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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO ADRIANA ORTEGA CLÍMACO HISTÓRIA E FICÇÃO NA REPRESENTAÇÃO DE EVA PERÓN: margens confluentes RIO DE JANEIRO 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

ADRIANA ORTEGA CLÍMACO

HISTÓRIA E FICÇÃO NA REPRESENTAÇÃO DE EVA PERÓN: margens confluentes

RIO DE JANEIRO

2017

ADRIANA ORTEGA CLÍMACO

HISTÓRIA E FICÇÃO NA REPRESENTAÇÃO DE EVA PERÓN: margens confluentes

1 volume

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Letras Neolatinas como quesito para a

obtenção do Título de Doutora em Letras

Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos).

Orientadora: Professora Doutora Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva.

Rio de Janeiro

2017

CIP - Catalogação na Publicação

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com osdados fornecidos pelo(a) autor(a).

O639hOrtega Clímaco, Adriana História e ficção na representação de Eva Perón:margens confluentes / Adriana Ortega Clímaco. -- Riode Janeiro, 2017. 184 f.

Orientadora: Cláudia Heloisa Impellizieri LunaFerreira da Silva. Tese (doutorado) - Universidade Federal do Riode Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de PósGraduação em Letras Neolatinas, 2017.

1. Eva Perón. 2. Ficção. 3. Imaginário. 4.História. 5. Literatura argentina. I. HeloisaImpellizieri Luna Ferreira da Silva, Cláudia,orient. II. Título.

ADRIANA ORTEGA CLÍMACO

HISTÓRIA E FICÇÃO NA REPRESENTAÇÃO DE EVA PERÓN: margens confluentes

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação

em Letras Neolatinas da Universidade Federal do

Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos

necessários para a obtenção do título de Doutora

em Letras Neolatinas (Estudos Literários

Neolatinos).

Aprovada em:___/___/____

___________________________________________________________________________

Profa. Dra. Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva – UFRJ

Presidente

___________________________________________________________________________

Prof. Dra. Elena Palmero González - UFRJ

___________________________________________________________________________

Prof. Dra. Ana Cristina dos Santos - UERJ

___________________________________________________________________________

Prof. Dra. Elda Firmo Braga – UERJ

___________________________________________________________________________

Profa. Dra. Suely Reis Pinheiro – UFF

___________________________________________________________________________

Profa. Dra. Silvia Inés Cárcamo de Arcuri – UFRJ

___________________________________________________________________________

Prof. Dr. Luciano Prado da Silva – UFRJ

À saudosa memória de minha mãe, Salete Ortega.

Para meu pai, Lourival Ortega.

Para meu amores, André Gustavo e Dandara.

AGRADECIMENTOS

A minha família, em especial aos meus sogros, Antônio e Jandyra Clímaco: sem sua acolhida

e ajuda tudo seria muito mais difícil.

A Elizabeth e Isabela Mattozinho pelo cuidado amoroso de Dandara.

Aos amigos pelo apoio constante.

A Professora Cláudia Heloisa Iméllizieri Luna Ferreira da Silva pela paciência e orientação

precisa.

Aos Professores integrantes da Banca de Exame desta tese, Elena Cristina Palmero González,

Ana Cristina dos Santos, Elda Firmo Braga, Suely Reis Pinheiro, Silvia Inés Cárcamo de Arcuri,

Luciano Prado da Silva.

Ao Instituto Federal de São Paulo pelo afastamento para escrita desta tese.

A História e a Ficção escrevem-se para corrigir o porvir.

Tomás Eloy Martínez

RESUMO

CLÍMACO, Adriana Ortega. História e ficção na representação de Eva Perón: margens

confluentes. Rio de Janeiro, 2016. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) – Faculdade de

Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

O tema do presente trabalho é a relação entre história e ficção na representação de Eva Perón.

São analisadas a autobiografia La razón de mi vida, de Eva Perón, o romance Santa Evita, de

Tomás Eloy Martínez, e a biografia Evita: jirones de su vida, de Felipe Pigna. Apresentam-se

questões relativas ao efeito de historicidade construído na narratividade do discurso histórico,

bem como os mecanismos de ficcionalização da matéria histórica. As obras foram analisadas a

partir dos conceitos de história e historiografia de Bloch, Certeau, White e Benjamin; ficção,

de Iser; autobiografia, pacto autobiográfico e autoficção, de Pozuelo Yvancos, Lejeune,

Bourdieu e Alberca; hagiografia, de Certeau, e imaginário, de Le Goff. Verificou-se em La

razón de mi vida, a representação autobiográfica, em Santa Evita, a hagiográfica e, em Evita:

jirones de su vida, a política. Foram observados os elementos criadores do efeito de

historicidade, por um lado, e os ficcionalizadores da história, por outro. A reflexão considerou

também o imaginário evitista na confluência entre as margens da história e da ficção.

PALAVRAS-CHAVE: Eva Perón – Ficção – Imaginário – História – Literatura argentina

RESUMEN

CLÍMACO, Adriana Ortega. História e ficção na representação de Eva Perón: margens

confluentes. Rio de Janeiro, 2016. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) – Faculdade de

Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

El presente trabajo tiene como finalidad la relación entre historia y ficción en la representación

de Eva Perón. Se analizan la autobiografía La razón de mi vida, de Eva Perón, la novela Santa

Evita, de Tomás Eloy Martínez, y la biografía Evita: jirones de su vida, de Felipe Pigna. Se

presentan cuestiones a cerca del efecto de historicidad construido en la narratividad del discurso

histórico, así como los mecanismos de ficcionalización de la materia histórica. Se analizaron

las obras a partir de los conceptos de historia e historiografía de Bloch, Certeau, White y

Benjamin; ficción, de Iser; autobiografía, pacto autobiográfico y autoficción, de Pozuelo

Yvancos, Lejeune, Bourdieu e Alberca; hagiografía, de Certeau, e imaginario, de Le Goff. Se

verificó en La razón de mi vida, la representación autobiográfica, en Santa Evita, la

hagiográfica y, en Evita: jirones de su vida, la política. Se observaron los elementos creadores

del efecto de historicidad, por un lado, y los ficcionalizadores de la historia, por otro. La

reflexión consideró también el imaginario evitista en la confluencia entre las orillas de la

historia y la ficción.

PALAVRAS-CLAVE: Eva Perón – Ficción – Imaginario – Historia – Literatura argentina -

ABSTRACT

CLÍMACO, Adriana Ortega. História e ficção na representação de Eva Perón: margens

confluentes. Rio de Janeiro, 2016. Tese (Doutorado em Letras Neolatinas) – Faculdade de

Letras, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 20167

The aim of this work is relating history and fiction in the representation of Eva Perón. The

autobiography La razón de mi vida by Eva Perón, the novel Santa Evita by Tomás Eloy

Martínez, and the biography Evita: jirones de su vida by Felipe Pigna were analyzed. They

present issues about the effect of historicity built on the narrativity of historical discourse, as

well as the mechanisms for the fictionalization of historical matter. The works were analyzed

from history and historiography concepts by Bloch, Certeau, White and Benjamin; from fiction

by Iser; autobiography, autobiographical Pact and autofiction by Pozuelo, Yvancos Lejeune,

Bourdieu and Alberca; hagiography by Certeau, and imaginary by Le Goff. In La razón de mi

vida, the autobiographical representation was found, in Santa Evita, the hagiographic

representation and in Evita: jirones de su vida, politics. The elements observed were the effect

of historicity, on the one hand, and the fictionalizers of history, on the other. The study also

considered the imaginary of Evita at the confluence between the margins of history and fiction.

KEYWORDS: Eva Perón – Fiction – Imaginary – History – Argentine literature

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 13

1 ENTRE A HISTÓRIA E A FICÇÃO 19

1.1 O efeito de historicidade 27

1.2 O espaço biográfico 38

1.3 O imaginário: confluência da história e da ficção 51

2 REPRESENTAÇÃO AUTOBIOGRÁFICA DE EVA PERÓN 54

2.1 Pacto autobiográfico e formação de si na narrativa 54

2.2 Relato autobiográfico da infância: construção de si vinculada ao projeto

político peronista 62

2.3 Lar e família: alegorias da nação 68

2.4 Efeito de historicidade em La razón de mi vida 73

3 REPRESENTAÇÃO HAGIOGRÁFICA DE EVA PERÓN 81

3.1 Origens: infância de Eva Perón em Santa Evita 82

3.2 Evita longe de ser Evita: do anonimato à ascensão 86

3.3 Nomes de Evita 93

3.4 Irrupção do maravilhoso: maldições, milagres e relíquias de “Santa” Evita 98

3.5 Modo de narrar: autoficção, metáfora animal e alegoria da história 105

4 REPRESENTAÇÃO POLÍTICA DE EVA PERÓN 114

4.1 Efeito de historicidade em Evita: jirones de su vida 114

4.1.1 De “Cholita” a “Esa mujer”: cronologização da biografia de Eva Perón 115

4.1.2 Visão panorâmica: contextualizão 122

4.1.3 Definir ideias: conceitualização 127

4.1.4 Discussão das fontes e versões 129

4.1.5 Autor historiador 133

4.2 Ficcionalização da história 136

4.2.1 Marcas de si: subjetividade 136

4.2.2 Contando uma história: enredo e diálogo 144

5 MARGENS CONFLUENTES: IMAGINÁRIO EVITISTA 147

5.1 O mito de Evita 147

5.2 Margens confluentes 157

CONSIDERAÇÕES FINAIS 163

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 167

ANEXO A 178

ANEXO B 182

13

INTRODUÇÃO

A presente tese doutoral propõe investigar a relação entre história1 e ficção na

representação de Eva Perón (1919-1952) na autobiografia La razón de mi vida (1951), no

romance Santa Evita (1995), de Tomás Eloy Martínez (1934-2010), e na biografia histórica

Evita: jirones de su vida (2012), de Felipe Pigna (1959), obras ficcional e não ficconal,

respectivamente. O tema das obras é a vida de Eva Maria Duarte de Perón (1919-1952),

conhecida como Evita, mulher do ex-presidente da Argentina, Juan Domingo Perón (1895-

1974), figura emblemática para o Peronismo (movimento político derivado do nome do ex-

presidente), caracterizado, dentre outras razões, por políticas trabalhistas.

Em sua autobiografia, La razón de mi vida, Eva Perón dedicou-se a apresentar os

fundamentos de seu interesse pelas causas populares e seu apoio ao presidente Perón, seu

marido.

Em linhas gerais, Santa Evita tematiza, além da vida e morte de Eva Perón, o

sequestro e a ocultação de seu cadáver embalsamado. Neste romance que é também uma

biografia ficcional, o mito de Evita é recriado através da união entre história e ficção como

principal procedimento narrativo.

A biografia Evita: jirones de su vida, escrita pelo historiador Felipe Pigna, relata

eventos da vida de Eva Perón, apresentando farta documentação para situá-la historicamente a

partir de seu papel na política argentina.

A questão da relação entre a história e a ficção, de suas similaridades e diferenças, do

que emerge na confluência de suas margens motiva-me há tempos, razão pela qual graduei-

me em letras após concluir a graduação em história. Refletir sobre variadas representações

forjadas na tessitura discursiva permite conhecer um pouco mais da experiência humana e de

seu imaginário.

A motivação para o estudo desta temática relacionada à representação de Eva Perón

surgiu após a análise de Santa Evita que realizei, anteriormente, em dissertação de mestrado.2

Na ocasião, considerei como sua característica principal a relação entre história e ficção,

verifiquei a relativização dos limites desses campos em duas margens complementares:

ficcionalização da história e efeito de historicidade da ficção (CLÍMACO, 2014, p. 59, 60). A

1 Na presente tese, opto pelo uso da palavra história com inicial minúscula, seguindo o uso mais comum entre os

teóricos da história e da literatura nos quais se apoia este trabalho, não se fazendo, portanto, distinção gráfica da

história como disciplina dos demais sentidos da palavra. 2 A dissertação foi publicada sob o título História e ficção em Santa Evita (CLÍMACO, 2014).

14

identificação dos procedimentos relativizadores no romance levou-me a questionar se estes

também estariam presentes em obra não ficcional. Por este motivo, optei por analisar a

autobiografia LRMV3 e a biografia EJSV. Além disso, retomo o estudo de SE para analisar o

relato da biografia de Evita como vida de santo, hagiografia.

Para situar os autores com relação às suas obras, expõem-se a seguir alguns dados de

suas biografias.

María Eva Duarte de Perón nasceu em 1919, em Los Toldos, província de Buenos

Aires. Filha natural de Juana Ibarguren e de Juan Duarte, que não a reconheceu, fato este que

marcou sua infância. Mudou-se para a capital aos quinze anos e ali iniciou sua carreira de

atriz. Em 1944, conheceu Perón durante um ato beneficente para as vítimas de um terremoto

em San Juan. Casaram-se em 1946. Desenvolveu intenso trabalho ao lado de seu marido. A

partir de sua iniciativa, fundou o ramo feminino do Partido Peronista e instituições de

assistência como a Fundação Eva Perón, dentre outras, à qual dedicava até dezoito horas

diárias de trabalho.

Por sua dedicação aos mais humildes, foi por eles reverenciada, carinhosamente

chamada de Evita, embora seus opositores reservassem-lhe epítetos desrespeitosos como

“Essa mulher”, “Égua”, etc. Tornou-se um dos expoentes do peronismo, talvez mais popular

que o próprio Perón, embora sempre declarasse estar a sua sombra. Escreveu LRMV,

publicado em 1951, Mi mensaje, editado postumamente, e uma obra pouco conhecida,

Historia del peronismo, segundo Alicia Poderti (2010, p. 78), igualmente editada

postumamente, fruto das aulas sobre peronismo que ministrou na Escola Superior Peronista.

Faleceu em 26 de julho de 1952, vítima de câncer de útero, doença que a deixou muito

debilitada nos últimos meses de vida.4

Autor de SE, Tomás Eloy Martínez (1934-2010), argentino, nascido em Tucumán,

além de escritor literário teve intensa atuação como jornalista e professor universitário de

literatura. Sua longa carreira no jornalismo e na escrita de romances é destacada por Oviedo

(2001, p. 407). Recebeu o Prêmio Ortega y Gasset, organizado e outorgado pelo jornal El

País, em 2009, na categoria Trajetória, por sua produção jornalística. As fronteiras entre

jornalismo e literatura diluem-se em sua carreira. Livros como La pasión según Trelew

(1974); Lugar común la muerte (1979); El sueño argentino (1999) y Requiém por un país

3 Ao longo do texto, as obras do corpora e suas citações serão identificadas pelas siglas: LRMV (La razón de mi

vida; (SE) Santa Evita e EJSV (Evita: jirones de su vida). 4 O verbete do Diccionario del peronismo (PODERTI, 2010) sobre Eva Duarte de Perón está transcrito no Anexo

A (p. 178).

15

perdido (2003) são relatos e crônicas testemunhais que exemplificam a narração da realidade

como ficção.

Martínez foi redator em periódicos, em Buenos Aires, como Primera Plana,

Panorama e La Opinión. No exílio, permaneceu na Venezuela entre 1975 e 1983, e lá fundou

e dirigiu o jornal El Diario de Caracas. No México, em Guadalajara, anos depois, organizou

o jornal Siglo 21. Além disso, foi colaborador permanente de La Nación, Argentina, El país,

Espanha, e The New York Times Syndicate. Em 2009, na Argentina, foi incorporado como

membro da Academia Nacional de Jornalismo. Em sua carreira acadêmica, fez conferências e

cursos em universidades dos Estados Unidos, Europa e América Latina, além de ser professor

emérito da Universidade de Rutgers, em Nova Jersey, na qual dirigiu o Programa de Estudos

Latino-Americanos.

A biografia publicada no site da fundação que leva seu nome, a Fundación Tomás

Eloy Martínez, menciona que talvez Martínez tenha obtido mais projeção internacional como

romancista. Publicou seu primeiro romance, Sagrado, em 1969, depois La mano del amo

(1991), El vuelo de la reina (Prêmio Internacional Alfaguara, 2002), El cantor de tango

(2004) e Purgatorio (2008). Os romances La novela de Perón (1985) e SE (1995), destaques

da literatura contemporânea, tornaram-no o autor mais traduzido da Argentina.

Sobre Martínez e suas obras La pasión según Trelew (1974), La novela de Perón

(1985) e SE (1995), comenta Jorge Carrión:

su biografía entre tres países – Argentina, Venezuela y los Estados Unidos – y su

dedicación tanto a la creación literaria como a la docencia impulsaron la difusión de

esas grandes crónicas en que la ficción es puesta al servicio de la posible verdad

histórica. (CARRIÓN, 2012, p. 25)

Autor de EJSV, Felipe Pigna nasceu em Mercedes, província de Buenos Aires, em

1959. Professor de História, dirige o Centro de Difusão da História Argentina da

Universidade Nacional de San Martín. Historiador que segue linha revisionista da história

argentina, Pigna goza de prestígio neste país, aproximando a história ao grande público

através de diferentes meios: livros, artigos em jornais e revistas, histórias em quadrinhos,

programas em rádio e televisão, filmes, páginas na internet e nas redes sociais, nas quais

interage com o público.

Exemplificando sua atuação na difusão de temas históricos junto ao grande público,

destaca-se a série televisiva que dirigiu, Algo habrán hecho por la historia argentina,

transmitida pelo Canal 13 e Telefé, que chegou a alcançar 25 pontos de audiência no horário

principal e obteve o Prêmio Martín Fierro 2006 e 2007 de melhor programa cultural argentino

e o Prêmio Clarín de melhor programa jornalístico em 2006 e 2009. Atualmente, conduz o

16

ciclo de entrevistas ¿Qué fue de tu vida? no Canal 7. Dirigiu o projeto “Ver a história” que

originou o documentário 200 anos de história argentina, série exibida em treze capítulos pela

TV Pública e pelo Canal Encontro. Apresentou a série de documentários sobre os

bicentenários, Unidos pela Historia, do History Channel, que foi transmitida simultaneamente

em toda a América Latina e recebeu o Prêmio Martín Fierro de melhor documentário em

2011.

Publicou El mundo contemporâneo (1999), La Argentina contemporânea (2000),

Pasado en presente (2001), Historia confidencial (2003), Los mitos de la historia argentina

(2004), Los mitos de la historia argentina 2 (2005), La larga noche de la dictadura y La

noche de los bastones largos (2006, em conjunto com María Seoane), Los mitos de la historia

argentina 3 (2006), La historieta argentina (2007, coleção de histórias em quadrinhos), Evita

(2007), José de San Martín: documentos para su historia (2008), Los mitos de la historia

argentina 4 (2008), Historias de nuestra historia: una historia animada para chicos y no tan

chicos (seis volumes, 2009), 1810, La otra historia de nuestra Revolución fundadora (2010),

Libertadores de América (2010, Prêmio Manuel Alvar, em Madrid), Mujeres tenían que ser

(2011), Los mitos de la historia argentina 5 (2013), Al gran pueblo argentino, salud (2014),

La voz del gran jefe (2014).

As produções historiográficas de Felipe Pigna alcançam grande difusão, como dito

anteriormente. Parece interessante observar este fenômeno de divulgação da história

argentina. Não se propõe aqui uma investigação da história da leitura ou da recepção destas

obras, mas verificar um elemento que parece estar relacionado a este gosto pela história,

especificamente, pela história produzida por Pigna: o modo como se constrói a narração dos

eventos históricos. Além disso, o papel do autor historiador como produtor da história.

Cabe ressaltar o motivo pelo qual escolhi, ao invés da obra Evita (2007), para compor

o corpus da tese EJSV (2012) publicadas, respectivamente, em comemoração aos cinquenta e

cinco e aos sessenta anos de falecimento de Eva Perón. A segunda publicação é versão

revisada da primeira sem, contudo, as fotografias ali apresentadas. A primeira publicação

parece destinar-se ao público em geral, ávido por leituras sobre Evita, e não especificamente

aos acadêmicos. Isto se verifica, graficamente, através da diagramação desse livro em

tamanho grande (28 x 21 cm), para valorizar as fotografias, sendo o outro, em tamanho menor

(23 x 15 cm). Além disso, na segunda publicação, o autor discorre sobre a necessidade de

apresentar Evita como ente político, preocupação não evidenciada no texto anterior.

17

Assim, a tese de doutorado reúne o corpus apresentado composto por obras de caráter

híbrido, narrativas de histórias de vida, para responder aos seguintes problemas de pesquisa:

em primeiro lugar, como se dá a relação entre história e ficção na construção da representação

de Eva Perón; em segundo lugar, que elementos presentes nas obras relativizam tal relação,

ficcionalizando a matéria histórica, por um lado, e criando o efeito de historicidade da ficção,

por outro; qual o papel do historiador na criação do efeito de historicidade.

As hipóteses iniciais para resolução desses problemas são: em LRMV, Eva Perón

constrói uma representação de si vinculada ao projeto político peronista; em SE, a

representação de Eva Perón é feita seguindo o gênero hagiográfico, e que tal gênero contribui

para a criação do efeito de historicidade; a metáfora animal, presente em SE, constitui o modo

de narrar do romance; a biografia EJSV apresenta elementos ficcionalizadores da matéria

histórica em sua composição e, ao mesmo tempo, transforma ficção em relato histórico; a

autoria do historiador realiza o efeito de historicidade.

No primeiro capítulo, Entre a história e a ficção, discuto o conceito de história como

ciência dos homens no tempo, segundo Marc Bloch, e uma construção regida por um conjunto

de práticas científicas, de acordo com Michel de Certeau, além de uma narrativa, como

apontado por Hayden White, e o papel do historiador alegorista, segundo Walter Benjamin.

Sobre a ficção, apoio-me na reflexão proposta por Wolfgang Iser. Após essas considerações, o

capítulo apresenta os demais conceitos constituintes da fundamentação teórica deste trabalho,

dividindo-se em três partes: o efeito de historicidade, o espaço biográfico e o imaginário na

confluência da história e da ficção.

A respeito do efeito de historicidade, observo como este é criado de modo textual na

narratividade e paratextualmente. Como elementos textuais criadores do efeito de

historicidade são identificadas as notas, as citações, o tratamento do tempo, a objetividade, a

conceitualização, a cronologização, a criação do enredo e a argumentação. Quanto ao

elemento paratextual, a presença do nome próprio do historiador autor com seu duplo

reconhecimento – dos pares e do público – possibilita o efeito de historicidade.

As obras que compõem o corpora dessa pesquisa são vistas como integrantes de um

espaço biográfico constituído por autobiografia (LRMV), biografia ficcional (SE) e biografia

histórica (EJSV). Reflito sobre autobiografia, pacto autobiográfico e autoficção, lançando mão

das discussões de Pozuelo Yvancos, Lejeune, Bourdieu e Alberca. Sobre hagiografia, apoio-

me em Certeau e Jolles.

18

Enquanto caminhava a pesquisa, a questão do imaginário surgiu claramente como o

elemento que resulta da confluência entre a história e a ficção, por este motivo este capítulo

teórico também apresenta reflexões sobre este conceito, a partir das proposições de Jacques

Le Goff.

No segundo capítulo, Representação autobiográfica de Eva Perón, analiso LRMV.

Identifico o pacto biográfico e a construção de si na narrativa, o relato da infância relacionado

ao projeto político peronista. Observo também a construção do lar e da família como alegorias

da nação. Apresento os elementos que possibilitam o efeito de historicidade na obra: autoria e

pacto autobiográfico; construção do enredo; detalhes; referências a personagens e instituições

reais; menção de datas históricas; citação de documentos; conceitualização e fotografias.

No terceiro capítulo, Representação hagiográfica de Eva Perón, analiso SE. Observo

como a narrativa apresenta elementos do relato da hagiografia, construindo ficcionalmente a

vida de Evita como um relato de “Vida de santo”5, narrando suas origens; sua ascensão, seus

nomes e designativos. Observo a irrupção do maravilhoso e, por fim, o modo de narrar

composto de autoficção, metáfora animal e alegoria da história.

No quarto capítulo, Representação política de Eva Perón, analiso EJSV. Identifico os

elementos criadores do efeito de historicidade, por um lado, (cronologização,

contextualização, discussão de fontes e versões, e autoria do historiador) e que revelam a

ficcionalização da história, por outro (subjetividade, enredo e diálogo).

No quinto capítulo, Margens confluentes: o imaginário evitista, discuto o mito de

Evita em sua dicotomia, antiperonista e peronista, e o relaciono às representações

autobiográfica, hagiográfica e política, refletindo sobre o imaginário evitista na confluência

entre a história e a ficção.

Por fim, apresento as Considerações finais e as Referências bibliográficas, bem como

os Anexos A, B e C.

5 A hagiografía também é conhecida como “Vida de santo”.

19

1. ENTRE A HISTÓRIA E A FICÇÃO

Ao refletir sobre história e ficção, parto da lacuna apontada por Cristine F. Mattos, em

“Para uma reflexão teórica na leitura de obras de Tomás Eloy Martínez” (2003) para o

desenvolvimento da presente pesquisa. Mattos, ao refletir teoricamente sobre as obras de

Tomás Eloy Martínez, afirma que SE permite adentrar universos de fronteiras movediças

entre a literatura e a história. A autora observa que faltariam aos trabalhos que analisam a obra

martineziana desbravar complexa rede estrutural produtora do apagamento das fronteiras

literária e histórica. Destaca que o texto de Martínez pode ser definido pela presença

simultânea de gêneros e subgêneros, ao invés de se buscar optar por um entre os diversos

gêneros (CLÍMACO, 2014, p. 20).

A fundamentação teórica do presente trabalho articula, portanto, conceitos de história,

ficção, narrativa de extração histórica, elementos relativizadores dos limites entre história e

ficção, hagiografia, biografia e imaginário.

Quanto à conceituação de história, trabalho com a concepção de Marc Bloch da

história como a ciência dos homens no tempo e não, simplesmente, a ciência do passado

(1992, p. 26). Desta forma, não se toma o passado como tempo privilegiado, voltando-se a

história para a existência humana.

Ampliando essa concepção, acrescento a teoria proposta por Michel de Certeau

(2000). Para este autor, a história é uma operação que segue um conjunto de práticas

científicas. Tais práticas envolvem a pesquisa, o tratamento dos fatos e sua divulgação na

forma textual (CERTEAU, 2000, p. 22). Essa operação histórica possui um duplo efeito: por

um lado, historiciza o atual, presentifica uma situação vivida; por outro, a imagem do passado

mantém o seu valor primeiro de representar aquilo que falta. Do presente, parte-se para o

passado, buscando-se uma compreensão para uma falta, objetivando preencher uma lacuna. A

historiografia, portanto, nesta concepção, está em permanente construção, é inacabada. O

historiador identifica lacunas no trabalho de outros pesquisadores, na abordagem tradicional

ou costumeira de determinado evento. Estas lacunas são disfarçadas pelo historiador,

formando o não dito, o silêncio sobre o que não se pode verificar, afinal o historiador não

confessa em sua produção o que não localizou, o que faz com que seu discurso pareça

completo, fechado, acabado (CLÍMACO, 2014, p. 23).

Certeau verifica uma função na história que, enquanto escrita, possui caráter didático,

passa valores e permite à sociedade contar-se (2000, p. 55). O autor reflete sobre a

20

textualidade da história: seu tecido organiza unidades de sentido e nelas opera transformações

cujas regras são determináveis. Desta forma, a historiografia torna-se objeto semiótico, na

medida em que constitui um relato ou um discurso próprio (ibdem, p. 51). Através do texto, a

história se dá a conhecer e isto revela que trabalha sobre o limite, situada com relação a outros

discursos, recortando seu objeto de análise e desenvolvendo sua própria discursividade

(ibdem, p. 50). Nesta tese, reflete-se sobre a discursividade peculiar da história, a

historicidade.

Sobre os limites, Certeau (2000, p. 55) afirma que, ao ultrapassá-los, a história

deixaria seu lugar, decompondo-se em ficção (narração do que aconteceu) ou reflexão

epistemológia (elucidação de suas regras de trabalho). Seria, portanto, possível entender seus

limites como perceptíveis, bem marcados por imposições e particularidades (ibdem, p. 66)

que permitem ao discurso produzido a partir da pesquisa historiográfica seu reconhecimento

por outros historiadores. A história é mediatizada pela técnica, segundo o autor (ibdem, p. 78),

colocando-se ao lado da ciência na medida em que prioriza seu modo próprio de constituir-se.

A não utilização das técnicas da história a colocariam ao lado da literatura.

A ficção, por sua vez, não está presa a limites. Embora regida por um conjunto de

técnicas, a ficção é livre. Seu conjunto de técnicas textuais visa à produção de um sentido que

permita a manifestação do espírito e da arte, não exatamente a um domínio, a um campo

científico, se comparada à história.

Em comum, narrador literário e historiador possuem a escrita para contar suas

histórias e divulgar suas pesquisas, respectivamente. É o modo de narrar que difere. O

historiador constrói o discurso histórico, com recursos textuais tais como notas, citações,

discussão de fontes, etc., específicos ao gênero narrativa histórica. Seu discurso objetiva a

construção de um conteúdo verificável, perceptível, atestável a partir da materialidade dos

documentos, das fontes. No entanto, cabe destacar, a história não é apenas o fato, o evento

relatado ou vislumbrado no documento, mas o relato, a narrativa que se constrói sobre ele.

Nesse sentido, é o historiador quem, por meio da escrita, do discurso, historiciza um fato,

ampliando a história que passa a ser fato mais o discurso sobre ele produzido.

Escritor e historiador criam mundos. Entretanto, o poder criativo do escritor literário

revela-se mais abrangente: personagens, cenários, situações e diálogos nascem de sua

imaginação. Sua prática narrativa não é restringida por nada. Não há necessidade de

demonstração da veracidade dos eventos que narra. Aceita-se naturalmente o imaginário

21

como suficiente para a narrativa. O papel do imaginário na composição da narrativa permite

distinguir ficção e relato histórico.

Para refletir sobre ficção, utilizo o conceitual elaborado por Wolfang Iser (1983, p.

386), que observa que esta compõe uma tríade com o real e o imaginário. O texto literário

ficcional permite a realização do imaginário através dos atos de fingir, que são três: seleção,

combinação e autodesnudamento (ISER, 1999, p. 68). O imaginário adquire aparência de real

através dos atos de fingir. Desta forma, o mundo é representado como se fosse real.

O processo efetuado pelo autor de escolha de elementos presentes no mundo

contextual para integrar o fictício é denominado por Iser ato de seleção, o primeiro ato de

fingir (ISER, 1999, p. 68). Relacionado a este está o segundo, o ato de combinação, através

do qual relações intratextuais são criadas, possibilitando novas composições e ultrapassagem

de limites (ibdem, 1999, p. 69). Completando os atos de fingir, tem-se o terceiro,

autodesnudamento da ficcionalidade. Por meio deste ato, a literatura se dá a conhecer como

ficção, portanto algo diverso da realidade (ISER, 1983, p. 397).

Iser utiliza a expressão “como se” para explicar o modo como o mundo ficcional

representado no texto é considerado: “como se fosse real”. Isso significa que essa

representação ocorre para um determinado fim: causar reações sobre o mundo (ISER, 1983, p.

402). Isto é possível porque se irrealiza o mundo do texto, transformando-o em análogo, em

explicação do mundo, ativando assim o imaginário com a participação do leitor (ibdem, p.

406).

Segundo Jorge Carrión, a ficção está presente em textos de não-ficção:

O conflito entre Ficção e História, com suas mil metamorfoses (Religião e Ciência,

Utopia e Realidade, Sonho e Vigília, Mentira e Verdade, Especulação e

Demonstração), é o mais apaixonante de todos os que constituem, como uma tensão

vibrátil e dinâmica, ao ser humano. A não ficção é incapaz de resolver esse

problema, mas o congela provisoriamente, o põe em quarentena. Contorna-o.

(CARRIÓN, 2012, p. 26, tradução nossa).6

Importa, também, para esta pesquisa o conceito de narrativa de extração histórica,

definido por André Trouche (2006). Este conceito permite refletir sobre a narrativa que enceta

diálogo com a história, como forma de produção de saber e como intervenção transgressora.

Trouche considera em seu trabalho a existência da relação entre história e ficção na literatura,

sob formas textuais diversas, antes do advento do gênero romance histórico no século XIX. 6 No original: El conflicto entre Ficción e Historia, con sus mil metamorfoses (Religión y Ciencia, Utopía y

Realidad, Sueño y Vigilia, Mentira y Verdad, Especulación y Demostración), es el más apasionante de todos los

que constituyen, como una tensión vibrátil y dinámica, al ser humano. La no-ficción es incapaz de resolver ese

problema insoluble, pero lo congela provisionalmente, lo pone en cuarentena. Le da vuelta. (CARRIÓN, 2012,

p. 26)

22

Desta forma, elimina a tendência da crítica a tomar o romance histórico tradicional como

modelo para as obras que apresentam diálogo com a história. Com este conceito, o autor

abrange não apenas o romance e o romance histórico, mas outras formas narrativas não

classificadas como romance, enfatizando o discurso que transfere à ficção retomar e

questionar a experiência histórica, procedimento comum ao processo literário hispano-

americano (CLÍMACO, 2014, p. 55).

Fiz opção pelo conceito de narrativa de extração história em História e ficção em

Santa Evita (CLÍMACO, 2014, p. 55), devido à sua distinção com relação a outros conceitos

como: romance histórico (LUKÁCS, 1977), novo romance histórico latino-americano

(MENTON, 1993), também chamado por alguns de romance histórico hispano-americano, e

metaficção historiográfica (HUTCHEON, 1991).

Seymour Menton, em desdobramento do romance histórico de Lukács, desenvolve o

conceito de novo romance histórico latino-americano para designar a produção literária latino-

americana escrita a partir de 1979. Menton aponta que tais obras possuem como

característica: subordinação da reprodução mimética de determinado período histórico, em

graus distintos, à apresentação de algumas ideias filosóficas; distorção consciente da história

mediante omissões, exageros e anacronismos; ficcionalização de personagens históricos;

metaficção ou comentários do narrador sobre o processo de criação; intertextualidade; e

presença de conceitos bakhtinianos – dialogismo, carnavalização, paródia e heteroglosia

(MENTON, 1993, p. 42-44). Segundo o autor, para que uma obra possa ser reconhecida

como romance histórico, há um marco temporal: sua ação deve desenvolver-se total ou

parcialmente num passado não experimentado diretamente pelo autor (ibdem, p. 32). Isto

exclui de seu estudo romances que, embora possuam dimensões históricas, abordam um

período experimentado diretamente pelo autor (ibdem, p. 33).

Penso que este é um falso problema, tanto do ponto de vista ficcional, quanto do

historiográfico, pois a valorização de uma concepção de história que privilegia a visão

retrospectiva foi abandonada no século XX, a partir da Escola dos Annales (CLÍMACO,

2014, p. 51). Além disso, outro ponto discutível do posicionamento de Menton diz respeito à

característica do novo romance latino-americano que trata da história de forma a distorcê-la

através de omissões, exageros e anacronismos (MENTON, 1993, p. 43).

Considero válida não apenas apresentar uma possível distorção da história por meio de

métodos que apontam para a construção da paródia, mas discutir a história como uma

23

construção que se dá através da elaboração de versões históricas fictícias, apontando-se para

sua textualização (CLÍMACO, 2014, p.52).

Estou de acordo com Trouche para quem a classificação novo romance histórico

latino-americano, como proposta por Menton, é apressada, devido à existência de um enorme

abismo entre o romance histórico tradicional e as narrativas produzidas nas últimas décadas

(1980-2000), na América Latina (TROUCHE, 2006, p. 29).

A terminologia metaficção historiográfica, proposta por Linda Hutcheon (1991)

também tenta explicar a relação entre história e ficção, sendo caracterizadora do pós-

modernismo na literatura. Segundo Hutcheon, são assim classificados os romances famosos,

populares e autorreflexivos que, paradoxalmente, aproximam-se de acontecimentos e

personagens históricos (HUTCHEON, 1991, p. 21). Ainda segundo a autora, a recusa da

pretensão da verdade histórica e o aproveitamento das mesmas verdades e mentiras do

registro histórico são observáveis nas metaficções historiográficas (ibdem, p. 152).

Esse é um ponto a se criticar na definição de Hutcheon, visto que, como apontado por

Alcmeno Bastos (2007, p. 44), não é apropriada a questão da verdade ou da mentira do

registro histórico pois isso não é um problema para a ficção. Além disso, a história não tem

pretensão à verdade. Esta se refere ao verificável, ao que possa ser comprovado por

documentos nos quais se apoia o historiador, sendo isto absolutamente desnecessário à ficção

(CLÍMACO, 2014, p. 54).

Uma classificação genérica estrita não se constitui uma preocupação na presente tese,

por isso considero o corpus selecionado como narrativas de extração histórica. Cabe ressaltar

que, de acordo com Trouche (2006, p. 32), uma das tendências atuais que se revela bastante

proveitosa e com estudos de maior êxito e densidade é a que aponta no sentido da

relativização dos limites entre história e ficção. Isto associado ao já dito, anteriormente, sobre

o trabalho de Cristine Mattos, indica a motivação para a presente tese.

Em meu trabalho História e ficção em Santa Evita (2014), procurei seguir esta linha

investigativa, tendo como objetivo principal verificar a relativização dos limites entre história

e ficção em SE, ou seja, a dissolução das margens entre esses dois campos. Identifiquei e

analisei, nesta narrativa de extração histórica, as estratégias, os procedimentos, os recursos

textuais que permitem o que chamei de ficcionalização da matéria histórica por um lado e, por

outro, os que criam o efeito de historicidade na ficção, sem que estas margens sejam

intransponíveis, ou seja, são margens complementares (CLÍMACO, 2014, p. 59).

24

Tomo de empréstimo a expressão “efeito de historicidade”, utilizada por Alcmeno

Bastos (2007, p. 106), para designar o que acontece quando recursos ficcionais substitutivos,

como criação de personagens, eventos e instituições análogas a personagens, eventos e

instituições de extração histórica documentada são empregados na ficção.

Os procedimentos identificados em SE como ficcionalizadores da história foram: a

matéria histórica e o mito; a quebra da linearidade temporal, os personagens históricos e sua

ficcionalização; o narrador que se apresenta como autor e personagem de sua narrativa e, por

fim, as metáforas e os símbolos (CLÍMACO, 2014, p. 70).

É possível afirmar que a narrativa está composta de duas margens complementares: de

um lado, os elementos ficcionalizadores da história; do outro, os que criam um efeito de

historicidade na ficção. No meio ou misturando-se a eles, fundindo-os, a metaficção, criando

uma narrativa ficcional que não substitui a narrativa histórica, antes questiona e tematiza o

que a história silenciou. Os elementos que criam o efeito de historicidade em SE são: a

elaboração de documentos históricos; o tratamento dado aos documentos; as notas; o ensaio e

a intertextualidade (CLÍMACO, 2014, p. 123).

Diluem-se, em SE, as margens entre ficção e história. A ficcionalização da história e a

criação do efeito de historicidade da ficção visam a discutir a produção da história, dando voz

ao que esta havia silenciado. O não dito é colocado em discussão. A produção da história é

questionada. A ficção pode ousar por em cena o que foi descartado, omitido, silenciado pela

escrita da história. Não substitui a história, nem a nega, pode-se dizer que a complementa

(CLÍMACO, 2014, p. 177). Nesta tese, reflito sobre essas margens também em obra não

ficcional, produto de pesquisa histórica, portanto historiografia, escrita da história. Em que

medida a ficção se faz presente em LRMV e em EJSV, é uma das perguntas a responder.

Faz-se necessária, portanto, a conceituação de meta-história formulada por Hayden

White (1995). O teórico afirma que o trabalho histórico é manifestamente “uma estrutura

verbal na forma de um discurso narrativo em prosa” (WHITE, 1995, p. 11). Tal discurso tem a

pretensão de “ser um modelo, ou ícone, de estruturas e processos passados no interesse de

explicar o que eram representando-os.” (ibdem, p. 18). Chama trabalho histórico tanto a

história quanto a filosofia da história que combinam dados, explicações sobre esses dados e

uma estrutura narrativa. Aponta que o conteúdo estrutural profundo que comportam é poético

e linguístico em sua natureza, sendo o paradigma aceito daquilo que deve ser uma explicação

histórica. Tal paradigma “funciona como o elemento “meta-histórico” em todos os trabalhos

históricos” (ibdem, p. 11).

25

Enfatiza White que meta-histórico não se refere aos conceitos teóricos dos quais se

utiliza o historiador para dar a suas narrativas o aspecto explicativo. Distingue três estratégias

que criam a impressão explicativa: explicação por argumentação formal, explicação por

elaboração de enredo e explicação por implicação ideológica (WHITE, 1995, p. 12). O plano

meta-histórico seria mais profundo, um nível no qual

o historiador realiza um ato essencialmente poético, em que prefigura o campo

histórico e o constitui como um domínio no qual é possível aplicar as teorias

específicas que utilizará para explicar “o que estava realmente acontecendo” nele.

Esse ato de prefiguração pode, por sua vez, assumir certo número de formas cujos

tipos são caracterizáveis pelos modos linguísticos em que estão vazados. (WHITE,

1995, p. 12, grifo do autor)

White denomina esses tipos de prefiguração como os quatro tropos da linguagem

poética: metáfora, metonímia, sinédoque e ironia (1995, p. 12). Destaca que muito se fez para

aproximar a história da ciência, discutindo-se os elementos que permitem classifica-la numa

das modalidades científicas, mas pouca atenção se deu aos seus elementos artísticos. Para o

autor (ibdem, p. 13), compõem a base meta-histórica de todo trabalho histórico o modo

tropológico dominante e seu protocolo linguístico concomitante. Quanto ao trabalho de

seleção operado pelo historiador, White, a partir de seus estudos sobre a consciência histórica

oitocentista, conclui que “os melhores fundamentos para escolher uma perspectiva da história

em lugar de outra são em última análise antes estéticos ou morais que epistemológicos”

(ibdem, p. 14).

White busca contribuir para a discussão acerca do problema do conhecimento

histórico que permeou o século XIX: “que significa pensar historicamente e quais são as

características inconfundíveis de um método especificamente histórico de investigação?”

(WHITE, 1995, p. 17). Aponta como no século XX essas questões ainda não obtiveram uma

resposta definitiva. Afirma que autores como Valéry, Heidegger, Sartre, Lévi-Strauss e

Foucault expressaram dúvidas a respeito de uma consciência especificamente “histórica”,

“sublinharam o caráter fictício das reconstruções históricas e contestaram as pretensões da

história a um lugar entre as ciências.” (ibdem, p. 17). Pensar sobre o componente poético,

figurativo, ficcional da obra EJSV é um dos objetivos desse trabalho.

Importa também a esta pesquisa a crítica de Walter Benjamin (1987) ao historicismo

contrapondo-o ao materialismo histórico. Para Benjamin, o historicismo considera o tempo

como linear, cronológico, espacializado em quantidades iguais; o passado seria uma imagem

eterna; ignora a importância do historiador na construção da história, com isto o historiador

historicista atuaria de modo imparcial e desconectado de seu tempo, descrevendo a história

26

como espetáculo na perspectiva dos vencedores, manifestando empatia com os monumentos

dos vencedores. Já o materialismo histórico, segundo sua definição, não se preocupa com um

nexo causal entre momentos da história; possui percepção qualitativa do tempo; discerne a

história dos vencidos, propondo-se a contá-la, por entender que o passado poderia ser outro. O

historiador alegorista, materialista histórico, dedica-se à produção de uma história capaz de

explodir o continuum de uma história sem significado, trazendo à tona um passado saturado

de agoras.

Em Benjamin, verifica-se o presente como ponto de partida para o historiador. O autor

preocupa-se com a ascensão do fascimo e isso faz com que reflita sobre a história e a postura

acrítica do historicismo, como se evidencia em sua sexta tese sobre a história:

Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo "como ele de fato foi".

Significa apropriar-se de uma reminiscência, tal como ela relampeja no momento de

um perigo. Cabe ao materialismo histórico fixar uma imagem do passado, como ela

se apresenta, no momento do perigo, ao sujeito histórico, sem que ele tenha

consciência disso. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a

recebem. Para ambos, o perigo é o mesmo: entregar-se às classes dominantes, como

seu instrumento. Em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que

quer apoderar-se dela. Pois o Messias não vem apenas como salvador; ele vem

também como o vencedor do Anticristo. O dom de despertar no passado as centelhas

da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que também os

mortos não estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem

cessado de vencer. (BENJAMIN, 1987, p. 224)

Em seu estudo sobre Benjamin, Penido (1989, p. 67) afirma que, através da alegoria, o

historiador alegorista vislumbra a salvação das coisas. O alegorista descontextualiza o objeto

que se transforma em morto, deixando de significar por si próprio. Este objeto, para irradiar

novos sentidos, depende da ação do alegorista, que é, portanto, arbitrária. Assim, o historiador

deve proceder com os documentos tal qual o alegorista com os objetos. Os fragmentos da

história devem ser descontextualizados e receber outros sentidos. Cabe ao historiador utilizar

os cacos da história como citações, dando-lhes novo sentido. Historiador e alegorista são

onipotentes. O historiador está comprometido com uma história que resgata as intenções

fracassadas – esse é o seu foco de luz sobre os documentos.

A nona tese sobre a história apresentada por Benjamin é de grande importância nesta

pesquisa, visto que o narrador de SE estabelece seu modo de narrar segundo a concepção de

história nela mencionada:

Há um quadro de Klee que se chama Angelus Novus. Representa um anjo que

parece querer afastar-se de algo que ele encara fixamente. Seus olhos estão

escancarados, sua boca dilatada, suas asas abertas. O anjo da história deve ter esse

aspecto. Seu rosto está dirigido para o passado. Onde nós vemos uma cadeia de

acontecimentos, ele vê uma catástrofe única, que acumula incansavelmente ruína

sobre ruína e as dispersa a nossos pés. Ele gostaria de deter-se para acordar os

mortos e juntar os fragmentos. Mas uma tempestade sopra do paraíso e prende-se em

27

suas asas com tanta força que ele não pode mais fechá-las. Essa tempestade o impele

irresistivelmente para o futuro, ao qual ele vira as costas, enquanto o amontoado de

ruínas cresce até o céu. Essa tempestade é o que chamamos progresso.

(BENJAMIN, 1987, p. 226)

O historiador, para Benjamin, deve construir uma experiência com o passado. O

narrador em SE, comportando-se como um historiador alegorista, assim o faz em sua

representação hagiográfica de Eva Perón.

1.1 O efeito de historicidade

Há uma propriedade que permite à história contar-se: a narratividade. Tal propriedade

lança mão de formas e estratégias discursivas que possibilitam ao narrador, no caso, ao

historiador, transformar em discurso os fatos acontecidos, relacionando-os em causa e efeito,

estabelecendo assim um modo inteligível de configuração do real. Desta forma, os leitores

podem ter acesso àquilo que aconteceu.

Refletindo sobre a narratividade da história, pergunto-me em que ela difere da ficção.

O que faz com que um relato seja pertencente ao discurso histórico e outro ao literário,

questiono. A relação entre história e ficção é tema sobre o qual se debruçaram pensadores os

mais diversos desde a Antiguidade e, obviamente, tal questão está longe de se resolver

definitivamente. Interessa-me pensar em alguns aspectos relacionados ao modo como se

constroem tais discursos: o que confere um caráter histórico a determinada narratividade,

portanto, como adquire historicidade um discurso, ou ainda, o que cria esse efeito?

Não me refiro exclusivamente ao sentido de historicidade como histórico, logo

presente num espaço e numa temporalidade. Faço menção a propriedades que constituem a

textualidade do discurso histórico diferenciando-o de outros discursos; àquilo que Krzysztof

Pomian chama “marcas de historicidade”:

Toda narrativa comporta de fato elementos, signos ou fórmulas que devem,

supostamente, conduzir o leitor para fora de seu texto; sinais ou fórmulas que

apontam na direção de uma realidade exterior à própria narrativa, se não

extratextual, assinalando que a narrativa que os contém não pretende ser auto-

suficiente. Que ela pretende, de um lado, proceder a atos de percepção, leitura,

observação, reconstrução ou quantificação. E que pretende, de outro lado, ser

composta de afirmações que podem ser controláveis por operações (...). São esses

signos e fórmulas que designamos pelo nome de marcas de historicidade. Eles

podem aparecer indissoluvelmente integrados ao próprio texto da narrativa. Podem

também se inscrever na apresentação material da obra e, especialmente, em sua

tipografia. Em todos os casos, como primeiros indicadores do caráter da narrativa,

eles permitem que o leitor as classifique, logo de início entre as histórias, ainda que

seja necessário rever seu julgamento após um exame mais aprofundado. (POMIAN,

2003, p. 20)

28

Como já dito anteriormente, a expressão “efeito de historicidade” foi utilizada por

Alcmeno Bastos (2007, p. 106), para se referir ao emprego na ficção de recursos ficcionais

que fazem analogia a personagens, eventos e instituições de extração histórica documentada,

gerando no leitor a sensação de estar diante do que realmente aconteceu. Por sua vez, “efeito

de historicidade” remete ao “efeito de real” produto de reflexão de Roland Barthes (2004, p.

178) que assim denomina o fato de, na história objetiva, o “real” não ser nunca mais do que

um significado não formulado, abrigado atrás da onipotência aparente do referente.

Barthes analisa o discurso de historiadores clássicos como Heródoto, Maquiavel,

Bossuet e Michelet, buscando neles traços distintivos do discurso histórico (2004, p. 163).

Segundo o autor, a observação da enunciação, do enunciado e da significação permite tecer

algumas considerações.

Quanto à enunciação, o discurso histórico parece comportar dois tipos regulares de

embreantes (shifters): embreantes de escuta e os de organização. Os do primeiro tipo

designam “toda menção das fontes, dos testemunhos, toda referência a uma escuta do

historiador, recolhendo um alhures do seu discurso e dizendo-o” (BARTHES, 2004, p. 164,

grifo do autor). O autor pontua que explicitar tal escuta é uma escolha, pois é possível não se

referir a ela. No entanto, os historiadores optam por fazê-la porque visam à objetividade

científica. Já os do segundo tipo são os signos pelos quais o historiador organiza seu próprio

discurso, retomando-o e modificando-o; indicam um movimento do discurso em relação a si

mesmo, revelando a coexistência de dois tempos – o tempo da enunciação e o tempo da

matéria enunciada (ibdem, p. 165).

Dessa confluência temporal originam-se fatos de discurso tais como a aceleração da

história, o aprofundamento do tempo histórico e as inaugurações do discurso histórico. Sobre

o primeiro, Barthes (2004, p. 165) destaca que um capítulo que cobre séculos pode conter o

mesmo número de páginas de outro que cobre apenas alguns anos. Quanto mais se aproxima

do tempo do historiador, mais forte é a pressão da enunciação e mais lentamente caminha a

história, o que demonstra a ausência de isocronia o que atenta implicitamente contra a

linearidade do discurso. O segundo refere-se às idas e vindas na história como, por exemplo,

as digressões com retorno no tempo, para explicar cada personagem introduzido no relato. Por

fim, as inaugurações do discurso histórico são os lugares onde se encontram o começo da

matéria enunciada e o exórdio da enunciação.

As formas de inauguração do discurso da história compreendem a abertura

performativa, em que “a palavra é um ato solene de fundação” (BARTHES, 2004, p. 167)

29

sendo seu modelo poético, e o prefácio, ato caracterizado de enunciação que pode ser

prospectiva, quando analisa o discurso a seguir, ou retrospectiva, quando julga o discurso.

Segundo Barthes,

A entrada da enunciação no enunciado histórico, através dos shifters organizadores,

tem por finalidade não tanto dar ao historiador a possibilidade de exprimir a sua

“subjetividade”, como geralmente se diz, quanto “complicar” o tempo crônico da

história confrontando-o com outro tempo, que é o do próprio discurso, e que se

poderia chamar, por condensação, o tempo-papel; em suma, a presença, na narração

histórica, de signos explícitos de enunciação visaria a “descronologizar” o “fio”

histórico e a reconstituir, mesmo a título de mera reminiscência ou nostalgia, um

tempo complexo, paramétrico, de modo algum linear, cujo espaço profundo

lembraria o tempo mítico das antigas cosmogonias, também ele ligado por essência

à palavra do poeta ou do adivinho; os shifters de organização atestam, com efeito –

mesmo por certas digressões de aparência racional –, a função preditiva do

historiador: é na medida em que ele sabe o que ainda não foi contado que o

historiador, tal qual o agente do mito, tem necessidade de duplicar o escoamento

crônico dos acontecimentos por referências ao tempo próprio de sua palavra. (2004,

p. 167, grifo do autor)

Os embreantes de destinação estão geralmente ausentes no discurso histórico que é,

aparentemente, um discurso sem tu, embora sua estrutura implique, na realidade um “sujeito”

da leitura. São encontrados, segundo Barthes, “apenas quando a história dá uma lição” (2004,

p. 168). Mais frequentes são os signos do enunciador:

todos os fragmentos de discurso em que o historiador, sujeito vazio de enunciação,

vai-se pouco a pouco enchendo de predicados variados destinados a fundá-lo como

uma pessoa provida de uma plenitude psicológica, ou ainda (o termo é

preciosamente repleto de imagens) de uma continência. (BARTHES, 2004, p. 168,

grifo do autor)

Ao preencher-se, o enunciador ausenta-se de seu discurso, consequentemente, este

carece de qualquer signo que remeta ao emissor da mensagem histórica, fazendo com que a

história pareça contar-se sozinha: a isto corresponde o discurso histórico dito objetivo

(BARTHES, 2004, p. 169). É estabelecida uma ilusão referencial, visto que o enunciador

pretende deixar o referente falar por si só.

A respeito do enunciado do discurso histórico, Barthes reflete que este deve prestar-se

a um recorte que produza unidades do conteúdo. Tais unidades são representativas do que fala

a história (BARTHES, 2004, p. 170). O historiador precisa nomear os objetos históricos. A

palavra da qual se utiliza para fazê-lo pode economizar uma situação ou sequência de ações;

“ela favorece a estruturação na medida em que, projetada em seu conteúdo, ela própria é uma

pequena estrutura” (ibdem, p. 172).

O autor aponta que o estatuto de um processo histórico é assertivo, o que se conta é o

que foi, não o que não foi ou o que foi duvidoso, e que há três classes de conteúdo no

enunciado histórico: a primeira que “cobre todos os segmentos do discurso que remetem a um

30

significado implícito, segundo um processo metafórico” (BARTHES, 2004, p. 173); a

segunda formada por fragmentos do discurso de natureza arrazoadora; e a terceira que

comporta funções da narrativa ou pontos cardeais de onde o enredo pode tomar um

andamento diferente (ibdem, p. 174). Há, portanto, apresentação de evento de modo a ser

compreensível, argumentação sobre este e uma narrativa de enredo na constituição do

discurso histórico.

Sobre a significação, Barthes chama a atenção para uma história que não significa,

cujo discurso limita-se a uma série de anotações, como, por exemplo, cronologias e anais. Já

no discurso histórico constituído (“forrado”), os fatos relatados funcionam quer como índices,

quer como núcleos cuja sequência tem valor indicial, e mesmo quando os fatos fossem

apresentados de maneira anárquica, eles significariam pelo menos a anarquia e remeteriam a

uma certa ideia da história humana (BARTHES, 2004, p. 175).

Os níveis de significados do discurso histórico relacionam-se intimamente: há um

nível imanente à matéria enunciada, que detém todos os sentidos que o historiador dá

voluntariamente aos fatos que relata. Podem ser: as lições morais ou políticas que o

historiador tira de certos episódios. Se esta lição é contínua, atinge-se um segundo nível: um

significado que transcende ao discurso histórico, transmitido pela temática do historiador

(BARTHES, 2004, p. 175). Preencher o sentido da história é o objetivo do discurso histórico:

“o historiador é aquele que reúne menos fatos do que significantes e os relata, quer dizer,

organiza-os com a finalidade de estabelecer um sentido positivo e de preencher o vazio da

série pura” (ibdem, p. 176).

O discurso histórico produz-se a partir de elaboração ideológica e do imaginário.

Barthes considera imaginário como “a linguagem pela qual o enunciante de um discurso

(entidade puramente linguística) “preenche” o sujeito da enunciação (entidade psicológica ou

ideológica)” (2004, p. 176). Destaca ainda que o fato histórico, a partir do momento em que a

linguagem intervém, só pode ser definido de modo tautológico, visto que o notado procede do

notável, no entanto, paradoxalmente, o notável é aquilo que é digno de memória, portanto, de

ser notado. Segundo Barthes, esse é o paradoxo da pertinência do discurso histórico:

o fato nunca tem mais do que uma existência linguística (como termo de um

discurso), e, no entanto, tudo se passa como se essa existência não fosse senão a

“cópia” pura e simples de uma outra existência, situada num campo extra-estrutural,

o real. (BARTHES, 2004, p. 176)

O discurso histórico opera duplamente: num primeiro momento, o referente é

destacado do discurso, é exterior, fundador, é seu regulador; num segundo momento, é o

próprio significado que é rechaçado, confundido no referente, “o referente entra em relação

31

direta com o significante e o discurso, encarregado apenas de exprimir o real” (BARTHES,

2004, p. 177, grifo do autor). A história tem a pretensão de ser um discurso realista e, ao

produzir-se, como já mencionado anteriormente, cria o efeito do real (ibdem, p. 178).

O papel do historiador na criação do efeito de historicidade ao produzir seu discurso

histórico está na construção que faz através da escrita, com elementos textuais, e em fazer uso

de um imaginário que o consagra como autoridade (a isso, voltaremos mais adiante).

A intencionalidade do historiador, autor do discurso histórico, na criação das marcas

de historicidade é destacada por Pomian:

Considera-se histórica uma narrativa quando ela apresenta marcas de historicidade

que certificam a intenção do autor de permitir que o leitor saia do texto e quando

essas marcas programam as operações supostamente aptas a permitir a verificação

das alegações feitas ou a reprodução dos atos cognitivos dos quais tais alegações são

a finalização. Em suma: uma narrativa é considerada histórica quando exibe a

intenção de submeter-se a um controle de sua adequação à realidade extratextual do

passado do qual trata. (POMIAN, 2003, p. 21)

As marcas de historicidade textuais são criadas na narrativa através da palavra e

remetem a uma exterioridade. Além das que permitem ao leitor a verificação dos fatos que o

historiador encadeia e narra em sua construção, como as notas e as citações, há também outras

pistas que possibilitam reconhecer o discurso histórico, tais como o tratamento do tempo, a

objetividade, a conceitualização, a criação do enredo e a argumentação.

A respeito das marcas que pretendem fazer este discurso verídico e crível, portanto,

passíveis de verificação, Pomian (2003, p. 21) alerta para o fato de que essa deve poder ser

executada por todo leitor competente, a menos que as fontes tenham sido destruídas em

acidentes comprovados após a redação. Notas e citações que não são possíveis de serem

verificadas por seu caráter ficcional não constituem o discurso histórico. Neste caso, o leitor

estará indiscutivelmente diante de obra ficcional.

Trabalhar a partir de fontes e explicitá-las são normas da profissão de historiador

(PROST, 2015, p. 39). A construção de fatos documentáveis permite que o texto do

historiador receba um status de ciência, isto porque garante que, ao invés de sequências de

opiniões subjetivas, a história expressa a verdade, aquilo que se pode comprovar (ibdem, p.

