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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO CAROLINA SUISSO DAS CHAGAS FERREIRA LETRAMENTO CIENTÍFICO E AUTORIA: uma análise de produções textuais escritas de estudantes RIO DE JANEIRO 2015

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CAROLINA SUISSO DAS CHAGAS FERREIRA

LETRAMENTO CIENTÍFICO E AUTORIA: uma análise de produções textuais

escritas de estudantes

RIO DE JANEIRO

2015

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Carolina Suisso Das Chagas Ferreira

LETRAMENTO CIENTÍFICO E AUTORIA: uma análise de produções textuais

escritas de estudantes

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Saúde, Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação em Ciências e Saúde.

Orientadora: Profª. Drª.Tatiana Galieta Nacimento

RIO DE JANEIRO

2015

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F411 Ferreira, Carolina Suisso das Chagas.

Letramento científico e autoria: uma análise de produções textuais escritas de

estudantes. / Carolina Suisso das Chagas Ferreira. – Rio de Janeiro:

UFRJ/NUTES, 2015.

128 f.: il., color.; 30 cm.

Orientadora: Tatiana Galieta Nacimento.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Núcleo de

Tecnologia Educacional para a Saúde, Programa de Pós-graduação em

Educação em Ciências e Saúde, Rio de Janeiro, 2015.

Referências bibliográficas: f. 98-104.

1. Análise do discurso. 2. Tecnologia Educacional em Saúde - Tese. I.

Nacimento, Tatiana Galieta. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro,

Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde. III. Título.

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Carolina Suisso Das Chagas Ferreira

LETRAMENTO CIENTÍFICO E AUTORIA: uma análise de produções textuais

escritas de estudantes

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação Educação em Ciências e Saúde, Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Educação em Ciências e Saúde.

Aprovada em:

________________________________________________________

Profa. Dra. Tatiana Galieta Nacimento – UFRJ

_________________________________________________________

Profa. Dra. Patricia Montanari Giraldi – UFSC

_________________________________________________________

Profa. Dra. Laísa Maria Freire dos Santos – UFRJ

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AGRADECIMENTOS

Se cada pessoa que atravessa nosso caminho deixa sua marca e é como uma folha de uma grande árvore da vida, muitas são as folhas da minha árvore que merecem agradecimentos. Agradeço ao meu marido, André, pelo companheirismo e pela compreensão de sempre. Com você, tudo se torna mais fácil. Agradeço ao meu saudoso pai, José, que com certeza, zela por mim em bom lugar, e à minha mãe, Gisela, por me apoiar ao longo de toda a vida e por sentir pelas minhas ausências, me fazendo supor que sou especial. À minha avó, Cecília, que participou tão ativamente de minha criação e que até hoje me deixa com saudades de seus paparicos. À minha tia-avó, Dona Leda, que me faz sempre lembrar de dar valor ao que realmente importa, mesmo sem ter a menor ideia disso. À todos os amigos (principalmente os “amigosdolado@”, que me deixam à vontade em ser o que sou e os do CEFET, que mantêm em mim um pouco do que eu fui) e familiares, enfim, por compreenderem a minha ausência e torcerem por mim. Agora vamos matar as saudades! Aos meus companheiros, Rosi, Florence e, em especial, Jaloto, por me darem força nos momentos difíceis do projeto, por se mostrarem à disposição, por serem a “melhor” (e menor) turma de mestrado de todos os tempos. Aos amigos do grupo de pesquisa, principalmente Sama, Amanda, Francine e Maria Cristina, que tão generosamente, participaram dessa pesquisa com opiniões, reflexões, referências e companheirismo. Às professoras do grupo de pesquisa Laísa, Isabel, Vera e Guaracira, bem como a todos os professores do programa, que deram valiosas contribuições ao longo de todo o projeto. À minha querida professora-orientadora, pelo seu trabalho responsável e competente, por compartilhar sua visão crítica de mundo e por tornar a convivência sempre leve e bem-humorada. À toda equipe da escola EMJP, principalmente à diretora Helane, que deu todo o apoio necessário, à Luciane e Carla, que me forneceram importantes referências e informações, e ao queridíssimo Thiago Bruno, companheiro de infância e de adolescência, que felizmente sempre reencontro pelos caminhos da vida e que merece todos os créditos da epígrafe desse trabalho. Agradeço aos céus, aos deuses, ao anjo da guarda, ao cosmos, a seja lá o quê que me manteve serena a maior parte do tempo e à vida, por uma maravilhosa experiência não só de formação profissional, como de expansão de horizontes.

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E claro, à todos os meus alunos (passados, presentes e futuros), que são a maior motivação e inspiração de trabalho. À todas as folhas da minha árvore, o meu MUITO OBRIGADA!

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Sei que às vezes uso

Palavras repetidas

Mas quais são as palavras

Que nunca são ditas?

(Legião Urbana)

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RESUMO

FERREIRA, Carolina Suisso das Chagas. Letramento científico e autoria: uma

análise de produções textuais escritas de estudantes. 2015. 128 f. Dissertação

(Mestrado em Educação em Ciências e Saúde) – Núcleo de Tecnologia Educacional

Para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

Esta pesquisa baseia-se na ideia de escrita como uma inscrição do sujeito em

uma estrutura social; na “assunção da autoria”, noção da Análise de Discurso (AD)

de linha francesa, que consiste na constituição do sujeito como autor; e no

letramento científico em uma perspectiva que enfatiza uma preocupação com

aspectos sociais da ciência, com o conhecimento científico em uso, com uma

educação científica humanística, que almeja a transformação da realidade social e

não apenas a reprodução dela. O trabalho tem como objetivo caracterizar produções

textuais escritas de alunos do ensino fundamental em aulas de ciências com relação

à autoria e ao letramento científico de acordo com essa perspectiva de letramento

científico. A investigação foi realizada no contexto de uma sequência didática sobre

racismo em uma turma de uma escola pública do município do Rio de Janeiro. As

produções escritas dos alunos foram analisadas segundo etapas de um dispositivo

analítico para textos escritos elaborado sob uma perspectiva da AD. A respeito das

nove produções analisadas destacamos os seguintes aspectos: o mecanismo de

antecipação em relação a um interlocutor real contribuiu para produção de um

discurso de valorização da ciência e do cientista; os termos igualdade e diferença se

apresentaram de forma polissêmica; é na função-autor que a determinação do

sujeito pela ideologia se revela; o mecanismo inconsciente da “censura psíquica”; as

marcas da função-autor; dois aspectos da autoria nos quais reconhecemos relações

com o letramento científico: a compreensão e as repetições. A respeito das

repetições, concluímos que há uma tendência à repetição formal no contexto das

aulas de ciências a respeito daquilo que é dito sobre o conhecimento científico

devido à constituição tradicional da ciência escolar como um corpo de

conhecimentos consolidados que conduzem à restrição de sentidos. No entanto, se

analisarmos o aspecto da inscrição do dizer na memória discursiva e a

ressignificação dos conhecimentos científicos na relação com contextos sociais

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amplos, podemos identificar repetições históricas. Vislumbramos como principais

conclusões dessa pesquisa o entendimento do funcionamento das repetições no

discurso científico escolar, que não podem ser tão facilmente categorizadas em

mnemônica, formal ou histórica, pois não são categorias excludentes. Já a respeito

da compreensão, concluímos que os alunos até problematizaram suas posições,

mas o fizeram apenas se referindo a relações interpessoais e não a contextos

sociais, econômicos e culturais abrangentes. Desta forma, a pesquisa contribuiu ao

problematizar os limites das relações entre as formas de repetição que possibilitam

alunos em aulas de ciências constituírem-se enquanto autores de seus discursos de

forma historicizada e ampla de acordo com o letramento científico humanístico.

Finalmente, apontamos a necessidade de que em pesquisas futuras sejam

estreitadas as relações entre letramento científico, autoria e escrita de forma

empírica, por meio de planejamento e observação de episódios de ensino na escola,

entendendo que possam contribuir para a difícil tarefa de construção (e de

desconstrução) de um discurso científico escolar que não tenha um fim em si mesmo

e que aponte para relações com a realidade social.

Palavras-chave: Análise de discurso. Autoria. Escrita. Letramento científico.

Produções textuais.

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ABSTRACT

FERREIRA, Carolina Suisso das Chagas. Letramento científico e autoria: uma

análise de produções textuais escritas de estudantes. 2015. 128 f. Dissertação

(Mestrado em Educação em Ciências e Saúde) – Núcleo de Tecnologia Educacional

Para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.

This research is based on the idea of writing as an enrollment of the subject in

a social structure; on the "assumption of authorship," a notion of Discourse Analysis

(DA) of the French line, which means the constitution of the subject as author; and on

scientific literacy perspective that emphasizes a concern with social aspects of

science and with scientific knowledge in use, with a humanistic science education

which aims to transform social reality and not just reproducting it. The work aims to

characterize written textual productions of elementary school students in science

classes with respect to the authorship and scientific literacy in a humanistic

perspective. The research was conducted in the context of a teaching sequence

about racism in a classroom at a public school in the city of Rio de Janeiro. The

students' productions are being analyzed according to steps of an analytical device

for written texts developed from a perspective of DA. Regarding the nine productions

analyzed, we highlight the following aspects: the mechanism of anticipation in

relation to a real interlocutor contributed to the production of a discourse of

appreciation of science and scientists; the terms equality and difference is presented

in a polysemic way; in the author-function the determination of the subject by

ideology is revealed; the unconscious mechanism of "psychic censor"; the marks of

the author-function; two aspects of authorship in which we recognize relationships

with scientific literacy: understanding and repetitions. Regarding repetitions, we

conclude that there is a trend to formal repetition in the context of science lessons

about what is said about scientific knowledge due to the traditional constitution of

school science as a body of knowledge consolidated that lead to a restriction of

senses. However, if we analyze the aspect of inscription in discourse memory and

the reframing of scientific knowledge in relation to broader social contexts, we can

identify historical repetitions. We see as a contribution of this research the

understanding of the operation of the repetition in school scientific discourse, and the

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recognition that it can’t be so easily categorized into mnemonics, formal or historical,

as they are not mutually exclusive categories. Already about understanding, we

conclude that the students problematize their positions, but just relative to

interpersonal relations and not to social, economic and cultural contexts. Thus, the

research helped to problematize the boundaries of the relationship between forms of

repetition that enables students in science classes constitute themselves as authors

of their discourses in a historicized and broadly way in line with the humanistic

scientific literacy. Finally, we point out the need for narrowed relationships between

scientific literacy, authorship and writing in future empirical research, through the

planning and observation of teaching episodes in school, understanding that may

contribute to the difficult task of construction (and deconstruction) of a school

scientific discourse that has no end in itself and point to relations with social reality.

Keywords: Autorship. Discourse analysis. Scientific literacy. Textual productions.

Writing.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Exemplo de produção textual sem conceitos científicos. .......................... 49

Figura 2 – Reprodução do envelope de carta do aluno RI (o nome do aluno foi apagado para que sua identidade seja preservada) ................................................. 60

Figura 3 - Slide apresentado na primeira aula da sequência didática ....................... 67

Figura 4 – Slide apresentado na segunda aula da sequência didática que aborda a dispersão da espécie humana ................................................................................... 75

Figura 5 – Slide apresentado na segunda aula da sequência didática sobre origem humana e variabilidade genética ............................................................................... 82

Figura 6 – Slide apresentado na segunda aula da sequência didática sobre origem humana e variabilidade genética ............................................................................... 83

Figura 7 – Slide apresentado na segunda aula da sequência didática sobre origem humana e variabilidade genética ............................................................................... 83

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LISTA DE QUADROS

QUADRO 1 – Síntese da sequência didática ............................................................ 46

QUADRO 2 – Síntese da descrição do corpus .......................................................... 64

QUADRO 3 – Trechos das produções textuais que apresentam conhecimentos

científicos .................................................................................................................. 79

QUADRO 4 – Relação de conhecimentos científicos discutidos em sala de aula que

ocorreram nos textos de cada um dos alunos ........................................................... 80

QUADRO 5 – Trechos das produções textuais que apresentam a questão da origem

da espécie humana na África .................................................................................... 85

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 13

1 PERSPECTIVA TEÓRICA E PROBLEMATIZAÇÃO ............................................ 14

1.1 A ESCRITA ...................................................................................................... 14

1.2 A ANÁLISE DE DISCURSO DE LINHA FRANCESA E A NOÇÃO DE AUTORIA

............................................................................................................................... 18

1.3 O LETRAMENTO CIENTÍFICO ........................................................................ 23

1.4 RELAÇÕES ENTRE ESCRITA, AUTORIA E LETRAMENTO CIENTÍFICO .... 27

2 DELINEAMENTO DA PESQUISA ......................................................................... 35

2.1QUESTÃO E OBJETIVOS DA PESQUISA ....................................................... 35

2.2 CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DA PESQUISA ............................................... 37

2.2.1 O cenário: a escola ................................................................................... 37

2.2.2 Os atores: a professora e a turma 1804 ................................................. 41

2.2.3 O enredo: a sequência didática ............................................................... 43

3 ANÁLISE DOS DADOS ......................................................................................... 48

3.1 CONSTITUIÇÃO DO CORPUS ........................................................................ 48

3.2 DESCRIÇÃO DO CORPUS ............................................................................. 52

3.2.1 Descrição do corpus: mais algumas considerações ............................ 65

3.3 INTERPRETAÇÃO DO OBJETO DISCURSIVO .............................................. 70

3.3.1 Marcas da função-autor ........................................................................... 70

3.3.1.1 Compreensão, repetições e o letramento científico .............................. 77

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 93

REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 98

APÊNDICES ........................................................................................................... 105

ANEXOS ................................................................................................................. 114

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INTRODUÇÃO

O interesse pela escrita nas aulas de ciências surgiu em minha prática

docente no ensino fundamental na rede pública municipal do Rio de Janeiro. Ao

perceber as dificuldades dos alunos na produção textual e pesquisar sobre esta

questão, ainda durante a Especialização no Ensino de Ciências, passei a

compreender que a responsabilidade de ensinar a ler e a escrever é da escola como

um todo e, portanto, também é do professor de ciências (SOARES, 2003;

LIBERATO e FULGÊNCIO, 2010; GUEDES e SOUZA, 2011).

Esse contexto da prática pedagógica foi motivador para a delimitação do tema

e delineamento da presente pesquisa de mestrado realizada no âmbito do Programa

de Pós-Graduação em Educação em Ciências e Saúde do Núcleo de Tecnologia

Educacional para a Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro

(NUTES/UFRJ). As discussões sobre as perspectivas da Análise de Discurso (AD)

de linha francesa e sobre os conceitos de Letramento Científico, proporcionadas

pelas reuniões do grupo de pesquisa do Laboratório de Linguagens e Mediações

(LLM), levaram-me a pensar em como fazer com que os estudantes sejam autores

de discursos e, assim, capazes de se apropriar e de se posicionar criticamente

diante do conhecimento científico.

Dessa forma, este trabalho tem como foco investigar as questões da autoria e

do letramento científico em produções textuais escritas de estudantes no contexto

das aulas de ciências. No primeiro capítulo, a primeira parte do texto é destinada a

uma breve discussão sobre a escrita; a segunda, a considerações sobre a AD e a

noção de autoria; a terceira, à definição do que entendemos por letramento

científico. Em seguida, buscamos relações entre a escrita e o letramento científico

tendo por base a AD e, mais especificamente, seu conceito de autoria. No segundo

capítulo, apresentamos o desenho da pesquisa, explicitando seus objetivos e

descrevendo o cenário e os atores envolvidos, bem como as atividades realizadas,

entendendo que tais sujeitos e contextos compõem as condições de produção da

pesquisa e da escrita dos alunos. No terceiro capítulo, os dados coletados são

analisados e, em seguida, são tecidas as considerações finais do trabalho.

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1 PERSPECTIVA TEÓRICA E PROBLEMATIZAÇÃO

1.1 A ESCRITA

Assim como Costa (2011) acreditamos que conhecer o contexto de

surgimento e de desenvolvimento da escrita pode ser útil para compreender como

esse sistema passa a ser não só um importante instrumento relacionado às

atividades humanas, mas também, a uma cultura. A respeito disso, Goulart (2010, p.

439) afirma que:

A partir do século XVIII e, principalmente, no século XX, os livros inundaram o mundo, e a escrita alfabética passou a gozar de grande prestígio (...). A escrita alfabética, associada de modo forte à cultura ocidental, tem organizado essa cultura, criando sistemas de valores e hierarquias, cujos significados atravessam a vida social de variadas maneiras, inclusive daqueles que não tem o cotidiano vinculado ou dependente da escrita de uma forma direta. Por meio principalmente das leis, normas e outros dispositivos regulatórios, muitas vezes simbólicos, estamos todos submetidos a um mundo que se construiu com a escrita.

Para Cagliari (2004), a história da escrita pode ser caracterizada em três

fases: a pictográfica, a ideográfica e a alfabética. Os pictogramas estão associados

a uma imagem do que se quer representar e não ao som, como os desenhos que os

homens primitivos faziam no tempo das cavernas. Já o ideograma é uma

representação fonética, que segue o que se chama de princípio acrofônico: o som

inicial do nome das letras é o som que a letra representa. Como exemplo da escrita

ideográfica, temos os hieróglifos dos egípcios. As letras que caracterizam a fase

alfabética se originam dos ideogramas, que perdem seus valores ideográficos,

assumindo nova função: a fonográfica. Ainda segundo esse autor, a escrita teria

surgido na Suméria por volta de 3.300 a.C. e, muito provavelmente, de maneira

autônoma e independente, no Egito (cerca de 3.000 a.C.), na China

(aproximadamente 1.500 a.C.) e na América Central, entre os maias (em tempo

ainda não determinado). Todos os demais sistemas de escrita seriam decorrentes

desses primeiros sistemas. Devemos aos gregos a invenção da escrita alfabética

com vogais e consoantes. Adaptações realizadas pelos romanos, tais como o

abandono dos nomes especiais para cada letra (alfa, beta, gama, delta, épsilon, etc.

transformaram-se em a, bê, cê, dê etc., ou seja, o nome da letra passa a ser o

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próprio som dela) resultaram no sistema greco-latino, originando assim, o nosso

alfabeto.

Odisséa Boaventura de Oliveira, em sua dissertação de mestrado (OLIVEIRA,

2001), discute uma visão apresentada por Olson (1997 apud OLIVEIRA, 2001) de

que a escrita seria a representação da fala. A análise da história da escrita, de uma

representação pictórica, até uma representação fonográfica corroboraria, de certa

forma, essa visão. Esta postura se aproximaria da ideia de palavra como “imagem

acústica” de Saussure. Branca-Rosoff (2006, p.205), ao discutir o par “escrito/oral”

sob uma perspectiva histórica, nos aponta que “Vachek (1988) considerou que, em

um primeiro estágio, o escrito representava o oral, antes de se tornar autônomo”.

No entanto, tal linearidade entre escrita e fala há tempos vem tendo sua

veracidade questionada e, portanto, precisa ser problematizada. Maingueneau

(2006, p. 203, grifo do autor) apresenta algumas peculiaridades da oralidade que

nos remetem a pensar que a escrita não é mera transposição da fala:

Em uma troca oral, os dois parceiros não podem apreender globalmente seu enunciado ou recuar, estando sempre sob ameaça de interrupção. Seus propósitos são acompanhados de mímicas, de índices paraverbais. Quanto a sua sintaxe, além de ser repleta de elipses, de redundâncias, obedece a um funcionamento específico, para o qual as categorias tradicionais da gramática da frase, simples ou complexa, mostram-se insuficientes.

Abordando a língua falada em nosso país especificamente, Soares (2004)

afirma que nossos sistemas alfabético e ortográfico são objetos de conhecimento

convencionais e, em parte significativa, arbitrários. Guedes e Souza (2011, p. 20),

também nos esclarecem pontos importantes sobre a língua no Brasil:

[...] é preciso rever a crença de que ao alfabetizar-se o aluno não está propriamente aprendendo uma língua, mas apenas transpondo a língua que já fala para um outro código. Isso não é verdade para nós, aqui no Brasil. Os estudos de nossa língua falada, [...] estão mostrando não só que há uma grande variação linguística (geográfica e social) interna no País - ao contrário do que sempre disse o mito da unidade lingüística brasileira -, mas também que a língua que falamos difere muito da língua falada em Portugal, a qual deu origem ao português escrito. Na verdade, hoje podemos dizer que falamos uma língua e temos de aprender a ler e escrever em outra língua.

Ainda segundo Olson (1997 apud OLIVEIRA, 2001), a escrita tem limitações,

pois não expressa tom, volume e qualidade da voz, bem como não deixa claro o

contexto da enunciação. A escrita privilegiaria “o que foi dito” e ignoraria o como foi

dito ou “o como entender”.

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Em contrapartida, sob a ótica da AD, o “dito” tem relação com o “não dito”,

complementando-se. Dessa forma, as margens do dizer, o “não dito”, também ajuda

a significar aquilo que é efetivamente dito. Além disso, o “como foi dito” faz parte das

condições de produção do discurso, como veremos mais adiante (ORLANDI, 2002).

Apesar de tais divergências, entendemos que a diferença entre escrita/oralidade é

de certa forma corroborada por Eni Orlandi (1988), analista de discurso de linha

francesa referência no Brasil, quando ela argumenta que apesar da escrita e da

produção oral serem meios de se ter acesso à leitura do aluno, os processos da

leitura e da escrita são distintos. Podemos afirmar, portanto, não só que falar é

diferente de escrever, como também que a leitura difere da escrita e, assim, justificar

um olhar específico para a última.

Direcionando, portanto, esse olhar para a relação entre a escrita e a

sociedade, ressaltamos a afirmação de Tfouni (1986, p.193) em que a escrita é

apontada como “um produto social que surge em decorrência de mudanças nas

relações de produção e do aparecimento de novas necessidades de mediações

entre o homem e o meio ambiente”.

Orlandi (1999, p. 7 apud OLIVEIRA, 2001), também associa a escrita às

relações sociais:

a escrita numa sociedade de escrita, não é só instrumento, ela é estruturante. Isso significa que ela é lugar de constituição de relações sociais, isto é, de relações que dão uma configuração específica à formação social e aos seus membros. A forma da sociedade está assim diretamente relacionada com a existência ou a ausência da escrita.

O papel da escrita como estruturante pode também ser discutido no contexto

da construção social do conhecimento científico. Tomio (2009, p. 6, grifos da autora),

ao discorrer sobre a escrita na produção da ciência em seu artigo, cita o livro “Os

cientistas precisam escrever” de Barras (1979 apud TOMIO, 2009) e argumenta que

para o autor da obra:

o sujeito do conhecimento (pesquisador/cientista) escreve para si (notas de laboratório ou de campo, diários, ideias, lembretes, registros pessoais etc.), escreve para apreender o pensamento e, ao mesmo tempo, elaborá-lo. Além disso, o sujeito escreve para o outro (ensaios, artigos científicos, relatórios etc.), pois na produção do conhecimento científico, também, implica sua comunicação e debate pelos coletivos de pensamento. Nessa perspectiva, na atividade de pesquisar, escrever é parte integrante e essas são tarefas interdependentes no fazer ciência.

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A autora, no entanto, ao considerar o ensino de ciências e a escrita na escola,

conclui que a ciência escolar se origina de um processo de transposição didática do

conhecimento científico e que a escrita do cientista apresenta especificidades

próprias que não são as mesmas exigidas do estudante na escola (TOMIO, 2009).

Nesse sentido, Mortimer (1998) apresenta algumas particularidades da

linguagem científica em relação à linguagem cotidiana (tais como estruturalidade,

nominalização e ausência de sujeito) e discute sua influência no discurso científico

escolar. Para ele, reconhecer essas particularidades implica em admitir que a

aprendizagem das ciências seja inseparável da aprendizagem da linguagem

científica. Teixeira (2011) também vincula de alguma maneira o ensino de ciências

com a linguagem ao tecer reflexões sobre o que é a “alfabetização científica” e sobre

a origem da expressão (do inglês “scientific literacy” que pode ser também traduzida

por “letramento científico”, como veremos a seguir). A autora argumenta que tal

expressão estabelece vínculos entre ciência, leitura e escrita, diz respeito a tudo que

envolver escrita/leitura de textos científicos e relaciona-se com a alfabetização na

própria língua.

