pereyra en su libro Evita: la mujer del siglo, se declara que nació el
7 de mayo de 1922, dato que podría ser erróneo y ha sido discutido por los historiadores. A
los quince años se traslada a la Capital donde inicia su carrera como actriz de cine y
radioteatro. Conoció al coronel Perón en enero de 1944, con motivo de un acto de
beneficencia realizado para paliar la situación provocada por el terremoto de San Juan. La
relación amorosa nunca fue escondida y condujo a la unión matrimonial de ambos.
Evita acompañó a Perón en los sucesos que desencadenaron la masiva entronización del líder
en la movilización del 17 de octubre de 1945. Fue liberado de la cárcel en la isla Martín
García y llegó triunfalmente a la Casa Rosada para hablar a la multitud desde el célebre
balcón (v. OCTUBRE, 17 DE).
Fundó, en un hecho inédito, la rama femenina del Partido Peronista, y también otros
organismos a través d las cuales canalizó los distintos programas de ayuda social como el
Ateneo Eva Perón, el Hogar de la Empleada, la Fundación Eva Perón, dentre otras
instituciones.
Consumida por un proceso canceroso irreversible, el 4 de junio de 1952, Evita hizo su última
aparición pública para participar del acto de asunción de Perón a su segundo período
presidencial, luego de sufragar con el caudal de mujeres argentinas por primera vez en la
historia del país. En los días siguientes, hubo un sinnúmero de homenajes oficiales e
iniciativas para construir un monumento en su honor.
Entre sus obras más conocidas han de mencionarse La razón de mi vida (v.) publicado en
1951 y My mensaje, editado póstumamente por Fermín Chávez, quien compiló los textos que
ella escribió en su lecho de enferma. Emilio Corbière también destaca el contenido del poco
conocido Historia del peronismo, en el que Evita revaloriza a Karl Marx pero critica la
evolución política de la entonces Unión Soviética y la negación – en Marx – del sentimiento
religioso. En ese libro Eva Perón admitía que “podrá el clericalismo ser impopular”, pero “no
hay nada más popular que el sentimiento religioso”.
Falleció en 26 de julio de 1952. El comunicado oficial anunció: “Cumple la Secretaría de
Informaciones de la Presidencia de la Nación”. El 9 de agosto aún proseguía la capilla
ardiente, que se había trasladado desde el Ministerio de Trabajo hasta el Congreso Nacional,
179
donde millones de personas montaban permanente guardia en su honor. El 10 el cortejo
fúnebre multitudinario cubrió el trayecto hacia la sede de la CGT. Además de estas
interminables columnas de hombres y mujeres que lloraban bajo la lluvia y el frío, también
estaban los que festejaban, pues con Evita desaparecía uno de los aspectos más irritantes y
peligrosos del peronismo.
Desde la fecha del deceso de Evita hasta 1955, cada día se interrumpía la programación
habitual de las radios y un locutor repetía: “Son las 20.25, la hora en que la señora Eva Duarte
de Perón entró en la inmortalidad”.
Después del golpe, se producen situaciones complejas y contradictorias en torno al destino de
su cadáver embalsamado. (V. CUERPO DE EVA PERÓN, CADÁVER). La repatriación del
cuerpo de Evita, producida el 17 de noviembre de 1974, repercutió en todo el país. Su féretro
fue recibido por la presidente Isabel MARTÍNEZ DE PERÓN (v.) junto con miembros de la
familia Duarte. Luego del derrocamiento del gobierno de Isabel, el cadáver de Evita fue
trasladado a la bóveda de la familia Duarte en el cementerio de la Recoleta.