54).

Segundo Prost, diferencia o historiador profissional do amador ou do romancista o uso

das regras da crítica e da erudição, sendo a crítica uma atitude aprendida, integrante do

conjunto de práticas do ofício de historiador (PROST, 2015, p. 61). O texto de história erudita

manifesta-se por sinais exteriores e, em particular, por seu aparato crítico e pelas notas de

32

rodapé: “As notas na margem inferior de página são essenciais para a história: elas constituem

o sinal tangível da argumentação. A prova só é aceitável se for verificável.” (ibdem, p. 235).

Da mesma forma, as citações compõem o discurso histórico. O historiador traz a

palavra de outros historiadores para seu texto e com eles dialoga, estabelecendo a rede de

saber à qual se vincula sua produção. Segundo Certeau, o uso da citação produz um efeito de

verdade que serve de certificação ou confirmação:

a linguagem citada tem por função comprovar o discurso: como referencial, introduz

nele um efeito de real; e por seu esgotamento remete, discretamente, a um lugar de

autoridade. Sob este aspecto, a estrutura desdobrada do discurso funciona à maneira

de uma maquinaria que extrai da citação uma verossimilhança do relato e uma

validade do saber. Ela produz credibilidade. (CERTEAU, 2000, p. 111)

O tratamento do tempo por parte do historiador é, também, marca de historicidade. O

tempo da história é um tempo objetivado que,

visto do presente, é um tempo já decorrido, dotado consequentemente de certa

estabilidade e que pode ser percorrido ao sabor da investigação. O historiador

remonta o tempo e faz o movimento inverso; pode acompanhá-lo, mentalmente, nos

dois sentidos, embora saiba muitíssimo bem que ele se escoa apenas em um sentido.

(PROST, 2015, p. 104).

O trânsito no tempo é operação peculiar da história. Geralmente, no discurso,

apresenta-se de forma linear para facilitar o relato e a compreensão, visto que para estabelecer

e explicar relações de causalidade torna-se difícil apresentar a simultaneidade dos eventos,

ainda assim há alguns recursos, como o flasback, na narração dos eventos históricos.

Prost afirma que o tempo objetivado apresenta duas características complementares:

em primeiro lugar, exclui a perspectiva teleológica, o que impede a admissão de um tempo

claramente orientado e, em segundo lugar, permite fazer prognósticos, ressaltando a diferença

entre profecia e prognóstico: este último avança do presente para o futuro, apoia-se no

diagnóstico respaldado no passado (PROST, 2015, p. 105). Não estou totalmente de acordo

com a ideia da exclusão da perspectiva teleológica, pois, como já mencionado nesta pesquisa,

o que é transformado em fato histórico é aquilo que é da ordem do notável para o qual

buscam-se explicações. Ora, isto poderia supor uma certa orientação temporal, ainda que

puramente produto de elaboração textual.

Para Prost, o tempo dos historiadores e a biografia individual compartilham

características:

Cada qual pode reconstruir sua história pessoal, objetivá-la até certo ponto, como

remontar, relatando suas lembranças, do momento presente até a infância ou inverter

o movimento a partir da infância até o começo da vida profissional, etc. A memória,

a exemplo da história, serve-se de um tempo já decorrido. (PROST, 2015, p. 106).

Entretanto, destaca o autor, a diferença fundamental está na objetivação:

33

O tempo da memória, o da lembrança, nunca pode ser inteiramente objetivado,

colocado à distância, e esse aspecto fornece-lhe sua força: ele revive com uma

inevitável carga afetiva. É inexoravelmente flexionado, modificado, remanejado em

função das experiências ulteriores que o investiram de novas significações. (PROST,

2015, p. 106)

A história não é uma memória. Seus tempos dependem de registros diferentes. Fazer

história, em lugar de registrar lembranças, ou imaginar para atenuar a ausência de lembranças,

é construir um objeto científico, historicizá-lo, construir sua estrutura temporal, espaçada,

manipulável (PROST, 2015, 106).

Como o tempo não é dado ao historiador, faz-se necessário que o construa num

trabalho próprio ao seu ofício. Essa construção se dá em duas tarefas: estabelecer uma

cronologia, isto é, classificar os acontecimentos na ordem do tempo, e periodizar, recortar o

tempo em períodos. A periodização “permite pensar a um só tempo, a continuidade e a

ruptura” (PROST, 2015, p. 107). Ainda segundo Prost, periodizar é “identificar rupturas,

tomar partido em relação ao variável, datar a mudança e fornecer-lhe uma primeira definição.

Entretanto, no interior de um período, a homogeneidade prevalece.” (ibdem, p. 107). Através

da periodização, abrem-se os caminhos da interpretação do objeto. É preciso frisar que “cada

objeto histórico tem sua periodização” (ibdem, p. 111), como a de Eva Perón, na biografia de

Felipe Pigna, como analiso mais adiante.

A narração, a elaboração de enredo, possibilita o trabalho com o tempo da história

visto que este “não é uma reta, nem uma linha quebrada feita por uma sucessão de períodos,

nem mesmo um plano: as linhas entrecruzadas por ele compõem um relevo. Ele tem espessura

e profundidade” (PROST, 2015, p. 114).

A objetividade textual constitui marca de historicidade. O discurso histórico é um

texto objetivado e digno de crédito. Nele, o eu é proscrito, aparece, no máximo, no prefácio,

quando o autor explicita suas intenções. O historiador tenta excluir sua personalidade do texto

que produz, evitando implicar-se e manifestar emoções. Promove o ocultamento de si,

aparecendo em raras oportunidades, como no início ou fim de capítulo, notas e discussões

com outros historiadores, ou sob formas atenuadas, pelo emprego de “nós” que associa autor e

leitores ou por uma referência à corporação de historiadores através de expressões mais

impessoais, por exemplo, “diz-se”. Acabada, a obra limita-se a fornecer enunciados objetivos

(PROST, 2015, p. 238).

As referências feitas a outros historiadores mostram o pertencimento à profissão e, “ao

inserir-se em uma espécie de hipertexto coletivo, seu estudo vem completá-lo em

34

determinados aspectos e contradizê-lo ou renová-lo em outros” (PROST, 2015, p. 239). O

diálogo com os pares é, portanto, fundamental.

Já o leitor, geralmente, está ausente no texto do historiador, que não o consulta ou com

ele assume uma relação didática, isto porque a posição que o historiador pretende ocupar é a

do próprio saber objetivo constituído pela profissão, sendo seu discurso “um saber que se

enuncia ou melhor ainda, se manifesta” (PROST, 2015, p. 239).

Outra operação realizada pelo historiador e que gera historicidade é a

conceitualização. O historiador lança mão de um repertório de conceitos ao analisar fatos já

mencionados anteriormente por outros e, caso estes não consigam expressar o que tenta dizer,

elabora novos conceitos. Resultante do mesmo tipo de operação intelectual, a generalização

ou o resumo, os conceitos são abstrações utilizadas pelos historiadores para compará-las à

realidade (PROST, 2015, p. 123). A conceitualização é, portanto, um procedimento e busca da

história para organizar a realidade histórica; entretanto essa organização é relativa e sempre

parcial, “porque o real nunca se deixa reduzir ao racional, ele comporta sempre uma parte de

contingência e as particularidades concretas transtornam necessariamente a ordem

irrepreensível dos conceitos” (ibdem, p. 124). Ou seja, ainda que seja uma ordem imperfeita,

incompleta e desigual, a conceitualização consegue, de alguma forma, ordenar a realidade.

Por meio da instrumentalidade dos conceitos, os historiadores buscam consolidar a

organização da realidade; além disso levam o passado a exprimir sua especificidade e suas

especificações (ibdem, p. 131).

Destaca-se, uma vez mais, a história como um ofício, uma prática decorrente de um

aprendizado. Isto supõe a existência de um conjunto de técnicas a aprender, a dominar. Não é

por menos que muitos historiadores referem-se à corporação, à oficina da história. A produção

dos demais, dos que vieram antes, ou mesmo contemporâneos, é incorporada e discutida pelo

historiador, que a faz avançar, por isso é que Prost afirma que “é necessário ser historiador

para fazer história” (PROST, 2015, p. 133) e ao mesmo tempo, de modo paradoxal, “ao fazer

história é que alguém se torna historiador” (ibdem, p. 134).

A história organiza-se como enredo, mais um elemento indicativo de historicidade. A

elaboração literária e retórica específica, associada à linguagem, faz com que o livro de

história seja facilmente reconhecível como tal. O modo de narrar do historiador, como elabora

seus fatos e suas interpretações deve ser observado. Penso que a historicidade constrói-se na

narratividade:

As narrativas têm a característica de descrever um percurso no tempo, seu plano,

para não falar de seu título é, principalmente, cronológico. No mínimo, partem de

35

um primeiro elemento para chegarem a um segundo elemento mais tardio e

explicam como se fez a passagem do primeiro para o segundo; por outras palavras, é

necessário e basta, para haver uma narrativa, que haja dois acontecimentos, ou

situação, por ordem do tempo. (PROST, 2015, p. 213)

Qualquer objeto histórico é passível de narração. Múltiplos procedimentos literários

tornam a exposição mais viva e significativa, numa construção que não é necessariamente

linear. As mudanças são explicadas pela narrativa, assim como as permanências; naturalmente

isso implica numa busca das causas e intenções. A construção do enredo consiste, logo, em

configurar um tema. Este não é encontrado pronto pelo historiador; deve ser construído e

modelado. O historiador cria o enredo, um ato fundador, que “incide, também sobre as

personagens e os cenários; implica a escolha dos atores e dos episódios” além de determinar

“o plano em que o historiador se coloca” e a constituição dos fatos (PROST, 2015, p. 219):

A criação de enredos configura, portanto, a obra histórica e, inclusive, determina sua

organização interna. Os elementos adotados são integrados em um cenário, através

de uma série de episódios ou de sequências meticulosamente ordenados. A

disposição cronológica é a mais simples, sem implicar qualquer tipo de imposição.

(PROST, 2015, p. 220).

Dentre os recursos empregados na criação de enredos, em seu aspecto literário, tem-se

o flashback, a pluralidade dos tempos e a panorâmica. “A história é um enredo no sentido

literário do termo: o dos romances, peças de teatro e filmes.” (PROST, 20115, p. 221), sendo

que, segundo Paul Veyne, “a história é um romance real” (1998, p. 11), no sentido de que

narra acontecimentos verdadeiros. Considero o termo “verdadeiros” no sentido de

verificáveis, passíveis de comprovação, e não a história como verdade em contraposição à

ficção, mentira. A oposição à ficção não é a verdade, e sim a não-ficção.

Prost chama a atenção para o fato de que a narração distingue-se da narrativa

contemporânea de ação, porque o narrador não é o ator, nem o espectador imediato da ação;

ele aparece depois da ocorrência e já conhece o desfecho, ele faz seu relato, porque está

separado dela por um intervalo de tempo inscrito na própria trama dos enunciados; além

disso, a narração implica o conhecimento prévio do desenrolar e do desfecho do enredo, e a

descrição em forma de relato é construída como argumentação (PROST, 2015, p. 223, 224).

Como ao narrar, faz-se uma explicação, o historiador fornece explicações em sua

narrativa: “A narrativa é constituída por unidades diferentes em ritmo e em escala, ela articula

constatações de regularidades e sequências factuais, assim como elementos de prova e de toda

a espécie a serviço de uma argumentação.” (PROST, 2015, p. 224). Logo, a argumentação é

incorporada à narrativa, sendo um “desenvolvimento analítico, ponto por ponto, das razões

que servem de justificativa à explicação” (ibdem, p. 229). Isto permite afirmar que a

36

argumentação presente no enredo criado pelo historiador constitui marca de historicidade,

pois, embora utilize a imaginação, esta não é livre, tampouco ilimitada, como na ficção.

Outro elemento da narratividade do enredo são os personagens. Ora, o historiador não

tem a liberdade do romancista para criá-los livremente. Apresenta personagens reais, com

seus nomes próprios – marcas registradas, segundo Alcmeno Bastos (2004, p. 87) –, que

incorporam ao texto toda a semântica que carregam:

enquanto o romance deve revelar, aos poucos, as características dos personagens –

incógnitos para o leitor – cujos nomes próprios haviam sido citados desde o começo,

a história recebe personagens já bem definidos, sobrecarregados com todos os

saberes acumulados pela tradição e pela historiografia. (PROST, 2015, p. 243)

Além dos nomes próprios, são marcas registradas também os pontos de referência do

cenário criado no enredo, estes constituem, segundo Prost, recursos que despertam a

imaginação do leitor, tais como pequenos detalhes aparentemente inúteis e o recurso à cor

local (PROST, 2015, p. 246). De acordo com Alcmeno Bastos, são as datas históricas, os

nomes de ruas e estabelecimentos bem como de produtos ou técnicas utilizadas que permitem

evocar a época narrada (2004, p. 87).

Até o momento, expus os elementos textuais que criam o efeito de historicidade. Passo

agora a abordar as marcas de historicidade extratextuais. São elas: o reconhecimento do

historiador por seus pares, pelas instituições de pesquisa e de ensino superior, e da opinião

pública, a fama do historiador, ou melhor dizendo, o conhecimento prévio que se tem acerca

dele e de sua produção anterior. Ora, o mesmo escrutínio pelo qual a história passou ao se

constituir como disciplina e, logo, em etapa posterior, como ciência, se impõe a cada

produção historiográfica, ainda que isso fique no campo do não dito.

Considerando a história uma prática social, um duplo reconhecimento – dos pares e do

público – consagra o historiador (PROST, 2015, p. 15). A história presentifica-se na

sociedade através de disciplina universitária, de livros e de grandes personagens, mas também

“por um grupo de pessoas que se afirmam historiadores com o acordo de seus colegas e do

público” (ibdem, p. 33).

O reconhecimento dos pares guarda relação com o lugar institucional ocupado pelo

historiador, o modo como dialoga com outros historiadores, bem como a utilização rigorosa

das normas da profissão, como já exposto nesta pesquisa, mas que recordamos: o trabalho a

partir de documentos e a citação das fontes. Esse reconhecimento não é um selo de qualidade

visível na capa do livro de história, obviamente, mas são suas teses tomadas como

proposições verdadeiras, dignas de crédito e de figurarem ao lado de outras na corrente de

produção do saber histórico erudito. Ou seja, que um historiador seja citado, que a leitura de

37

sua obra seja recomendada aos alunos dos cursos superiores, que com ele os pares dialoguem,

que refutem ou acatem suas posições, reconhecendo-as como científicas, merecedoras de

análise e que, por meio delas, a ciência histórica caminhe. Sobre isto, afirma Prost: “para ser

revestido de autoridade, o texto do historiador deverá ser qualificado não só pelo saber que ele

reivindica, mas pela inscrição desse saber na grande obra da corporação erudita” (PROST,

2015, p. 271).

A opinião pública também importa. Atualmente,

o controle da mídia e o acesso ao grande público detêm, atualmente, uma

importância profissional: a reputação dos historiadores não surge apenas na

intimidade das salas de aulas das faculdades – de passagem, superlotadas –,

tampouco na ambiência em surdina, erudita e alusiva dos júris de tese ou dos

comitês de redação das revistas cultas, mas é suscitada também entre o grande

público pela intervenção na mídia, televisão e revistas. (PROST, 2015, p. 46)

A história acaba, assim, por dispor de um duplo mercado: o acadêmico e o do grande

público. Alguns historiadores transitam apenas no acadêmico, alguns, por outro lado, apenas

no midiático, e isso gera pode gerar desconfiança por parte dos primeiros. No entanto, há

aqueles que se tornam expoentes por figurarem nos dois mercados com sucesso, como é o

caso de Felipe Pigna, objeto de estudo desta pesquisa. No Brasil, apenas para traçar um

paralelo, não há historiadores que atendam ao interesse da vulgarização da história com a

mesma popularidade de Pigna na Argentina. Aqui, a tradição maior está entre os jornalistas

como Eduardo Bueno e Laurentino Gomes.

Este duplo mercado, segundo Prost, traduz a dupla realidade da profissão de

historiador que desempenha uma função social. Atende a uma demanda social: a história

científica e a história comemorativa (PROST, 2015, p. 47). O autor chama a atenção para um

risco de contaminação do julgamento científico pelo midiático. Tal risco consistiria na

validação no primeiro mercado (acadêmico) dos méritos conquistados no segundo

(comercial), isto é, que a reputação do historiador se faça por jornalistas e não por seus pares

(ibdem, p. 48).

Esse mercado editorial de vulgarização da história que cresce, em particular, na

Argentina, objeto de estudo na presente pesquisa, com grande público consumidor de obras

desse tipo, é ávido por história memorial, identitária, segundo Prost: “uma história que lhes

sirva de diversão relativamente ao presente e que suscite sua ternura ou sua indignação. Se o

historiador não responder a essa demanda, ele ficará confinado em um gueto acadêmico”

(PROST, 2015, p. 271). No entanto, cabe ressaltar, isto – o reconhecimento midiático – não

constitui uma preocupação comum aos historiadores (acadêmicos).

38

Definido o efeito de historicidade, passo às considerações sobre biografia para

complementar as margens entre história e ficção.

1.2 O espaço biográfico

Analisaremos o “espaço biográfico” no qual transitam as representações de Eva Perón

a partir da autobiografia, LRMV, da biografia ficcional, SE, e da biografia, EJSV.

A expressão espaço biográfico, como proposta por Leonor Arfuch (2010, p. 12),

define o “terreno no qual formas discursivas clássicas começam a entrecruzar-se e a

hibridizar-se”. A autora analisa diversas formas narrativas tradicionais que tratam da própria

vida, tais como memórias, correspondências, diários íntimos, etc.; e apresenta a irrupção de

novas formas autobiográficas no mundo contemporâneo, sendo a entrevista a mais importante

em seu trabalho. Destaca a autora a narratividade como característica comum às formas do

espaço biográfico:

A multiplicidade das formas que integram o espaço biográfico oferece um traço

comum: elas contam, de diferentes modos, uma história ou experiências de vida.

Inscrevem-se assim, para além do gênero em questão, numa das grandes divisões do

discurso, a narrativa, e estão sujeitas, portanto, a certos procedimentos

compositivos, entre eles, e prioritariamente, os que remetem ao eixo da

temporalidade. (ARFUCH, 2010, p. 111)

Tomo, portanto, de empréstimo a expressão para me referir ao corpora desta pesquisa,

refletindo sobre autobiografia, autoficção e biografia na análise das obras.

Segundo Pozuelo Yvancos, a autobiografia é um gênero que, desde sua origem, joga

com seu estatuto dual, no limite entre a construção de uma identidade, que possui muito de

invenção, e a relação de alguns fatos que se apresentam como reais. Para o autor, a

autobiografia não é um gênero ficcional, “é um gênero que transpassa muitas vezes a fronteira

da ficção para instalar-se em outro território” (2006, p. 17, tradução nossa).7 Como gênero

fronteiriço, multiforme, convencional e historicamente movediço (ibdem, p. 21), está

vinculada a outros gêneros e práticas discursivas, como as confissões, o testemunho, a

memória, dentre outros.

A diferença básica entre biografia e autobiografia é que, nesta, um indivíduo relata sua

vida, conta sua história, suas experiências de vida; seu tema essencial são as realidades

experimentadas de forma concreta por um sujeito que trata de refletir sobre as mesmas; seu

autor, portanto, é alguém para quem essa vida é importante. De acordo com Gusdorf (1991, p.

7 No original: “es un género que traspasa muchas veces la frontera de la ficción para instalarse en otro territorio”.

39

12, tradução nossa), “ninguém melhor que o próprio interesado para fazer justiça a si mesmo,

e é precisamente para esclarecer os mal entendidos, para restabeler uma verdade incompleta

ou deformada, por que o autor da autobiografía impõe-se a tarefa de apresentar ele mesmo sua

história”.8 Já na biografia, uma pessoa alheia à vida que se narra tenta estabelecer sua

estrutura interna, através de dados observados ou dos relatos feitos por outro sujeito

(WEINTRAUB, 1991, p. 19).

Para Lejeune (2008, p. 15), o contrato de leitura, o pacto autobiográfico, identifica o

eu textual com o eu do autor e isto origina e especifica o gênero autobiográfico. Segundo o

autor, há autobiografia quando a obra possui estas características: quanto à forma da

linguagem, é uma narração, em prosa; quanto ao tema, trata da vida individual, da história de

uma personalidade; quanto a situação do autor, há identidade entre autor (cujo nome remete a

uma pessoa real) e narrador; e, por fim, quanto à posição do narrador, há identidade entre

narrador e personagem principal, e a perspectiva da narração é retrospectiva.

Assim, a identidade de nome entre o autor, o narrador e o personagem da narração da

vida constitui a autobiografia. Tal identificação é fruto de um pacto ou contrato de leitura,

firmado pelo nome próprio que confere um estatuto referencial ao texto, isto é, que faz com

que este seja passível de ser submetido a uma prova de verificação (POZUELO YVANCOS,

2006, p. 28). O nome do autor caracteriza um tipo especial de discurso: “dizer que um escrito

é de um autor é resgatá-lo da palavra anônima e indiferente... é situá-lo numa posição ou

estatuto que está fora e dentro do texto, no limite dos textos” (ibdem, p. 55, grifo do autor).

O objetivo da autobiografia é dar sentido a uma totalidade de vida, embora não o faça

de modo a simplesmente relatar a cronologia dos eventos vividos. Diferente do diário íntimo,

o relato não se faz dia a dia, cobrindo toda a existência, mas buscando temporalidades maiores

e o estabelecimento de um nexo causal e explicativo entre fatos. Daí a afirmação de

Weintraub sobre sua constituição como um tecido no qual se embrenha a autoconsciência

através da inter-relação entre experiências. Tal inter-relação feita na autobiografia pode ter

como funções a autoexplicação, o autodescobrimento, o autoesclarecimento, a autoformação,

a autoapresentação ou a autojustificação. Segundo o autor, essas funções são entrelaçadas,

porque se centram sobre o conhecimento consciente de sua relação e suas experiências (1991,

p. 19). Para Gusdorf (1991, p. 14, tradução nossa), a autobiografia consiste numa tarefa de

salvação pessoal:

8 No original: “nadie mejor que el propio interesado puede hacer justicia a sí mismo, y es precisamente para

aclarar los malentendidos, para restablecer una verdad incompleta o deformada, por lo que el autor de la

autobiografía se impone la tarea de presentar él mismo su historia”.

40

A confissão, o esforço de rememoração, é, ao mesmo tempo, busca de um tesouro

escondido, de uma última palavra libertadora, que redime em última instância um

destino que duvidada de seu próprio valor. Trata-se, para aquele que embarca na

aventura, de concluir um tratado de paz, e alcançar uma nova aliança, consigo

mesmo e com o mundo. O homem maduro ou já envelhecido que converte sua vida

em narração crê oferecer testemunho de que não viveu à toa; não elege a revolta, e

sim a reconciliação, e a leva a cabo no mesmo ato de reunir os elementos dispersos

de um destino que lhe parece ter valido a pena viver. A obra literária na qual ele se

oferece como exemplo é o meio de aperfeiçoar esse destino, de levá-lo a um bom

fim.9

Dito de outra forma, a autobiografia não é uma simples recuperação do passado tal

como foi; isto seria uma caricatura. O indivíduo que recorda e narra eventos não é o mesmo

que os viveu, está, agora, no momento em que escreve, marcado pela experiência e busca a si

mesmo através de sua história (GUSDORF, 1991, p. 13). É um exercício psicológico intenso

colocar-se em contato consigo mesmo, refletir sobre suas intenções, sobre os motivos de suas

ações e narrá-los:

O autor de uma autobiografía impõe-se, como tarefa, o contar sua própria história;

trata-se, para ele, de reunir os elementos dispersos de sua vida pessoal e de agrupá-

los num esquema de conjunto. O historiador de si mesmo gostaria de desenhar seu

próprio retrato, mas, igual a um pintor que apenas fixa um momento de sua

aparência exterior, o autor de uma autobiografia trata de conseguir uma expressão

coerente e total de todo o seu destino. (GUSDORF, 1991, p. 12, tradução nossa)10

Para Christine Delory-Momberger (2009, p. 99), essa representação da vida faz-se

através da linguagem, na sintaxe da narrativa. A vida é transformada em uma ou em várias

histórias. Segundo a autora, biografia são as figuras da vida representada, que não devem ser

confundidas com a realidade:

as formas às quais os indivíduos recorrem para biografar sua vida não são apenas

seus feitos, elas não lhes pertencem propriamente e eles não podem decidir, eles

mesmos, integralmente, sobre elas: são formas coletivas que pertencem à história, à

cultura, ao social e que obedecem às variações e às evoluções sócio históricas.

(DELORY-MOMBERGER, 2009, p. 99, grifo da autora)

Embora as autobiografias de homens e mulheres públicos possam ser consideradas

documentos históricos, o historiador necessita cotejá-las com os fatos oficiais, reconstruindo-

9 No original: “La confesión, el esfuerzo de rememoración, es, al mismo tiempo, búsqueda de un tesoro

escondido, de una última palabra libertadora, que redime en última instancia un destino que dudaba de su propio

valor. Se trata, para aquel que embarca en la aventura, de concluir un tratado de paz, y alcanzar una nueva

alianza, con uno mismo y con el mundo. El hombre maduro o ya envejecido que convierte su vida en narración,

cree ofrecer testimonio de que no ha vivido en balde; no elige la revuelta, sino la reconciliación, y la lleva a cabo

en el acto mismo de reunir los elementos dispersos de un destino que le parece que ha valido la pena vivir. La

obra literaria en la que él se ofrece como ejemplo es el medio de perfeccionar ese destino, de llevarlo a buen fin”.

10 No original: “El autor de una autobiografía se impone como tarea el contar su propia historia; se trata, para él,

de reunir los elementos dispersos de su vida personal y de agruparlos en un esquema de conjunto. El historiador

de sí mismo querría dibujar su propio retrato, pero, al igual que el pintor solo fija un momento de su apariencia

exterior, el autor de una autobiografía trata de lograr una expresión coherente y total de todo su destino”.

41

os através de comprovações indispensáveis. Isto porque o autobiógrafo nem sempre relata o

que realmente aconteceu. Ao estabelecer um fio para a meada dos fatos a partir de suas

motivações íntimas, o narrador pode proporcionar uma revanche à história, visto que atua

como um leitor que revisita sua experiência:

A autobiografia é uma segunda leitura da experiência, e mais verdadeira que a

primeira, visto que é tomada de consciência: na imediatez do vivido, envolve-me

geralmente o dinamismo da situação e me permite tomar em consideração as

complexidades de uma situação no tempo e no espaço. (GUSDORF, 1991, p. 13,

tradução nossa)11

A autobiografia contém em si uma narrativa de formação: relata como um indivíduo

tornou-se quem é, seu desenvolvimento, num processo vital. Estabelece-se no relato a gênese

de uma individualidade e suas relações com a sociedade de modo que se justifique, ao menos

para o autobiógrafo, a relevância do que narra. Formação de si, um caminhar orientado a um

fim, um destino, uma forma realizada de si. Com isto, o horizonte da autobiografia é finalista

ou teleológico. Parte-se do que já se sabe, de feitos já realizados e, alguns, acabados, para o

estabelecimento de suas causas e motivações. A leitura que faz o narrador de sua própria vida

é retrospectiva: "é a partir do fim que se articulam as relações de causa e efeito e que o

movimento da aprendizagem ganha sentido para o leitor, ou seja, encontra, ao mesmo tempo,

sua orientação e sua significação” (DELORY-MOMBERGER, 2009, p. 102). Isto é

observado e analisado na autobiografia de Evita, LRMV, em que ela explica como se tornou

quem era, buscando, em sua narrativa, as origens de sua personalidade e de suas ações

políticas.

O autobiógrafo coloca-se num local estratégico de onde é possível ter uma visão

retrospectiva e total da vida; com isso impõe a ordem do presente sobre o passado. Do que

antes se viveu como acontecimento, agora se observam os resultados, numa relação de causa e

consequência:

Ao sobrepor esta visão presente e consumada de um acontecimento passado, esse

recebe um significado distinto que no momento em que estaba acontecendo não

possuía. O sentido do passado é inteligível e significativo em função de sua

compreensão no presente. Assim ocorre também com todo intento de compreensão

histórica: os fatos históricos são situados de forma que se estabelece entre eles uma

relação retrospectiva da qual careciam no momento em que aconteceram.

(WEINTRAUB, 1991, p. 21, tradução nossa)12

11 No original: “La autobiografía es una segunda lectura de la experiencia, y más verdadera que la primera,

puesto que es toma de conciencia: en la inmediatez de lo vivido, me envuelve generalmente el dinamismo de la

situación y me permite tomar en consideración las complejidades de una situación en el tiempo y el espacio”.

12 No original: “Al sobreponer esta visión presente y consumada de un acontecimiento pasado ése cobra un

significado distinto que en el momento en que estaba teniendo lugar no poseía. El sentido del pasado es

inteligible y significativo en función de su comprensión en el presente. Así ocurre también con todo intento de

42

Os elementos da experiência passada são escolhidos e extraídos do contexto no qual se

situavam anteriormente e são recombinados, porque agora o narrador autobiográfico, como

um historiador de si mesmo, acredita que tenham um sentido que antes podem não ter

possuído. Essa relação se opõe à ordem cronológica. De modo semelhante ao historiador na

escrita da história, o narrador interpreta e orienta a vida na escrita a partir do sentido que

agora atribui ao evento. O que predomina é a visão que tem de si o autobiógrafo no momento

da escrita:

O valor tanto da história como da autobiografía é derivado do fato de que, em sua

interpretação do passado, ambas apresentam como significativas determinadas

partes desse passado. Em ambos casos os diferentes fragmentos que conformam o

incoerente conjunto da realidade da vida foram previamente classificados e,

posteriormente, selecionados alguns deles aos quais se lhes atribuiu um lugar

apropriado num modelo de significados mais completo. (WEINTRAUB, 1991, p.

21, tradução nossa)13

Segundo Pozuelo Yvancos (2006, p. 24), o discurso construído na autobiografia é,

portanto, autentificador, visto que o narrador escreve sua vida como a verdade, pretendendo

que seu relato seja lido como a verdadeira imagem que de si mesmo testemunha. O autor

chama a atenção para o fato de que o contexto determina o quanto o “eu” (o sujeito do relato)

é fingido ou corresponde a uma realidade histórica. O limite entre o romance em primeira

pessoa e o relato autobiográfico é contextual, neste o sujeito de enunciação é uma pessoa real,

histórica, documentável, naquele não é.

Observa-se que o modo de narrar dos gêneros biográficos apresenta a vida como

processo, sendo a autobiografia inseparavelmente unida à concepção do eu. Esse eu é

apresentado como modelo humano. Isto traz à lembrança o gênero hagiográfico, que também

nos interessa nessa pesquisa. O relato da vida de santo também é um gênero presente no

espaço biográfico. Importa considerar que, para ser modelo, o santo deve possuir algumas

características ou conjunto de valores, seguindo um padrão de modos de conduta que a

hagiografia ou autobiografia reescrevem.

Em suas origens, a autobiografia está relacionada à hagiografia e também às

confissões (Confissões de Santo Agostinho), logo à retórica da veracidade (POZUELO

comprensión histórica: a los hechos pasados se les sitúa de forma que se establece entre ellos una relación

retrospectiva de la que carecían en el momento en que tuvieron lugar”.

13 No original: “El valor tanto de la historia como de la autobiografía se deriva del hecho de que, en su

interpretación del pasado, ambas presentan como significativas determinadas partes de ese pasado. En ambos

casos los diferentes fragmentos que conforman el incoherente conjunto de la realidad de la vida han sido

previamente clasificados y, posteriormente, seleccionados algunos de ellos a los que se les ha asignado un lugar

apropiado en un modelo de significados más completo.”

43

YVANCOS, 2006, p. 60), mantendo-se esta presente na autobiografia, enquanto que o relato

das façanhas maravilhosas permanece na hagiografia. No estatuto autobiográfico atual,

permanece o ato de apoiar-se numa verdade, num pacto de sinceridade que estabelece com os

leitores, e seu testemunho pode ser válido a outros indivíduos, como exemplo. Isso não

significa que tudo o que diz é verdade e, sim, que tudo é apresentado como se fosse verdade, e

é esse pacto o que separa a autobiografia das ficções ou narrativas com formas

autobiográficas.

Pozuelo Yvancos destaca a presença de lacunas, não ditos, na autobiografia: “calar é

ocultar algo que se deveria dizer” (2006, p. 44): além dos esquecimentos, há também a opção

pessoal por não falar. Isto pode ser observado mais facilmente na autobiografia de

personalidades públicas, em que há documentação com a qual é possível cotejar o texto, caso

se queira fazer este tipo de inventário, o que não é exatamente o que proponho neste trabalho.

No entanto, não há como ignorar o quanto a autobiografia de uma personalidade pública pode

relacionar-se a instituições, como se deu com a de Eva Perón, distribuída em escolas públicas,

como leitura básica do Partido Peronista.

Isto permite afirmar que a autobiografia se situa num horizonte não-ficcional

(POZUELO YVANCOS, 2006, p. 69). Se pensamos nas margens do gênero, sua aproximação

está na confluência com o não-ficcional. Mais próxima da ficção, ou melhor, inteiramente

presente nela está a autoficção.

O romance SE, além de apresentar a biografia de Eva Perón e a história do sequestro e

desaparecimento de seu cadáver embalsamado, apresenta autoficção. Segundo Alberca (2007,

p. 31), o fundamento das autoficções é a identidade visível ou reconhecível do autor, narrador

e personagem do relato. Na obra mencionada, o narrador, que tem o mesmo nome do autor,

Tomás Eloy Martínez, narra alguns acontecimentos de sua vida relacionando-a à escrita do

romance de modo metaficcional, jogando com a possível confusão entre pessoa e

personagem, como menciona Alberca (2007, p. 32): confundem-se pessoa e personagem, ou

se faz da própria pessoa um personagem, insinuando que esse personagem é e não é o autor,

numa ambiguidade calculada ou espontânea.

Na autoficção, o autor pode criar múltiplas realidades:

O autor de autoficções não se conforma somente com contar a vida que viveu, mas

em imaginar uma das muitas vidas possíveis que lhe poderia haver tocado a sorte de

viver. De modo que o escritor de autoficções não trata apenas de narrar o que foi,

mas também o que poderia ter sido. Isso lhe permite viver, nas margens da escritura,

vidas distintas da sua. (ALBERCA, 2007, p. 33)14

14 No original: “El autor de autoficciones no se conforma sólo con contar la vida que ha vivido, sino en imaginar

una de las muchas vidas posibles que le podría haber tocado en suerte vivir. De manera que el escritor de

44

A autoficção é a mais desconcertante e transgressora das estratégias autobiográficas

dos “romances do eu”, segundo Alberca (2007, p. 130). Não é autobiografia, pois não

estabelece o pacto biográfico de narrar a verdade; nem romance autobiográfico, porque não se

apresenta claramente dissimuladora. Seu campo é o da indeterminação, por vezes, pelas

múltiplas possibilidades de interpretação que apresenta:

A autoficção establece um estatuto narrativo novo, cuja hibridez talvez não dê

resultados sempre interessantes ou significativos, mas se caracteriza por propor algo

diferente do romance autobiográfico. Na medida em que não disfarça a relação com

o autor, como o faz o romance autobiográfico, a autoficção se separa deste e, na

medida em que cobra ou integra a ficção em seu relato, aparta-se radicalmente da

proposta do pacto autobiográfico. Não basta reconhecer ou atestar elementos

biográficos no relato para considerá-lo uma autoficção e para identificar os

personagens romanescos com seu autor, e sim uma calculada estratégia para

autorrepresentar-se de maneira ambígua. (ALBERCA, 2007, p. 130, tradução

nossa)15

A autoficção apresenta-se como história imaginada e estas são contadas para melhor

entender o real, “para vê-lo melhor desde o cruzamento entre o verdadeiro e o fingido, o dado

e o suposto” (ALBERCA, 2007, p. 15, tradução nossa).16 A autoficção apela à suspensão da

tendência à credulidade, recordando ao leitor que pode ser mentira aquilo que é apresentado

como verdade pelos formadores de opinião em nossa sociedade.

Após esta reflexão sobre autobiografia e autoficção, passo a discutir a biografia. Cabe

observar que esta compartilha das características de que o narrador é conhecedor da totalidade

dos eventos narrados e de que segue uma estrutura linear, contínua e organizada, justamente

para melhor apresentar sua teleologia.

Segundo Bakhtin (2003, p. 139), a biografia é a descrição de uma vida. É a narrativa

da vida de alguém, seja figura pública ou não, viva ou já falecida. A narrativa biográfica

resulta da seleção, descrição e análise de uma trajetória individual.

Carlo Ginzburg afirma que, a partir da análise da micro história, é possível

compreender uma determinada época (1996, p. 13). Embora nem sempre a vida de um grande

autoficciones no trata sólo de narrar lo que fue sino también lo que pudo haber sido. Esto le permite vivir, en los

márgenes de la escritura, vidas distintas a la suya”.

15 No original: “La autoficción estabelece un estatuto narrativo nuevo, cuya hibridez puede que no dé resultados

siempre interesantes o significativos, pero se caracteriza por proponer algo diferente a la novela autobiográfica.

En la medida que no disfraza la relación con el autor; como lo hace la novela autobiográfica, la autoficción se

separa de ésta, y en la medida que reclama o integra la ficción en su relato se aparta radicalmente de la propuesta

del pacto autobiográfico. No basta con reconocer o atestiguar elementos biográficos en el relato para

considerarlo una autoficción y para identificar los personajes novelescos con su autor, sino una calculada

estrategia para autorepresentarse de manera ambigua”.

16 No original: “para verlo mejor desde el cruce entre lo verdadero y lo fingido, lo dado y lo supuesto”.

45

vulto da história de um país possa ser considerada micro história, ainda assim a biografia

deste grande personagem histórico pode ser representativa das estruturas de uma sociedade.

Biografias que revelam, ou alegam revelar, segredos íntimos dos biografados atraem o

interesse de muitos leitores. Janet Malcom (1995, p. 16) afirma que “a biografia é o meio pelo

qual os últimos segredos dos mortos famosos lhes são tomados e expostos à vista de todo

mundo” e enfatiza a tolerância do leitor para com as biografias mal escritas, como fruto de

uma espécie de cumplicidade entre ele e o biógrafo (1995, p. 17). Isto parece apontar para

algumas das biografias escritas por jornalistas, que têm alimentado um crescente interesse

pelo gênero. As biografias escritas por historiadores nem sempre caem no gosto do público.

São baseadas em documentos que são mencionados pelo historiador, sem que este

necessariamente se preocupe com uma narratividade que disfarce tal informação.

A biografia escrita por Felipe Pigna, embora elaborada por um historiador, não faz

parte das obras rejeitadas pelo público. Um dos motivos é que trata de uma personagem

histórica muito importante para a história argentina, que divide opiniões: Evita é amada ou

odiada em igual intensidade. Importa destacar que a biografia foi lançada em 2012, ano em

que sua morte completou sessenta anos. Além disso, seu autor é um historiador renomado e

conhecido do público. Tudo isto contribui para que a obra seja lida por milhares de pessoas na

Argentina.

Afirma Giovanni Levi que a biografia está no centro das preocupações dos

historiadores, que a tratam de modo ambíguo:

em certos casos, recorre-se a ela para sublinhar a irredutibilidade dos indivíduos e de

seus comportamentos a sistemas normativos gerais, levando em consideração a

experiência vivida; já em outros, ela é vista como o terreno ideal para provar a

validade de hipóteses científicas concernentes às práticas e ao funcionamento efetivo

das leis e das regras sociais. (LEVI, 2005, p. 167)

Segundo Levi (2005, p. 168), no que se refere às relações entre história e narrativa, a

biografia constitui canal privilegiado através do qual questionamentos e técnicas peculiares à

literatura se transmitem à historiografia. O autor menciona os obstáculos documentais que os

historiadores precisam enfrentar ao escrever o gênero biografia, destacando que alguns são, às

vezes, instransponíveis: chegar aos atos e pensamentos da vida cotidiana do biografado, suas

dúvidas, incertezas; apreender e descrever o caráter fragmentário e dinâmico da identidade;

trabalhar com momentos contraditórios de sua construção (LEVI, 2005, p. 168). Tal

problemática se dá, porque as fontes de que o historiador dispõe não fornecem informações

sobre os processos de tomada de decisões, apenas sobre os resultados destas, ou seja, sobre os

atos (ibdem, p. 173).

46

Quanto à possibilidade de escrever a vida de um indivíduo, Levi cita o termo “ilusão

biográfica” de Bourdieu, a necessidade de reconstruir o contexto, a “superfície social” em que

age o indivíduo, numa pluralidade de campos, a cada instante (2005, p. 169). Penso que aqui

está a abertura para a ficcionalização da história, visto que o historiador biógrafo, ao narrar,

precisa urdir um enredo para apresentar a trajetória percorrida pelo biografado. Tal trajetória

é, no dizer de Bourdieu, uma construção, e o biógrafo precisa evitar cair no absurdo de

compreendê-la “como uma série única e, por si só, suficiente de acontecimentos sucessivos”

(Bourdieu, 2005, p. 189). Segundo Bourdieu, a narrativa de história de vida “pressupõe que a

vida é uma história que é, inseparavelmente, o conjunto dos acontecimentos de uma existência

individual concebida como uma história e o relato desta história” (2005, p. 183).

Tomando como base a informação de que, no Brasil, embora as biografias atraiam o

grande público, grande parte delas não foi escrita por historiadores, Vavy Borges (2005, p.

212) destaca que historiadores parecem não se preocupar com a produção desse gênero e

apresenta como hipótese para isso o fato de que talvez estejam presos à obrigatoriedade de

produzir publicações acadêmicas. Segundo a autora, a maioria dessas biografias parecem não

satisfazer os historiadores porque oscilam entre idealizar de modo simplista a personagem e

por apresentar falsas polêmicas em torno de pessoas famosas, com objetivos de ampliar as

vendas, destacando o anedótico e não o essencial.

Borges classifica as biografias em três tipos: artigo de dicionário biográfico;

monografia de circunstância e a biografia dita “científica” ou “literária”. O primeiro tipo

consiste num breve resumo da vida de uma pessoa pública, por vezes famosa. O segundo, em

elogios fúnebres ou ligados a uma circunstância particular (breves, muitas vezes presentes na

imprensa escrita). Por fim, o último tipo refere-se a obras mais importantes, com preferência

pela narrativa e finalidade histórica que, por conseguinte, trabalham com documentação

numerosa e variada (BORGES, 2005, p. 213).

Sobre o sucesso de vendas de biografias no Brasil nas últimas décadas, aponta Benito

Schmidt (1997, p. 3) que as obras que conquistaram o público e a crítica são de jornalistas,

que apresentam pesquisa minuciosa e estilo envolvente. No entanto, no campo do

conhecimento histórico, a produção, no Brasil e no mundo, é igualmente rica e importante.

Em seu artigo, Schmidt propõe-se a discutir as semelhanças e diferenças entre as biografias

escritas por historiadores e jornalistas. Declara que, embora não pretenda fazer reserva de

mercado da biografia para os historiadores, irá demonstrar as “minúcias que só o historiador

vê”, respondendo ao comentário de Fernando de Morais, jornalista, autor das biografias de

47

Assis Chateaubriand e Olga Benário, que teria declarado que se servia da produção acadêmica

em seu trabalho, mas que havia minúcias que só o jornalista vê (SCHMIDT, 1997, p. 4).

Dentre as razões para a emergência do gênero biográfico entre jornalistas e

historiadores, Schmidt identifica o processo de busca, no passado, de trajetórias individuais

que possam servir como inspiração para condutas no presente, como resposta à perda de

referenciais ideológicos e morais que marcam a sociedade contemporânea. Além disso, inclui

o voyeurismo, mais ou menos velado, que impele à investigação da vida privada dos outros,

para demolir mitos ou satisfazer a curiosidade dos leitores que se identificam com os deslizes

e equívocos das grandes personalidades públicas. Isso ajuda a explicar o gosto por biografias

(SCHMIDT, 1997, p.4).

No que tange aos historiadores, as tendências atuais do conhecimento histórico

exercem influência no redespertar do gênero. Esse retorno da biografia relaciona-se à crise do

paradigma estruturalista que determinava que a história deveria tratar das estruturas e relações

que comandam os mecanismos econômicos, organizam as relações sociais e engendram as

formas do discurso, independentemente das percepções e intenções dos indivíduos. Os

historiadores atuais, em contrapartida, buscaram restaurar o papel do indivíduo na construção

dos laços sociais. Esta mudança implica no recuo da história quantitativa e serial e no avanço

da microhistória, isto sem mencionar as aproximações da história com a antropologia e o

resgate das histórias de vida, bem como com a literatura e suas técnicas narrativas de

construção de personagens (SCHMIDT, 1997, p. 5).

No jornalismo, o crescimento das biografias tem relação com o New Jornalism,

surgido nos anos 1960, tendo como expoentes Truman Capote, Tom Wolfe e Norman Mailer,

e definido como um gênero que aplica as técnicas da ficção a textos de não-ficção. Verifica-se

que tanto na história quanto no jornalismo, está presente a influência da literatura

(SCHMIDT, 1997, p. 5).

Essa influência da literatura marca as semelhanças entre biografias escritas por

jornalistas e por historiadores: a criação dos personagens, com seus conflitos interiores, seus

pensamentos, sentimentos, etc.; a invenção e introdução de licenças poéticas; o hibridismo do

gênero biográfico formado a partir de fontes documentais, bem como interpretação e ficção; e,

finalmente, uso do flasback no tratamento do tempo (SCHMIDT, 1997, p. 7, 8).

Quanto às diferenças, observam-se o tratamento diferenciado de fontes de pesquisa, o

conteúdo ficcional e o tratamento da conjuntura. Segundo Schmidt, a historiografia

permaneceu fiel à tradição da crítica aos documentos questionando a sua produção, prática

48

nem sempre observada nos trabalhos jornalísticos, visto que estes nem sempre colocam em

suspeição as fontes. Quanto ao conteúdo ficcional, este é maior nas biografias elaboradas por

jornalistas, prática verificada no New Jornalism, que se aproximou da literatura trazendo para

o texto jornalístico os diálogos, monólogos interiores, teorizações ensaísticas, o recurso do

fluxo de consciência, e as descrições detalhadas para dar impressão mais completa da

realidade produzida no relato, o que neste trabalho identificamos como “efeito de

historicidade” (SCHMIDT, 1997, p. 10, 11).

Na história, a margem para a invenção é mais limitada: “Afinal, os historiadores, por

dever de ofício, têm um compromisso muito mais cabal com sujeitos históricos concretos, que

existiram na realidade e que chegam até o presente através dos documentos” (SCHMIDT,

1997, p. 13). No caso da historiografia, a invenção é registrada através de modalizadores

discursivos, tais como: “provavelmente”, “talvez”, “é possível afirmar”, etc. De modo

resumido, o historiador explicita o uso que faz da imaginação, ao passo que nem sempre isto é

feito pelo jornalista. Também na história, é maior o interesse pela explicação de questões mais

amplas, da conjuntura, a partir da vida do biografado, ligando o homem ao seu contexto

(SCHMIDT, 1997, p. 14).

Interessa a esta pesquisa investigar os elementos que relacionam história e ficção na

biografia de Evita (EJSV), que pode ser classificada como “científica” ou “literária”, se

tomamos o conceitual de Vavy Borges, bem como o papel do autor historiador como criador

da historicidade. Além disso, efetuar a análise da biografia ficcional SE escrita por um

romancista que também é jornalista e que apresenta em seu texto as influências de sua área de

atuação profissional. Esta biografia ficcional utiliza em seu modo de narrar outro modelo

biográfico: a hagiografia.

O termo hagiografia refere-se ao relato escrito da vida dos santos e é utilizado, desde o

século XVII, para designar tanto o estudo crítico dos diferentes aspectos relacionados ao culto

aos santos quanto os textos cujas temáticas centrais são os santos e seu culto, como vidas,

tratados de milagres, relatos de trasladações, viagens espirituais, martirológios, etc. (SILVA,

2008, p. 7). Segundo Dosse (2015, p. 137), “esse gênero literário privilegia as encarnações

humanas do sagrado e ambiciona torná-las exemplares para o resto da humanidade”.

Os primeiros pesquisadores do gênero hagiográfico foram Jean Bolland e seus

discípulos, chamados de Bollandistas, no século XVII. Preocupavam-se com a crítica das

fontes e em determinar o que entendiam por valor histórico desses documentos, além de

preparar edições de textos hagiográficos (SILVA, 2008, p. 7).

49

No século XX, com a Escola dos Annales e sua busca por novas fontes para o estudo

da história, a hagiografia ganha papel de destaque como documentação importante para o

conhecimento da Idade Média. Nas últimas décadas, o estudo da hagiografia renovou-se, pois

a mesma é considerada como ponto de partida para diversas investigações, que vão muito

além dos fenômenos religiosos ou teológicos, como apontado por Sonia Gajano (2006, p.

449).

A produção hagiográfica destinava-se a fixar a memória histórica dos heróis da nova

fé. Tratava-se, em alguns casos, de testemunhos diretos, às vezes autobiográficos, sobre o

martírio do santo e sobre a veneração que suscitou em determinada comunidade. A

hagiografia é, portanto, um texto literário construído de acordo com padrões narrativos para

tornar conhecido um personagem e difundir seu culto (GAJANO, 2006, p. 455). Seu caráter é

didático e propagandista de um modelo de santidade a seguir, que valorizava “a piedade leiga,

a penitência, a vida comunitária, a pobreza voluntária, a pregação pública, o trabalho

assistencial” (SILVA, 2008, p. 8).

Como gênero literário, a hagiografia “privilegia os atores do sagrado (os santos) e visa

à edificação (uma ‘exemplaridade’)” (CERTEAU, 2000, p. 266), diferindo da história, ao

narrar não o que se passou, mas o que é exemplar. De acordo com Dosse (2015, p. 137), o

regime de verdade da hagiografia é distinto do que se espera do historiador, portanto, a

hagiografia distancia-se do pacto de verdade pressuposto na escrita histórica.

André Jolles (1976, p. 43) destaca a capacidade da língua de representar a existência

de um santo, de maneira análoga, e de constituir santos. Há na hagiografia um caráter criativo,

manifesto através da narratividade, na emergência de formas próprias de cada comunidade

falar e contar suas histórias (SANTOS; DUARTE, 2010, p. 4).

Compostas segundo os modelos retóricos de biografia do mundo antigo, as vidas de

santos apresentam um sentido de biografia que diverge do sentido contemporâneo. Na

biografia antiga, narravam-se os feitos cotidianos dos personagens em forma de exaltação

fantasiosa. O homem antigo esperava encontrar nessas biografias edificação e um repositório

de modelos de condutas.

No mundo contemporâneo, rejeitam-se as biografias fantasiosas. Uma biografia

contemporânea forja-se na possibilidade de apresentar dados verdadeiros, verificáveis da vida

de alguém, algo que possa ser tomado como exemplo, mas que seja uma situação real. Esta

biografia é encerrada pela morte do biografado. A hagiografia não se encerra com a morte,

pois esta não significa o fim da carreira do santo. Os milagres narrados começam após a

50

morte. Desta forma, a hagiografia é um relato da sobrevivência após a morte (JOLLES, 1976,

p. 42).

Segundo Baños Vallejo (1989), o gênero hagiográfico na Idade Média distinguia-se

não pela forma dos textos, mas por seu conteúdo. Para este autor, caracterizaria o texto

hagiográfico a apresentação de três elementos fundamentais: as ações realizadas em vida pelo

santo e que retratam o seu desejo pela santidade, a morte vista como processo de

aperfeiçoamento e, finalmente, os milagres post-mortem, como sinal do êxito e comprovação

da santidade desejada pelo santo.

Michel de Certeau (2000, p. 270) destaca o caráter festivo desses textos. Para o autor,

a hagiografia está situada ao lado do descanso e do lazer, correspondendo à abertura espiritual

e contemplativa. Embora seja exemplar, também diverte, oscilando entre o crível e o incrível,

apresentando novas possibilidades, visto que se localizam na hagiografia o falso, o popular e

o arcaico (ibdem, p. 271).

Segundo Certeau (2000, p. 273), na estrutura discursiva da hagiografia, há construção

da imagem a partir de elementos semânticos; genealogias (para estabelecer a origem nobre do

santo); esquemas escatológicos (que invertem a ordem política para substituí-la pela celeste e

transformam pobres em reis); circularidade (uma ordem reconduz à outra); ambiguidade;

história como epifania (o relato de como uma vocação se manifestou); relato dramático;

alternância entre um tempo de provações (combates solitários) e um tempo de glorificações

(milagres públicos).

De modo diferente da biografia, que apresenta a vida em processo, acompanhando

uma evolução das potencialidades individuais, a hagiografia, segundo Dosse, “postula que

tudo está na origem” (2015, p. 138). Decorre disto a importância da infância. É comum nos

relatos hagiográficos remontar à infância, para apresentar o santo como inteiro, imutável,

ainda que tenha passado por conversão. Há na hagiografia, ainda de acordo com Dosse

(ibdem, p. 139), “o desaparecimento do santo e uma construção singular dos testemunhos de

sua vida, com a ideia de mostrar que a própria lógica de sua existência sempre foi orientada

pela intenção de sacrificar-se pelos semelhantes”. Observa-se a construção da ideia de um

destino orientado e isto é possível porque já se conhece a vida do santo em sua totalidade.

1.3 O imaginário: confluência da história e da ficção

51

A história e a ficção têm em comum a narrativa no aspecto formal, material,

reconhecível textualmente. Já no aspecto imaterial comungam do imaginário. Como

construtor de representações e configurações sociais, o imaginário é objeto da história e da

ficção, sendo também formado por estas. Dito de outra forma, no imaginário confluem as

margens da história e da ficção.

Ao abordar novos interesses da história nos anos 1980, Jacques Le Goff (1994) refletiu

sobre o imaginário para definir seu objeto de estudo, a sociedade medieval. Em sua reflexão,

Le Goff distingue imaginário de outros conceitos aos quais está relacionado, mas que não

totalizam sua compreensão: representação, simbólico e ideologia. Quanto à representação,

esclarece que o vocábulo

engloba todas e quaisquer traduções mentais de uma realidade exterior percebida. A

representação está ligada ao processo de abstração. A representação de uma catedral

é a ideia de catedral. O imaginário pertence ao campo da representação, mas ocupa

nele a parte da tradução não reprodutora, não simplesmente transposta em imagem

do espírito mas criadora, poética no sentido etimológico da palavra. (LE GOFF,

1994, p. 11)

Assim, “o imaginário faz parte de um campo de representação e, como expressão do

pensamento, se manifesta por imagens e discursos que pretendem dar uma definição da

realidade” (PESAVENTO, 1995, p. 15). Por meio do imaginário, uma sociedade pode

construir-se, estabelecer sua identidade, sua cultura, seu poder e os modelos de conduta para

seus membros (ibdem, p. 16).

Segundo Roger Chartier, a representação tanto pode permitir ver algo ausente como

exibir uma presença. Ela é o “instrumento de um conhecimento mediato que faz ver um

objeto ausente através da sua substituição por uma “imagem” capaz de o reconstituir em

memória e de o figurar tal como ele é" (CHARTIER, 1990, p. 20). Além disso, a

representação associa-se à imaginação. Tomar o aparente pelo real é próprio da imaginação

humana (ibdem, p. 21).

De acordo com Le Goff, “os documentos sobre os quais o historiador trabalha podem

todos, sem dúvida, encerrar uma parte de imaginário” (LE GOFF, 1994, p. 13). Isto porque as

fontes exprimem “não só as situações concretas, mas também um imaginário do poder, da

sociedade, do tempo, da justiça, etc.” (ibdem, p. 13).

Le Goff distingue um conjunto de documentos privilegiados para a história do

imaginário: as obras literárias e as artísticas. Segundo o historiador, esses documentos são

produções do imaginário e há necessidade da interdisciplinaridade para sua análise (1994, p.

13). Afirma o autor que

52

quem se interessa pelo imaginário de uma época tem de olhar para o lado das

produções características desse imaginário: a literatura e a arte. E já é tempo de

abolir as barreiras universitárias que se erguem entre a história “pura” (que o mesmo

é dizer mutilada), a história da literatura (e da língua, ou melhor, das línguas) e a

história da arte (e das imagens). (LE GOFF, 1994, p. 21)

Anteriormente, mencionamos neste trabalho a definição de Wolfgang Iser, segundo a

qual, a ficção compõe uma tríade com o real e o imaginário (ISER, 1983, p. 386) e sua

afirmação de que o texto literário ficcional permite a realização do imaginário através dos atos

de fingir, que são três: seleção, combinação e autodesnudamento (ISER, 1999, p. 68). Logo, o

imaginário adquire aparência de real através dos atos de fingir. Desta forma, o mundo é

representado como se fosse real. Portanto, perceber nos textos literários as representações

neles presentes é abrir portas ao estudo do imaginário que constitui a vida social.

O imaginário é um domínio da história, porque “tudo na vida dos homens e das

sociedades está também na história e necessita de um tratamento histórico” (LE GOFF, 1994,

p. 15). A vida do homem está ligada tanto a imagens (iconográficas e mentais) quanto a

realidades palpáveis. O imaginário alimenta o homem e o faz agir, “é um fenômeno coletivo,

social e artístico” (ibdem, p. 16).

Na compreensão do imaginário como “[...] uma forma de entendimento que encara a

realidade não só como “o que aconteceu”, mas também como “o que foi pensado” ou mesmo

“o que se desejou que acontecesse” (PESAVENTO, 1995, p. 17), nela ouvimos o eco

aristotélico da história como o que aconteceu e a poesia como o que poderia ter acontecido.

Que a história tenha percebido que o imaginário é seu campo de estudo e tenha se

voltado não a psiquismos ou meras subjetividades, mas a documentos que são produções

materiais, palpáveis, que permitem ver representações de mundo, enriquece a compreensão

das sociedades, das relações humanas, relações de poder, religiosidade, sentimentos, em

suma, tudo o que envolve a ação humana.

Cabe ressaltar que as imagens que interessam aos historiadores são, segundo Le Goff,

as imagens coletivas (1995, p. 16). Isto porque seu interesse está no conjunto da sociedade,

não apenas na história individual. Com isso, na análise de um texto autobiográfico em que

uma figura de poder narra suas memórias e encadeia os eventos de sua história, é preciso ler

nas entrelinhas a representação que constrói de si mesma e desse poder que exerce, como

veremos mais adiante na análise de LRMV.

O imaginário comporta ainda as instâncias da utopia e da ideologia, visto que a utopia

é a projeção no domínio do imaginário “de uma sociedade radicalmente outra, de um mundo

em tudo melhor que o mundo real”; entretanto “o imaginário social não se resume às ideias,

53

imagens utópicas, mas elas lhe dão um suporte poderoso, como forma específica de ordenação

de sonhos e desejos coletivos” (PESAVENTO, 1995, p. 22).