Norris e Phillips (2003), por sua vez, discutem como os objetivos do ensino de

ciências muitas vezes são expressos com o uso do termo “literacy” e que tal termo

pode assumir dois sentidos na língua inglesa: pode significar a habilidade de ler e

escrever e também cognoscibilidade, aprendizagem, educação. Segundo os

autores, quando nos voltamos para um corpo disciplinado de conhecimento, tal

como a ciência ocidental, a relação entre cognoscibilidade e habilidade de ler e

escrever é estreita. De maneira semelhante a Barras (1979 apud TOMIO, 2009),

argumentam que nada do que conhecemos hoje como ciência ocidental seria

possível sem o texto e que por isso, uma pessoa que não sabe ler e escrever estaria

profundamente limitada na aprendizagem sobre ciências. Para Norris e Phillips

(2003), a capacidade de ler e escrever quando o conteúdo é científico seria o

sentido fundamental do “letramento científico” e que ser conhecedor, culto e

educado em ciências seria o sentido derivado.

Retomando o trabalho de Orlandi (1999), Oliveira (2001, p. 53) afirma que

para aquela autora “a escrita é um trabalho da memória que estrutura as relações

sociais, assim não adianta só aprender a escrever [...], mas inscrever o sujeito na

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estrutura social [...]” Entendendo, portanto, que ensinar ciências é inscrever o sujeito

em uma estrutura social – a da ciência ensinada na escola – deve-se levar em conta

que tal estrutura está fortemente influenciada pelo aspecto fundamental da escrita

nas ciências e, portanto, pela linguagem científica escolar. Em outras palavras, para

se inscrever na estrutura social da ciência que se ensina na escola, o sujeito precisa

dominar a leitura e a escrita praticadas nas aulas de ciências.

Conforme comentado anteriormente, pretendemos nesse trabalho analisar

produções textuais escritas de estudantes no contexto de aulas de ciências

entendendo que elas podem indicar aspectos relacionados à inscrição na estrutura

social do discurso científico escolar. Para tal, nos basearemos na AD, principalmente

na sua noção de autoria, que será explicitada a seguir. Na sequência, propomos

relações entre essa inscrição social e o conceito de letramento científico.

1.2 A ANÁLISE DE DISCURSO DE LINHA FRANCESA E A NOÇÃO DE AUTORIA

A perspectiva teórico-metodológica desta pesquisa pauta-se na Análise de

Discurso (AD) de linha francesa, corrente de pensamento fruto do diálogo entre três

áreas do conhecimento – Psicanálise, Linguística e Marxismo – inaugurada nos

anos 1960 por, dentre outros, Michel Pechêux, e amplamente divulgada no Brasil

por Eni Orlandi.

Para a AD a linguagem é não só uma mediação necessária entre o homem e

a realidade natural e social, como é constitutiva dessa realidade, e o “discurso”, por

sua vez, é entendido como palavra em movimento, como prática de linguagem,

como efeito de sentidos entre locutores. Conforme nos aponta Orlandi (2002, p. 15),

“na análise de discurso, procura-se compreender a língua fazendo sentido, enquanto

trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua

história”.

Segundo Pechêux (1975 apud ORLANDI, 2002) não há discurso sem sujeito

e não há sujeito sem ideologia. Provém daí a reflexão de que a língua produz

sentidos por/para os sujeitos, constituindo-os, e que a linguagem está materializada

na ideologia e a ideologia se manifesta na língua. Dessa forma, a linguagem não é

transparente, ou seja, as palavras não trazem consigo um sentido “colado” a elas,

mas adquirem um sentido.

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Para um analista compreender como determinado discurso significa (para

quem o emite/formula ou recebe/compreende) é necessário levar em consideração,

as condições de produção desse discurso. Como nos afirma Orlandi (1988, p. 18),

as condições de produção “constituem o sentido da sequência verbal produzida. Não

são meros complementos”. Tais condições envolvem os interlocutores, a situação, o

contexto histórico social e ideológico. Dessa forma, o lugar que o interlocutor (falante

e ouvinte) ocupa na sociedade, faz parte da significação e isso está relacionado com

a noção de formação discursiva. Conforme nos aponta Orlandi (2002, p. 43), “a

formação discursiva se define como aquilo que numa posição ideológica dada – ou

seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada –

determina o que pode e deve ser dito”.

Os sujeitos e a situação de enunciação podem ser considerados em um

sentido estrito – que representa o contexto imediato de produção – ou em sentido

amplo – constituindo o contexto histórico social e ideológico. A respeito desse

sentido mais amplo, Orlandi (1988, p. 18, grifo da autora) afirma que:

Por outro lado, há a relação de sentido (intertextualidade): todo discurso nasce em outro (sua matéria-prima) e aponta para outro (seu futuro discursivo). Por isso, na realidade, não se trata nunca de um discurso, mas de um continuum. Fala-se de um estado de processo discursivo e esse estado deve ser compreendido como resultando de processos discursivos sedimentados.

Os sentidos, portanto, são histórico-socialmente sedimentados através de

processos discursivos. Com base neste pressuposto, a autora afirma que toda

leitura tem sua história. Outro aspecto importante é que todo sujeito-leitor tem sua

história de leitura: o conjunto de leituras feitas ao longo da vida pelo sujeito configura

a compreensão de determinado texto. Dessa forma, as leituras já feitas de um texto

e as leituras já feitas por um leitor podem condicionar algumas leituras previstas

desse texto. Mas é também o contexto histórico-social e sua pluralidade que pode

produzir a imprevisibilidade, as novas leituras possíveis. Essa tensão entre leituras

previstas e leituras possíveis se materializa na escola quando o professor retoma em

seu trabalho uma leitura considerada como ideal – amarrada àquilo que é fornecido

pelo livro didático – que “petrifica” uma leitura prevista. Para Orlandi, (1988), a leitura

prevista de um texto não deve ser o constituinte determinante das condições de

produção de leitura na escola, mas apenas um dos constituintes, para que as

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histórias de leitura1 do aluno sejam também consideradas. Nesse mesmo sentido, a

escola, além de valorizar leituras consideradas ideais, vem propagando aquilo que

Orlandi (1996b) classifica como discurso pedagógico autoritário. Segundo ela, três

tipos de discursos podem ser distinguidos em seu funcionamento: o discurso

autoritário, que tende para a paráfrase e para uma contida polissemia, onde procura-

se impor um só sentido; o discurso polêmico, que apresenta um equilíbrio tenso

entre polissemia e paráfrase e onde a polissemia é controlada, havendo

possibilidade de mais de um sentido; e o discurso lúdico, que tende para total

polissemia. Para Orlandi, (1996b) o discurso pedagógico se dissimula como

transmissor de informação e faz isso sob a rubrica da cientificidade.

A dimensão histórica do discurso, que abrange a ideia de que todo discurso

nasce em outro, nos leva a pensar sobre a noção de interdiscurso e sua relação com

a memória e o esquecimento. Segundo Orlandi (2002, p. 33),

o interdiscurso é todo o conjunto de formulações feitas e já esquecidas que determinam o que dizemos. Para que minhas palavras tenham sentido é preciso que elas já façam sentido. E isto é efeito do interdiscurso: é preciso que o que foi dito por um sujeito específico, em um momento particular se apague na memória para que, passando para o “anonimato”, possa fazer sentido em “minhas” palavras.

Nessa relação entre memória e esquecimento podemos estabelecer outra

relação importante na AD: paráfrase e polissemia. Todo o funcionamento da

linguagem se dá na tensão entre processos parafrásticos e processos polissêmicos.

Nos processos parafrásticos operam os interdiscursos, a memória, o dizer que se

mantém, a produtividade2. Na polissemia, opera o deslocamento, a ruptura, a

criatividade (ORLANDI, 1996a; 2002).

Entendendo, portanto, que o dizer só faz sentido se a formulação se inscrever

na ordem do repetível, no domínio do interdiscurso, Orlandi (1996a; 2002) propõe

três níveis de repetição: 1) Repetição empírica (mnemônica): quando o sujeito é

1 Apesar de este trabalho ter como objeto a escrita e não a leitura, entendemos que as histórias de

leitura do sujeito leitor e seu domínio do código escrito, fazem parte das condições de produção textual na escola. Se a escrita é uma forma de se ter acesso às leituras do aluno, como argumentado anteriormente, seria razoável supor que as histórias de leitura influenciem a produção textual. 2 Orlandi contrapõe produtividade à criatividade; na paráfrase opera a (re)produtividade, na

polissemia, a criatividade: “na análise de discurso, distinguimos o que é criatividade do que é produtividade. A ‘criação’ em sua dimensão técnica é produtividade, reiteração de processos já cristalizados. Regida pelo processo parafrástico, a produtividade mantém o homem num retorno constante ao mesmo espaço dizível” (ORLANDI, 2002, p. 37).

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apanhado pelos dizeres já estabelecidos e estaciona, apenas repete, sem

estabelecer um lugar para fazer sentido, sem realizar deslocamentos, num “efeito

papagaio” (a autora aponta que na escola isso se dá quando o aluno repete sem

entender); 2) Repetição formal (técnica): é um outro modo de dizer a mesma coisa

através de técnicas de reformulação de frases, de formulação da forma linguística

(prática que é, por vezes, valorizada na escola, mas que não produz deslocamento

do sujeito); 3) Repetição histórica: é a que produz deslocamentos, deslizamentos de

sentidos, que mergulha o dizer na memória, elaborando novos sentidos,

expressando sua própria ideologia e não apenas “decorando” ou “devolvendo” o que

foi dito. Orlandi (1996a) defende ainda que cabe à escola levar o aluno da repetição

empírica à histórica (passando pela formal).

Como é intenção desse trabalho investigar a questão da autoria nas

produções textuais escritas das aulas de ciências, faz-se necessário esclarecer as

relações entre os níveis de repetição e a função-autor. A esse respeito, Orlandi

(1996a, p. 69) afirma que:

A nosso ver, a função de autor é tocada de modo particular pela história: o autor consegue formular no interior do formulável, e se constituir, com seu enunciado, numa história de formulações. O que significa que, embora ele se constitua pela repetição, esta é parte da história e não mero exercício mnemônico. Ou seja, o autor, [...] produz, [...] um lugar de interpretação no meio dos outros. Esta é sua particularidade. O sujeito só se faz autor se o que ele produz for interpretável. Ele inscreve sua formulação no interdiscurso, ele historiciza seu dizer. Porque assume sua posição de autor (se representa nesse lugar), ele produz assim um evento interpretativo. O que só repete (exercício mnemônico) não o faz.

Orlandi (1996a, p. 70) afirma ainda que é essa inscrição do dizer no repetível

histórico, no interdiscurso, “que traz para a questão do autor a relação com a

interpretação, pois o sentido que não se historiciza é ininteligível, ininterpretável e

incompreensível”. A autora apresenta a inteligibilidade, a interpretabilidade e a

compreensibilidade de um discurso, como as três relações do sujeito com a

significação (ORLANDI, 1988). Na dimensão do inteligível, se atribui sentido pela

simples codificação da linguagem. Para melhor compreensão podemos nos reportar

ao exemplo de Halliday e Hassan (1976) citado pela autora: “Ele disse isso”. Tal

enunciado é inteligível, mas não é interpretável, pois, fora de contexto, não sabemos

quem é “ele” e o que é “isso”. Já na dimensão do interpretável, se atribui sentido

levando em conta esse contexto linguístico, a coesão textual. O compreensível, por

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sua vez, relaciona o sentido sócio-historicamente determinado (o enunciado) e o

contexto de situação, do “eu-aqui-agora” (a enunciação). A distinção entre

interpretável e compreensível está presente no texto de Orlandi (1988, p. 116):

O sujeito que produz uma leitura a partir de sua posição, interpreta [formula apenas o sentido constituído, o repetível]. O sujeito-leitor que se relaciona criticamente com sua posição, que a problematiza, explicitando as condições de produção da sua leitura, compreende.

A partir dessa distinção entre interpretável e compreensível, podemos refletir

sobre a leitura/escrita que se ensina na escola, sobre qual dimensão (inteligível,

interpretável e/ou compreensível) é nela privilegiada. Será que uma postura crítica e

problematizadora, característica do compreensível, tem sido valorizada nos alunos?

Será que as leituras e produções textuais incentivadas no contexto escolar

favorecem a compreensão? Mais que isso: será que as atividades escolares

favorecem ao menos a produção do interpretável, que faz do sujeito, autor?

Orlandi (2002) ressalta que a AD, diferentemente de Foucault, especifica o

princípio da autoria como necessário para qualquer discurso, colocando-o na origem

da textualidade. A autora define a função-autor ao lado de outras funções

enunciativas do sujeito – a de locutor e a de enunciador. A função-locutor seria

aquela na qual o sujeito se representa como “eu” no discurso e a função-enunciador,

a perspectiva de como esse “eu” se constrói. A função-autor, por sua vez, seria a

função que o “eu” assume enquanto produtor de linguagem e produtor de textos e

estaria situada junto às outras duas em uma ordem hierárquica – locutor, enunciador

e autor – que indicaria um caminho em direção ao social. A função-autor, portanto,

seria aquela em que o sujeito está mais afetado pelo contato social e suas

imposições (ORLANDI, 2002, p. 61):

O autor é, das dimensões enunciativas do sujeito, a que está mais determinada pela exterioridade (contexto sócio-histórico) e mais afetada pelas exigências da coerência, não-contradição, responsabilidade, etc. [...] explicitar o princípio da autoria é desvelar o que produz o apagamento do sujeito. [...] o discurso se inscreve no sujeito. E essa inscrição, esse efeito discursivo, resulta o apagamento do sujeito. [...] O autor, então, enquanto tal, apaga o sujeito produzindo uma unidade que resulta de uma relação de determinação do sujeito pelo seu discurso. Desse modo vê-se a ação do discurso sobre o sujeito. [...] é na relação entre discurso e sujeito que podemos apreender o jogo entre a liberdade (do sujeito) e a responsabilidade (do autor).

Cabe ressaltar que o “apagamento do sujeito” ao qual se refere a autora não

tem um sentido negativo, pois é próprio das condições de produção do sujeito. A

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função-autor é a instância em que haveria maior “apagamento” do sujeito porque é

nela que mais se exerce a coerção a um modo de dizer padronizado e

institucionalizado no qual o sujeito é responsável por aquilo que diz. É do autor que

mais se cobra sua ilusão de ser origem e fonte de seu discurso e é também dele que

mais se exige coerência; clareza; desambiguação; respeito aos padrões

estabelecidos, tanto quanto à forma do discurso como às formas gramaticais;

explicitação; conhecimento das regras textuais; originalidade; relevância; “unidade”;

“não contradição”; “progressão” e “duração” do seu discurso. Por isso, argumenta-se

que é nessa função que há maior determinação pelo social, pela exterioridade. E é

nesse “jogo”, como chama Orlandi, que o aluno entra quando começa a escrever na

escola (ORLANDI, 2002).

O sujeito, portanto, ao se constituir autor, “aprende” a assumir esse papel. Ao

processo de construção dessa identidade de autor, Orlandi chama de assunção da

autoria. De acordo com a autora “não basta falar para ser autor. A assunção da

autoria implica uma inserção do sujeito na cultura, uma posição dele no contexto

histórico-social” (ORLANDI, 2002, p. 76).

Desta forma, acreditamos que seja tarefa da escola a promoção da “assunção

da autoria”, fazendo com que os alunos passem da função de sujeito-enunciador

para a de sujeito-autor, da repetição mnemônica para a repetição histórica, do

inteligível para o compreensível. Nesse sentido, é interesse dessa pesquisa analisar

textos de autoria dos alunos no contexto das aulas de ciências.

1.3 O LETRAMENTO CIENTÍFICO

As expressões letramento científico (LC) e alfabetização científica (AC) vêm

sendo amplamente utilizadas nos mais variados contextos. Segundo Martins (2010,

p.364),

Na literatura, encontramos relatos de investigações científicas e intervenções voltadas à promoção da alfabetização científica, que a significam como objetivo de ensino, meta de aprendizagem, referencial para desenvolvimento de currículos, base para avaliação do conhecimento público da ciência ou como objeto de pesquisa. Discute-se o tema da alfabetização/letramento científico no contexto das políticas públicas, questiona-se a pertinência e os sentidos dos termos alfabetização e letramento nas pesquisas do campo, e busca-se explicitar seus aspectos históricos, políticos e epistemológicos.

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As expressões AC e LC, de acordo com Cachapuz e cols. (2008), remetem-se

ao seu equivalente em inglês scientific/science literacy (SL3) inicialmente usado no

final dos anos 1950 e início dos anos 1960 para chamar atenção à necessidade de

especificar um currículo apropriado de ciências para os estudantes que não

planejavam prosseguir na carreira científica (ROBERTS, 2007).

Shen (1975) define três tipos de SL: (1) Prático – posse de um tipo de

conhecimento científico que pode ser utilizado para solucionar problemas práticos;

(2) Cívico – que habilita o cidadão a se tornar mais consciente da ciência e das

questões relacionadas com ela e assim permite que participe plenamente no

processo democrático da sociedade cada vez mais tecnológica; (3) Cultural – em

que o indivíduo aprecia a ciência como empreendimento humano, da mesma forma

que aprecia a arte.

Bybee (1995 apud ROBERTS, 2007), por sua vez, desenvolve um modelo de

quatro níveis para SL: (1) na alfabetização nominal, o indivíduo associa termos a

uma área geral da ciência e tecnologia, mas a relação com definições aceitáveis é

pequena; (2) na alfabetização funcional, os indivíduos utilizam adequadamente o

vocabulário científico simples, realizando associações com esquemas conceituais

mais amplos, mas tem um entendimento ainda simbólico dessas associações; (3) na

alfabetização conceitual e processual, os indivíduos demonstram compreensão das

partes e do todo da ciência e da tecnologia como disciplinas, sendo capazes de

entender os procedimentos para desenvolvimentos de novos conhecimentos e

técnicas; (4) na alfabetização multidimensional, o indivíduo compreende as

estruturas conceituais da ciência e da tecnologia, bem como aspectos que tornam a

compreensão mais completa, tais como a história e natureza da ciência.

Shamos (1995), com base em uma revisão da literatura, também distingue

três dimensões hierárquicas para SL: (1) cultural, que seria a forma mais simples e

estaria relacionada à aquisição de um vocabulário científico; (2) funcional, que

implica no uso desse vocabulário científico pelo indivíduo para conversar, ler e

escrever em um contexto coerente e compreensível; e (3) verdadeiro, nível em que o

indivíduo realmente sabe algo sobre o empreendimento científico em geral, estando

3 A sigla SL será aqui utilizada sempre que fizer referência ao termo scientific literacy encontrado em

textos originais em inglês.

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ciente das principais teorias da ciência, de como elas foram desenvolvidas e porque

são aceitas, entende o papel do experimento e a importância do raciocínio lógico,

analítico e dedutivo. De acordo com o autor, o último nível é inatingível para o

público em geral.

Segundo Roberts (2007), diversos outros autores (PELLA et al, 1966; AGIN,

1974; MILLAR, 1996; JENKINS, 1997; SJØBERG, 1997; RYDER, 2001)

estabeleceram níveis, tipos ou dimensões para SL na intenção de definir o termo.

Para ele, a infinidade de definições e conceitos relacionados à SL pode ser melhor

compreendida se forem observadas as duas fontes curriculares (legítimas, mas

conflitantes) do ensino de ciências: 1) os assuntos científicos em si, as questões

essencialmente científicas; e 2) as situações em que a ciência pode desempenhar

um papel, participar em assuntos humanos de outra natureza, que não

essencialmente científica. Para o autor, através de uma análise da literatura sobre

SL é perceptível que existem extremos em defesa dessas duas fontes, resultando

em duas categorias de análise – visão 1 e visão 2 – que representam os extremos

de um continuum. A visão 1 dá sentido à SL através dos produtos e processos da

própria ciência enquanto que a visão 2 significa SL através de situações que

possuem componentes de diversas ordens, que não apenas a científica, e podem

ser enfrentadas pelos alunos como cidadãos. Historicamente, a visão 1 teria sido o

ponto de partida para a definição de SL, no entanto, um número crescente de vozes

têm enfatizado a importância das situações do mundo real (visão 2) como ponto de

partida para então chegar nas questões da ciência e constatar o que é relevante.

Santos (2007) faz uma diferenciação das expressões alfabetização científica

e letramento científico (ambas utilizadas na literatura nacional como traduções do

termo em inglês, scientific literacy). Para ele, o termo alfabetização científica estaria

relacionado a um processo mais elementar no ensino de ciências, enquanto que o

termo letramento científico estaria associado à prática social do ensino de ciências

(SANTOS, 2007, p. 479):

Neste artigo, adota-se a diferenciação entre alfabetização e letramento, pois na tradição escolar a alfabetização científica tem sido considerada na acepção do domínio da linguagem científica, enquanto o letramento científico, no sentido do uso da prática social, parece ser um mito distante da prática de sala de aula. Ao empregar o termo letramento, busca-se enfatizar a função social da educação científica contrapondo-se ao restrito significado de alfabetização escolar.

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Fazendo uma comparação entre os trabalhos de Roberts (2007) e Santos

(2007), podemos encontrar semelhanças entre aquilo que o primeiro chamou de

“Visão 1” e “Visão 2” e o que o segundo chamou de “alfabetização científica” e

“letramento científico”, respectivamente.

De maneira semelhante, Auler e Delizoicov (2001) discutem em seu trabalho

a alfabetização científico-tecnológica (ACT) segundo duas perspectivas: reducionista

e ampliada. Segundo os autores, na perspectiva reducionista, a ACT é limitada ao

ensino de conceitos, ignorando a existência dos mitos da superioridade do modelo

de decisões tecnocráticas, da concepção salvacionista da ciência e tecnologia e do

determinismo tecnológico. Já na perspectiva ampliada, os conteúdos são

considerados como meios para a compreensão de temas socialmente relevantes.

Defendendo a perspectiva ampliada, Auler e Delizoicov (2001) realizam

aproximações com a filosofia educacional de Paulo Freire na intenção de contribuir

para a superação dos mitos referentes à ciência e à tecnologia.

Freire (1988, p. 13), ao discutir a leitura no processo de alfabetização de

adultos, apresenta a ideia de “leitura de mundo” precedendo a “leitura da palavra” e

da transformação da realidade como objetivo da educação:

Refiro-me a que a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele. [...] este movimento do mundo à palavra e da palavra ao mundo está sempre presente. Movimento em que a palavra dita flui do mundo mesmo através da leitura que dele fazemos. De alguma maneira, porém, podemos ir mais longe e dizer que a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo mas por uma certa forma de “escrevê-lo” ou de “reescrevê-lo”, quer dizer, de transformá-lo através de nossa prática consciente.

Santos (2009) em seu artigo “Scientific Literacy: A Freirean Perspective as a

Radical view of Humanistic Science Education” apresenta uma perspectiva freiriana

humanística da educação científica como uma visão radical de letramento científico

que possa fazer frente à realidade de desigualdade social do mundo globalizado.

Nele, o autor argumenta que apesar de já existirem exemplos de incorporações da

perspectiva freiriana na educação científica, mesmo em currículos de abordagem

CTS (Ciência-Tecnologia-Sociedade) e com ênfase em ACT, nestas são realçadas

características que em muito divergem do que poderia ser chamado de uma

perspectiva humanística para a educação científica (SANTOS, 2009, p. 369,

tradução nossa):

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Por outro lado, há outros currículos CTS e ACT que podem ser considerados ingênuos em termos de engajamento político dos estudantes, embora alguns transmitam uma visão radical de educação científica. Por exemplo, uma categoria comum de ACT é a visão prática da alfabetização tecnológica, como um meio para o uso imediato de aparato tecnológico. Outra categoria está relacionada ao objetivo social ou cultural, que é o de preparar os cidadãos para serem simpáticos para com a ciência ou para compreender a ciência como cultura humana. Em ambos os pontos de vista, a alfabetização científica não tem como objetivo preparar os alunos para tomar ações sócio-políticas na sociedade.

Ainda com base na filosofia Freiriana, o autor defende a indissociabilidade da

educação e da política, discutindo a necessidade de uma agenda para a educação

científica que inclua questões como o acesso desigual à tecnologia no mundo, o

poder de dominação da tecnologia e o contexto opressivo da científica e moderna

sociedade tecnológica (SANTOS, 2009).

Neste trabalho, tentamos nos aproximar das perspectivas de letramento

científico defendidas por alguns dos autores citados (SANTOS, 2007, 2009; AULER

e DELIZOICOV, 2001). Apesar de reconhecer que Auler e Delizoicov (2001) e

Chassot (2003) utilizam o termo alfabetização científica sob uma perspectiva social e

crítica, optamos por adotar o termo letramento científico, conforme proposto por

Santos (2009), no sentido de enfatizar uma preocupação com aspectos sociais da

ciência, com o conhecimento científico em uso, com uma educação científica

humanística, que almeja a transformação da realidade social e não apenas a

reprodução dela.