El nombre de Eva Perón cambió la historia argentina y también produjo la mayor cantidad de
literatura que un personaje histórico haya desencadenado en la Argentina. La nómina de
escritores que, desde perspectivas elogiosas o despectivas pero nunca indiferentes, abordaron
el personaje de Eva Perón es interminable: Julio Cortázar, Jorge Luis Borges, Juan Carlos
Onetti, Rodoldo WALSH (v.), Leónidas y Osvaldo Lamborghini, Néstor Perlongher, Juan
José Sebrelli, Tomás Eloy Martínez, Abel Posse, José Pablo Feinmann, David Viñas, Mario
Szichman, Marysa Navarro, Libertad Demitrópulos, Mónica Ottino, Lisardo Zía, Juan
Ponferrada, Luis Franco, Ezequiel Martínez Estrada, Leopoldo Marechal, Alberto Vacarezza,
Victoria Ocampo, Beatriz Guido, Elvira Orphée, Marta Lynch, María Elena Walsh…
“No descanses en paz, alza los brazos”, rezan los versos del poema “Eva”, en el que María
Elena Walsh invierte las expresiones instituidas. Así las palabras de esa escritora fundan una
nueva conciencia femenina, a partir de la recuperación de una figura histórica que representa
la mujer sim miedos: “Temer agallas, como vos tuviste, / fanática, ideal, desenfrenada / en el
candor de la beneficencia / pero la única que se dio el lujo / de coronarse por los sumergidos. /
Agallas para defender a muerte. / Agallas para hacer de nuevo el mundo: / tener agallas para
gritar basta / aunque nos amordacen los cañones”.
Véase: Emílio Corbière, Mamá me mima. Evita me ama. La educación argentina em la
encrucijada, Buenos Aires, Sudamericana, 1999. – Alicia Dujovne Ortiz, “Eva Perón: Evita y
la orden de desear”, en Mujeres argentinas, Buenos Aires, Alfaguara, 1998. – Horacio
180
Maceyra, La segunda presidencia de Perón, Buenos Aires, Centro Editor de América Latina,
1984. – Marysa Navarro, Evita. Mitos y representaciones, Buenos Aires, Fondo de Cultura
Económica, 2002. – Sergio Olguín, Perón Vuelve. Cuentos sobre peronismo, Buenos Aires,
Norma, 2000. – Enrique Pavón Pereyra, Evita, La mujer del siglo, Buenos Aires, Zupa, s/f. –
María Elena Walsh, Los poemas, Buenos Aires, Espasa Calpe-Seix Barral, 1993.
181
ANEXO B
PODERTI, Alicia. Cadáver. In: DICCIONARIO del peronismo. Buenos Aires: Biblos,
2010. p. 34-37.
CADÁVER. La muerte de Eva Perón estuvo rodeada de gran misterio. Su cuerpo
embalsamado y secuestrado se ha transformado en el epicentro de distintas hipótesis
argumentativas que reverberan en las superficies ficcional e histórica.
La ficción ha tejido sus versiones sobre el cadáver de Eva Perón. En “El simulacro” de Jorge
Luis Borges se representa un funeral donde “el enlutado no era Perón y la muñeca rubia no
era la mujer Eva Duarte”. Borges da comienzo a una tradición textual sobre el cadáver. Es una
corriente literario-mitológico-ficcional que se instala en el campo de las representaciones
sociales y que, contrariamente a la línea que todavía busca el “cuerpo vivo” de Eva, ahondará
en la realidad del “cuerpo muerto”, pensado como cierre y clausura de un tiempo histórico.
Los peronistas siempre temieron el peor desenlace: la destrucción del cuerpo, víctima del más
feroz “gorilismo”, encarnado en la Marina. En la novela de Tomás Eloy Martínez, SE, el
personaje de Eva Perón dice: “Lo único que te pido, Juan, es que no me olviden”. Esta
demanda es respondida por Perón al ordenar que se embalsame el cuerpo, acto que confunde
la “presencia” con un cuerpo y no con la construcción de la historia de un sujeto. De ahí se
desprende la perversión que trastoca los sentidos del recuerdo.
Después del golpe de 1955 se producen situaciones complejas y contradicctorias en torno al
destino de su cadáver embalsamado. El odio de los grupos adversos no se hizo esperar.