Quanto à ideologia, esta se presentifica porque no processo de formação do imaginário

coletivo intervêm manifestações e interesses precisos: “Não se pode esquecer que o

imaginário social é uma das forças reguladoras da vida coletiva, normatizando condutas e

pautando perfis adequados ao sistema” (PESAVENTO, 1995, p. 23). Sandra Pesavento

identifica três instâncias de realização do imaginário: “a do suporte na concretude do real, a

da utopia e a ideológica” (PESAVENTO, 1995, p. 23). Segue a historiadora:

O imaginário social se expressa por símbolos, ritos, crenças, discursos e

representações alegóricas figurativas.

O imaginário é, pois, representação, evocação, simulação, sentido e significado, jogo

de espelhos onde o “verdadeiro” e o aparente se mesclam, estranha composição onde

a metade visível evoca qualquer coisa de ausente e difícil de perceber. Persegui-lo

como objeto de estudo é desvendar um segredo, é buscar um significado oculto,

encontrar a chave para desfazer a representação do ser e do parecer.

Não será este o verdadeiro caminho da História? Desvendar um enredo, desmontar

uma intriga, revelar o oculto, buscar a intenção? (PESAVENTO, 1995, p. 24)

Seria possível apontar que a ficção pode ajudar a responder essas questões, embora

não tenham sido a ela direcionadas. Enredo, intriga, oculto, intenção são elementos próprios

da representação ficcional, configurados no imaginário. Desta forma, as margens da história e

da ficção confluem no imaginário.

Ao estudar as representações de Eva Perón na literatura, adentrarei o imaginário

argentino a respeito do peronismo, do mito de Evita, da identidade nacional, sem no entanto

me ater às transformações operadas ao longo do tempo. Isto, por si só, demandaria outro

trabalho de pesquisa. Busco refletir sobre três diferentes gêneros (autobiografia, biografia e

biografia ficcional) e suas diferentes representações.

54

2. REPRESENTAÇÃO AUTOBIOGRÁFICA DE EVA PERÓN

O índice dos capítulos da obra autobiográfica de Eva Perón revela seu objetivo de

narrar a si mesma como alguém incumbido de uma missão, por isso o título La razón de mi

vida. A autobiografia divide-se em três partes: primeira, “Las causas de mi misión”; segunda,

“Los obreros y mi misión”; e, por fim, a terceira e última parte, “Las mujeres e mi misión”.

No prólogo, Eva Perón dedica o texto a seu marido, Juan Domingo Perón, atribuindo-

lhe o mérito de haver dado a ela oportunidade de ser quem é: “yo no era ni soy nada más que

una humilde mujer... un gorrión en una inmensa banda de gorriones… Y él era y es el cóndor

gigante que vuela alto y seguro entre las cumbres y cerca de Dios” (LRMV, p. 10).17 O modo

apaixonado e insistente como se refere a Perón demonstra que não apenas constrói a si mesma

em sua escrita, como elabora o caráter de pai da pátria do presidente.

Evita toma a si a autoria do texto, embora alguns digam que foi escrito por um

jornalista a quem ela teria ditado. Segundo Alicia Poderti (2010, p. 123), alguns estudos,

como o de Juan José Sebrelli, apontam o jornalista espanhol Manuel Panella da Silva como

autor do texto original. A questão da autoria feminina é, por vezes, um problema. Isto porque

muitos não admitiam a capacidade da mulher de ser escritora, de manejar bem a linguagem

para, através dela, dar-se a conhecer, relatando seu íntimo e suas intenções. Tomarei aqui o

testemunho de Evita relativo à autoria de sua obra como verdadeiro, ainda que uma verdade

para a narrativa, isto é, intratextual, pois não há meios de, no momento, empreender uma

caçada pelo possível autor, visto que nem estudiosos chegaram a um consenso.

LRMV foi o livro mais difundido de Eva Perón (PODERTI, 2010, p. 122). Tornou-se

manual de leitura obrigatória das escolas; entretanto, após a destituição de Perón, em 1955,

sua reprodução e difusão foram proibidas.

2.1 Pacto autobiográfico e formação de si na narrativa

O pacto autobiográfico, característica que configura o texto autobiográfico, através do

contrato de leitura que se estabelece entre narrador e leitor, no qual aquele se compromete

com o estatuto da veracidade, isto é, apresenta seu relato como se fosse verdade, está presente

17 Tradução nossa: “eu não era nem sou nada mais que uma humilde mulher... um pardal numa imensa revoada

de pardais... E ele era e é o condor gigante que voa alto e seguro entre os cumes e perto de Deus”.

55

em LRMV desde as primeiras linhas: Eva Perón declara que seu testemunho é humilde e

sincero (p. 10).

Sua motivação para escrever parte do desejo de pensar sobre sua vida e explicar por

que se envolveu com a causa dos trabalhadores (LRMV, p. 13). Propõe-se a responder as

críticas que recebe, embora diga que não pretende refutar a ninguém e que seu desejo é que os

homens e mulheres do povo saibam como se sente e o que pensa, estabelecendo, portanto, seu

público alvo: os mais humildes (LRMV, p. 14). Escreve de modo simples e direto, com

parágrafos curtos, muitos com apenas uma frase, e capítulos pequenos, a maioria com duas ou

três páginas apenas.

Ao longo da edição há fotografias, em preto e branco, todas com legenda explicativa,

apresentando Eva Perón em seu trabalho diário de ajuda social, ou em eventos de gala, sempre

muito bem vestida, ou discursando ao povo. Algumas fotografias apresentam-na junto a Perón

e outras retratam as grandes manifestações populares que reuniam multidões. É possível supor

que as fotografias que compõem a obra, fornecendo detalhes, são procedimentos para criação

do efeito de historicidade, teriam uma função a desempenhar: a comprovação do que foi

relatado. Por exemplo, na fotografia em que Eva Perón saúda de dentro do carro dirigido por

seu motorista, no trajeto de volta para casa após jornada estafante de trabalho. A fotografia foi

tomada de modo a mostrar uma torre ao fundo com um relógio que marca quatro horas e

quarenta minutos; a legenda diz: “Eva Perón abandona su despacho del ministerio de Trabajo

y Previsión, en la madrugada, después de haber cumplido una jornada de más de 18 horas de

agotadora labor.” (LRMV, p. 187).18

Em seu relato, várias vezes Eva Perón reafirma o pacto autobiográfico, tecendo

comentários sobre sua escrita, aproximando o leitor ao apresentar-se em tom íntimo, simplista

e emocionado, por vezes, apelativo. Mostra-se como uma amiga dos trabalhadores, cumprindo

assim seu intento de fazer com que estes conheçam o peronismo e possam, através dela,

chegar a Perón:

Todo eso me parece que se va convirtiendo en una charla demasiado larga.

Con razón a veces el General Perón me dice que hablo mucho.

Pero todas estas cosas las escribo a medida que brotan de mi corazón. Tengo miedo

de olvidarme de algo que pueda hacer comprender a mis lectores cómo es mi misión

en la Nueva Argentina de Perón.

No porque yo tenga necesidad de ser comprendida.

No. Pero me interesa que mis amigos comprendan un poco más a Perón y a su

pueblo… a sus descamisados.

Por eso me esfuerzo en tantas explicaciones.

18 Tradução nossa: “Eva Perón deixa seu escritório no ministério de Trabalho e Previsão, na madrugada, depois

de ter cumprido uma jornada de mais de 18 horas de trabalho esgotador”.

56

Dios quiera que sirvan para algo; y yo seré feliz. (LRMV, p. 185)19

Em outro trecho, ela explica:

Quisiera hablar de todo. Pero esto dejaría de ser lo que yo quise que fuera: una

simple explicación de lo que a mucha gente le parece inexplicable, y se convertiría

en una descripción de cosas que en realidad no se poden conocer bien si no se las ve.

(LRMV, p. 247)20

Ou ainda: … me he propuesto a escribir la verdad. (LRMV, p. 264)21

Além da escrita em primeira pessoa, do nome próprio compartilhado entre autora e

narradora, e das declarações que afirmam o apoio do texto sobre verdades, ou seja, a

apresentação dos fatos como reais, o texto autobiográfico conforma sua organização de modo

a dar sentido a uma totalidade de vida, como afirma Weintraub (1991, p. 19). Dessa forma,

como vimos, o relato contém uma narrativa de formação que conta como um indivíduo

chegou a ser quem é, o processo de seu desenvolvimento vital.

A escrita de Eva Perón tem o claro propósito de construir a si mesma e a Perón, bem

como aos seus opositores, e apresentar o projeto justicialista.22 Ao final de seu relato, afirma

que não escreveu para a história, mas para o presente extraordinário que lhe tocou viver, para

que seu povo e o mundo inteiro sentissem que se aproxima um novo dia para a humanidade: o

dia do Justicialismo (LRMV, p. 317).

Suas origens na infância merecem comentário a parte e estão no próximo subcapítulo

em que abordo a construção que a narradora faz de si vinculando-se ao projeto peronista.23

Apresenta-se a si mesma como indignada com a injustiça (LRMV, p. 19); rebelde

inconformada que, frente à desigualdade, acreditava que um dia tudo mudaria, embora não

19 Tradução nossa: “Tudo isso parece que está se transformando numa conversa muito longa.

Com razão, às veces, o General Perón me diz que falo muito.

Mas todas essas coisas escrevo à medida que brotam de meu coração. Tenho medo de me esquecer de algo que

possa fazer meus leitores compreenderem como é minha missão na Nova Argentina de Perón.

Não porque eu tenha necessidade de ser compreendida.

Não. Mas me interessa que meus amigos compreendam um pouco mais Perón e seu povo... seus descamisados.

Por isso me esforço em tantas explicações.

Deus queira que sirvam para algo; e eu serei mais feliz”.

20 Tradução nossa: “Queria falar de tudo. Mas isto deixaria de ser o que eu quis que fosse: uma simples

explicação do que a muita gente parece inexplicável, e se converteria numa descrição de coisas que na realidade

não podem ser bem conhecidas se não são vistas”.

21 Tradução nossa: “... me propus a escrever a verdade”.

22 Ideologia política na qual se baseou o movimento surgido na Argentina em meados do século XX em torno da

figura de Juan Domingo Perón (militar, político e presidente argentino, 1895-1974).

23 p. 62.

57

soubesse que teria parte em tal transformação (LRMV, p. 23). Isto exemplifica o horizonte

finalista ou teleológico da autobiografia em que o narrador faz leitura retrospectiva de sua

própria vida (DELORY-MOMBERGER, 2009, p. 102).

O divisor de águas em sua vida, o fato que a levou a envolver-se ativamente na vida

política de seu país aconteceu, segundo narra, enquanto Perón esteve preso na ilha Martín

García, em 1945, quando militares queriam que se retirasse dos cargos de secretário de

Trabalho e Previsão, ministro da Guerra e vicepresidente da Nação que ocupava no governo

de Edelmiro Farrell. Eva Perón, ao realizar várias diligências, buscando entre os conhecidos e

amigos de Perón quem pudesse ajudá-lo, sofre agressões quando passa de carro por um grupo

que lhe desfere vários golpes. Essa agressão servirá como um “batismo de dor” (LRMV, p.

43). Evita sentiu-se grata ao povo trabalhador que saiu às ruas para exigir a libertação de

Perón e decidiu fazer algo por eles, ajudá-los em suas necessidades. O clamor popular surtiu

efeito, e Perón foi libertado. Segundo Alicia Poderti (2010, p. 135, tradução nossa): “Esta

detenção marcou um rito na história do peronismo, pois ao ser libertado produziu-se a marcha

do 17 de outubro, na qual o povo o consagrou como líder dos oprimidos”.24

Eva Perón apresenta-se como vocacionada para uma missão: cuidar dos trabalhadores

da Argentina: “No, no creo que fué el azar la causa de todo esto que soy, en mi país y para mi

pueblo. Creo firmemente que he sido forjada para el trabajo que realizo y la vida que llevo”

(LRMV, p. 49).25 Explica: “Yo creo firmemente que, en verdad, existe una fuerza

desconocida que prepara a los hombres y a las mujeres para el cumplimiento de la misión

particular que cada uno debe realizar” (LRMV, p. 50).26

Ao abordar o tema da vocação e do destino, introduz um capítulo (“Sobre mi

elección”, LRMV, p. 54)27 em que cede a narração a Juan Perón, o qual relata, a partir de suas

memórias, sua eleição pelo destino ou pela Providência (divina) para guiar o povo argentino.

Segundo ele, o destino se apresenta, mas a vontade humana é que decide se irá ou não cumprir

o destino. Como vontade humana entende-se em seu breve relato o homem predestinado e o

povo, que precisam, juntos, ajudar o destino:

24 Em português: “Esta detención marcó un hito en la historia del peronismo, pues al ser libertado se produjo la

marcha del 17 de octubre, en la que el pueblo lo consagró como líder de los oprimidos”.

25 Tradução nossa: “Não, não creio que foi a sorte a causa de tudo isto que sou em meu país e para meu povo.

Creio firmemente que fui forjada para o trabalho que realizo e a vida que levo”.

26 Tradução nossa: “Eu creio firmemente que, na verdade, existe uma força desconhecida que prepara os homens

e as mulheres para o cumprimento da missão particular que cada um deve realizar”.

27 Tradução nossa: “Sobre minha eleição”.

58

Yo estoy al frente de mi pueblo no sólo por decreto del destino. Estoy porque, sin

saberlo, tal vez, me preparé para esto como si hubiese sabido que algún día iba a

tocarme esta responsabilidad y este privilegio.

Y puedo afirmar y demostrar también que mi pueblo se preparó paciente, aunque

inconscientemente, también para esta hora de su destino. (LRMV, p. 54)28

Juan Perón aponta as circunstâncias que concorreram para seu destino: ter nascido no

local em que nasceu (Lobo, cidade da província de Buenos Aires); ter escolhido ser militar;

ter sido preparado pela vida, em seu lar; as viagens que fez à Europa; sua participação na

revolução de 1943 e a do povo em sua libertação da prisão, em 1945 (LRMV, 1951, p. 55-57).

Conclui ele:

Mi elección no es evidentemente una cosa del azar. La Providencia hizo su parte,

indudablemente, y de eso siempre doy gracias a Dios.

Pero el pueblo y yo le ayudamos.

La clave del porvenir reside en cuidar precisamente que eso no deje de ocurrir entre

nosotros. (LRMV, p. 58)29

Segue Eva Perón na construção de si através da escrita e aproveita o fim do turno em

que cedeu a palavra a Perón para iniciar um capítulo em que se apresenta como “demasiado

peronista”30 (LRMV, p. 59): “Ahora ya puede compreender quien haya leído el capítulo

precedente que siendo así Perón en su grandeza, que unida a su sencillez lo hacen genial, sea

yo como soy: fervorosa y fanáticamente peronista”.31 Eva Perón constrói-se em oposição a

Perón de modo a se complementarem: ele – inteligência; preparado para a luta; culto; enorme;

a figura; ela – coração; disposta a tudo sem saber nada; sensível; pequena, a sombra (LRMV,

p. 63). Esta ideia irá culminar na alegoria dos pais da pátria, como analiso mais adiante nesta

tese.

Descreve-se Eva Perón como intuitiva. Segundo ela, sua intuição é uma maneira de ser

da inteligência (LRMV, p. 73). Como complementar a Perón em sua obra justicialista, coloca-

se como mediadora entre ele e o povo: “Yo elegí ser ‘Evita’... para que por mi intermedio el

28 Tradução nossa: “Eu estou à frente do meu povo não apenas por decreto do destino. Estou porque, sem sabê-

lo, talvez, me preparei para isto como se tivesse sabido que algum dia iria caber-me esta responsabilidade e este

privilégio.

E posso afirmar e demonstrar que meu povo se preparou paciente, mesmo que inconscientemente, também para

esta hora de seu destino”.

29 Tradução nossa: “Minha eleição não é evidentemente uma coisa do acaso. A Providência fez sua parte,

indubitavelmente, e por isso sempre dou graças a Deus.

Mas o povo e eu o ajudamos.

A chave do porvir reside em cuidar precisamente para que isso não deixe de ocorrer entre nós”.

30 Tradução nossa: “peronista demais”.

31 Tradução nossa: “Agora já pode compreender quem tenha lido o capítulo precedente que sendo assim Perón

em sua grandeza, que unida a sua simplicidade o fazem genial, seja eu como sou: fervorosa e fanaticamente

peronista”.

59

pueblo y sobre todo los trabajadores encontrasen siempre libre el camino de su Líder”

(LRMV, p. 84).32

Como mediadora, não é simplesmente uma primeira dama. De modo bastante

perspicaz, discute sobre sua dupla designação – Eva Perón e Evita – a partir de seu papel

político. Compara a atuação pública ao teatro, remetendo à sua experiência como atriz,

descrevendo-se como uma esposa de presidente “distinta del modelo antiguo” (LRMV, p.

86).33 Diz que este seria um papel simples e agradável que ela poderia representar no teatro ou

no cinema. No entanto, não nasceu para isso, para “esa clase de teatro” (LRMV, p. 87),34

porque não só ela é diferente, mas porque Perón não é um simples presidente: é o condutor do

povo argentino (LRMV, p. 88). Este fato faz com que sua atuação seja distinta e lhe confere

uma dupla personalidade:

A la doble personalidad de Perón debía corresponder una doble personalidad en mí:

una, la de Eva Perón, mujer del Presidente, cuyo trabajo es sencillo y agradable,

trabajo de los días de fiesta, de recibir honores, de funciones de gala; y otra, la de

Evita, mujer del Líder de un pueblo que ha depositado en él toda su fe, toda su

esperanza y todo su amor.

Unos pocos días al año, represento el papel de Eva Perón; y en ese papel creo que

me desempeño cada vez mejor, pues no me parece difícil ni desagradable.

La inmensa mayoría de los días soy en cambio Evita, puente tendido entre las

esperanzas del pueblo y las manos realizadoras de Perón, primera peronista

argentina, y éste sí que me resulta papel difícil, y en el que nunca estoy totalmente

contenta de mí.

De Eva Perón no interesa que hablemos.

Lo que ella hace aparece demasiado profusamente en los diarios y revistas de todas

partes.

En cambio, sí interesa que hablemos de ‘Evita’; y no porque sienta ninguna vanidad

en serlo sino porque quien comprenda a ‘Evita’ tal vez encuentre luego fácilmente

comprensible a sus “descamisados”, el pueblo mismo, […]. (LRMV, p. 88)35

32 Tradução nossa: “Eu escolhi ser ‘Evita’... para que por meu intermédio o povo e sobretudo os trabalhadores

encontrassem sempre livre o caminho de seu Líder”.

33 Tradução nossa: “distinta do modelo antigo”.

34 Tradução nossa: “esse tipo de teatro”.

35 Tradução nossa: “À dupla personalidade de Perón deveria corresponder uma dupla personalidade em mim:

uma, a de Eva Perón, mulher do Presidente, cujo trabalho é simples e agradável, trabalho dos dias de festa, de

receber honrarias, de funções de gala; e outra, a de Evita, mulher do Líder de um povo que depositou nele toda

sua fé, toda sua esperança e todo seu amor.

Uns poucos dias no ano represento o papel de Eva Perón; e esse papel creio que o desempenho cada vez melhor

pois não me parece difícil nem desagradável.

A imensa maioria dos dias, por outro lado, sou Evita, ponte estendida entre as esperanças do povo e as mãos

realizadoras de Perón, primeira peronista argentina, e este sim que me resulta papel difícil, e no qual nunca estou

totalmente contente comigo.

De Eva Perón não interessa que falemos.

O que ela faz aparece muito profusamente nos jornais e revistas de todo lugar.

Entretanto, interessa sim que falemos de ‘Evita’, e não porque sinta alguma vaidade em sê-lo e sim porque quem

compreender ‘Evita’ talvez ache logo facilmente compreensível seus ‘descamisados’, o povo mesmo, [...]”.

60

Afirma que quando escolheu ser Evita, elegeu o caminho do seu povo (LRMV, 1951,

p. 90). Percebe-se que ser Eva Perón era um fato natural, enquanto a outra faceta de sua

personalidade era uma escolha pessoal, entretanto sente-se mais natural sendo Evita, pois não

precisa adotar poses como quando é Eva, além de ter uma experiência possivelmente inédita

(LRMV, p. 93): “... como Eva Perón represento un viejo papel que otras mujeres en todos los

tempos han vivido ya; pero como Evita vivo una realidad que tal vez ninguna mujer haya

vivido en la historia de la humanidad”.36 Prefere ser chamada de Evita (LRMV, p. 91), no

entanto, nem todos podem chamá-la assim, apenas o povo peronista, os humildes

trabalhadores, mulheres e crianças: “Prefiero ser Evita a ser la mujer del Presidente de la

República, si ese “Evita” sirve para algo a los descamisados de mi Patria” (LRMV, p. 157).37

Ser Evita é realizar sua ambição: ser a mediadora entre Perón e o povo (LRMV, p. 95).

Coloca-se, portanto, como sua sombra e apresenta-se como leal aos trabalhadores que nela

confiam, pelos quais se mostra sectária ao colocar-se sempre ao seu lado (LRMV, p. 114, 119,

123).

Dispõe-se a se sacrificar em favor do povo: “... he de seguir luchando hasta dar la vida

si fuese necesario: porque una deuda de cariño como la que yo tengo con el pueblo no se

termina de pagar sino con la vida” (LRMV, p. 189).38 De fato, gastou-se no trabalho diário em

atendimento ao povo ao qual era grata pelo modo como agiu quando Perón estava preso, em

1945, indo às ruas para exigir sua libertação. Trabalhava até a madrugada, como já

mencionado, e diz que não é por propaganda que trabalha de modo desorganizado até dezoito

horas por dia; é porque os pedidos são urgentes: “El que sufre no puede esperar” (LRMV, p.

193).39

Cria a imagem de uma humilde mulher que tudo faz por amor aos descamisados40 do

seu povo e do mundo inteiro (LRMV, p. 240). Além da humildade, destaca o idealismo que

36 Tradução nossa: “... como Eva Perón represento um velho papel que outras mulheres em todos os tempos já

viveram; mas como Evita vivo uma realidade que talvez nenhuma mulher tenha vivido na história da

humanidade”.

37 Tradução nossa: “Prefiro ser Evita a ser a mulher do Presidente da República, se esse ‘Evita’ serve para algo

para os descamisados de minha Pátria.”

38 Tradução nossa: “... hei de seguir lutando até dar minha vida se necessário for: porque uma dívida de carinho

como a que eu tenho com o povo não se termina de pagar a não ser com a vida.”

39 Tradução nossa: “Aquele que sofre não pode esperar”.

40 O termo no singular refere-se a uma pessoa comum, pertencente à classe trabalhadora, que aderia ao partido

peronista (ACADEMIA ARGENTINA DE LETRAS, 2008, p. 302). O termo é derivado do léxico da Revolução

Francesa – sans culotes (sem calções) (PODERTI, 2010, p. 65). Era o modo como os opositores ao peronismo

61

aprendeu com Perón: “Más idealista que yo, infinitamente más que yo, es el mismo Perón”

(LRMV, p. 253).41

Apresenta-se como leitora. Leu com Perón Vidas Paralelas, de Plutarco, tendo ficado

com forte impressão sobre a biografia de Alexandre. Relata que leu muitas biografias célebres

e crê que Perón não se parece com nenhum gênio militar nem político da história (LRMV, p.

254), superando-os.

Importa recordar que, segundo Pozuelo Yvancos (2006, p. 24), a autobiografia contém

um discurso autentificador, através dele o narrador descreve sua vida como a verdade,

pretendendo que seu relato seja lido como a verdadeira imagem de si.

Além de construir a si mesma em seu relato, constrói a imagem de Perón. Chama o dia

em que o conheceu de seu “dia maravilhoso”, dizendo que, a partir dali, começou a viver sua

verdadeira vida (LRMV, p. 31). Descreve o marido como interessado nas questões do povo.

Ele é seu tema, sua inspiração (LRMV, p. 68). Com ele aprendeu tudo o que sabe sobre

atuação política e vida pública (LRMV, p. 69). Atribui a ele seu método de trabalho que

apenas imita (LRMV, p. 107). Apresenta-o como plenipotente, um atributo quase divino

(LRMV, p. 121), e embora ele tudo tenha em mãos, fará apenas o que for a vontade do povo

(LRMV, p. 142). Ele é o Primeiro Trabalhador Argentino (LRMV, p. 143), o condutor que

possui uma alma extraordinária (LRMV, p. 145).

Seus opositores também têm sua imagem construída através de um processo de

designação. Eva Perón chama-os de “homens comuns”: “Los hombres comunes son los

eternos enemigos de toda cosa nueva, de todo progreso, de toda idea extraordinaria y por lo

tanto de toda revolución” (LRMV, p. 36).42 Designa-os também como “almas estreitas”: “que

no conciben como cosas reales, ni la generosidad, ni el amor, ni la fe, ni siquiera la esperanza”

(LRMV, p. 153).43 Outros termos para referir-se aos críticos são: medíocres e eternos

incrédulos (LRMV, p. 251). Identifica o grupo político dos opositores como a oligarquia,

chamando-os de inimigos do povo e atribui a eles comportamento de cães (LRMV, p. 296).

referiam-se aos trabalhadores humildes, mas é ressignificado por Perón e Evita que o utilizam em seus discursos

de modo íntimo e carinhoso.

41 Tradução nossa: “Mais idealista que eu, infinitamente mais que eu, é o próprio Perón”.

42 Tradução nossa: “Os homens comuns são os eternos inimigos de toda coisa nova, de todo progresso, de toda

ideia extraordinária e por tanto de toda revolução”.

43 Tradução nossa: “que não concebem como coisas reais, nem a generosidade, nem o amor, nem a fé, nem

sequer a esperança”.

62

Sem possibilidade de conciliação, rejeita tudo o que vem da oligarquia, porque “¡Nada de la

oligarquia puede ser bueno!” (LRMV, p. 297).44

Os peronistas são designados por oposição aos não peronistas. Se estes são homens

comuns, aqueles são homens extraordinários; possuem a alma larga, pronta a aceitar as

transformações; são superiores, homens de fé; são o povo que confia em seu líder; formam,

segundo Perón, a maior beleza do país (LRMV, p. 168) Dentre os peronistas, estão os

trabalhadores humildes, os descamisados, cujo cuidado Perón recomendou a Evita (LRMV, p.

46).

Considerando que, na autobiografia, o narrador constrói uma imagem de si que

pretende verdadeira, pode-se afirmar que, da mesma forma, em seu discurso, ao elaborar a

construção dos outros seres que designa, tem por objetivo que esta seja tomada como a

realidade destes seres.

2.2 Relato autobiográfico da infância de Eva Perón: construção de si vinculada ao

projeto político peronista

Tendo em mente que as narrativas constituem os sujeitos e que isto se dá,

principalmente, na reelaboração de experiências passadas, como apontado por Arfurch (2013,

p. 76), a imagem de Evita constrói-se em seus relatos autobiográficos. Sua memória opera

como produtora de explicações para seu comportamento adulto, ou como fontes documentais

de sua existência histórica.

No peronismo, Evita cumpria um papel emblemático de luta contra as injustiças

sociais. Ao relatar sua infância, Evita assenta as origens de tal luta em si mesma. Não é difícil

imaginar que tenha sofrido privações quando criança. Entretanto, ao rememorá-las em adulta

e as relacionar a sua vida pública, realiza uma construção de si condizente com o projeto

político peronista. Constrói a imagem de alguém que tenta solucionar os problemas que

enfrentou, porque reconhece que são comuns à grande parcela da sociedade argentina,

aproximando-se, assim, dos pobres, dos trabalhadores humildes, daqueles que eram alvo de

sua ação política, como alguém que “veio de baixo” e que, devido a essa condição, é capaz de

compreendê-los e trabalhar para suprir suas necessidades.

O peso do testemunho pessoal, memorialístico, estabelece um efeito de realidade

(BARTHES, 1972, p.43): é o detalhe, a confissão íntima, o coração aberto revelando-se. Em

44 Tradução nossa: “Nada que vem da oligarquia pode ser bom”.

63

LRMV (1951), Eva Perón apresenta-se de forma clara, facilmente compreensível, visando

atingir grande parcela da sociedade. Como já mencionado, esse livro foi tornado leitura

obrigatória para estudantes, segundo a Lei Nacional 14.126 - Decreto 2915/1952.

No relato das memórias de Eva Perón, estão as origens de sua vocação artística e de

seu ódio pelas injustiças sociais. Afirma que sempre quis declamar, como se fosse dotada de

um pendor natural, e que na escola teve oportunidade de se iniciar na vida artística:

“Recordaba que, siendo una chiquilla, siempre deseaba declamar. Era como si quisiese decir

siempre algo a los demás, algo grande, que yo sentía en lo más hondo de mi corazón.”

(LRMV, p. 22).45 Com tal vocação, era esperado que saísse de sua localidade para a cidade

grande.

Eva configura um imaginário sobre a cidade a partir da visão da criança pobre do

interior. Aos sete anos de idade, visita Buenos Aires pela primeira vez e se desilude ao

verificar a existência da pobreza também lá, pois acreditava que, na cidade, só havia riqueza.

Compara a tristeza que sentiu ao constatar ali a pobreza com a que sentiu ao perder a ilusão

infantil sobre os Reis Magos:

Un día – habría cumplido ya los siete años – visité la ciudad por vez primera.

Llegando a ella descubrí que no era cuanto yo había imaginado. De entrada vi sus

barrios de “miseria”, y por sus calles y sus casas supe que en la ciudad también

había pobres y que había ricos. (LRMV, p. 24)46

Em seu relato, Eva Perón estabelece a relação entre passado e presente, o que

comprova o afirmado neste trabalho sobre a construção de suas origens:

Aquella comprobación debió dolerme hondamente porque cada vez que de regreso

de mis viajes al interior del país llego a la ciudad me acuerdo de aquel primer

encuentro con su grandeza y su miseria; y vuelvo a experimentar la sensación de

íntima tristeza que tuve entonces. (LRMV, p. 25)47

Observa-se que a memória é construída a partir do presente. Em LRMV, Evita narra

sua infância tendo em mente quem é e o papel que desempenha, como se vê nos seguintes

fragmentos:

45 Tradução nossa: “Recordava que, sendo menina, sempre desejava declamar. Era como se quisesse dizer

sempre algo aos demais, algo grande, que eu sentia no mais fundo do meu coração”.

46 Tradução nossa: “Um dia – tinha completado já os sete anos – visitei a cidade pela primeira vez. Chegando a

ela descobri que não era como eu tinha imaginado. De cara vi seus bairros miseráveis, e por suas ruas e suas

casas soube que na cidade também havia pobres e que havia ricos”.

47 Tradução nossa: “Aquela comprovação deve ter me doído profundamente porque cada vez que volto de

minhas viagens ao interior do país chego à cidade e me lembro daquele primeiro encontro com sua grandeza e

sua miséria; e volto a experimentar a sensação de íntima tristeza que tive então”.

64

He tenido que remontarme hacia atrás en el curso de mi vida para hallar la primera

razón de todo lo que ahora me está ocurriendo. (LRMV, p. 15)48

... tuve que ir a buscar, en mis primeros años, los primeros sentimientos que hacen

razonable, o por lo menos explicable… (LRMV, p. 16)49

He hallado en mi corazón un sentimiento fundamental que domina desde allí, en

forma total, mi espíritu y mi vida: ese sentimiento es mi indignación frente a la

injusticia. (LRMV, p. 16, grifo da autora)50

Ao mencionar sua vocação artística desde a infância, também a recupera a partir do

presente e a relaciona aos discursos que proferia às multidões: “¡Cuando ahora hablo a los

hombres y mujeres de mi pueblo siento que estoy expresando ‘aquello’ que intentaba decir

cuando declamaba en las fiestas de mi escuela!” (LRMV, p. 22).51 Sua experiência passada

contribuiu para seu bom desempenho ao dirigir-se às massas.

Para justificar o tratamento dispensado às crianças no peronismo, que as considerava

“as únicas privilegiadas” (LRMV, p. 205), Evita narra o modo como experimentou a pobreza

na infância, a carência e a percepção da divisão social e da má distribuição de renda. Afirma

que desde que se pode recordar sempre sentiu doer a injustiça e explica como isto a afetou:

“De cada edad guardo el recuerdo de alguna injusticia que me sublevó desgarrándome

intimamente.” (LRMV, p. 16).52

Relata que adquiriu na infância consciência da diferença de classes, da desigualdade

social e que sempre pensava nisso. De modo engenhoso, escapa da possibilidade de ser

desmentida ao afirmar que era frequente pensar nesse assunto, embora acredite que nunca o

havia comentado com outras pessoas, nem sequer sua mãe (LRMV, p. 17).

Preocupando-se em expressar algo com exatidão temporal, o que aumenta o efeito de

historicidade, ou seja, leva o leitor a receber o fato como se efetivamente houvesse

acontecido, sendo portanto real tal informação, menciona idade exata ao afirmar que, aos onze

anos de idade, aprendeu que a existência de pobres deve-se à existência de ricos (em que pese

48 Tradução nossa: “Tive que me reportar até atrás no curso da minha vida para encontrar a primeira razão de

tudo o que agora está me ocorrendo”.

49 Tradução nossa: “... tive que buscar, em meus primeiros anos, os primeiros sentimentos que fazem razoável ou

pelo menos explicável...”

50 Tradução nossa: “Achei em meu coração um sentimento fundamental que domina desde ali, em forma total,

meu espírito e minha vida: esse sentimento é minha indignação diante da injustiça”.

51 Tradução nossa: “Quando agora falo aos homens e mulheres de meu povo, sinto que estou expressando

‘aquilo’ que tentava dizer quando declamava nas festas de minha escola.”

52 Tradução nossa: “De cada idade guardo a recordação de alguma injustiça que me revoltou destroçando-me

intimamente”.

65

todo o simplismo e reducionismo que se possa apontar), quando ouviu tal afirmação da boca

de um adulto. Manifesta sua inclinação em acreditar mais na sinceridade, franqueza e bondade

dos pobres que na dos ricos (LRMV, p. 18), mas não aprofunda a questão.

Desnaturaliza a pobreza e a riqueza, apontando-se como diferente de grande parte da

população que geralmente as consideravam naturais, conformando-se. Ela seria, portanto,

desde a infância, uma indignada:

Ahora pienso que la gente se acostumbra a la injusticia social en los primeros años

de la vida. Hasta los pobres creen que la miseria que padecen es natural y lógica. Se

acostumbran a verla o a sufrirla como es posible acostumbrarse a un veneno

poderoso.

Yo no pude acostumbrarme al veneno y nunca, desde los once años, me pareció

natural y lógica la injusticia social. (LRMV, p. 19)53

É possível afirmar que um dos objetivos do peronismo, ao tornar LRMV leitura

obrigatória pelos estudantes, era a formação política do cidadão, forjando uma consciência de

classe trabalhadora, embora muito relacionada ao personalismo de Perón.

Eva Perón segue na afirmação de sua natureza indignada: “[...] ha nacido conmigo,

una particular disposición del espíritu que me hace sentir la injusticia de manera especial, con

una rara y dolorosa intensidad” (LRMV, p. 20)54 e assegura que essa característica de sua

personalidade é força motriz para suas ações. No entanto, revela-se surpresa ao mencionar que

nunca havia pensado que teria participação direta na luta por justiça social (LRMV, p. 21).

A ideia de um destino a cumprir permeia toda a autobiografia, mas há um capítulo

especialmente dedicado a esse tema, o capítulo X, “Vocación y Destino”.55 Já no parágrafo

inicial temos a afirmação de sua vocação, manifestando caráter personalista: “No, no fue el

azar la causa de todo esto que soy, en mi país y para mi Pueblo. Creo firmemente que he sido

forjada para el trabajo que realizo y la vida que llevo” (LRMV, p. 49).56

A afirmação de seu próprio destino manifesto explica porque se interessou por

políticas como a para a infância, por exemplo, que consistia em mobilizar crianças e

adolescentes, através de sucessivos eventos com grande visibilidade pública, nos quais havia

53 Tradução nossa: “Agora penso que as pessoas se acostumam à injustiça social nos primeiros anos da vida. Até

os pobres creem que a miséria que padecem é natural e lógica. Acostumam-se a vê-la ou a sofrê-la como é

possível acostumar-se a um veneno poderoso.

Eu não pude acostumar-me ao veneno e nunca, desde os onze anos, me pareceu natural e lógica a injustiça

social”.

54 Tradução nossa: “[...] nasceu comigo uma particular disposição do espírito que me faz sentir a injustiça de

maneira especial, com uma estranha e dolorosa intensidade”.

55 Tradução nossa: “Vocação e Destino”.

56 Tradução nossa: “Não, não foi o acaso a causa de tudo isto que sou, em minha vida e para meu povo. Creio

firmemente que fui forjada para o trabalho que realizo e a vida que levo”.

66

distribuição de brinquedos, bolsas de estudos, etc.; e de diversos dispositivos institucionais

que objetivavam reparar e recompor as desigualdades sociais que teriam afetado diversas

gerações para, assim, chegar a construir outro tipo de reprodução social e política

(PANELLA, 2011, p. 65). O objetivo era a formação integral do cidadão desde a infância.

Ganhando-se a criança, ganhavam-se as futuras gerações.

Dentre as várias atividades concernentes à política da infância, criaram-se locais como

a República das Crianças e o Mundo da Infância, projetos que tinham em comum o fato de

serem instituições educativas mais que lugares de diversão.

Colocou-se em prática uma pedagogia baseada no jogo como via de aprendizagem

(PANELLA, 2011, p. 77). Tudo voltado, exclusivamente, para atender às crianças pobres.

Segundo Bustelo (2007, p. 23), a família, a escola e os meios de comunicação são as

três instituições que deixam marcas no desenvolvimento da infância e da adolescência. O

peronismo percebeu isto e atuou com políticas públicas de acolhimento e formação infantil.

Quando a Fundação Eva Perón, criada em 1948, fazia doação a uma determinada

família, o impacto era sentido por todos os seus integrantes: colchões, máquinas de costura,

casas, etc., geravam gratidão e, em muitos, paixão por Evita.

Distribuir brinquedos, fazer com que as crianças brincassem, revela um aspecto de

vanguarda no tratamento da infância pelo peronismo, além da compreensão de que, ao jogar,

repetidas vezes, a criança encena a vida em sociedade, estabelecendo padrões possíveis de

comportamentos e hábitos futuros, como observou Benjamin (2002): “Pois é o jogo, e nada

mais, que dá luz a todo hábito”.

Com o ideal declarado de substituir a ideia de beneficência pela de “justiça social”, a

Fundação Eva Perón dedicou-se a dar assistência econômica e social aos mais pobres, às mães

solteiras e aos idosos, e configurou um novo ator social: a criança. As crianças passam a ser

“um verdadeiro exército reserva do peronismo, munidos de brinquedos que se converteriam

em silenciosos estímulos do projeto político nacional” (PASCUTTI, 2008, p. 22, tradução

nossa).57

A quantidade de brinquedos distribuídos foi inédita:

Até 1954, foram distribuídos em cada período de festas natalinas entre dois e três

milhões de brinquedos, segundo os registros da revista Juguetes, editada nessa

década pela pujante Câmara Argentina da Indústria do Brinquedo. “Uma cifra

enorme se se tem em conta que a população infantil era de quatro milhões e meio de

crianças”, aponta a licenciada em Ciencias da Educação Daniela Pelegrinelli, quem

57 No original: “un verdadero ejército reserva del peronismo, munidos de juguetes que se convertirían en callados

resortes del proyecto político nacional”.

67

investigou o laço que ligou nesses anos o Estado com a infância. (PASCUTTI, 2008,

p. 22, tradução nossa)58

Criou-se a ideia de que os brinquedos eram necessários ao bem-estar infantil e que era

um direito das crianças possuí-los. A questão infantil foi assim politizada. As crianças

tornam-se objeto de políticas públicas. Distribuir brinquedos era considerado obrigação do

Estado (PASCUTTI, 2088, p. 22).

Segundo Daniela Pelegrinelli, antes do peronismo, a maioria dos brinquedos na

Argentina eram importados. As crianças, praticamente, não possuíam brinquedos, porque

esses não eram considerados necessários, nem havia meios de comercializá-los. Para mudar

isso, são conjugados vários elementos: substituição das importações; incremento de fábricas

de brinquedos nacionais, e a divulgação de teorias pedagógicas e psicológicas que apontavam

a importância dos brinquedos. Como passam ao cotidiano, os brinquedos tornam-se desejados

e

foi sobre uma nova expectativa que se ancoraram as políticas de distribuição

massiva propicidadas pelo governo peronista, e também o que tornou tão reparadora

essa distribuição. A indústria do brinquedo consolidou-se graças a essa fonte de

recursos que se renovava a cada ano, e as crianças estabeleceram através do

brinquedo recebido um vínculo direto com o Estado. (PELEGRINELLI apud

PASCUTTI, 2008, p. 28, tradução nossa)59

As crianças são tomadas como sujeitos políticos e o brinquedo passa a ser um símbolo

da relação inédita entre Estado e infância. Conclui Pelegrinelli que, atualmente, as crianças

não são sujeitos de políticas públicas e sim de um mercado para o qual são apenas fontes de

recursos.

É interessante observar que embora em várias memórias autobiográficas da infância

grande importância seja dada ao espaço, como observou Pozuelo Yvancos (2006, p. 112), que

o chamou veículo configurador da memória autobiográfica infantil, no caso aqui analisado, o

que faz essa configuração da memória de Eva Perón parece ser a reafirmação constante de sua

vocação, seu destino manifesto, sua aptidão adquirida ou aprimorada pelo que sofreu na

infância e ao longo da vida, as características marcantes que manifestou em sua participação

58 No original: “Hasta 1954, se repartieron en cada período de fiestas navideñas entre dos y tres millones de

juguetes, según los registros de la revista Juguetes, editada en esa década por la pujante Cámara Argentina de la

Industria del Juguete. “Una cifra enorme si se tiene en cuenta que la población infantil era de cuatro millones y

medio de niños”, acota la licenciada en Ciencias de la Educación Daniela Pelegrinelli, quien investigó el lazo

que ligó en esos años al Estado con la infancia. (PASCUTTI, 2008, p. 22)

59 No original: “fue sobre una nueva expectativa que se anclaron las políticas de reparto masivo propiciadas por

el gobierno peronista, y también lo que tornó tan reparador ese reparto. La industria juguetelera se consolidó

gracias a esa fuente de recursos que se renovaba cada año, y los niños establecieron a través del juguete recibido

un vínculo directo con el Estado”.

68

política que, nela, teriam surgido ainda na infância. É a tentativa de assentar origens, de

explicar seu papel de destaque político.

Reafirma-se, neste trabalho, o relato memorialístico autobiográfico de Evita

relacionado ao seu envolvimento na vida pública argentina, o modo como sua narrativa

constrói sua imagem de “Benfeitora da Nação” e “Porta Voz dos Humildes”, assentando em

sua infância as bases de sua indignação contra as injustiças sociais tendo sido seu caráter

forjado por aquilo que sofreu.

2.3 Lar e família: alegorias da nação

Ao realizar a formação de si, de Perón e do povo peronista em seu texto

autobiográfico, Eva Perón elabora alegorias com as quais descreve a nação argentina: lar e

família. Resumidamente, a pátria deve ser administrada como um lar que abriga a família

formada pelo pai, Perón, a mãe, Evita, e os filhos, o povo.

Relata Eva Perón que, para levar adiante seu projeto de governo, era necessário a

Perón o apoio popular. No contato com o povo, percebeu que havia um trabalho modesto, mas

que precisava ser feito: o atendimento das necessidades urgentes dos trabalhadores. Ao

abordar esse assunto, introduz a ideia da família:

Entre las esperanzas de los descamisados había muchas pequeñas ilusiones que

depositaban en Perón como los hijos piden a sus padres.

En todas las familias los pedidos y las exigencias varían mucho: los mayores quieren

cosas de importancia, los menores piden juguetes. En la familia grande que es la

Patria también los pedidos que se presentan al Presidente, que es el padre común,

son infinitos. (LRMV, p. 83)60

Se a pátria é o lar, Perón é o pai e Evita, a mãe. O pai é “símbolo da geração, da posse,

da dominação, do valor... Ele é uma representação de toda forma de autoridade: chefe, patrão,

professor, protetor, deus” (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2012, p. 678). Já a mãe, como

matriz de vida, simboliza “a segurança do abrigo, do calor, da ternura e da alimentação”

(ibdem, p. 580).

O lar, formador do povo, é cuidado pela mãe e nele serão formados os homens e

mulheres excepcionais dos quais a nova idade justicialista necessita (LRMV, p. 309). Eva

60 Tradução nossa: “Entre as esperanças dos descamisados havia muitas pequenas ilusões que depositavam em

Perón como os filhos pedem a seus pais.

Em todas as famílias os pedidos e as exigências variam muito: os mais velhos querem coisas importantes, os

mais novos pedem brinquedos. Na família grande que é a Pátria também os pedidos que se apresentam ao

Presidente, que é o pai comum, são infinitos”.

69

Perón declara: “¡Es que me siento verdadeiramente madre de mi pueblo!” (LRMV, p. 314).61

E, como mãe, apresentou-se para trabalhar junto ao povo, atendendo aos “pequeños pedidos”

(LRMV, 83)62 e, assim, tornou-se “Evita”, para ser a mediadora entre Perón e o povo, numa

relação que não terminará em divórcio:

Yo elegí ser “Evita”... para que por mi intermedio el pueblo y sobre todo los

trabajadores, encontrasen siempre libre el camino de su Líder.

La solución no pudo ser mejor ni más práctica.

Los problemas de gobierno llegan a Perón todos los días a través de sus ministros,

de los funcionarios o de los mismos interesados; pero cada uno de ellos no puede

disponer sino de escasos minutos de la jornada agotadora de un Presidente como

Perón.

En cambio los problemas del pueblo llegan al conductor todos los días, durante el

almuerzo o la cena, en las tardes apacibles de los sábados, en los domingos largos y

tranquilos y llegan por mi voz leal y franca en circunstancias propicias, cuando el

ánimo del General está libre de toda inquietud apremiante.

Así el pueblo puede estar seguro de que entre él y su gobierno no habrá divorcio

posible. Porque, en este caso argentino, para divorciarse de su pueblo, el Jefe de

Gobierno deberá empezar por divorciarse ¡de su propia mujer! (LRMV, p. 85)63

A narradora manifesta consciência de que seu papel de mediadora entre Perón e o

povo constitui o motivo pelo qual é rechaçada pela oligarquia (LRMV, p. 98). Relata que sua

obra “nació de un entendimiento mutuo e simultaneo entre mi corazón, el de Perón y el alma

grande de nuestro pueblo” (LRMV, p. 157).64

A situação do lar, ou seja, da Argentina antes de Perón é descrita como complicada

para os trabalhadores pobres. Havia poucos ricos e muitos pobres. O produto da lavoura,

como o trigo, era destinado aos privilegiados do exterior e não ao povo argentino (LRMV, p.

158). Assim sendo, no primeiro centenário, nas palavras de Eva Perón, o país apresenta

semeadura de pobreza e de miséria nos campos e nas cidades. A narradora diz que no

61 Tradução nossa: “É que me sinto verdadeiramente mãe de meu povo.”

62 Tradução nossa: “pequenos pedidos”.

63 Tradução nossa: “Eu escolhi ser ‘Evita’... para que por meu intermédio o povo e sobretudo os trabalhadores

encontrassem sempre livre o caminho de seu Líder.

A solução não pode ser melhor nem mais prática.

Os problemas de governo chegam a Perón todos os dias através de seus ministros, dos funcionários ou dos

próprios interessados; mas cada um deles não pode dispor senão de escassos minutos da jornada esgotadora de

um Presidente como Perón.

No entanto os problemas do povo chegam ao condutor todos os dias, durante o almoço ou o jantar, nas tardes

aprazíveis dos sábados, nos domingos compridos e tranquilos e chegam por minha voz leal e franca em

circunstâncias propícias, quando o ânimo do General está livre de toda inquietude premente.

Assim o povo pode estar certo de que entre ele e seu governo não haverá divórcio possível. Porque, neste caso

argentino, para se divorciar de seu povo, o Chefe de Governo deverá começar por se divorciar de sua própria

mulher!”

64 Tradução nossa: “nasceu de um entendimento mútuo e simultâneo entre meu coração, o de Perón e a alma

grande de nosso povo”.

70

momento em escreve (final de 1950), o quadro ainda não mudou totalmente, mas restava

pouco dele (LRMV, p. 159).

O justicialismo é apresentado na narrativa autobiográfica como solução para os

problemas da Argentina e, por extensão, de todos os países do mundo: “Cuando el mundo sea

justicialista reinará el amor... y reinará la paz” (LRMV, p. 251).65 Eva Perón tece críticas ao

socialismo e ao comunismo, sobretudo porque estes se fundamentam em ideias que lhe

parecem alheias ao povo argentino. Segundo ela, deveria haver uma solução caseira, isto é,

procedente dos próprios argentinos (LRMV, p. 27). Paradoxalmente, considera que o

justicialismo seria uma solução para o mundo inteiro, ou seja, rejeita a importação de ideias

políticas para o seu país, mas deseja exportar aos demais a doutrina política que professa.

Além da importação de ideias alheias, Eva Perón critica os dirigentes trabalhistas

socialistas, chamando-os de falsos dirigentes, trabalhadores aliados à oligarquia, opondo a

eles os de boa fé e verdadeiro espírito sindical (LRMV, p. 110).

Em sua proposição acerca do justicialismo, aproxima-o do cristianismo, afirmando que

assim como aos humildes e aos pobres foi anunciado o nascimento de Cristo, Perón se dedica

a lutar pela felicidade dos descamisados (LRMV, p. 217), sendo um imitador de Cristo

(LRMV, p. 255), e ela mesma, como Cristo, quer sacrificar-se em favor deles: “Si alguna vez

lo molesto a Dios con algún pedido mío es para eso: para que me ayude a dar la vida por mis

descamisados” (LRMV, p. 219).66

Através de suas obras de justiça social (lares para mães desempregadas, para crianças,

para idosos, etc.), pretende fazer ver “que era verdad luminosa el cristianismo humanista de la

doctrina de Perón” (LRMV, p. 227). Defende que as estruturas físicas sejam luxuosas, assim

como se arruma impecavelmente para receber os trabalhadores, porque considera que eles

merecem ser bem tratados e que poderia ela mesma vir a precisar usar o lar de idosos

futuramente (LRMV, p. 228).

De modo ufanista e milenarista, considera o justicialismo uma pré-condição para o

pleno estabelecimento do cristianismo:

Nadie más que Perón le muestra a la humanidad un nuevo camino, dándole una

nueva esperanza. La humanidad cree que todo le ha salido mal y que ya no hay

ninguna solución para sus males. Incluso cree que el mismo cristianismo ha

fracasado… Y Perón le dice francamente:

― No. Lo que ha fracasado no es el cristianismo. Son los hombres los que han

fallado aplicándole mal. El Cristianismo no ha sido todavía bien probado por los

65 Tradução nossa: “Quando o mundo for justicialista reinará o amor... e reinará a paz”.

66 Tradução nossa: “Se vez por outra incomodo a Deus com algum pedido meu é para isso: para que me ajude a

dar a vida por meus descamisados”.

71

hombres porque nunca el mundo fue justo… El Cristianismo será verdad cuando

reine el amor entre los hombres y entre los pueblos; pero el amor llegará solamente

cuando los hombres y los pueblos sean justicialistas. (LRMV, p. 257, 258)67

Para Eva Perón, a Argentina tem o futuro por vir, enquanto a Europa olha para o

passado (LRMV, p. 236). Por isso, manifesta desejo de sair pelo mundo pregando o

justicialismo (LRMV, p. 251). Como missionária, sente-se impelida por um ordenamento e

apregoa o fim dos privilégios oligarcas utilizando a expressão “neste século”, como se, de

fato, o governo de Perón fosse o governo de felicidade esperado no porvir do milênio cristão:

“Creo, como que hay sol, que la “vida social”, así como la sociedad aristocrática y burguesa

que la vive son dos cosas que se van... ¡Este siglo acabará con ellas!” (LRMV, p. 303).68

Relaciona intimamente sua vocação e missão a seu papel social como mulher.

Estabelece um modelo de mulher e tece críticas às oligarcas e às feministas. Segundo ela, as

mulheres da oligarquia são preocupadas apenas com vida social, salões e festas, e a obra

social que elas desenvolvem, chamada de beneficência, nada mais é que ostentação da

riqueza. Apresenta suas obras como de decadentes sociedades de damas de beneficência, as

quais as desenvolveram apenas para se reconciliarem com suas consciências (LRMV, p. 221).

Essas mulheres possuem vida vazia e fácil, são pertencentes a outra raça de mulheres (LRMV,

p. 303), cuja vida social não tem objetivos: “Llena de apariencias, de pequeñeces, de

mediocridades y de mentiras, todo consiste en representar un papel tonto y ridículo” (LRMV,

p. 304).69 Para Eva Perón, essa representação é diferente da teatral, pois no teatro representa-

se o que existiu ou pode existir; na vida social, as mulheres nada representam (LRMV, p.

304).

Opõe a essas mulheres as do povo, designadas como autênticas e cuidadoras do lar.

Segundo Eva Perón, a mulher autêntica refugia-se silenciosa nos lares do povo e cria o povo.

Essa mulher não foi aclamada por intelectuais ou poetas nos salões sociais (LRMV, p. 307). A

importância do lar está na formação dos novos homens e mulheres: “No será tanto en las

67 Tradução nossa: “Ninguém mais que Perón mostra à humanidade um novo caminho, dando-lhe uma nova

esperança. A humanidade crê que tudo saiu muito mal e que já não há nenhuma solução para seus males.

Inclusive crê que o próprio cristianismo fracassou... E Perón lhe diz francamente:

― Não. O que fracassou não foi o cristianismo. Foram os homens os que falharam aplicando-o mal. O

Cristianismo não foi ainda bem provado pelos homens porque o mundo nunca foi justo... O Cristianismo será

verdade quando reinar o amor entre os homens e entre os povos, mas o amor chegará somente quando os homens

e os povos forem justicialistas”.

68 Tradução nossa: “Creio, como que existe sol, que a ‘vida social’, assim como a sociedade aristocrática e

burguesa que a vive são duas coisas que se vão... Este século acabará com elas”.

69 Tradução nossa: “Cheia de aparências, de minúcias, de mediocridades e de mentiras, tudo consiste em

representar um papel tolo e ridículo”.

72

escuelas sino en los hogares donde se ha de formar la nueva humanidade que quiere el

Justicialismo de Perón” (LRMV, p. 308).70

Sente-se a humilde representante de todas as mulheres do povo. Como elas, está à

frente de um lar – a pátria:

El gran hogar venturoso de esa Patria mía que conduce Perón hacia sus más altos

destinos.

¡Gracias a él, el “hogar” que al principio, fue pobre y desmantelado, es ahora justo

libre y soberano!

¡Todo lo hizo él!

Sus manos maravillosas convirtieron cada esperanza de nuestro pueblo en un millar

de realidades.

Ahora vivimos felices, con esa felicidad de los hogares, salpicada de trabajos y aun

de amarguras… que son algo así como el marco de la felicidad.

En este gran hogar de la Patria yo soy lo que una mujer en cualquiera de los infinitos

hogares de mi pueblo. (LRMV, p. 311)71

Na valorização do lar como alegoria da pátria, Eva Perón faz críticas às mulheres que

não se dedicam a ele, sobretudo as feministas, sobre as quais apresenta vários lugares comuns.

Seriam elas: mulheres ressentidas com a mulher e o homem, solteiras entradas em anos e feias

(LRMV, p. 265). Declara que não queria ser como elas (LRMV, p. 266):

Sentía que el movimiento femenista en mi país y en todo el mundo tenía que cumplir

una misión sublime… y todo cuanto yo conocía del feminismo me parecía ridículo.

Es que, no conducido por mujeres sino por “eso” que aspirando a ser hombre, dejada

de ser mujer ¡y no era nada!, el feminismo había dado el paso que va de lo sublime a

lo ridículo.72

No entanto, funda o movimento feminista peronista, sendo sua primeira ação a luta

pelos direitos políticos da mulher: dar à mulher o direito de votar (LRMV, p. 269). Para Eva

Perón, o principal era votar para conquistar direitos, o grande direito de ser simplesmente

mulheres e poder cumprir sua missão na humanidade; em sua narrativa, revela que se

interessa mais pela mulher que pelos seus direitos políticos (LRMV, p. 271). Eva Perón

afirma que se a mulher trabalha substituindo o homem, não é feminismo, é masculinização do

70 Tradução nossa: “Não será tanto as escolas senão nos lares onde se formará a nova humanidade que quer o

Justicialismo de Perón.”

71 Tradução nossa: “O grande lar venturoso dessa Pátria minha que conduz Perón até seus mais altos destinos.

Graças a ele, o ‘lar’ que, ao princípio, foi pobre e desmantelado, é agora mesmo livre e soberano!

Tudo ele fez!

Suas mãos maravilhosas converteram cada esperança de nosso povo num milhar de realidades.

Agora vivemos felizes, com essa felicidade dos lares, salpicada de trabalhos e ainda de amarguras... que são algo

assim como o marco da felicidade.

Neste grande lar da Pátria eu sou o que é uma mulher em qualquer dos infinitos lares de meu povo”.

72 Tradução nossa: “Sentia que o movimento feminista em meu país e em todo o mundo tinha que cumprir uma

missão sublime... e tudo quanto eu conhecia do feminismo me parecia ridículo. É que, não conduzido por

mulheres senão por ‘isso’ que aspirando a ser homem, deixava de ser mulher (e não era nada!), o feminismo

havia dado o passo que vai do sublime ao ridículo”.

73

sexo feminino, visto que a missão da mulher é formar um lar (LRMV, p. 273). Segundo ela, o

primeiro objetivo de um movimento feminino deve ser o lar: “Nacimos para construir

hogares” (LRMV, p. 276),73 no entanto reconhece a falta de direitos das donas de casa e

defende que haja uma remuneração para que essas mulheres sejam economicamente

independentes. Para isso também seria necessário elevar a cultura das mulheres para que ela

não caísse na delinquência ou na prostituição, que são frutos da escravidão econômica da

mulher (LRMV, p. 281). Seu propósito é dar ao lar um prestígio que este nunca conheceu,

afirma, declarando o milenarismo justicialista uma vez mais, ao dizer que de nada valeria um

movimento feminino num mundo sem justiça social, por isso o justicialismo deve estar em

todo o mundo (LRMV, p. 282).

Em sua visão de mundo, as organizações não funcionam bem porque não contam com

a presença criadora da mulher: “Tal vez por no habernos invitado a sus grandes

organizaciones sociales el hombre ha fracasado y no ha podido hacer feliz a la humanidad”

(LRMV, p. 284).74 Defende um mundo idealizado no qual as mulheres, tendo suas

necessidades e as de suas famílias providas, pudessem dedicar-se inteiramente ao lar, e que

fossem felizes como ela o é em sua vida doméstica com seu marido (LRMV, p. 314).