1.4 RELAÇÕES ENTRE ESCRITA, AUTORIA E LETRAMENTO CIENTÍFICO

Buscando relações estabelecidas na literatura entre leitura e/ou escrita e

letramento científico, fizemos um levantamento bibliográfico (SUISSO e GALIETA,

2014) nas revistas brasileiras da área de Educação em Ciências e verificamos que

apenas 21 dos trabalhos publicados nos 506 números dos 16 periódicos

investigados abordam a questão da escrita e da leitura dentro de uma perspectiva

de AC/LC.4 Tais resultados já sugerem que o papel da leitura e da escrita no

letramento científico é ainda pouco investigado, mas isso fica ainda mais claro

4 Cabe ressaltar que foram investigados todos os exemplares disponíveis até Dezembro de 2013 no

sítio eletrônico de cada periódico, por isso, o período analisado, bem como o total de números investigados, varia de acordo com cada revista. O artigo mais antigo encontrado é de 2001 e o mais recente, de 2013.

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quando observado que a relação entre leitura/escrita e LC aparece como escopo em

apenas 3 (três) dos 21 artigos (YAMADA e MOTOKANE, 2013; TEIXEIRA, 2013;

SOARES e COUTINHO, 2009).

Em um deles, Teixeira (2013) realiza uma reflexão sobre os significados

atribuídos à expressão alfabetização científica, retomando a origem histórica dos

termos alfabetização e letramento e seus respectivos significados na área de

linguagem. Analisa, então, a apropriação desses termos no âmbito do ensino de

ciências e argumenta que a alfabetização científica diz respeito a tudo aquilo que

envolve leitura e escrita de texto científico. No artigo de Yamada e Motokane (2013),

por sua vez, os autores buscam entender o desenvolvimento da escrita de alunos do

6º ano em uma aula de Ecologia considerando que a constituição das habilidades de

leitura e de escrita representa um ponto importante para o processo de alfabetização

científica. Já Soares e Coutinho (2013), em seu artigo “Leitura, discussão e

produção de textos como recurso didático para a biologia”, apresentam a análise de

uma atividade de leitura e escrita planejada segundo abordagem sociocultural e

avaliada de acordo com abordagem psicológica sociointeracionista do discurso,

realizada no ensino médio para o ensino de biologia, argumentando que a atividade

proposta por eles contribuiria para o letramento científico. Em uma das seções do

texto, intitulada “A Linguagem Científica e o Letramento Científico”, os autores

defendem que a linguagem científica possui recursos lexicogramaticais específicos

da área e que o letramento científico estaria então, relacionado à habilidade de

decodificar essa linguagem específica, fazendo com que o indivíduo seja capaz de

conversar, ler e escrever significativamente no contexto científico. Por outro lado, o

letramento científico, para esses autores, refere-se também ao desenvolvimento de

hábitos mentais científicos, tais como o raciocínio lógico, o entendimento do papel

da experiência e a confiança na evidência.

Em outro dos 21 artigos investigados (SCARPA e TRIVELATO, 2012), apesar

de verificarmos a presença clara do componente leitura/escrita-AC/LC, o foco não

está voltado especificamente para essa questão, mas para a natureza da

argumentação nas ciências. Ainda assim, os autores demonstram interesse na

relação entre linguagem e alfabetização e logo no início do trabalho estabelecem

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vínculos explícitos entre alfabetização científica e leitura e escrita com base nos

estudos de Norris e Phillips (2003; 2009, grifo dos autores):

O ensino por investigação e a ênfase nos processos de leitura e escrita de textos científicos têm recebido atenção nas pesquisas em ensino de ciências cujo foco está na alfabetização científica. Norris e Phillips (2003) defendem que [...] ler e escrever são habilidades necessárias para o acesso dos estudantes de educação básica a um determinado ‘fazer científico’. [...] Logo no início de seu artigo, Phillips e Norris (2009, p.313) defendem uma posição da qual compartilhamos: “Quando cientistas leem, eles estão realizando investigações.” Em contraposição à caracterização das ciências experimentais como fundamentalmente baseadas em atividades hands-on, os autores apresentam dados que sustentam que, na maior parte do tempo, os cientistas estão envolvidos em atividades minds-on – leitura, escrita e/ou fala. Por esse motivo, é importante que os currículos e os professores de ciências deem a devida importância para a leitura em ciências e que a concepção de leitura como investigação esteja presente de forma mais intensa na educação científica (SCARPA e TRIVELATO, 2012, p. 47).

Aliás, estudos de Norris e Phillips (2003) apareceram como referência em

outros artigos de nosso levantamento: no trabalho já citado de Teixeira (2013) e nos

textos de Sasseron e Carvalho (2011), Nigro e Azevedo (2011) e Paula e Lima

(2007). No trabalho de Sasseron e Carvalho (op. cit.) é realizada uma revisão

bibliográfica sobre AC. Nele discute-se a dificuldade em definir o termo pela

amplitude e controvérsia do mesmo e diversos aspectos da AC/LC são abordados,

dentre eles, o “sentido fundamental” de Norris e Phillips (op. cit.), bem como a

“dimensão funcional”5 de Bybee (1995). No artigo de Paula e Lima (2007), os

diversos significados atribuídos ao conceito de letramento são discutidos e, nesse

sentido, o trabalho de Norris e Phillips (op. cit.) e seu “sentido fundamental” da

leitura e da escrita nas ciências são novamente citados. No entanto, a problemática

do artigo não está voltada para essa questão, e sim, para a defendida impertinência

do uso do termo letramento científico (e para a preferência pelo termo alfabetização

científica). Os autores têm a intenção de, com essa discussão, “resgatar pontos de

vista e abordagens da educação em ciências comprometidas com a formação de

sujeitos aptos a reivindicar e a exercer a cidadania” (PAULA e LIMA, op. cit., p. 3).

Já no trabalho de Nigro e Azevedo (op. cit.), a referência ao trabalho de Norris e

Phillips aparece apenas nas considerações finais do trabalho, onde o perfil de um

grupo de professores do primeiro segmento do ensino fundamental, participantes de

5 As ideias de um “sentido fundamental” e de uma “dimensão funcional” para AC, propostas,

respectivamente, por Norris e Philips (2003) e Bybee (1995) foram apresentadas na seção anterior.

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um projeto de formação continuada que tinha como objetivo promover a

alfabetização científica, é apresentado. Ao analisar quais os objetivos atribuídos ao

ensino de ciências por esses professores, os autores (NIGRO e AZEVEDO, op. cit.,

p. 6) destacaram que

objetivos relacionados à comunicação (leitura-escrita) foram frequentemente citados pelos professores, porém, aparentemente, de maneira que sugere que estes objetivos relacionam-se mais às demandas genéricas de ensino de línguas, permeando outras disciplinas escolares, do que a um real reconhecimento do papel da linguagem para o desenvolvimento do conhecimento científico – e, assim, a uma possível conotação de alfabetização científica em seu sentido mais fundamental, segundo a definição de Norris e Phillips (2003).

Esta citação pode ser comparada a uma das principais conclusões do nosso

trabalho de levantamento: boa parte dos trabalhos analisados (VIECHENESKI e

CARLETTO, 2013; FABRI e SILVEIRA 2013, 2012; GERMANO e KULESZA, 2007;

BRANDI e GURGEL, 2002; LORENZETTI e DELIZOICOV, 2001) está voltada para o

ensino de ciências nas séries iniciais, mas neles os autores parecem considerar em

suas argumentações apenas a associação entre a aprendizagem de ciências e de

leitura/escrita na língua materna e não a questão da especificidade da aprendizagem

da leitura e da escrita nas ciências que, aliás, pôde ser verificada apenas nos

primeiros quatro trabalhos apresentados (YAMADA e MOTOKANE, 2013; TEIXEIRA,

2013; SCARPA e TRIVELATO, 2012; SOARES e COUTINHO, 2009).

Nas demais publicações resultantes do levantamento (DIÓRIO e RÔÇAS,

2013; FEJES et al, 2012; RANGEL et al., 2012; CARBONESE et al., 2011; AIRES e

LAMBACH, 2010; MILARÉ e ALVES FILHO, 2010; PRAIA et al, 2007; SANTOS,

MORTIMER, 2001), assim como em uma das já citadas (NIGRO e AZEVEDO,

2011), a relação entre as duas perspectivas pesquisadas (AC/LC – leitura/escrita)

aparece apenas superficialmente, nem sempre de forma explícita, em geral, na

apresentação de conceitos e definições para AC/LC. No artigo de Santos e Mortimer

(2001), por exemplo, o letramento científico e tecnológico (LCT) é apresentado como

principal objetivo do currículo CTS e os autores têm como foco os aspectos

sociocientíficos da AC/LC, no entanto, em nota de rodapé, é apresentada a seguinte

definição para LCT: “letramento científico e tecnológico seria a condição de quem

não apenas reconhece a linguagem científica e tecnológica, mas cultiva e exerce

práticas sociais que usam tal linguagem” (SANTOS e MORTIMER, op. cit., p. 96).

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Entendemos, dessa forma, que para estes autores, apesar de não ser dada maior

atenção à leitura/escrita em suas discussões (dado que a questão aparece apenas

em uma nota de rodapé), saber ler e escrever a linguagem da ciência é condição

essencial para que o indivíduo seja considerado letrado científica e

tecnologicamente.

Dessa forma, mesmo reconhecendo que todos os 21 artigos analisados

apresentam alguma relação entre leitura-escrita-AC/LC, verificamos que a maior

parte deles, ao abordar a/o AC/LC, está mais preocupada com questões como a

compreensão de conceitos científicos, aspectos da natureza e da história e filosofia

da ciência, controvérsias sociocientíficas, relações CTS, desenvolvimento de

autonomia, formação cidadã e/ou tomada de decisão6. Ainda assim, dos 21 artigos,

8 (oito) são trabalhos empíricos em que algum tipo de produção escrita de alunos foi

objeto de análise ou fez parte de atividades de sequências didáticas realizadas.

Diório e Rôças (2013) realizaram num ciclo de oficinas com professores de nível

médio em formação uma atividade na qual a proposta era adaptar artigos científicos

da revista Química Nova na escola para alunos do EF, mas os dados que

constituíram objeto de análise da pesquisa foram gerados em um questionário no

último encontro com o grupo. No trabalho de Carbonese e cols. (2011) alunos do

segundo segmento do EF participaram de uma oficina de elaboração de etiquetas de

animais taxidermizados em um museu. Fejes e cols. (2012) analisaram textos

dissertativos produzidos por grupos de alunos também do segundo segmento do EF

em uma atividade de avaliação dos projetos realizados em suas escolas. Fabri e

Silveira (2012; 2013) realizaram sequências didáticas com alunos do 5º ano

(primeiro segmento do EF) que incluíram questionários de concepções prévias e

sobre textos ou vídeos trabalhados em aula, confecção de folders, acrósticos,

finalização de texto narrativo, relato sobre visitas ou entrevistas realizadas e

construção coletiva de protocolo de entrevistas. Viecheneski e Carletto (2013)

analisaram uma sequência didática realizada com alunos do 1º ano (primeiro

segmento do EF) na qual ocorreu a construção coletiva de protocolos de entrevistas

6 É interessante ressaltar que os artigos de Aires e Lambach (2010), Germano e Kulesza (2007) e

Sasseron e Carvalho (2011) ao abordar LC, realizam uma aproximação com referenciais freireanos em uma perspectiva humanística, o que também é intenção deste trabalho, conforme comentado na seção anterior.

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e a produção (também de forma coletiva) de pequeno texto dissertativo sobre

assunto da sequência. Soares e Coutinho (2009) analisaram resenhas acadêmicas

de fragmentos de artigos científicos produzidas por alunos do 1º ano do ensino

médio antes e depois de uma atividade de discussão. E, finalmente, Yamada e

Motokane (2013) elaboraram uma sequência didática com objetivo de trabalhar os

aspectos de elaboração de hipóteses e previsões na ciência, bem como da

interpretação de dados com alunos do 6º ano (segundo segmento do EF) e as

atividades da sequência que envolveram escrita foram, basicamente, diferentes tipos

de questionários.

Observar quais gêneros textuais são privilegiados pelos autores dos artigos

desse levantamento torna-se interessante ao considerarmos que há pesquisas que

vêm sendo realizadas sobre leitura e escrita nas aulas de ciências que relacionam o

gênero à questão da autoria. Alguns autores (OLIVEIRA, 2001; CORRÊA, 2003;

ALMEIDA et al., 2007; GIRALDI, 2010; COSTA, 2011; TOMIO, 2012) concluíram em

seus trabalhos que determinados gêneros textuais (como, por exemplo, conto,

ficção, diário) podem ser mais propícios para a ocorrência de repetições históricas e,

portanto, conforme discutimos anteriormente, para a assunção da autoria. Cabe

ressaltar, no entanto, que isso não significa afirmar que tal repetição não pode

ocorrer em gêneros mais “formais” ou “tradicionais” adotados nestas aulas, tais

como relatos de atividades prático-experimentais. Ao analisar as produções textuais

que foram suscitadas pelos trabalhos do nosso levantamento, verificamos a

ocorrência de gêneros que podemos considerar como mais usuais no âmbito das

ciências – tais como os relatos de atividades, as resenhas e adaptações de artigos

científicos e os questionários que objetivam trabalhar aspectos da natureza da

ciência (hipótese, previsão e interpretação de dados) – mas também observamos,

principalmente nas publicações voltadas para as séries iniciais do EF, gêneros

textuais não tão habituais – tais como acrósticos, textos narrativos e folders.

Tal observação pode nos levar a questionar se a habilidade de ler/escrever

quando o conteúdo é científico difere da habilidade de ler/escrever outros temas e se

isso está relacionado a determinados gêneros textuais que são privilegiados no

âmbito do ensino das ciências. Já comentamos algumas particularidades da

linguagem científica em relação à linguagem cotidiana, tais como estruturalidade,

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nominalização e ausência de sujeito (MORTIMER, 1998) e podemos aqui, refletir

sobre o papel que as repetições mnemônica e formal adquirem no contexto do

ensino de ciências. Nas nominalizações, nas explicações de conceitos e processos

científicos, essas repetições podem ser valorizadas em sala de aula e muitas das

vezes, até mesmo desejadas.

Com base na ideia de que é lendo que se aprende a ler e é escrevendo que

se aprende a escrever (FREIRE, 1988), temos como pressuposto da pesquisa que a

escola deve proporcionar muitas e diversas oportunidades de escrita. No entanto, a

escrita que vem sendo priorizada na escola é a da repetição mnemônica ou empírica

(copiar textos do quadro, buscar respostas de um questionário em um texto dado

etc.), ainda que, conforme argumenta Orlandi (1996a), os alunos ganhem

reconhecimento do mestre na prática da repetição formal. Almeida et al. (2007),

corroboram nossa argumentação ao verificarem que, respondendo questões de uma

prova de ciências, atividade que podemos chamar de “tradicional” no contexto

escolar, alunos formularam textos em que as repetições empíricas e formais foram

preponderantes.

De que forma, portanto, podemos trabalhar com uma perspectiva de autoria

nas aulas de ciências diante da tradicional valorização das repetições formais e

mnemônicas pela escola? Essa questão suscita, sem dúvida, importantes

discussões nas análises das produções textuais dos alunos do presente trabalho e

esperamos que ela produza reflexões para aprofundar as relações entre linguagem

e letramento científico.

A análise de determinadas atividades que envolvam produção escrita de

gêneros não usuais no contexto das aulas de ciências pode ser interessante para

investigar se e de que forma ocorrem repetições mnemônicas, formais e/ou

históricas e que relações podem ser estabelecidas entre a ocorrência destas e a

autoria dentro de uma perspectiva de letramento científico. Observamos

anteriormente que é atribuída à escola a responsabilidade de promover transições

que se relacionam diretamente com a passagem da repetição mnemônica para a

repetição formal e com a assunção da autoria: da função de sujeito-enunciador para

a de sujeito-autor e do inteligível para o compreensível. Tais conceitos da AD, assim

como os de polissemia e paráfrase, são relevantes para esta investigação.

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No contexto da educação científica e de seus objetivos, concordamos com a

noção de letramento científico numa perspectiva humanística conforme proposta por

Santos (2009) que enfatiza o papel político da educação e a importância de situar os

conhecimentos científicos num quadro social objetivando a promoção de uma visão

crítica do cidadão e a transformação da realidade. Tal perspectiva se aproxima em

alguns aspectos da abordagem teórica da AD, que entende que o político está

inscrito no social (já que a constituição do sujeito se dá através da interpelação pela

ideologia) e que, ao mesmo tempo,

concebe a linguagem como mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social. Essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do homem e da realidade em que ele vive (ORLANDI, 2002, p. 15).

Também a noção de compreensão da AD, já mencionada anteriormente,

pode relacionar-se com essa perspectiva crítica da educação presente na ideia de

letramento científico de perspectiva humanística (SANTOS, 2009), uma vez que a

compreensão é a atribuição de sentidos que se coloca em relação ao enunciado

(histórico) e a enunciação (situação) e que, por isso, reclama uma relação crítica do

sujeito com sua posição, problematizando-a (ORLANDI, 1998).

Entendemos, portanto, que a “assunção da autoria”, a passagem de um

sujeito-enunciador para um sujeito-autor, da repetição mnemônica para a repetição

histórica e do inteligível para o compreensível, no contexto das aulas de ciências,

implique em uma apropriação de conhecimentos científicos – em decorrência da

inscrição do sujeito em uma estrutura social, a da ciência ensinada na escola – e em

um posicionamento crítico do aluno frente a esses conhecimentos – criticidade essa,

que é condição para a compreensão. Então, por meio da assunção da autoria, o

sujeito utiliza conhecimentos científicos em contextos mais amplos, ressignificando

tais contextos e sua própria posição na sociedade. Essas ressignificações podem vir

a contribuir para uma transformação desta sociedade que somente é possível e

concretizada no/pelo discurso e que se constitui como o objetivo central de uma

educação científica humanística.

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2 DELINEAMENTO DA PESQUISA

2.1QUESTÃO E OBJETIVOS DA PESQUISA

No presente estudo pretendemos investigar de que forma produções textuais

de alunos em aulas de ciências sinalizam indícios de autoria que contribuem para o

letramento científico numa perspectiva humanística. Com base nisso, enunciamos a

seguinte pergunta de pesquisa: como os alunos, diante de uma sequência didática

baseada na ideia do letramento científico de perspectiva humanística, se constituem

autores? A hipótese da pesquisa é que os alunos, ao produzirem determinados

gêneros textuais não usuais nas aulas de ciências, tais como contos, cartas,

histórias em quadrinhos e de ficção estão mais propícios a se constituírem como

autores no contexto científico escolar (OLIVEIRA, 2001; CORRÊA, 2003; ALMEIDA

et al., 2007; GIRALDI, 2010; COSTA, 2011; TOMIO, 2012), e dessa forma, a

desenvolverem uma criticidade indispensável para o letramento científico segundo

uma perspectiva humanística.

Temos como objetivo geral, portanto, caracterizar produções textuais escritas

de alunos do ensino fundamental em aulas de ciências com relação à autoria e ao

letramento científico numa perspectiva humanística. Convém destacar que a

investigação foi realizada em uma das turmas da rede pública municipal do Rio de

Janeiro na qual leciono, portanto, assumo o papel de professora-pesquisadora. A

opção pela análise de produções textuais realizadas em minhas próprias aulas

provém não só de questões de mera praticidade, mas também por acreditar que em

minha prática docente valorizo a organização de sequências didáticas que

contemplam o exercício de habilidades relacionadas à leitura e à escrita nas aulas

de ciências que têm como finalidade a formação crítica do aluno. Desta forma,

entendemos que obter dados decorrentes de aulas desta natureza é fundamental

para que os objetivos específicos da pesquisa sejam alcançados.

Tais objetivos específicos são: 1) caracterizar as condições de produção

estabelecidas na sala de aula no contexto de uma sequência didática planejada com

base na ideia do letramento científico de perspectiva humanística ; 2) identificar e

selecionar produções textuais dos alunos que apresentam conhecimentos científicos

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em contextos amplos; 3) analisar indícios de autoria na relação com o letramento

científico numa perspectiva humanística.

A análise foi desenvolvida com base nos conceitos da AD relacionados à

autoria, tais como os de tipos de repetições (mnemônica, formal e histórica), tipos de

relação do sujeito com a significação (o inteligível, o interpretável e o compreensível)

e paráfrase e polissemia.

O foco de análise dessa pesquisa está voltado para os textos escritos

produzidos pelos alunos durante uma sequência didática de Ciências e, dessa

forma, orientamos a análise dos mesmos segundo as etapas de um dispositivo

analítico para textos escritos (GALIETA, 2013) elaborado sob uma perspectiva

teórica da AD (ORLANDI, 2002) que se constitui de três etapas: 1) constituição do

corpus – delimitação do material bruto a ser analisado de acordo com objetivo do

analista, natureza do material e pergunta de pesquisa; 2) descrição do corpus –

processo de “de-superficialização” em que o corpus bruto começa a tornar-se objeto

discursivo, onde descrição e interpretação relacionam-se na análise da

materialidade linguística (o como se diz, o quem diz e em que circunstância é dito);

3) interpretação do objeto discursivo – definição do que interessa ser analisado no

objeto discursivo de acordo com pergunta e objetivo, explorando as relações de

sentido (um dizer tem relação com outros dizeres), relações de força (entre quem

escreve e quem lê) e mecanismo de antecipação (quem escreve coloca-se no lugar

do leitor, antecipando os sentidos que suas palavras podem produzir).

Apesar do corpus dessa pesquisa ser constituído pelas produções escritas

dos alunos, cabe ressaltar que dentro da perspectiva da AD francesa torna-se

fundamental compreender as condições de produção desses textos. Nesse sentido,

as aulas dessa sequência foram gravadas em áudio e vídeo, porém tais gravações

não constituem o corpus efetivo da pesquisa, mas sim subsídio para a análise, já

que podemos entendê-las como registros de condições estritas de produção. O

próximo capítulo trata justamente dessas condições amplas e estritas de produção.

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2.2 CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DA PESQUISA

2.2.1 O cenário: a escola

A Escola Municipal José do Patrocínio (EMJP) está localizada em Irajá, um

bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro e faz parte da história da região. Inaugurada

em outubro de 1962, sob o lema “Informar para formar”, o então Ginásio Industrial

José do Patrocínio tinha a educação para o trabalho como objetivo principal. Seu

primeiro diretor, o rígido professor Albor Spártaco Artese, que esteve à frente da

escola desde a inauguração até 1989, ainda povoa o imaginário da comunidade,

tanto que uma praça das proximidades leva seu nome7. Com a extinção do Estado

da Guanabara (Lei da Fusão) e criação do novo Estado do Rio de Janeiro, passa a

ser designada pelo seu nome atual (PIRES, 1998). De 1989 até os dias de hoje, a

escola teve outras quatro professoras na função de direção e a diretora atual (a

quinta, depois do professor Albor) ocupa o cargo desde 2013.

Até o mesmo ano funcionava em um prédio anexo ao prédio principal da

escola o Pólo de Educação pelo Trabalho (PET), que oferecia atividades

extraescolares aos alunos da rede municipal do bairro e adjacências. Originalmente,

o PET contava com propostas de cursos como “Educação para o Lar”, “Atividades

Industriais” e “Técnicas agrícolas”, cursos que ainda hoje dão nome às salas onde

eram oferecidos. Mais recentemente, o PET oferecia aulas de música (violão, coral e

flauta), dança, grafismo, xadrez, informática educativa, rádio e reciclagem. Hoje os

PET’s foram reduzidos a algumas unidades escolares e, por determinação da

Secretaria Municipal de Educação (SME), não funciona mais na EMJP, restando

apenas as aulas de informática educativa, flauta e coral, que são oferecidas por dois

dos professores que eram do PET nos seus tempos de complementação de carga

horária.

A instituição compreende uma área de quatro mil quatrocentos e cinquenta e

três metros quadrados, sendo dois mil cento e setenta e três metros quadrados de

7 A referida praça passa a ter o nome do diretor através da lei municipal ordinária nº. 2472/1996

(disponível em

http://mail.camara.rj.gov.br/APL/Legislativos/contlei.nsf/5f9bf440c7e16437032579640061d978/fa3f7c6

5fc18b97c032576ac007337ac?OpenDocument) de autoria de vereadora ex-aluna da escola.