Investigaciones historiográficas y periodísticas como la de Sergio Rubín conducen a la noche
del 23 de noviembre de 1955 (dos meses después de producirse la Revolución Libertadora),
en la que un comando militar al mando del teniente coronel Carlos Moori Koenig, a cargo de
la SIDE, llegó hasta la CGT y retiró el cadáver de Evita. Éste llevó el féretro en un furgón por
distintas zonas de la Capital y de Buenos Aires. En otro momento intentó dejarlo en una
unidad de la Armada, y hasta llegó a depositarlo en la bohardilla de la casa de un ayudante
suyo: el mayor Eduardo Arandía. Se asegura que Moori Koenig, en su despacho de la SIDE,
abrió el cajón, manoseó el cuerpo y lo exhibió ante sus ocasionales visitantes, entre ellos, la
directora de cine María Luisa Bemberg, quien huyó espantada a narrarle todo a un conocido
suyo: el capitán de navío Francisco Manrique, jefe de la Casa Militar. A su vez, éste se lo
comentó al presidente Pedro Eugenio Aramburu, quien dispuso la inmediata separación del
182
militar y su reemplazo por el coronel Héctor Cabanillas. El nuevo jefe de la SIDE debía sacar
de circulación el cuerpo, ocultándolo en un cementerio de Milán bajo el nombre de María
Maggi de Magistris.
Recordemos que la madre de Evita, Juana Ibarguren, inicialmente desplegó una campaña
internacional para dar con el cuerpo de su hija y llegó a solicitar ayuda al Papa, según lo
demostraría el contenido de una carta escrita a Juan XXIII, el 22 de marzo de 1959, que se
halla en poder de Fermín Chávez. Investigaciones recientes permitieron determinar que Pío
XII fue puesto al corriente de la operación y que la madre de Evita estuvo enterada de los
hechos acaecidos en torno al paradero del cadáver de sua hija.
En Mi testimonio el general Alejandro Agustín Lanusse revela datos clave que permiten
reconstruir la historia del itinerario del cadáver de Eva. Así se supo que el plan había sido
pergeñado en 1956 por el sacerdote paulino Francisco Rotger, capellán del Regimiento de
Granaderos a Caballo. El ex presidente negaba su participación en la génesis de esta trama,
pero expresa que se enteró “accidentalmente” del destino del cuerpo em 1969 y que trece años
antes le propuso a Aramburu su ocultamiento. Desafiando las fuertes presiones de la Marina
para quemar el cadáver y las advertencias de la RESISTÊNCIA PERONISTA (v.), Lanusse
planificó, junto con el padre Rotger, el enterramiento del cuerpo con un nombre falso en un
cementerio milanés y lo dejó al cuidado de la Compañía de San Pablo.
En 1970 se produce el secuestro del ex presidente de facto Pedro Eugenio Aramburu por parte
de la agrupación MONTONEROS (v.). Una de las principales exigencias de los
secuestradores para liberarlo consistía en “la devolución del cuerpo de la compañera Evita”.
Cabanillas, el único que sabía exactamente dónde estaba enterrada, con el acuerdo de Rotger,
intentó satisfacer la solicitud. Sin embargo, Aramburo fue asesinado antes de concretarse la
exigencia. Al año siguiente Lanusse, quien se desempeñaba como presidente de la Nación,
decidió entregar el cuerpo de Evita al general Perón.
El cuerpo fue llevado por tierra, en un furgón de la funeraria Fusetti, hasta la ciudad de
Madrid, donde Perón tenía su residencia en Puerta de Hierro. Allí lo recibió el líder,
acompañado de su tercera esposa, María Estela (“Isabel”) Martínez; su delegado personal,
Jorge Daniel Paladino; su secretario privado, José López Rega; el embajador argentino –
reconocido antiperonista – Jorge Rojas Silveira, el coronel Héctor Cabanillas y el padre
Giulio Madurini, quien ofició de testigo y firmó el acta de entrega del cuerpo.
Pero las incógnitas acerca del estado del cuerpo embalsamado de Evita se agregaron a esta
compleja trama. El doctor Pedro Ara, que había embalsamado el cadáver lo vio veinticuatro
183
horas después de su restitución y expresó que estaba prácticamente igual. Sin embargo, las
hermanas de Evita y el doctor Domingo Tellechea, quién lo restauró en 1974, denunciaron
graves daños.