2.4 Efeito de historicidade em LRMV

Analisando o texto autobiográfico LRMV, passo a observações sobre os procedimentos

criadores do efeito de historicidade, o que determina, em seu modo de narrar, que essa obra

seja lida como não ficção, e os eventos que contém assumidos como realidade. São eles: a

autoria e o pacto autobiográfico; a criação do enredo (intimidade e sentido à vida); detalhes,

referências a personagens e instituições reais; menção de datas históricas; citação de

documentos, conceitualização e fotografias.

O nome próprio compartilhado entre autor, narrador e personagem central caracteriza

a autobiografia e confere ao texto autobiográfico uma aura de real, visto que o relato é tomado

como testemunho veraz. Sendo o autor figura pública, como Eva Perón, sua narrativa pode ser

cotejada com outras biografias e com a historiografia, ainda que nem sempre o leitor proceda

a tal verificação. Dá-se então que se configura um imaginário a respeito da veracidade do que

73 Tradução nossa: “Nascemos para construir lares”.

74 Tradução nossa: “Talvez por não nos terem convidado para suas grandes organizações sociais o homem

fracassou e não pode fazer feliz a humanidade”.

74

é relatado, pois haveria a possibilidade de verificação, logo os eventos são tomados como se

fossem reais, porque quem relata é quem viveu a vida.

O pacto aubiográfico já mencionado neste trabalho contribui para o efeito de

historicidade. O leitor suspende a descrença e aceita o contrato de leitura em que a autora e

narradora, Eva Perón, declara relatar o que realmente aconteceu de modo fidedigno.

Em seu relato, Eva Perón cria um enredo para narrar sua história, buscando dar um

sentido a sua própria vida. Nisto, a narradora autobiógrafa aproxima-se do historiador, que dá

sentido à história, estabelecendo relações de causalidade entre eventos, bem como aponta

mudanças e permanências na evolução dos fatos narrados. O enredo criado por Eva Perón

caracteriza-se pelo tom intimista com que apresenta os fatos. Aproxima o leitor de suas

considerações, como se o convidasse a participar de uma conversa e também a visitar suas

obras (LRMV, p. 247).

Chama o leitor à reflexão, apresentando justificativa para que seu texto não seja

recebido como propaganda política, apoiando-se em testemunho de outro (Perón) e buscando

identificação com os problemas comuns a todos:

Si este libro estuviera dirigido a hacer propaganda tal vez no debiera haber escrito

estas páginas un poco triste.

Pero nosotros ― dice siempre Perón ― venceremos con la verdad.

No diremos nunca, que vivimos sin problemas ni preocupaciones. Eso sería mentira

y nadie nos creería.

[…]

Este capítulo tal vez desentone en la mitad de estos apuntes destinados a explicar mi

misión.

Pero quienes quieran conocer bien todo el cuadro que es la vida mía, no sólo

deberán ver las luces… También será útil que conozcan los dolores. (LRMV, p.

236).75

O último capítulo tem o sugestivo título de “No me arrepiento”.76 Nele, o tom

intimista, de conversa com o leitor, que aproxima o leitor da narrativa e produz efeito de

historicidade, é manifesto:

Creo que ya he escrito demasiado.

Yo solamente quería explicarme y pienso que tal vez no lo haya conseguido sino a

medias.

75 Tradução nossa: “Se este livro estivesse dirigido a fazer propaganda talvez não devesse ter escrito estas

páginas um pouco triste.

Mas nós ― diz sempre Perón ― venceremos com a verdade.

Não diremos nunca que vivemos sem problemas nem preocupações. Isso seria mentira e ninguém acreditaria em

nós.

[...]

Este capítulo talvez desentone na metade destas notas destinadas a explicar minha missão.

Mas quem quiser conhecer bem todo o quadro que é a minha vida, não só deverá ver as luzes... Também será útil

que conheça as dores.”

76 Tradução nossa: “Não me arrependo”.

75

Pero seguir escribiendo sería inútil. Quien no me haya comprendido hasta aquí,

quien no me haya “sentido”, no me sentirá ya aun cuando siguiera estos apuntes por

mil páginas más.

Aquí veo ahora a mi lado verdaderas pilas de papel fatigado por mi letra grande… y

creo que ha llegado el momento de terminar.

[…]

No me arrepiento por ninguna de las palabras que he escrito. ¡Tendrían que borrarse

primero en el alma de mi pueblo que me las oyó tantas veces y que por eso me

brindó su cariño inigualable!

¡Un cariño que vale más que mi vida! (LRMV, p. 316, 317).77

A inserção de detalhes constitui outra forma pela qual o efeito de historicidade é

criado. Em várias partes de seu texto autobiográfico, Eva Perón detalha seu trabalho e sua

atuação junto às crianças, às mulheres e aos trabalhadores descamisados como, por exemplo,

ao explicar onde e como realiza seu trabalho de ajuda social:

Fuí a la Secretaría de Trabajo y Previsión porque en ella podía encontrarme más

fácilmente con el pueblo y con sus problemas; porque el Ministro de Trabajo y

Previsión es un obrero, y con él “Evita” se entiende francamente y sin rodeos

burocráticos; y porque además allí se me brindaron los elementos necesarios para

iniciar mi trabajo.

Allí recebo a los obreros, a los humildes, a quienes me necesitan por cualquier

problema personal o colectivo.

Los funcionarios de la casa colaboran conmigo en la solución de los problemas

gremiales, reuniendo todos los antecedentes, examinándolos en sí mismo y en sus

repercusiones económicas y sociales. (LRMV, p. 104)78

O detalhe tem o papel de rechear a narrativa, fazendo com que o imaginário acerca da

realidade dos eventos narrados se estabeleça. A informação numérica, embora não tão precisa,

a respeito da organização dos trabalhadores também constitui exemplo de detalhamento: “Más

de 4 millones de obreros agrupa solamente la Confederación General del Trabajo, que es la

77 Tradução nossa: “Creio que já escrevi demais.

Eu somente queria me explicar e penso que talvez não tenha conseguido senão pela metade.

Mas continuar escrevendo seria inútil. Quem não tiver me compreendido até aqui, quem não tiver me ‘sentido’,

não me sentirá mesmo que continuasse essas notas por mil páginas mais.

Aqui vejo agora ao meu lado, verdadeiras pilhas de papel cansado por minha letra grande... e creio que chegou o

momento de terminar.

[...]

Não me arrependo por nenhuma das palavras que escrevi. Teriam que se apagar primeiro na alma do meu povo

que as ouviu de mim tantas vezes e que por isso me ofereceu seu carinho inigualável!

Um carinho que vale mais que minha vida!”

78 Tradução nossa: “Fui para a Secretaria de Trabalho e Previsão porque nela podia me encontrar mais facilmente

com o povo e com seus problemas; porque o Ministo do Trabalho e Previsão é um trabalhador, e com ele ‘Evita’

se entende francamente e sem rodeios burocráticos; e porque ademais ali me foram oferecidos os elementos

necessários para iniciar meu trabalho.

Ali recebo aos trabalhadores, aos humildes, a quem me necessita por qualquer problema pessoal ou coletivo.

Os funcionários da casa colaboram comigo na solução dos problemas gremiais, reunindo todos os antecedentes,

examinando-os em si mesmo e em suas repercussões econômicas e sociais”.

76

Central Obrera, y todos unidos se han definido en favor de la Doctrina Justicialista de Perón”

(LRMV, p. 118).79

Em sua autobiografia, Eva Perón trata especificamente de seu trabalho, que considera

sua missão, portanto não trata de outras pessoas que não sejam as crianças, as mulheres e os

trabalhadores, designando-os coletivamente, sem citar nominalmente ninguém a não ser seu

marido, o presidente Perón. Isto parece indicar a importância central que Eva lhe dedica em

seu relato como em sua vida e missão, reforçando seu papel de mediadora entre Perón e o

povo. Como visto anteriormente neste trabalho, a narradora constrói a si mesma e a Perón em

seu relato. Várias vezes cita suas palavras, ou menciona algo que teria aprendido com ele: “De

Perón aprendí a tratar con los hombres” (LRMV, p. 71);80 “Del mismo Perón que siempre

suele decir: “el amor es lo único que construye”, he aprendido lo que es una obra de amor y

cómo debe cumplirse” (LRMV, p. 99).81

Algumas vezes, chega a questionar se exagera em tanto mencioná-lo: “Puedo seguir

hablando de Perón? Aunque alguien diga ― ¡y vaya si se ha dicho! ― que eso no es elegante

ni es inteligente, tengo que seguir haciendo el elogio de mi Líder” (LRMV, p. 67).82 Por

diversas vezes, menciona o golpe sofrido por Perón, em 1945, quando era vice presidente, sua

prisão e o modo como o povo protestou exigindo sua libertação: “Desde que Perón se fué

hasta que el pueblo lo reconquistó para él ― ¡y para mí! ― mis días fueron jornadas de dolor

y de fiebre” (LRMV, p. 42).83

Em sua narrativa, Eva Perón dedica a Perón todo o trabalho, todo esforço, toda ação,

alimentando o personalismo peronista: “Yo creo que Perón y su causa son suficientemente

grandes y dignos como para recibir el ofrecimiento total del movimiento feminista de mi

Patria” (LRMV, p. 62).84 Para Eva, a palavra de Perón, por si só, é suficiente para definir algo

79 Tradução nossa: “Mais de 4 milhões de obreiros agrupa somente a Confederação Geral do Trabalho, que é a

Central Obreira, e todos unidos se definiram em favor da Doutrina Justicialista de Perón”.

80 Tradução nossa: “Com Perón aprendi a tratar com os homens.”

81 Tradução nossa: “Do mesmo Perón que sempre costuma dizer: ‘o amor é o único que constrói”, aprendi o que

é uma obra de amor e como deve se completar.”

82 Tradução nossa: “Posso continuar falando de Perón? Mesmo que alguém fale ― e como falaram! ― que isso

não é elegante nem é inteligente, tenho que continuar fazendo o elogio de meu Líder.”

83 Tradução nossa: “Desde que Perón se foi até que o povo o reconquistou para ele ― e para mim! ― meus dias

foram jornadas de dor e de febre.”

84 Tradução nossa: “Eu creio que Perón e sua causa são suficientemente grandes e dignos para receber o

oferecimento total do movimento feminista de minha Pátria”.

77

como verdade: “El General Perón ha dicho que no sería posible el Justicialismo sin

sindicalismo. Y esto es verdad, primero, porque lo ha dicho el General Perón y segundo,

porque efectivamente es verdad” (LRMV, p. 118).85

Possibilita a criação do efeito de historicidade a referência a instituições reais. No

relato autobiográfico, são mencionados a Secretaria de Trabalho e Previsão convertida por

Perón em Ministério de Trabalho e Previsão; o Partido Peronista Feminino; a Casa de

Governo; o Lar da Empregada. Além destas instituições, é mencionado no texto um local: a

Praça de Maio, palco das manifestações peronistas, do encontro do povo para reivindicar

direitos ou para comemorar datas históricas.

As datas históricas mencionadas também conferem efeito de historicidade à narrativa.

Eva Perón cita as duas grandes datas peronistas: o 17 de outubro, Dia da Lealdade, e o 27 de

novembro, dia da Secretaria de Trabalho e Previsão (LRMV, p.141, 144). Além destas datas,

são citados o Natal e o Dia dos Reis e também outubro de 1945, quando Perón esteve preso:

Pero las fuerzas conjuradas de la oligarquia y de los poderes internacionales

pudieron en un momento más que el pueblo y que mi voluntad.

Fue en octubre de 1945.

Esa es una historia conocida. (LRMV, p. 56)86

A frase “essa é uma história conhecida” envolve o leitor na narrativa, ativando sua

memoria e reafirmando o pacto autobiográfico, o relato comprometido em dizer a verdade

sobre os acontecimentos.

A autobiografia traz um capítulo inteiro dedicado às cartas que Evita recebe do povo

trabalhador. Essa menção a um conjunto de documentos passíveis de verificação contribui

para a criação do efeito de historicidade. Como exemplo, tem-se o comentário de Eva Perón

acerca das cartas infantis e a citação de uma delas, embora não haja identificação do

remetente:

Las cartas de los niños tienen siempre un especial privilegio.

¡Me gusta leerlas cuando quiero descansar un poco, o tal vez reconfortarme de

alguna desilusión en los otros aspectos de mi lucha!

Son tan puros y tan ingenuos.

Como cuando por ejemplo una descamisadita de ocho años me escribe diciéndome

textualmente:

“Querida Evita: yo quiero para los Reyes cualquier cosa con tal de tener un recuerdo

suyo, pero no tengo ninguna bicicleta”.

85 Tradução nossa: “O General Perón disse que não seria possível o Justicialismo sem sindicalismo. E isto é

verdade, primeiro, porque foi dito pelo General Perón e segundo, porque efetivamente é verdade”.

86 Tradução nossa: “Mas as forças conjuradas da oligarquia e dos poderes internacionais puderam, num

momento, mais que o povo e que minha vontade.

Foi em outubro de 1945.

Essa é uma história conhecida.”

78

Toda la carta es eso; pero, ¿quién se niega a mandarle un “recuerdo”? (LRMV, p.

174).87

Finalizando a análise sobre os elementos que possibilitam a criação do efeito de

historicidade, temos a conceitualização presente na narrativa. Eva Perón define termos

relacionados ao peronismo confirmando o aspecto formativo e didático da obra, que não

apenas contém formação de si e de Perón, mas também do povo peronista. Os conceitos aqui

observados são: Revolução, descamisado e justiça social.

O ano de 1943 é definido como o primeiro ano da Revolução (LRMV, p. 141), quando

Perón converteu o “velho e inútil” Departamento Nacional do Trabalho na Secretaria de

Trabalho e Previsão. Segundo Eva Perón, nesse dia começou a revolução, um dia de triunfo

para Perón, e para os trabalhadores “el primer día de sol después de una larga noche de

zozobras y de explotación oligárquica” (LRMV, p. 141).88

O conceito de descamisado também é forjado na narrativa autobiográfica: é o povo

trabalhador que luta por Perón, que exigiu sua libertação em 1945, não necessariamente um

despossuído em termos materiais, mas todos os que sofreram por Perón são autênticos

descamisados:

Para mí por eso descamisado es el que se siente pueblo. Lo importante es eso; que se

sienta pueblo y ame y sufra y goce como pueblo, aunque no vista como pueblo, que

esto es lo acidental. Un oligarca venido a menos podrá ser materialmente

descamisado pero no será un descamisado auténtico. (LRMV, p. 117, grifo da

autora)89

Eva Perón (1951, p. 117) declara que nem todo descamisado é trabalhador, mas todo

trabalhador é descamisado e deve a eles a vida de Perón.

Na esteira da definição de descamisado, Eva Perón conceitua trabalhadores. Segundo

ela, estes, em primeiro lugar, são descamisados; em segundo, são parte integrante do povo a

87 Tradução nossa: “As cartas das crianças têm sempre um especial privilégio.

Gosto de lê-las quando quero descansar um pouco, ou talvez me reconfortar de algum desapontamento nos

outros aspectos de minha luta!

São tão puras e ingênuas.

Como quando, por exemplo, uma descamisadinha de oito anos me escreve dizendo-me textualmente:

‘Querida Evita, eu quero para os Reis qualquer coisa sua para guardar de lembrança, mas não tenho nenhuma

bicicleta’.

Toda a carta é isso; mas quem se nega a lhe enviar uma ‘lembrança’?”

88 Tradução nossa: “o primeiro dia de sol depois de uma longa noite de soçobras e de exploração oligárquica.”

89 Tradução nossa: “Para mim, por isso, descamisado é o que se sente povo. O importante é isso; que se sinta

povo e ame e sofra e goze como povo, mesmo que não vista como povo, que isso é o acidental. Um oligarca

falido poderá ser materialmente descamisado, mas não será um descamisado autêntico’.

79

cuja causa ela se dedica e, em terceiro, são o sustentáculo da Revolução, portanto “El

movimiento peronista no podría definirse sin ellos” (LRMV, p. 118).90

Conceitua também o elemento principal da doutrina justicialista, a ideia de justiça

social, que teria aprendido com Perón, definindo-a a partir do que não é, para destacar o modo

como foi vista até então a obra que realiza em seu país que, com Perón e o justicialismo,

começa uma nova era:

No es filantropia, ni es caridade, ni es limosna, ni es solidaridad social, ni es

beneficencia. Ni siquiera es ayuda social, aunque por darle un nombre aproximado

yo le he puesto eso.

Para mí, es estrictamente justicia. (LRMV, p. 182)91

A ideia de justiça social traz a noção de que tudo pertence ao povo e o que se dá a eles

é plenamente devido: “Yo no hago outra cosa que devolver a los pobres lo que todos los

demás les debemos, porque se lo habíamos quitado injustamente” (PERÓN, 19951, p. 188).92

Por fim, as fotografias presentes na narrativa contribuem para o efeito de historicidade.

Há um conjunto de vinte e três fotografias ao longo do livro. A maioria possui legenda

explicativa, apenas não as possuem aquelas que são utilizadas para ilustrar as partes nas quais

a obra é dividida: primeira parte, Las causas de mi misión; segunda, Los obreros y mi misión,

e, por fim, a terceira, Las mujeres y mi misión.93 As fotografias são em preto e branco, exceto

as de Evita e Perón, logo na abertura do livro.

As fotografias são um elemento importante na criação do imaginário acerca da

realidade. Segundo Susan Sontag (1977, p, 13),

Ao nos ensinar um novo código visual, as fotos modificam e ampliam nossas ideias

sobre o que vale a pena olhar e sobre o que temos o direito de observar. Constituem

uma gramática e, mais importante ainda, uma ética do ver. Por fim, o resultado mais

extraordinário da atividade fotográfica é nos dar a sensação de que podemos reter o

mundo inteiro em nossa cabeça – como uma antologia de imagens.

Verifica-se, portanto, o direcionamento que a apresentação da fotografia faz no relato

ao que o narrador objetiva focalizar, isto porque as fotos são “experiência capturada”

(SONTAG, 1977, p. 14).

90 Tradução nossa: “O movimento peronista não poderia se definir sem eles”.

91 Tradução nossa: “Não é filantropia, nem é caridade, nem é esmola, nem é solidariedade social, nem é

beneficência. Nem sequer é ajuda social, embora para lhe dar um nome aproximado eu tenha lhe posto isso. Para

mim, é estritamente justiça.”

92 Tradução nossa: “Eu não faço outra coisa que devolver aos pobres o que todos os demais lhes devemos,

porque tínhamos tirado deles injustamente”.

93 Tradução nossa: “As causas de minha missão”; “Os trabalhadores e minha missão”; “As mulheres e minha

missão”.

80

O efeito de historicidade se estabelece na observação das fotografias que compõem o

texto autobiográfico autenticando-o, como uma prova:

Fotos fornecem um testemunho. Algo de que ouvimos falar mas de que duvidamos

parece comprovado quando nos mostram uma foto.

Uma foto equivale a uma prova incontestável de que determinada coisa aconteceu. A

foto pode distorcer; mas sempre existe o pressuposto de que algo existe, ou existiu, e

era semelhante ao que está na imagem (SONTAG, 1977, p, 16).

Essa autoridade conferida pela fotografia está assentada na presunção de veracidade,

no entanto as fotografias também são interpretação da realidade, embora nem sempre sejam

tomadas dessa forma por quem as vê: “Embora em certo sentido a câmera de fato capture a

realidade, e não apenas a interprete, as fotos são uma interpretação do mundo tanto quanto as

pinturas e os desenhos” (SONTAG, 1977, p. 17).

As fotografias cumprem um papel importante no estabelecimento de posições morais:

“Fotos não podem criar uma posição moral, mas podem reforçá-la e podem ajudar a

desenvolver uma posição moral embrionária” (SONTAG, 1977, p. 28). Dessa forma, ao

apresentar na autobiografia fotografias de multidões de trabalhadores aclamando Perón numa

das datas comemorativas do peronismo, a ideia que se tem é a de comprovação da narrativa.

Mostrar fotos torna visível e real um determinado acontecimento: “Um evento conhecido por

meio de fotos certamente se torna mais real do que seria se a pessoa jamais tivesse visto as

fotos” (ibidem, 1977, p. 30).

Busquei analisar, neste tópico, os elementos que criam o efeito de historicidade na

narrativa autobiográfica LRMV, possibilitando ao leitor tomar como realidade todo o relato:

autoria e pacto autobiográfico; criação do enredo; detalhes, referências a personagens e

instituições; menção de datas históricas; citação de documentos; conceitualização e

fotografias. A seguir, analiso a representação hagiográfica de Eva Perón em SE.

81

3. REPRESENTAÇÃO HAGIOGRÁFICA DE EVA PERÓN

Como já mencionado nesta pesquisa, sendo relato da vida de santo, a hagiografia

destina-se à fixação da memória dos heróis da fé, apresentando testemunhos diretos sobre o

martírio do santo e sua posterior veneração. É um texto literário construído segundo padrões

narrativos para tornar conhecido um personagem e difundir seu culto (GAJANO, 2006, p,

455). Por tratar do maravilhoso, a hagiografia não se insere no pacto de veracidade

pressuposto pela escrita da história.

As características do texto hagiográfico, segundo Baños Vallejo (1989) são as ações

realizadas em vida, a morte como processo de aperfeiçoamento e os milagres post-mortem.

Além disso, Certeau (2000, p. 273) identifica na hagiografia genealogias, esquemas

escatológicos (inversão da ordem), circularidade, ambiguidade, a história como epifania

(como se manifestou a vocação), relato dramático, alternância entre um tempo de provações

(combates solitários) e um tempo de glorificações.

Na narrativa de extração histórica SE, os elementos do gênero hagiográfico

encontram-se presentes. Embora a hagiografia seja uma fórmula literária oficializada pela

Igreja Católica como “escrita de memória que responde às necessidades de institucionalização

do culto aos santos ao longo da história do catolicismo” (SANTOS; DUARTE, 2010, p. 2),

cabe ressaltar que a hagiografia em SE não se relaciona ao catolicismo. Nisto há transgressão

dos cânones oficiais: Evita é representada como santa, mas santa popular. Não é santa

católica, não é reconhecida santa pela Igreja, mas pelo seu povo, os descamisados da

Argentina, os Montoneros94 e os que nela acreditam, como o próprio narrador de SE, que se

diz curado de forte depressão após narrar sua história.

Dentre os vários temas evocados no repertório da hagiografia, Certeau (2000, p. 275)

destaca o corpo e o bestiário, ambos conectados ao poder divino e à santidade, além do relato

da metamorfose operada no santo a partir de uma viagem. Tais temas são verificados em SE.

O corpo embalsamado, insepulto, sequestrado, ocultado, incorruptível, que retorna à

Argentina dezesseis anos após seu sequestro, é símbolo do mito de Evita no romance. O

bestiário também se faz presente. Há um constante zumbido de abelhas que atormenta o

Coronel Moori Koenig, um dos personagens históricos ficcionalizados, responsável pela

operação de sequestro e ocultação do cadáver de Evita, que enlouquece ao longo deste

processo. O tema da viagem transformadora também é explorado: a viagem que Evita faz à

94 Grupo guerrilheiro surgido nos anos 1970, na Argentina, cujo objetivo estratégico era construir um movimento

peronista armado para tomar o poder e desenvolver o socialismo nacional (PODERTI, 2010, p. 141).

82

Europa, representando Perón, e de lá retorna, segundo a narrativa de extração histórica, mais

convicta de seu papel no peronismo.

No presente capítulo, analiso a representação hagiográfica de Eva Perón no romance

SE discutindo suas origens, seus nomes, o maravilhoso e a alegoria da história, a autoficção e

o efeito de historicidade.95

3.1 Origens: infância de Eva Perón

Em SE, vários gêneros são mesclados para compor a narrativa do mito de Evita. São

esmiuçados eventos e circunstâncias de sua biografia, com especial destaque para o sequestro

e a ocultação de seu cadáver embalsamado, discutindo-se, metaficcionalmente, a elaboração

do romance e do próprio mito de Evita.

Dentre os eventos biográficos narrados, estão aqueles relacionados à infância de Eva

Perón: suas origens, vida em família, dificuldades pelas quais passou e como as venceu. Tais

eventos são reconstituídos, principalmente, como memórias de sua mãe, Juana Ibarguren.

Sobre as origens de Eva Perón, o narrador em SE, homônimo do autor, Tomás Eloy

Martínez, destaca que veio de “baixo”, era pobre, filha natural, atriz medíocre que, ao

começar a trabalhar, era uma “joven de facciones tristonas y busto escuálido” (SE, p. 82).96

No entanto, se transformou rapidamente após conhecer Perón, e tempos depois “tenía la

mirada llena de cicatrices y hablaba con voz imperativa” (SE, p. 84).97 Sua origem foi

determinante em sua trajetória e atuação. Pensava em solucionar os problemas mais

elementares da classe baixa (trabalho, casa, saúde) talvez porque ela mesma não teve estas

coisas. Pensava na justiça social, porque talvez ela própria tenha sido humilhada pelas

senhoras das entidades de caridade. Presenteava as crianças com brinquedos, porque quiçá ela

mesma não os teve na infância. Queria desesperadamente ser atriz, porque não tinha voz.

95 Em minha dissertação de mestrado, História e ficção em Santa Evita, como já mencionado, realizei ampla

investigação sobre as relações entre literatura e história.

96 Em português: “jovem de traços tristonhos e busto esquálido” (p. 71).

Utiliza-se, daqui para frente, em todas as notas contendo a tradução, a edição em português publicada no Brasil

pela Companhia das Letras, cuja referência completa encontra-se nas referências bibliográficas.

97 Em português: “Tinha o olhar cheio de cicatrizes e falava com voz imperiosa” (p. 73).

83

Tratava o povo como provavelmente gostaria que a tivessem tratado. Sua origem a define; se

não fosse pobre e ilegítima, provavelmente não conheceria tão bem os grasitas.98

A partir dos registros feitos pelo Coronel Moori Koenig, um dos personagens centrais

em SE, responsável pela operação de sequestro do cadáver de Evita, o romance relata a

confusão quanto aos dados referentes ao nascimento de Eva Perón. Esta teria nascido em 7 de

maio de 1919, em Los Toldos, e recebido o nome de María Eva Ibarguren. No entanto, na

certidão de casamento com Perón é nomeada como María Eva Duarte, nascida em Junín, em 7

de maio de 1922.

Questionam-se no romance os motivos que a teriam levado a efetuar essas alterações

em seu registro de nascimento, e se conclui que teriam sido efetuadas porque Eva e Perón

eram romancistas e atores que elaboravam e encenavam representações de si mesmos:

El casamento no es falso pero casi todo lo que dice el acta sí lo es, de principio a fin.

En el momento más solemne e histórico de sus vidas, los contrayentes – así se decía

entonces – decidieron burlarse olímpicamente de la historia. Perón mintió el lugar de

la ceremonia y el estado civil; Evita mintió la edad, el domicilio, la ciudad donde

había nacido. Eran imposturas evidentes, pero pasaron veinte años antes de que

alguien las denunciara. En 1974, sin embargo, el biógrafo Enrique Pavón Pereyra las

declaró verdaderas en su obra Perón, el hombre del destino. Otros historiadores se

conforman con transcribir el acta y no discuten su falsía. A ninguno se le ocurrió, sin

embargo, preguntarse por qué Perón y Evita mentían. No necesitaban hacerlo. ¿Evita

se añadió tres años para que el novio no le doblara la edad? ¿Perón se fingió soltero

por pudor de ser viudo? ¿Evita imaginó que había nacido en Junín porque era hija

ilegítima en Los Toldos? Esos detalles nimios ya no les inquietaban. Mintieron

porque habían dejado de discernir entre mentira y verdad, y porque ambos, actores

consumados, empezaban a representarse a sí mismos en otros papeles. Mintieron

porque habían decidido que la realidad sería, desde entonces, lo que ellos quisieran.

Actuaron como actúan los novelistas. (SE, p. 143)99

A hagiografia presente em SE apresenta-se subvertida, visto que seu narrador não cria

uma origem nobre para Evita, mas apresenta a dúvida que se estabelece sobre esta origem.

98 Segundo o Diccionario del habla de los argentinos (2008), o adjetivo coloquial depreciativo grasa refere-se

ao que expressa ou manifesta vulgaridade. O que se conclui, portanto, é que ao empregá-lo no diminutivo, Evita

estabelecia uma relação de carinho com os trabalhadores pobres, considerados vulgares pelas classes alta e

média.

99 Em português: “O casamento não é falso, mas o é quase tudo o que se escreveu no livro, do princípio ao fim.

No momento mais solene e histórico de suas vidas, os contratantes ― como se dizia então ― decidiram zombar

olimpicamente da história. Perón mentiu o lugar da cerimônia e seu estado civil; Evita mentiu a idade, o

endereço e a cidade onde nasceu. Eram imposturas evidentes, mas teriam que se passar vinte anos para que

alguém as denunciasse. Em 1974, no entanto, o biógrafo Enrique Pavón Pereyra as declarou verdadeiras em seu

livro Perón, el hombre del destino. Outros historiadores limitaram-se a transcrever a ata sem por em discussão

sua falsidade. Nenhum deles, entretanto, cogitou perguntar-se por que Perón e Evita mentiam. Não precisavam

fazê-lo. Evita aumentou sua idade em três anos para que o noivo não chegasse a ter o dobro? Perón fingiu ser

solteiro por pudor de sua viuvez? Evita inventou ter nascido em Junín porque em Los Toldos era filha ilegítima?

Esses detalhes triviais não os incomodavam. Mentiam porque já não discerniam a mentira da verdade, e porque

ambos, atores consumados, começavam a representar a si mesmos em outros papéis. Mentiram porque tinham

decidido que a realidade seria, a partir daquele momento, o que eles quisessem. Atuaram como atuam os

romancistas.

84

Segundo o historiador Felipe Pigna (2012, p. 16), a certidão de nascimento que

originou a de casamento era falsa e a original, que constava no Registro Civil de General

Viamonte, havia sido destruída. Com a adulteração pretendia-se reparar sua condição de filha

natural. Seu pai, Juan Duarte, não era casado com sua mãe, Juana Ibarguren e, embora tenha

registrado os outros quatro filhos que teve com ela, não quis reconhecer a última, María Eva,

por isso esta recebeu apenas o nome da mãe. Além do nome Duarte, a data de nascimento foi

alterada para que se pudesse afirmar que seus pais haviam sido casados, já que, em 1922,

Duarte havia se tornado viúvo.

Não ter o reconhecimento do pai marcaria profundamente a Cholita, como era

carinhosamente chamada Eva em sua família (EJSV, p. 15). Como filha natural, María Eva

Ibarguren sofria preconceito. Na reconstrução de suas origens, portanto, Eva Perón tem sua

certidão de nascimento alterada, resolvendo, ainda que fictícia e ilusoriamente, a questão de

sua paternidade.

Em SE, como já vimos, a narração dos primeiros anos de Eva Perón dá-se a partir do

relato memorialístico de sua mãe, Juana Ibarguren. Segundo o narrador, as memórias de

Juana, compiladas pelo Coronel Moori Koenig, são relatadas em meio à angústia de não saber

onde está o corpo de sua filha. Embora tenha peregrinado em busca de informações, como

tantas outras mães durante a ditadura que viria anos depois, Juana falece antes que o cadáver

de Evita retorne à Argentina.

Juana Ibarguren conta como as visitas do pai, Juan Duarte, foram escasseando, sua

indiferença e recusa em reconhecer Eva como filha. Este fato é também mencionado no

romance através das anotações das investigações realizadas pelo Coronel Moori Koenig:

Todos, salvo la última, fueron reconocidos por el padre. Cuatro meses después del

nacimiento de Eva María, Juan Duarte se marchó de Los Toldos para siempre.

Visitó una o dos veces a los bastardos, pero con impaciencia, distraído, ansioso por

desaparecer de su pasado. (SE, p. 136)100

Lembra um acidente sofrido por Evita quando tinha apenas quatro anos de idade. Esse

acidente poderia tê-la desfigurado completamente: o azeite fervente cai sobre seu rosto

quando mexe numa frigideira no fogão. Durante a cicatrização, seu rosto ficou coberto de

crostas que tentava arrancar, mas sua mãe, para impedi-la, amarrou suas mãos. Quando as

crostas caíram, Evita não tinha cicatrizes:

En vez de las cicatrices le asomó esa piel fina, traslúcida, de alabastro, de la que

tantos hombres se iban a enamorar más tarde. No le quedó una estría ni una mancha.

100 Em português: “Todos, exceto a última, foram reconhecidos pelo pai. Quatro meses depois do nascimento de

Eva María, Juan Duarte deixou Los Toldos para sempre. Visitou os bastardos uma ou duas vezes, mas com

impaciência, distraído, ansioso por desaparecer de seu passado” (p. 118).

85

Pero ningún milagro es impune. Evita debió pagar su salvación con otros insultos de

la vida, otros engaños, otras desdichas. (SE, p. 369)101

Observa-se, nesse fragmento, a atribuição da beleza de seu rosto adulto a um evento

doloroso e traumático. O milagre, acaso ou a tenacidade de sua mãe ao impedi-la de tocar o

rosto enquanto cicatrizava fez com que sua aparência ficasse ainda melhor. A menção aos

homens que atraiu revela esse movimento de narrar o passado sempre a partir do presente, ou

tendo-o em conta, como se buscasse, ao rememorar, uma explicação para o momento atual.

Da mesma forma, a concepção de que as penas que sofreu, as dificuldades pelas quais passou,

ocorreram em consequência de haver recebido a dádiva da beleza. Somente é possível fazer

tais conjecturas observando o presente. O que permite à mãe de Evita fazer esse tipo de

relação é que esta é feita com a segurança da totalidade da vida. Evita está morta, e morreu

jovem, pouco tempo depois de haver alcançado tanta influência na condução do país, tendo

passado por dores e sofrimento. Isso possibilita à sua mãe tentar encontrar uma explicação ou

algo que indicasse seu destino. É comum que isso aconteça com figuras públicas que se

destacaram positiva ou negativamente: busca-se em suas origens algum indício de seu destino.

Sobre a morte de Juan Duarte, Juana recorda que os outros filhos sentiram o

falecimento do pai, mas Evita não, “Ella jugaba, indiferente” (SE, p. 370). Contrariando a

família de Juan e a expectativa social de ocultação da concubina, Juana comparece ao velório,

para que os filhos pudessem se despedir do pai:

Evita no alcanzaba a ver el cuerpo y tuve que levantarla en brazos. Cuando la

acerqué al ataúd, advertí que tenía los labios apretados y la mirada desierta. “Tu

papá”, le dije. Ella se volvió hacia mí y me abrazó sin expresión, sólo porque debía

abrazar a alguien y no quería tocar aquellos despojos de un desconocido. (SE, p.

374)102

A indiferença da pequena Eva é facilmente explicável pelo fato de Juan Duarte ser

praticamente um estranho a ela, com quem pouco teve contato.

A figura de infância que se explora no romance é a da criança bastarda. Sua origem

ilegítima associada à pobreza em que viveu, na infância e até tornar-se atriz de sucesso,

funcionam como modeladores de seu caráter e de sua atuação política. A narrativa de tais

eventos, portanto, visaria a apresentar o quanto Evita era excepcional.

101 Em português: “Em lugar das cicatrizes, o que apareceu foi aquela pele fina, translúcida, de alabastro, pela

qual tantos homens depois iriam se apaixonar. Não ficou uma só estria, uma só mancha. Mas nenhum milagre

acontece impunemente. Evita teve de pagar sua salvação com outros insultos da vida, outros enganos, outras

desgraças” (p. 316).

102 Em português: “Evita não conseguia ver o corpo e eu precisei erguê-la nos braços. Quando a aproximei do

caixão, reparei que tinha os lábios apertados e o olhar deserto. ‘É seu pai’, falei. Ela se virou para mim e me

abraçou sem expressão, só porque tinha que abraçar alguém e não queria tocar naqueles despojos de um

desconhecido” (p. 321).

86

Não há memória autobiográfica de Evita no romance. A única menção que a própria

faz é do momento em que abandona a infância. Em uma conversa com sua mãe, relê uma

carta que enviou a Perón desde Madrid, quando ali estava em viagem oficial: “Salí de Junín

cuando tenía trece años, y a esa edad, ¿qué puede hacer de horrible una pobre muchacha?”

(SE, p. 44).103 Evita temia que, estando distante, Perón acreditasse em boatos. Verifica-se

nessa carta a preocupação em fazer as datas conferirem: diz que saiu aos treze anos (em

1935), logo, de acordo com a certidão de nascimento forjada. Isto demonstra a construção da

personagem como consciente da elaboração de sua própria imagem e do quanto esta carta,

naquele momento privada, poderia tornar-se pública.

Além da representação da infância de Eva Perón, SE apresenta sua trajetória de atriz

iniciante à primeira dama argentina, Mãe dos descamisados.

3.2 Evita longe de ser Evita: do anonimato à ascensão

Expressão utilizada pelo narrador de SE (p. 309) para fazer referência à versão

segundo a qual a menina Eva Duarte teria sido levada à Buenos Aires por Magaldi: “Em

1934, Evita estaba lejos de ser Evita. Magaldi, en cambio, conocía una fama sólo comparable

a la de Gardel”.104

Apresentando-se como um historiador não convencional, um investigador que recorre

a todo e qualquer tipo de fonte, o narrador comenta que encontrou numa coleção de revistas

de celebridades, Sintonía, uma notícia sobre uma apresentação de Mario Pugliese (Cariño) e o

dueto Magaldi-Noda em Junín, em 10 e 11 de novembro de 1934. Com esta informação,

deduz que nessa turnée Magaldi conheceu Evita e Cariño teria sido testemunha. Como

desconfia das informações dos biógrafos de Evita que tendem a defender a versão de que ela

teria chegado sozinha a Buenos Aires, e também não dá crédito a que Magaldi, um grande e

conhecido cantor, tivesse introduzido Evita na rádio, decide entrevistar Cariño para saber o

que de fato aconteceu.

Martínez narrador afirma que a geradora do boato sobre Magaldi foi a própria Evita

quem teria confiado a seus primeiros amigos da rádio e eles fizeram a história circular, mas

Cariño seria o único que sabia a verdade (SE, p. 310). Encontra-o em 1964, trinta anos depois

103 Em português: “Saí de Junín quando tinha treze anos e, nessa idade, o que pode fazer de tão horrível uma

pobre moça?” (p. 39).

104 Em português: “Em 1934, Evita estava longe de ser Evita. Magaldi, ao contrário, gozava de uma fama

somente comparável à de Gardel” (p. 266).

87

da apresentação em Junín, já decadente, com problemas de locomoção, desenvolvendo outras

funções não relacionadas à arte. Afirma ser fiel a seu relato, no entanto não sabe se o que

narra é fiel à verdade (SE, p. 311).

Segundo Cariño, em Junín, lhes recomendaram almoçar na pensão de Juana Ibarguren.

Lá, Magaldi encantou a todos. A única que parecia indiferente era a filha menor, Eva, e isto

incomodou a Magaldi. Evita tinha quinze anos e é descrita como faceira. Magaldi contou a

Cariño que Juana lhe pediu que apadrinhasse Evita em Buenos Aires, e que ele depois de

muito relutar, decidiu fazê-lo (SE, p. 316).

Quando partem de Junín para Buenos Aires, Evita vai com eles no trem: “Fue una

escena de radioteatro, me contó Cariño: el príncipe azul rescataba de su infortunio a la

provincianita pobre y poco agraciada” (SE, p. 317).105 Para Martínez narrador, “Todo sucedía

más o menos como en la ópera de Tim Rice y Lloyd Webber, aunque sin castañolas” (SE, p.

317).106

De modo discreto, o narrador, transcrevendo o que lhe relatou Cariño, aborda o

relacionamento de Magaldi e Evita:

Desde esa noche, Magaldi fue um hombre dividido. Pasaba la mañana y parte de la

tarde en la pensión de la avenida Callao donde vivía Evita. Allí compuso sus más

hermosas canciones de amor. “Quien eres tú” y “Cuando tu me quieras”, sentado en

una silla de cuero de potro. (SE, p. 318)107

Segundo Cariño, Magaldi perde seu contrato na rádio e a oportunidade de apresentar

Evita, o que a enfurece. Passa a envergonhar-se dela e a não querer mais vê-la. Em conversa

com Cariño, este sugere a Evita que volte para Junín, e sua resposta é quase profética: “A mí

de Buenos Aires sólo me sacan muerta.” (SE, p. 319).108

O narrador diz que, ao contrário do que pensam os biógrafos, quem encaminhou a vida

de Evita não foi Magaldi, foi Cariño. Várias vezes a socorreu, pagando sua estadia na pensão,

ou repartindo refeições. Um dia, após encontrá-la e ela chorar, ele a leva para casa e chama

por telefone Edmundo Guibourg, colunista de “Crítica”, pedindo-lhe um trabalho para Evita.

105 Em português: “Foi uma cena de radionovela, contou-me Cariño: o príncipe encantado resgatava de seu

infortúnio a provincianazinha pobre e sem graça” (p. 273).

106 Em português: “Tudo acontecia mais ou menos como na ópera de Tim Rice e Lloyd Webber, só que sem

castanholas” (p. 317).

107 Em português: “A partir dessa noite, Magaldi foi um homem dividido. Passava a manhã e parte da tarde na

pensão da avenida Callao onde Evita morava. Ali ele compôs suas mais lindas canções de amor, “Quién eres tú”

e “Cuando tú me quieras”, sentado em uma cadeira de couro de potro” (p. 273).

108 Em português: “De Buenos Aires eu só saio morta” (p. 274).

88

Ela debutou no teatro Comédia, em 28 de março de 1935, interpretando uma mucama em La

señora de los Pérez.

Embora o relato de Cariño afirme que Evita chegou a Buenos Aires em novembro de

1934, o narrador, ao iniciar sua narrativa, descrevendo momentos que antecederam a morte de

Evita, compara sua condição atual com a da menina que chegou à capital em 1935:

No parecia la misma persona que había llegado a Buenos Aires en 1935 con una

mano atrás y otra adelante, y que actuaba en teatros desahuciados por una paga de

café con leche. Era entonces nada o menos que nada: un gorrión de lavadero, un

caramelo mordido, tan delgadita que daba lástima. Se fue volviendo hermosa con la

pasión, con la memoria y con la muerte. Se tejió a sí misma una crisálida de belleza,

fue empollándose reina, quién lo hubiera creído. (SE, p. 11)109

Como o tempo não se apresenta de modo linear em SE, não há construção de sua

transformação paulatinamente. Após essa menção de 1935, há outra de Eva Duarte, em 1939,

a partir de informações extraídas de fichas do serviço de inteligência militar que estavam em

poder do Coronel Moori Koenig em seu confinamento As fichas que tratam de 1939 trazem

informações sobre seus romances e mudanças de domicílio: teve um caso com o dono da

revista Sintonía e se mudou de uma pensão na rua Sarmiento para um apartamento na

passagem Seaver, envolveu-se com o empresário dono de Jabón Radical, mas continuou

vendo em segredo o dono da revista.

Em janeiro de 1940, também relatado nas fichas, conheceu o cabeleireiro Julio

Alcaraz. Evita é descrita como “de una palidez enfermiza, de una belleza trivial, no inspiraba

pasión sino compasión. Y sin embargo quería llevarse el mundo por delante” (SE, p. 292,

grifo do autor).110

As informações sobre Evita, em 1943, são introduzidas na narrativa através da

conversa com o amigo Emilio Kaufman, pai de uma ex namorada, já falecida, de Martínez

narrador. A indagação que faz Kaufman sobre o que fez Evita neste ano, em que pouco

trabalhou, fornece ocasião para tratar do assunto.

Durante toda a conversa, o narrador e seu amigo referem-se a Eva Duarte como Evita,

embora ela ainda estivesse longe de sê-lo. Evita é apresentada como “una pobre atriz de

109 Em português: “Não parecia a mesma pessoa que havia chegado a Buenos Aires em 1935 com uma mão na

frente e outra atrás e que se apresentava em teatros miseráveis em troca de um café com leite. Naquela época ela

era nada ou menos que nada: um pardal ciscando migalhas, uma bala cuspida, tão magrinha que dava até pena.

Foi ficando linda com a paixão, com a memória e com a morte. Teceu para si mesma uma crisálida de beleza, foi

incubando-se rainha, quem diria” (p. 11).

110 Em português: “de uma palidez doentia, de uma beleza trivial, não inspirava paixão e sim compaixão. E no

entanto queria ser a dona do mundo” (p. 251, grifo do autor).

89

segunda” (SE, p. 246)111 que trabalhava onde era possível, como atriz, como modelo de

fotografias ou em publicações pornográficas.

Quando Kaufman diz que conheceu Eva, Martínez narrador pede-lhe que conte o que

aconteceu. Após ouvir seu relato, diz que nunca mais pôde dormir até o momento em que

escreveu a história (SE, p. 246).

Kaufman saía com uma atriz, Mercedes Printer, com quem conversava sobre tudo, e

ela lhe falou sobre Evita, que é descrita como alguém que dá pena: “Es debilucha, enfermiza”

(SE, p. 247),112 diz Mercedes, acrescentando que simpatizou com ela. Tornaram-se amigas

durante uma atuação em Rosario; compartilhavam homens, comida e camarim: “A ella le

interesaban los empresários, los hombres con plata, aunque fueron viejos y panzones, y yo a

mi lo que me gustaba era la milonga. Ni ella ni yo teníamos un mango” (SE, p. 248).113

Mercedes conta que ela estava se recuperando de uma longa enfermidade e pede a Kaufman

que convide um amigo para que saiam todos juntos.

O narrador faz uma digressão e comenta a transformação surpreendente e inesperada

de Evita, e a memória de Kaufman a ela relacionada:

Si no fuera por el significado que los hechos iban a tener después, a la luz de la

historia, Emilio se habría olvidado de todo. No sabía – no podia saber – que, com el

tiempo, aquella chica iba a ser Evita. Tampoco Evita lo sabía. La historia tiene esas

trampas. Si pudiéramos vernos dentro de la historia, dijo Emilio, sentiríamos terror.

No habría historia, porque nada querría moverse. (SE, p. 248)114

Kaufman conta sua impressão de Evita quando a conheceu:

A Emilio le pareció insulsa, invulnerable al quebranto de la enfermedad y de la

pena. Lo que más impresionaba en ella, me dijo, era la blancura. Tenía un cutis tan

pálido que se le veían al trasluz los mapas de las venas y las lisuras del pensamento.

No había en ella nada físico que atrajera, dijo, ninguna fuerza eléctrica para bien ni

para mal. (SE, p. 248)115

111 Em português: “uma pobre atriz de segunda” (p. 211).

112 Em português: “é fracote, vive doente” (p. 212).

113 Em português: “Ela só queria saber de empresários, homens endinheirados, mesmo que fossem uns velhos

barrigudos, e eu gostava era de farra. As duas sem um puto no bolso” (p. 212).

114 Em português: “Se não fosse pelo significado que os fatos iriam ganhar mais tarde, à luz da história, Emilio

teria esquecido tudo. Não sabia ― não podia saber ― que, com o tempo, aquela moça iria ser Evita. Evita

também não o sabia. A história tem dessas armadilhas. Se pudéssemos nos ver dentro da história, disse Emilio,

ficaríamos apavorados. Não haveria história, porque todo mundo ficaria imóvel” (p. 213)

115 Em português: “Emilio a achou insossa, invulnerável ao quebranto da doença e do sofrimento. O que mais

impressionava nela, disse Emilio, era sua brancura. Tinha uma cútis tão pálida que chegava a transluzir os mapas

das veias e as lisuras do pensamento. Seu corpo não tinha nada de atraente, disse ele, nenhuma força elétrica,

nem para o bem, nem para o mal” (p. 213).

90

Na ocasião, Evita estava triste e só se animou quando foram a Fantasio, um local onde

se reuniam os produtores de Argentina Sono Film e as atrizes da moda. Emilio sente vergonha

de apresentá-la a seus amigos, mas atende a seu pedido. Um produtor, Atilio Mentasti, a

destrata e recebe um olhar de ódio. Nesse ponto da narrativa, o narrador realiza breve

digressão para comentar sobre uma característica de Evita no futuro – a vingança:

Desde que llegó a Buenos Aires la habían desairado y vejado tantas vezes que ya

nada la sorprendía: acumulaba em su memoria un largo catálogo de injurias que

pensaba vengar tarde o temprano. La de Mentasti fue una de las peores. Nunca lo

perdonó, porque no quería perdonar a nadie. Si Eva llegó a ser alguien, me dijo

Emilio, fue porque se propuso no perdonar. (SE, p. 250)116

Kaufamn diz que Eva lhe perguntou o que faria se Mercedes engravidasse. Ele diz que

a levaria para abortar, porque nenhum dos dois poderia ter um filho. A conversa estranha

continua e Eva indaga o que ele faria se ela tivesse o filho sem ele saber. Após sua resposta –

que iria querer ver o filho, mas nunca mais Mercedes, Eva conclui que homem e mulher

pensam diferente.

Quando partem, Kaufman e Mercedes levam-na para casa. Depois de deixá-la,

Mercedes lhe diz que Evita estava desesperada, mas Emilio não concorda. Mercedes então

conta que ela estava grávida e fez um aborto no qual quase morreu e do qual levou quase dois

meses para se recuperar. Por esse afastamento, sua carreira quase terminou, porque ficou sem

trabalho, mas uma nota na revista “Antena”, a salvou: “Si Eva Duarte no trabaja es porque no

le ofrecen papeles a su altura” (SE, p. 253),117 além de um romance com o tenente coronel que

dirigia as rádios.

Mercedes conta que todos os homens com os quais Evita se envolveu eram casados e

ela estava num estado de indiferença em que não amava ninguém. Seu estado emocional a

preocupava, pois temia que pudesse cometer suicídio (SE, p. 253).

Emilio Kaufman encontra novamente Eva em 1950, quando já era Evita, mas:

― No me reconoció ― dijo Emilio ―, o fingió que no me reconocía. Era otra.

Parecía llena de luz. Parecía que en vez de un alma tuviera dos, o muchas. Pero la

tristeza seguía rondándola. Cuando ella menos se daba cuenta, la tristeza le tocaba el

hombro y le recordaba el pasado. (SE, p. 253)118

116 Em português: “Desde que chegara a Buenos Aires, tinha sido destratada e vexada tantas vezes que nada mais

a surpreendia: acumulava em sua memória um longo catálogo de injúrias que, mais dia, menos dia, pensava

vingar. A de Mentasti foi uma das piores. Nunca o perdoou, porque não queria perdoar ninguém. Se Eva chegou

a ser alguém, disse Emilio, foi porque resolveu não perdoar” (p. 214).

117 Em português: “Se Eva Duarte não trabalha é porque não lhe oferecem papéis à altura” (p. 217). 118 Em português: “― Não me reconheceu ― disse Emilio ―, ou fingiu não me reconhecer. Era outra. Parecia

cheia de luz. Parecia que em vez de uma alma tivesse duas, ou muitas. Mas a tristeza continuava ali, rondando.

Quando ela menos esperava, a tristeza cutucava seu ombro para lhe lembrar o passado” (p. 217).

91

Martínez narrador desconfia do relato de Kaufman e coteja as informações ali contidas

com memórias de outras pessoas (SE, p. 253). O narrador utiliza os relatórios do serviço de

inteligência militar que estavam em poder do Coronel Moori Koenig para confirmar a

informação sobre o afastamento de Eva, em 1943. O Coronel lê a ficha em que se perguntava:

Durante los primeiros siete meses de 1943, la Difunta desapareció. No actuó en la

radio ni en el teatro. Las revistas de espectáculos casi no la nombran. ¿Qué sucedió

en ese lapso? Estuvo enferma, prohibida, retirada en Junín? Tradujo, con desgano,

la última línea: “Mercedes Printer, que la acompañó en el Otamendi y Miroli, ha

contado…” (SE, p. 287, grifo do autor)119

Em setembro de 1943, Evita foi contratada na Rádio Belgrano “para interpretar a las

grandes mujeres de la historia” (SE, p. 183).120 Com um salário melhor, conseguiu se mudar

para um apartamento modesto na rua Posadas. O narrador destaca sua péssima dicção e o fato

de que “para la gente de bien, que oía poca radio, Evita era sólo una cómica que entretenía a

los coroneles y a los capitanes de fragata. Nadie pensaba en ella como un peligro” (SE, p.

183).121

Segundo a narrativa, Eva conheceu Perón em janeiro de 1944, durante um festival

beneficente em favor das vítimas do terremoto de San Juan (SE, p. 189). De acordo com o

narrador, Eva estava acompanhando o tenente coronel Aníbal Imbert, diretor dos Correios e

Telégrafos, a quem devia o favor de lhe haver conseguido o contrato com a Rádio Belgrano.

Embora o acompanhasse, queria conhecer o “coronel del pueblo” (SE, p. 190),122 “sentía que

algo los predestinaba a estar juntos: Perón era el redentor, ella la oprimida” (SE, p. 191).123

O narrador coloca em sua boca a frase “gracias por existir”,124 que Eva teria dito a

Perón quando falou com ele pela primeira vez e isso o teria impressionado. Segundo o

narrador, ela não se lembra em LRMV de haver dito tal frase, mas ele, pesquisando para sua

escrita, assistiu a dezesseis noticiários de vários países sobre o terremoto e o festival

119 Em português: “Durante os primeiros sete meses de 1943, a Falecida desapareceu. Não atuou no rádio nem

no teatro. As revistas de espetáculos quase não citam seu nome. O que aconteceu nesse período? Esteve doente,

proibida, reclusa em Junín? Traduziu a última linha, por pura inércia: ‘Mercedes Printer, que a acompanhou no

Otamendi y Miroli, contou que...’” (p. 246, grifo do autor).

120 Em português: “para interpretar as grandes mulheres da história” (p. 159).

121 Em português: “Para a gente de bem, que ouvia pouco rádio, Evita não passava de uma comediante ao gosto

de coronéis e capitães-de-fragata. Ninguém pensava nela como um perigo” (p. 159).

122 Em português: “Coronel do Povo” (p. 165).

123 Em português: “sentia que alguma coisa os predestinava a estarem juntos: Perón era o redentor, ela a

oprimida” (p. 166). 124 Em português: “obrigada por existir”.

92

beneficente guardados pelo Arquivo Nacional de Washington e viu o momento em que ela

disse esta frase (SE, p. 192).

Em outubro de 1945, após o episódio de sua prisão e posterior aclamação popular,

Perón casa-se com Eva (SE, p. 88). Em 1947, Eva já era outra pessoa. Foi capa da revista

Time ao retornar da viagem que fez à Europa

que los corresponsales bautizaron como “la travesía del arco iris”. No tenía ningún

cargo oficial, pero en todas las partes la recibieron los jefes de Estado, el Papa, las

multitudes. En Río de Janeiro, penúltima escala de su viaje, los cancilleres

americanos le dieron la bienvenida e interrumpieron su conferencia para brindar por

ella. Los que no le habían prestado atención como actriz la odiaban ya como ícono

del peronismo analfabeto, bárbaro y demagogo. (SE, p. 183)125

O tema da viagem transformadora é presente no gênero hagiográfico, no entanto,

curiosamente, em SE, não se aborda detidamente a viagem à Europa, considerada por outros

biógrafos como um divisor de águas para Eva Perón, inclusive por ela própria em sua

autobiografia. Há apenas um vislumbre de sua transformação no trecho citado acima em que

se reconhece a importância da viagem. Em outro ponto da narrativa, diz que Evita assistiu

sozinha a um documentário sobre sua viagem, mas ordenou que ele fosse destruído (SE, p.

220).

Sua principal obra, a Fundação de Ajuda Social María Eva Duarte de Perón, foi

fundada em 1948, com o objetivo de oferecer “uma vida digna a las clases sociales menos

favorecidas” (SE, p. 189).126 Com o trabalho na fundação, aproxima-se ainda mais das classes

populares, fato que, posteriormente, alimentará seu mito. Segundo o narrador, o primeiro

elemento que constrói o mito de Evita é sua ascensão meteórica “desde el anonimato de

pequeños papeles en la radio hasta un trono en el que ninguna mujer se había sentado: el de

Benefactora de los Humildes y Jefa Espiritual de la Nación” (SE, p. 183).127

Martínez narrador destaca como tornou-se autoritária, chegando a atuar como um

homem, de acordo com os códigos culturais da época. Mandava demitir atores por capricho

ou vingança, dava ordens nas horas mais impróprias, não dormia atendendo seus

descamisados (SE, p. 184). Eva Perón torna-se Evita, a mãe dos descamisados, representando

125 Em português: “que os correspondentes batizaram de ‘a travessia do arco-íris’. Não ocupava nenhum cargo

oficial, mas aonde quer que fosse era recebida por chefes de Estado, pelo papa, por multidões. No Rio de

Janeiro, penúltima escala de sua viagem, os chanceleres americanos foram dar-lhe as boas-vindas e

interromperam a conferência de cúpula para erguer um brinde em sua homenagem. Aqueles que não tinham

reparado nela como atriz agora a odiavam como ícone do peronismo analfabeto, bárbaro e demagogo” (p. 160).

126 Em português: “uma vida digna às classes sociais menos favorecidas” (p. 164).

127 “do anonimato de papéis secundários no rádio a um trono jamais ocupado por mulher alguma: o de Benfeitora

dos Humildes e Chefe Espiritual da Nação” (p. 159).

93

o mais importante e destacado papel de sua vida. Desenvolveu uma personalidade forte que

polarizou o país entre os que a amavam e os que a odiavam, fato que gerou uma série de

formas de designá-la, como analisado a seguir.

3.3 Nomes de Evita

Amada pelos descamisados e pelos grasitas, Eva Perón é por eles carinhosamente

chamada Evita, que também a chamam Mãe – La madre de los descamisados. Isto

imediatamente permite remeter à figura da mãe no Cristianismo, a Mãe de Cristo, Maria,

Nossa Senhora, como chamada pelos devotos. A Mãe Evita também é “Santa Evita”, no

entanto é santa no culto popular, não reconhecida, muito menos oficializada pela Igreja

Católica. Evita é reverenciada pelo povo e canonizada pela cultura pop.

A expressão “Santa Evita” utilizada por Tomás Eloy Martínez para nomear seu

romance é difundida a partir da canção homônima de Andrew Lloyd Webber e Tim Rice

(música e letra, respectivamente) integrante do musical Evita (1976). Nesta canção, crianças

fazem uma prece a Evita, unindo suas vozes às de trabalhadores em louvor à Mãe Evita, SE.

Alvo das atenções peronistas através da Fundação de Ajuda Social María Eva de Perón, na

canção, as crianças expressam sentimento semelhante à devoção religiosa:

Santa Evita

[Children:]

Please, gentle Eva, will you bless a little child?

For I love you, tell Heaven I'm doing my best

I'm praying for you, even though you're already blessed

Please, mother Eva, will you look upon me as your own?

Make me special, be my angel

Be my everything wonderful perfect and true

And I'll try to be exactly like you

Please, holy Eva, will you feed a hungry child?

For I love you, tell Heaven I'm doing my best

I'm praying for you, even though you're already blessed

Please, mother Eva, will you feed a hungry child?