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área construída. A estrutura física da escola é constituída de dois prédios: o principal

(de dois andares) com 11 salas de aula, banheiros, sala dos professores, auditório,

refeitório, secretaria, salas ocupadas pela direção e coordenação, salas de

depósito/almoxarifado e duas salas de informática (uma delas era utilizada nas aulas

de informática educativa do PET); e um prédio anexo (onde funcionava o antigo

PET), com laboratório de ciências, sala de leitura, outras três salas que hoje

funcionam como salas de aula e mais duas de depósito (uma das salas de depósito

era uma sala de música que foi inutilizada devido a problemas de infiltração). A

instituição conta ainda com uma quadra de esportes coberta (onde acontecem as

aulas de educação física), um jardim e um extenso pátio com uma parte coberta e

outra ao ar livre.

O laboratório de ciências apresenta estrutura característica com bancadas,

bancos e armários (estes últimos, em péssimas condições), além de um quadro

branco e uma televisão. Lá se encontram uma razoável quantidade e variedade de

vidraria; poucos reagentes químicos ainda dentro da validade; muitos kits

provenientes do projeto “Ciência no dia-a-dia”8; alguns instrumentos, tais como

variados termômetros; muitos livros, em sua maioria, livros didáticos antigos; e

alguns materiais e jogos para ensino de anatomia humana, física, dentre outros

assuntos. Por motivos de segurança, um excelente microscópio óptico é mantido na

atual sala da coordenadora pedagógica (que até pouco tempo era a sala da diretora

anterior). O laboratório hoje é utilizado esporadicamente pelos professores de

ciências para realização de práticas e experimentos, mas foi historicamente deveras

utilizado pelo já aposentado célebre professor Mário Pires9, um dos maiores

responsáveis por todo o acervo de materiais disponíveis hoje.

A sala de leitura, por sua vez, possui um bom acervo e é um espaço bastante

utilizado pelos alunos, principalmente para leitura e empréstimo de livros. A

professora responsável pelo espaço, que é também professora de português de

duas turmas da escola (uma delas, a turma objeto desta pesquisa), realiza

8 O projeto “Ciência no dia-a-dia” é desenvolvido pelo Departamento de Ensino de Ciências e Biologia

da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e elabora material didático de baixo custo, sob a forma de kits, voltados à utilização em aulas práticas de Ciências. 9 Cabe ressaltar que o trabalho de especialização do professor Mário (PIRES, 1998) foi utilizado no

início dessa seção como referência para relato da história da instituição.

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periodicamente atividades com objetivo de estimular o hábito da leitura pelos alunos,

professores e funcionários. O local tem também três computadores para realização

de pesquisas que deveriam estar conectados à internet, mas a conexão da sala tem

apresentado problemas frequentes.

Os dois laboratórios de informática, por sua vez, equipados com

computadores e acesso à internet, são ocasionalmente utilizados pelos professores

em atividades com os alunos em geral, com exceção de duas turmas especiais (que

fazem parte do Projeto de Aceleração da aprendizagem destinado a alunos com

grande defasagem idade/ano escolar), que têm aulas de informática semanalmente

com o professor que antes dava aulas de informática educativa no PET. Um projeto

desse professor, que por diversos fatores, ainda não conseguiu ser executado, é

utilizar a sala de informática para realização de atividades com alunos

diagnosticados com problemas de leitura/escrita. Além dos computadores da sala de

leitura e das salas de informática, há também um computador na sala dos

professores e outros para cada um dos funcionários administrativos (diretor geral e

adjunto, coordenador e secretários escolares). Do ponto de vista dos recursos, a

escola conta ainda com duas impressoras multifuncionais, televisores e aparelhos

de DVD, aparelhos de som, filmadora digital, doze aparelhos de data-show (sendo

que oito deles estão instalados em salas de aula do prédio principal), onze netbooks

para serem utilizados pelos professores em sala de aula e rede wi-fi que, quando

funcionando perfeitamente, atende aos espaços do prédio principal da escola.

Apesar da grande disponibilidade de espaços, as instalações da unidade não

passaram por grandes reformas desde sua fundação e hoje apresentam problemas

como inadequação da rede elétrica, infiltrações e falta de climatização nas salas10,

principais reclamações da comunidade escolar, os quais ainda não foram de todo

solucionados. Quanto aos recursos, mesmo com um farto número de computadores

disponíveis, são equipamentos que precisam de manutenção regularmente, o que

10 Em 2012 foi promulgada a Lei 5.498, que dispõe sobre a temperatura adequada nas salas de aula

das instituições de ensino do município do Rio de Janeiro. No final de 2013, provavelmente pela pressão da greve dos professores que ocorreu no mesmo ano e que teve como uma das reivindicações, o cumprimento da referida lei, a direção da EMJP (bem como outras escolas da rede) recebeu verba para compra e instalação de aparelhos de ar condicionado, que deve ser finalizada ainda em 2014, mas dependem das obras de adequação da rede elétrica da escola.

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não ocorre a contento, e o acesso à internet não é estável e nem atende a toda

escola. Apenas os computadores de uma das salas de informática (cerca de 10

computadores) funcionam satisfatoriamente, pois recebem atenção do professor de

informática educativa durante seu período de trabalho na escola (16 tempos por

semana).

A unidade escolar atende a cerca de 850 alunos da região, todos

pertencentes ao segundo segmento do Ensino Fundamental, subdivididos nos

turnos da manhã e da tarde em turmas que variam de 30 a 40 estudantes. Neste

ano de 2014, são 7 (sete) turmas de 6º ano, 6 (seis) turmas de 7º ano, 6 (seis)

turmas de 8º ano, 4 (quatro) turmas de 9º ano e 2 (duas) turmas de Aceleração da

aprendizagem. Até 2013, não havia salas disponíveis para todas as turmas devido a

grande demanda de vagas da comunidade e, por isso, as salas funcionavam em

sistema de rodízio, onde uma (ou até duas) das turmas de cada turno era alocada

na sala de outra turma que estivesse na quadra de esportes em aula de educação

física ou no laboratório de ciências. O público escolar é bastante heterogêneo do

ponto de vista socioeconômico, apresentando alunos provenientes de famílias de

classe média e de comunidades carentes da região.

A equipe que trabalha atualmente na escola é formada por diretora e diretor

adjunto; coordenadora pedagógica; cerca de cinquenta professores, em que se

mesclam novos e antigos docentes na escola, alguns deles, ex-alunos; três agentes

administrativos que atuam na secretaria; seis merendeiras; três agentes educadores

(inspetores) e três funcionários da Companhia Municipal de Limpeza Urbana

(COMLURB). Desde o trágico incidente ocorrido em 2011, na Escola Municipal

Tasso da Silveira11, em Realengo, a escola passou a contar com dois porteiros. A

escola recebe ainda quatro estagiários, sendo que um atua em aulas de reforço

escolar de matemática (há também aulas de reforço de Português, inseridas no

Programa Mais Educação12), um acompanha as aulas de Ciências e outros dois

acompanham alunos com necessidades especiais.

11 Reportagem sobre o ocorrido disponível em http://g1.globo.com/Tragedia-em-

Realengo/noticia/2011/04/atirador-entra-em-escola-em-realengo-mata-alunos-e-se-suicida.html. 12

O referido programa foi instituído pelo Decreto 7083/2010 em uma ação intersetorial governamental com a finalidade de contribuir na melhoria da aprendizagem pela ampliação do tempo de permanência das crianças nas escolas. Na EMJP, hoje, são 100 alunos que participam do Programa nas seguintes atividades: Acompanhamento Escolar com ênfase em Português e Matemática (que

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Compreendemos que as dificuldades enfrentadas pela EMJP são, ao menos

em parte, consequências de um quadro sócio-político bem mais abrangente, reflexo

da situação atual da rede pública de ensino do município e do país que, sem dúvida,

compõe as condições de produção amplas dessa pesquisa. Apesar dessas

dificuldades, entendemos que essa instituição se apresenta como cenário

privilegiado de realização da pesquisa não só no que tange a disponibilidade de

espaços e recursos se comparada a outras escolas da rede, mas também em

relação ao ambiente proporcionado pela equipe de profissionais que nela trabalham.

Falaremos mais a respeito disso na próxima seção, onde relato minhas impressões

como professora da escola.

2.2.2 Os atores: a professora e a turma 1804

Minha história na rede municipal pública de ensino do Rio de Janeiro começa

em 2009, cerca de um ano após o término da Licenciatura em Ciências Biológicas,

quando fui lotada em uma escola famosa na comunidade pela sua estrutura física,

organização e pela disciplina que impõe aos alunos. Trabalhando nessa escola, que

pertence à mesma CRE (Coordenadoria Regional de Educação)13 da EMJP, pude

comprovar toda sua fama: realmente, a escola contava com recursos adequados,

uma estrutura física e organização impecáveis. Mas em 2011, por insatisfação com

a forma como os recursos humanos eram geridos nessa escola, que resultava em

graves dificuldades nas relações interpessoais entre professores e direção, começo

a buscar outra unidade para, a princípio, fazer hora extra. Foi quando cheguei à

EMJP e rapidamente me adaptei ao novo ambiente. Apesar da grande diferença em

termos organizacionais e da estrutura física da escola, o ambiente de trabalho era

bem mais respeitoso, amistoso e me proporcionava uma relativa autonomia como

professora que até então não tinha conhecido.

No ano seguinte, então, deixo minha escola de origem e passo a dar aulas

somente na EMJP como professora cedida. A EMJP representou para mim, apesar

são chamadas pela comunidade de “aulas de reforço”), Tênis de mesa, Fotografia e Horta/Jardinagem escolar. 13

As escolas da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro são separadas em regiões e cada região faz parte de uma CRE.

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dos problemas que a instituição enfrentava quando cheguei lá, tais como a falta de

professores, inspetores e coordenador pedagógico, um “oásis de tranquilidade” em

virtude do ambiente profissional que encontrei. Ali conheci pessoas que, assim como

eu, “questionavam o sistema”, enxergavam as dificuldades do ensino na rede

pública dentro de um panorama político e social bem mais amplo e que viam na

escola sua função na formação de cidadãos críticos e sua possibilidade de ação

transformadora e não, apenas, como disciplinadora e formadora para o trabalho.

Desde 2011 pude acompanhar mudanças na escola que apontam para um caminho

de melhorias (que credito a nova direção) do qual considero um privilégio fazer

parte. Por tudo isso, tenho uma relação de muito carinho com a instituição na qual

desempenho, nesse trabalho, o duplo papel de professora-pesquisadora.

Em 2012, ano em que passo a lecionar somente na EMJP, uma das turmas

da qual fui professora regente de ciências foi a então 1604. Nesse período, fazia

Especialização no Ensino de Ciências e os alunos dessa turma foram sujeitos do

meu trabalho de conclusão de curso. A respeito deles, escrevo o seguinte

(FERREIRA, 2013, p. 13):

O grupo de sujeitos dessa pesquisa constitui-se dos alunos de uma das turmas de 6º ano do ensino fundamental de uma escola pública municipal carioca do ano de 2012. Tratava-se de uma turma de perfil bastante tranquilo em comparação às demais turmas da escola. Os alunos, em geral, demonstravam interesse e responsabilidade nos estudos, sendo uma das turmas mais assíduas na Sala de Leitura da instituição. O resultado da turma nas avaliações foi considerado um destaque no colégio, pois, apesar de muitos alunos apresentarem desempenho julgado como “mediano” pelo grupo de professores, foi a única com 100% de aprovação ao final do ano letivo.

O desempenho escolar deste grupo de alunos foi novamente destaque em

2013, quando a média da turma foi a 4ª melhor da 5ª CRE na avaliação de

Português da Prova Rio14 e 7º lugar na de Matemática em um total de 127 turmas

avaliadas.

Em 2014, reencontro esse grupo de discentes na turma 1804, uma das duas

turmas de 8º ano nas quais leciono nesse ano letivo. Em sua maioria, os alunos da

1804 são os mesmos da então 1604, com alguns poucos que ingressaram e outros

que deixaram o grupo no período, totalizando 39 alunos. Avalio que o grupo está

14 A Prova Rio é uma avaliação externa do rendimento escolar em Língua Portuguesa e Matemática.

A nota nessa prova compõe o Ide-Rio, o índice de desenvolvimento da educação na cidade.

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mais maduro, mas um pouco mais agitado que outrora, o que não chega a afetar o

desempenho escolar, que continua satisfatório como um todo. No contexto das

outras turmas da escola, a 1804 é avaliada como responsável e bem comportada

pela direção. Um fato que demonstra tal avaliação é a alocação da turma em uma

das salas do prédio anexo que, a princípio, seriam destinadas apenas às turmas do

9º ano. As turmas do prédio anexo têm o “privilégio” de não precisar formar no pátio

no início do turno e no retorno do recreio, podendo assim, se dirigir às suas salas

sem aguardar a chegada do professor no pátio. No 2º bimestre, no entanto, após

recorrentes problemas de atraso dos alunos de uma das turmas do 9º ano, que

demoravam a entrar em sala no retorno no recreio, a 1804 é escolhida para trocar

de sala com a referida turma do 9º ano. Assim, a 1804 passa a ocupar a antiga sala

de “Atividades Industriais” do PET, que ainda conta com equipamentos e

ferramentas que ficam ali, como que relíquias do passado.

A turma continua se destacando no interesse pelo empréstimo de livros da

Sala de Leitura e segundo a professora dinamizadora do espaço, que também é a

professora de português da turma desde o 6º ano, os avanços na leitura/escrita são

perceptíveis e mesmo os alunos que não obtêm resultados vultosos nas avaliações

de desempenho, fazem da leitura livre prática constante, inclusive utilizando as

redes sociais para comunicar fatos, situações e opiniões de dentro e de fora da

escola.

Cabe-nos compreender como se dará a escrita desses alunos nas aulas de

ciências, no contexto de uma sequência didática que se pretendeu alinhada à

perspectiva do letramento científico e de uma situação de produção textual que foi

planejada visando à promoção da autoria.

2.2.3 O enredo: a sequência didática

Entendemos sequência didática como “um conjunto de atividades ordenadas,

estruturadas e articuladas para a realização de certos objetivos educacionais”

(ZABALA, 1998, p.20). Os critérios utilizados para a seleção do assunto da

sequência didática foram: 1) tema de enfoque social no qual a ciência tenha

participação; 2) que propiciasse o aparecimento de diversos posicionamentos dos

alunos em sala de aula; 3) que possibilitasse uma atividade de produção textual que

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favorecesse à assunção da autoria (carta, contos, ficção, diário etc.) e; 4) que se

relacionasse com as orientações curriculares propostas pela SME15.

Vários temas poderiam ser objeto da sequência didática em questão, tais

como a questão do consumo e da produção de lixo; do consumo e da produção de

energia; da alimentação e dos transgênicos e; da alimentação e dos agrotóxicos.

Pareceu-nos, no entanto, que uma sequência didática com tema a respeito da

questão étnico-racial suscitaria maior polêmica em sala de aula, tendo em vista que

boa parte dos alunos da escola é negra ou parda e que a questão do racismo (e do

bullying, que por vezes é motivado por preconceitos dos mais variados) tem se

colocado mais fortemente nas mídias e na sociedade como um todo nos últimos

tempos. Casos recentemente divulgados (como o do aluno de uma escola privada

que foi obrigado a cortar seu cabelo e não teve sua matrícula renovada16 ou da

banana jogada em campo para o jogador de futebol Daniel Alves17) dão uma

dimensão social importante da temática escolhida para a sequência didática. A

ciência tem entrada na discussão da polêmica a partir dos aspectos da genética

(que podem questionar o uso do termo “raça”) e da evolução da espécie humana,

bem como da produção de melanina.

As orientações curriculares da SME apontam o tema Evolução das espécies

como conteúdo do 7º ano, mas no 8º ano, em que o corpo humano é o foco da

abordagem, uma discussão a respeito de trechos da Lei 11.645 de 10/08/2008 (que

orienta sobre a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e

Indígena) aparece como sugestão de abordagem do tema Pele. Nesse contexto,

apesar da genética e da evolução humana não serem propriamente apontados pelo

documento como conteúdos do 8º ano, parece-nos que o tema acaba sendo

abordado nesse ano de forma transversal, ao tratar da função das organelas

celulares e do DNA, sugerir o debate sobre células tronco e clonagem, e apontar

como uma habilidade a ser desenvolvida pelo aluno (dentro do conteúdo Sistema

15 Documento disponível em:

http://www.rio.rj.gov.br/dlstatic/10112/4246635/4104940/OrientacoesCiencias2013.pdf. 16

Reportagem sobre o caso disponível em: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2013/12/colegio-em-guarulhos-obriga-menino-cortar-o-cabelo-crespo.html 17

Reportagem sobre o caso disponível em: http://esporte.uol.com.br/futebol/campeonatos/espanhol/ultimas-noticias/2014/04/27/dani-alves-come-banana-racista-forca-2-gols-contra-e-ajuda-barca-a-virar.htm

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Circulatório) a identificação dos tipos sanguíneos e do fator Rh, relacionando-os à

herança genética. Dessa forma, inclinamo-nos a selecionar alunos de uma turma de

8º ano como sujeitos da pesquisa, no caso, os alunos da turma 1804, previamente

apresentada.

A sequência didática foi então planejada de forma que fosse realizada durante

os tempos de Ciências da turma em duas semanas consecutivas (nos dias 29/04/14

e 06/05/14). Em cada semana, três tempos de 50 minutos são destinados à

disciplina ciências em todas as turmas da escola. Na 1804, as aulas de ciências

ocorrem em três tempos seguidos às quartas-feiras. A aula da primeira semana foi

intitulada “Racismo – O que é raça?” e teve como objetivos: fazer com que os alunos

refletissem sobre as origens históricas do racismo e sobre a participação da ciência

na questão; compreendessem a teoria da evolução e os conceitos de adaptação e

seleção natural para, a partir daí, entender as bases do pensamento eugênico e do

racismo científico; entendessem o conceito biológico de raça e o porquê dele não se

aplicar à espécie humana; refletissem sobre o uso do termo raça em relação à

espécie humana em termos culturais e sociais e se posicionassem a respeito disso,

através de um questionário. Ao final dessa aula os alunos responderam a duas

perguntas sobre o uso do termo raça.

A aula da segunda semana recebeu o título “Por que somos diferentes? – De

onde nós somos?” e teve como propósitos levar os discentes a conhecer a mais

provável origem da espécie humana na África e a compreender como se deu sua

dispersão em escala global; entender de forma geral as bases científicas (tais como

comparação de fósseis e de DNA) que possibilitam a reconstrução da história da

evolução do homem; apreender as explicações da ciência para as diferenças de cor

de pele; refletir e se posicionar a respeito de questões relacionadas ao racismo e

aos diferentes tipos de preconceitos na sociedade atual; aprimorar habilidades

relacionadas à expressão oral e escrita; e desenvolver o respeito às diferenças.

Nessas aulas foram utilizados slides, animações, música, vídeos e textos como

recursos. No quadro a seguir (Quadro 1) podemos identificar os principais conteúdos

abordados e os recursos utilizados em cada aula da sequência didática.

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QUADRO 1 - Síntese da sequência didática

Data (Duração)

Título da aula Conteúdos Recursos utilizados

29/04/2014 (3 tempos

seguidos de 50 minutos

cada)

Racismo – O que é

raça?

Conceito biológico de raça;

Classificação da espécie humana em raças é arbitrária;

Raízes históricas do pensamento racista e o racismo científico;

Adaptação, seleção natural e evolução;

Eugenia – surgimento do conceito e consequências no Brasil e no mundo;

Genética atual questiona ideia de raças humanas com base na similaridade genética;

Movimento negro reivindica uso do termo em contexto sócio-cultural;

Problematização sobre uso do termo raça;

Posicionamento por parte dos alunos sobre uso do termo raça;

Habilidades de expressão escrita.

Slides;

Simulador seleção natural

18;

Vídeo sobre evolução

19;

Texto 1 – “Somos todos um só” (Apêndice A);

Texto 2 – “Genética alimenta polêmica sobre raças no Brasil” (Apêndice B);

Vídeo reportagem Neguinho da Beija-Flor

20;

Questionário com duas perguntas sobre uso do termo raça (Apêndice C).

06/05/2014 (3 tempos

seguidos de 50 minutos

cada)

Por que somos diferentes? – De

onde nós somos?

“Árvore genealógica” humana;

Origem da espécie humana na África e sua dispersão pelo planeta;

Paleontologia e genética na pesquisa sobre origem humana;

Relação entre cor da pele e adaptação da espécie a diferença de incidência de raios UV e produção de vitamina D;

Cor da pele e quantidade de melanina produzida;

As diferenças físicas tradicionalmente associadas às diferentes “raças” são definidas por poucos dos cerca de 20 mil genes que possuímos;

Reflexões sobre racismo, preconceitos, discriminação e desigualdades na sociedade atual;

Respeito às diferenças;

Habilidades de expressão oral e escrita.

Slides;

Vídeo origem humana

21;

Texto “Seguindo passos do passado” (Apêndice D);

Letra e música de “Lavagem Cerebral” (Apêndice E);

Vídeo reportagem de caso de discriminação

22.

Debate sobre racismo e preconceito.

18 Disponível em http://phet.colorado.edu/pt/simulation/natural-selection.

19 Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=pYbKhi5rqqs.

20 Disponível em

http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/05/070424_dna_neguinho_cg.shtml. 21

Disponível em http://www.youtube.com/watch?v=yHIBYTBe_hc. 22

Disponível em http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2013/12/colegio-em-guarulhos-obriga-menino-cortar-o-cabelo-crespo.html.

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Ao término do debate uma proposta de atividade final de escrita a ser

realizada em casa e entregue na semana seguinte foi apresentada (Apêndice F). Tal

proposta foi concebida com base na ideia já discutida anteriormente de que

determinados gêneros textuais como conto, ficção e diário, podem ser mais

propícios à assunção da autoria (OLIVEIRA, 2001; CORRÊA, 2003; ALMEIDA et al.,

2007; GIRALDI, 2010; COSTA, 2011; TOMIO, 2012) e, dessa forma, apresenta uma

situação fictícia de viagem no tempo para enfrentar o preconceito racial. No capítulo

a seguir, realizamos o movimento de seleção dos textos produzidos pelos alunos

com base nos objetivos e pergunta de pesquisa para então, efetivamente analisá-los

como corpus.

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3 ANÁLISE DOS DADOS

Dos 39 alunos da turma, 14 elaboraram e entregaram as produções textuais

solicitadas ao final da sequência didática. Dentre os gêneros textuais escolhidos

presentes nas produções podemos citar: carta, reportagem de jornal, narrativa ou

ficção, história em quadrinhos e artigo de opinião.

Conforme comentado anteriormente, para a realização da análise dos textos

dos alunos, utilizaremos um dispositivo analítico (GALIETA, 2013) elaborado com

base na AD (ORLANDI, 2002) que é constituído de três etapas: a constituição do

corpus, a descrição do corpus e a interpretação do objeto discursivo.

3.1 CONSTITUIÇÃO DO CORPUS

A primeira etapa do dispositivo analítico trata da delimitação do material bruto

a ser analisado de acordo com o objetivo do analista, a natureza do material e a

pergunta de pesquisa.

Já enunciamos aqui nossa pergunta de pesquisa e com base nela

construímos nosso objetivo que consiste em caracterizar produções textuais escritas

de alunos do ensino fundamental em aulas de ciências com relação à autoria e ao

letramento científico numa perspectiva humanística. Ao estabelecermos relações

entre autoria e letramento científico (seção 1.4), concluímos que a “assunção da

autoria” no contexto das aulas de ciências implica em uma utilização de

conhecimentos científicos em contextos mais amplos e em uma ressignificação

destes contextos, o que contribui para uma transformação da sociedade, em

consonância com uma perspectiva humanística de letramento científico. É com base

nisso e na natureza do material a ser analisado – produções escritas por alunos no

âmbito de uma determinada sequência didática – que podemos, portanto, delimitar o

corpus da pesquisa.

Em uma primeira análise das 14 produções textuais obtidas ao final da

sequência didática realizada, verificamos que nem todas apresentavam

conhecimentos científicos, como podemos verificar na figura a seguir (Figura 1).

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Figura 1 - Exemplo de produção textual sem conceitos científicos.

Ao apresentar a proposta de atividade final (Apêndice F) a professora-

pesquisadora enfatiza sua expectativa em relação à utilização de conhecimentos

científicos como podemos observar na transcrição a seguir:

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vocês vão ter que usar argumentos científicos [ênfase na palavra] que vocês aprenderam pra discutir a questão do racismo [...] lembrem-se da importância de falar sobre a ciência, tem que ter ciência aí também, tá?