Erminda Duarte, en su libro Mi hermana Evita, describe emocionada: “Tu frente continúa
siendo serena pese a que muestra un puntazo en la sien derecha y la señal de cuatro golpes.
Veo un gran tallo en tu mejilla derecha y lo que queda de tu nariz destrozada, casi
completamente destrozada. Es que tu sacrificio fue más allá de tu último día de vida porque
ningún verdadero sacrificio termina jamás […] Miro las plantas de tus pies desnudos
cubiertos por una lámina de brea. ¿Qué significado tiene esa capa mineral en las plantas de tus
pies? ¿En qué suelo de brea has estado parada, sostenida por tu propia muerte?”.
La llegada del cuerpo de Evita a la Argentina, producida el 17 de noviembre de 1974,
repercutió en todo el país. Su féretro fue recibido por la presidenta Isabel Martínez de Perón
junto con miembros de la familia Duarte. Luego del derrocamiento del gobierno de Isabel
Perón, el cadáver de Evita fue trasladado a la bóveda de la familia Duarte en el cementerio de
la Recoleta. Todos estos datos sobre la esposa y compañera de la gesta política de Perón
contribuyen a agigantar el mundo de los mitos pergeñados durante años.
En ese sentido, es evidente que los sucesos que acompañan la muerte y el destino del cadáver
de Eva Perón que configuran un mito crístico. Eva muere a los treinta y tres años, igual que
Jesús, después de haber ofrendado su vida por el pueblo y por el general Perón. Autores como
Copi (seudónimo de Raúl Damonte Botana) postulan que Eva no murió. En el poema
“Cadáveres” de Néstor Perlongher, Evita es una invención literaria y social. Su cuerpo
insepulto, la ceremonia cosmética de su embalsamamiento, los actos de sadismo que se
relacionan con su cadáver-no-cadáver integran la metáfora de todos los cuerpos insepultos del
país.
Al cumplirse los cincuenta años de su fallecimiento, los discursos de homenaje rescatan la
idea de que Evita era la primera desaparecida: “A la sensación del tiempo detenido sobrevino
algo peor: el tiempo sin ella. La historia, con su corsi e recorsi, pronto iba a dar un oscuro
salto al vacío, que ya estaba presagiado en sus temores y reservas: tres años después, sin Eva
en este mundo, con Perón en el exilio, huérfanos de jefes, los peronistas fuimos perseguidos
con rencor, fuimos llevados a la cárcel y a la muerte. El odio gorila, con su sed de revancha y
nuestros propios errores consumieron décadas de resistencia y de lucha. Mutilaron el cuerpo
de Eva: más que un acto de saña política fue un símbolo de la maldad humana. Quisieron
184
borrar su nombre y su memoria: la transformaron en la primera desaparecida”, escribió
Antonio Cafiero.
Resulta congruente admitir que, en gran parte, los misterios y la mitificación de la compañera
de Perón también contribuyen a la construcción de un proceso que coloca a la figura del líder
en un entorno enigmático. Estos sucesos, sumados al fenómeno de su destierro y su rol como
“líder lejano”, consolidan la imagen del mito político en los años del exilio.
Véase: Jorge Luis Borges, “El simulacro” en El hacedor (1960), Obras completas, Buenos
Aires, Emecé, 1994. – Antonio Cafiero Mis diálogos con Evita, Buenos Aires, Altamira,
2002. – Copi, Eva Perón, París, Christian Bourgois, 1969. – Erminda Duarte, Mi hermana
Evita, Buenos Aires, Centro de Estudos Eva Perón, 1972. – Tomás Eloy Martínez, SE,
Buenos Aires, Planeta, 1995. – Blanca Fenoy, “Eva y la literatura. Historia de nuestro
desencuentro”, en María Celia Vázquez y Sergio Pastormerlo (comps.), Literatura argentina.
Perspectivas de fin de siglo, Buenos Aires, Eudeba, 2002. – Alejandro Agustín Lanusse, Mi
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