For I love you ([Che:] Turn a blind eye, Evita)

Tell Heaven I'm doing my best ([Che:] Turn a blind eye)

I'm praying for you, even though you're already blessed

[Workers:]

Santa SE

Madre de todos los ninos

De los tiranizados, de los descamisados

94

De los trabajadores, de la Argentina.128 (WEBBER; RICE, 1976)

O reconhecimento público de Evita mostra-se através do modo como é chamada.

Gerou amor ou aversão. Evita despertava sentimentos apaixonados, enquanto os humildes

amavam-na, a elite a odiava: “Los argentinos que se consideraban depositários de la

civilización veían en Evita una ressurrección obscena de la barbarie. (...) La súbita entrada en

escena de Eva Duarte arruinaba el pastel de la Argentina culta” (SE, p. 70). No romance, o

narrador aponta os apelativos com os quais os militares a mencionavam: “a Evita se le decía

“esa mujer”, pero en privado le reservaban epítetos más crueles. Era la Yegua o la Potranca,

lo que en el lunfardo129 de la época significaba puta, copera, loca” (SE, p. 22). Enumera

outros, além destes: “Bicha, Cucaracha, Friné, Estercita, Milonguita, Butterfly” (SE, p. 131).

O narrador esclarece em nota de pé de página:

Yegua y Potranca eran formas corrientes de aludir a Evita entre los oficiales

opositores a Perón desde, por lo menos, comienzos de 1951. Friné y Butterfly fueron

apodos puestos de moda por las columnas de Ezequiel Martínez Estrada en el

semanario Propósitos. Bicha y Cucaracha eran, según Botana [Helvio Botana],

nombre de la vagina en el lunfardo carcelario. Estercita y Milonguita derivan del

tango “Milonguita”, compuesto en 1919 – año del nacimiento de Evita – por Samuel

Linning y Enrique Delfino. Su estrofa más celebrada es ésta: ¡Estercita! / Hoy te

llaman Milonguita, / flor de lujo y de placer, / flor de noche y cabaret. / !Milonguita!

/ Los hombres te han hecho mal, y hoy darías toda tu alma / por vestirte de percal.

(SE, p. 131)130

128 Versão brasileira por Claudio Botelho (2013):

CRIANÇAS: Oh, doce Eva / Abençoai, olhai por nós / As crianças / E nós pedimos louvor / Rezamos que Deus /

Vos proteja de toda dor

Oh, mãe Evita / Vosso olhar sobre nós derramai / Com bondade /Como um anjo / Sede o véu que nos cobre de

toda aflição / E seremos nós / A vossa oração!

Oh, santa Eva / Vinde a nós, alimentai / As crianças / E nós pedimos louvor / Rezamos que Deus / Vos proteja de

toda dor

CHE: Evita, eles são crianças / É fácil laçar

CRIANÇAS & TRABALHADORES: Santa, Santa Evita / Madre de todos los niños / De los tiranizados / De los

descamisados / De los trabajadores / Del’Argentina

TRABALHADORES: Santa, Santa Evita / Madre de todos los niños / De los tiranizados / De los descamisados /

De los trabajadores /Del’Argentina

CHE: Para quê ser chefe de estado / Se podes virar santa?!

129 Gíria tradicionalmente empregada em Buenos Aires e seus arredores por imigrantes e marginais. Parte de seus

vocábulos e locuções difundiram-se na linguagem coloquial e no resto do país, segundo o Diccionario del habla

de los argentinos (2008, p. 416).

130 Em português: “Yegua [égua] e Potranca eram maneiras de os oficiais opostos a Perón se referirem

corriqueiramente a Evita desde, pelo menos, 1951. Friné [lendária prostituta da Roma antigua] e Butterfly

[borboleta] foram apelidos lançados por Ezequiel Martínez Estrada na sua coluna do semanário Propósitos.

Bicha [eufemismo para cobra] e Cucaracha [barata] eram, conforme Botana, nomes para vagina na gíria

carcerária portenha. Estercita e Milonguita derivam do tango “Milonguita”, composto em 1919 ― ano do

nascimento de Evita ― por Samuel Linning e Enrique Delfino. Sua estrofe mais celebrada é a seguinte: Estercita

/ Hoje te chamam Milonguita, / Flor de luxo e de prazer, / flor de noite e cabaré. / Milonguita! / Os homens te

fizeram mal, / e hoje darias toda a alma / por vestir-te de percal” (p. 114).

95

Apesar dos apelidos depreciativos, o modo carinhoso e familiar com o qual é

chamada, Evita, revela o sentimento daqueles que lhe outorgaram variados títulos honoríficos:

Abanderada de los Humildes, Dama de la Esperanza, Collar de la Orden del

Libertador General San Martín, Jefa Espiritual y Vicepresidente Honorario de la

Nación, Mártir del Trabajo, Patrona de la provincia de La Pampa, de la ciudad de La

Plata y de los pueblos de Quilmes, San Rafael y Madre de Dios. (SE, p. 20)131

No romance, o tratamento do cadáver perpetua a dicotomia dos modos de nomear

Evita. O embalsamador, doutor Pedro Ara, queria proteger e preservar o cadáver, e a ele se

referia de modo respeitoso, chamando-o Senhora (SE, p. 132). Em oposição, o coronel Moori

Koenig nutria ódio pelo cadáver e queria destruí-lo, ainda que não o pudesse fazer. Para

referir-se a ele, Koenig alterna nomes depreciativos e outros cheio de respeito, como um

resultado da transformação que nele se opera a partir do contato com o cadáver, pelo qual

desenvolve ideia fixa: Esa mujer, Persona, Madre.

Chamá-la Senhora, substantivo similar ao da Virgem Maria – Nossa Senhora – indica

passagem ao âmbito do sagrado. De Senhora, Evita passa a Santa, Santa Evita, Nossa Mãe

(SE, p. 262, 390). Seu nome original, María Eva, poderia ser tomado como um vaticínio de

seu destino mítico. De acordo com a tradição judaico-cristã, Eva foi a primeira mulher, a mãe

da humanidade e também a primeira pecadora. Seu primeiro nome, María, por sua vez, é o da

mãe, da protetora de todos, da bondosa consoladora que intercede diante de Deus por seus

filhos, a compadecida.

Há controvérsias sobre a ordem de seus nomes. O narrador de SE (1995, p. 135))

menciona que examinou documentos sobre seu nascimento, e que um deles traz a informação

de que seu nome seria Eva María Ibarguren. Tal informação é possível de ser encontrada

extratextualmente: em seu primeiro registro escolar, em Junín, consta Eva María

(NAVARRO, 1994, p. 1994). Provavelmente, este fato que pode ter sido um simples erro

gerou especulações e há quem afirme, como Alicia Poderti (2010, p. 77), que seu nome seria

Eva María e que, para o casamento com Perón, foi alterado, colocando-se o nome da santa

antes do nome da pecadora, da mesma forma como foi alterada a data de seu nascimento. Não

há como precisar tal informação, apenas se chama a atenção para o fato objetivo de que em

seu nome, não importando a ordem, estava o que Evita representava: a santa e a pecadora.

O termo Persona, com o qual o coronel Moori Koenig designa o cadáver, é utilizado

também por Milton Galarza, capitão que integrou o operativo de sequestro e ocultação do

131 Em português: “Defensora dos Humildes, Dama da Esperança, Colar da Ordem do Libertador General San

Martín, Chefe Espiritual e Vice-presidente Honorária da Nação, Mártir do Trabalho, Padroeira da província de

La Pampa, das cidades de La Plata, Quilmes, San Rafael e Madre de Dios” (p. 19).

96

cadáver liderado pelo coronel. Galarza, ao transportar o cadáver em um caminhão, sofre um

acidente que o desfigura. No hospital, recebe a notícia da morte de dois soldados no acidente,

mas “Persona, para variar, estaba ilesa” (SE, p. 326). Sobre as consequências do acidente,

apresentado como uma das maldições do cadáver, diz o narrador:

En el relámpago del accidente, Galarza había perdido a la vez la carrera, la salud y la

confianza en sí mismo. Los vidrios del parabrisas lo habían desfigurado. Un corte

profundo en los músculos flexores le impedía mover la mano izquierda. Su esposa, a

la que había compadecido y despreciado, ahora lo compadecía a él. Ninguno de los

destinos con los que había soñado se cumplieron: no había ascendido a mayor;

estaba obligado a retirarse del ejército, los fantasmas de los tobas y mocovíes a los

que había matado en Clorinda le atormentaban las noches. Había odiado a Perón aun

antes de que fuera Perón; había conspirado para matarlo un vergonzoso día de 1946.

Ahora, ya no pensaba en él. Sólo odiaba a Persona, que había tejido la red de su

desgracia. (SE, p. 327)132

O capitão Galarza também sofre transformação. É designado para levar o cadáver à

Itália, sob identidade falsa. Durante a viagem de navio, desenvolve o hábito de conversar com

o cadáver, imaginando que ouve respostas:

Le referia las incontables enfermidades de su mujer y la infelicidad de una vida sin

amor: “Te hubieras separado”, le decía Persona. “Hubieras pedido perdón”. Oía fluir

la voz entre las torres de la carga o al otro lado del casco, en el mar. Pero cuando

regresaba al camarote se repetía que la voz sólo podía estar adentro de él, en alguna

hondura del ser que desconocía. ¿Y si Dios fuera una mujer?, pensaba entonces. ¿Si

Dios moviera sus pechos dulcemente y fuera una mujer? Eso a quien le importaba.

Dios podía ser lo que quisiera. Nunca había creído en Él, o en Ella. Y no era el

momento de empezar. (SE, p. 334)133

Perto do fim da viagem, tem uma percepção: “La amaba: se dijo. Amaba a Persona, y

la odiaba” (SE, p. 335).134 O tema do amor e ódio relacionado a Eva Perón é recorrente.

Persona traduz-se do espanhol para o português como “pessoa”, mas não apenas isso,

sua utilização no romance permite fazer referência ao conceito junguiano. De acordo com

Jung (2000, p. 30), a persona é a máscara do ator com a qual encobrimos a face que não

132 Em português: “No relâmpago do acidente, Galarza tinha perdido de uma só vez a carreira, a saúde e a

confiança em si mesmo. Os vidros do pára-brisa o desfiguraram. Um corte profundo nos músculos flexores o

impedia de mexer a mão esquerda. Sua mulher, por quem tanta pena e desprezo ele sentira agora era quem sentia

pena dele. Nenhum daqueles destinos com que ele tanto sonhara se tinha cumprido: não fora promovido a major,

era obrigado a deixar o Exército, os fantasmas dos índios que assassinara em Clorinda vinham atormentar suas

noites. Tinha odiado Perón antes mesmo de ele ser Perón; tinha conspirado para matá-lo em um vergonhoso dia

de 1946. Agora, não pensava mais nele. Todo seu ódio era para Pessoa, que havia tecido a rede de sua desgraça”

(p. 281).

133 Em português: “Relatava-lhe as incontáveis doenças de sua mulher e a infelicidade de sua vida sem amor.

“Você devia ter se separado”, dizia Pessoa. “Pedido perdão a ela.” Ouvia a voz entre as colunas de carga ou do

outro lado do casco, no mar. Mas quando voltava ao camarote repetia a si mesmo que a voz só podia estar dentro

dele, em algum recanto do ser que desconhecia. E se Deus fosse mulher?, pensava então. E se Deus balançasse

seus peitos docemente e fosse uma mulher? Quem é que ligava para isso? Deus podeia ser o que bem entendesse.

Nunca acreditara n’Ele, ou n’Ela. E agora não era o momento de começar” (p. 287).

134 Em português: “Ele a amava: disse consigo. Amava Pessoa e a odiava” (p. 288).

97

mostramos ao mundo; é o que não se é realmente, mas sim aquilo que os outros e a própria

pessoa acham que se é; “é o sistema da adaptação ou estilo de nossa relação com o mundo”

(JUNG, 2000, p. 128). A persona constitui, portanto, a face polida que apresentamos aos

outros, adaptando-nos às mais diversas situações.

Esclarece Jung (2000, p. 128) que o perigo está no eu identificar-se com a persona de

modo a não alternar os papéis sociais que representa. Ora, isto remete ao ocorrido com o

próprio coronel Moori Koenig, designado na narrativa como Coronel, que tem sua psique

alterada em contato com o cadáver de Evita, tornando-se obsessivamente o responsável pelo

corpo, não querendo afastar-se dele, a ponto de perturbar sua vida familiar e profissional, ou

seja, o Coronel não alterna suas personas, passa a apresentar apenas uma: a face do coronel

incumbido da missão de sequestrar e ocultar o cadáver. A passagem a seguir exemplifica essa

proposição:

El Coronel llevaba meses atormentándose por haber dejado marchar a Evita. Nada

tenía sentido sin Ella. Cuando bebía (y cada noche de soledad bebía más), se daba

cuenta de que era una estupidez seguir llevándola de un lado a otro. ¿Por qué tenía

que entregarla a gente desconocida para que la cuidara? ¿Por qué no le permitían

hacerlo a él, que la iba a defender mejor que nadie? Lo mantenían lejos de su

cuerpo, como si se tratara de una novia virgen. Era una estupidez, pensaba, tomar

tantas precauciones con una mujer casada, ya mayor, que desde hacía más de tres

años estaba muerta. Dios mío, cómo la extrañaba. ¿Era él quien daba las órdenes o

eran otros? Se había perdido a sí mismo. Esa mujer o el alcohol o la fatalidad de ser

un militar lo habían perdido. (SE, p. 255)135

Nas fichas que escrevia sobre Evita, o Coronel

la llamaba a veces Persona, a veces Difunta, a veces ED o EM, abreviando Eva

Duarte y Esa Mujer. Cada vez era más Persona y menos Difunta: él lo sentía en su

sangre que se enfermaba y cambiaba, y en otros como el mayor Arancibia y el

teniente primero Fesquet, que ya no eran los mismos. (SE, p. 257)136

Aos olhos do Coronel, Eva Perón, mesmo morta, assume uma de suas personas, um de

seus papéis sociais, a representação da mulher transformadora, diante da qual todos sofrem

modificações. Desta forma, o cadáver de Eva Perón personifica Evita, guardando

135 Em português: “Durante meses o Coronel se atormentou por ter deixado Evita partir. Nada fazia sentido sem

Ela. Quando bebia (e cada noite de solidão ele bebia mais), percebia que era uma estupidez continuar a levá-la de

um lugar para o outro. Por que tinha de entregá-la a pessoas desconhecidas para que cuidassem dela? Por que

não a deixavam com ele, que iria defendê-la melhor do que ninguém? Eles o mantinham longe de seu corpo,

como de uma noiva virgem. Era uma besteira, pensava ele, tomar tantas precauções com uma mulher casada, já

madura, morta fazia mais de três anos. Meu Deus, que saudade sentia dela. Afinal, era ele quem dava as ordens

ou eram os outros? Tinha perdido a si próprio. Essa mulher, ou o álcool, ou a fatalidade de ser um militar o

perderam” (p. 219).

136 Em português: “às vezes a chamava de Pessoa, às vezes de Falecida, às vezes ED ou EM, abreviando Eva

Duarte e Essa Mulher. Era cada vez mais Pessoa e menos Falecida: ele podia sentir em seu próprio sangue, que

estava mudando e adoecendo, e nos outros, como o major Arancibia e o tenente Fesquer, que já não eram os

mesmos” (p. 220).

98

permanentemente o papel mais destacado que representou e torna-se uma das relíquias de seu

culto, além de funcionar como um dos elementos que permitem a irrupção do maravilhoso na

obra, como analisado a seguir.

3.4 A irrupção do maravilhoso: maldições, milagres e relíquias de “Santa” Evita

A hagiografia relaciona-se ao imaginário do sagrado, ao qual também aflui o mito.

Segundo Mircea Eliade (2004, p. 11), o mito narra uma história sagrada; para os antigos, os

mitos relatavam uma gênese divina, ou seja, de que modo algo foi produzido e começou a ser,

a partir dos feitos dos deuses. Frente à manifestação do sagrado, entendido como algo distinto

do profano, o homem vê-se diante de uma realidade outra, sobrenatural, maravilhosa. Ao

manifestar o sagrado, um objeto qualquer pode tornar-se outra coisa, simbolizar novos

sentidos. É possível dizer que isto ocorre com Evita e seu corpo. Eva Perón, a partir de sua

participação na vida política da Argentina, torna-se, depois de sua morte, um mito. E seu

corpo simboliza este mito.137

O cadáver embalsamando antecipa a promessa presente no imaginário cristão da

incorruptibilidade alcançável no porvir, quando todos comparecerão diante de Deus para

julgamento de suas obras recebendo prêmio ou castigo, gozo ou sofrimento eterno. No

imaginário cristão, a imagem do corpo possui grande produtividade. A Igreja constitui o corpo

místico de Cristo. Observa-se o corpo não como é em sua essência, individual, mas ampliado,

como representação do coletivo.

À época de publicação do romance SE (1995) já se haviam passado quarenta e três

anos desde a morte de Eva Perón. Entretanto, Evita continuava (e continua ainda hoje) sendo

uma referência para os argentinos. É um dos personagens históricos sobre quem mais se

escreveu na Argentina, permitindo a atualização de seu mito sob variadas formas.

Estabelecer uma origem para o santo cuja vida se narra é uma preocupação na

hagiografia. Destaca-se no romance a origem humilde de Evita, pobre, filha natural, atriz

medíocre que, no entanto, se transformou rapidamente após conhecer Perón. A origem de

Evita é apresentada como determinante em sua trajetória e atuação. Seu desejo de solucionar

os problemas elementares da classe baixa (sobrevivência, trabalho, moradia e saúde) reflete as

carências e privações pelas quais passou. Da mesma forma, seu desejo de justiça social está

relacionado às humilhações que sofreu na infância, assim como sua ação de presentear

137 O último capítulo deste trabalho, “Margens confluentes: o imaginário evitista”, analisa a mitologia de Evita.

(p. 147)

99

brinquedos às crianças se associa à falta deles em sua meninice. A ideia apresentada é que a

origem de Evita a define e gera identificação com os pobres; justamente por ter sido pobre e

ilegítima conhece tão bem os grasitas.

Evita converte-se em objeto de culto popular, segundo Martínez narrador, que

comenta: “Las flores silvestres y las velas encendidas son, para el culto popular, ofrendas

inseparables de los retratos de Evita, que se veneran como si fuesen santos o vírgenes

milagrosas. Y con la misma unción, ni más ni menos” (SE, p. 194).138

O narrador apresenta uma lista de alguns dos cem itens que fazem parte das relíquias

de Evita das quais tem conhecimento, dentre os quais um canário embalsamado que havia

presenteado a alguém; a mancha de batom que deixou numa taça de champagne; os

exemplares autografados de LRMV; uma bata exibida num local que ficou conhecido como o

Museu do Sudário e, por fim, a principal relíquia: “el cuerpo momificado de la propia Evita”

(SE, p. 194).139

Com o embalsamamento do cadáver, Perón tinha expectativa de eternizar Evita. O

corpo está no plano do visível, mostrado. O cadáver, do invisível, oculto, ocultado. Um

cadáver que não se corrompe altera, transgride as leis naturais de decomposição e

desaparecimento. Um cadáver que não se sepulta, nem se destrói, altera a ordem das coisas. O

cadáver de Evita não é ocultado segundo as regras normais de sepultamento (e posterior

decomposição). É embalsamado para ser exibido, mostrado. No entanto, é ocultado, pois é

sequestrado e escondido em local não sabido por vários anos. Tudo isto contribui para o

crescimento do mito de Evita.

Ao contrário do observado por Eliane Moraes (2010) sobre o corpo como

representação da fragmentação humana na modernidade, manifesta nas artes plásticas no final

do século XIX e meados do século XX de forma dilacerada, decomposta, sendo a mesa de

dissecação fundamental para a dilaceração, o corpo de Evita representaria unidade. A mesa de

embalsamamento, as técnicas da taxidermia mantêm a unidade do cadáver, representando,

portanto, a permanência, não de Evita, pois é corpo morto, logo sem alma, mas de um ideal

coletivo. O cadáver esvaziado de alma individual atraiu para si e em si aglutinou a alma da

nação.

138 Em português: “As flores silvestres e as velas acesas são, para o culto popular, oferendas inseparáveis dos

retratos de Evita, que são venerados como as imagens de santos ou virgens milagrosas. E com a mesma devoção,

nem mais, nem menos” (p. 168).

139 Em português: “o corpo mumificado da própria Evita” (p. 169).

100

Os militares golpistas, após a queda de Perón, ficam sem saber o que fazer com o

cadáver, dada sua alta carga de significação. Embora contrariados, reconheciam que o cadáver

de Evita representava a nação:

– Usted sabe muy bien lo que está en juego – dijo el Coronel y se levantó a su vez. –

No es el cadáver de esa mujer, sino el destino de la Argentina. O las dos cosas, que a

tanta gente le parecen una. Vaya a saber cómo el cuerpo muerto e inútil de Eva

Duarte se ha confundiendo con el país. No para las personas como usted o como yo.

Para los miserables, para los ignorantes, para los que están fuera de la historia. Ellos

se dejarían matar por el cadáver. Si se hubiera podrido, vaya y pase. Pero al

embalsamarlo, usted movió la historia de lugar. Dejó a la historia dentro. Quien

tenga la mujer, tiene el país en un puño, ¿se da cuenta? El gobierno no puede

permitir que un cuerpo así ande a deriva. (SE, p. 34)140

Observa-se, com este diálogo, que o corpo de Evita, símbolo de seu mito, poderia dar

significado às pessoas, retirando-as da marginalidade e exclusão, inserindo-as na história.

Caso não houvesse sido embalsamado, se decomporia e assim a história seguiria seu curso.

No entanto, conservado o cadáver, mantêm-se as esperanças de uma sociedade diferente na

qual os descamisados teriam vez. Os militares temiam que o povo, apossando-se do cadáver,

fizesse a revolução. As esperanças do povo não estavam mais nas ações de Evita, mas num

símbolo de fé. Enquanto viva, Evita comunicava esperança. Mesmo morta, ainda exala

esperança, catalisa expectativa, por isso o povo aferra-se a seu corpo morto, logo, este corpo é

sequestrado e ocultado pelos militares para quem Evita morta é mais perigosa do que viva

(SE, p. 25).141

O romance, misturando história (não ficção) e ficção, apresenta a tese de que o doutor

Pedro Ara havia feito duas cópias em cera do cadáver e que isto teria possibilitado aos

militares sua ocultação em alto grau de dificuldade, pois teriam enviado o corpo real e as

cópias a lugares diferentes e distantes. Observa-se que a existência de cópias do cadáver era

140 Em português: “― O senhor sabe muito bem o que está em jogo ― disse o Coronel, levantando-se por sua

vez. ― Não é o cadáver dessa mulher, mas o destino da Argentina. Ou as duas coisas, que para tanta gente

parecem uma só. Sabe-se lá como o corpo morto e inútil de Eva Duarte se foi confundindo com o país. Não para

pessoas como o senhor ou como eu. Mas para os miseráveis, para os ignorantes, para os que estão fora da

história. Esses são capazes de se deixar matar por causa do cadáver. Se tivesse apodrecido, isso logo passaria.

Mas ao embalsamá-la o senhor tirou a história de lugar. Pôs a história aí dentro. Quem tiver a mulher, terá o país

em suas mãos, entende? O governo não pode permitir que um corpo assim fique a deriva” (p. 31).

141 A ideia da sacralização de corpos de políticos na Argentina é recorrente. Segundo Cláudio Negrete, autor de

Necromanía, historia de una pasión argentina, em artigo especial para a Folha (2011): “A morte exerce um

papel central e exagerado na vida dos argentinos. Com o tempo, desenvolvemos uma cultura própria à qual dei o

nome de “necromania”, ou seja, o hábito de repetir abusos e excessos com a morte e seus principais

protagonistas, os mortos.

Porque aqui os mortos parecem desfrutar de boa saúde, se deslocam pelo país, são usados como instrumentos de

lutas pelo poder, como objetos de satisfação pessoal. Continuamos obcecados em remover as cinzas dos

próceres, em festejar as datas em que morreram e convertê-las em feriados turísticos”.

O tema, por si só, mereceria um trabalho a parte, no entanto, não é possível empreendê-lo no momento.

101

uma especulação que circulava nos meios de comunicação durante o período em que esteve

desaparecido o corpo. Tal especulação, no romance, ganha estatuto de veracidade.

Os militares têm consciência da transformação do cadáver num símbolo, como afirma

Arancibia, o Louco:

Si hubiéramos matado al embalsamador, el cuerpo se habría corrompido solo. Ahora

es un cuerpo demasiado grande, más grande que el país. Está demasiado lleno de

cosas. Todos le hemos ido metiendo algo adentro: la mierda, el odio, las ganas de

matarlo de nuevo. Y como dice el Coronel, hay gente que también ha metido su

llanto. Ya ese cuerpo es como un dado cargado. El presidente tiene razón. Lo mejor

es enterrarlo, creo. Con otro nombre, en otro lugar, hasta que desaparezca. (SE, p.

154)142

Martínez narrador afirma, misticamente, o poder transformador do cadáver de Evita.

Diante deste “el sentido común de las personas terminaba por moverse de lugar. Qué sucedía

no se sabe. Les cambiaba la forma del mundo” (SE, p. 27).143 Em sua narrativa, o doutor

Pedro Ara envolveu-se afetivamente com o cadáver enquanto o manuseava durante o processo

de embalsamamento e resistiu a entregá-lo aos militares quando ordenado, embora sem

sucesso. Da mesma forma, o Coronel misturava ódio e amor pelo cadáver, golpeando-o,

submetendo-o a necrofilia, mutilando-o, chegando a enlouquecer quando se vê afastado por

seus superiores das operações de ocultação. Apresenta-se a ideia de que o cadáver traria

alguma maldição, como se percebe no diálogo entre o narrador e a viúva do Coronel:

(…) Toda la gente que anduvo con el cadáver acabó mal.

– No creo en esas cosas – me oí decir.

La viuda se puso de pie y yo sentí que era hora de irme.

– ¿No cree? – Su tono había dejado de ser amistoso. – Que Dios lo ampare,

entonces. Si va a contar esa historia, debería tener cuidado. Apenas empiece a

contarla, usted tampoco tendrá salvación. (SE, p. 59)144

O narrador sente-se preso num malefício, sente-se mal, recebe diagnóstico de

hipertensão (SE, p. 76). Menciona-se a maldição de Tutankamon através do Coronel Moori

142 Em português: “Se tivéssemos matado o embalsamador, o corpo teria se corrompido sozinho. Agora é um

corpo grande demais, maior que o país. Está muito cheio de coisas. Todos nós fomos enfiando alguma coisa

nele: a merda, o ódio, a vontade de matá-la de novo. E como diz o Coronel, também tem gente que enfiou seu

choro. É como um dado viciado. O presidente tem razão. O melhor a fazer é enterrá-lo, eu acho. Com outro

nome, em outro lugar, até que desapareça” (p. 133).

143 Em português: “o senso comum das pessoas acabava deslocado. Ninguém sabia dizer o que ocorria. Aquilo

lhes alterava a forma do mundo” (p. 24). 144 Em português: “― Todas as pessoas que estiveram com o cadáver acabaram mal.

― Eu não acredito nessas coisas ― ouvi eu mesmo dizer.

A viúva levantou-se, e senti que havia chegado o momento de ir embora.

― Não acredita? ― Seu tom já não era amistoso. ― Neste caso, que Deus o proteja. Se pretende contar essa

história, deveria ter cuidado. Assim que começar a contá-la, o senhor não vai ter salvação” (p. 52).

102

Koenig que utilizava o pseudônimo de Lord Carnavon, “arqueólogo inglês que despertó a

Tutankamón de su descanso eterno y pagó esa osadía con la vida” (SE, p. 78).145

Além do Coronel, outros sofrem as maldições, como por exemplo o tenente Eduardo

Arancibia que esconde o cadáver em sua casa, e entra num processo de loucura, misturando a

leitura do Livro dos mortos com práticas necrófilas, conduzindo sua família à tragédia: uma

noite, Arancibia confunde sua esposa grávida com um ladrão e a mata (SE, p. 270).

Segundo Barthes (1978, p. 199), tudo o que é susceptível de ser julgado por um

discurso, pode constituir um mito. O cadáver, significante carregado de significado, torna-se

símbolo do mito de Evita. Por isso seu papel central na narrativa. O mito de Evita e seu

símbolo conferem identidade aos argentinos: “Esse cadáver somos todos nosotros. Es el país”

(SE, p. 387).146 Narrá-lo faz parte do processo de autoconhecimento experimentado pelo

narrador:

Hubo un momento en que me dije: Si no la escribo, voy a asfixiarme. Si no trato de

conocerla escribiéndola, jamás voy a conocerme yo. […] Desde entonces, he remado

con las palabras, llevando a SE en mi barco, de una playa a otra del ciego mundo.

No sé en qué punto del relato estoy. Creo que en el medio. Sigo, desde hace mucho,

en el medio. Ahora tengo que escribir otra vez. (SE, p. 390)147

Distante do cadáver, o Coronel percebia seu próprio vazio: “Soy un argentino, se

decía. Soy un espacio sin llenar, un lugar sin tempo que no sabe adónde va” (SE, p. 359).148

Se ser um argentino equivale a ser um espaço vazio, conhecer Evita seria preencher-se,

encontrar sua própria história.

Contribui para a mística do cadáver a representação do velório em várias capitais de

províncias e cidades distritais, onde a defunta era representada por fotografias (SE, p. 20). Em

seu serviço fúnebre, em Buenos Aires, recebeu honras de chefe de Estado, tendo seu velório

durado doze dias na sede da Secretaria do Trabalho. Mas em locais distantes, a representação

do velório permite aos pobres que não puderam peregrinar até a capital do país participar de

seu serviço fúnebre. Jorge Luís Borges, antiperonista, relata em seu conto El simulacro um

145 Em português: “arqueólogo inglês que perturbou o descanso eterno de Tutankâmon e pagou essa ousadia com

a própria vida” (p. 67).

146 Em português: “Esse cadáver somos todos nós. É o país” (p. 331)

147 Em português: “Houve um momento em que disse a mim mesmo: Se eu não a escrever, vou acabar asfixiado.

Se não tentar conhecê-la pela escritura, nunca vou conhecer a mim mesmo. [...] Desde então, tenho remado com

as palavras, levando Santa Evita em meu barco, de uma praia a outra do cego mundo. Não sei em que ponto do

relato estou. Acho que no meio. Continuo, há muito tempo, no meio. Agora tenho que escrever outra vez” (p.

335).

148 Em português: “Sou argentino, dizia a si mesmo. Sou um espaço sem preencher, um lugar sem tempo que não

sabe aonde vai” (p. 308).

103

destes velórios representados, no qual um homem recebe os pêsames como Perón e uma

boneca representa Evita falecida.

Em SE, o cadáver é tomado como boneca. Escondido num cinema desativado, El

Rialto, em Palermo, atrás da tela (o que remete à saída de cena da atriz Eva Duarte e mesmo

da personagem pública Evita após representar seu papel de maior sucesso na política

argentina), é encontrado pela menina Yolanda, filha do projetor de filmes José Nemesio que,

para manter o segredo, diz-lhe que o cadáver é uma boneca grande. Yolanda chama-o de Pupé

(boneca) e com ele passa a brincar em segredo até o momento em que o cadáver é transferido

para outro esconderijo (SE, p. 235).

Na narrativa, confundem-se política e misticismo. Enquanto o Coronel e seus

subordinados cumpriam ordens superiores para desaparecimento do cadáver de Evita, um

grupo misterioso, identificado apenas pela alcunha Comando da Vingança (CV), seguia seus

passos. Quando o Coronel pensava ter encontrado um esconderijo definitivo para o cadáver

nômade, surgiam flores e velas, o Comando da Vingança montava seu altar de devoção à

Evita, aterrorizando aqueles que pensavam que ninguém mais sabia de seus planos. Além dos

altares nos locais mais inesperados, o Comando da Vingança envia mensagens ao Coronel,

perturbando-o. O corpo sempre era encontrado pelo Comando da Vingança onde quer que o

escondesse. O inimigo parecia ser movido por uma obsessão mais profunda que a sua (SE, p.

256). Isto parece indicar que nem todos os militares eram contrários ao peronismo.

Segundo Beatriz Sarlo (2005, p. 96), o corpo de Evita é duplo – real e político –,

portanto fundamental ao regime peronista. Sarlo insiste que a doença que acometeu Evita fez

com que a importância de seu corpo crescesse, pois o transformou sem causar dano à sua

beleza, dando-lhe, ao contrário, um ar sublime e trágico (2005, p. 102). O caráter sublime

completou-se com sua morte: “A infinitude do sublime só se alcança pela via do excesso

passional” (2005, p. 108). A beleza de Evita se transformou, ampliando sua possibilidade de

investimento imagético.

Como é do conhecimento geral, Evita não se tornou santa realmente, mas de acordo

com o narrado em SE (1995), houve essa intenção por parte de seus fiéis:

Hasta su santidad fue convirtiéndose, con el tiempo, en un dogma de fe. Entre mayo

de 1952 – dos meses antes de que muriera – y julio de 1954, el Vaticano recibió casi

cuarenta mil cartas de laicos atribuyendo a Evita varios milagres y exigiendo que el

Papa la canonizara. El prefecto de la Congregación para la Causa de los Santos

respondía a todas las solicitudes con las fórmulas usuales: “Cualquier católico sabe

que para ser santo hay que estar muerto”. Y después, cuando ya la estaban

embalsamando: “Los procesos son largos, centenarios. Tened paciencia”. Las cartas

fueron tornándose cada vez más perentorias. Se quejaban de que, para ser santa,

María Goretti había esperado sólo cuarenta y ocho años y Teresa de Lisieux poco

más de veinticinco. Más llamativo, decían, era el caso de santa Clara de Asís, a

104

quien el impaciente Inocencio IV quería canonizar en el lecho de muerte. Evita

merecía más: únicamente la virgen María la superaba en virtudes. Que el Sumo

Pontífice tardara en admitir una santidad tan evidente era – leí en los diarios – “una

afrenta a la fe del pueblo peronista”. (SE, p. 66)149

Um sinal de sua santidade é relatado pelas primas de Julio Alcaraz, o cabelereiro de

Evita. Relatam que tiveram uma visão de Evita como uma santa elevando-se sobre a multidão

ao final de seu pronunciamento no Cabildo Aberto em que se anunciaria sua candidatura à

Vice-presidência:

“Vimos su cutis de porcelana”, me dijo la del bócio; “le vimos los dedos largos

como de pianista, la aureola luminosa alrededor del pelo”... La interrumpí: “Evita no

tiene ningua aureola”, dije. “A mí no me podés vender ese boleto”. “Sí tiene”, porfió

la de nariz más grande. “Todos se la vimos. Al final, cuando se despidió, también la

vimos elevarse del palco un metro, metro y medio, quién sabe cuánto, se fue

elevando en el aire y la aureola se le notó clarísima, había que ser ciega para no

darse cuenta. (SE, p. 118)150

O narrador não oferece nenhuma explicação para esse evento. Não lhe dedica sequer

um comentário. Isto não significa que não tivesse importância, pois, se assim fosse, não

haveria porque inclui-lo na narrativa. O modo como é narrado, simplesmente mencionado,

sem explicação, aproxima-se das narrativas do maravilhoso, nas quais não se esclarecem os

eventos miraculosos que apenas acontecem, irrompem, gerando efeito no leitor que irá

interpretar os fatos a sua maneira. Não há explicação, não há um motivo. O maravilhoso

simplesmente está ali e dali opera seu propósito, sua intenção de comunicar desestabilizando

certezas, gerando despertamento e tomada de consciência de formas ou comportamentos que

podem estar automatizados e irrefletidos, já não mais percebidos, apenas presentes, repetidos

mecanicamente sem reflexão. Como característico da hagiografia, o maravilhoso “caracteriza-

se pela raridade e pelo espanto que suscita, em geral admirativo. Ele afeta primariamente o

olhar e implica qualquer coisa de visual” (LE GOFF, 2002, p. 106).

149 Em português: “Até sua santidade, com o tempo, foi se tornando um dogma de fé. Entre maio de 1952 ― dois

meses antes de sua morte ― e julho de 1954, o Vaticano recebeu quase quarenta mil cartas de fiéis atribuindo

diversos milagres a Evita e exigindo que o papa a canonizasse. O prefeito da Congregação para a Causa dos

Santos respondia todos os pedidos com as fórmulas de praxe: ‘Qualquer católico sabe que para ser santo é

preciso estar morto’. E depois, quando já estava sendo embalsamada: ‘Os processos são longos, centenários.

Tende paciência’. As cartas foram se tornando cada vez mais contundentes. Reclamavam de que, para se tornar

santa, Maria Goretti havia esperado somente quarenta e oito anos, e Teresa de Lisieux pouco mais de vinte e

cinco. Mais gritante, diziam, era o caso de santa Clara de Assis, a quem o impaciente Inocêncio IV queria

canonizar ainda no leito de morte. Evita merecia mais: somente a Virgem Maria a superava em virtudes. O fato

de o Sumo Pontífice demorar a admitir uma santidade tão evidente era ― foi o que li nos jornais ― ‘uma afronta

à fé do povo peronista’.” (p. 57).

150 Em português: “‘Vimos sua pele de porcelana’, disse a do bócio; ‘vimos seus dedos longos de pianista, a

auréola luminosa em volta do cabelo’... Eu a interrompi: ‘Evita não tem nenhuma auréola’, disse. ‘Comigo essa

não cola.’ ‘Tem sim, teimou a nariguda. ‘Todo mundo viu. No fim, na hora de se despedir, também vimos como

ela levitava sobre o palco, um metro, um metro e meio, sei lá quanto, foi subindo no ar e a auréola apareceu

direitinho, só sendo cega para não ver.’”

105

O culto ao qual pertence a relíquia sagrada que é o cadáver de Evita é político.

Destina-se a uma época específica de surgimento e auge de políticas de ascensão da classe

trabalhadora no cenário econômico da Argentina. É dirigido não só a Evita, mas a Perón,

como culto personalista, que aponta para um retorno místico, apropriado pelos Montoneros na

resistência à ditadura militar dos anos 1970. Evita multiplica-se: “Transfigurada en mito,

Evita era millones” (SE, p. 65).151

3.5 Modo de narrar: autoficção, metáfora animal e alegoria da história

Em História e ficção em Santa Evita (CLÍMACO, 2014, p. 107), identifiquei como um

dos elementos ficcionalizadores da história a apresentação do narrador como autor e

personagem do romance. Na ocasião, embora não tenha tratado o assunto como autoficção,

observei como o narrador homônimo do autor revela-se no terceiro capítulo da obra, momento

em que a narrativa passa a ser feita em primeira pessoa:

A inclusão do “eu”, ou seja, da primeira pessoa do singular, é um indício da

ficcionalização da história. Afinal, no texto histórico, o “eu” é proscrito, desaparece,

exclui-se a personalidade do historiador que se ofusca [...]. (CLÍMACO, 2014, p.

109)

SE não é uma autoficção, mas a contém em meio ao seu hibridismo. Na autoficção, o

narrador não conta apenas a vida que viveu, mas pode imaginar muitas vidas possíveis,

narrando não só o que foi, mas também o que poderia haver sido (ALBERCA, 2007, p. 33).

Isto entabula tentativas de entender o real, segundo Alberca (2007, p. 13), permite vê-lo na

encruzilhada entre o verdadeiro e o fingido.

O narrador de SE impressiona-se com os relatos sobre os malefícios que se abatiam

sobre os que se aproximam do cadáver de Evita. Conta duas advertências que recebe: uma da

viúva do Coronel Moori Koenig, quando a entrevista e a outra do filho de Raimundo Massa

que lhe escreve: “Si usted me andaba buscando, ya no me busque. Si usted va a contar la

historia, tenga cuidado. Cuando empiece a contarla, no va a tener salvación.” (SE, p. 77).152

Embora decida não se deixar levar por superstições, o narrador imagina que Evita

passa a rondá-lo. Pergunta-se: “¿Yo busco a Evita o Evita me busca a mí?” (SE, p. 203).153

151 Em português: “Transfigurada em mito, Evita era milhões” (p. 57).

152 Em português: “Se o senhor estava me procurando, não procure mais. Se vai contar a história, tenha cuidado.

Quando começar a contá-la, não vai ter mais salvação” (p. 66).

153 Em português: “Eu estou atrás de Evita ou é Evita quem está atrás de mim?” (p. 176)

106

Apresenta a ideia da narrativa como detentora de um poder curativo, ou seria apenas um

milagre de “Santa” Evita o que o faz curar-se da depressão que sofria, chegando a estar

acamado. O que o levantou da cama foi a história de Evita. Quando recebeu o telefonema do

militar que queria lhe contar o que havia acontecido ao corpo, sentiu que recuperava o ânimo:

“Con alivio, advertí que mi depresión estava retirándose sola. Volví a ver la realidad como un

vasto presente donde todo, por fin, es posible” (SE. p. 388).154

Na autoficção presente no romance analisado, o narrador personagem constrói-se

como um indivíduo que narra não apenas a história do corpo embalsamado de Evita, mas

também sua experiência pessoal com o mito que descreve, além de sua transformação ao

longo do processo de investigação e escrita. Sua experiência não é narrada como a verdade

sobre Evita, mas como uma das possíveis versões que permitem compreender sua história,

através da representação hagiográfica.

Associada ao maravilhoso e ao hagiográfico no modo de narrar de SE é perceptível a

metáfora animal. Para sua abordagem, lanço mão da reflexão de Marcuschi (2000) sobre

metáfora e de Ferreira (2005) sobre metáfora animal. Para Marcuschi (2000, p. 75), a

metáfora está relacionada à teoria do conhecimento:

não é apenas um simples recurso linguístico catalogado entre os tropos ou figuras de

linguagem, mas um modo específico de conhecer o mundo, que, ao lado do

conhecimento lógico-racional, tem sua razão de ser e instaura uma série de valores

de outra maneira perdidos ou não entendidos. (grifo do autor)

Esclarece ainda o autor que a metáfora é mais que uma transferência de significado ou

uma comparação abreviada, podendo ser, do ponto de vista operacional, um instrumento para

analisar a capacidade criativa de alguém, mas do ponto de vista psicológico, a criação de

novos universos de conhecimento, pois criaria uma realidade nova (MARCUSCHI, 2000, p.

75).

Considerando que a metáfora surge no campo da linguagem, mas não permanece

neste, pois cria uma realidade nova não necessariamente linguística, Marcuschi a define como

um modo novo de conhecer e comunicar o mundo assim conhecido. De certo modo, é um

recurso que reestrutura da realidade, cria novas áreas de experiência que fogem ao indivíduo

vinculado a sua realidade puramente factual. As expressões metafóricas sugerem aspectos que

as palavras em seu “significado literal” não podem apresentar (MARCUSCHI, 2000, p. 81).

Para o autor, a metáfora funda a comparação. Isto porque sugere um conhecimento novo

154 Em português: “Com alívio, notei que minha depressão estava recuando sozinha. Voltei a ver a realidade

como um vastro presente onde tudo, por fim, era possível” (p. 333).

107

fornecido por uma intuição e por um pensamento que não se baseia em comparação alguma,

nem segue uma lógica (ibdem, p. 85).

Especificamente, quanto à metáfora animal, Ferreira (2005) aponta que, na literatura,

tais metáforas seguem posicionamento antropocêntrico sob influência das ideologias

segregacionistas (que separam seres humanos e animais), tomando os animais como

empréstimo para explicar pessoas, suas características físicas, emocionais, ou

comportamentos. Muitas obras seguem a velha tradição de retratar uma pessoa como animal

para revelar mais claramente um aspecto de seu caráter.

A partir destas reflexões, analiso o uso da imagem da borboleta não apenas como

símbolo de Evita e de sua metamorfose na representação elaborada no romance, mas como o

próprio modo de narrar deste, visto que o narrador, metaficcionalmente, declara sua opção de

realizar a narrativa como a borboleta com a qual sonhara e, assim, relativiza os limites entre

história e ficção. Esse tratamento da metáfora animal parece indicar a ultrapassagem do

antropocentrismo geralmente registrado na representação literária dos animais.

Não é fácil a leitura de SE. No entanto, isso não a faz ser pouco prazerosa. Sua

complexidade, fruto de seu hibridismo genérico manifesto num plano geral relacionado ao

tema – ficção e história – e, no plano específico, da mescla de gêneros textuais diversos, como

cartas, entrevistas, depoimentos, dentre outros, instiga a imaginação do leitor. Além disso, seu

modo de narrar contribui para tornar esse romance complexo. Vários aspectos aí confluem: a

dupla temporalidade da narrativa – a morte para a frente (as aventuras pelas quais passa o

cadáver embalsamado de Evita) e a vida para trás (sua biografia); o autor que se inclui como

narrador e personagem; a ficcionalização da história e o efeito de historicidade e, por fim, a

presença da metáfora animal.

Dois insetos são mencionados na história narrada: abelha e borboleta, apresentados de

forma coletiva e individual, respectivamente. As abelhas surgem no momento em que o

Coronel Moori Koenig, após ser designado para cuidar da operação de sequestro e ocultação

do cadáver, combina encontrar-se com a mãe da ex-Primeira Dama, Juana Ibarguren, para lhe

comunicar que o Exército se encarregaria do corpo. No momento seguinte à conversa

telefônica em que acertam o encontro, o Coronel aproxima-se das janelas do seu escritório.

Verifica, com surpresa, a presença de abelhas nas copas das árvores (SE, p. 121).

O narrador informa que Juana igualmente surpreendeu-se com as abelhas que enchem

seu jardim: “La madre había salido a respirar el aire de la mañana y de pronto descubrió en lo

108

alto el zigzagueo del enjambre. Regresó a la casa para contar el prodigio [...]” (SE, p. 121).155

Enquanto conversam, o Coronel comenta com Juana o zumbido das abelhas e diz que é

estranho e, além disso, manifesta estranheza ao constatar que a rádio não menciona esse

fenômeno por ele chamado de praga (SE, p. 130).

Avançando a narrativa, no momento em que uma das cópias do corpo de Evita, sob o

pseudônimo de María M. de Magaldi, é enterrada por Arancibia (o Louco), no cemitério da

Chacarita, ouve-se o zumbido das abelhas na escuridão (SE, p. 172). Em outra situação,

quando o Coronel e o Louco estão no caminhão que guarda provisoriamente o cadáver,

vigiando para que o Comando da Vingança não os surpreenda durante a noite, ouvem seu

zumbido agudo. O Coronel diz que as abelhas foram atraídas pelas flores, no entanto o Louco

lembra-lhe que não há flores onde estão. Procuram as abelhas, mas não as encontram. O

Coronel acaba cochilando. É despertado pelas vozes do lado de fora, comandadas por

Galarza. Ao abrir a porta do caminhão, vê, sob o chassis, as velas acesas e as flores colocadas

pelo Comando da Vingança (SE, p. 211-212).

Para o Coronel, as abelhas estão associadas à perturbação que sente crescer em seu

íntimo devido às dificuldades da operação que coordena, as várias vezes em que precisa

mudar de lugar o corpo de Evita que, embora seja escondido, sempre aparece rodeado por

flores e velas a mando de um grupo que não se revela claramente e que se apresenta sob o

sugestivo nome de Comando da Vingança. Além da possibilidade de ser descoberto e de vir a

ser objeto dessa vingança, começa a perturbá-lo a intrigante forma como o Comando da

Vingança sempre descobre o paradeiro do corpo de Evita.

As passagens em que as abelhas são mencionadas destacam o zumbido do enxame.

Podemos pensar no quanto esse som persistente é incômodo. Ao mesmo tempo, podemos

também lembrar-nos que abelhas não têm por hábito estar fora da colmeia, a não ser que seja

em busca de alimentos, ou seja, há algo que igualmente as incomoda.

No Dicionário de símbolos, de Chevalier e Gheerbrant (2011), a abelha representa o

trabalho incansável, nas suas formas coletiva e individual, caracterizado pela disciplina e

organização. Para os egípcios antigos, as abelhas estavam relacionadas ao Sol, pois teriam

nascido das lágrimas de Rá, o deus do Sol, ao caírem sobre a Terra. A abelha simboliza a

alma e o verbo, a poesia, a eloquência e a inteligência. Se por um lado, causam dor, devido ao

ferrão, por outro, prazer, com o mel. É possível, portanto, afirmar que as abelhas representam

o Comando da Vingança em seu incansável labor de, secreta e sorrateiramente, obter

155 Em português: “A mãe tinha saído para respirar o ar da manhã e de repente descobriu acima dela o

ziguezague do enxame. Entrou na casa para contar o prodígio [...]” (p. 106).

109

informações precisas sobre as ações dos militares encarregados de esconder o cadáver de

Evita. Esse comando é uma presença não revelada, mas incômoda, como o constante zumbido

das abelhas.

A utilização de animais para representar seres humanos, ou ações humanas, é comum

na literatura. Isso configura um aspecto da chamada representação antropomórfica dos

animais em textos literários, como observado por Ferreira (2005), que indica como a literatura

tem tomado o animal de empréstimo para explicar o humano. No entanto, outra presença

animal em SE parece indicar a ultrapassagem de uma mera representação humana: tem-se no

modo de narrar uma alegoria animal, ou seja, um inseto, a borboleta, além de representar

Evita, designa o modo como a narrativa se dá, ou seja, o movimento das asas em

descompasso: uma se move para frente, a história da morte de Evita; a outra se move para

trás, sua biografia.

A borboleta é metáfora de Evita, pois o narrador declara que a contaria como uma

borboleta. Associar a mulher à borboleta é frequente na literatura e em outras artes. Segundo

Chevalier e Gheerbrant (2007, p. 138-139), por sua graça e ligeireza, a borboleta é um

emblema da mulher e simboliza também a inconstância. Importa destacar como as

metamorfoses pelas quais passa também são aspectos produtivos de seu simbolismo: a

crisálida é o ovo que contém a potencialidade do ser; a borboleta que sai dele é um símbolo de

ressurreição. A borboleta é associada analogicamente à chama, pela presença de suas cores e

do bater de suas asas. Pode ser também a forma assumida pela alma ao deixar o corpo dos

mortos, segundo uma crença popular da Antiguidade greco-romana. A metáfora da borboleta

aplicada a Evita revela-se perfeita, justamente pela transformação radical que experimentou

em sua vida. De moça pobre, sem instrução nem grandes atrativos, como é descrita pelos que

a conheceram nos seus primeiros tempos em Buenos Aires, chegou ao posto de Primeira

Dama, considerada de grande beleza e ícone da moda. Sua metamorfose é destacada em SE:

quando chegou a Buenos Aires, em 1935,

era entonces nada o menos que nada: un gorrión de lavadero, un caramelo

mordido, tan delgadita que daba lástima. Se fue volvendo hermosa con la

pasión, con la memoria y con la muerte. Se tejió a sí misma una crisálida de

beleza, fue empollándose reina, quién lo hubiera creído. (SE, p. 11)156

156 Em português: “Naquela época ela era nada ou menos que nada: um pardal ciscando migalhas, uma bala

cuspida, tão magrinha que dava até pena. Foi ficando linda com a paixão, com a memória e com a morte. Teceu

para si mesma uma crisálida de beleza, foi incubando-se rainha, quem diria” (p. 11).

110

Evita passou por transformação, da mesma forma que a lagarta se metamorfoseia para

se tornar borboleta. Este é um esforço solitário, empreendido pela lagarta sem auxílio.

Quando aplica a Evita a metáfora da borboleta, o narrador leva o leitor a considerar seu

caráter autônomo (CLÍMACO, 2014, p. 116).

Além de representar Evita, a metáfora animal constitui o próprio modo de narrar do

romance, transformando-se em alegoria deste. O narrador relata o sonho que teve e como esse

sonho deu-lhe a forma da narrativa:

Pasaron algunas noches y soñé con Ella. Era una enorme mariposa

suspendida en la eternidad de un cielo sin viento. Un ala negra se henchía

hacia adelante, sobre un desierto de catedrales y cementerios; la otra ala era

amarilla y volaba hacia atrás, dejando caer escamas en las que fulguraban los

paisajes de su vida en un orden inverso al de la historia […]. (SE, p. 65)157

Segundo o narrador, o romance parece as asas da borboleta sonhada, com a história da

morte caminhando para a frente, e a da vida avançando para trás (SE, p. 65).

Metaficcionalmente, o romance apresenta discussão sobre sua própria elaboração. A partir da

descrição do funcionamento das asas da borboleta vislumbrada em sonho, o narrador dá a

entender, exemplificando, o modo como se dá sua narrativa. Mas, afinal, o que significa dizer

que uma narrativa se parece com uma borboleta imóvel no ar, embora esteja voando? A

resposta podemos vislumbrar em Walter Benjamin (1987), em sua nona tese sobre a História.

Ao comentar o quadro de Paul Klee, Angelus Novus, Benjamin faz uma alegoria da história,

comparando o anjo que ali está representado com o que seria o anjo da história. Este olharia,

da mesma forma que o do quadro, para o passado, enquanto voasse para o futuro, impelido

por uma tempestade, enquanto o progresso faria crescer sob seus pés um amontoado de

escombros. Vida e morte. Passado e futuro. As teses de Benjamin revelam seu pessimismo

com o modo de narrar da história e propõem uma nova maneira de contá-la, de forma que esta

tivesse correspondência com o presente, sem a necessidade da clausura da linearidade

temporal dos eventos.

SE é, portanto, construído mesclando romance história e ficção, com tempos

sobrepostos, idas e vindas, para não apenas contar aos leitores a biografia de María Eva

Duarte de Perón, Evita, mas também para discutir a história e a historiografia. O romance não

se constitui por si só numa refutação do discurso histórico, mas apresenta outras versões para

157 Em português: “Passaram-se algumas noites e sonhei com Ela. Era uma enorme mariposa pairando na

eternidade de um céu sem vento. Uma asa preta lançava-se para a frente, sobre um deserto de catedrais e

cemitérios; a outra asa era amarela e voava para trás, deixando cair as escamas onde refulgiam as paisagens de

sua vida em uma ordem inversa à da história [...]” (p. 56).

111

os fatos, considerando a história não como pronta, dada, natural, e sim em elaboração, uma

construção, produto de cultura.

Martínez narrador, como um historiador alegorista, vai além das fontes ditas oficiais

para narrar sua versão da história. Apresenta outras versões, convoca personagens,

testemunhas outras para, por meio delas, fazer surgir diferentes possibilidades de

compreensão dos eventos narrados. Um exemplo é a entrevista com o cabeleireiro de Evita,

Julio Alcaraz, autor do famoso penteado de sua imagem imortalizada com os cabelos louros

presos em um coque. Para não apoiar-se apenas em história oral, o narrador informa que as

memórias de Alcaraz são confirmadas pelo acervo que guardava numa pequena sala nos

fundos de seu salão de beleza. Esta sala possuía as paredes revestidas de espelhos o que

permite ao narrador uma digressão a respeito de uma metáfora com Evita que estava destinada

a ser milhares ou sobre a escrita da história, um presságio de que a mesma realidade iria

repetir-se várias vezes, sucessivamente (SE, p. 83).

Ao terminar de transcrever o relato de Alcaraz, Martínez narrador reflete

metaficcionalmente sobre o relato dos fatos, concluindo que a realidade não se pode contar

nem repetir, apenas inventá-la novamente. Pensava que ao fim da transcrição, teria toda a

história, mas se deu conta de que era letra morta. Busca em documentos o que aconteceu, mas

não encontra Evita: “En esa parva inútil de documentos, Evita nunca era Evita” (SE, p. 98).158

Por isso, decide dar a ela o seu lugar na história, através da criação ficcional. Escreve um

roteiro cinematográfico de um documentário tentando reconstruir a história da sua candidatura

frustrada à Vice-presidência do país. Diz que quer a verdade em seu relato: “En aquel tempo,

el aleteo de la verdade era essencial para mí. Y no había verdade posible si Evita no estaba

allí.” (SE, p. 98).159 Em seu desejo de apresentar uma versão verdadeira, queria que alguém

pudesse confirmar os fatos que narra ou que lhe ajudasse a ajustá-los para que coincidissem

com alguma ilusão de verdade. Lembrou-se de Alcaraz (SE, p. 98).

Na discussão a respeito do roteiro, o cabeleireiro lhe esclarece vários pontos, com sua

autoridade de testemunha ocular e aprova sua escrita: “Lo que usted ha escrito está bien, qué

quiere que le diga. Hizo lo que pudo. Es la historia oficial. La otra no está filmada. Está fuera

158 Em português: “Naquela montanha inútil de documentos, Evita nunca era Evita” (p. 85).

159 Em português: “Naquele tempo, a pulsação da verdade era algo essencial para mim. E não havia verdade

possível se Evita não estivesse ali” (p. 85).

112

del cine. Y ni siquiera se podría inventar, porque la atriz principal ha muerto” (SE, p. 115).160

Chama a atenção nesse ponto a afirmação da existência de outra história paralela a oficial.

E se o diálogo entre Alcaraz e Martínez narrador roteirista parece ter se encerrado no

restaurante – espaço público –, quando Martínez está no banheiro – espaço privado – Alcaraz

ali entra e lhe diz que falta algo ao filme, o principal, algo que só ele viu (SE, p. 115). Saem

do banheiro e do restaurante, e enquanto caminham, Alcaraz lhe conta o que aconteceu depois

do Cabildo Abierto, na residência presidencial, narra os bastidores da história, algo próprio do

âmbito privado. Neste ponto, Martínez narrador opta por outra vez deixar o relato de Alcaraz

correr livremente: Perón e Evita discutem fortemente, pois ele quer que ela renuncie à

candidatura que aparentemente acabou de aceitar. Ela se recusa. Ele lhe joga no rosto,

rudemente, sua doença, o câncer do qual, até o momento, ela não tinha conhecimento e que,

fatalmente, a impedirá de assumir o compromisso de concorrer à Vice-presidência.

A história buscada não está nas imagens documentais, não está nas entrevistas oficiais,

nem nos documentos analisados pelo narrador. Está na memória do cabelereiro de Evita, que

a conheceu na intimidade e pode, por isso, testemunhar sem que o vissem e o percebessem, o

que de fato aconteceu. Esta memória é ativada a partir da discussão do roteiro que, a partir de

agora, deixa de importar para o narrador, pois já cumpriu seu propósito. Sua opção por narrar

o acontecido fora da discussão do roteiro, parece indicar que queria manter o que realmente

ocorreu fora dos holofotes, longe das explicações oficiais.

Verifica-se em SE o caráter hagiográfico da narração sobre Eva Perón, narração esta

que centraliza o cadáver como símbolo do mito de Evita, enfatizando-se os elementos que

permitiram sua ascensão no ideário político peronista desde sua origem humilde. Ao mesclar

história e ficção, o romance busca não apenas relativizar os limites entre estes dois campos,

mas possibilita intento de compreender o fenômeno político Evita com maior liberdade na

elaboração ficcional que alegoriza a história do que seria possível numa reflexão sociológica

ou histórica, campos em que a imaginação criativa está submetida a maior ordenamento e

controle. Concluída a análise da representação hagiográfica de Eva Perón em SE, passo à

reflexão sobre sua representação política em EJSV.