No entanto, apesar da solicitação expressa tanto na fala da professora-

pesquisadora como na construção do texto da proposta de atividade final entregue

aos alunos (Apêndice F), observamos a ausência de conhecimentos científicos em

outras quatro produções textuais, tal como no exemplo anterior (Figura 1). Segundo

Orlandi (2002, p. 82), “ao longo do dizer, há toda uma margem de não-ditos, que

também significam”. Esse silêncio em relação aos conhecimentos científicos

trabalhados em sala de aula pode indicar uma falta de clareza a respeito deles ou da

atividade proposta, ou ainda, a simples preferência pela mobilização de argumentos

de natureza distinta, como o respeito ao próximo apesar das diferenças, verificado

no texto acima. Cabe ressaltar que essa “preferência” por determinados argumentos

pode não ser intencional, mas sim um acontecimento discursivo, um efeito de leitura,

resultado da inscrição de certos discursos, e não de outros, na memória do aluno.

Podemos refletir ainda sobre a efetiva participação dos conhecimentos

científicos em questões sociais como a étnico-racial, que foi tema da sequência

didática. Durante a primeira aula da sequência o conceito biológico de raça foi

apresentado, mas também a reivindicação dos movimentos sociais pelo uso do

termo foi discutida. Nessa aula foi exposta a opinião de Frei David Santos, diretor do

Movimento Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro) e

defensor da política de cotas, a respeito das pesquisas genéticas que tentam

“desracializar” os negros23:

Nunca vi nenhuma batida policial em ônibus, por exemplo, que antes de discriminar perguntasse à pessoa quantos por cento de genes afro ela teria. [...] A discriminação e o discriminador, que tantos estragos trazem ao tecido social brasileiro, não vêem na genética os argumentos para parar de discriminar. No entanto querem que o discriminado pare de lutar por seus direitos porque 'todos temos genes afro'.

Para Frei David, portanto, a questão racial no Brasil está centrada na estética

e não na genética. Assim como Frei David, os cinco alunos que produziram textos

sobre racismo sem conhecimentos científicos podem, de alguma forma, entender

23 Essa parte da sequência didática (Apêndice C) foi elaborada com base em reportagem da BBC

disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/05/printable/070507_dna_freidavid_cg.shtml.

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que os conhecimentos científicos apresentados em sala de aula, apesar de estarem

relacionados à questão étnico-racial, não são suficientes, pertinentes, ou mesmo

importantes para a discussão da questão, que é muito mais ampla, demandando

enfoques de aspectos diversos.

Com base nos textos desses alunos, consideramos que pode sim ter ocorrido

uma ressignificação dos contextos do racismo e de sua posição na sociedade pelos

alunos, mas que tal ressignificação não se deu, necessariamente à luz dos

conhecimentos científicos discutidos em sala de aula. Isso gera um conflito com um

dos objetivos específicos do trabalho que consiste em identificar e selecionar

produções textuais dos alunos que apresentam conhecimentos científicos em

contextos amplos. Tal objetivo foi elaborado levando em consideração que para o

letramento científico é necessária a mobilização de conhecimentos científicos.

Entendemos que os conhecimentos científicos discutidos nas aulas podem sim ter

contribuído para a produção dos textos desses alunos, colaborando de alguma

forma para uma ressignificação de contextos e de visão de sociedade, mas quando

o aluno não explicita em seu texto esses conhecimentos, isso nos impede de

confirmar tal apropriação. Além disso, esse tipo de abordagem não explícita de

conhecimentos científicos dificulta o estabelecimento de relações concretas entre

autoria e letramento científico como pretendido no presente trabalho.

Certamente que não podemos simplesmente afirmar que, devido à ausência

de conhecimentos científicos, o aluno não se constituiu como autor. No entanto, tais

produções não nos possibilitam analisar os sentidos construídos para

conhecimentos desta natureza em contextos sociais mais amplos.

Dessa forma, o corpus da análise é composto pelos textos dos alunos que

mobilizam conhecimentos científicos apresentados durante a sequência didática em

contextos sociais mais amplos. Assumindo esse critério de delimitação do corpus,

verificamos que 9 (nove) das 14 produções entregues ao final da sequência

constituem-se efetivamente como objeto de análise dessa pesquisa. Tais textos

encontram-se disponíveis na íntegra na seção de anexos.

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3.2 DESCRIÇÃO DO CORPUS

Na segunda etapa do dispositivo analítico utilizado, descrição e interpretação

relacionam-se, e o corpus bruto começa a tornar-se objeto discursivo através da

análise da materialidade linguística dos textos, ou seja, o quem diz, o como se diz e

em que circunstância é dito.

No capítulo 2 (Delineamento da pesquisa) nos dispomos a apresentar

algumas das condições de produção dos textos dos alunos, e dessa forma, uma

caracterização da turma (seção 2.1.2) em que foi realizada a sequência didática.

Com base nela, podemos afirmar que os produtores dos textos analisados – quem

diz – de forma geral, fazem parte de um grupo de alunos do 8º ano do ensino

fundamental, entre 13 e 14 anos, que permanece na mesma turma desde o 6º ano e

que tem uma história de sucesso escolar e de gosto pela leitura. A partir da

descrição dos textos, destacaremos o que pode ser dito em relação à posição

assumida pelos sujeitos da pesquisa, trazendo à tona, dessa forma, alguns aspectos

individuais do “quem diz”.

Compreendemos que as “histórias de leitura” dos alunos integram não só a

constituição do sujeito-leitor-escritor, como também as circunstâncias do dizer, e que

tais histórias não se circunscrevem apenas às leituras e contextos das aulas da

referida sequência didática. Apesar de não ser nossa intenção explorar a questão

das histórias de leitura dos alunos, até por conta da dificuldade em conhecê-las em

sua totalidade, conseguimos identificar duas influências bem marcantes em dois dos

textos dos alunos – os gibis da Turma da Mônica, na história em quadrinhos do

aluno AK; e o livro infanto-juvenil “A droga da obediência”, na estória/carta da aluna

NA. Acreditamos que a leitura desses gêneros textuais no cotidiano dos dois alunos

é constituinte de suas histórias de leitura e, por isso, funcionam como um pano de

fundo dos textos autorados por eles.

As circunstâncias do dizer incluem também aspectos das condições de

produção já abordadas anteriormente: a produção ocorre no âmbito de uma

sequência didática elaborada dentro de uma perspectiva humanística de letramento

científico, que busca relações entre o conhecimento científico – a respeito de

assuntos como o conceito biológico de espécie e de raças, evolução, adaptação e

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seleção natural e surgimento e dispersão da espécie humana – e aspectos sociais –

racismo e preconceito.

Com o objetivo de abordar o como se diz, descrevemos a seguir cada um dos

textos a ser analisado, entendendo que assim poderemos identificar características

textuais mais específicas a partir das quais será possível mergulhar no espaço

interpretativo, próxima etapa do dispositivo analítico utilizado. Ao final das

descrições, para melhor organização e visualização dos dados, apresentamos um

quadro-síntese das mesmas.

Texto 1 (Anexo 1): AC

A aluna AC parece tentar aproximar-se dos moldes de um gênero jornalístico,

apresentando um título do que seria a sua matéria – “Pesquisas indicam que todos

somos iguais, somos da mesma família” – e um subtítulo – “Das pesquisas

resultaram o declínio do racismo” – que seria um protótipo de lide24. Percebe-se pelo

título e subtítulo uma intenção de objetividade (uso de terceira pessoa), típica deste

gênero25. Além disso, o texto é datado: “Sábado 10/05/14” – três dias antes da

entrega à professora. É possível notar, no entanto, que essa data foi retificada, e

através do corretivo utilizado pela aluna lê-se o ano de 3030. Identificamos, portanto,

que a ideia inicial da aluna era escrever uma notícia do futuro, atendendo à proposta

da atividade de realizar uma viagem no tempo.

Podemos afirmar que o texto gira em torno de duas informações científicas

discutidas durante a sequência didática: a polêmica do uso do termo raça para seres

humanos e o surgimento da espécie na África. O conhecimento sobre a origem da

espécie na África pode ser observado no seguinte trecho: “percebemos que o

24 Lide é uma estratégia da teoria do jornalismo em que logo no primeiro parágrafo de uma

reportagem o texto da reportagem deve responder as seguintes questões básicas: Quem? O que? Como? Onde? Quando? Por quê? (PENNA, 2007). A aluna não seguiu esses critérios para construção de seu lide, mas claramente tenta se aproximar disso ao colocar um subtítulo em destaque no seu texto. 25

Cabe ressaltar que no corpo da reportagem escrita pela aluna verificamos também o uso da primeira pessoa do plural, mas ainda assim, o texto se aproxima do gênero jornalístico. Os gêneros caracterizam-se muito mais por suas funções comunicativas, cognitivas e institucionais que por suas peculiaridades linguísticas e estruturais. Para a definição de um gênero textual predominam critérios de ação prática, circulação sócio-histórica funcionalidade, conteúdo temático, estilo e composicionalidade. Por exemplo, uma carta pessoal não deixa de ser uma carta mesmo que a autora tenha esquecido de assinar o nome no final e só tenha dito no ínicio “Querido amigo” (MARCUSCHI, 2005).

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mundo, a nossa nação nasceu a parti [sic] da África”. Segundo o texto da aluna, as

pesquisas citadas no título e subtítulo da notícia “se aprofundaram até a África, onde

nasceu a tal ‘raça’.” Na primeira aula da sequência didática, aspectos científicos e

culturais do uso do termo raça foram problematizados e o conhecimento da aluna a

respeito da polêmica envolvendo o assunto fica evidenciado no uso das aspas ao

utilizar a palavra.

Na notícia fictícia de AC, por causa das pesquisas que “se aprofundaram até

a África”, “o mundo passou a tratar pessoas que não são iguais de cor, cabelo,

família e etc, melhor, ou seja, não existe mais divisão em raças”. É interessante

perceber a importância que a aluna dá a ciência, numa perspectiva na qual as

“descobertas” das pesquisas são as responsáveis pela diminuição do racismo no

mundo e por causa dela “o racismo agora é proibido, dá cadeia total”. Para essa

aluna, portanto, a ciência ocuparia um lugar de autoridade para tratar da questão do

racismo e a ausência de divisão em raças estaria relacionada a um melhor

tratamento às “pessoas que não são iguais”. AC assume, portanto, que o racismo

implica em “tratar mal” quem não é “igual” e “igual” aqui é quem se alinha a uma

estética branca, que é privilegiada na sociedade atual.

Texto 2 (Anexo 2): AK

Nem todos os alunos seguiram a proposta de imaginar uma viagem fictícia no

tempo para produção de seus textos, como podemos observar na produção do aluno

AK. Ainda assim, o racismo e as questões científicas a ele relacionadas foram tema

principal do texto do aluno. Em seu trabalho, AK elabora uma típica história em

quadrinhos de narrativa gráfico-visual composta por quadros, desenhos e balões

com diálogos entre personagens (MARCUSCHI, 2005). Em sua história, AK utiliza

recortes de figuras de dois personagens da Turma da Mônica – Franjinha e

Pelezinho – que o aluno nomeia de Zezinho e Pelé. Na estória, ao ser chamado de

“Negão” por Zezinho, Pelé repreende o amigo dizendo “Sou igual a você, só tem um

pouco mais de melanina”. Ao perceber que Zezinho não sabia do que se tratava a

melanina, Pelezinho prossegue dizendo: “Melanina é uma substância que dá a

pigmentação da pele e em grande quantidade protege dos raios UV do Sol”.

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Verificamos, portanto, que o aluno AK, apesar de não produzir seu texto com

base na ideia proposta de viagem no tempo, ele utiliza um conhecimento científico

discutido em sala (a produção de melanina) para combater o que, na opinião do

aluno, seria uma atitude racista. O sentido que AK constrói sobre racismo está

apoiado no desconhecimento de um conceito científico (a pigmentação da pele por

melanina), que faz com que um negro seja apelidado de “negão”, enquanto, por

outro lado, não faça sentido chamar um branco de “brancão”.

Texto 3 (Anexo 3): WE

O aluno WE produz uma tipologia textual predominantemente narrativo, com

verbos no passado e um circunstancial de tempo (MARCUSCHI, 2005). Sua

narrativa se aproxima de uma história de ficção científica, na qual um homem

constrói uma máquina do tempo em 2018 para viajar ao futuro e acabar com o

preconceito. Mas ao chegar ao futuro, o homem vê “pessoas bem vestidas, com

aparências quase iguais” e conclui que no futuro não há preconceito. O personagem

volta para casa, dizendo que “vai acontecer uma coisa histórica para acabar com o

preconceito, então é melhor deixar as coisas do geito que está [sic]”, pega seu lençol

e, então, vai “tirar um belo cochilo”.

Com base em discussões que aconteceram em sala de aula, é possível

concluir que o aluno acredita que no futuro o preconceito não existirá simplesmente

porque, por conta da intensa miscigenação, as pessoas teriam “aparências quase

iguais”, não havendo mais diferenças na cor da pele. Por isso, o personagem decide

voltar pra casa e “tirar um belo cochilo” simplesmente porque não há nada a ser feito

para acabar com o preconceito, pois o próprio rumo natural das coisas daria um jeito

na situação.

WE foi o único aluno de todo o grupo, inclusive entre os alunos que

produziram textos sem conhecimentos científicos, que se autodeclarou negro. É

interessante que, apesar disso, o aluno coloca seu personagem em uma atitude

passiva em relação ao preconceito.

Ao afirmar que vê “pessoas bem vestidas, com aparências quase iguais”, WE

cria um futuro em que não só a aparência das pessoas é igual, mas também sua

vestimenta. Podemos entender do discurso de WE que todas as pessoas

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encontradas por ele no futuro, além de terem aparência semelhante, vestem-se

“bem”, o que pode ser também associado a uma igualdade em relação à condição

financeira. WE deve entender, portanto, que com o racismo atual, as pessoas

brancas ocupam posições privilegiadas na sociedade em relação às demais, o que

lhes confere um maior poder econômico que permite que estejam “bem vestidas”.

Texto 4 (Anexo 4): IS

No texto da aluna IS verificamos as estruturas básicas de uma carta: seção

de contato – “Querido amigo”; núcleo da carta e seção de despedida – “Tchau te

vejo no futuro”. O corpo das cartas permitem variados tipos de comunicação (pedido,

agradecimento, informações, intimação...), por isso, cartas com diferentes funções

(mesmo sendo caracterizadas pela mesma estrutura básica) apresentam naturezas

distintas (SILVA, 1997 apud BEZERRA, 2005). As cartas, em geral, apresentam

predominância de tipologia descritiva e expositiva, mas permitem variadas tipologias

textuais (MARCUSCHI, 2005), de acordo com o tipo de comunicação. Observamos

que na carta de IS mesclam-se sequências de várias tipologias, como a narrativa

(“Eu viajei”), a expositiva26 (“nosso DNA é igual, mas não idêntico”), a injuntiva27

(“não julgue o livro pela capa”) e a argumentativa28 (“Para mim, o preconceito é coisa

de gente que não evoluiu o pensamento (...). Graças a Deus que aqui no futuro as

pessoas aceitam mais umas as outras”).

A produção textual de IS é escrita em primeira pessoa do singular, mas não é

assinada. Trata-se de uma carta de um “viajante do futuro” (sem gênero definido –

não sabemos se é uma viajante ou um viajante) que vem de um tempo “onde não há

preconceitos” para alguém (um “querido amigo”) no passado. Cabe ressaltar que

apesar de todo o enredo criado pela aluna, em que o remetente da carta é um

viajante do futuro e o destinatário, um amigo com ideias eugênicas, a carta na

verdade apresenta um interlocutor real – a professora de ciências – e o lugar do

locutor é o de aluno. Por isso, a carta apresenta, por exemplo, explicações de cunho

26 Textos expositivos apresentam predomínio de sequências analíticas ou então explicitamente

explicativas (MARCUSCHI, 2005, p. 29). 27

Textos injuntivos apresentam o predomínio de sequências imperativas (MARCUSCHI, 2005, p. 29). 28

Textos argumentativos se dão pelo predomínio de sequências contrastivas explícitas (MARCUSCHI, 2005, p. 29).

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científico e não foi assinada ao final, mas sim entregue com uma capa na qual a

aluna identificou-se com seu nome completo, seu número da chamada e sua turma.

Logo no início da carta o viajante (que seria o locutor virtual ou imaginário) faz

alusão a Eugenia, assunto abordado na sequência didática ao discutir as raízes

científicas do racismo: “Para mim [sic] o preconceito é coisa de gente que não

evoluiu o pensamento, adoradores da Eugenia”. Aqui é produzido um sentido

bastante específico para preconceito: a “adoração” da Eugenia. O assunto também

aparece em um post-scriptum ao final da carta: “No futuro você vai ser caçado e

morto por exigir a eugenia”. O termo Eugenia não é comum nos contextos sociais

nos quais esses alunos em geral fazem parte e, mesmo tendo sido utilizado na aula,

poderia ser difícil lembrá-lo. Por isso, entendemos que a discussão a respeito da

Eugenia em sala de aula deve ter sido muito marcante para IS, já que ela não

apenas recuperou o termo em seu texto, mas também lhe atribuiu sentidos

relacionados a conhecimentos científicos, demonstrando que o inscreveu em sua

memória discursiva.

A similaridade genética, outro assunto abordado nas aulas da sequência,

também foi utilizada no seguinte fragmento do texto na construção da explicação da

aluna: “A verdade mesmo [sic] que nós somos uma única raça de aspectos diferente

[sic] entre outras coisas que nos diferenciam, mas o ponto é que nosso DNA é igual,

mais [sic] não idêntico, isso é DNA parecidos”. Fica claro que IS, além de ter se

apropriado de um termo científico no seu texto (DNA), entendeu que não existem

raças biológicas na espécie humana por causa da grande semelhança genética

entre indivíduos, mas ao mesmo tempo, o DNA de diferentes indivíduos não é

idêntico, mas “parecido”.

A aluna IS ressalta também a importância da ciência na aceitação das

diferenças: “Graças a deus [sic], aqui no futuro as pessoas aceitam mais umas as

outras. Isso só foi possível porque as Ciências ajudou [sic] muitas pessoas

preconceituosas a se da [sic] conta que todos somos ‘iguais’ e nossas origens

vieram da África.” (grifo nosso). Aqui, o fim do preconceito é atrelado a ciência e sem

ela, isso não seria possível.

Observando ainda este trecho, ao colocar a palavra iguais entre aspas, a

aluna pode estar querendo sinalizar um entendimento de que somos indivíduos com

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diferenças, apesar das similaridades. Nesse trecho, o sentido de preconceito, antes

limitado à adoração da Eugenia, é ampliado pela integração do aspecto de

“aceitação” das diferenças já que no futuro “as pessoas aceitam mais umas as

outras”.

IS aborda outro conhecimento científico discutido em sala neste trecho – a

origem da espécie humana na África – e em seguida, afirma que o viajante sabe

disso por ter viajado ao passado e ao “futuro do futuro”.

Texto 5 (Anexo 5): KA

O texto de KA, assim como o de IS, apresenta estrutura básica de carta, com

seção de contato (“Querido amigo”), núcleo em primeira pessoa do singular que

mescla tipologias como a narrativa (“em um sábado, passando pela rua, encontrei

um relógio”) e a injuntiva (“deixe de ser racista”). Também como IS, KA não assina a

carta, mas sim, se identifica na capa do trabalho, marcando seu lugar de aluna que

escreve no contexto de uma aula de ciências para a professora, sua real

interlocutora. Mas diferente de IS, que apresenta um “eu” personificado no “viajante

do futuro”, KA parece se apresentar enquanto sujeito, ela mesma como locutora da

carta. A aluna escreve para um amigo racista (interlocutor virtual) contando sua

viagem a um futuro em que a maioria da população é racista: “Fiquei ‘chocada’.

Então peguei a pessoa mais preconceituosa e levei para o passado, ele viu de onde

veio, de onde veio a raça dele mesmo ele sendo branco descobriu que viemos de

um mesmo ancestral”. O conhecimento científico utilizado pela aluna como base

para enfrentar o preconceito, portanto, é a questão da ancestralidade comum de

todos os seres humanos.

Sua posição em relação ao racismo é demarcada na afirmação “Fiquei

‘chocada’”, o que pode nos dizer um pouco sobre a imagem que faz de si mesma:

ela não se considera uma pessoa racista.

Texto 6 (Anexo 6): NA

Observamos novamente no texto de NA a presença do gênero textual carta,

mas NA apresenta não só o “eu” do personagem que escreve a carta, mas também

um “eu” de um narrador que conta, ao final do texto, depois da carta, o destino que

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ela (a carta) teve. A aluna escreve uma carta deixada por um cientista chamado

Marius Caspérides, que viveu em 1888, relatando sua viagem no tempo e lida pela

princesa Isabel. Observamos como a aluna constrói um enredo criativo no qual o

fictício relato da viagem no tempo teria sido a responsável por um acontecimento

histórico real – a assinatura da Lei Áurea, que motivou o fim da escravidão de

negros no Brasil. Aqui percebemos uma valorização da ciência e do papel do

cientista, já que a influência dele é capaz de determinar os rumos da história.

O nome do cientista da estória de NA é o mesmo nome de um personagem

do livro “A Droga da Obediência”, livro infanto-juvenil de suspense disponível na

Sala de Leitura da escola e muito popular entre os alunos, demarcando um intertexto

feito pela aluna no texto de sua autoria. Na estória, Marius Caspérides é um cientista

bioquímico criador de uma droga, a droga da obediência, que foi desenvolvida por

ele para tratar casos de loucura, mas acaba sendo utilizada em jovens de São Paulo

pelo “Dr. Q.I.”, o vilão da estória.

Na carta elaborada por NA, Marius Caspérides afirma que “o motivo de eu

escrever isso é para registrar toda a jornada da minha pesquisa, e o motivo de eu

fazer essa pesquisa é que, eu estou cansado de ver os negros sofrerem tanto com a

discriminação”. A aluna, portanto, opta por ressaltar a questão histórica da

escravidão e o sofrimento que isso causou aos negros, mas não aborda como essa

relação de escravidão teria influenciado o racismo nos tempos atuais.

A aluna localiza no tempo e no espaço a viagem realizada: “Voltei nos tempos

antes de Cristo, um pouco depois dos dinossauros serem extintos, para ser mais

específico. Fui direto para a África, pois lá tem bastante pessoas negras”. É

interessante observar que a aluna aponta que o cientista foi para a África não por

causa do surgimento da espécie humana lá, mas devido à quantidade de pessoas

negras na região. A aluna NA também traz a questão da adaptação da espécie

humana a diferentes condições e ambientes, apontando o macaco como o ancestral

do homem:

Reparei que conforme bilhares e bilhares de anos, a nossa espécie foi evoluindo, a partir de um macaco. Com isso, vi que as cores de pessoas são determinantes do ambiente que vivem, agora não mais [...] várias espécies foram se espalhando pelo mundo, a procura do seu habitat favorável, assim sendo criado [sic] as cores de pessoas variadas. Então, somos todos iguais, sei que para você é loucura mas tenho a máquina do tempo como prova.

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Ao final da carta há uma observação do cientista que mais uma vez

demonstra a valorização do lugar ocupado pela ciência e da autoridade do cientista:

“Não use a máquina do tempo se não for especializado em ciências pois correrá

orrendos [sic] riscos, caindo em lugares errados.”

Texto 7 (Anexo 7): RI

O aluno entregou sua produção textual (uma carta) em um envelope com

dizeres que podem ser observados na reprodução abaixo:

Figura 2 – Reprodução do envelope de carta do aluno RI (o nome do aluno foi apagado para que sua identidade seja preservada)

Portanto, além da estrutura básica de carta, com seção de contato (“Olá meu

caro amigo”) e da linguagem em primeira pessoa do singular, a produção do aluno

foi entregue em um envelope, como uma carta pessoal. Apesar do envelope estar

endereçado a professora, a carta de RI é destinada a um amigo. Isso nos faz pensar

sobre o lugar de onde RI e todos os demais alunos escrevem e para quem

escrevem. Mesmo criando personagens e situações distintas, o texto é destinado à

professora e foi escrito no contexto das aulas de ciências. Como o gênero textual

escolhido pelo aluno não é usual nas aulas de ciências, RI vê a necessidade de se

justificar perante o destinatário real do texto – a professora – dizendo que “viajou na

maionese” ao escrever sua carta. Nela RI relata uma viagem no tempo que fez com

o amigo (interlocutor virtual da carta), para que ele não pense que tudo não passou

de um sonho ao acordar.