160 Em português: “Esse seu roteiro até que não está mal. O senhor fez o possível. É a história oficial. A outra

não foi filmada. Está fora do cinema. E nem pode ser inventada, pois a atriz principal está morta” (p. 100),

113

4. REPRESENTAÇÃO POLÍTICA DE EVA PERÓN

Escrita pelo historiador Felipe Pigna e publicada no ano do sexagésimo aniversário de

falecimento de Evita, a biografia EJSV (2012), tem como objetivo, declarado em prefácio,

contar, de modo detalhado e analítico, a vida de uma mulher que se converteu em uma das

figuras célebres da humanidade. Pigna distingue o tratamento que faz do tema de outros já

realizados. Segundo ele, muitos autores a subestimaram, estudando-a de modo folclórico, no

entanto seu objetivo é demonstrar que Eva Perón foi um sujeito político que compartilhou

com Perón a liderança carismática do peronismo (EJSV, p. 9).

Considero as principais peculiaridades deste texto o fato de se construir como

biografia não ficcional e de ter sido escrita por um historiador, diferente do romance e da

autobiografia analisados, o que se torna um elemento possibilitador do efeito de historicidade,

além dos vários outros que a tessitura apresenta, como veremos mais adiante.

Analiso, portanto, nesta biografia que apresenta uma representação política de Eva

Perón, as relações entre história e ficção. Para tal, discuto os elementos criadores do efeito de

historicidade e os que revelam a ficcionalização da história.161

4.1 Efeito de historicidade em EJSV

Em EJSV (2012), o efeito de historicidade manifesta-se através de elementos como:

cronologização; contextualização; conceitualização; discussão das fontes e versões e autoria

do historiador.162 A cronologização refere-se à classificação dos acontecimentos na ordem do

tempo, periodizando, ou seja, recortando-o em períodos, permitindo refletir sobre a

continuidade e a ruptura. Através da contextualização, o historiador situa o biografado em

meio aos acontecimentos de seu tempo, expondo o cenário de sua atuação como sujeito

histórico relacionado a outros personagens e eventos históricos. A conceitualização é a

operação pela qual o historiador elabora definições ou recorre a conceitos já existentes,

aplicando-os em sua organização textual da história. Com isto, faz-se necessário ao trabalho

historiográfico apresentar e discutir fontes e versões de outros historiadores sobre os fatos que

161 Como já mencionado, a análise apresenta outros procedimentos relativizadores dos limites entre história e

ficção de modo a complementar a pesquisa efetuada na dissertação de mestrado e publicada sob o título História

e ficção em Santa Evita (2014).

162 Elementos discutidos no tópico “O efeito de historicidade”, no Capítulo 1 desta tese, “Entre a história e a

ficção”.

114

narra, fundamentando sua seleção particular. Estes são os elementos textuais relativos à

criação do efeito de historicidade. A esta pesquisa interessa também refletir sobre um

elemento extratextual de historicidade que consiste na autoria do historiador.

4.1.1 De “Cholita” a “Esa mujer”: cronologização da biografia de Eva Perón

Uma característica do texto biográfico é o tratamento linear do tempo. Isto se verifica

em EJSV que apresenta a cronologia de Eva Perón através da elaboração de uma periodização

que nomeia os capítulos a partir da identificação de rupturas: “Cholita”, “Eva Duarte”, “Eva

Perón”, “El viaje del Arco Iris” [A viagem do Arco Íris], “La compañera Evita” [A

companheira Evita], “Evita, La eterna vigia” [Evita, a eterna vigia] e, por fim, “Esa mujer”

[Essa mulher].

A representação de Eva Perón elaborada por Pigna organiza-se de modo cronológico,

o que ajuda a transmitir um sentido de desenvolvimento. Isto é próprio do gênero biográfico

que visa a apresentar a vida em suas fases como, no dizer de Arfuch (2010, p. 159), “viagem

temporal e suas estações obrigatórias: a infância, a juventude, a maturidade, a morte”.

O primeiro capítulo trata de sua infância, de seu nascimento, em 1919, em Los Toldos,

até sua ida definitiva para Buenos Aires, em 1935, em busca do sonho de ser atriz. A palavra

“Cholita” que nomeia o capítulo é o seu apelido familiar de infância (EJSV, p. 15). O capítulo

discute sua condição de “filha natural” não reconhecida pelo pai, fruto de uma relação de

concubinato de Juan Duarte com Juana Ibarguren que gerou no total cinco filhos. O fato de

ser filha natural a fez passar por várias situações difíceis de discriminação e marginalização,

segundo a moral da época, e isto a teria marcado profundamente (EJSV, p. 19). Outra

circunstância marcante em sua infância foi a pobreza enfrentada por sua família. Pigna cita a

autobiografia de Eva Perón, LRMV, para fundamentar o quanto a pobreza foi uma marca

indelével para ela. Além disso, aproxima Eva de outros milhões de crianças argentinas da

época que enfrentavam a desigualdade social: “El Estado de entonces estaba muy lejos de ser

benefactor, y para todos regían las leyes de mercado, con sus pocas ofertas y todas las

demandas” (EJSV, p. 20).163

Relata a mudança da família de Los Toldos para Junín tentando fugir da crise

econômica. Em Junín, sua irmã, Elisa, era empregada dos correios e sua mãe, costureira. Ali,

Eva começa a dar sinais de sua vocação artística nas brincadeiras com seus irmãos, pintando o

163 Tradução nossa: “O Estado de então estava muito longe de ser benfeitor, e para todos regiam as leis de

mercado, com suas poucas ofertas e todas as suas demandas.”

115

rosto ou fantasiando-se e colecionava fotografias de suas atrizes preferidas. Gostava de recitar

poemas e escutar rádio: “La radio la hacía soñar; se imaginaba triunfando en algún teatro de

Buenos Aires, se iba de la miseria del día a día, hasta que la realidad la volvía a dejar en su

casa” (EJSV, p. 29).164

Viaja a Buenos Aires pela primeira vez, com sua mãe, em 1933, para fazer um teste na

Radio Belgrano. Não obtém êxito, mas a viagem à cidade grande lhe causou forte impressão

(EJSV, p. 30). Ajudada por sua filha Blanca, Juana Ibargurem abre uma pensão na qual serve

refeições para aumentar a renda famíliar (EJSV, p. 31). Isto amplia a rede social da família,

duas de suas irmãs casam-se com comensais habituais. Pigna registra o debut de Eva como

recitadora na rádio e seu primeiro namoro (EJSV, p. 32). Indica também sua mudança sozinha

para Buenos Aires, onde a esperava seu irmão, Juan, descartando as hipóteses que alegam que

teria partido acompanhada:

Eva llegaba a Buenos Aires con una pequena valija y enormes sueños de triunfar, de

ser actriz, de ser ella la que apareciera en las tapas de Sintonía y las revistas que

alimentaban su fantasia desde que tenía uso de ilusión. Tenía quince años y una vida

por estrenar.

[…]

Era flaquita, de un pelo negro muy corto que enmarcaba unos bellos ojos negros de

mirada triste y curiosa a la vez. Llegaba dispuesta a conquistar la gran ciudad. Su

fértil imaginación no le alcanzaba para percibir hasta donde llegaría aquella

conquista. (EJSV, p. 33, 34)165

O capítulo dois, “Eva Duarte”, apresenta o início de sua carreira em Buenos Aires e as

dificuldades que enfrentou, inclusive para se alimentar. Estreia no teatro em março de 1935,

na peça La señora de Pérez, no papel de uma mucama. Recebeu uma crítica de uma linha no

diário Crítica, em Buenos Aires: “muy correcta en su breve intervención Eva Duarte”166 e

outra mais extensa num periódico de Junín que saudou a conterrânea (EJSV, p. 39).

Pigna, dando sinais da representação de Eva como mulher que teve vários amores,

menciona seus amantes. Além disso, narra as várias companhias de teatro pelas quais Eva

passou, destacando as dificuldades financeiras que enfrentou (EJSV, p. 48).

164 Tradução nossa: “A rádio a fazia sonhar; imaginava-se triunfando em algum teatro de Buenos Aires, saía da

miséria do dia a dia, até que a realidade a fazia voltar para casa”.

165 Tradução nossa: “Eva chegava a Buenos Aires com uma pequena valise e enormes sonhos de triunfar, de ser

atriz, de ser ela a que aparecia nas capas de Sintonia e das revistas que alimentavam sua fantasia desde começou

a sonhar. Tinha quinze anos e uma vida por estrear.

[...]

Era magrinha, de um cabelo muito curto que emoldurava uns belos olhos negros de olhar triste e curioso por vez.

Chegava disposta a conquistar a cidade grande. Sua imaginação fértil não chegava a perceber até onde chegaria

aquela conquista”.

166 Tradução nossa: “Muito correta em sua breve intervenção Eva Duarte”.

116

A primeira atividade política de Eva é assinalada com a informação de sua

participação na fundação de uma entidade gremial que defendia os interesses dos

trabalhadores da radiofonia, a Associação Radial Argentina, em 1943 (EJSV, p. 69). Na rádio,

começa a interpretar uma série de mulheres importantes da história naquele que foi, segundo

Pigna, o melhor contrato de sua carreira, isto porque os libretos, pela primeira vez, eram

escritos para ela (EJSV, p. 70). O fato de ter interpretado mulheres históricas é vez ou outra

tomado como um dos influenciadores de sua atuação política futura.

Finalmente, o capítulo menciona o encontro entre Eva Duarte e Juan Perón por ocasião

de atividade artística beneficente em prol das vítimas do terremoto de San Juan (1944). Este é

um ponto de ruptura para a passagem ao capítulo seguinte, “Eva Perón”, no qual narra as

transformações vividas por Eva após conhecer Perón e se tornar sua esposa. Na ocasião,

Perón era ministro de Guerra e ajudou a respaldá-la em sua carreira. Começam a morar juntos.

O relacionamento de ambos não é bem visto pelos oficiais das forças armadas.

Eva começa um programa de rádio para exaltar o governo, em geral, e a Perón, em

particular: “Cada emisión tomaba un tema identificado con la orientación del gobierno o,

mejor dicho, de Perón” (EJSV, p. 86).167 Tal programa de rádio passa a ser emitido pela rádio

estatal, o que aumenta sua difusão. Com isto, começa a construir-se uma imagem de Eva

através de seus discursos. Em alguns deles, a fala de Eva era entremeada à de Perón cuja

figura se exaltava (EJSV, p. 87).

Pigna narra os alvores do Peronismo. A partir do seu intenso trabalho na Secretaria de

Trabalho e Previsão, Perón ganha popularidade (EJSV, p. 96). Cresce também a oposição a

ele (EJSV, p. 99) que é forçado a renunciar e preso em outubro de 1945 (EJSV, p. 101). Eva

entra na política nessas circunstâncias, ao mesmo tempo em que é convertida em pária social,

com o cancelamento de seus contratos. O historiador relata o episódio de uma agressão que

ela sofreu e que foi por ela entendido como um batismo de dor (EJSV, p. 105).

Após sua libertação com intensa participação popular, Perón e Eva decidem se casar

(EJSV, p. 113), e “tras los hechos del 17 de octubre y su casamento con Perón, Eva se metió

de lleno en la política respaldando a su marido” (EJSV, p. 116).168 Pigna dá informações

167 Tradução nossa: “Cada emissão abordava um tema identificado com a orientação do governo ou, melhor dito,

de Perón”.

168 Tradução nossa: “depois dos fatos do 17 de outubro e seu casamento com Perón, Eva entrou de cheio na

política respaldando seu marido”.

117

sobre a campanha de Perón à presidência da nação, destacando que é a primeira vez que uma

mulher acompanha o marido em campanha.

Perón é vitorioso (EJSV, p. 121). Após a divulgação dos resultados das eleições, Eva

faz seu primeiro discurso político, agradecendo o apoio feminino na campanha e anunciando

seu desejo de lutar pelo direito das mulheres ao voto (EJSV, p. 122). Uma função tradicional

da primeira dama era assumir os trabalhos de beneficência, no entanto Eva desenvolve a ideia

de ajuda social: “Evita decidió cortar por lo sano e iniciar por su cuenta la tarea, no de

“beneficencia” sino de solidaridad y ayuda social” (EJSV, p. 126).169

Pigna cita relato de Perón de, que contra sua vontade, Eva transforma-se numa mulher

da política:

Yo nunca quise que Evita se transformara alguna vez em uma mujer “de la política”.

Ella era mi mujer y como tal “hacía” política. (...) Evita terminó de uma vez y para

siempre con la imagen passiva de la mujer en la historia argentina, y lo hizo desde el

sitio más encumbrado al que puede aspirar una mujer, que es el de primera dama,

porque demostró no sólo que la pasividad nos es sinónimo de virtud sino que ese

puesto de primera dama debe ser una extensión de la obra política del gobierno. (...)

Digámoslo así: gracias que estuve yo para moderar su ímpetu que, a pesar de todo,

en muchas ocasiones me superó. (EJSV, p. 128)170

O quarto capítulo, “El viaje del Arco Iris”, narra a viagem de três meses que fez à

Europa, em 1947, representando Perón e como esta modificou sua vida. A jornada começa

pela Espanha, a partir de convite feito pelo general Franco que havia firmado acordos

econômicos com a Argentina. Pigna comenta que, entre os membros da comitiva de Eva,

estava o jornalista e escritor Francisco Muñoz Azpiri, que havia sido guionista da série

“Mujeres ilustres” que Eva havia interpretado no radioteatro, para que colaborasse na

elaboração dos seus discursos (EJSV, p. 137). É possível, a partir deste fato, verificar o

quanto estavam relacionados representação teatral e política para Eva, como se desempenhar

um papel ainda estivesse em suas funções.

O capítulo seguinte, “La compañera Evita”, narra a transformação de Eva em Evita, ou

seja, a protetora dos descamisados e grasitas, dos trabalhadores e do povo humilde argentino:

Evita estaba de vuelta en el país y como se lo había prometido a sus descamisados a

su llegada de la Gira del Arco Iris, el lunes ya estaba trabajando en la Secretaría,

169 Tradução nossa: “Evita decidiu tomar medidas drásticas e iniciar por sua conta a tarefa, não de ‘beneficência’,

mas de solidariedade e ajuda social”.

170 Tradução nossa: “Eu nunca quis que Evita se transformasse numa mulher ‘da política’. Ela era minha mulher

e como tal ‘fazia’ política. [...] Evita acabou de uma vez por todas com a imagem passiva da mulher na história

argentina, e o fez desde o lugar mais alto ao qual pode aspirar uma mulher, o de primeira dama, porque

demonstrou não somente que a passividade não é sinônimo de virtude senão que esse posto de primeira dama

deve ser uma extensão da obra política do governo. [...] Digamos assim: ainda bem que eu estava lá para modelar

seu ímpeto que, apesar de tudo, em muitas ocasiões me superou”.

118

atendiendo a la gente personalmente durante interminables jornadas. Algo había

cambiado en ella. Comenzaba a darle más importancia a generar y ocupar un lugar

en la política, y por ende en la historia, que a competir en lujos, elegancia y

reconocimiento con las damas de “alta sociedad”. De ser la señora María Eva Duarte

de Perón se convertía en la compañera Evita. (EJSV, p. 179).171

Pigna destaca que essa mudança, embora sempre mencionada, não era a principal: “el

cambio sustancial estaba en assumir el papel de portavoz del peronismo y, más aún de los

trabajadores y los humildes de la Argentina” (EJSV, p. 179).172 Para Pigna, havia começado

sua transformação em dirigente política, tanto no discurso como em sua recheada agenda de

atividades (EJSV, p. 180). O historiador defende a tese segundo a qual

la transformación de Eva Duarte de Perón en Evita, su coliderazgo del peronismo y

su transformación no sólo en su abanderada sino en su símbolo, fue parte esencial de

la construcción de la Argentina peronista en esos años. (EJSV, p. 182)173

Outro ponto importante da atuação política de Evita destacado por Pigna o manejo por

parte desta de dois dos três ramos do peronismo: o Partido Peronista Feminino e a

Confederação Geral do Trabalho (EJSV, p. 206). O terceiro era o Partido Peronista Masculino

presidido por Perón.

Em meio à sua frenética atividade política, Evita recebe o diagnóstico de câncer de

útero em 1950 e, de acordo com Pigna, comete um erro fatal ao recusar submeter-se a

cirurgia: “Su salud fue empeorando mientras se obstinaba en negarse a aceptar lo inevitable:

encarar seriamente el tratamiento de su gravísima enfermedad. Comenzaba la lucha más

desigual entre Evita y un enemigo” (EJSV, 246).174

O sexto capítulo, “Evita”, trata do avanço de sua enfermidade e da quase candidatura à

vice-presidência da nação. Evita é caracterizada como uma paciente rebelde que rejeita o

tratamento (EJSV, p. 251). Surge a ideia de sua candidatura à vice-presidência (EJSV, p.

256). Sua atividade política segue intensa e, com as aulas de História do Peronismo, na Escola

171 Tradução nossa: “Evita estava de volta no país e como havia prometido a seus descamisados na sua chegada

da Volta do Arco Íris, na segunda-feira já estava trabalhando na Secretaria, atendendo às pessoas pessoalmente

durante intermináveis jornadas. Algo havia mudado nela. Começava a dar mais importância a gerar e ocupar um

lugar na política, e por extensão na história, que a competir em luxos, elegância e reconhecimento com as damas

da ‘alta sociedade’. Da senhora María Eva Duarte de Perón se converteria na companheira Evita”.

172 Tradução nossa: “a mudança substancial estava em assumir o papel de portavoz do peronismo e, mais ainda

dos trabalhadores e dos humildes da Argentina”.

173 Tradução nossa: “a transformação de Eva Duarte de Perón em Evita, sua coliderança do peronismo e sua

transformação não só em sua porta voz mas em seu símbolo, foi parte essencial da construção da Argentina

peronista naqueles anos”.

174 Tradução nossa: “Sua saúde foi piorando enquanto se obstinava em se recusar a aceitar o inevitável: encarar

seriamente o tratamento de sua gravíssima enfermidade. Começava a luta mais desigual entre Evita e um

inimigo”.

119

Superior Peronista, consagra-se como voz doutrinária do movimento (EJSV, p. 259). A

oposição vê negativamente o que lhe parece ser um endeusamento de Evita (EJSV, p. 260).

Pigna registra a publicação de LRMV, em 15 de outubro de 1951, afirmando que o

livro foi por ela ditado a Manuel Penella da Silva, um jornalista espanhol (EJSV, p. 283).

Além disso, cita a expressão “Santa Evita” mencionada por Perón: “La gente cantaba

“mañana es San Perón”, reclamando el feriado del día siguiente, a lo que Perón respondió:

“como este 17 de octubre fue dedicado a mi esposa, en vez de San Perón, hagamos Santa

Evita” (EJSV, p. 285, grifo nosso).175

O sétimo capítulo, “La eterna vigia”, narra seu falecimento, as honras póstumas e o

embalsamamento de seu corpo. Várias homenagens são feitas ainda em vida e havia também

um fervor religioso entre os descamisados: “Altares y capillas improvisadas se levantaban en

todo el país para rezar por su salud” (EJSV, p. 319).176 A oposição seguia ferrenha:

Un ambiente de desolación y tristeza comenzaba a invadir los barrios populares

mientras manos anónimas – como mencionamos en el capítulo anterior – pintaban

“¡Viva el cáncer!”. Eran manos que venían de barrios donde le deseaban larga vida

al cáncer y corta vida a su odiada enemiga. (EJSV, p. 320).177

No entanto, Eva sabia que permaneceria na memória do povo (EJSV, p. 322). Evita

falece no dia 26 de julho de 1952 (EJSV, p. 324). Perón ordena seu embalsamamento,

alegando que esta era a vontade de Eva (EJSV, p. 326). O taxidermista espanhol Pedro Ara dá

início aos trabalhos de preservação do cadáver. Segundo Pigna, o país ficou paralisado

durante o luto que chegou a durar quinze dias (EJSV, p. 328). Altares são erguidos em toda a

nação. Evita recebeu honras de Chefe de Estado, e seu corpo ficou guardado na sede da CGT

(EJSV, p. 329). A notícia de sua morte repercute em todo o mundo (EJSV, p. 331).

O último capítulo, “Esa mujer”, narra o sequestro de seu cadáver pelos militares na

Revolução Libertadora, e seu posterior retorno à Argentina. Após o falecimento de Evita, a

crise econômica se agrava: “La prosperidad parecía haberse ido con la muerte de Evita, y para

sus ‘descamisados’ los mejores años de sus vidas quedarían indisolublemente ligados a los

175 Tradução nossa: “As pessoas cantavam ‘amanhã é São Perón’, reclamando o feriado do dia seguinte, ao que

Perón respondeu: ‘como este 17 de outubro foi dedicado a minha esposa, em vez de São Perón, façamos Santa

Evita” (grifo nosso).

176 Tradução nossa: “Altares e capelas improvisadas se levantaram em todo o país para rezar por sua saúde”.

177 Tradução nossa: “Um ambiente de desolação e tristeza começava a invadir os bairros populares enquanto

mãos anônimas – como mencionamos no capítulo anterior – pintavam “Viva o câncer”. Eram mãos que vinham

de bairros nos quais desejavam vida longa ao câncer e curta vida a sua odiada inimiga”.

120

tiempos en que ‘la abanderada de los humildes’ estaba viva” (EJSV, p. 337).178 Pigna

representa Evita como insubstituível, tanto à frente da Fundação, quanto na presidência do

Partido Peronista Feminino.

Surgem disputas de poder na CGT (EJSV, p. 338). Além disso, cresce o rancor dos

opositores diante das várias homenagens a Eva Perón, considerada um símbolo nacional

(EJSV, p. 341). Pigna destaca o clima de revanchismo e ódio de classes que se instala no país

com a Revolução Libertadora que destitui Perón: destruição da Cidade Infantil, demolição da

residência presidencial e da casa de Eva, abandono da construção do Hospital das Crianças,

etc. “La furia de la ‘desperonización’ alcanzó grados inauditos bajo el gobierno de Aramburu”

(EJSV, p. 347).179 Uma série de proibições a respeito do peronismo são feitas por decreto em

1956 (EJSV, p. 348). Os militares decidem pelo sequestro do cadáver e sua ocultação. O

Coronel Moori Koenig, encarregado do operativo, desenvolveu obsessão pelo cadáver e o

translada por várias partes da cidade (EJSV, p. 353).

Segundo Pigna, a resistência peronista parecia seguir a pista do cadáver e isto

acentuava o problema que os “libertadores” tinham em mãos. Com apoio da Igreja Católica, o

corpo é levado para a Itália e enterrado sob o nome falso de María Maggi de Magistris (EJSV,

p. 357). O cadáver, para os peronistas, ganha uma nova dimensão com seu desaparecimento

(EJSV, p. 358). Os Montoneros sequestram o ex presidente Aramburu e exigem a restituição

do corpo de Evita (EJSV, p. 363). Aramburu é executado e seu corpo só é entregue em troca

do cadáver de Evita que é devolvido a Perón em Madrid (EJSV, p. 367). Este regressa ao país

com sua terceira esposa, María Estela Martínez, conhecida como Isabelita, mas sem o cadáver

de Evita. Em 1974, a organização Montoneros sequestra o cadáver de Aramburu exigindo a

repatriação do corpo de Evita (EJSV, p. 371). Isabelita, então presidente da Argentina, aceita

e o cadáver retorna ao país em novembro de 1974. Primeiro depositado num ataúde aberto

coberto com um vidro que permitia sua exibição, o cadáver ficou na Quinta de Olivos,

residência presidencial. Por fim, foi depositado na Recoleta. Pigna afirma que Evita era

temida pelos militares, “aun después de muerta” (EJSV, p. 370).180

O historiador apresenta seu objeto – Eva Perón – através de uma periodização linear,

narrando sua transformação no decorrer do tempo de pessoa comum em ente político. A

178 Tradução nossa: “A prosperidade parecia ter ido com a morte de Evita, e para seus ‘descamisados’ os

melhores anos de suas vidas ficariam indissoluvelmente ligados aos tempos em que ‘a porta voz dos humildes’

estava viva”.

179 Tradução nossa: “A fúria da ‘desperonização’ alcançou graus inauditos sob o governo de Aramburu”.

180 Tradução nossa: “mesmo depois de morta”.

121

cronologização feita por Pigna, portanto, permite ao leitor acessar os eventos com clareza

numa sequência bem encadeada e é um dos elementos criadores do efeito de historicidade.

4.1.2 Visão panorâmica: contextualização

Relacionar o homem ao seu tempo é um dos objetivos do biógrafo. Expor e comentar

questões mais amplas que a experiência de vida individual do biografado, além de fornecer

objetividade à narrativa biográfica, confere ao texto efeito de historicidade, pois o contexto

refere-se a fatos e eventos conhecidos da história nacional ou internacional. Em EJSV, a

contextualização é frequente nos parágrafos iniciais de capítulos, mas também pode ser

encontrada em outras partes. Por exemplo, antes da narrativa do nascimento de Eva Perón,

mencionam-se questões conjunturais, perfazendo um panorama de 1919 no pós Primeira

Guerra Mundial, citando Europa, Estados Unidos, México e Argentina:

El mundo estaba agitado allá por 1919. El 28 de junio, las grandes potencias

vencedoras de la sangrienta Primera Guerra Mundial se pondrían finalmente de

acuerdo en el Salón de los Espejos del Palacio de Versalles. Allí decidirían el

reparto de Europa y se unirían para combatir al naciente primer Estado socialista del

mundo, que luego sería conocido como la Unión Soviética. (EJSV, p. 13)181

Segue o historiador biógrafo listando a fundação do Partido Nacional Fascista, na

Itália, por Benito Mussolini, e do Partido Nacional Socialista Alemão dos Trabalhadores, na

Alemanha, com participação de Adolf Hitler; a Lei Seca, nos Estados Unidos; o assassinato

de Emiliano Zapata, no México, e, chegando à Argentina, a ascensão do tango e o governo de

Yrigoyen. Com relação a este, o evento relatado é o massacre conhecido com “Semana

Trágica”, modo como o governo terminou com um protesto de trabalhadores. Ao comentar

este evento, Pigna introduz dois personagens que serão várias vezes mencionados ao longo da

biografia – as damas de caridade e a Igreja:

Terminada la matanza, las damas de caridad y la jerarquía de la Iglesia católica

lanzaron una colecta para reunir fondos para “darle limosna a los pobres”. Lo hacían

evidentemente en defensa propia según ellas mismas confesaban: “Dime: ¿qué

menos podrías hacer si te vieras acosado o acosada por una manada de fieras

hambrientas, que echarles pedazos de carne para aplacar el furor y taparles la boca?

Los bárbaros ya están a las puertas de Roma”. (EJSV, p. 14)182

181 Tradução nossa: “O mundo estava agitado lá por 1919. Em 28 de junho, as grandes potências vencedoras da

sangrenta Primeira Guerra Mundial entrariam finalmente em acordo no Salão dos Espelhos do Palácio de

Versalhes. Ali decidiriam a divisão da Europa e se uniriam para combater o nascente primeiro estado socialista

do mundo, que logo seria conhecido como a União Soviética”.

182 Tradução nossa: “Terminada a matança, as damas de caridade e a hierarquia da Igreja católica lançaram uma

coleta para reunir fundos para ‘dar esmola aos pobres’. Faziam-no evidentemente em defesa própria segundo ele

as mesmas confessavam: ‘Diga-me: que mais poderia fazer se se visse assediado ou assediada por uma manada

122

Neste cenário, é registrado o nascimento de Eva Perón:

Sonaba el tango y resonaban los ecos de aquella massacre cuando en el campo “La

Unión”, cercano a la pequeña localidad bonaerense conocida como Los Toldos, en el

partido de General Viamonte, a las cinco de la mañana del lluvioso 7 de mayo de

1919 nacía María Eva, la futura Eva Perón. (EJSV, p. 15)183

O contexto internacional é entremeado à narrativa como, por exemplo: “Mientras

María Eva crecía, la Argentina vivía la terrible crisis iniciada en octubre de 1929 en Estados

Unidos y extendida como una peste a todo el mundo” (EJSV, p. 24).184 A partir do

detalhamento da informação sobre a Crise de 1929, o narrador introduz a informação sobre as

migrações internas na Argentina para, então, mencionar a mudança da família de Eva de Los

Toldos para Junín, em 1930 (EJSV, p. 25). Além de entremeado à narrativa, o contexto

permite ao historiador tecer críticas:

Evita era una migrante más en Buenos Aires. Era parte de un proceso histórico que

no la tuvo como protagonista sino como víctima. Una entre millones que habían

dejado su tierra empobrecida buscando un horizonte en la gran ciudad que iba

diversificando su economía. Gobernaba el país, gracias a un escandaloso y

persistente fraude electoral, la más rancia oligarquía ganadera, que se desentendía de

los dramas sociales de la mayoría de la población y se dedicaba prolijamente a

aprovechar los beneficios colaterales de la crisis: compraba por monedas campos

que antes valían millones; monopolizaba los créditos que los bancos oficiales les

negaban a los chacareros, peones y trabajadores; rebajaba los sueldos de sus

asalariados y aumentaba notablemente sus márgenes de ganancia, predicando el

sacrificio ajeno “para salir de la crisis” y practicando el despilfarro gracias a aquel

sacrificio. (EJSV, p. 35)185

A partir dessa informação sobre o governo argentino na década de 1930, Pigna relata

como as crianças pobres viviam, enfrentando desnutrição, dificuldades para estudar, e

enfermidades. O historiador apresenta a “década infame” como o cenário no qual Eva

procurava trabalho em Buenos Aires: “Durante sus primeros meses en Buenos Aires, Eva

de feras famintas, que lhes jogar pedaços de carne para aplacar o furor e lhes tapar a boa? Os bárbaros já estão às

portas de Roma’.”

183 Tradução nossa: “Soava o tango e ressoavam os ecos daquele massacre quando no campo ‘La Unión’,

próximo a pequena localidade bonoarense conhecida como Los Toldos, na comarca de General Viamonte, às

cinco da manhã do chuvoso 7 de maio de 1979 nascia Maria Eva, a futura Eva Perón”.

184 Tradução nossa: “Enquanto María Eva crescia, a Argentina vivia a terrível crise iniciada em outubro de 1929

nos Estados Unidos e estendida como uma peste a todo o mundo”.

185 Tradução nossa: “Evita era mais uma migrante em Buenos Aires. Era parte de um processo histórico que não

a teve como protagonista e sim como vítima. Uma entre milhões que haviam deixado sua terra empobrecida

buscando um horizonte na cidade grande que ia diversificando sua economia. Governava o país, graças a uma

escandalosa e persistente fraude eleitoral, a mais rançosa oligarquia pecuarista, que era indiferente aos dramas

sociais da maioria da população e se dedicava excessivamente a aproveitar os benefícios colaterais da crise:

comprava por uma ninharia campos que antes valiam milhões; monopolizava os créditos que os bancos oficiais

negavam aos pequenos agricultores, peões e trabalhadores; abaixava os salários de seus assalariados e aumentava

notavelmente suas margens de lucro, pregando o sacrifício alheio ‘para sair da crise’ e praticando esbanjamento

graças àquele sacrifício”.

123

vivía en una humilde pensión de la zona de Congreso. Sobrevivía, como millones de

argentinos, aquella “década infame” (EJSV, p. 36).186

O funeral do famoso cantor de tango, Carlos Gardel, em 1936, é apresentado como

contexto para o narrador falar sobre o processo de modernização da Avenida Corrientes187 e

seus teatros, para narrar o início das atividades teatrais de Eva (EJSV, p. 44). As necessidades

pelas quais Eva passava são relacionadas à crise do teatro que, por sua vez, ressentia-se da

crise nacional:

El teatro fue la actividad cultural que más se resintió con la crisis económica: las

compañías duraban una temporada y sólo estrenaban comedias ligeras y sainetes con

bajos costos de producción. El teatro de revista mantenía su éxito en Buenos Aires,

pero según los productores, Eva no reunía las condiciones exigidas por el género.

Vivía con lo justo y se alimentaba a mate cocido y bizcochos y algún que otro café

con leche con medialunas. (EJSV, p. 48)188

Em alguns momentos, a contextualização é sobre obras teatrais ou funções artísticas

contemporâneas às apresentações de Eva: “Por entonces, Aníbal Troilo, “Pichuco”, había

debutado con su orquestra en el Marabú, estrenando Mi tango triste” (EJSV, p. 51).189 Por

vezes, a informação sobre o contexto é incrementada por mais detalhes em nota de rodapé,

como a nota 31 que esclarece sobre o teatro Marabú, informando sua localização e sua

importância na noite portenha. A menção a estabelecimentos com detalhes sobre seu

funcionamento marca a narrativa com dados extraídos da realidade, ajudando a conformar o

imaginário sobre a historicidade dos eventos da biografia de Eva como narrados.

Pigna utiliza o recurso de misturar temporalidades ao acrescentar informações futuras

ao panorama de época apresentado, antecipando situações:

Aquel verano del ’44 parecía uno más en Buenos Aires. Hacía un calor asfixiante y

los balnearios de la costanera estaban a pleno, alegrando a las mayorías que ni

soñaban con Mar del Plata, refugio todavía de las clases altas que gozaban de sus

mansiones y sus playas exclusivas sin siquiera imaginar que en apenas dos o tres

años serían “invadidos” por la chusma, que gozaría de su flamante derecho a

vacaciones pagas y llenaría los nuevos hoteles sindicales, que daría una nueva

fisionomía a la “perla del Atlántico”. Pero por ahora, en aquellos días de enero el

coronel Perón era apenas el secretario de Trabajo y Previsión y no asomaba aún

186 Tradução nossa: “Durante seus primeiros meses em Buenos Aires, Eva vivia numa humilde pensão da zona

do Congresso. Sobrevivia como milhões de argentinos, aquela década infame”.

187 Uma das principais e mais famosas de Buenos Aires.

188 Tradução nossa: “O teatro foi a atividade cultural que mais se ressentiu com a crise econômica: as

companhias duravam uma temporada e só estreavam comédias ligeiras e sainetes com baixos custos de

produção. O teatro de revista mantinha seu éxito em Buenos Aires, mas segundo os produtores, Eva não reunia

as condições exigidas pelo gênero. Vivia com o dinheiro contado e se alimentava com chá e biscoitos e um ou

outro café com leite e pão.”

189 Tradução nossa: “Naquela época, Aníbal Troilo, ‘Pichuco’, havia debutado com sua orquestra no Marabú,

estreando Mi tango triste.”

124

como una figura amenazante en el imaginario de los ricos de Argentina. (EJSV, p.

72)190

Ao tratar sobre a obra de ajuda social de Evita em oposição à beneficência das

senhoras oligarcas, Pigna contextualiza a Sociedade de Beneficência de Buenos Aires,

narrando um breve histórico da mesma desde a sua fundação, em 1823, até a intervenção do

governo peronista na entidade, em 1946. Esta contextualização enseja a crítica de Pigna à

história oficial: “La historia oficial, que ha sido tan ‘piadosa’ y ‘distraída’ con la Sociedad de

Beneficencia, reservó toda su ‘agudeza’ y ‘perspicacia’ para cuestionar hasta en sus más

mínimos detalles la monumental obra social de Eva Perón” (EJSV, p. 126).191

A narrativa da viagem de Eva Perón à Espanha em celebração aos acordos comerciais

que socorreram este país num momento de crise é acompanhada por informação crítica sobre

o contexto mais atual, mais aproximado da escrita da biografia, embora sem maiores

esclarecimentos, dando a entender que o narrador imagina dirigir-se a leitores que têm

conhecimento sobre os eventos que narra:

Durante la crisis de 2001 el hambreado pueblo argentino esperó una actitud de

reciprocidad histórica por parte del gobierno español, que por entonces estaba en

manos del derechista José María Aznar. Pero el amigo hispánico del presidente

norteamericano George W. Bush y defensor de las empresas españolas que habían

saqueado la Argentina en los ’90, se encogió de hombros y fue el pueblo español y

no su gobierno el que transformó el recuerdo en solidaridad. (EJSV, p. 137)192

O contexto dos debates e atos sobre a candidatura de Evita à vice-presidência é, no

plano internacional, o da Guerra Fria, e no nacional, o da oposição das Forças Armadas e de

setores da Igreja. Tal contexto é apresentado pelo historiador com marcas de subjetividade:

Eran tiempos en que la guerra fría lucía sus peores galas. El “héroe del Pacífico”,

aquel general Douglas MacArthur que había supervisado la ocupación del Japón

después de los miles de muertos de Hiroshima y Nagasaki, se peleaba con el

presidente norteamericano Harry Truman por la estrategia que debían seguir en la

guerra de Corea. MacArthur pidió que arrojaran la bomba atómica sobre la

190 Tradução nossa: “Aquele verão de 1944 parecia mais um em Buenos Aires. Fazia um calor asfixiante e os

balneários da costa estavam lotados, alegrando as maiorias que sonhavam com Mar del Plata, refúgio ainda das

classes altas que gozavam de suas mansões e suas praias exclusivas sem sequer imaginar que em apenas dois ou

três anos seriam ‘invadidos’ pela gentinha, que gozaria de seu flamejante direito a férias remuneradas e encheria

os novos hotéis sindicais, o que daria uma nova fisionomia à ‘pérola do Atlântico’. Mas por agora, naqueles dias

de janeiro o coronel Perón era apenas o secretário de Trabalho e Previsão e não aparecia ainda como uma figura

ameaçante no imaginário dos ricos da Argentina”.

191 Tradução nossa: “A história oficial, que foi tão ‘piedosa’ e ‘distraída’com a Sociedade de Beneficência,

reservou toda sua ‘agudeza’ e ‘perspicácia’ para questionar até em seus mínimos detalhes a monumental obra

social de Eva Perón”.

192 Tradução nossa: “Durante a crisde de 2001 o esfomeado povo argentino esperou uma atitude de reciprocidade

histórica por parte do governo espanhol, que naquela época estava nas mãos do direitista José María Aznar. Mas

o amigo hispânico do presidente George W. Bush e defensor das empresas espanholas que haviam saqueado a

Argentina nos anos 1990, deu de ombros e foi o povo espanhol e não seu governo o que transformou a

lembrança em solidariedade”.

125

recientemente proclamada República Popular China. Truman no estuvo de acuerdo y

MacArthur se tuvo que ir con su “heroísmo” a otra parte. Pero aunque el conflicto

no salió de las “armas convencionales”, lo cierto es que el mundo volvía a estar en

guerra y crecía el protagonismo de los círculos castrenses. Los camaradas militares

de Perón fueron los primeros en expresar su enojo y preocupación por la candidatura

de Evita. Bajo sus gorras bien calzadas, aquellas mentes machistas no querían

siquiera imaginarse a una mujer y mucho menos a “esa mujer” presidiendo

unaeceremonia militar y dando órdenes a los uniformados. Ni mucho menos la

hipótesis de máxima, la muerte de Perón violenta, accidental o natural, y la asunción

de “la Eva” a la primera magistratura y, por lo tanto, al cargo inherente de

comandante en jefe de las Fuerzas Armadas del aire, mar y tierra. (EJSV, p. 261).193

O último exemplo de contextualização apresentado neste trabalho é o que menciona as

mudanças ocorridas na economia e na política argentina após a morte de Evita:

Si, como aseguraba el doctor Ara, el cuerpo de Evita permanecía “intacto”, todo

alrededor comenzaba a cambiar. Los signos de la crisis económica que se venía

incubando desde hacía más de dos años empezaban a volverse indisimulables. […]

El país iniciaba los tiempos sin Evita con un Plan de Emergencia Económica, al que

pronto se sumaría la puesta en marcha del Segundo Plan Quinquenal, orientado al

aumento de inversiones (incluidas las extranjeras) y de la “productividad”, con

incrementos salariales que empezaban a retrasarse con respecto al costo de vida.

(EJSV, p. 337, grifo do autor).194

A contextualização, como já mencionado, é um dos elementos que possibilitam o

efeito de historicidade justamente por ser uma das principais marcas da biografia escrita pelo

historiador que demonstra ter conhecimento não apenas sobre a vida do biografado como

também do contexto em que este viveu, possibilitando a inserção do sujeito em seu tempo.

Com isto, por um lado, o autor constrói sua imagem de historiador que segue um conjunto de

práticas investigativas e maneja um amplo conhecimento sendo, portanto, digno de

consideração, e, por outro lado, o leitor pode dar crédito ao ofício do historiador manifesto em

sua narrativa.

193 Tradução nossa: “Eram tempos em que a Guerra Fria mostrava sua pior face. O ‘herói do Pacífico’, aquele

general Douglas MacArthur, que havia supervisionado a ocupação do Japão depois dos milhares de mortos de

Hiroshima e Nagasaki, lutava com o presidente norteamericano Harry Truman pela estratégia que deveriam

seguir na Guerra da Coreia. MacArthur pediu que lançassem a bomba atômica sobre a recentemente proclamada

República Popular da China. Truman não esteve de acordo e MacArthur teve que ir com seu ‘heroísmo’ a outra

parte. Mas embora o conflito não tenha saído das ‘armas convencionais’, o certo é que o mundo voltava a estar

em guerra e crescia o protagonismo dos círculos castrenses. Os camaradas militares de Perón foram os primeiros

a expressar seu aborrecimento e preocupação com a candidatura de Evita. Sob seus quepes bem ajustados,

aquelas mentes machistas não queriam sequer imaginar uma mulher e muito menos ‘essa mulher’ presidindo

uma cerimônia militar e dando ordens aos uniformizados. Nem muito menos a hipótese máxima da morte de

Perón, violenta, acidental ou natural, e a assunção ‘da Eva’ à primeira magistratura e, por tanto, ao cargo inerente

de comandante em chefe das Forças Armadas do ar, mar e terra.”

194 Tradução nossa: “Se, como assegurava o doutor Ara, o corpo de Evita permanecia ‘intacto’, tudo ao redor

começava a mudar. Os signos da crise econômica que vinha se incubando desde mais de dois anos começavam a

se tornarem indissimuláveis. [...] O país iniciava os tempos sem Evita com um Plano de Emergência Econômica,

ao qual logo se somaria a colocação em marcha do Segundo Plano Quinquenal, orientado ao aumento de

investimentos (incluídos os estrangeiros) e da ‘produtividade’, com incrementos salariais que começavam a se

defasar com relação do custo de vida”.

126

4.1.3 Definir ideias: conceitualização

Seguindo o levantamento dos elementos que conferem efeito de historicidade ao texto

biográfico, remeto ao ato de elaborar conceitos e explicitá-los na narrativa biográfica. Este

procedimento integrante do conjunto de práticas que compõem o ofício do historiador é

empregado com vistas a organizar a realidade histórica, tornando-a compreensível aos

leitores.

Em EJSV, este recurso é pouco utilizado. O historiador, por vezes, incorpora em sua

narrativa conceitos elaborados por outros como, por exemplo, “década infame”. Segundo

Pigna, o período recebeu essa qualificação pelo jornalista José Luis Torres, de quem cita as

palavras a seguir:

[...] infamaron esa década, con la más total y absoluta falta de escrúpulos políticos y

morales. […] No importaban los preceptos constitucionales. Se tomaron las medidas

necessárias para burlarlos, estableciendo la norma de investir con la representación

popular precisamente a los ciudadanos a quienes el pueblo negaba su sufragio. Éstos

con frecuencia eran elegidos entre los más venales servidores de las satrapías

dominantes, y los sátrapas mismos se sentaban en las bancas parlamentares para

defender sus propios negocios, vigilando al mismo tiempo la lealtad de sus adictos.

(EJSV, p. 37)195

Pigna, ao narrar a concentração de multidões de trabalhadores, na Praça de Maio, em

17 de outubro de 1945, para reivindicar a libertação de Perón, aclamando-o, quando solto, por

fim, naquele que seria o primeiro 17 de outubro da história peronista, recorre à expressão

“aluvião zoológico”, indicando que foi forjada anos depois do acontecimento pelo dirigente

radical Ernesto Sanmartino (EJSV, p. 109). O historiador define o poder do qual fez uso Evita

como “innovador y disruptivo”,196 que não lhe foi dado, pura e simplesmente, por Perón, mas

que por ela foi construído (EJSV, p. 9). Em relação ao peronismo, Eva Perón é designada

como “uno de los símbolos más claros del movimento” (EJSV, p. 11).197

Pigna tece críticas à história social, herdeira da história liberal clássica, pois se revela

indulgente com o modelo agroexportador excludente vigente na Argentina antes do

peronismo, no entanto crítica em relação ao peronismo de modo geral e, em particular, de Eva

195 Tradução nossa: “[…] infamaram essa década com a mais total e absoluta falta de escrúpulos políticos e

morais. [...] Não importavam os preceitos constitucionais. Tomaram as medidas necessárias para burlá-los,

estabelecendo a norma de investir com a representação popular precisamente os cidadãos a quem o povo negava

seu voto. Estes com frequência eram eleitos entre os mais venais servidores das satrapias dominantes, e os

sátrapas mesmos se sentavam nas bancas parlamentares para defender seus próprios negócios, vigiando ao

mesmo tempo a lealdade de seus agregados”

196 Tradução nossa: “inovador e disruptivo”.

197 Tradução nossa: “um dos símbolos mais claros do movimiento”.

127

Perón. O historiador posiciona-se na corrente historiográfica mais recente que busca tratar

Evita como um sujeito político. Inscreve sua produção junto a obras que reconhecem,

elogiosamente ou não, o protagonismo político de Evita, de modo complementar a Perón ou

até mesmo em concorrência com ele (EJSV, p. 10).

Integra a conceitualização operada por Pigna a definição de Evita como um mito,

apresenta as razões para tal:198

Evita, sin dudas, reúne todas las condiciones para ser un mito: llegó a lo más alto

partiendo desde muy abajo, murió joven y en el esplendor de una vida donde la

historia se tiñe con el rosa y el negro de las respectivas leyendas. Despertó hacia ella

todos los sentimientos menos uno: la indiferencia. Para unos era el “hada rubia”, la

“abanderada de los humildes”, la “compañera Evita”; para otros, “esa mujer”, “la

Eva”. (EJSV, p. 10)199

Um conceito de Pigna define “uma nova forma de fazer política”: a fusão do

personalismo do chefe com a mobilização social (EJSV, p. 122).

Define ainda o Estado peronista como “Estado benfeitor”:

El estado peronista puede incluirse dentro de la corriente política mundial de

posguerra denominada del “Estado benefactor”, que integró a los sectores populares

al consumo y a ciertos niveles de bienestar, bajando de esta forma la conflictividad

social. (EJSV, p. 185)200

A Revolução Libertadora é definida pelo historiador como golpe de Estado e o

governo que se estabelece na ocasião como antiperonista: “Luego del golpe de Estado de

1955, cuando el gobierno antiperonista incautó los bienes de la Fundación [...]” (EJSV, p.

211).201 O recurso da formulação de novos conceitos é pouco utilizado, porque Pigna, em sua

metodologia, parece preferir o recurso da citação de outros historiadores e biógrafos,

apresentando e discutindo várias versões sobre os eventos que narra, como discutiremos a

seguir.

198 O aspecto relacionado ao mito é abordado no capítulo “Margens confluentes: o imaginário evitista” (p. 147)

199 Tradução nossa: “Evita, sem dúvida, reúne todas as condições para ser um mito: chegou ao mais alto partindo

de muito baixo, morreu jovem e no esplendor de uma vida onde a história se tinge com o rosa e o negro das

respectivas lendas. Despertou para si todos os sentimentos menos um: a indiferença. Para uns, era a ‘fada loura’,

a ‘portavoz dos humildes’, a ‘companheira Evita’; para outros, ‘essa mulher’, ‘a Eva’”.

200 Tradução nossa: “O estado peronista pode ser incluído dentro da corrente política mundial do pós-guerra

denominada de “Estado benfeitor”, que integrou os setores populares ao consumo e a certos níveis de bem-estar,

diminuindo desta forma a conflitividade social”.

201 Tradução nossa: “Logo depois do golpe de Estado de 1955, quando o governo antiperonista confiscou os bens

da Fundação [...].”

128

4.1.4 Discussão das fontes e versões

Como já mencionado, parte do ofício do historiador consiste em apresentar as fontes,

os documentos nos quais se baseia ou dos quais discorda, bem como as versões sobre os

acontecimentos narrados, realizando assim sua discussão. Isto é próprio do discurso histórico,

que tem como pretensão ser um discurso verificável, portanto precisa apresentar os

documentos que atestam a veracidade do narrado. O leitor pode aceitar tal informação,

assumindo o pacto de leitura, ou pode, se quiser, inventariar e recorrer às fontes para

comprovar o que foi lido. Sendo assim, a discussão de fontes e versões constitui um dos

elementos criadores do efeito de historicidade em EJSV .

Pigna descarta a hipótese de Eva ter partido de Junín para Buenos Aires com o cantor

Agustín Magaldi, chamando tal possibilidade de lenda:

La leyenda dice que Evita partió de Junín hacia Buenos Aires a principios de 1935

acompañada por Agustín Magaldi. Pero lo cierto es que el cantor, que había actuado

en la ciudad en 1929 con su compañero de dúo, Pedro Noda, sólo volvió a hacerlo

en diciembre de 1936, cuando Eva llevaba más de un año de radicación en Buenos

Aires. (EJSV, p. 32)202

No entanto, ao apresentar uma carta de Eva dirigida à sua mãe, Joana Ibarguren, diz

que ela partiu “aparentemente sola, como sugiere esta carta” (EJSV, p. 33).203 O advérbio

“aparentemente” e o verbo “sugere” indicam a modalização do discurso de forma a não se

comprometer evitando-se a afirmação contundente que seria: “ela partiu só, como afirma esta

carta”. Mais adiante na narrativa, Pigna retorna de modo mais assertivo à questão da ida de

Eva para Buenos Aires com Magaldi, afirmando que a jovem atriz iniciante buscava espaço

de divulgação nas revistas e que “tiempo después comenzó a construirse la versión falsa de

que había venido a Buenos Aires con Agustín Magaldi” (EJSV, p. 37).204 Cita a declaração de

Eduardo del Castillo, que foi redator na Subsecretaria de Informações da Presidência da

Nação, constante na obra La vida de Eva Perón. Testimonios para su historia, de Otelo

Borroni e Roberto Vacca, publicado em 1970. Segundo este relato, Magaldi limitou-se a

202 Tradução nossa: “A lenda diz que Evita partiu de Junín para Buenos Aires no início de 1935 acompanhada

por Agustín Magaldi. Mas o certo é que o cantor, que havia atuado na cidade em 1929 com seu companheiro de

dueto, Pedro Noda, só voltou a fazê-lo em dezembro de 1936, quando Evita já estava há mais de um ano

radicada em Buenos Aires”.

203 Tradução nossa: “aparentemente sozinha, como sugere esta carta”.

204 Tradução nossa: “tempo depois começou a se construir a versão falsa de que havia vindo para Buenos Aires

com Agustín Magaldi”.

129

conectar Eva com uma prima da atriz Maruja Gil Quesada, que a ajudou, alojando-a em seu

apartamento (EJSV, p. 37).

Sobre o encontro de Eva com Perón, no evento beneficente no Luna Park, o

historiador apresenta e discute várias versões:

Quién sirvió de nexo para que Eva ocupase uno de esos asientos es ya un tema

mítico, con versiones para todos los gustos: desde el autor de tangos y guionista

cinematográfico Homero Manzi – según les contó a Borroni y Vacca su compañero

del grupo FORJA, Arturo Jauretche – hasta quien luego sería el popular animador de

televisión, Roberto Galán, pasando por Imbert y el teniente coronel Domingo

Mercante, mano derecha y “corazón” de Perón. (EJSV, p. 75)205

Segundo Roberto Galán, ele teria apresentado Eva a Perón (EJSV, p. 75). Outra versão

é a do filho de Domingo Mercante, segundo a qual seu pai foi quem os apresentou (EJSV, p.

76). Após apresentar as duas versões que extraiu da obra Eva Perón la biografia (1995), de

Alicia Dujovne Ortiz, Pigna não se compromete em escolher uma delas e afirma que: “Lo

certo es que esa noche, Evita y Rita Molina ocuparon esos asientos vacíos al lado de Perón e

Imbert” (EJSV, p. 76).206

O autor apresenta ainda as versões de Perón e Evita. Comenta que a versão de Perón é

diferente das anteriores embora as combine. A principal diferença é que Perón menciona que

prestou atenção em Eva antes do evento beneficente, durante uma reunião com vários artistas

para organização do show. Uma vez mais, Pigna não se compromete com a aceitação dessa

versão; chega a lançar dúvidas, ao afirmar que: “Es imposible saber qué parte de ese relato es

histórico y cuál integra el mito, pero por eso mismo vale la pena transcribirlo, tratándose de

Evita” (EJSV, p. 76).207 A versão de Perón foi extraída por Pigna da obra Vida íntima de

Perón. La historia privada según su biógrafo personal (2011), de Enrique Pavón Pereyra.

Por fim, Pigna cita Eva Perón, em LRMV (1951) e no testemunho a uma amiga: “Eva

se limitaría a decir que fue su “día maravilloso”, el que cambia una vida, pero a una amiga le

confió cómo fue aquella noche” (EJSV, p. 78).208 O depoimento dessa amiga, que Pigna não

205 Tradução nossa: “Quem serviu de nexo para que Eva ocupasse um desses assentos já é um tema mítico, com

versões para todos os gostos: desde o autor de tangos e roteirista cinematográfico Homero Manzi – segundo

contou a Borroni e Vacca seu companheiro do grupo FORJA, Arturo Jauretche – até quem logo seria o popular

animador de televisão, Roberto Galán, passando por Imbert e o tenente coronel Domingo Mercante, mão direita

e ‘coração’ de Perón.”

206 Tradução nossa: “O certo é que essa noite, Evita e Rita Molina ocuparam esses assentos vazios ao lado de

Perón e Imbert.”

207 Tradução nossa: “É impossível saber que parte dsse relato é histórico e qual inegra o mito, mas por isso

mesmo vale a pena transcrevê-lo, tratando-se de Evita”.

208 Tradução nossa: “Eva limitaría-se a dizer que foi seu ‘dia maravilhoso’, o que muda uma vida, mas a uma

amiga confiou como foi aquela noite”.

130

identifica, consta em Evita íntima. Los sueños, las alegrías, el sufrimiento de la mujer más

poderosa del mundo (1997), de Vera Pichel. Segundo tal depoimento, sentar-se ao lado de

Perón foi iniciativa de Eva que aproveitou a oportunidade quando viu o assento vazio ao seu

lado. Sentou-se, logo começaram a conversar, e acabado o evento, foram embora juntos

(EJSV, p. 79).

A disposição dos vários testemunhos na biografia feita pelo autor, que deixou o de

Evita para o final parece indicar que esta seria a versão que traz a realidade dos fatos. No

entanto, o fato de não haver identificado quem fala, ou seja, quem foi a amiga à qual Eva

confiou o segredo, indica incerteza quanto a essa versão. Entretanto, essa parece encaixar-se

melhor na representação que Pigna faz de Eva Perón como ser autônomo e consciente de seu

magnetismo e poder, que mais adiante irão se manifestar na política. Destaco o quanto o

historiador é detalhista ao mencionar os relatos, os nomes dos produtores desses testemunhos

e dos biógrafos que os registraram. Isto confere à narrativa efeito de historicidade.

Sobre a formação política de Eva, Pigna afirma que vários testemunhos mencionam

sua presença nas reuniões que Perón fazia com dirigentes políticos, conservadores e radicais

em sua residência. Segundo o historiador:

En esas reuniones, Eva pudo familiarizarse con conceptos y términos políticos.

Perón, que hacia el final de su vida insistirá en que Evita era “obra” suya, recordará

que por aquellos días “me seguía como una sombra, me escuchaba atentamente,

asimilaba mis ideas, las elaboraba en su cerebro hirviente y agilísimo y seguía mis

directivas con una precisión excepcional. (EJSV, p. 89)209

Outra versão mencionada por Pigna é a de que Evita já desenvolvia atividade sindical

“como socia fundadora de la Asociación Radial Argentina, creada en agosto de 1943 y

reconocida oficialmente el 6 de mayo de 1944 en un acto encabezado por el propio Perón.”

(EJSV, p. 89).210

Um evento importante para o peronismo é a libertação de Perón no dia 17 de outubro

de 1945. Embora tenha se criado a ideia de que Evita teve grande participação para que Perón

fosse solto da prisão, Pigna afirma categoricamente:

Evita estuvo lejos de tener un rol protagónico en aquellas jornadas que culminarían

el 17 de octubre: no era una figura conocida en el ámbito general y faltaban un par

de años de intensa labor para que su palavra tuviera el valor de una orden entre los

“descamisados”. Pero nadie podrá negarle su tesón y que hizo lo que estuvo a su

209 Tradução nossa: “Nessas reuniões, Eva pode familiarizar-se com conceitos e termos políticos. Perón, que até

o final de sua vida insistirá que Evita era ‘obra’ sua, recordará que por aqueles dias ‘me seguia como uma

sombra, me escutava atentamente, assimilava minhas ideias, elaborava-as em seu cérebro fervente e agilíssimo e

seguia minhas diretrizes com uma precisão excepcional”.

210 Tradução nossa: “como sócia fundadora da Associação Radial Argentina, criada em agosto de 1943 e

reconhecida oficialmente em 6 de maio de 1944 num ato encabeçado pelo próprio Perón”.

131

alcance para lograr la libertad de su compañero. Andando el tiempo y sobre todo

después de su muerte, se construirá la imagen de una Eva que iba de un lado a otro

para arengar a los trabajadores. (EJSV, p. 111)211

Pigna menciona o relato de uma ativista trabalhadora na indústria têxtil, Mariana

Tedesco, que afirma a participação de Eva; o testemunho de um dirigente metalúrgico

trotskista, Ángel Perelman, segundo o qual Eva percorreu as ruas de carro difundindo a ideia

da greve geral; e a biografia escrita por Vera Pichel que a vê como “propulsora da marcha”.

Entretanto recorre ao relato da própria Eva Perón para fundamentar sua afirmação de que não

houve tal protagonismo. A afirmação de Eva é que o povo e Perón protagonizaram o 17 de

outubro:

no vamos a engañarnos, si no hubiera sido por las fuerzas leales y por el pueblo

argentino, no habríamos podido hacer nada por el general Perón sino debatirnos en

la impotencia. […] ¡Nadie dio el toque de salida! ¡El pueblo salió sólo! No fue la

señora de Perón. Tampoco fue la Confederación General del Trabajo. ¡Fueron los

obreros y los sindicatos todos los que por sí mismos salieron a la calle! La

Confederación General del Trabajo, la señora de Perón, todos nosotros lo

deseábamos. ¡Pero fue una eclosión popular! Fue el pueblo el que se dio cita sin que

nadie se lo hubiera indicado. (EJSV, p. 113)212

Pigna esclarece, em nota de rodapé, que esse relato de Evita consta na obra Historia

del peronismo, de Eva Perón, fruto das transcrições dos cursos que deu na Escola Superior

Peronista, afirmando que “en su momento tenía cierto valor de ‘versión oficial’ de los hechos”

(EJSV, p. 113).213 O historiador parece assim justificar sua escolha dessa versão sem

questionar sua produção.

Sobre o casamento de Perón e Eva, o autor menciona a cerimônia civil em Junín, em

22 de outubro de 1945, e a religiosa em La Plata, em 10 de dezembro do mesmo ano. O

historiador transcreve a certidão de casamento registrada no cartório em Junín e destaca:

Varios datos que figuran en el acta no eran ciertos: Juan Perón era viudo, y no

‘soltero’; Eva alteró su edad, lugar de nacimiento y, formalmente, sus datos de

filiación […], y tanto ella como su hermano y testigo, Juan Duarte, declaraban un

domicilio de conveniencia y no el real. Ninguna de esas falsedades invalidaba el

211 Tradução nossa: “Evita esteve longe de ter um rol protagônico naquelas jornadas que culminariam no 17 de

outubro: não era uma figura conhecida no âmbito geral e faltavam ainda um par de anos de intenso trabalho para

sua palavra tivesse o valor de uma ordem entre os ‘descamisados’. Mas ninguém poderá negar-lhe seu afinco e

que fez o que esteve ao seu alcance para conseguir a liberdade de seu companheiro. Avançando o tempo e

sobretudo depois de sua morte, se construirá a imagem de uma Eva que ia de um lado a outro para atiçar os

trabalhadores”.

212 Tradução nossa: “não vamos nos engañar, si não fosse pelas forças leais e pelo povo argentino, não teríamos

podido fazer nada pelo general Perón a não ser debater-nos na impotência. [...] Ninguém deu o toque de saída! O

povo saiu sozinho! Não foi a senhora de Perón. Tampouco foi a Confederação Geral do Trabalho. Foram os

trabalhadores e os sindicatos todos os que por si mesmos saíram às ruas! A Confederação Geral do Trabalho, a

senhora de Perón, todos nós o desejávamos. Mas foi uma eclosão popular! Foi o povo que marcou o encontro

sem que ninguém o tivesse indicado”.

213 Tradução nossa: “em seu momento tinha certo valor de ‘versão oficial’ dos fatos”.

132

consentimiento, la identificación o la capacidad para celebrar el matrimonio. (EJSV,

p. 115)214

Documentos de diversos tipos compõem o conjunto consultado por Pigna para

escrever sua biografia de Eva Perón. Na relação da bibliografia, seção constante ao final

(EJSV, p. 371-378), apresenta a relação das obras consultadas divididas em: bibliografia

específica (autobiografias e biografias de Evita); bibliografia geral (sobre o peronismo, a

política e a economia); publicações periódicas (artigos sobre Evita e a história argentina);

publicações digitais (sobre Evita e alguns de seus discursos); documentários (sobre Evita);

entrevistas realizadas pelo autor (a três pessoas) e coleções de jornais e revistas (cita apenas as

nacionais, não registra aqui as internacionais Times e World Report, por ele citadas na

biografia (EJSV, p. 155, 156)). A citação, ao longo da biografia, desse vasto conjunto de

documentos confere autoridade ao discurso do historiador, configurando-se o efeito de

historicidade. O leitor vê-se diante de um autor que maneja um amplo arsenal de informações

e autores nos quais afirma basear seu relato biográfico.

4.1.5 Autor historiador

O efeito de historicidade recebe um grande aporte com a inscrição do nome próprio do

historiador autor do texto biográfico. Sendo este autor conhecido midiaticamente, como é o

caso de Felipe Pigna, fato já mencionado na introdução deste trabalho, o reconhecimento não

apenas do seu estilo, mas do gênero de obra que escreve já se manifesta. É o historiador

reconhecido pelo leitor que sabe que tem em mãos uma obra de história, portanto não

ficcional, e sim acadêmica ou científica, que incorpora em seu discurso os documentos nos

quais se fundamenta, para atestar sua veracidade.

Sobre as características de uma obra e sua autoria, Michel Foucault indaga:

O que é uma obra? O que é pois essa curiosa unidade que se designa com o nome

obra? De quais elementos ela se compõe? Uma obra não é aquilo que é escrito por

aquele que é um autor? Vemos as dificuldades surgirem. Se um indivíduo não fosse

um autor, será que se poderia dizer que o que ele escreveu, ou disse, o que ele

deixou em seus papéis, o que se pode relatar de suas exposições poderia ser

chamado de “obra”? (FOUCAULT, 2001, p. 269)

Não são questões de fácil resolução, no entanto quero refletir um pouco sobre essas

indagações: ser reconhecido como autor implicaria em já ter escrito antes. Ora, sendo assim,

214 Tradução nossa: “Vários dados que figuram na certidão não eram certos: Juan Perón era viúvo, e não

‘solteiro’; Eva alterou sua idade, lugar de nascimento e, formalmente, seus dados de filiação [...], e tanto ela

como seu irmão e testemunha, Juan Duarte, declararam um endereço de conveniência e não o real. Nenhuma

dessas falsidades invalidava o consentimento, a identificação ou a capacidade para celebrar o casamento”.

133

não haveria um discurso inaugural. Penso que a qualidade da obra escrita, apesar de ser a

primeira, cria o imaginário a respeito do autor e suas outras obras a partir desta enfrentarão

uma expectativa que pode ser confirmada ou não.

A assinatura do autor reveste-se de grande importância. Afirma Foucault (2010, p.

272) que “o nome do autor é um nome próprio, apresenta os mesmos problemas que ele”.

Entretanto não é um nome próprio como outro qualquer. É um nome que carrega as marcas de

um estilo de escrita, além dos gêneros nos quais essa escrita transita. Continua Foucault

(2001, p. 273):

um nome de autor não é simplesmente um elemento em um discurso (que pode ser

sujeito ou complemento, que pode ser substituído por um pronome, etc.); ele exerce

um certo papel em relação ao discurso: assegura uma função classificatória, tal nome

permite reagrupar um certo número de textos, delimitá-los, deles excluir alguns,

opô-los a outros. Por outro lado, ele relaciona os textos entre si.

O nome do autor, portanto, caracteriza um modo de ser do discurso. Afirma Foucault

que o fato de haver um nome de autor indica que o texto é distinto do cotidiano, é “uma

palavra que deve ser recebida de uma certa maneira e que deve, em uma dada cultura, receber

um certo status” (FOUCAULT, 2001, p. 273).

O status que a biografia assinada por Felipe Pigna, historiador, recebe é o de texto

historiográfico. Cabe ressaltar que qualquer texto assinado pelo autor mencionado receberia

esse status numa primeira impressão, porém o que confirma o status é a leitura. É possível que

este autor queira, hipoteticamente falando, escrever um romance. Seus leitores, se não forem

avisados de que a obra se trata de um romance, precisarão reconhecer as marcas do gênero

romance para não serem iludidos pensando tratar-se de um texto historiográfico, gênero mais

comum e frequente ao autor até o momento.

De modo arguto, Foucault conclui que a função-autor é “característica do modo de

existência, de circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de uma

sociedade” (FOUCAULT, 2001, p. 274). Dito de outra forma: depende do reconhecimento

dos tipos relativamente estáveis de um conjunto de enunciados, ou seja, do gênero do

discurso, segundo Bakhtin (2003). No caso de um autor acadêmico, mas também conhecido

popularmente nas mídias, como é o caso de Pigna, o reconhecimento das marcas do discurso

historiográfico torna-se mais evidente.

Assim como na autobiografia há o pacto autobiográfico, na biografia também se

estabelece um pacto de leitura. Em EJSV, o autor, através da introdução que funciona como

um prefácio, estabelece as bases sobre as quais se assenta o pacto de leitura acordado com o

leitor: explicita seu objetivo; identifica em que ponto estão os debates sobre o tema e

134

esclarece sua posição. Seu objetivo é contar aos leitores “lo más detallada y analíticamente

posible la vida de una mujer que se convirtió en una de las figuras célebres de la humanidad”

(EJSV, p. 9).215 Com esta declaração inicial, o autor qualifica sua abordagem de pesquisador

capaz de apresentar detalhes e análises críticas. Cabe lembrar que os detalhes conferem ao

texto efeito de realidade, como afirmou Barthes (1972, p. 43). Cada capítulo contém dezenas

de notas de rodapé destinadas a detalhar afirmações, informações e fornecer referências

bibliográficas.

O historiador identifica que, comumente, Evita é tratada de modo folclórico, como o

são as tradições e os mitos populares, mas sua abordagem difere desta ao tratar do que Evita

realmente foi: um sujeito político que “compartió con Perón el liderazgo carismático del

peronismo, demostró una gran capacidad de conducción y construcción política, llegando a

manejar dos de las tres ramas del movimento: la feminina y la sindical” (EJSV, p. 9). Além

disso, destaca Pigna, o trabalho social de Evita forneceu-lhe um lugar no imaginário popular.

Como já mencionado no subcapítulo sobre o debate das fontes, nesta introdução, Pigna

faz críticas à história social por estudar o peronismo como um “fenômeno”, sem buscar

entendê-lo historicamente nem compreender sua complexidade como um movimento que

mudou a história e tem implicações na contemporaneidade: “Se parte en esos textos de una

ajenidad aparentemente dada por la pertinencia al campo intelectual y a partir de allí se

procede a juzgar aquel processo como una anormalidad institucional y social” (EJSV, p. 9).216

É, portanto, uma história indulgente com as etapas anteriores ao peronismo e sua economia

excludente e crítica feroz ao peronismo e à Evita. Segundo Pigna, nos últimos anos surge uma

nova abordagem sobre Evita que busca apresentar sua atuação política e seu protagonismo, e é

nessa corrente que insere a biografia que escreveu (EJSV, p. 10).

Com isso o historiador evidencia sua posição, e o leitor pode decidir se aceita ou não o

pacto como proposto. O leitor que reconheceu o nome do autor e, a partir disso, criou

expectativas relacionadas à leitura que faria quanto ao seu gênero (biografia histórica) e ao

estilo (a marca pessoal do autor). Resumindo, a autoria do historiador, um elemento

paratextual, soma-se aos procedimentos intratextuais – cronologização, contextualização,

conceitualização, discussão das fontes e versões – para criar o efeito de historicidade.

215 Tradução nossa: “o mais detalhada e analiticamente possível a vida de uma mulher que se converteu em uma

das figuras célebres da humanidade”.

216 Tradução nossa: “Parte-se nesses textos de uma alheiabilidade aparentemente dada pela pertença ao campo

intelectual e a partir daí se procede a julgar aquele processo como uma anormalidade institucional e social”.

135

4.2 Ficcionalização da história

O texto analisado, como já diversas vezes mencionado, é a biografia de uma

personalidade histórica argentina. Obviamente, portanto, a matéria de que trata é de extração

histórica, contudo o texto apresenta em sua construção elementos que permitem apontar a

ficcionalização da história. Importa ressaltar que a biografia escrita por Pigna não perde com

isso seu caráter de obra historiográfica. Atento simplesmente para a narrativa constitutiva da

história que, neste aspecto, aproxima-se da ficção sem, no entanto, nela transformar-se.

Refiro-me, portanto, aos mecanismos discursivos na escrita da história que levaram ao

questionamento de seus métodos científicos por apresentarem, às vezes, recursos poéticos e

figurativos, como discutido por White (1995).

Os elementos identificados como ficcionalizadores da história em EJSV são:

subjetividade; enredo e diálogo.

4.2.1 Marcas de si: subjetividade

A subjetividade em EJSV, ou seja, o meio pelo qual o autor dá-se a conhecer, revela-se

através de juízos de valor; adjetivação; modo poético de narrar; comunicação com o leitor e

indefinição. Em vários pontos de seu texto, Pigna foge da objetividade de historiador e emite

juízos de valor. Especificamente, no prefácio, dá abertura à subjetividade, relatando medidas

da Revolução Libertadora, deixando entrever uma visão apaixonada e triunfante sobre Evita:

El odio de sus encarnizados enemigos la sobrevivió. Dinamitaron el lugar donde

murió para evitar que se convirtiera en un sitio de culto, prohibieron su foto, su

nombre y su voz, pasaron con sus tanques por las casitas de la Ciudad Infantil hasta

convertirla en ruinas, abandonaron la construcción del hospital de niños más grande

de la América porque llevaría su nombre, echaron a ancianos de los hogares

modelos, quemaron hasta las frazadas de la Fundación, destrozaron pulmotores

porque tenían el escudo con su cara, secuestraron e hicieron desaparecer su cuerpo

por 16 años. Pero como sospecharon los autores de tanta barbarie, todo fue inútil.

(EJSV, p. 11)217

Através de juízos de valor, o autor exprime sua opinião a respeito dos eventos que

narra. Um exemplo de juízo de valor é o modo como se refere às mães das crianças que

discriminavam a menina Eva Duarte por sua condição de filha natural:

217 Tradução nossa: “O ódio de seus encarniçados inimigos a sobreviveu. Dinamitaram o lugar onde morreu para

evitar que se convertesse num local de culto, proibiram sua foto, seu nome e sua voz, passaram com seus tanques

pelas casinhas da Cidade Infantil até convertê-la em ruínas, abandonaram a construção do maior hospital infantil

da América porque levaria seu nome, despejaram anciãos dos lares modelos, queimaram até as mantas da

Fundação, destroçaram respiradores porque tinham o escudo com seu rosto, sequestraram e fizeram desaparecer

seu corpo por 16 anos. Mas como suspeitaram os autores de tanta barbárie, tudo foi inútil”.

136

Aquellas senhoras de doble moral justificaban su actitud cruel y discriminadora en la

defensa de las “buenas famílias” que incluían a sus maridos que, como ellas bien

sabían, embarazaban a sus amantes fuera de sus hogares “bien constituidos”,

generando aquellos niños en los que estas nobles damas ejercían su venganza.

(EJSV, p. 26)218

Ao juízo de valor, soma-se a adjetivação, o modo como o autor qualifica pessoas,

situações e comportamento, deixando entrever sua posição como, por exemplo, quanto à

moral da época em que Eva viveu a primeira infância:

Aquella doble moral, obscena y machista, aceptaba y hasta festejaba en secreto estas

dobles vidas, entendido como “necesidades masculinas” el mantenimiento de dos

relaciones paralelas. Pero para “la segunda” y sus hijos no había piedad. Maria Eva

era una hija natural. Lo natural no era bueno por entonces, y los “hijos naturales”

quedaban fuera de aquella peculiar naturaleza humana. Desde chiquita, Eva tuvo que

ubicarse por ahí, en los suburbios de la vida. (EJSV, p. 20)219

No fragmento citado, observa-se a utilização do recurso das aspas para introduzir no

discurso os designativos do pensamento comumente aceito na sociedade a respeito da

marginalização dos filhos das relações de concubinato. Com isto, além de indicar que este não

é o seu pensamento, o autor torna vívido esse modo de pensar e o apresenta ao leitor.

Em outro momento da narrativa biográfica, encontramos adjetivação:

Volvió al teatro en agosto de 1940, con la compañía cómica de Leopoldo y Tomás

Simari que estrenaba Corazón de manteca, de Hicken, y luego actuó en una obra del

título premonitorio: ¡La plata hay que repartirla!, de Antonio Botta, donde

interpretaba a una gitana. (EJSV, p. 60, grifo nosso)220

O autor classifica como premonitório o título da peça em que Eva atuou. Isto indica o

conhecimento prévio que o biógrafo possui sobre a integralidade da vida da biografada. São

as políticas que, futuramente, irá desenvolver no peronismo junto aos trabalhadores que aqui

dão sinais. Esse vislumbre parece indicar a hipótese de que o teatro, o rádio e o cinema

formaram a personagem política Evita.

O uso de adjetivos verifica-se também quando o autor comenta a divulgação na mídia

que Eva começa a ter em seu início de carreira como atriz: “Evita Duarte era una estrella en

ascenso. Si bien algunas revistas trataban de mostrar una imagem de “trepadora” o “arribista”, 218 Tradução nossa: “Aquelas senhoras de dupla moral justificavam sua atitude cruel e discriminadora na defesa

das ‘boas famílias’ que incluíam seus maridos que, como elas bem sabiam, engravidavam suas amantes fora de

seus lares ‘bem construídos’, gerando aquelas crianças nas quais estas nobres damas exerciam sua vingança”.

219 Tradução nossa: “Aquela dupla moral, obscena e machista, aceitava e até festejava em segredo estas vidas

duplas, entendida como ‘necessidades masculinas’ a manutenção de duas relações paralelas. Mas para ‘a

segunda’ e seus filhos não havia piedade. María Eva era uma filha natural. O natural não era bom naquela época

e então os ‘filhos naturais’ ficavam fora daquela peculiar natureza humana. Desde pequenina, Eva teve que ficar

por aí, nos subúrbios da vida”.

220 Tradução nossa: “Voltou ao teatro em agosto de 1940, com a companhia cômica de Leopoldo e Tomás Simari

que estreava Coração de manteiga, de Hicken, e logo depois atuou numa obra de título premonitório: O

dinheiro tem que ser repartido, de Antonio Botta, onde interpretava uma cigana” (grifo nosso).

137

estaba luchando para sobrevivir en ese mundo complejo y despiadado” (EJSV, p. 62).221

Neste fragmento, observa-se o recurso das aspas uma vez mais, para indicar opinião alheia da

qual possivelmente discorda, pois ao classificar o mundo como complexo e sem piedade,

parece manifestar desculpas para o comportamento da atriz.

A obra social de Eva Perón recebe o qualificativo de monumental ao ser confrontada à

da Sociedade de Beneficência. O uso de aspas neste fragmento que tece críticas à história

social não indicam discurso alheio, mas ironia:

La historia oficial, que ha sido tan “piadosa” y “distraída” con la Sociedad de

Beneficencia, reservó toda su “agudeza” y “perspicacia” para cuestionar hasta en sus

más mínimos detalles la monumental obra social de Eva Perón. (EJSV, p. 126)222

O autor não poupa juízo de valor e adjetivação ao referir-se ao General Franco, ditador

que governava a Espanha, quando Evita lá esteve em sua viagem pela Europa:

[...] La multitud irrumpió en vítores cuando salió con Franco a los balcones del

Palacio Real. Curiosamente, el representante de las ideas más retrógradas y

reaccionarias, el heredero ideológico de los conquistadores y genocidas de América,

lucía en su pecho la condecoración que le otorgó el gobierno argentino: la Orden del

Libertador de América José de San Martín, el hombre que liberó medio continente

del dominio absolutista español. El “Generalísimo” trataba de absorber algo del

carisma de Evita, mientras le imponía la Orden de Isabel la Católica, la reina que

junto a su marido, el también católico rey Fernando, inició el genocidio americano.

Un Franco desconocido dijo, como si estuviesse emocionado: […]. (EJSV, p. 146)223

O fragmento revela crítica não só aos históricos reis espanhóis, Isabel e Fernando, mas

também à Igreja, ao apresentar o adjetivo “católico” como identificação dos sujeitos do

genocídio efetuado na América.

O Papa Pio XII recebe um qualificativo em sua descrição: “[...] Papa de doble moral

que había colaborado con Mussolini y Hitler y ahora lo hacía con sus camaradas

sobrevivientes” (EJSV, p. 158).224 Pigna apresenta não apenas seu juízo de valor, como a tese

221 Tradução nossa: “Evita Duarte era uma estrela em ascensão. Embora algumas revistas tratassem de mostrar

uma imagem de ‘trepadora’ ou ‘arrivista’, estava lutando para sobreviver nesse mundo complexo e

desapiedado”.

222 Tradução nossa: “A história oficial, que foi tão ‘piedosa’ e ‘distraída’ com a Sociedade de Beneficencia,

reservou toda sua ‘agudeza’ e ‘perspicácia’ para questionar até em seus mais íntimos detalhes a monumental

obra social de Eva Perón”.

223 Tradução nossa: “[…] A multidão irrompeu em vivas quando saiu com Franco aos balcões do Palácio Real.

Curiosamente, o representante das ideias mais retrógradas e reacionárias, o herdeiro ideológico dos

conquistadores e genocidas da América, luzia em seu peito a condecoração que lhe outorgou o governo

argentino: a Ordem do Libertador de América José de San Martín, o homem que libertou meio continente do

domínio absolutista espanhol. O ‘Generalíssimo’ tratava de absorver algo do carisma de Evita, enquanto lhe

impunha a Ordem de Isabel a Católica, a rainha que junto ao seu marido, o também católico rey Fernando,

iniciou o genocídio americano. Um Franco desconhecido disse, como se estivesse emocionado: [...]”.

224 Tradução nossa: “Papa de dupla moral que havia colaborado com Mussolini e Hitler e agora o fazia com seus

camaradas sobreviventes”.

138

de que o encontro de Evita com o Papa tinha como fim discutir as bases de um acordo para

ajudar ex-nazistas, refugiando-os em solo argentino.

A caracterização dos opositores ao peronismo feita pelo historiador também apresenta

juízo de valor e adjetivação:

Ciertos sectores de las clases medias y altas no toleraban el ascenso de miembros de

la clase trabajadora hacia posiciones de poder que creían reservadas para ellos.

Algunos personajes que nunca se habían preocupado por la democracia, los derechos

humanos y las libertades públicas, que de manera complaciente habían apoyado las

represiones conservadoras, aparecían ahora como paladines de la libertad

denunciando los atropellos del peronismo. Lamentablemente, este ímpetu libertario

les desaparecerá con la caída de Perón y no verán como antidemocráticos ni los

fusilamientos ni las detenciones de la llamada “Revolución Libertadora”. (EJSV, p.

190)225

Novamente, há o recurso de antecipar eventos que, na narração de temporalidade

linear, só seriam comentados bem mais adiante, como a Revolução Libertadora, ocorrida em

1955. Isto afirma o conhecimento do historiador e sua capacidade avaliativa, embora de modo

bastante subjetivo. Semelhante recurso emprega o autor ao comentar sobre os lares de

acolhimento de crianças, idosos, mães trabalhadoras:

El concepto inovador de estos hogares rompía con los tradicionales depósitos de

ancianos y les devolvia su dignidade. En 1955, las obras de otros tres hogares de la

Fundación, en las províncias de Córdoba, Santa Fé y Tucumán, fueron suspendidas

por el golpe que derrocó a Perón. (EJSV, p. 227)226

O historiador designa, ainda, os opositores como inimigos movidos por pensamento

primitivo e mesquinho:

Los enemigos de Evita se indignaban cuando veían la magnitud de sus logros y

decían que la ayuda social de la Fundación era demagógica y “excesiva”, partiendo

del primitivo y mezquino concepto de que todo aquello era demasiado para “esa

gente acostumbrada a conformarse con poco”, por la que sentían un indisimulable

desprecio, que se iba tornando cada vez más recíproco. (EJSV, p. 214).227

As aspas indicam o discurso direto, a fala alheia, o modo de pensar dos opositores com

o qual não compartilha o autor.

225 Tradução nossa: “Certos setores das classes médias e altas não toleravam a ascensão de membros das classes

trabalhadoras a posições de poder que acreditavam reservadas para eles. Alguns personagens que nunca tinham

se preocupado com a democracia, os direitos humanos e as liberdades públicas, que de maneira complacente

tinham apoiado as repressões conservadoras, apareciam agora como paladinos da liberdade denunciando os

atropelos do peronismo. Lamentavelmente, este ímpeto libertário desaparecerá com a queda de Perón e não

verão como antidemocráticos nem os fuzilamentos nem as detenções da chamada “Revolução Libertadora”.

226 Tradução nossa: “O conceito innovador destes lares rompia com os tradicionais depósitos de anciãos e lhes

devolvia sua dignidade. Em 1955, as obras de outros três lares da Fundação, nas províncias de Córdoba, Santa Fé

e Tucumán, foram suspensas pelo golpe que derrubou Perón.”

227 Tradução nossa: “Os inimigos de Evita indignavam-se quando viam a magnitude de suas conquistas e diziam

que a ajuda social da Fundação era demagógica e ‘excessiva’, partindo do primitivo e mesquinho conceito de

que tudo aquilo era demais para ‘esa gente acostumada a se conformar com pouco’, por quem sentiam um

indissimulável desprezo, que ia se tornando cada vez mais recíproco.”

139

Além dos juízos de valor e da adjetivação, constitui marca de subjetividade e,

portanto, de ficcionalização da história, em EJSV, o modo poético com que o autor narra

alguns eventos, construindo um breve enredo para apresentar situações. Um exemplo é a

narração da chegada da mãe de Evita, Juana Ibarguren, com seus filhos ao enterro de seu pai,

Juan Duarte, que vivia com a família oficial:

Todas las miradas se clavaran en Juana y su prole. Las señoras y los señores

“respetables” no podían creer lo que veían. “Cómo se atreve”, era en aquella tórrida

mañana de verano la frase menos original, que competía con “qué coraje” y “qué

descaro”. (EJSV, p. 21)228

Outro exemplo do modo de narrar poético está na narração sobre o dia da votação em

que Perón havia se candidatado pela primeira vez à Presidência, em 1943, tendo sido eleito:

El 24 de febrero hacía un calor terrible en Buenos Aires: era una jornada

“bochornosa” como les gustaba de decir a los speakers de las radios y escribir a los

redactores de los diarios. Pero lo sería en más de un sentido para la oposición que

descontaba su triunfo. (EJSV, p. 121)229

De modo subjetivo e poético, como narrador onisciente, o historiador narra o estado de

ânimo de Evita:

Evita estava enferma y enojada. Le parecía absolutamente injusto que lo que no

habían logrado los contreras, los gorilas – que todavía no se llamaban así pero

actuaban cono tales –, lo consiguiera su precaria salud. No podía ser que perdiera

esta guerra a muerte por culpa de un mal que surgía de ella misma, de algo que la

atacaba desde adentro, cuando se sentía tan fuerte e invencible para enfrentar y

derrotar a todo lo que quisiera destruirla desde afuera. Se enojaba con los que

querían cuidarla. Indignada con el mundo y con su suerte, repetía: “No tengo

tiempo, los tratamientos son para los oligarcas, para los que no trabajan; mis grasitas

no pueden esperar más, ya esperaron demasiado”. (EJSV, p. 252)230

A informação introduzida por “parecia-lhe” indica o conhecimento pleno do narrador

onisciente. No entanto, sendo o texto biográfico e historiográfico, deveria apresentar a

documentação ou o relato no qual se baseia para fazer tal afirmação. Isto não é feito. Pigna

não apresenta nenhuma fonte. Da mesma forma, procede com a declaração em discurso direto

228 Tradução nossa: “Todos os olhares se cravaram em Juana e sua prole. As senhoras e senhores ‘respeitáveis’

não podiam acreditar no que viam. ‘Como se atreve’, era naquela tórrida manhã de verão a frase menos original,

que competia com ‘que coragem’ e ‘que descaramento’”.

229 Tradução nossa: “Em 24 de fevereiro fazia um calor terrível em Buenos Aires: era uma jornada

‘mormacenta’, como gostavam de dizer os speakers das rádios e escrever os redatores dos jornais. Mas o seria

em mais de um sentido para a oposição que descontava seu triunfo”.

230 Tradução nossa: “Evita estava doente e enjoada. Parecia-lhe absolutamente injusto que o que não tinham

conseguido os opositores, os gorilas – que ainda não eram chamados assim mas atuavam como tais –, o

conseguisse sua precária saúde. Não podia ser que perdesse esta guerra para a morte por culpa de um mal que

surgia dela mesma, de algo que a atacava de dentro, quando se sentia tão forte e invencível para enfrentar e

derrotar a tudo o que quisesse destruí-la de fora. Irritava-se com os que queriam cuidar dela. Indignada com o

mundo e com sua sorte, repetia: ‘Não tenho tempo, os tratamentos são para os oligarcas, para os que não

trabalham; meus grasitas não podem esperar mais, já esperaram demais”.

140

indicado pelas aspas. Embora tenha uma aparência de discurso baseado em documentação,

isto se revela muito frágil porque o historiador não cita a fonte. O mais provável é que seja

especulação para apresentar uma visão de Evita, mais um exemplo de ficcionalização

portanto.

Segue na mesma linha, em outro momento, a narração sobre o sentir de Evita: “Sería

su último 17 de octubre. Eva seguramente lo presentía y por eso su discurso tuvo tanto sabor a

despedida” (EJSV, p. 284).231 A afirmação do pressentimento intensificada pela locução

adverbial “com certeza” precisaria da prova testemunhal para ser investida de objetividade, no

entanto, apesar de ficcional, visto tal prova não ter sido apresentada, apela à credulidade do

leitor que permanece fiel ao pacto biográfico, pois esta é uma afirmação em meio a outras

que, sim, contam com o estatuto da prova.

O recurso da ficcionalização é empregado de forma mais amiúde à medida que a

narração aproxima-se da morte de Evita. A narração passa a um tom mais emocional, em

determinados momentos como, por exemplo, no fragmento abaixo:

Crecía en ella la ansiedad, que se iba convirtiendo en desesperación por todo lo que

le quedaba por hacer. También sentía bronca por la certeza del inmenso alívio, de la

perversa alegría que provocaba su sufrimiento y su inevitable final en sus enemigos,

que no habían dudado en pintar en una parede cercana a la residencia “Viva el

cáncer”. (EJSV, p. 295)232

O leitor que já leu a respeito da história de Evita sabe que a inscrição na parede é real,

entretanto Pigna não apresenta fonte quando a menciona, possivelmente contando com o

conhecimento prévio do leitor. Esse fato real ao lado da descrição dos sentimentos de Evita,

também sem comprovação documental, além da profecia post eventum233 sobre sua morte,

parecem ter o efeito de afirmar a onisciência do narrador que segue ficcionalizando os fatos

históricos:

Seis días después, el 7 de mayo, cumplía 33 años. Pesaba 37 kilos y le pesaba

horriblemente ese saberse morir, esa maldita sensación de irse con tantas cosas por

hacer, con tantos hospitales, hogares y escuelas por inaugurar. Se preguntaba y

preguntaba: ¿Por qué me tengo que morir yo? Por qué me estoy muriendo y no se

mueren tantos hijos de puta que no hacen otra cosa que pensar en sí mesmos y en

231 Tradução nossa: “Seria seu último 17 de outubro. Eva com certeza o presentia e por isso seu discurso teve

tanto gosto de despedida”.

232 Tradução nossa: “Crescia nela a ansiedade, que ia se convertendo em desespero por tudo o que lhe ficava por

fazer. Também sentia irritação pela certeza do imenso alívio, da perversa alegria que provocava seu sofrimento e

seu inevitável fim em seus inimigos, que não haviam duvidado em pixar numa parede próxima à residência

‘Viva o câncer’”.

233 Refere-se ao acontecimento que teve lugar antes que o texto fosse escrito.

141

cómo joder a los demás? Evita sabía que no habría más cumpleaños, que aquél sería

el último, el número 33; como Jesús, se atrevió a pensar. (EJSV, p. 305)234

Na narrativa, em algumas ocasiões, o narrador dirige-se ao leitor apenas para retornar

a um ponto específico, “cómo vimos en el capítulo anterior” (EJSV, p. 253)235; para introduzir

uma contextualização, como em “Recordemos que, en el marco de la guerra, Estados Unidos

había incluído al celuloide en la lista de artículos “estratégicos”, que sólo eran providos a

naciones aliadas” (EJSV, p. 93),236 quando comenta a produção de filmes na Argentina no

contexto da Segunda Guerra; para indicar ironicamente a situação da Sociedade de

Beneficência que movimentava altas somas de dinheiro, mas não para repartir entre os pobres,

tampouco para remunerar bem os funcionários, “El lector podrá pensar que las enfermeras,

médicos, mucamas y asistentes de la Sociedad cobraban muy buenos sueldos, porque a ellos

también alcanzaba la “beneficencia”; [...]” (EJSV, p. 126);237 ou para fornecer meios de os

leitores verificarem com seus próprios olhos aquilo que descreve:

Si los lectores desean vivir la muy interesante experiencia de conocer cómo era una

de estas instituciones y de palpar de cerca la calidez y el lujo, pueden acercarse a

Lafinur 2988 en la ciudad de Buenos Aires, sede actual del Museo Evita, donde

funcionaba el Hogar de Tránsito Nº 2, que milagrosamente sobrevivió a la furia de

los “libertadores”. (EJSV, p. 225)238

Esta abertura à metalinguagem possibilita ao autor levar de volta o leitor à construção

da narrativa. Indica ficcionalização da história pois reafirma que há um narrador que manipula

os dados e os organiza como melhor lhe aprouver segundo os propósitos de sua narrativa.

Outro ponto que revela subjetividade é a expressão de incertezas. Ao narrar o velório

de Evita, o historiador diz que diante de seu ataúde, enquanto passava a multidão, havia choro

e desmaios e faz o seguinte relato: “En aquellos días murieron unas veinte personas por

234 Tradução nossa: “Seis días depois, em 7 de maio, completaría 33 anos. Pesava 37 quilos e lhe pesava

horrivelmente saber que ia morrer, essa maldita sensação de se ir com tantas coisas por fazer, com tantos

hospitais, lares e escolas por inaugurar. Perguntava-se e perguntava: Por que eu tenho que morrer? Por que

estou morrendo e não morrem tantos filhos da puta que não fazem outra coisa que pensar em si mesmos e em

como foder aos demais? Evita sabia que não haveria mais aniversários, que aquele seria o último, o número 33;

como Jesus, atreveu-se a pensar”.

235 Tradução nossa: “como vimos no capítulo anterior”.

236 Tradução nossa: “Recordemos que, no marco da guerra, Estados Unidos havia incluído o celuloide na lista

dos artigos ‘estratégicos’, que só eram vendidos a nações aliadas.”

237 Tradução nossa: “O leitor poderá pensar que as enfermeiras, médicos, criadas e assistentes da Sociedade

recebiam salários muito bons, porque eles também eram alcançados pela beneficência; [...]”.

238 Tradução nossa: “Se os leitores desejam viver a muito interesante experiência de conhecer como era uma

destas instituições e de notar de perto a calidez e o luxo, podem se aproximar de Lafinur 2988 na cidade de

Buenos Aires, sede atual do Museu Evita, onde funcionava o Lar de Trânsito Nº 2, que milagrosamente

sobreviveu à fúria dos ‘libertadores’”.

142

aplastamientos, avalanchas e infartos” (EJSV, p. 329, grifo nosso).239 Essa imprecisão

numérica através do pronome indefinido mostra a incerteza, consequentemente, a ausência de

objetividade. É uma informação que poderia, ou talvez devesse, ser suprimida, visto que o

historiador tem um compromisso com aquilo que se pode verificar, no entanto, no texto,

cumpre o papel de enfatizar a extensão e magnitude do desespero do povo pela morte de sua

líder. No parágrafo seguinte, mais uma imprecisão, agora pronominal:

En la misma ciudad, en algunos barrios selectos escaseaba el champagne

demandado por los enemigos de “la yegua” que no paraban de brindar, lejos de la

peligrosa mirada de la servidumbre que “insolentemente” se había tomado franco

por su cuenta para estar junto a su abanderada. (EJSV, p. 329, grifo nosso)240

A ausência de identificação dos bairros, designados apenas pelo pronome indefinido

“alguns”, indica a subjetividade do evento narrado que tem aparência de lenda ou boato. É

uma informação que não é imprescindível ao relato, mas que intensifica a polaridade existente

na Argentina naquele momento e que culminará na Revolução Libertadora e na perseguição

aos peronistas. Por meio dela, é possível vislumbrar a opinião do historiador que incorpora o

discurso alheio ao seu através do recurso das aspas, indicando que, para ele, Evita não é égua,

nem a falta ao serviço seria uma insolência.

Além dessa indefinição relativa à linguagem, há imprecisão quanto a fontes, também,

na forma da omissão como, por exemplo, ao citar o famoso estilista: “Christian Dior

sucumbió al deseo de vestirla y declaró años más tarde: ‘a la única reina que vestí fue a Eva

Peron’.” (EJSV, 168).241 Considerando-se a hipótese de que tal declaração seja de

conhecimento público, ainda assim precisaria ser respaldada na biografia histórica pela

citação da fonte. Outro exemplo de omissão de fonte é a afirmação de que a autobiografia de

Evita, LRMV (1951), foi ditada a um jornalista espanhol, Manuel Penella de Silva (EJSV, p.

283). A hipótese aqui, uma vez mais, é que a informação pode ter sido dada pelo próprio

jornalista, no entanto omitida a fonte na biografia, a declaração é tomada como versão

definitiva.

A indefinição observada nesses fragmentos é algo que poderia destoar do conjunto de

informações fornecidas pelo historiador em sua biografia, porque poderia ser tomada como

239 Tradução nossa: “Naqueles días, morreram umas vinte pessoas por pisoteamentos, avalanches e infartos”

(grifo meu).

240 Tradução nossa: “Na mesma cidade, em alguns bairros seletos escasseava o champanhe reivindicado pelos

inimigos ‘da égua’ que não paravam de brindar, longe do perigoso olhar dos serviçais que ‘insolentemente’

haviam tirado folga por sua conta para estar junto de sua porta voz” (grifo nosso).

241 Tradução nossa: “Christian Dior sucumbiu ao desejo de vesti-la e declarou anos depois: ‘a única rainha que

vesti foi Eva Perón’”.

143

inverdade, no entanto trabalho com as perspectiva da ficcionalização da história que necessita

de um enredo narrativo para contar-se de modo atraente ao leitor não acadêmico.

Com tais marcas de subjetividade, em conjunto, quais sejam: juízos de valor;

adjetivação; modo poético de narrar; comunicação com o leitor e indefinição; o texto

biográfico revela ficcionalização da história visto que não oculta o autor, nem se apresenta

objetivamente, de acordo com o gênero historiográfico (embora a neutralidade seja um mito)

e, além disso, traz criação ficcional de situações e pensamentos.

4.2.2 Contando uma história: enredo e diálogo

O diálogo na narrativa permite a troca de ideias apresentando a comunicação de forma

mais direta. Na biografia analisada, não há uso da marca formal tradicional, o travessão. O

texto é citado entre aspas, indicando a alternância dos sujeitos, seguido de breves indicações

por parte do narrador quanto a quem fala que, talvez, fossem dispensáveis, no entanto

constituem um meio de indicar uma interpretação da situação. Este recurso marca a

ficcionalização da história, visto que o evento, o ato dos trabalhadores sobre a fórmula Perón-

Perón para a Presidência, poderia ter sido narrado de modo objetivo, entretanto o narrador

revela-se um criador de enredos que disponibiliza aos personagens de sua narrativa um

momento de fala direta.

A narrativa refere-se ao dia 22 de agosto de 1951, ocasião em que o Partido

Justicialista apresentaria seus candidatos para concorrer à eleição presidencial em um ato

público, o “Cabildo Abierto del Justicialismo”, para o qual o governo havia direcionado toda

sua infraestrutura: “Los trenes y los ómnibus desde todos los puntos del país fueron gratuitos.

A los manifestantes llegados de todas las partes se los alojó, se les proveyó de viandas y se les

agasajó con asados, bailes, funciones de cine y teatro” (EJSV, p. 264).242 Uma grande

multidão reuniu-se no local, na interseção entre as avenidas 9 de Julio e Belgrano, em frente

ao Ministério de Obras Públicas: “Habían venido de todos lados. Eran famílias enteras que

pugnaban por ver a Evita” (EJSV, p. 265).243

O historiador narra de modo a antecipar os acontecimentos, um recurso que prende a

atenção dos leitores, declarando a decepção que o povo irá sofrer, visto que se reuniu com um

242 Tradução nossa: “Os trens e os ônibus de todos os pontos do país foram gratuitos. Os manifestantes chegados

de todas as partes foram alojados, providos de alimentos e obsequiados com churrascos, bailes, sessões de

cinema e teatro.”

243 Tradução nossa: “Tinham vindo de todos os lados. Eram famílias inteiras que lutavam para ver Evita”.

144

propósito, mas sairá desconcertado com o resultado do ato (EJSV, p. 265). Enquanto

discursam o líder da CGT, José Espejo, seguido de Perón, o povo grita em coro o nome de

Evita: “Sólo hubo silencio cuando Evita subió al palco y se acercó al micrófono...” (EJSV, p.

266). 244 Em sua fala, a líder diz que o povo está de pé contra a oligarquia, e o povo grita:

“Con Evita, con Evita, con Evita...”, 245enquanto ela faz um balanço da obra do governo e

tenta dissuadir a multidão que esperava que ela fosse candidata junto a Perón.

O povo não aceita e começa o diálogo que mais se parece uma discussão de Evita com

a multidão:

Y allí se escuchó claramente la palabra que nadie quería escuchar: “Compañeros.

Compañeros…, compañeros. Compañeros: yo no renuncio a mi puesto de lucha, yo

renuncio a los honores…” y agregó: “Yo haré, finalmente, lo que decida el pueblo.

¿Ustedes creen que si el puesto de vicepresidenta fuera un cargo y si yo hubiera sido

una solución no habría contestado que sí?” Pero la gente no quería más evasivas y

gritaba: “Contestación, contestación”. Y Evita respondió: “Compañeros: por el

cariño que nos une, les pido por favor no me hagan hacer lo que no quiero hacer. Se

lo pido a ustedes como amiga, como compañera. Les pido que se desconcentren”.

Nada parecía calmar la multitud y Evita probó: “Compañeros: ¿Cuándo Evita los ha

defraudado? ¿Cuándo Evita no ha hecho lo que ustedes desean? Yo les pido una

cosa: esperen a mañana”. José Espejo no tuvo una muy buena idea cuando dijo por

el micrófono: “Compañeros: La compañera Evita nos pide dos horas de espera. Nos

vamos a quedar aquí. No nos moveremos hasta que nos dé la respuesta favorable”.

Se ganó una mirada fulminante de Perón que empezó a repetir insistentemente:

“Levanten este acto, ¡basta ya!”. (EJSV, p. 267)246

O narrador cria um enredo no qual apresenta o breve e intenso diálogo sem mencionar

diretamente os documentos nos quais se baseia. Pelo uso das palavras “se escutou”, “gritava”,

“ganhou um olhar fulminante”, é possível afirmar que talvez tenha se apoiado em

documentários ou vídeos de noticiários da época que lhe forneceram a imagem que descreve

em sua narrativa. Conclui a história da candidatura frustrada contando que o Partido Peronista

Feminino e integrantes do secretariado da CGT proclamaram oficialmente, no dia 28 de

agosto de 1951, a candidatura de Eva Perón sem que ela tivesse confirmado. Três dias depois,

244 Tradução nossa: “Só houve silêncio quando Evita subiu ao palco e se aproximou do microfone…”.

245 Tradução nossa: “Com Evita, com Evita, com Evita…”.

246 Tradução nossa: “E ali se escutou claramente a palabra que ninguém queria escutar: ‘Companheiros,

Companheiros... companheiros. Companheiros: eu não renuncio ao meu posto de luta, eu renuncio às honras...” e

acrescentou: “Eu farei, finalmente, o que o povo decidir. Vocês crêem que se o posto de vicepresidente fosse um

cargo e se eu tivesse sido uma solução não teria respondido que sim?’ Mas as pessoas não queriam mais evasivas

e gritavam: “Contestação, contestação”. E Evita respondeu: ‘Companheiros: pelo carinho que nos une, peço-lhes

por favor não me façam fazer o que não quero fazer. Peço a vocês como amiga, como companheira. Peço-lhes

que se desconcentrem’. Nada parecia acalmar a multidão e Evita experimentou: ‘Companheiros: Quando Evita

os defraudou? Quando Evita não fez o que vocês desejam? Eu lhes peço uma coisa: esperem amanhã’. José

Espejo não teve uma ideia muito boa quando disse pelo microfone: ‘Companheiros: A companheira Evita nos

pede duas horas de espera. Vamos esperar aqui. Não nos moveremos até que nos dê a resposta favorável’.

Ganhou um olhar fulminante de Perón que começou a repetir insistentemente: ‘Suspendam esse ato, já basta!’”.

145

finalmente, Evita anuncia pela cadeia de rádio sua decisão, que passou à história peronista

como o “Día del Renunciamiento” (EJSV, p. 269).247

Pigna retoma a objetividade ao discutir várias interpretações para a renúncia, que se

voltam sobre as razões de sua pré-candidatura e o apoio que teria recebido ou não por parte de

Perón (EJSV, p. 269). Para os antiperonistas, Perón havia sido pressionado pelos militares e

pela Igreja a pedir que não se candidatasse. Esta versão também é defendida por Borroni e

Vacca, biógrafos citados pelo historiador. Já outra biógrafa, Marysa Navarro, segundo o autor,

relaciona outras questões à oposição militar e da Igreja: a saúde de Evita e a posição adotada

por Perón (EJSV, p. 270). Segundo alguns peronistas, Evita não queria ocupar esse cargo e

esse teria sido um modo de impedir as eleições internas pela vice-presidência no partido. Para

sustentar essa versão e revelando sua concordância, Pigna cita o ex deputado Rodolfo Decker

e o jornalista Dardo Cabo:

La idea de promover la fórmula Perón-Eva Perón, sabiendo que no llegaría a feliz

término, le servía a Perón para obturar el segundo término del binomio, un lugar

conflictivo que parecía ocupado indiscutiblemente por su mujer y que le permitiría,

tras el “renunciamiento”, presentar el hecho consumado de la postulación del

veterano e inofensivo Hortencio Quijano. La candidatura del viejo radical

antipersonalista y vicepresidente decorativo en ejercicio desmentía, a quien quisiera

verlo, la versión de que Evita no sería candidata por razones de salud, ya que don

Hortencio padecía un cáncer tan fulminante que no lo dejaría asumir su cargo. Murió

el 3 de abril de 1952, dos meses antes de que Perón asumiera, por segunda vez y sin

vice, la presidencia. (EJSV, 272)248

O modo de narrar essa versão dos fatos constitui a consumação do enredo criado que,

junto ao diálogo e à subjetividade, ficcionaliza a história, deixando transparecer a construção

da narratividade.

Desta forma, observei a relação entre a história e a ficção na representação política de

Eva Perón, em EJSV, uma biografia histórica, que apresenta elementos textuais e paratextual,

criadores do efeito de historicidade, por um lado, como a cronologização, a contextualização,

a conceitualização, a discussão das fontes (textuais) e a autoria do historiador (paratextual); e

que, por outro lado, revelam a ficcionalização da história, tais como subjetividade, enredo e

diálogo.

247 Tradução nossa: “Dia do Renunciamento”.

248 Tradução nossa: “A ideia de promover a fórmula Perón-Eva Perón, sabendo que não chegaria a feliz término,

servia a Perón para obturar o segundo termo do binômio, um lugar conflitivo que parecia ocupado

indiscutivelmente por sua mulher e que lhe permitiria, depois do ‘renunciamento’, apresentar o fato consumado

da postulação do veterano e inofensivo Hortencio Quijano. A candidatura do velho radical antipersonalista e vice

presidente decorativo em exercício desmentia, a quem quisesse vê-lo, a versão de que Evita não seria candidata

por razões de saúde, já que don Hortencio padecia um câncer tão fulminante que não o deixaria assumir seu

cargo. Morreu em 3 de abril de 1952, dois meses antes de que Perón assumisse, pela segunda vez e sem vice, a

presidência”.

146

5. MARGENS CONFLUENTES: O IMAGINÁRIO EVITISTA

A análise da relação entre história e ficção na representação de Eva Perón,

considerando a representação autobiográfica, a hagiográfica e a política, levou-nos ao

elemento que une as obras constituintes do corpora desta pesquisa e que está na confluência

entre os dois campos: o mito de Evita. Este manifesta-se no imaginário a respeito da ex

primeira dama argentina, construído social e literariamente, nutrindo-se da literatura, por um

lado, e a ela alimentando, por outro.

Para não resvalar e cair na análise puramente sociológica, para a qual me faltariam

elementos, além de que sairia do foco de análise desta pesquisa, este capítulo apresenta a

reflexão sobre o mito de Evita a partir das próprias obras que analiso ao longo deste trabalho.

Com este fim, inicio com a apresentação do mito evitista num contexto mais amplo, apoiada

em obras que fizeram sua cronologia, para depois relacionar as três representações analisadas,

observando o imaginário evitista.

5.1 O mito de Evita

Logo após sua morte, Evita converteu-se num mito ou em vários mitos, de acordo com

Beatriz Sarlo (1999, p. 302, tradução nossa), “pois sobre ela projetaram-se distintas imagens

identificadoras do peronismo: a providente, a mediadora entre o líder e seu povo e a

combativa e militante”.249 A singularidade de Eva, segundo Sarlo (1995, p. 22), explica o

fascínio, o ódio, a devoção com que foi cercada. A ensaísta aponta também a

excepcionalidade de Eva Perón que a transformou num mito:

Seu caráter excepcional não se mantém só pela beleza, nem pela inteligência, nem

pelas ideias, nem pela capacidade política, nem sequer pela origem social, nem por

sua história de interiorana humilhada que vai à forra quando chega ao topo. Existe

algo de tudo isso: Eva seria uma soma em que cada elemento é relativamente

comum, mas esses elementos, todos juntos, formam uma combinação desconhecida,

perfeitamente apta a construir uma personagem para um cenário também novo,

como era a política de massas do pós-guerra. [...] Muito daquilo que, depois, foi a

base de seu magnetismo corporal estava na origem de seu fracasso como aspirante

ao mundo superpovoado da indústria cultural argentina. Sua diferença, que a

favoreceu na cena política, não a impulsionara na cena do radioteatro nem do

cinema. (SARLO, 1995, p. 21)

249 No original: “pues sobre ella se proyectaron distintas imágenes identificadoras do peronismo: la providente, la

mediadora entre el líder y su pueblo y la combativa y militante”.

147

Para Sarlo (2005, p. 21), a aparência de Eva, insignificante no mundo do espetáculo,

era excepcional na cena política. O fato de ser deslocada, de estar fora do lugar, unido à

paixão que Eva sentiu pelo marido e, depois, pela ação política contribuiu para sua

excepcionalidade. Até mesmo suas roupas têm importância no seu estado de exceção: “A

roupa de Eva foi um negócio de Estado para um regime que descobriu as formas modernas da

propaganda política e o peso decisivo da iconografia” (ibdem, p. 75).

Na mitologia evitista, há espaço para Evita rainha, rainha da moda, a única rainha

vestida por Christian Dior, segundo suas palavras. A beleza do corpo jovem de Eva

proporcionava ao regime a sustentação da ficção que fundava sua própria figura

dupla: de um lado, como ela o repete dezena de vezes em La razón de mi vida, a

mulher humilde e ignorante que é a mulher do presidente; de outro, a manifestação

concreta do regime peronista, como intérprete e representante do líder. (SARLO,

2005, p. 98)

De acordo com Rosano, a figura de Eva Perón guarda uma hibridização das lógicas de

representação do Estado e as da indústria cultural: “Apenas ela foi capaz de misturar-se com a

multidão e ganhar, assim, no imaginário popular, um lugar de lenda” (2005, p. 19, tradução

nossa).250

Segundo Marysa Navarro (2012, p. 98), a mitologia evitista possui vitalidade

exuberante ainda hoje; contém aspectos das duas visões antagônicas a respeito de Evita, com

forte predomínio da mais negativa; é mais poderosa que os fatos aos quais supostamente se

refere, isto porque muitos desses fatos são, segundo a autora, comprovadamente falsos. A

atualidade do mito evitista manifesta-se no próprio corpora desta pesquisa ao pensarmos na

distância temporal que SE e EJSV guardam entre si, publicadas em 1995 e 2012,

respectivamente (a quarenta e três e a sessenta anos da morte de Evita), e entre LRMV,

publicada em 1951.

A oposição peronismo e antiperonismo tem forte influência na mitologia evitista

manifestando-se em duas visões diametralmente opostas da mesma pessoa. Inicio a reflexão

pela visão antiperonista, da qual farei breve apanhado, atendo-me, posteriormente, ao mito

como manifesto no corpora da pesquisa, mais aproximado da mitologia peronista.

A mitologia da antievita foi propagada pelos opositores ao governo peronista,

sobretudo após a Revolução Libertadora (1955) que não apenas retirou Perón do poder como,

de modo revanchista, condenou toda realização peronista bem como manifestações de apoio

ao regime. A versão da antievita recebeu influência, principalmente, da obra La mujer del

250 No original: “Sólo ella fue capaz de entremezclar-se con la multitud, y ganarse así en el imaginario popular

un lugar de leyenda”.

148

látigo,251 de Mary Main, romancista e jornalista norteamericana que representa Evita como

uma “mulher dura, má atriz, ressentida e sedenta de vingança por sua origem social e a vida

difícil que teve” (NAVARRO, 2012, s/p, tradução nossa).252

Outras duas obras contribuem para a visão negativa do mito de Evita, também

chamado por Navarro de mito da Mulher Maravilha, justamente por apresentar uma Super

Mulher que tudo controla e domina (2002, p. 32); são elas: Bloody precedent, de Fleur

Cowles, e El mito de Eva Duarte, de Américo Ghioldi.253 A jornalista norteamericana Fleur

Cowles constrói em sua biografia de Eva Perón uma representação em que Encarnación

Ezcurra, esposa de Juan Manuel de Rosas, seria antecedente da primeira dama peronista,

seguindo a mesma linha de Américo Ghioldi que também as havia relacionado (NAVARRO,

2002, p. 22). Segundo Suzana Rosano (2005, p. 124), a biografia escrita por Cowles afirma

que Encarnación e Evita usaram o casamento para construir seu próprio prestígio e poder; e a

escrita por Ghioldi defende que o mito de Eva foi criado intencionalmente pelo governo

peronista.

Segundo esse ponto de vista antiperonista, Perón representava a versão moderna do

passado bárbaro argentino identificado com o regime de Rosas: “Encarnación Ezcurra era o

antecedente de Evita, porque Rosas era o antecedente histórico de Perón. Rosas foi ‘o

primeiro tirano argentino’, segundo palavras de Américo Ghioldi, e Perón, o segundo”

(NAVARRO, 2002, p. 24, tradução nossa).254 O velho conflito entre liberais e nacionalistas

na Argentina acentuou-se durante a Segunda Guerra Mundial em que os liberais vêem crescer

os “nazifascistas locais”. Com o golpe militar de 1943, a polarização entre liberais ou

“democráticos” e nacionalistas ou “nazifascitas locais” aumentou com a oposição ao governo

militar. A oposição identificava o nazifascismo com as políticas adotadas pelo governo,

sobretudo as tomadas pelo Secretário do Trabalho, Juan Perón. Foram porta-vozes dessa

perspectiva o Departamento de Estado dos Estados Unidos, no campo internacional, e grande

parte dos partidos políticos, no nacional, principalmente o Partido Socialista. A oposição, com

251 Publicada em Nova York, em 1952, sob pseudônimo de María Flores. Publicada na Argentina com o nome

verdadeiro da autora, Mary Main, após a Revolução Libertadora.

252 No original: “mujer dura, mala actriz, ressentida y sedienta de venganza por su origen social y la vida difícil

que había tenido”.

253 Bloody precedent (Antecedente sangrento) foi publicada em Nova York, em 1952. El mito de Eva Perón foi

publicada no Uruguai, também em 1952. Apenas a última foi publicada na Argentina logo após a Revolução

Libertadora.

254 No original: “Encarnación Ezcurra era el antecedente de Evita porque Rosas era el antecedente histórico de

Perón. Rosas fue ‘el primer tirano argentino’, según palabras de Américo Ghioldi, y Perón, el segundo”.

149

apoio da Embaixada dos Estados Unidos, uniu-se contra Perón nas eleições de 1946, no

entanto este foi vitorioso. Os conservadores não se recuperaram da derrota e a esquerda

perdeu sua base natural, a classe trabalhadora, para Perón. Embora o governo norteamericano

com o passar do tempo mude sua política exterior com a Argentina, a imprensa

norteamericana continua vendo Perón como um ditador nazifascista. Os liberais argentinos

também não mudam de opinião e passam a vê-lo como o novo Rosas, portanto o “Segundo

Tirano”. Estabelece-se no país uma política maniqueísta: de um lado, uma oposição frustrada,

furiosa e impotente, de outro, um governo exultante, arrogante e personalista (NAVARRO,

2002, p. 24-25).

É nesse contexto que surge a mitologia evitista que, segundo Navarro, no aspecto

antiperonista, dá forma a uma criatura irreal, extraordinária e cheia de contradições, existente

apenas em sua imaginação: a Mulher Maravilha em sua encarnação argentina, que elege seu

homem e o põe no governo, torna-se autoritária e enriquece, é ambiciosa, fria e calculista. Um

exemplo da sua atuação como super heroína seria sua atuação na crise de 1945, quando teria

tirado Perón da prisão e o levado em triunfo pelas ruas até a Casa Rosada para que discursasse

às multidões (2002, p. 32). No entanto, sabe-se, como apontado por Pigna (EJSV, p. 111) e

também pela própria autobiografia de Evita (LRMV, p. 42) que esta não teve grande

participação neste evento, tendo sido o clamor popular responsável pela libertação de Perón,

ou seja, cristalizou-se no imaginário uma ideia sobre o evento que não corresponde ao que

realmente aconteceu. Isto comprova a afirmação de Navarro de que os relatos nos quais apoia-

se esse mito antiperonista são pobres em fatos concretos e em fontes, mas são aceitos como se

fossem verdades inquestionáveis (2002, p. 34).

Outro exemplo dado por Navarro (2002, p. 39) do quanto o discurso antiperonista

pretende ser um relato histórico e assim é aceito, embora seja ficção, é a atuação de Evita,

como Mulher Maravilha, que cria a Fundação Eva Perón para vingar-se por ter sido rejeitada

pelas senhoras da sociedade de beneficência. No entanto, segundo a autora, a passagem dessa

instituição ao Estado não foi decisão de Evita. Resultou de um processo de modernização do

Estado, parte de um plano elaborado por vários governos, sendo o primeiro passo dado em

1943, quando foi criada a Direção Nacional de Saúde Pública e Assistência Social. Afirma a

autora que embora o conto do enfrentamento de Evita com as oligarcas pareça mais

interessante que a apresentação pormenorizada de documentos e decretos que comprovam o

contrário ele pouco tem a ver com a realidade (2002, p. 41). Segundo Andrés Avellaneda

150

(2002, p. 3), isto ocorre, porque, em matéria de literatura e política, interessa mais a

discursividade (ficcional) do que a referencialidade.

Compõe o mito antiperonista a ideia de Eva como forte e Perón fraco e covarde,

“única explicação possível para que um homem pudesse permitir que sua esposa ganhasse

tanto poder e influência” (NAVARRO, 2002, p. 36, tradução nossa).255 A autora destaca,

assim como Pigna, o quanto é significativo que nessas biografias, bem como em muitas obras

peronistas, não seja mencionada a atuação política de Evita. Muitas obras antiperonistas são

especulativas e apresentadas com o objetivo de revelar “a verdadeira Evita”, “a outra face de

Evita”, contar “sua verdadeira história” como se apenas eles tivessem acesso à verdade.