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No texto do aluno verificamos a presença de um conhecimento científico

discutido em sala de aula – o surgimento da espécie humana na África – que pode

ser exemplificada pelo seguinte fragmento: “diga-me se você continua sendo

preconceituoso diante desta ironia [...] é uma ironia engraçada, você tem preconceito

racial, e [sic] mas surgimos da África”.

Na carta, RI conta que ele e o destinatário (interlocutor virtual) viajaram em

uma máquina do tempo construída pelo seu “tio maluco” “até a era em que a nossa

árvore genealógica estivesse preste [sic] a se espalhar pelo mundo” (grifo do aluno).

O tio explica aos dois que o lugar para onde foram era a África “e que as criaturas

que viviam lá iriam originar a espécie humana”. O aluno prossegue dizendo que “no

momento eu não vi muitas [criaturas], mas elas iriam se multiplicar e espalhar sobre

os continentes, (...) se adaptando em áreas diferentes e até mesmo assumindo

diferentes formas, cores, pensamentos...”.

O fato de representar o desenvolvedor da máquina do tempo como um tio

“maluco” demonstra uma determinada visão de cientista, que se distancia de uma

pessoa comum. E a necessidade em se justificar com a professora pelo enredo

fantástico de sua estória (quando escreve “Viajei na maionese”), uma visão sobre o

quê e como se escreve nas aulas de ciências, que destoa da proposta de produção

textual da sequência didática apresentada.

Texto 8 (Anexo 8): YU

O aluno YU, assim como WE, produz um texto de tipologia

predominantemente narrativa, com verbos no passado e um circunstancial de tempo

(MARCUSCHI, 2005), escrito em primeira pessoa do singular, que se aproxima de

uma história de ficção científica.

Sua história relata uma viagem até o ano de 2050 onde “o racismo foi ‘extinto’

há dois anos” e o termo preto não é utilizado desde 2020. No futuro, ele e um amigo

visitam um laboratório de um cientista que “disse que estudos mostraram que somos

todos iguais, e que a única diferença do negro com o branco era que o negro

possuía mais melaina [sic] e nada mais”.

O aluno não especifica que conhecimentos estão por trás dos “estudos”

científicos de sua estória que mostraram que “somos todos iguais”, mas podemos

suspeitar que ele promove um intertexto com a reportagem lida em sala de aula de

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título “Somos todos um só”, que aborda a questão da similaridade genética entre

diferentes etnias.

A visita a um laboratório de um “cientista renomado” que conversa com eles

sobre a “igualdade” humana e a sobre melanina demonstra uma representação do

cientista como uma voz de autoridade para abordar a questão do racismo. Cabe

ressaltar que em outro trecho de seu texto, YU chama o cientista de “médico”.

O sentido de racismo presente no texto de YU parece se reduzir às relações

interpessoais, a forma de se referir às pessoas negras, pois no diálogo apresentado

pelo aluno entre os amigos que viajam no tempo e uma moça que estava indo para

o trabalho, o fim do racismo é associado ao fato do termo “preto” não ser mais

utilizado. A postura de YU diante do racismo pode ser apreendida pelo trecho em

que ele exprime o sentimento dos amigos ao descobrirem que o racismo não existia

no futuro: “estavamos [sic] chocados e felizes”. Além disso, ao voltar da viagem no

tempo, os amigos espalham “para o mundo que o racismo é desnecessário”. A partir

desses trechos nos parece que o aluno não se considera racista e deseja que no

futuro o racismo não exista.

Texto 9 (Anexo 9): JE

A aluna apresenta uma produção que se aproxima de um artigo de opinião

sobre o racismo. Segundo Moirand (1999 apud CUNHA, 2005), o artigo de opinião

expõe o ponto de vista de um jornalista ou de um colaborador do jornal, comentando

algo já dito e fazendo uso do presente do indicativo. JE faz uso do presente do

indicativo de forma predominante em seu texto e logo no início dele afirma que

“Nossos antepassados, como muitos sabem, ou acreditam, vieram da África, mas

discordo disso, pois como eles se espalharam tão rápido?” (grifo nosso). A aluna

portanto, além de trazer algo já dito (“como muitos sabem ou acreditam”), expõe seu

ponto de vista a respeito do assunto (“discordo disso”).

JE expressa algumas questões científicas discutidas na sequência didática

em seu artigo de opinião, mas parece ou questioná-las, ou ter muitas dúvidas a

respeito delas:

Se nossos ancestrais não vêm dos macacos, então como nascemos? De onde vem nossa história? Do que somos feitos? Somos todos iguais, apesar de termos gostos diferentes. Sabemos que, na realidade, tudo tem explicação, pois como houveram pessoas que viveram por um longo

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tempo? Como isso é possível? Sabemos que, atualmente, nenhum ser humano consegue viver por tantos anos. Se o primeiro ser [que] existiu na Terra foi a bactéria, como aparecemos assim, de repente? Como é possível nossa existência? Será que fomos gerados da bactéria, ou de outro ser que existiu antes de sabermos que nossa existência vem do macaco? Pois, diz a ciência que o macaco é parecido com os humanos.

Como vimos no primeiro trecho destacado do texto da aluna, ela até mesmo

se opõe a uma teoria científica (a da origem da espécie humana na África). É

interessante a distinção feita entre saber e acreditar nessa passagem do texto; algo

que talvez demonstre a sua posição a respeito dos conhecimentos científicos: ela

pode até saber a respeito deles, conhecê-los, mas não necessariamente acredita

neles como verdades em sua vida.

Tal posicionamento de questionamento da “verdade” presente na ciência

pode estar relacionado a alguma filiação religiosa cristã, que parece evidenciada em

dois trechos de sua produção. No primeiro deles, ao falar sobre o racismo a aluna

afirma “que racismo não é legal, mas há muitas pessoas com o racismo no coração.

Eles não sabem o que fazem.” O trecho final – “Eles não sabem o que fazem” – se

aproxima daquilo que Jesus teria dito sobre seus algozes durante sua crucificação.

No segundo trecho, no parágrafo já abordado anteriormente em que vários

questionamentos se sucedem, a aluna pergunta “como houveram [sic] pessoas que

viveram por um longo tempo? Como isso é possível? Sabemos que, atualmente,

nenhum ser humano consegue viver por tanto tempo.” A alusão a pessoas que

viveram por um longo tempo parece estar relacionada a conhecidos personagens

bíblicos. Principalmente no livro de Gênesis da Bíblia, encontramos inúmeras

passagens que relatam uma longa vida daqueles que seriam os nossos ancestrais,

descendentes de Adão e Eva, tal como Matusalém. O texto da aluna, portanto,

evidencia uma inscrição no âmbito de um discurso religioso que pode, em certos

aspectos, tais como os da origem e evolução da espécie humana, entrar em conflito

com o discurso científico.

As crenças religiosas de JE, portanto, constituem condições de produção de

seu texto. Mesmo ele tendo sido produzido no contexto de uma aula de ciências,

não é o ponto de vista científico que é privilegiado em sua produção, mas outros

valores que estão em jogo.

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QUADRO 2 - Síntese da descrição do corpus

Texto/Aluno

Gênero textual

Descrição

1/ AC Jornalístico

Consiste em notícia do futuro que anuncia declínio do racismo como resultado de pesquisas que indicam que “todos somos iguais”;

Faz alusão a polêmica do uso do termo raça para seres humanos e ao surgimento da espécie na África;

Ciência é colocada em lugar de autoridade para tratar questão do racismo;

Ausência de divisão em raças relacionada a um melhor tratamento às “pessoas que não são iguais”.

2/AK História em quadrinhos

Utiliza recortes de figuras de personagens da Turma da Mônica (Franjinha e Pelezinho);

Conhecimento científico (pigmentação da pele por melanina) para combater uma atitude considerada racista (chamar um negro de “negão”).

3/WE História de

ficção científica

Consiste em narrativa na qual homem constrói máquina do tempo para viajar ao futuro e acabar com o preconceito;

Conclui que no futuro não existirá preconceito por conta da miscigenação, que acabaria com diferenças de cor da pele, “homogeneizando” população mundial;

Atitude passiva em relação ao preconceito;

Único aluno que se autodeclarou negro.

4/IS Carta

Carta de um viajante de um futuro sem preconceitos;

Interlocutor virtual: amigo com ideias eugênicas – Interlocutor real: professora de ciências;

Aborda questão da similaridade genética entre diferentes grupos étnicos e origem da espécie humana na África;

Valorização da ciência para fim do preconceito.

5/KA Carta KA (locutora) escreve para um amigo racista (interlocutor virtual)

contando sua viagem a um futuro onde a maioria da população é racista;

Aborda a questão da ancestralidade comum de todos os seres humanos.

6/NA Carta

Apresenta um “eu” do personagem que escreve a carta – cientista “Marius Caspérides” (nome de um personagem do livro “A droga da Obediência”) que viveu em 1988 e viaja ao passado para acabar com a discriminação contra os negros – e um “eu” narrador – que conta o que acontece quando a carta do cientista é encontrada;

Valorização da ciência e do papel do cientista: relato da viagem no tempo teria sido responsável pelo fim da escravidão no Brasil;

Aborda questão da origem da espécie humana na África e de sua adaptação a diferentes condições e ambientes;

7/RI Carta

Interlocutor virtual: amigo preconceituoso – interlocutor real: professora;

Narra viagem em máquina do tempo construída por um “tio maluco” que explica a origem da espécie humana na África – cientista como autoridade;

RI justifica enredo fantástico (“Obs.: Viajei na maionese”), demonstrando determinada visão sobre o quê e como se escreve nas aulas de ciências.

8/YU História de

ficção científica

Narra viagem de dois amigos a um futuro onde não há mais racismo;

Aborda a questão da quantidade de melanina como diferença entre negros e brancos;

Traz a ciência e o cientista em lugares de autoridade;

Assim como nos demais textos, o sentido de racismo parece se reduzir às relações interpessoais;

9/JE Artigo de opinião

Questiona surgimento da espécie humana na África, colocando em dúvida conhecimento científico;

Evidencia filiação a alguma religião cristã.

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3.2.1 Descrição do corpus: mais algumas considerações

Analisando a descrição dos textos de forma geral, podemos destacar

primeiramente como todas as produções silenciaram aspectos culturais dos negros

enquanto um grupo social, caracterizando-os apenas pelas suas diferenças estéticas

e genéticas em relação aos brancos. Isso pode ter relação com a forma como a

sequência didática foi realizada, privilegiando uma abordagem pelo viés científico,

apesar de trazer à tona aspectos históricos e sociais e de apontar a existência – mas

sem exemplificá-las ou explorá-las – de diferenças culturais entre diferentes grupos

étnicos. Já destacamos aqui como que, ao apresentar a proposta de atividade final,

a professora-pesquisadora confere grande valor à presença de conhecimentos

científicos nos textos dos alunos. Esse status de importância aos aspectos

científicos pode, portanto, ter contribuído para o silenciamento de outros aspectos do

racismo. Ainda assim, alguns dos alunos acabam por citar outras diferenças entre

indivíduos da espécie humana que vão além da cor de pele: “pensamentos” (aluno

RI), “gostos” (aluna JE) e “família” (aluna AC).

Chamamos atenção aqui para a noção de antecipação da AD, já adentrando

em um espaço onde se confundem as etapas de descrição e interpretação. Segundo

Orlandi (2002), todo sujeito antecipa-se quanto ao efeito que seu dizer pode produzir

em seu ouvinte. Dessa maneira, esse mecanismo dirige o processo de elaboração

do dizer visando seus efeitos sobre o interlocutor e produz imagens dos sujeitos,

assim como do objeto do discurso, dentro de uma conjuntura sócio-histórica

(ORLANDI, 2002, p. 40):

Temos a imagem da posição do sujeito locutor (quem sou eu para lhe falar assim?) mas também da posição sujeito interlocutor (quem é ele para me falar assim, ou para que eu lhe fale assim?), e também a do objeto do discurso (do que eu estou lhe falando, do que ele me fala?). É pois todo um jogo imaginário que preside a troca de palavras. E se fazermos intervir a antecipação, este jogo fica ainda mais complexo pois incluirá: a imagem que o locutor faz da imagem que seu interlocutor faz dele, a imagem que o interlocutor faz da imagem que ele faz do objeto discursivo e assim por diante.

O interlocutor no caso dos textos produzidos pelos alunos é a professora-

pesquisadora. Por mais que os alunos escrevam cartas para destinatários fictícios,

como vimos no caso de RI, o interlocutor real dos textos é, na verdade, a professora

de ciências da turma. A imagem que os alunos têm do que é esperado pela

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professora no contexto de uma sequência didática das aulas de ciências,

certamente, é parte das condições de produção desses textos, o que pode explicar a

preferência pelos aspectos científicos do racismo e evidencia, também, relações de

força entre quem lê e quem escreve.

Pelo mesmo motivo, entendemos que muitas das produções colocam a

ciência e o cientista em uma posição de destaque, representadas como vozes de

autoridade e até mesmo como responsáveis pelo fim da escravidão, do racismo e do

preconceito. Observamos que nas produções de NA, YU e RI as explicações de

cunho científico sobre questões relacionadas ao racismo são apresentadas por

personagens que são cientistas. A figura do cientista, portanto, é utilizada como

forma de legitimar o que é dito, entendendo a ciência como uma esfera social que

produz conhecimentos incontestáveis. Mesmo em outras produções em que não há

a representação de um cientista, a ciência é de alguma forma valorizada. Na história

em quadrinhos de AK, o personagem Pelé, ao perceber que Zezinho não sabe do

que se trata a melanina, pergunta a ele: “Você não estuda?”. E depois explica o que

vem a ser a substância ao amigo. Pelé, então, é colocado em um lugar de

autoridade para falar sobre a melanina, pois é alguém que estuda ciências. AC, por

sua vez, apresenta uma reportagem que anuncia um melhor tratamento às “pessoas

que não são iguais de cor, cabelo, família e etc” por causa de pesquisas que “se

aprofundaram até a África”. As pesquisas científicas, portanto, são apresentadas

como as responsáveis por uma melhoria nas relações sociais.

Tal visão positivista de ciência se contrapõe, de certa maneira, àquela

apresentada pela professora na primeira aula da sequência didática, que aponta a

participação da ciência nas raízes do racismo com o chamado racismo científico,

que culminou em ideias eugênicas para a espécie humana. Mesmo a aluna IS, que

abordou a eugenia em sua produção textual, salienta a importância da ciência:

“Graças a deus [sic], aqui no futuro as pessoas aceitam mais umas as outras. Isso

só foi possível porque as Ciências ajudou [sic] (...)”.

Entendemos que, assim como na questão do silenciamento em relação aos

aspectos culturais dos negros, mais uma vez, a forma como a sequência didática foi

realizada, privilegiando aspectos científicos da questão do racismo, pode ter

contribuído para o silenciamento dos aspectos negativos da ciência. Na parte inicial

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da primeira aula da sequência didática as questões do racismo científico e da

eugenia foram destacadas através de exemplos históricos como os da descrição

(nada neutra) das raças humanas por Lineu, que é considerado o pai da taxonomia

moderna, e das medições antropométricas para classificação dos judeus pelos

nazistas alemães. Em seguida, a professora-pesquisadora apresentou um slide

intitulado “E qual a posição da comunidade científica na atualidade?” (Figura 3), na

qual uma reportagem de 1998 da revista “Isto é”, de título “Somos todos um só”

(Apêndice A), foi lida com os alunos. A referida reportagem trata de uma pesquisa

internacional que, com base nas similaridades genéticas entre grupos de diferentes

etnias, mostra que não existem raças biológicas na espécie humana, “derrubando

qualquer base científica para a discriminação”29.

Figura 3 - Slide apresentado na primeira aula da sequência didática

E qual o posicionamento da comunidade científica na atualidade?

Reportagem da Revista Isto é, em 1998:

SOMOS TODOS UM SÓPesquisa genética internacional mostra que não existem raças na espécie humana, derrubando qualquer base científica para a discriminação.

Justamente por conta de como a questão foi apresentada na sequência

didática, com uma determinada visão de ciência e de sua influência em aspectos

sociais, o que pode ter prevalecido no imaginário dos alunos é a ideia de que a

ciência evoluiu e hoje ela é confiável. Desta forma, um possível sentido produzido

29 Disponível em http://www.icb.ufmg.br/labs/lbem/aulas/grad/evol/humevol/templeton/.

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estaria relacionado a noção de que mesmo que no passado a ciência tenha

cometido seus erros, ela se redimiu deles, na medida em que se contrapõe

atualmente a uma teoria que ela mesma ajudou a instituir: a das raças para os seres

humanos.

Procurando evidenciar alguns sentidos de racismo nos textos dos alunos,

primeiramente podemos afirmar que eles entendem racismo como algo negativo,

que “não é legal”, “não é bom”, que não é desejado no futuro. Uma aluna (NA) fez

alusão ao contexto histórico do racismo, abordando a escravidão dos negros e outro

(WE) chama, de alguma forma, a atenção para a desigualdade econômica, tão

discutida no contexto da sociedade atual, devido à diferença da cor da pele. Chamar

negros de “preto”, de “negão”, “tratar mal” e não “aceitar” quem não é “igual” foram

algumas das atitudes consideradas racistas pelos estudantes. Durante o debate

realizado ao final da sequência didática foram abordadas questões como as cotas

para negros em universidades e a relação delas com a desigualdade de

oportunidades para negros e brancos no mercado de trabalho, no entanto,

encontramos nos discursos dos alunos uma ênfase em aspectos relacionados às

relações interpessoais em detrimento de questões sociais, culturais ou econômicas.

Talvez WE tenha sido o único aluno que se aproximou do debate acerca da

desigualdade social e econômica ao abordar o tema racismo (e também foi o único

que se autodeclarou negro) imaginando um futuro em que todas as pessoas são

“bem vestidas” e de aparência quase igual. Observamos, assim, como que o “quem

diz” influencia nas escolhas do que é dito e valorizado.

A questão da “igualdade” é outro aspecto da descrição do corpus que precisa

ser ao menos mencionado, já que ela aparece de alguma forma em quase todos os

textos dos alunos. Em sua reportagem, AC afirma que “todos somos iguais, somos

da mesma família”; na história em quadrinhos de AK, o personagem Pelezinho

afirma “Sou igual a você, só tenho um pouco mais de melanina”; tanto a carta de NA

quanto a narrativa de ficção de YU apresentam a afirmação: “somos todos iguais”;

IS, assim como NA e YU, também afirma que somos todos iguais, mas coloca a

palavra iguais entre aspas; e finalmente, JE diz que “somos todos iguais, apesar de

termos gostos diferentes”. Observamos, primeiramente, uma polissemia associada

ao termo igualdade, que é significado de diferentes maneiras pelos alunos,

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produzindo deslocamentos de sentidos – enquanto para AC a igualdade está

relacionada à origem comum na África, para AK está relacionada à produção de

melanina, por exemplo.

Já a questão da “diferença” foi abordada pela professora em vários momentos

da sequência didática, tais como para destacar que apenas em gêmeos

monozigóticos o DNA pode ser considerado o mesmo, e ainda assim, “ninguém é

igual a ninguém”, por conta de fatores ambientais, culturais, individuais e que essa

diferença deve ser respeitada. Observamos em alguns dos trechos das produções

dos alunos que, apesar de tratarem de “igualdade”, deixam espaço para a

“diferença”– o Pelezinho de AK é diferente por que tem mais melanina; para JE,

apesar de sermos iguais, temos “gostos” diferentes. AC, em outro trecho, imagina

um futuro em que “o mundo passou a tratar pessoas que não são iguais de cor,

cabelo, família e etc melhor” (grifo nosso). Talvez o trecho mais significativo a esse

respeito seja o da aluna IS, que ao dizer que “somos todos iguais”, coloca a palavra

iguais entre aspas, como que entendendo que existe uma igualdade apesar da

diferença ou uma diferença apesar da igualdade. Tal discurso de diferença na

igualdade parece alinhar-se aos movimentos sociais contemporâneos (das

mulheres, dos negros, dos homossexuais, etc.) e à ideia de multiculturalismo, mas é

preciso reconhecer a polissemia que os termos igualdade e diferença podem

apresentar e que é possível identificar diferentes sentidos para eles ao longo da

história. Não é nosso interesse, no entanto, aprofundar discussões a respeito do

tema, mas apenas apontar aspectos recorrentes dos textos dos alunos30.

A partir das descrições e considerações realizadas nesta seção,

pretendemos, a seguir, adentrar efetivamente na interpretação do objeto discursivo,

focando aspectos relacionados à questão da autoria e ao letramento científico numa

perspectiva humanística, que são focos deste trabalho.

30 Sobre esse debate, ver Pierucci (1990) e Candau (2012).

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70

3.3 INTERPRETAÇÃO DO OBJETO DISCURSIVO

Nesta última etapa do dispositivo analítico, a interpretação do objeto

discursivo descrito se dá a partir do que interessa ser analisado de acordo com a

pergunta e objetivo da análise. No contexto dessa pesquisa nos interessa analisar

aspectos dos textos que se relacionem com autoria e letramento científico

humanístico.

3.3.1 Marcas da função-autor

Orlandi (2002) define a função-autor ao lado da função-locutor e da função-

enunciador. A função-locutor seria aquela na qual o sujeito se representa como “eu”

no discurso e a função-enunciador, a perspectiva de como esse “eu” se constrói. A

função-autor, por sua vez, seria a função que o “eu” assume enquanto produtor de

linguagem e produtor de textos e seria aquela em que o sujeito está mais afetado

pelo contato social e suas imposições, em que o discurso se inscreve no sujeito

resultando em um apagamento deste último.

Ao analisar algumas das produções textuais dos alunos, no entanto, o que se

observa ao invés de um apagamento do sujeito, é a intenção de demarcação de sua

posição. A aluna IS, por exemplo, ao dizer “Para mim, o preconceito é coisa de

gente que não evoluiu o pensamento” (grifo nosso), ela tenta assinalar o que seria a

sua opinião sobre o preconceito, se colocando na origem do dizer. Não podemos

esquecer, no entanto, que todo discurso é atravessado por interdiscursos, por já-

ditos, e a aluna, ao tentar demarcar qual seria a sua posição, demonstra a ilusão do

discurso do sujeito ter origem nele mesmo e a ordem de esquecimento no qual o

sujeito ignora que todo discurso tem origem em outro. De forma semelhante, a aluna

JE demarca sua posição de sujeito ao falar, por exemplo: “[eu] acho que qualquer

preconceito não é válido” (grifo nosso). As demais produções textuais observadas,

no entanto, não deixam que o leitor “entreveja” facilmente o sujeito produtor

daqueles textos, o que aproximaria, portanto do apagamento do sujeito do qual nos

fala Orlandi (2002) e da função-autor. Esses textos, mesmo quando construídos na

primeira pessoa do singular, o fazem por meio de personagens de uma estória, que

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podem ser representações (conscientes ou inconscientes) do próprio sujeito, mas

que não nos permite uma identificação direta com ele.

O “desvelamento” do sujeito verificado nas produções de IS e JE, no entanto,

não significa que seus textos não apresentem marcas de autoria. Possenti (2002,

pg. 110), em trabalho que pretende “dar alguma objetividade à noção de autoria”,

descreve e exemplifica dois indícios que observamos nas produções das alunas. Um

dos indícios apresentados por este autor é o movimento de “dar voz explicitamente a

outros” (idem), incorporando ao texto discursos correntes, por meio de aspas ou

citações, por exemplo. JE, em sua produção, ao falar sobre a ideia de origem da

espécie humana na África e sobre a semelhança entre seres humanos e macacos,

destaca que esse é um discurso de outros que não ela: “como muitos sabem, ou

acreditam”; “Pois, diz a ciência”. IS, por sua vez, apresenta ao final de sua produção

um ditado popular entre aspas – “Não jogue [sic] o livro pela capa” – um discurso

corrente sobre o julgamento pela aparência que é utilizado pela aluna para tratar do

preconceito aos negros.

Ao “dar voz a outros”, os discursos de IS e JE passam a relacionar-se com

outros discursos, faz com que tenham historicidade. Dessa forma, JE e IS

historicizam seus dizeres, inscrevem suas formulações no domínio do interdiscurso,

produzindo algo interpretável. Manifestam, assim, uma das marcas de autoria

apresentadas por Possenti (2002). Não podemos ignorar ainda que, de alguma

forma, todas as produções do corpus incorporaram textos oriundos do discurso

científico e, dessa forma, também “dão voz” a discursos outros.

A outra marca discursiva apresentada por Possenti (2002) indicadora da

autoria é o que ele chama de “manter distância”, algo que marca uma posição em

relação ao dizer do sujeito e ao interlocutor:

Se, numa conversa, suspendem “o que estão dizendo” para explicar-se, diante de alguma reação do outro, visível ou imaginável, é disso que se trata (o locutor diz, por exemplo, “não pense que estou exagerando”, e olhe que não sou bairrista”, etc). Também é frequente que os enunciadores explicitem em que sentido estão empregando certas palavras, ou que se voltem sobre o que disseram para resumir, retomar, etc. (POSSENTI, 2002, p. 114)

Naquilo que Possenti (2002) chamou “manter a distância”, enxergamos um

“mecanismo de antecipação”, cuja noção foi previamente esclarecida. Destacamos

que a imagem que os alunos têm do que é esperado pelo seu leitor real – a

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professora de ciências – fundamenta a preferência pelos aspectos científicos do

racismo e a atribuição de um lugar destaque para a ciência em seus textos.

Percebemos, no entanto, que em decorrência da escolha de determinados gêneros

textuais, como a carta, os alunos escrevem também para um leitor/interlocutor

“virtual” – um amigo a quem a carta se destina, por exemplo. Nesse “jogo” que o

aluno entra ao escrever na escola, percebemos algumas demarcações de posições

em relação não só ao dizer e ao interlocutor real, mas também ao interlocutor virtual.

A aluna NA, por exemplo, escreve um texto que consiste em uma carta que teria

sido escrita por um personagem – um cientista que constrói uma máquina do tempo

– que ao relatar sua fantástica viagem a um leitor virtual, afirma: “sei que para você

é loucura [sic] mas tenho a máquina do tempo como prova”. Dessa forma, a aluna

desenvolve seu texto com base em uma imagem de seu interlocutor virtual – um

outro personagem que leria a carta deixada pelo cientista – que pode vir a ser

qualquer pessoa que reconheça a estória de viagem no tempo uma loucura. Assim

como NA, outros alunos estabelecem diálogos com um interlocutor virtual: “então,

quando você me enviar uma outra carta, diga-me se você continua sendo

preconceituoso” (RI); “Sabe como sei disso?!” (IS); “então, deixe de ser racista!! Se

não o próximo poderá ser você!” (KA); “Se você é consciente” (JE). Cabe observar

que o interlocutor virtual presente em cada uma dessas falas é diferente, pois está

relacionada ao imaginário de cada sujeito. Além disso, essa estratégia de diálogo

com o interlocutor assume diferentes funções em cada um dos textos: em alguns, o

aluno convida o leitor a refletir sobre algum argumento previamente exposto, em

outros, o aluno se justifica ou simplesmente busca chamar a atenção daquele com

quem ele está dialogando.

Para Possenti (2002), a autoria é não só resultado de uma posição

enunciativa, mas um efeito simultâneo dessa posição e de um jogo estilístico.

Verificamos que alguns textos dos alunos apresentam aspectos que poderiam ser

considerados como verdadeiras marcas de estilo – estrutura de questionamentos ao

leitor (JE) e ironia (WE), por exemplo:

Se nossos ancestrais não vêm dos macacos, então como nascemos? De onde vem nossa história? Do que somos feitos?. (JE) Voltou para sua casa e disse “vai acontecer uma coisa histórica para acabar com o preconceito, então é melhor deixar as coisas do jeito que está [sic]”. Pegou o seu lençol e foi tirar um belo cochilo”. (WE)

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Notamos ainda a tentativa de todos os alunos em desenvolver suas narrativas

com um desenlace, muitas das vezes, impactante. Vejamos a produção de NA, a

título de exemplo, que como já vimos, é uma produção que apresenta um “eu”

cientista que escreve uma carta relatando sua viagem no tempo e um “eu” narrador

que informa ao leitor o destino da carta após a morte do cientista (um dia depois de

escrever a carta). Na narrativa de NA, a carta foi encontrada e entregue à Princesa

Isabel que, após lê-la, decreta o fim da escravidão com a Lei Áurea. A data da carta

do cientista é 12/05/1888, logo, o dia em que a Princesa leu a carta e decretou o fim

da escravidão é dia 13 de Maio de 1888, data que efetivamente se atribui à abolição

da escravidão pela Lei Áurea no Brasil. A produção da aluna ainda apresenta uma

nota dizendo “Hoje, dia: 13/05/2014 se comemora o dia da lei Áurea.” – e realmente,

por coincidência que não foi prevista nem notada até então pela professora, a data

de entrega das produções dos alunos se deu no dia 13 de Maio. NA, portanto, se

vale de uma data comemorativa para escrever seu texto, traz dados históricos que o

compõem (dando, mais uma vez, voz a outros discursos, historicizando seu dizer) e

ainda aposta em uma memória mínima do leitor (real ou virtual) para entendimento

da sutileza de sua construção.

Agustini e Grigoletto (2008) buscaram discutir a relação entre os conceitos de

escrita, alteridade e autoria no quadro teórico da AD de linha francesa. Para eles, o

sujeito se constitui autor de um texto em um constante movimento entre

singularidade – em que o sujeito constrói sua identidade própria, característica – e

alteridade – em que são estabelecidas relações de identificação com o outro.

Focando nosso olhar para as relações com o discurso científico nos textos dos

alunos, notamos que a grande maioria deles estabelece identificação com o discurso

científico na medida em que o valoriza e que o coloca em um lugar de autoridade,

muito provavelmente por antecipar o que é esperado pela professora. No entanto,

uma das produções chamou nossa atenção por, exatamente, “fugir a essa regra”. JE

produziu um texto no qual a “verdade” da ciência é questionada e sua posição de

discordância com a ideia de que surgimos na África é demarcada. Conforme nos

aponta Orlandi (2002), é na função-autor que a determinação do sujeito pela

ideologia se revela. Para Tfouni e Assolini (2008, p. 4), “a ideologia, através do

processo da naturalização, apaga a possibilidade de emergência de outros sentidos,

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ou a polissemia”. Assim, enquanto os demais alunos revelaram uma determinação

pela ideologia de valorização do discurso científico, JE parece resistir a essa

determinação. Essa resistência, no entanto, nos parece ser motivada pela inscrição

de JE em outra estrutura social – a religião. Como apontamos na descrição do texto

de JE, ele revela marcas que apontam para um discurso religioso que, em certos

aspectos, tais como os da origem e evolução da espécie humana, entra em conflito

com o discurso científico. Entendemos que JE, ao resistir a uma determinação pela

ideologia de valorização da ciência, revela uma determinação por outra ideologia: a

religiosa.

É interessante notar como se dá no texto da aluna esse embate com a

ciência. Ela refuta a ideia do surgimento de nossa espécie na África – “Nossos

antepassados, como muitos sabem, ou acreditam, vieram da África, mas discordo

disso (...)” – e justifica a discordância por uma impossibilidade da espécie ter

dominado toda a extensão do planeta no que ela julga ser um período curto de

tempo – “pois como eles se espalharam tão rápido?”. No entanto, o aspecto

temporal do surgimento e dispersão da espécie foi abordada nas aulas da sequência

didática. Podemos observar, a seguir, a transcrição de um trecho do vídeo “Origem

Humana” (o vídeo pode ser visto na internet, em link disponibilizado na seção 2.1.3

deste trabalho) que foi apresentado na segunda aula da sequência didática:

[...] há cerca de duzentos mil anos uma nova espécie evoluiu na África. Esses foram os primeiros homens modernos, os primeiros membros da nossa espécie. Os ancestrais de cada ser humano vivo atualmente. Todos nós podemos rastrear nosso DNA até a origem Africana. Ao longo do tempo, populações de Homo sapiens se deslocaram da África para Europa e Ásia ocidental. [...] Enquanto espécies humanas primitivas se extinguiam, os homens modernos continuaram a se espalhar pelo mundo. Há cerca de dezessete mil anos atrás Homo sapiens era não só uma espécie mundial, era a única espécie humana sobrevivente. Nós deixamos para trás uma trilha de fósseis, evidências da nossa épica jornada global.

Após a apresentação do vídeo, a professora leu com os alunos uma

reportagem31 da revista Ciência Hoje das Crianças que trata do mesmo assunto do

vídeo – origem e dispersão da espécie humana – e que também apresenta a

questão temporal da dispersão dos Homo sapiens:

31 A referida reportagem encontra-se disponível na íntegra na relação de apêndices deste trabalho.

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Você já deve ter ouvido falar que nosso parente mais distante viveu na África. (...) Cerca de cento e vinte mil anos atrás, o Homo sapiens, considerada a espécie humana atual, deu início a essa jornada. O caminho começou subindo o continente africano até passar pelo vale do Rio Nilo e penetrar na Ásia. Depois, seguiu para o Oriente Médio e ingressou nas Américas pelo Alasca, descendo até o Brasil (veja o mapa abaixo). Longa caminhada, não?

Ao final da leitura do texto a professora prosseguiu com a apresentação de

um slide que pode ser visto na figura 4. A transcrição de um trecho da fala da

professora durante esta apresentação segue abaixo:

Então aí nesse texto tá confirmando que a espécie humana surge sessenta mil anos atrás... surge na verdade há cento e vinte mil anos, só que há sessenta mil anos começa a se espalhar pela Terra. Olha aqui (apontando para a figura do slide): sessenta... cinquenta... quarenta... isso aqui já é quarenta mil anos, aqui é trinta... foram lá para a Europa... dez mil anos... foram aqui para a América do Norte... depois pra América do Sul. (...) Então eu tô mostrando que a gente surge da África... a espécie.

Figura 4 – Slide apresentado na segunda aula da sequência didática que aborda a dispersão da

espécie humana

Notamos que, para tentar esclarecer e localizar em uma escala de tempo os

eventos de origem e dispersão da espécie humana, a professora se vale de

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diferentes recursos – vídeo, reportagem, imagem. Mesmo assim, JE parece não ter

compreendido a explicação sobre escala temporal (que reconhecemos como nada

trivial) ou ainda, não tê-la aceitado, quando questiona “como eles se espalharam tão

rápido? (grifo nosso)”. Interessante observar que o argumento utilizado pela aluna

para questionar o surgimento da espécie na África bem poderia ser utilizado, da

mesma forma, para questionar o discurso religioso recorrente no qual a origem dos

seres humanos se dá a partir da criação de Adão e Eva. Mas a determinação do

sujeito pela ideologia o impede, de alguma maneira, de aceitar o discurso científico.

A AD de linha francesa é fruto do diálogo entre três áreas do conhecimento –

Psicanálise, Linguística e Marxismo. Refletindo sobre o que faz com que JE não

entenda/aceite a questão temporal da dispersão da espécie humana, podemos

explorar a noção de “censura psíquica”. Em seu trabalho sobre escrita, alteridade e

autoria, Agustini e Grigoletto (2008, p. 155) nos esclarecem que

Em perspectiva psicanalítica, no processo de censura, o censurador e o censurado habitam o mesmo corpo. Ela é um meio de defesa que visa a evitar conflitos psíquicos, eliminando da consciência ideias intoleráveis ao sujeito. Evitar um conflito não é resolvê-lo. As ideias censuradas persistem, esforçam-se para retornar à consciência. Mantê-las à distância implica um gasto de energia e a incapacidade de o sujeito dispor livremente de seus recursos.

JE, portanto, pode simplesmente ter ignorado as informações dadas pela

professora sobre o grande tempo geológico gasto pela população humana para se

espalhar sobre a Terra, “mantendo-as à distância”, para que seu questionamento

sobre a ciência faça sentido e para evitar um conflito com seus ideais religiosos.

Esta é uma possibilidade de interpretação, dentre as várias que podem existir.

Ainda explorando esse viés psicanalítico, ao invés de atribuir ao texto de WE

uma tentativa do aluno de construir uma narrativa com ironia, com um desenlace

impactante, podemos realizar uma outra interpretação com base na noção de

“censura psíquica” para entender o fato do aluno ter produzido um texto que

apresenta postura passiva diante do racismo e do preconceito. Diferente dos demais

alunos que, tal como YU, mesmo tendo descrito um futuro onde racismo e

preconceito não mais existem, ao retornar ao presente, ele espalha “para o mundo

que o racismo é desnecessário”, WE, ao ver um futuro com “pessoas bem vestidas,

com aparecias [sic] quase iguais”, retorna ao presente e conclui que “é melhor deixar

as coisas do geito [sic] que está [sic]”. Não podemos encarar como simples acaso

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que WE, sendo o único aluno do grupo que se autodeclara negro, tenha sido

também o único que não descreve nenhuma atitude em relação ao racismo em sua

narrativa. Imaginamos que também exista alguma intencionalidade (mesmo que

inconsciente) de WE quando ele cria um futuro em que efetivamente deixa de existir

a diferença de cor de pele entre brancos e negros com base em uma ideia científica

apresentada pela professora durante a aula.

Souza (1999), ao tratar do inconsciente e das condições de autoria, cita um

trecho de Laporte (1984, p. 6 apud SOUZA, 1999) que fala de um “risco corporal”

associado ao ato de escrever do escritor:

O risco corporal é imediato, pois não há nada que garanta que o golpe de estilo – podemos pensar também em estilete, pois é esta a origem da palavra estilo – não escorregará do corpo da língua a minha própria carne envenenada pela palavra, pela letra ou frase destinada a um Outro excessivamente familiar.

A ideia de um “Outro”, ao qual se refere Laporte, está associada à noção de

inconsciente da psicanálise e é pensando na escrita como forma de expressão do

inconsciente que sua função terapêutica tem sido evidenciada (TFOUNI, 2008).

Entendemos que, se reconhecendo como negro, talvez seja difícil para WE

encarar a questão do racismo e do preconceito e que tratar do assunto se aproxime

da metáfora exagerada de Laporte em que a “própria carne [é] envenenada pela

palavra”. Imaginar um futuro em que todos têm o mesmo tom de pele – “aparências

iguais” – pode representar um alento e “deixar as coisas do jeito que estão”, uma

fuga do conflito, uma censura psíquica.

Tratamos aqui nesta seção de alguns aspectos gerais da autoria que

identificamos a partir da interpretação dos discursos constituintes das produções dos

alunos. A seguir discutiremos aspectos da autoria nos quais reconhecemos relações

com o letramento científico.

3.3.1.1 Compreensão, repetições e o letramento científico

Um conceito teórico da AD que nos parece importante para a análise da

questão da autoria em relação com o letramento científico é a noção dos níveis de

repetição. Discutimos anteriormente que haveria três níveis de repetição: a empírica

ou mnemônica, a formal ou técnica e a histórica. Na primeira, o sujeito é apanhado

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pelos dizeres já estabelecidos e estaciona, apenas repete, sem estabelecer um lugar

para fazer sentido, sem realizar deslocamentos, num “efeito papagaio”, sem

necessariamente entender o que diz; na segunda, o sujeito diz a mesma coisa, mas

de outro modo através de técnicas de reformulação de frases, de formulação da

forma linguística (prática que é, por vezes, valorizada na escola, mas que não

produz deslocamento do sujeito); na terceira, o sujeito elabora novos sentidos,

produzindo deslocamentos, mergulhando o dizer na memória, expressando sua

própria ideologia e não apenas “decorando” ou “devolvendo” o que foi dito.

Na perspectiva de nossa pesquisa, o letramento científico humanístico se dá

quando o aluno consegue transpor conhecimentos científicos aprendidos em sala de

aula para contextos sociais mais amplos. Temos como hipótese de pesquisa que os

alunos, ao produzirem determinados gêneros textuais, estão mais propícios a se

constituírem como autores no contexto científico escolar, e dessa forma, a

desenvolverem uma criticidade indispensável para este tipo de letramento científico.

Podemos, portanto, analisar os níveis de repetição nos textos dos alunos em

relação aos conhecimentos científicos discutidos em sala de aula para entender

como se dá a autoria nesses textos e qual a relação dela com o letramento científico

em uma perspectiva humanística. Para isso, destacamos no quadro a seguir

(Quadro 3) trechos das produções dos alunos em que observamos a mobilização de

conhecimentos científicos que foram discutidos em sala durante a sequência

didática.

Podemos identificar nesses trechos a mobilização de diversos conhecimentos

que foram abordados na sequência didática, tais como: a polêmica sobre o termo

raça, a questão da grande similaridade genética entre todos os seres humanos, o

surgimento da espécie humana na África e nossa ancestralidade comum, a

quantidade de melanina como fator responsável pela cor da pele, a diversidade da

nossa espécie associada à adaptação a diferentes ambientes, o surgimento dos

primeiros seres vivos, a Eugenia e a provável aparência do ser humano no futuro.

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QUADRO 3 – Trechos das produções textuais que apresentam conhecimentos científicos

Identificação dos textos-

alunos Trechos

1-AC

“Pesquisas indicam que todos somos iguais; somos da mesma família. (...) Pesquisas indicam que todos nós somos iguais, mas para ter tal afirmação se aprofundaram até a África onde nasceu a tal ‘raça’. Daí dela percebemos que o mundo, a nossa nação

nasceu a parti [sic] da África.”

2-AK

“Sou igual a você, só tenho um pouco mais de melanina que você! (...) A melanina é uma substância que dá a pigmentação da pele e em grande quantidade protege dos

raios UV do Sol. Você que tem a pele branca deve ter mais cuidado com os raios solares utilizando protetor solar para evitar problemas mais tarde e até o câncer de

pele.”

3-WE “Ao chegar lá [no futuro] viu pessoas bem vestidas, com aparecias [sic] quase iguais”

4-IS

“Para mim o preconceito é coisa de gente que não evoluiu o pensamento, adoradores da Eugenia (...) todos nós somos ‘iguais’ e nossas origens vinheram [sic] da África (...) A verdade mesmo que nós somos uma única raça de aspectos diferente entre

outras coisas que nos diferenciam, mas o ponto e que nosso D.N.A. e igual, mais não idêntico, isso e D.N.A. parecidos”

5-KA “peguei a pessoa mais preconceituosa e levei para o passado, ele viu de onde veio,

de onde veio a raça dele mesmo ele sendo branco descobriu que viemos de um mesmo ancestral.”

6-NA

“Voltei nos tempos antes de Cristo, um pouco depois dos dinossauros serem extintos, para ser mais específico. Fui direto para a África (...) Nessa viajem doida de algumas horas, reparei que conforme bilhares e bilhares de anos, nossa espécie foi evoluindo, apartir de um macaco. Com isso, vi que as cores de pessoas são determinantes do

ambiente que vivem, agora não mais, pois com a tecnologia avançada não corremos muitos se locomoviam de lugares para outros lugares, para ter mais conforto, sendo assim, várias espécies foram se espalhando pelo mundo, a procura do seu habitat

favorável, assim sendo criado as cores de pessoas variadas.”

7-RI

“até a era em que a nossa árvore genealógica estivesse preste [sic] a se espalhar pelo mundo (...) estávamos sobre uma área “deserta” e muito quente. Meu tio nos

explicou que aquele lugar era a África e que as criaturas que viviam lá iriam originar a espécie humana, no momento eu não vi muitas, mas elas iriam se multiplicar e se

espalhar sobre os continentes, formando assim essa nossa evolução, se adaptando em áreas diferentes, até mesmo assumindo diferentes formas, cores, pensamentos...

(...) é uma ironia engraçada, você tem preconceito racial, e [sic] mas surgimos da África.”

8-YU “fui em um laboratório, onde conversei com um cientista renomado (...) ele me disse que estudos mostraram que somos todos iguais, e que a única diferença do negro

com o branco era que o negro possuia mais melaina [sic] e nada mais”

9-JE

“Nossos antepassados, como muitos sabem, ou acreditam, vieram da África, mas discordo disso, pois como eles se espalharam tão rápido? (...) Se nossos ancestrais não vêm dos macacos, então como nascemos? (...) Se o primeiro ser que existiu na

Terra foi a bactéria, como aparecemos assim, de repente? (...) Será que fomos gerados da bactéria, ou de outro ser que existiu antes de sabermos que nossa

existência vem do macaco? Pois, diz a ciência, que o macaco é parecido com os humanos.”

Essa diversidade de aspectos abordados na sequência didática

possivelmente favoreceu a valorização de alguns deles, em detrimento de outros,

nos discursos dos alunos. Este processo de seleção e inclusão de determinados

conhecimentos científicos pelos alunos pode ter se dado pelo fato de alguns se

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mostrarem mais significativos (entendendo significativo com algo que “significa

alguma coisa” para o sujeito em consonância com sua memória discursiva) que

outros para cada um deles. Um dos assuntos que merece destaque por verificarmos

que foi o mais recorrente nos textos dos alunos é a questão do surgimento da

espécie humana na África. Talvez esse tenha sido o assunto mais recorrente por ser

surpreendente para os alunos pensarem que todos os povos que vivem hoje na

Terra tiveram sua origem justamente no continente africano, uma região que é

geralmente associada à extrema pobreza e a pessoas negras.

No quadro abaixo (Quadro 3) podemos observar o quê (conhecimentos

científicos) foi mobilizado pelos alunos para a partir daí, comparar como esses

conhecimentos foram enunciados por eles, em suas produções textuais, e pela

professora durante a sequência didática.

QUADRO 4 – Relação de conhecimentos científicos discutidos em sala de aula que ocorreram nos

textos de cada um dos alunos

Conhecimentos científicos abordados nas aulas presentes nos textos dos alunos

Identificação dos textos-Alunos que escreveram cada texto

1-AC 2-AK 3-WE 4-IS 5-KA 6-NA 7-RI 8-YU 9-JE

Polêmica sobre termo raça (n=2) X X

Similaridade genética (n=2) X X

Surgimento da espécie na África (n=5) X X X X X

Melanina (n=2) X X

Ancestralidade comum (n=3) X X X

Aparência da espécie humana no futuro (n=1)

X

Eugenia (n=1) X

Adaptação da espécie a diferentes ambientes (n=2)

X X

Surgimento dos primeiros seres vivos (n=1)

X

Parentesco com macacos (n=2) X X

Temos como pressuposto que todo discurso se inscreve na ordem do

repetível, que para fazer sentido, se relaciona com outros dizeres já ditos, mas que o

sujeito, ao dizer, tem a ilusão de ser origem de seu discurso, o que na AD

chamamos de “esquecimento ideológico” ou “esquecimento número um” (ORLANDI,

2002, p. 35). Entendemos, assim, que os textos lidos em sala de aula, a fala da

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professora e dos colegas, bem como os vídeos e apresentações utilizadas durante a

sequência didática podem ser identificados como origem de determinados discursos

materializados nos textos dos alunos – como “fontes de repetição” – e que o nível

das repetições relacionadas a esses discursos pode ser analisado. Por outro lado,

compreendemos que muitas outras podem ser as fontes de repetição dos textos dos

alunos, que envolvem toda sua história de leitura sobre o assunto da sequência

didática. Ainda assim, nos restringiremos à análise dos dados que efetivamente

temos condições de acessar – as gravações em áudio e vídeo das aulas da

sequência didática e todo o material (textos, vídeos e apresentações) utilizado nela.

Selecionamos, a seguir, alguns dos conhecimentos científicos apresentados

durante as aulas que foram mobilizados pelos alunos para servirem de exemplos

expressivos de como se dá a relação entre repetição, autoria e letramento científico.

Conhecimento científico: Origem da espécie humana na África

Como vimos anteriormente, na segunda aula da sequência didática o vídeo

“Origem Humana” foi apresentado aos alunos (o vídeo pode ser visto na internet, em

link disponibilizado na seção 2.1.3 deste trabalho). Trazemos aqui a transcrição do

áudio de todo o trecho do vídeo que aborda a questão da origem da espécie

humana na África:

Nós hoje podemos traçar nossas origens até pelo menos 6 milhões de anos atrás, na África, onde os mais antigos humanos evoluíram. Várias espécies primitivas humanas evoluíram ali e viveram em uma variedade de ambientes e climas antes de evoluírem em novas espécies ou se extinguirem. Há cerca de 2 milhões de anos algumas populações de humanos primitivos começaram a se espalhar para fora da África. Por centenas de milhares de anos populações se deslocaram até a Ásia, onde enfrentaram desafios de novos ambientes e climas. Novas espécies continuaram a evoluir e, eventualmente, se extinguiram. Então há cerca de 200 mil anos uma nova espécie evoluiu na África. Esses foram os primeiros homens modernos, os primeiros membros da nossa espécie. Os ancestrais de cada ser humano vivo atualmente. Todos nós podemos rastrear nosso DNA até a origem Africana. Ao longo do tempo, populações de Homo sapiens se deslocaram da África para Europa e Ásia ocidental. Em alguns desses lugares as espécies humanas primitivas viveram à beira da extinção. (...) A certo ponto, a população da nossa espécie foi reduzida a não mais que 10 mil adultos. Nós quase nos tornamos extintos. Mas nós somos uma espécie adaptável. Nossa habilidade de usar nossos traços humanos para encontrar novos desafios nos permitiu sobreviver. Enquanto espécies humanas primitivas se extinguiam, os homens modernos continuaram a se espalhar pelo mundo. Há cerca de 17 mil anos atrás Homo sapiens era não só uma espécie mundial, era a única espécie humana sobrevivente.