Detinham-se em temas como seus amantes, seu péssimo desempenho como atriz, sua

personalidade vingativa e ambiciosa, buscando revelar um retrato íntimo, sem no entanto

apresentar fontes ou provas (NAVARRO, 2002, p. 36):

Mas ao deixar de lado sua atuação política e ignorar o papel que desempenhava na

política argentina, arrancavam-na do político, silenciavam-na e a despolitizavam,

produzindo-se assim uma situação extraordinária já que Evita foi a fundadora e

presidente de um partido político, o Partido Peronista Feminino, que trabalhou

decididamente para que as mulheres argentinas se organizassem e votassem em

Perón em 1951, era a celebrada “Porta-voz dos Descamisados”, o laço de união

entre Perón e a Confederação Nacional do Trabalho (CGT), a única mulher que fazia

parte do Conselho Superior do Partido Peronista e, durante um tempo, foi candidata

a vice-presidência da Argentina. Uma mulher que, quando descobriu a política,

apaixonou-se perdidamente por ela, e que desde 1946 até quando caiu enferma em

1951, praticamente não deixou de fazer política. (NAVARRO, 2002, p. 36, tradução

nossa)256

Ao mesmo tempo em que se difundia um retrato despolitizado de Evita, o governo de

Aramburu parecia ter clareza sobre o significado político e emocional de Eva para os

peronistas e o simbolismo de seu cadáver embalsamado, razão pela qual os militares

desaparecem com o corpo, transformando-a, segundo Navarro (2002, p. 37), na primeira

desaparecida das ditaduras que se seguiriam. Além disso, o rigor antiperonista da primeira

década da Revolução Libertadora acabou por tornar irresistível a fantasia do peronismo.

Dessa forma, como aponta Andrés Avellaneda (2002, p. 1), o peronismo foi um fato maldito

255 No original: “única explicación posible para que un hombre pudiera permitir que su esposa ganara tanto poder

e influencia”.

256 No original: “Pero al dejar de lado su actuación política e ignorar el papel que desempeñaba en la política

argentina, la arrancaban de lo político, la silenciaban y la despolitizaban, produciéndose así una situación

extraordinaria ya que Evita fue la fundadora y presidente de un partido político, el Partido Peronista Femenino,

que trabajó denodadamente para que las mujeres argentinas se empadronaran y votaran por Perón em 1951, era

la celebrada ‘Abanderada de los Descamisados’, el lazo de unión entre Perón y la Confederación Nacional del

Trabajo (CGT), la única mujer que formaba parte del Consejo Superior del Partido Peronista y, durante un

tiempo, fue candidata a la vicepresidencia de la Argentina. Una mujer que cuando descubrió la política, se

apasionó perdidamente por ella, y que desde 1946 hasta que cayó enferma en 1951, prácticamente no dejó de

hacer política”.

151

brevemente depois de 1955, com a literatura antiperonista; começou a deixar de sê-lo nos

anos 1960 e 1970, no reexame da relação entre literatura, sociedade e política; e reciclou-se,

por fim, como intertexto dos mitos sociais argentinos na literatura recente.

Para Suzana Rosano (2005, p. 14), Eva Perón foi condenada por muitos argentinos

baseados num imaginário associado a um estereótipo de feminilidade: a mulher como centro,

protetora do lar; no entanto este mesmo estereótipo permitiu a construção da representação de

Evita pela narrativa oficial peronista. Essa aproximação no fundo do imaginário evitista entre

os dois pólos é possível, porque, segundo Sarlo (1995, p. 21), as qualidades de seu corpo “não

esgotam nenhum mito, mas sustentam todos eles. A paixão move o corpo coberto pelos

vestidos [...].”

A paixão a que se refere Sarlo apresenta-se em forma narrativa em LRMV, obra

autobiográfica em que Eva Perón constrói uma imagem de si vinculada ao projeto político

peronista, como já mencionado, e lança as bases do que viria a ser o mito evitista. Para uma

sociedade patriarcal, Eva apresenta-se como mulher, em segundo plano, sempre ao lado de

Perón. Reafirma o papel da mulher como esposa e mãe, responsável pelo lar e pela família,

alegorizando inclusive a pátria e o povo como lar e família. Ao elaborar a primazia de Perón,

Eva chega ao ponto de apagar parte de sua identidade em sua autobiografia, não mencionando

seu passado como atriz, relatando o encontro com Perón e como este transformou sua vida.

Chama a atenção o quanto Eva, embora tenha papel protagônico no peronismo, insiste em

colocar-se fora do centro, no entanto apresentando-se como um modelo a ser seguido em sua

devoção a Perón. Isto talvez se deva ao intento de buscar um local de fala sem romper

completamente com os valores sociais vigentes. Ao mesmo tempo, o peronismo, ao tornar

esse discurso oficial, um verdadeiro “manifesto peronista”, mostra-se bastante habilidoso ao

aglutinar as massas a Perón através da instrumentalidade de Evita.

Nas bases da mitologia evitista, estão a eleição de Evita para cumprir um destino; sua

mediação entre Perón e o povo, e o fanatismo com o qual devota seus esforços ao líder. Eva

credita a uma força que pode ser chamada de Deus, destino ou providência, sua eleição para

realização de uma missão para a qual não foi forçada, mas aceitou cumpri-la generosamente

(LRMV, p. 50), desde que conheceu Perón. Ora, o encontro aproximado ao que,

religiosamente, chama-se “conversão”, Eva teve com Perón. Esse fato que transformou sua

vida que, pela leitura de sua autobiografia, poderia ser entendida como dividida em dois

períodos: antes e depois de Perón. Antes, período que não merece consideração, apenas no

que se refere ao que serviu para moldar seu caráter e pôde ser utilizado pela causa peronista

152

como, por exemplo, sua indignação frente à injustiça. E depois, quando tudo passa a ter

sentido e suas ações ganham importância, pois são fruto de indignação frente à injustiça e

paixão pela justiça social motivada por seu marido e líder. Perón é, desta forma, apresentado

como um tipo de Cristo, aquele no qual creram os humildes quando surgiu menino em Belém

(LRMV, p. 38). O texto de LRMV contém vários elementos messiânicos, sendo Evita também

um tipo de Cristo, ao assumir função mediadora. Assim como o Filho na concepção cristã é o

mediador entre Deus e os homens, estava Evita entre Perón e o povo cumprindo idêntica

função. Essas características messiânicas são, segundo o discurso de Evita, voltadas à

construção de uma ordem social cristã oposta ao liberalismo e ao comunismo, como bem

observou Rosano (2005, p. 54), o que possibilitou que os Montoneros a tomassem como líder

nos anos 1970.

O modo como Eva dá a conhecer em sua autobiografia seu caráter geminado, isto é,

composto por duas personalidades que se manifestam de acordo com a função social que

desempenha, também se torna uma das bases de seu mito. Deixa Eva Duarte para trás, e já

nem a menciona mais, passa a ser Eva Perón que contém em si Evita. No trato social e

político como primeira dama, é Eva Perón, mas quando está diante do povo é Evita e este

papel que desempenha, o melhor papel e seu desempenho mais bem sucedido, é o seu

preferido. Como Evita, ela é a ponte estendida entre Perón e o povo, a mediadora.

A tarefa mediadora é cumprida por Evita de modo exagerado, fanático. Poderia aqui

afirmar de outro modo: sobre sua tarefa mediadora, Evita declara-se exagerada e fanática. No

entanto, esse discurso, se confrontado com fatos, revela-se verdadeiro, visto que é sabido que

trabalhava longas jornadas em atendimento ao povo, com urgência em fazer justiça social,

deixando-se consumir. Isto alimenta o mito crístico: a ideia de que entregou sua vida em prol

dos mais necessitados. Além disso, o fato de que seu discurso possa ser comprovado por seus

atos ajuda aos seus simpatizantes a fixar a ideia de que seu relato é verdadeiro.

Cabe ressaltar que esse empenho fanático devotado a Perón é exemplar, destinado a

formar as bases peronistas, sendo LRMV tomado como um catecismo do peronismo. Nesse

catecismo, relata-se a história de amor de uma mulher por um homem que é alegoria do amor

deste homem pela nação. Uma mulher que, como uma santa, dedica-se intensamente a ajudar

seu povo a entender a luta do “santo” líder revelando a motivação para sua frenética e

laboriosa atividade de justiça social, enumerada em seu texto, à semelhança do bíblico Atos

dos Apóstolos.

153

Concordo com Rosano (2005, p. 57), que afirma que LRMV está na ordem dos

sentimentos, portanto não segue os parâmetros da racionalidade. É um contrato de amor entre

Perón e o povo, que sela o pacto de lealdade do peronismo com as massas através da

identificação de Evita com o povo. Desta forma, esta mulher converte-se no pilar fundamental

da eficácia simbólica do peronismo. Observo que esta obra escrita de modo simples, como já

mencionado anteriormente, com bastante clareza, sem rodeios, atingiu seu público, que

também se viu, pouco tempo depois, em meio aos eventos de seu falecimento, seu funeral, a

derrocada do governo peronista e o desaparecimento de seu cadáver. Tudo isto contribuiu

para o imaginário evitista.

Em SE, discutem-se os motivos pelos quais Evita tornou-se um mito (SE, p. 183-197):

ascensão meteórica; morte precoce; atuação política; amor de conto de fadas; fetichismo

popular; justiça social e, por fim, monumento inconcluso.

Em apenas quatro anos, Eva saiu do anonimato de papeis medíocres na rádio para

ocupar o posto de Primeira Dama e ser entronizada como a única mulher Benfeitora dos

Humildes e Chefe Espiritual da Nação (SE, p. 183). O fato de isto ter ocorrido em pouco

tempo contribuiu para impactar o povo, sobretudo porque sua intensa atividade como Evita

parecia anunciar seu fim próximo. Da mesma forma, causou admiração e repulsa aos que se

tornariam com o passar do tempo seus opositores ferrenhos: “Los que no le habían prestado

atención como actriz la odiaban ya como ícono del peronismo analfabeto, bárbaro y

demagogo” (SE, p. 184).257

O narrador comenta sua atuação pública que se parecia à de um macho, para os

códigos culturais da época. A afirmação de que embora Evita sempre se colocasse atrás do

marido, ele parecia a sombra, é confirmada com a citação de um escritor:

En una de sus invectivas memorables, Ezequiel Martínez Estrada definió así la

pareja: ‘Todo lo que le faltaba a Perón o lo que poseía en grado rudimentario para

llevar a cabo la conquista del país de arriba abajo, lo consumó ella o se lo hizo

consumar a él. En ese sentido también era una ambiciosa irresponsable. En realidad,

él era la mujer y ella el hombre’. (SE, p. 184)258

Sua morte precoce coloca Evita ao lado de mitos argentinos como o músico e cantor

Carlos Gardel e o líder revolucionário Che Guevara, falecidos aos 44 e 39 anos,

respectivamente. Se falecer jovem chama a atenção, é ainda mais notável a morte aos 33 anos, 257 Em português: “Aqueles que não tinham reparado nela como atriz agora a odiavam como ícone do peronismo

analfabeto, bárbaro e demagogo” (p. 160).

258 Em português: “Em uma de suas invectivas memoráveis, Ezequiel Martínez Estrada definiu o casal deste

modo: ‘Tudo aquilo que fazia falta a Perón, ou que possuía em grau rudimentar, para levar adiante a conquista

do país de ponta a ponta, ela consumou ou o fez consumar. Neste sentido, também era uma ambiciosa

irresponsável. Na verdade, ele era a mulher, e ela o homem” (p. 160).

154

a idade que Cristo tinha ao morrer. Além da vida de Eva e suas realizações, esse ponto

também remete ao imaginário de sua sacralização. O narrador de SE destaca que a mitologia

dos que morrem cedo se alimenta não apenas do que fizeram em vida, mas também do que

poderiam fazer caso ainda vivessem (SE, p. 185). Além disso, afirma o narrador que a morte

de Evita foi uma tragédia coletiva a que assistiram multidões, assumindo a analogia de Evita

como a nação, ideia apresentada em LRMV: “Desde que se difundieron los partes médicos

sobre la enfermedad hasta que su catafalco fue llevado a la CGT […] Evita y la Argentina

pasaron más de cien días muriéndose” (SE, p. 185).259 Seu funeral pomposo, com honras de

Chefe de Estado, somado ao embalsamamento de seu cadáver contribuiu para o mito evitista.

O cadáver embalsamado torna-se um corpo híbrido entre a vida e a morte, gerando várias

especulações, sobretudo com o seu sequestro e desaparecimento.

A menção à atuação política em SE ao discutir o mito limita-se a apontar a criação da

fundação de ajuda social que levou seu nome (SE, p. 189), seguindo a narrativa do

enfrentamento de Evita com as damas da sociedade de beneficência, sem mencionar os

aspectos levantados por Navarro e mencionados nesta pesquisa a respeito da estatização da

ajuda social como uma política pública e não apenas um trabalho da Mulher Maravilha Evita

que teria enfrentado as oligarcas para empreendê-lo. Outras formas de participação efetiva e

decisiva de Evita na política, como a criação e presidência do Partido Peronista Feminino, não

são neste momento mencionadas. O narrador rejeita a ideia de que Evita resignou-se a ser

vítima, como a mesma diz em sua autobiografia. Segundo ele, Eva não tolerava que houvesse

vítimas, porque isso a lembrava que ela havia sido uma, por isso lutava para redimir a todas

que encontrava (SE, p. 186).

O seu amor de conto de fadas é relatado em SE seguindo a forma com que Eva o

narrou em LRMV ou, dito de outra forma, é possível ouvir ecos da autobiografia de Evita na

biografia ficcional, visto que ambas relatam o momento em que Eva conheceu Perón como

um encontro que estava predestinado a acontecer e como alegoria da nação: Perón era o

redentor e ela, a oprimida (SE, p. 191).

O fetichismo popular conferiu grande importância ao mito (SE, p. 193-194). Vários

objetos tocados por Evita passaram a fazer parte do seu culto, sendo seu próprio cadáver o

principal símbolo e também relíquia. Tal fetichismo, aliado aos relatos do que se recebeu de

doação das mãos de Evita contribuíram para a composição do mito. Segundo o narrador de

SE, cada família peronista tem uma história a contar a respeito de algo que recebeu de Evita:

259 Em português: “Desde a divulgação dos primeiros boletins médicos sobre a doença até a condução de seu

féretro à CGT [...] Evita e a Argentina passaram mais de cem dias morrendo” (p. 161).

155

um colchão, uma máquina de costura ou o enxoval de noiva, dentre outros itens, alimentam a

tradição oral, fazendo o agradecimento ser infinito e que os netos, na hora de votar, pensem

em Evita (SE, p. 195).

O Monumento ao Descamisado havia sido uma ideia de Evita, para homenagear os

trabalhadores, no entanto, com sua morte, o projeto original foi modificado passando a render

homenagem à própria primeira dama. Não chegou a se realizar, mas a memória fúnebre de

Evita permaneceu naquele local. De modo poético, o narrador alimenta o mito contando como

ela aparece ali todas as tardes anunciando tempos sombrios, e como os tempos têm sido

sombrios, a credulidade dos devotos se mantém (SE, p. 196).

Estes elementos, apresentados em SE sob a forma de um ensaio, fazem indagar por

que a biografia ficcional dedicou-se a refletir sobre os motivos pelos quais Evita transformou-

se em mito. Considero que o faz porque constrói literariamente sua própria versão deste mito,

lançando outros elementos no imaginário evitista. Apresenta discussão sobre a imagem de

Evita na literatura, esclarecendo que o fascínio pelo corpo morto começou antes mesmo da

doença, em 1950, com o romance El examen, de Julio Cortázar. Menciona outras obras, como

o Libro Negro de la Segunda Tiranía, publicado em 1958; as Catilinarias, de Martínez

Estrada; os contos “Ella”, de Juan Carlos Onetti, e “El simulacro”, de Borges; o drama Eva

Perón, de Copi; os contos de Evita vive (en cada hotel organizado), de Néstor Perlongher.

Discute também a atualização do mito evitista no musical Evita, de Tim Rice e Andrew Lloyd

Webber. Tantas manifestações, porque

Cada quien construye el mito del cuerpo como quiere, lee el cuerpo de Evita con las

declinaciones de su mirada. Ella puede ser todo. En la Argentina es todavía la

Cenicienta de las telenovelas, la nostalgia de haber sido lo que nunca fuimos, la

mujer del látigo, la madre celestial. Afuera es el poder, la muerta joven, la hiena

compasiva que desde los balcones del más allá declama: ‘No llores por mí,

Argentina’. (SE, p. 203)260

Martínez narrador tem uma experiencia com o mito, declara que avança entre o mítico

e o verdadeiro, entre obscuridade e luz, se perde, mas Ela o encontra: “Ella no cesa de existir,

de existirme: hace de su existencia una exageración” (SE, p. 204).261 Mais do que teorizar

sobre o mito, experimenta-o quase religiosamente. A ficção possibilita essa representação.

Já em EJSV, o historiador apresenta, brevemente, as condições reunidas por Evita para

ser um mito: “llegó a lo más alto partiendo desde muy abajo, murió joven y en el esplendor de 260 Em português: “Cada um lê o mito do corpo como quer, lê o corpo de Evita com as declinações de seu olhar.

Ela pode ser tudo. Na Argentina ela ainda é a Cinderela das telenovelas, a nostalgia de ter sido o que nunca

fomos, a mulher justiceira, a mãe celestial. Fora do país, é o poder, a morta jovem, a hiena compassiva

declamando nos balcões do além: ‘Não chores por mim, Argentina’” (p. 176).

261 Em português: “Ela não cessa de existir; de existir-me: faz de sua existência um exagero” (p. 177).

156

una vida donde la historia se tiñe con el rosa y el negro de las respectivas leyendas” (EJSV, p.

10).262 As principais razões, portanto, são novamente a ascensão meteórica e a morte precoce,

elementos também presentes em SE, como observado. O autor destaca ainda a polarização da

sociedade entre os favoráveis e os contrários ao peronismo, o que levou ao rigor maniqueísta

com que Eva Perón foi tratada. No entanto, ela sobreviveu através do amor do seu povo,

convertendo-se em Santa e logo depois em ícone revolucionário da Juventude Peronista nos

anos 1970. Da mesma forma, sobreviveu no ódio de seus inimigos que tentaram a todo custo

apagar sua memória, mas foi inútil (EJSV, p. 10, 11). Evita sobrevive.

Embora o historiador não tenha a mesma liberdade do romancista para criar como

quiser seu enredo, pois está limitado pelas regras do seu campo de atuação, é possível

vislumbrar seu posicionamento através de seu modo de narrar, sua seleção vocabular, o modo

como recorta o tema e o aborda, como já mencionado anteriormente nessa pesquisa. Cabe

refletir, portanto, se a pretensão da objetividade plena é possível de alcançar. Há os

mecanismos vários para ocultar o autor, restringir a subjetividade, mas estes não se

confundem com neutralidade, visto que esta sim é impossível de existir. Todo o texto está

marcado por tomada de posição, já desde a perspectiva de realizar uma representação política,

elemento pouco trabalhado nas variadas representações de Eva Perón de que se tem notícia,

como afirma o próprio Felipe Pigna (EJSV, p. 9) e também Marysa Navarro (2005, p. 36).

O imaginário evitista compõe-se portanto de história e ficção, ou seja, está na

confluência de suas margens, sendo por ambas alimentado, com grande produtividade, mesmo

na atualidade, a sessenta e cinco anos da morte de Eva Perón.263

5.2 Margens confluentes

É importante atentar para as semelhanças entre história e ficção, mas também para as

diferenças. Reconhecer que um campo não anula o outro e sim que cada um permanece em

seu domínio, embora suas margens possam confluir para um imaginário. Determinar em que

medida cada área atua na formação do imaginário coletivo seria tarefa hercúlea que

demandaria pesquisa acerca da recepção dos textos, algo possível, sem dúvida, entretanto não

neste momento em que o foco está especificamente nas narrativas.

262 Tradução nossa: “Chegou ao mais alto partindo de muito baixo, morreu jovem e no esplendor de uma vida

onde a história se tinge com o rosa e o negro das respectivas lendas”.

263 Sobre a extensa produção literária sobre Eva Perón, ver o Anexo A.

157

A motriz da questão que motivou esta pesquisa centra-se no modo de narrar e não

exatamente na determinação de uma versão histórica. Tal modo de narrar ou tais modos de

narrar construtores de cada representação – autobiográfica, hagiográfica e política – são

observáveis na dinâmica da narratividade da história, por um lado, e da historicidade da

ficção, por outro. A alegoria das margens confluentes aponta para o imaginário, o caldeirão

onde se misturam os vários mitos de Evita, ali onde ela pode ser tudo, pode enfim “ser

milhões”.

Selecionei três situações mencionadas ou não nas obras analisadas para refletir sobre

sua presença ou ausência, bem como semelhanças e diferenças de abordagem, associando-as

às representações de Eva Perón nelas construídas: a condição de filha natural, o encontro com

Perón e a morte, o sequestro e o desaparecimento do corpo de Eva. Tais situações foram

selecionadas por serem relevantes na sua biografia e possibilitarem a discussão a respeito das

diferentes representações e o imaginário.

Embora vários biógrafos indiquem a condição de filha natural de Eva Perón (Ibarguren

e não Duarte) como responsável por sua percepção ainda na infância da injustiça, em LRMV

ela não é sequer mencionada. Isto seria admitir a falsificação da certidão de nascimento que a

tornou filha legítima para casar-se com Perón; não que isso fosse uma exigência legal, mas

Eva apaga sua história antes de se encontrar com o general. O pouco que menciona é sobre a

infância pobre e sua compreensão ainda criança da caridade como ostentação da riqueza. A

necessidade que sentiu de forjar uma certidão de nascimento para então, finalmente, nela ser,

ainda que soubesse fictíciamente reconhecida pelo pai há muito falecido, e o fato de não

comentar essa adversidade permite refletir não apenas sobre o quanto isto a incomodava, mas

também sobre o quanto era fruto de seu tempo, presa às imposições sociais, apesar de em

muitos aspectos havê-las rompido.

Em SE a ilegitimidade de Evita é mencionada quando o narrador comenta os dados

falsos na certidão de casamento de Perón e Eva: ele mentiu sobre o lugar da cerimônia e o

estado civil; ela sobre a idade, o domicílio, a cidade em que nasceu (SE, p. 143). O narrador

discute as fontes utilizadas pela historiografia e critica o fato de alguns biógrafos e

historiadores tomarem como verdadeiros os dados presentes na certidão. Pergunta-se os

motivos que teriam levado os nubentes a tal feito e, dentre os vários questionamentos que faz,

indaga se Evita disse que nasceu em Junín porque em Los Toldos era ilegítima (SE, p. 144). A

representação hagiográfica não se macula com essa falsidade, afinal é comum que o santo

158

passe por um período de engano ou de ignorância antes que sua santidade seja manifesta e que

isto seja relatado em sua narrativa de vida.

A questão dos filhos naturais ocupa parte considerável do primeiro capítulo de EJSV,

“Cholita”. Discute-se o quanto ser ilegítimo no início do século XX era um estigma social.

Pigna dedica-se a comentar os mitos que se criaram a partir do nascimento de Eva Perón,

propondo-se a esclarecer os fatos. Menciona a certidão de casamento que revela a adulteração

efetuada na certidão de nascimento de Eva com vistas a reparar sua condição de filha natural:

Fue inscripta por su madre como María Eva Ibarguren. El cambio en la partida de la

condición civil de sus padres, de concubinos a casados, debía ir necesariamente

acompañado de la modificación de la fecha de nacimiento de María Eva, porque

Duarte estaba casado, no precisamente con Juana, y recién en 1922 cambió su estado

civil por el de viudo. Esta alteración en la fecha eliminaba entonces la condición de

“hija adulterina” de Evita. La modificación se produjo en 1945, en los días previos a

la boda con Perón, cuando Evita fue anotada con estos datos ficticios en el acta

número 728, documento que originariamente correspondía a un bebé muerto a los

dos meses de vida, llamado Juan José Uzqueda”. (EJSV, p. 16)264

O historiador segue explorando o tema, discutindo por que Juan Duarte recusou-se a

reconhecer Eva, embora conclua que não se sabe muito bem o motivo. O mais notável é sua

observação de que a condição de natural levava fatalmente à discriminação social e jurídica

(EJSV, p. 19). Portanto, é desse ponto de partida que arranca a representação política de Eva

Perón, demonstrando de quão baixo ascendeu, de uma condição de marginalidade.

A segunda situação cuja abordagem é comparada nas três obras é o encontro de Eva e

Perón. Em LRMV, esse dia é descrito como um divisor de águas. Eva descreve-se naquele

momento como alguém que imaginava que sua vida não sofreria grandes mudanças, havia se

resignado a ser vítima e a viver uma vida monótona (LRMV, p. 32). Contudo o dia em que

sua vida coincidiu com a de Perón deu-se a maravilha: começou sua verdadeira vida, aquela

para a qual havia sido forjada e vocacionada. Como já abordado anteriormente neste trabalho,

Perón é descrito como o melhor dos homens ao lado de quem Eva se coloca (LRMV, p. 35).

Faz-se necessário à narrativa autobiográfica este momento epifânico que estabelece

um antes e um depois na vida de Eva, que se concentra justamente em narrar sua vida a partir

deste evento. Declara aprender com Perón, seguir seu exemplo, descobrindo assim sua

264 Tradução nossa: “Foi registrada por sua mãe como María Eva Ibarguren. A mudança na certidão da condição

civil de seus pais, de concubinos a casados, devia ir necesariamente acompanhada da modificação da data de

nascimento de María Eva, porque Duarte estava casado, não exatamente com Juana, e recentemente em 1922

mudou seu estado civil para o de viúvo. Esta alteração na data eliminada então a condição de ‘filha adulterina’

de Evita. A modificação se produziu em 1945, nos dias anteriores ao casamento com Perón, quando Evita foi

registrada com esses dados fictícios na certidão número 758, documento que originariamente correspondia a um

bebê morto aos dois meses de vida, chamado Juan José Uzqueda”.

159

verdadeira vocação que não é a representação artística, mas a encarnação da mediadora entre

Perón e o povo, representando o papel de Evita.

O dia em que Eva conheceu Perón é abordado em SE com um intertexto de LRMV

como introdução: “En La razón de mi vida, Evita describió su encuentro con Perón como uma

epifania: se creyó Saulo en el camino de Damasco, salvada por una luz que caía del cielo”

(SE, p. 189).265 O fato é elaborado a partir do esclarecimento sobre o que motivou o

ajuntamento de pessoas (o terremoto ocorrido em San Juan, em 1944 e o show beneficente em

prol das vítimas) e das fontes consultadas (noticiários filmados de vários países aos quais

assistiu nos Arquivos Nacionais de Washington). O narrador é preciso: revela a hora exata do

encontro e identifica as pessoas que cercavam Eva. De modo onisciente, relata que ela queria

muito conhecer o “coronel do povo” a quem ouvia pela rádio e com quem fantasiava um

encontro (SE, p. 190). Segue narrando os sentimentos de Eva, o modo como se sentia

predestinada a conhecê-lo, o que a faz tomar o assento contíguo ao seu e a entabular uma

breve conversa com uma frase de efeito com a qual surpreende o coronel: “Gracias por

existir” (SE, p. 192).266 Com isto, o narrador cria uma memória ficcional que preenche uma

lacuna na história, afinal não se sabe o que de fato foi dito.267

O narrador emite opinião sobre a versão dada por Eva em LRMV, classificando-a

como muito verbal e confrontando-a com as imagens dos noticiários a que alega ter assistido,

indica que apenas a frase curta foi dita. Segundo ele, as imagens mostram o momento em que,

ao final do evento, Eva sai do local acompanhada por Perón, com a mão em suas costas, como

quem tomou posse da história e a leva aonde quer (SE, p. 193). Essa observação faz ecoar as

versões do mito da antievita que considera Perón um fraco, dominado por Eva, o que nos leva

a perceber que os elementos que compõem a mitologia evitista aparecem em ambos lados, o

positivo e o negativo.

Na biografia histórica, o tema do encontro ocasiona oportunidade para discutir

diferentes versões sobre quem teria sido a pessoa que facilitou para que Eva se sentasse ao

lado de Perón (EJSV, p. 75). Após apresentar tais versões, o historiador conclui que o certo é

que Eva e uma colega atriz ocuparam os lugares vazios ao lado de Perón (EJSV, p. 76). Além

disso, comenta a versão de Perón, que mescla as anteriores, para por fim discutir as versões de

265 Em português: “Em La razón de mi vida, Evita descreveu seu encontro com Perón como uma epifania: ela se

sentiu como Saulo a caminho de Damasco, salva por uma luz caída do céu” (p. 164).

266 Em português: “Obrigada por existir” (p. 167).

267 Em entrevista a Juan Pablo Neyret, “Novela significa licencia para mentir”, Tomás Eloy Martínez afirma

haver criado a frase que passa a ser intertexto para outras obras ficcionais.

160

Evita. Se, em LRMV, Eva limitou-se a dizer que aquele foi seu dia maravilhoso, a uma amiga

confiou como de fato tudo aconteceu: agiu por impulso, sem ajuda, ao posicionar-se perto de

Perón, iniciou uma conversa animada e, ao final do evento, foram embora juntos. A essa

amiga Evita teria dito ainda que Perón gostava de mulheres decididas (EJSV, p. 79). Uma vez

mais, surge a ideia do comando feminino, da mulher decidida, ideia agora corroborada pelo

testemunho da amiga. No entanto, no texto biográfico, essa amiga não é identificada, sem que

se ofereçam explicações para essa indeterminação. Com isto, podemos indagar se não estamos

uma vez mais diante de puro mito.

O tema da morte de Eva e o sequestro de seu cadáver é central em SE, dispensando

outros comentários além dos já realizados neste trabalho. Como a representação ali efetuada é

hagiográfica, o cadáver embalsamado, principal relíquia do culto evitista e símbolo de seu

mito, constitui o principal elemento do enredo da narrativa da biografia ficcional. A história

que se narra não é apenas a da vida de Evita, mas sobretudo as aventuras pela quais passa seu

corpo no longo tempo em que esteve ocultado. Não se abordam, no romance, as ações dos

Montoneros que, com o sequestro e execução do ex-presidente Aramburu, que havia sido

responsável, por sua vez, pelo sequestro do cadáver de Evita, provocaram a entrega deste a

Perón e, posteriormente, sua repatriação. O narrador encerra seu relato fazendo-o convergir ao

início, como se o relato do mito evitista tivesse de ser retomado uma e outra vez, iluminando

outros pontos de seu repertório, ampliando o caráter circular do mito.

Já em EJSV, o historiador apresenta várias versões sobre o momento final de Eva

Perón, concluindo que todas coincidem num ponto: o horário em que ocorreu (EJSV, p. 324).

O dado objetivo, pontual, é o mais fácil de ser obtido num momento como este, em que cada

um guarda sua lembrança pessoal com o ente que está prestes a partir. Como já vimos no

capítulo anterior desta tese, a biografia relata a decisão de Perón de realizar um funeral

massivo e de conservar o corpo, segundo ele para cumprir a vontade de Evita; o início dos

trabalhos de taxidermia com o Dr. Pedro Ara; o luto nacional e o velório multitudinário; as

repercussões ao redor do mundo e, por fim, o breve descanso do cadáver embalsamado na

sede da CGT. O historiador narra também como o rancor dos contrários a Evita acirrou-se

com tantas homenagens póstumas; a Revolução Libertadora; o sequestro do cadáver que não

foi entregue à família como havia sido pedido; o revanchismo contra o peronismo deposto; a

fúria da “desperonização”; os relatos de maldições que acometeram os que ocultavam o

cadáver; o sepultamento do cadáver na Itália; o sequestro e a execução de Aramburu pelos

161

Montoneros; a devolução do cadáver. Conclui seu relato com uma breve discussão sobre

como, ainda depois de morta, Evita desperta medo aos militares (EJSV, p. 370).

Essa profusão de informações, com ampla discussão de fontes, revela o trabalho

historiográfico em tentar narrar de modo completo o que aconteceu. Embora pretenda ser um

discurso objetivo, não se furta de mencionar e apresentar algumas questões que mais parecem

aproximadas a um relato mítico como, por exemplo, as maldições que cercavam o cadáver e o

temor que Evita ainda infunde, a tantos anos de sua morte e estando agora seu corpo guardado

em caixa forte no cemitério da Recoleta. Aqui cabe ainda uma observação: apesar da

sacralização política de seu corpo, ele é ponto turístico na cidade de Buenos Aires, recebendo

inúmeros visitantes diariamente. Evita tornou-se um símbolo não apenas político, mas pop.

No imaginário evitista, na confluência entre história e ficção, Eva pode ser milhões.

Conclui-se que LRMV estabeleceu as bases do mito evitista, SE discutiu e atualizou o

mito, enquanto EJSV pretende ser um relato mais objetivo embora, em alguns momentos,

apresente ficcionalização. Desta forma, as representações alimentam o imaginário evitista nas

margens confluentes entre a história e a ficção.

162

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A relação entre história e ficção na representação de Eva Perón consistiu no tema desta

tese. Analisei as obras La razón de mi vida, de Eva Perón, Santa Evita, de Tomás Eloy

Martínez, e Evita: jirones de su vida, de Felipe Pigna, observando nelas, respectivamente, as

representações autobiográfica, hagiográfica e política de Eva Perón. Busquei responder

questões relativas à relação entre história e ficção na construção destas representações,

identificando os elementos que relativizam os limites entre esses dois campos, ficcionalizando

a matéria histórica, por um lado, e criando o efeito de historicidade, por outro. Além disso,

questionei o papel do historiador na construção do efeito de historicidade, bem como o

imaginário evitista na confluência das margens entre a história e a ficção.

Nesta pesquisa de tese, considerei a história como ciência dos homens no tempo,

privilegiando a experiência humana, segundo Marc Bloch; como uma construção que segue

um conjunto de práticas, de acordo com Michel de Certeau, e, ainda, como uma narrativa,

segundo Hayden White. Sobre a ficção, utilizei o conceitual de Wolfgang Iser sobre os atos de

fingir através dos quais o texto literário permite a realização do imaginário que adquire

aparência de real. Apoiei-me também nas considerações de Walter Benjamin sobre o

historiador alegorista como aquele que dá sentido à história e constrói sua experiência com o

passado.

Discuti o efeito de efeito de historicidade criado, textualmente, na narratividade da

história e, paratextualmente, com a autoria do historiador. Como elementos textuais criadores

do efeito de historicidade, foram identificadas: notas, citações, tratamento do tempo,

objetividade, conceitualização, cronologização, criação do enredo e argumentação. Quanto ao

elemento paratextual, a presença do nome próprio do historiador com seu duplo

reconhecimento – dos pares e do público – possibilita o efeito de historicidade.

Identifiquei as obras constituintes do corpora desta pequisa como integrantes de um

espaço biográfico constituído por autobiografia (La razón de mi vida), biografia ficcional

(Santa Evita) e biografia histórica (Evita: jirones de su vida).

Trabalhei com a noção da autobiografia como um gênero fronteiriço, multiforme e

movediço, segundo Pozuelo Yvancos, para o qual ganha importância o pacto autobiográfico,

segundo Lejeune, através do qual se estabelece um contrato de leitura entre autor e leitor. A

autobiografia relaciona-se também à concepção do eu apresentado como modelo. Discuti a

respeito da autoficção a partir de Alberca, considerando o seu fundamento a identidade

163

reconhecível entre autor, narrador e personagem do relato, além da possibilidade de o

narrador criar múltiplas realidades. Sobre biografia, utilizei os aportes de Bakthin que a

definiu como descrição de uma vida resultante da seleção, descrição e análise de uma

trajetória individual. Com estes elementos, o biógrafo urde um enredo, sendo a biografia,

portanto, uma construção, segundo Pierre Bourdieu.

Comentei o redespertar do gênero biográfico entre jornalistas e historiadores. Estes

últimos buscam restaurar o papel do indivíduo na construção dos laços sociais. Ambos,

jornalistas e historiadores, são influenciados pela literatura na produção biográfica que,

embora apresentem semelhanças, como criação de personagens, introdução de licenças

poéticas, interpretação e ficção, e uso do flasback no tratamento do tempo, também

apresentam diferenças, que se referem ao tratamento diferenciado das fontes de pesquisa, o

conteúdo ficcional e o tratamento da conjuntura.

Sobre hagiografia, refleti, observando seu caráter de um discurso que visa à

exemplaridade, segundo Certeu, portanto um relato de sobrevivência após a morte, como

apontado por Jolles.

Percebi o imaginário na confluência entre as margens da história e da ficção. De

acordo com Jacques Le Goff, o imaginário faz parte de um campo de representação, a partir

de uma perspectiva criadora, sendo um domínio da história. Observei que a percepção, nos

textos literários, das representações, possibilita abrir portas ao estudo do imaginário.

Em La razón de mi vida, analisei a representação autobiográfica de Eva Perón.

Verifiquei o pacto autobiográfico, a construção de si na narrativa como uma mulher humilde e

vocacionada para a missão de cuidar dos trabalhadores de seu país; o relato de sua infância no

qual se verifica sua vinculação ao projeto político peronista. Além disso, observei que Eva

Perón constrói em seu relato alegorias da nação: lar e família. Nesta construção alegórica, ela

é a mãe, Perón, o pai, e o povo são os filhos. Eva Perón apresenta-se como mediadora entre

Perón e os trabalhadores.

Concluí que o efeito de historicidade é criado, nesta obra, a partir dos seguintes

elementos: a autoria e o pacto autobiográfico; a construção do enredo (que dá intimidade e

sentido à vida); os detalhes; as referências a personagens e instituições reais; a menção de

datas históricas; a citação de documentos, a conceitualização e as fotografias. Estes

elementos, em conjunto, possibilitam ao leitor tomar como realidade todo o relato.

Analisei, em Santa Evita, a representação hagiográfica de Eva Perón. A narrativa

apresenta elementos constituintes do modelo do relato da vida de santo. Eva Perón é

164

representada como santa popular. Discuti a apresentação, nesta biografia ficcional, de suas

origens na infância, sua ascensão, seus nomes e designativos, a irrupção do maravilhoso, a

autoficção, a metáfora animal e a alegoria da história.

Concluí que sua origem e infância humildes são relacionadas à identificação posterior

com os pobres, os descamisados e grasitas; sua atuação política atraiu admiração e repulsa

resultando em múltiplas e antagônicas formas de designá-la; na obra, o maravilhoso irrompe

através dos milagres e maldições da “Santa” Evita, sendo a principal relíquia de seu culto seu

cadáver embalsamado. Concluí também que, com a autoficção, o narrador homônimo do autor

se inclui na narrativa, relatando sua experiência com “Santa” Evita e com a construção de sua

narrativa; através da metáfora animal, a história é alegorizada na narrativa, constituindo-se o

narrador como um historiador alegorista que questiona as fontes, apresenta outras versões,

convoca personagens outros para testemunharem, demonstrando que a história, está, portanto,

também nas fontes desconsideradas pela “história oficial”. Logo, ao mesclar história e ficção,

o romance possibilita intento de compreender o fenômeno político Evita com maior liberdade

visto ser elaboração ficcional.

Em Evita: jirones de su vida, analisei a representação política de Eva Perón. A

peculiaridade deste texto reside em sua constituição como biografia não ficcional escrita por

um historiador renomado em seu país. Foram identificados os elementos criadores do efeito

de historicidade, por um lado, e os que revelam a ficcionalização da história, por outro.

Concluí que a cronologização, a contextualização, a conceitualização, bem como a

discussão das fontes e versões constituem os elementos textuais que possibilitam a a criação

do efeito de historicidade. Além destes, também confere historicidade à narrativa a autoria do

historiador, um elemento paratextual. Quanto à ficcionalização da história, esta se revela a

partir da subjetividade, da criação do enredo e da presença do diálogo na narrativa.

Verifiquei que o historiador, em Evita: jirones de su vida, apresenta seu objeto através

de uma representação linear, narrando sua transformação no decorrer do tempo de pessoa

comum em ente político. Contextualiza a vida de Eva Perón apresentando os principais

eventos na história geral e da Argentina, relacionando a biografada como sujeito histórico ao

seu tempo. Pigna lança mão de conceitos já existentes e elabora outros para organizar a

realidade histórica. Discute fatos e versões, dialogando, assim, com outros biógrafos e

autores. Concluí, também, que a autoria do historiador confere efeito de historicidade ao texto

biográfico. A partir do nome próprio do historiador são reconhecidos pelos leitores seu estilo

e o gênero de sua obra. Sua assinatura caracteriza um modo de ser do discurso. Evita: jirones

165

de su vida, é recebida, portanto, como texto historiográfico, pelo público leitor que com ele

estabelece o pacto de leitura.

O modo de narrar apresenta ficcionalização da história por meio da subjetividade, ou

seja, o modo pelo qual o autor se dá a conhecer. São eles: juízos de valor, adjetivação, modo

poético de narrar, comunicação com o leitor e indefinição. Além da subjetividade, há o enredo

relacionado ao diálogo. São mecanismos, portanto, através dos quais a objetividade que se

espera do historiador (em que pese o mito da neutralidade) é deixada de lado, transparecendo

a construção da narrativa.

Por fim, analisei o imaginário evitista presente na confluência entre história e ficção,

ou seja, entre as representações autobiográfica, biográfica e ficcional de Eva Perón.

Apresentei o mito de Evita em sua dicotomia: antiperonista e peronista, concluindo que o

mito tem grande produtividade na literatura e nas outras artes ainda hoje. Comparei as três

representações com relação ao imaginário e concluí que a representação autobiográfica

presente em La razón de mi vida estabelece as bases do mito; a representação hagiográfica em

Santa Evita discute e atualiza o mito e, finalmente, Evita: jirones de su vida pretende ser mais

objetiva embora, em alguns momentos, apresente ficcionalização.

Desta forma, as representações alimentam o imaginário evitista nas margens

confluentes entre a história e a ficção.

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177

ANEXO A

PODERTI, Alicia. Eva Duarte de Perón. In: DICCIONARIO del peronismo. Buenos Aires:

Biblos, 2010. p. 76-79.

EVA DUARTE DE PERÓN (1919-1952). Fuente de una fascinación sin fronteras, Evita es el

pretexto para que se iniciara una historia mítica en la Argentina y en el mundo. Depositaria

del amor y del odio de generaciones transhistóricas y transterritoriales, esta mujer fue

conocida con múltiples apelativos: “hada protectora”, “compañera Evita”, “la señora”,

“madona de los humildes”, “dama de la esperanza”, “abanderada de los descamisados”,

“puente de amor entre Perón y los descamisados”, “jefa espiritual de la Nación”, “Eva de

América”. Otros calificativos aludían a la primera dama en las diferentes publicaciones que

circulaban en la época, sobre todo después de su deceso: “permanente creadora”, “compañera

del líder”, “mártir del trabajo”, “eterna en el alma de su pueblo”, “pura pasión argentina”,

“rosa perfecta”, “la Cenicienta de las pampas”, “esa mujer”, “rubia señora de la revolución”,

“madre total de todos los seres desvalidos”…

A esas valencias se agrega una constelación de otros epítetos como “la mujer del látigo”, “la

partiquina”, “fierecilla indomable”, “mujerzuela”, “trepadora”, “mujer pública”, “muñeca

rubia”, “serpiente venenosa”, “hada demagógica”, “advenediza”, “prostituta sagrada”,

“rebelde primitiva”, “mina cruel”, entre otras denominaciones emanadas del discurso

antiperonista.

Enrique Pavón Pereyra cita la opinión de la narradora María Granata: “Con todos los

caracteres de la predestinación, aparece en ella la Conductora”. El final del relato de David

Viñas, “La señora muerta”, descarga un sentimiento peyorativo a través de un personaje que,

ante la multitud que llora la muerte de Eva, exclama indignado: “¡Es demasiado por la yegua

ésa!”, según consigna Sergio Olguín.

Entre “nombres” positivos y negativos se esculpe la personalidad multifacélica de esta mujer:

“Se llamaba Eva María Ibarguren pero la madre, dona Juana Ibarguren, la presentaba como

Duarte. Cuando se hizo actriz, se llamó Eva Duarte. Cuando se casó con Perón, doña María

Eva Duarte de Perón. María antes que Eva. Era menester, para presentarla en sociedad, que la

buena, la madre de Jesucristo, precediese a la mala, nuestra primera madre pecadora, porque

las niñas decentes deben llamarse María Esther o María Rosa pero nunca al revés. Cuando

volvió de su viaje a Europa y comenzó su carrera frenética de trabajadora social, se volvió

178

Eva Perón. Y cuando el pueblo la amó, pasó a llamarse Evita, el único nombre que ella

siempre reconoció como suyo”. Todos estos “nombres” reflejan la polarización en torno a la

imagen de Evita: la Evita sexual y la Evita política términos de Marysa Navarro.

Nació en Los Toldos, provincia de Buenos Aires, en 1919. En su libreta cívica, cuya copia

facsimilar incluye Pavón Pereyra en su libro Evita: la mujer del siglo, se declara que nació el

7 de mayo de 1922, dato que podría ser erróneo y ha sido discutido por los historiadores. A

los quince años se traslada a la Capital donde inicia su carrera como actriz de cine y

radioteatro. Conoció al coronel Perón en enero de 1944, con motivo de un acto de

beneficencia realizado para paliar la situación provocada por el terremoto de San Juan. La

relación amorosa nunca fue escondida y condujo a la unión matrimonial de ambos.

Evita acompañó a Perón en los sucesos que desencadenaron la masiva entronización del líder

en la movilización del 17 de octubre de 1945. Fue liberado de la cárcel en la isla Martín

García y llegó triunfalmente a la Casa Rosada para hablar a la multitud desde el célebre

balcón (v. OCTUBRE, 17 DE).

Fundó, en un hecho inédito, la rama femenina del Partido Peronista, y también otros

organismos a través d las cuales canalizó los distintos programas de ayuda social como el

Ateneo Eva Perón, el Hogar de la Empleada, la Fundación Eva Perón, dentre otras

instituciones.

Consumida por un proceso canceroso irreversible, el 4 de junio de 1952, Evita hizo su última

aparición pública para participar del acto de asunción de Perón a su segundo período

presidencial, luego de sufragar con el caudal de mujeres argentinas por primera vez en la

historia del país. En los días siguientes, hubo un sinnúmero de homenajes oficiales e

iniciativas para construir un monumento en su honor.

Entre sus obras más conocidas han de mencionarse La razón de mi vida (v.) publicado en

1951 y My mensaje, editado póstumamente por Fermín Chávez, quien compiló los textos que

ella escribió en su lecho de enferma. Emilio Corbière también destaca el contenido del poco

conocido Historia del peronismo, en el que Evita revaloriza a Karl Marx pero critica la

evolución política de la entonces Unión Soviética y la negación – en Marx – del sentimiento

religioso. En ese libro Eva Perón admitía que “podrá el clericalismo ser impopular”, pero “no

hay nada más popular que el sentimiento religioso”.

Falleció en 26 de julio de 1952. El comunicado oficial anunció: “Cumple la Secretaría de

Informaciones de la Presidencia de la Nación”. El 9 de agosto aún proseguía la capilla

ardiente, que se había trasladado desde el Ministerio de Trabajo hasta el Congreso Nacional,

179

donde millones de personas montaban permanente guardia en su honor. El 10 el cortejo

fúnebre multitudinario cubrió el trayecto hacia la sede de la CGT. Además de estas

interminables columnas de hombres y mujeres que lloraban bajo la lluvia y el frío, también

estaban los que festejaban, pues con Evita desaparecía uno de los aspectos más irritantes y

peligrosos del peronismo.

Desde la fecha del deceso de Evita hasta 1955, cada día se interrumpía la programación

habitual de las radios y un locutor repetía: “Son las 20.25, la hora en que la señora Eva Duarte

de Perón entró en la inmortalidad”.

Después del golpe, se producen situaciones complejas y contradictorias en torno al destino de

su cadáver embalsamado. (V. CUERPO DE EVA PERÓN, CADÁVER). La repatriación del

cuerpo de Evita, producida el 17 de noviembre de 1974, repercutió en todo el país. Su féretro

fue recibido por la presidente Isabel MARTÍNEZ DE PERÓN (v.) junto con miembros de la

familia Duarte. Luego del derrocamiento del gobierno de Isabel, el cadáver de Evita fue

trasladado a la bóveda de la familia Duarte en el cementerio de la Recoleta.

El nombre de Eva Perón cambió la historia argentina y también produjo la mayor cantidad de

literatura que un personaje histórico haya desencadenado en la Argentina. La nómina de

escritores que, desde perspectivas elogiosas o despectivas pero nunca indiferentes, abordaron

el personaje de Eva Perón es interminable: Julio Cortázar, Jorge Luis Borges, Juan Carlos

Onetti, Rodoldo WALSH (v.), Leónidas y Osvaldo Lamborghini, Néstor Perlongher, Juan

José Sebrelli, Tomás Eloy Martínez, Abel Posse, José Pablo Feinmann, David Viñas, Mario

Szichman, Marysa Navarro, Libertad Demitrópulos, Mónica Ottino, Lisardo Zía, Juan

Ponferrada, Luis Franco, Ezequiel Martínez Estrada, Leopoldo Marechal, Alberto Vacarezza,

Victoria Ocampo, Beatriz Guido, Elvira Orphée, Marta Lynch, María Elena Walsh…

“No descanses en paz, alza los brazos”, rezan los versos del poema “Eva”, en el que María

Elena Walsh invierte las expresiones instituidas. Así las palabras de esa escritora fundan una

nueva conciencia femenina, a partir de la recuperación de una figura histórica que representa

la mujer sim miedos: “Temer agallas, como vos tuviste, / fanática, ideal, desenfrenada / en el

candor de la beneficencia / pero la única que se dio el lujo / de coronarse por los sumergidos. /

Agallas para defender a muerte. / Agallas para hacer de nuevo el mundo: / tener agallas para

gritar basta / aunque nos amordacen los cañones”.

Véase: Emílio Corbière, Mamá me mima. Evita me ama. La educación argentina em la

encrucijada, Buenos Aires, Sudamericana, 1999. – Alicia Dujovne Ortiz, “Eva Perón: Evita y

la orden de desear”, en Mujeres argentinas, Buenos Aires, Alfaguara, 1998. – Horacio

180

Maceyra, La segunda presidencia de Perón, Buenos Aires, Centro Editor de América Latina,

1984. – Marysa Navarro, Evita. Mitos y representaciones, Buenos Aires, Fondo de Cultura

Económica, 2002. – Sergio Olguín, Perón Vuelve. Cuentos sobre peronismo, Buenos Aires,

Norma, 2000. – Enrique Pavón Pereyra, Evita, La mujer del siglo, Buenos Aires, Zupa, s/f. –

María Elena Walsh, Los poemas, Buenos Aires, Espasa Calpe-Seix Barral, 1993.

181

ANEXO B

PODERTI, Alicia. Cadáver. In: DICCIONARIO del peronismo. Buenos Aires: Biblos,

2010. p. 34-37.

CADÁVER. La muerte de Eva Perón estuvo rodeada de gran misterio. Su cuerpo

embalsamado y secuestrado se ha transformado en el epicentro de distintas hipótesis

argumentativas que reverberan en las superficies ficcional e histórica.

La ficción ha tejido sus versiones sobre el cadáver de Eva Perón. En “El simulacro” de Jorge

Luis Borges se representa un funeral donde “el enlutado no era Perón y la muñeca rubia no

era la mujer Eva Duarte”. Borges da comienzo a una tradición textual sobre el cadáver. Es una

corriente literario-mitológico-ficcional que se instala en el campo de las representaciones

sociales y que, contrariamente a la línea que todavía busca el “cuerpo vivo” de Eva, ahondará

en la realidad del “cuerpo muerto”, pensado como cierre y clausura de un tiempo histórico.

Los peronistas siempre temieron el peor desenlace: la destrucción del cuerpo, víctima del más

feroz “gorilismo”, encarnado en la Marina. En la novela de Tomás Eloy Martínez, SE, el

personaje de Eva Perón dice: “Lo único que te pido, Juan, es que no me olviden”. Esta

demanda es respondida por Perón al ordenar que se embalsame el cuerpo, acto que confunde

la “presencia” con un cuerpo y no con la construcción de la historia de un sujeto. De ahí se

desprende la perversión que trastoca los sentidos del recuerdo.

Después del golpe de 1955 se producen situaciones complejas y contradicctorias en torno al

destino de su cadáver embalsamado. El odio de los grupos adversos no se hizo esperar.

Investigaciones historiográficas y periodísticas como la de Sergio Rubín conducen a la noche

del 23 de noviembre de 1955 (dos meses después de producirse la Revolución Libertadora),

en la que un comando militar al mando del teniente coronel Carlos Moori Koenig, a cargo de

la SIDE, llegó hasta la CGT y retiró el cadáver de Evita. Éste llevó el féretro en un furgón por

distintas zonas de la Capital y de Buenos Aires. En otro momento intentó dejarlo en una

unidad de la Armada, y hasta llegó a depositarlo en la bohardilla de la casa de un ayudante

suyo: el mayor Eduardo Arandía. Se asegura que Moori Koenig, en su despacho de la SIDE,

abrió el cajón, manoseó el cuerpo y lo exhibió ante sus ocasionales visitantes, entre ellos, la

directora de cine María Luisa Bemberg, quien huyó espantada a narrarle todo a un conocido

suyo: el capitán de navío Francisco Manrique, jefe de la Casa Militar. A su vez, éste se lo

comentó al presidente Pedro Eugenio Aramburu, quien dispuso la inmediata separación del

182

militar y su reemplazo por el coronel Héctor Cabanillas. El nuevo jefe de la SIDE debía sacar

de circulación el cuerpo, ocultándolo en un cementerio de Milán bajo el nombre de María

Maggi de Magistris.

Recordemos que la madre de Evita, Juana Ibarguren, inicialmente desplegó una campaña

internacional para dar con el cuerpo de su hija y llegó a solicitar ayuda al Papa, según lo

demostraría el contenido de una carta escrita a Juan XXIII, el 22 de marzo de 1959, que se

halla en poder de Fermín Chávez. Investigaciones recientes permitieron determinar que Pío

XII fue puesto al corriente de la operación y que la madre de Evita estuvo enterada de los

hechos acaecidos en torno al paradero del cadáver de sua hija.

En Mi testimonio el general Alejandro Agustín Lanusse revela datos clave que permiten

reconstruir la historia del itinerario del cadáver de Eva. Así se supo que el plan había sido

pergeñado en 1956 por el sacerdote paulino Francisco Rotger, capellán del Regimiento de

Granaderos a Caballo. El ex presidente negaba su participación en la génesis de esta trama,

pero expresa que se enteró “accidentalmente” del destino del cuerpo em 1969 y que trece años

antes le propuso a Aramburu su ocultamiento. Desafiando las fuertes presiones de la Marina

para quemar el cadáver y las advertencias de la RESISTÊNCIA PERONISTA (v.), Lanusse

planificó, junto con el padre Rotger, el enterramiento del cuerpo con un nombre falso en un

cementerio milanés y lo dejó al cuidado de la Compañía de San Pablo.

En 1970 se produce el secuestro del ex presidente de facto Pedro Eugenio Aramburu por parte

de la agrupación MONTONEROS (v.). Una de las principales exigencias de los

secuestradores para liberarlo consistía en “la devolución del cuerpo de la compañera Evita”.

Cabanillas, el único que sabía exactamente dónde estaba enterrada, con el acuerdo de Rotger,

intentó satisfacer la solicitud. Sin embargo, Aramburo fue asesinado antes de concretarse la

exigencia. Al año siguiente Lanusse, quien se desempeñaba como presidente de la Nación,

decidió entregar el cuerpo de Evita al general Perón.

El cuerpo fue llevado por tierra, en un furgón de la funeraria Fusetti, hasta la ciudad de

Madrid, donde Perón tenía su residencia en Puerta de Hierro. Allí lo recibió el líder,

acompañado de su tercera esposa, María Estela (“Isabel”) Martínez; su delegado personal,

Jorge Daniel Paladino; su secretario privado, José López Rega; el embajador argentino –

reconocido antiperonista – Jorge Rojas Silveira, el coronel Héctor Cabanillas y el padre

Giulio Madurini, quien ofició de testigo y firmó el acta de entrega del cuerpo.

Pero las incógnitas acerca del estado del cuerpo embalsamado de Evita se agregaron a esta

compleja trama. El doctor Pedro Ara, que había embalsamado el cadáver lo vio veinticuatro

183

horas después de su restitución y expresó que estaba prácticamente igual. Sin embargo, las

hermanas de Evita y el doctor Domingo Tellechea, quién lo restauró en 1974, denunciaron

graves daños.

Erminda Duarte, en su libro Mi hermana Evita, describe emocionada: “Tu frente continúa

siendo serena pese a que muestra un puntazo en la sien derecha y la señal de cuatro golpes.

Veo un gran tallo en tu mejilla derecha y lo que queda de tu nariz destrozada, casi

completamente destrozada. Es que tu sacrificio fue más allá de tu último día de vida porque

ningún verdadero sacrificio termina jamás […] Miro las plantas de tus pies desnudos

cubiertos por una lámina de brea. ¿Qué significado tiene esa capa mineral en las plantas de tus

pies? ¿En qué suelo de brea has estado parada, sostenida por tu propia muerte?”.

La llegada del cuerpo de Evita a la Argentina, producida el 17 de noviembre de 1974,

repercutió en todo el país. Su féretro fue recibido por la presidenta Isabel Martínez de Perón

junto con miembros de la familia Duarte. Luego del derrocamiento del gobierno de Isabel

Perón, el cadáver de Evita fue trasladado a la bóveda de la familia Duarte en el cementerio de

la Recoleta. Todos estos datos sobre la esposa y compañera de la gesta política de Perón

contribuyen a agigantar el mundo de los mitos pergeñados durante años.

En ese sentido, es evidente que los sucesos que acompañan la muerte y el destino del cadáver

de Eva Perón que configuran un mito crístico. Eva muere a los treinta y tres años, igual que

Jesús, después de haber ofrendado su vida por el pueblo y por el general Perón. Autores como

Copi (seudónimo de Raúl Damonte Botana) postulan que Eva no murió. En el poema

“Cadáveres” de Néstor Perlongher, Evita es una invención literaria y social. Su cuerpo

insepulto, la ceremonia cosmética de su embalsamamiento, los actos de sadismo que se

relacionan con su cadáver-no-cadáver integran la metáfora de todos los cuerpos insepultos del

país.

Al cumplirse los cincuenta años de su fallecimiento, los discursos de homenaje rescatan la

idea de que Evita era la primera desaparecida: “A la sensación del tiempo detenido sobrevino

algo peor: el tiempo sin ella. La historia, con su corsi e recorsi, pronto iba a dar un oscuro

salto al vacío, que ya estaba presagiado en sus temores y reservas: tres años después, sin Eva

en este mundo, con Perón en el exilio, huérfanos de jefes, los peronistas fuimos perseguidos

con rencor, fuimos llevados a la cárcel y a la muerte. El odio gorila, con su sed de revancha y

nuestros propios errores consumieron décadas de resistencia y de lucha. Mutilaron el cuerpo

de Eva: más que un acto de saña política fue un símbolo de la maldad humana. Quisieron

184

borrar su nombre y su memoria: la transformaron en la primera desaparecida”, escribió

Antonio Cafiero.

Resulta congruente admitir que, en gran parte, los misterios y la mitificación de la compañera

de Perón también contribuyen a la construcción de un proceso que coloca a la figura del líder

en un entorno enigmático. Estos sucesos, sumados al fenómeno de su destierro y su rol como

“líder lejano”, consolidan la imagen del mito político en los años del exilio.

Véase: Jorge Luis Borges, “El simulacro” en El hacedor (1960), Obras completas, Buenos

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