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Logo após a apresentação do vídeo “Origem Humana”, a professora fez o

seguinte comentário a respeito da questão:

Bom, então, o que tá sendo dito aí nesse vídeo é que a espécie humana teria surgido onde? [Alunos respondem: Na África.] Na África [repete a professora, em tom de confirmação ao que os alunos responderam]. Ironia, não? Estamos falando de racismo e a espécie humana veio da África.

O prosseguimento da aula se deu com a leitura de uma reportagem da revista

Ciência Hoje das Crianças (disponível na íntegra na relação de apêndices). O trecho

da reportagem que trata da origem da espécie humana na África já foi apresentado

anteriormente na seção 3.3.1, bem como o slide (Figura 4) e a transcrição de um

trecho da apresentação da professora a respeito dele.

A professora retomou a questão do surgimento da espécie humana nessa

aula para falar sobre a expansão da variabilidade genética, como podemos observar

nos slides utilizados disponíveis nas Figuras 5, 6 e 7.

Figura 5 – Slide apresentado na segunda aula da sequência didática sobre origem humana e

variabilidade genética

Origem humana e variabilidade genética

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Figura 6 – Slide apresentado na segunda aula da sequência didática sobre origem humana e

variabilidade genética

Figura 7 – Slide apresentado na segunda aula da sequência didática sobre origem humana e

variabilidade genética

Podemos observar, a seguir, a transcrição do áudio do trecho em que a

professora apresenta esses slides aos alunos:

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E a gente vê aqui, voltando então lá na estória da... do surgimento da espécie, lá na África isso, né? Imagina que essas bolinhas aqui são seres humanos, né? Da espécie humana, da espécie Homo sapiens. Só que a gente viu que ninguém é igual a ninguém, certo? Ninguém é igual a ninguém. Aqui essas bolinhas tão representando... Cada bolinha é um tipo de DNA que tem lá. É todo mundo DNA de ser humano, mas são ligeiramente diferentes, variáveis. Eu tô mostrando a variabilidade genética que tinha lá na África. A variabilidade genética era bem grande. Tinham pessoas bem diferentes umas das outras ali na África há 200... 100 mil anos atrás [apontando para relógio da figura 5]. Se eu continuar avançando com o relógio [passando para próximo slide], eu já aumento a variabilidade... a variabilidade não aumentou, que as cores são as mesmas, mas aumenta a quantidade, né? Foi aumentando a população aqui... e aumentando a população... [passando para próximo slide – Figura 6] e, essa população tá fazendo o quê? Tá se expandindo geograficamente. Já tá ocupando a África toda. Já tá começando a ir pra onde? [Alguns alunos respondem Ásia, outros Europa]. (...) Olha aqui, continua se espalhando, se expandindo... [passa para slide da figura 7].

Traçamos até aqui, portanto, um panorama sobre o que foi dito (e como foi

dito) a respeito da origem da espécie humana na África durante as aulas da

sequência didática por meio de textos, vídeos e slides, bem como, da fala da

professora. Entendendo que tudo isso pode ser considerado como fonte de

repetição dos alunos, analisaremos agora o que foi dito (e como foi dito) pelos

alunos sobre o mesmo conhecimento científico.

Conforme exposto no quadro 3, cinco alunos (AC, IS, NA, RI e JE)

mobilizaram em suas produções escritas a questão do surgimento da espécie

humana na África. Para fins de uma exposição mais clara, destacamos do quadro 2

apenas os trechos que abordam a questão e os apresentamos no quadro 4.

A aluna AC traz a ideia de que nossa “nação” nasceu a partir da África. Tal

termo (“nação”) não apareceu na aula e caberia, portanto, analisar se ao utilizá-lo, a

aluna está criando algum novo sentido (deslocando sentidos e, portanto, fazendo

uma repetição histórica). Parece-nos, no entanto, que apesar do vídeo “Origem

humana” e da fala da professora não terem feito qualquer referência à ideia de

nação, a reportagem da revista Ciência Hoje das Crianças lida em sala de aula, ao

apresentar um ponto de vista de um cientista brasileiro que refaz o caminho da

dispersão da espécie humana da África até nosso país, traz um enfoque que é

partilhado pela aluna em sua produção – o contexto brasileiro na dispersão da

espécie. Dessa forma, ela utiliza o termo “nação” e não “espécie humana” ou

“população humana” que seriam mais genéricos e poderiam ser utilizados para a

população mundial como um todo. Apesar de utilizar um termo diferente daquele

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apresentado em sala de aula, nesta parte do trecho de AC não percebemos um

deslocamento de sentidos, mas uma diferente maneira de dizer a mesma coisa – o

que caracteriza um dos aspectos da repetição formal ou técnica.

QUADRO 5 – Trechos das produções textuais que apresentam a questão da origem da espécie

humana na África

Identificação dos textos-

alunos Trechos

1-AC

“Pesquisas indicam que todos somos iguais; somos da mesma família. (...) Pesquisas indicam que todos nós somos iguais, mas para ter tal afirmação se aprofundaram até a África onde nasceu a tal ‘raça’. Daí dela percebemos que o mundo, a nossa nação

nasceu a parti [sic] da África.”

4-IS “Para mim o preconceito é coisa de gente que não evoluiu o pensamento, adoradores

da Eugenia (...) todos nós somos ‘iguais’ e nossas origens vinheram [sic] da África”

6-NA

“Voltei nos tempos antes de Cristo, um pouco depois dos dinossauros serem extintos, para ser mais específico. Fui direto para a África (...) Nessa viajem [sic] doida de

algumas horas, reparei que conforme bilhares e bilhares de anos, nossa espécie foi evoluindo (...)”

7-RI

“até a era em que a nossa árvore genealógica estivesse preste [sic] a se espalhar pelo mundo (...) estávamos sobre uma área “deserta” e muito quente. Meu tio nos

explicou que aquele lugar era a África e que as criaturas que viviam lá iriam originar a espécie humana, no momento eu não vi muitas, mas elas iriam se multiplicar e se

espalhar sobre os continentes, formando assim essa nossa evolução, se adaptando em áreas diferentes, até mesmo assumindo diferentes formas, cores, pensamentos...

(...) é uma ironia engraçada, você tem preconceito racial, e [sic] mas surgimos da África.”

9-JE “Nossos antepassados, como muitos sabem, ou acreditam, vieram da África, mas

discordo disso, pois como eles se espalharam tão rápido? (...)”

Ainda explorando o trecho destacado da aluna AC, algo que pode chamar a

atenção é o uso do termo “família”, já que todos os seres humanos são, na verdade,

da mesma espécie, e essa informação (que somos da mesma espécie) foi

largamente discutida na sequência didática. Ao assistir as gravações das aulas e

rever o material utilizado nelas (apresentações, textos e vídeos), no entanto,

verificamos que no vídeo “Nós os fantásticos seres vivos”, utilizado na primeira aula

da sequência didática, as semelhanças entre diferentes mamíferos são abordadas e

a narradora afirma:

essas semelhanças acontecem porque estes animais são como que da mesma família (...) na verdade, todos os animais são como que uma grande família (...) Na verdade, podemos pensar em todos os seres vivos como fazendo parte da grande árvore da vida. (...) No caso da árvore da vida o tronco é como o antepassado único.

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É possível que a aluna tenha simplesmente seguido a linha de raciocínio

apresentada no vídeo para falar especificamente dos seres humanos – somos da

mesma família, pois todos os seres humanos têm um antepassado único. O sentido

de “família” no trecho da aluna não está relacionado propriamente à classificação

taxonômica de família, mas à ideia de que todos os seres humanos partilham um

antepassado comum. Novamente, não identificamos um deslocamento de sentido

para a questão da origem da espécie na África em relação ao que foi dito durante a

sequência didática, mas uma maneira própria de dizer a mesma ideia que foi

apresentada em sala de aula.

Da mesma maneira, se realizamos a análise dos demais trechos dos alunos

sob esse enfoque na forma do dizer e no deslocamento dos sentidos em relação aos

conhecimentos científicos, a tendência é concluirmos que os alunos realizaram

repetições formais. Consideramos, no entanto, que essa tendência está relacionada

a uma peculiaridade do discurso científico escolar. Segundo Christensen e Fensham

(2012), a ciência escolar tradicional está baseada em um corpo de conhecimentos já

bem estabelecidos e consolidados e sua aprendizagem envolve a reprodução desse

conhecimento estático e de princípios que conduzem a uma única resposta correta.

Dentro desse contexto de conhecimentos estáticos e de princípios que conduzem a

uma única resposta correta, não há espaço para uma ampla polissemia, mas sim

para um processo de restrição dos sentidos, característico do discurso pedagógico

escolar que é classificado por Orlandi (1996b) como discurso autoritário. Como nos

aponta Tfouni e Assolini (2008), a interpretação no discurso pedagógico escolar

consiste em reafirmar e reproduzir os conteúdos que a escola, enquanto instituição,

julga serem importantes para o aluno. Nesse sentido, no contexto do discurso

científico escolar, também não é qualquer sentido que pode ser dado aos conceitos

científicos, mas aqueles sócio-historicamente estabelecidos como relevantes para a

ciência escolar e para sua manutenção.

Entendemos que, devido a essas características do discurso científico

escolar, ao analisar especificamente o conhecimento científico expresso pelos

alunos em relação à origem da espécie humana na África nas suas produções,

encontramos repetições que tendem a ser formais sob o aspecto de deslocamento

de sentidos e de forma do dizer. No entanto, outro aspecto da repetição é a questão

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da memória do dizer. O aluno pode ter dito uma mesma coisa a respeito de

determinado conhecimento científico da mesma forma que o professor (repetição

empírica ou mnemônica) ou através de reformulação de frases (repetição formal ou

técnica) sem realizar, necessariamente, um deslocamento de sentidos em relação a

esse conhecimento e, ainda assim, ter mergulhado esse dizer em sua memória

discursiva (repetição histórica). Ou seja, aquilo que é dito pelos alunos em relação

ao conhecimento científico, os conceitos e explicações científicas que elaboram, são

meras reformulações de um dizer (o do professor), o que constitui um dos aspectos

relacionados à repetição chamada de formal ou técnica e que se contrapõe à

repetição histórica – que produziria um deslocamento de sentidos. Mas, mesmo

reformulando um mesmo dizer, sem produzir um novo sentido para os

conhecimentos científicos, esse aluno pode estar inscrevendo esse dizer em sua

memória discursiva, produzindo uma história para esses sentidos já postos, o que

também é um dos aspectos da repetição histórica.

Tomemos como exemplo o trecho final da produção de RI (“é uma ironia

engraçada, você tem preconceito racial, e [sic] mas surgimos da África.”) no qual ele

apresenta justamente um sentido que foi construído pela professora em sala de

aula, conforme vimos na transcrição de um trecho de sua fala (página 81): “Ironia,

não? Estamos falando de racismo e a espécie humana veio da África”. Se

analisarmos essa repetição de RI em comparação com o dizer da professora apenas

quanto ao o quê é dito e como é dito, novamente concluiríamos que o aluno realizou

apenas uma repetição formal do conhecimento científico da origem da espécie

humana na África e ainda se aproxima de uma repetição mnemônica ao utilizar-se

da mesma palavra da professora (“ironia”) para julgar o racismo diante deste

conhecimento científico. No entanto, não podemos ignorar que ao fazê-lo, as

palavras do outro (que constituem interdiscursos) passam a fazer sentido nas

palavras de RI e se representam como que se originando nele (e isso é o que já

apontamos como “esquecimento número um”). Podemos afirmar ainda, que nesse

mecanismo, o que adquiriu um novo sentido não foi o conhecimento científico (a

origem humana na África), mas sim, o tema de enfoque social (o racismo) que é

ressignificado sob a luz de um enfoque científico.

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Analisaremos no tópico a seguiras produções dos alunos em relação a mais

um dos conhecimentos científicos mobilizados durante a sequência didática: a

questão da quantidade de melanina como fator responsável pela cor da pele. Mas

antes disso, ainda precisamos abordar a questão da compreensão segundo a

perspectiva da autoria nesse contexto das produções escritas pelos alunos que

abordam a questão da origem da espécie humana na África.

Conforme vimos, o sujeito que produz uma leitura a partir de sua posição,

interpreta, formulando apenas o sentido constituído, o repetível. O sujeito-leitor que

se relaciona criticamente com sua posição, que a problematiza, explicitando as

condições de produção da sua leitura, compreende. Verificamos anteriormente que a

aluna JE, devido sua filiação a um discurso religioso, tendeu a olhar com

desconfiança para o conhecimento científico, principalmente àquele que entra em

conflito com sua crença – a origem da espécie humana na África a partir de um

processo evolutivo. Ao refutar esse conhecimento científico, ela está se relacionando

criticamente com sua posição de aluna de ciências de forma explícita, mas talvez

também a sua posição de adepta de uma determinada crença religiosa tenha sido

problematizada (mesmo que na ordem do inconsciente) quando essas duas

posições são confrontadas em sua produção textual:

Sabemos que, na realidade, tudo tem explicação, pois como houveram pessoas que viveram por um longo tempo? Como isso é possível? Sabemos que, atualmente, nenhum ser humano consegue viver por tantos anos.

Neste trecho específico, a aluna questiona (apesar de não refutar) a

possibilidade da existência de pessoas que, como alguns personagens bíblicos,

vivem algumas centenas de anos. E ainda afirma que “tudo tem uma explicação”, o

que nos leva a refletir se a explicação que ela espera é uma explicação

fundamentada em princípios da razão e da lógica, típica do discurso científico, ou

uma explicação teológica. Concluímos que, dos alunos que mobilizaram o

conhecimento da origem da espécie humana na África, apenas JE apresenta um

provável indício de compreensão no sentido proposto pela AD e, desta forma,

expressa uma característica da autoria que tem relação com o letramento científico

de perspectiva humanística.

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Como propomos anteriormente, a seguir, analisaremos as produções dos

alunos que mobilizaram a questão da melanina em suas produções.

Conhecimento científico: Quantidade de melanina como fator responsável pela cor

da pele

A questão da variação da quantidade de melanina na pele como característica

evolutiva relacionada à adaptação da espécie humana a diferentes ambientes foi

abordada na segunda aula da sequência didática. Um dos slides apresentados pela

professora, intitulado “Porque somos diferentes?” continha a seguinte informação:

“Pele: quantidade de melanina – pigmentação que protege dos raios UV do Sol

(degradam ácido fólico, importante para saúde do feto, por ex.)”. A seguir, a

transcrição de trecho da fala da professora ao discutir justamente essa informação:

“(...) raio UV – aquele que você tem que passar protetor solar, na praia – raio ultravioleta, consegue penetrar na pele. Penetra na pele e além de causar câncer de pele, degrada uma substância (...) que tá relacionada à produção, ao desenvolvimento do feto. Se a mulher tá grávida e recebe muito raio UV, vai afetar a gestação dela. Se eu tenho algum tipo de proteção pro raio UV, eu vou ter vantagem na população, não vou ter? Vou. Vou ter proteção. (...) Melanina protege a pele dos raios UV. Melanina é que dá a cor mais escura. Quanto mais melanina, mais escura a sua pele. Quanto menos melanina, mais clara a sua pele. (...) as células que produzem melanina são melanócitos. Quem é negro é porque seu melanócito produz muita melanina. Lá na África, isso era vantajoso, que protegia do raio UV. Só que o raio de sol é importante também pra outra coisa. Já ouviu falar: ‘Ah, tem que levar o bebê pra tomar sol pra fazer vitamina D, levar o bebê pra tomar sol que é bom pro osso’ Já ouviu isso? Porquê? A vitamina D, ela é importante pra calcificação do osso. Por isso é importante levar o bebê pra tomar sol, pra ele conseguir calcificar lá os ossos dele ainda em formação. Só que, vitamina D eu posso produzir com a luz do Sol, se eu recebo luz do Sol eu consigo produzir vitamina D, ou eu posso ter vitamina D na alimentação, eu como alimentos ricos em vitamina D, tá? Lá no início, a espécie humana surgindo, e tal... Vocês acham que era mole conseguir comida? Ah, não, vou procurar banana porque é rico em cálcio, vou comer não sei o quê, porquê... não, gente, não tem isso! Comia o que tava lá, o que tem pra hoje. Imagina um homem das cavernas, que tem que caçar, tá? Quem consegue produzir mais vitamina D, nesse ambiente que é difícil conseguir vitamina D da alimentação, tem vantagem. (...) pro cara que saiu da África e foi pra Europa, na Europa não tem mais tanto problema com raio UV. Porque? Pega menos sol. Então, eu não preciso ter tanta melanina na minha pele pra me proteger do Sol porque na Europa não tem tanto sol assim. E aí eu posso ter menos melanina pra conseguir produzir mais vitamina D. E aí na Europa a espécie vai tendo uma pele mais clara pra produzir vitamina D.”

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Das produções escritas dos alunos que compõem o corpus dessa pesquisa,

observamos dois textos que apresentam a questão da quantidade de melanina em

sua argumentação: o texto 2, do aluno AK e o texto 8, da aluno YU.

Na etapa anterior do dispositivo analítico, observamos que AK elaborou uma

história em quadrinhos na qual um personagem se ofende ao ser chamado pelo

amigo de “negão” e o repreende dizendo: “Sou igual a você, só tenho um pouco

mais de melanina”. Ao perceber que Zezinho não sabia do que se tratava a

melanina, Pelezinho prossegue dizendo: “Melanina é uma substância que dá a

pigmentação da pele e em grande quantidade protege dos raios UV do Sol”.

AK usa os termos “pigmentação”, presente no slide, e “raio UV”, presente

tanto no slide quanto na fala da professora. Mas não está simplesmente “repetindo

como um papagaio” esses termos da mesma forma lhe foi apresentado – o que

caracterizaria uma repetição mnemônica – mas sim, reformulando os dizeres para

dizer a mesma coisa – sendo assim, uma repetição formal, se nos limitarmos à

análise do que foi dito em relação ao conhecimento científico “quantidade de

melanina como fator responsável pela cor da pele”.

AK emprega, ainda, o termo “substância”, característico do discurso científico

para se referir à melanina, sendo que na aula não foi utilizado esse termo para esse

fim. Dessa forma, podemos afirmar que tal associação é uma construção do próprio

aluno, com base provável em outros discursos do contexto científico conhecidos por

ele. Ainda assim, ele mobiliza termos próprios do campo científico, significando um

determinado conceito, porém utilizando outras palavras; algo que caracterizaria uma

repetição formal.

O aluno YU, por sua vez, afirma (utilizando a voz de autoridade de um “eu”

cientista) “que a única diferença do negro com o branco era que o negro possuía

mais melanina e nada mais”. Novamente, aqui não constatamos qualquer

deslocamento de sentido nos conhecimentos apresentados em sala de aula em

relação à melanina – o aluno apenas repete, com outras palavras, a ideia que os

negros têm pele mais escura que os brancos por possuírem maior quantidade de

melanina.

No entanto, conforme discutimos anteriormente, os dois alunos (AK e YU)

fazem das palavras do outro suas próprias palavras e, mesmo sem produzir novos

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sentidos, estão inscrevendo esses dizeres em sua memória discursiva, produzindo

uma história para sentidos já postos. Ambos transpõem um determinado

conhecimento restrito à sala de aula, ao domínio científico, para um contexto social

mais amplo – uma situação cotidiana em nossa sociedade, em que negros são

chamados de “negão” ou de “preto” de forma pejorativa. Esse contexto social mais

amplo foi, portanto, ressignificado a partir de um conhecimento científico – a relação

entre a cor da pele e a quantidade de melanina. Observamos anteriormente que os

conceitos e explicações de ordem científica elaborados pelos alunos, o

conhecimento científico em si, são reformulações do dizer do professor e que por

isso, podem ser caracterizados como repetições formais ou técnicas. No entanto,

quando o aluno relaciona um determinado conhecimento científico (que

tradicionalmente é restrito ao espaço escolar, que tem um fim em si mesmo e

constitui um aspecto de circularidade do discurso científico escolar) a contextos

sociais, o conhecimento em si pode ser o mesmo, mas ele também é, de alguma

forma, ressignificado. Essa ressignificação dos conhecimentos científicos na relação

com um contexto social pode ser considerada, por sua vez, como um deslocamento

de sentidos, como uma repetição histórica.

A respeito da noção de compreensão, cabe ressaltar que o aluno AK, durante

a explicação sobre melanina na segunda aula da sequência didática, fez uma

pergunta parecida com a do personagem Zezinho de sua história em quadrinhos (“e

eu que não tenho muita [melanina], como fico?”), demonstrando que ele, sendo

branco, problematizou essa posição diante do conhecimento científico que brancos

têm pouca melanina e é ela que protege dos raios ultravioletas do Sol.

Retomemos aqui o nosso entendimento de que a “assunção da autoria” está

relacionada à passagem do inteligível para o compreensível, e de que essa

assunção no contexto das aulas de ciências implica em uma apropriação de

conhecimentos científicos e em um posicionamento crítico do aluno frente a esses

conhecimentos – criticidade essa, que é condição para a compreensão. Concluímos

que por meio da assunção da autoria, o sujeito utiliza conhecimentos científicos em

contextos mais amplos, ressignificando tais contextos e sua própria posição na

sociedade. Essas ressignificações podem vir a contribuir para uma transformação

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desta sociedade que somente é possível e concretizada no/pelo discurso e que se

constitui como o objetivo central de uma educação científica humanística.

Tendo todo esse panorama teórico de fundo, nos questionamos se os alunos

construíram um espaço de compreensão, se apropriando de conhecimentos

científicos e se posicionando criticamente frente a eles; se mobilizaram

conhecimentos científicos em contextos amplos, ressignificando tais contextos e sua

própria posição na sociedade.

Já apontamos anteriormente que o sentido de racismo presente no texto de

YU, bem como da grande maioria dos demais alunos, parece se reduzir às relações

interpessoais, a forma de se referir e tratar às pessoas negras, sem maior ênfase em

aspectos sociais, culturais e econômicos mais globais. Dessa forma, nos parece,

portanto, que apesar dos alunos terem utilizado conhecimentos científicos em

contextos sociais mais amplos que o da sala de aula de ciências, tais contextos se

referem apenas às relações interpessoais, e podem ser considerados ainda muito

restritos diante de uma visão mais abrangente de sociedade.

Sem dúvida, a interpretação de nosso objeto discursivo mostrou que os

alunos conseguiram produzir textos com indícios de autoria, que foram realizados

deslocamentos de sentidos sobre o racismo, que conhecimentos científicos que se

relacionam com o tema foram mobilizados em contextos mais amplos que a sala de

aula de ciências e que muitas das vezes o aluno problematizou, de alguma forma,

sua posição, indicando alguma compreensão (no sentido atribuído pela AD).

Reconhecemos, porém, que por mais que os dados dessa pesquisa nos indiquem

um caminho possível na busca por um letramento científico de perspectiva

humanística, os objetivos finais desse letramento são ainda muito ambiciosos para

serem alcançados com apenas duas aulas de uma sequência didática realizada em

um contexto escolar que funciona em uma lógica completamente distinta, de

circularidade do discurso pedagógico, onde se ensina o conhecimento pelo

conhecimento em si e sem uma preocupação com a transformação da realidade, o

que acaba contribuindo para a manutenção dela.

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4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Segundo Orlandi (1996a, p. 84), podemos falar de interpretação em duas

instâncias: tanto como parte da atividade do analista, como enquanto parte da

atividade linguageira do sujeito:

O gesto do analista é determinado pelo dispositivo teórico enquanto o gesto do sujeito comum é determinado pelo dispositivo ideológico. (...) Nos dois gestos temos mediação. Mas a mediação da posição construída pelo analista não reflete, ao contrário, trabalha a questão da alteridade. Na mediação do dispositivo ideológico, o sujeito está sob o efeito do apagamento da alteridade (exterioridade, historicidade): daí a ilusão do sentido lá, de sua evidência. O que se espera da mediação, instalada pelo dispositivo teórico, é que ele produza, como dissemos, um deslocamento que permita que o analista trabalhe as fronteiras das formações discursivas. Em outras palavras, que ele não se inscreva em uma formação discursiva mas entre em uma relação crítica com o conjunto complexo das formações. Com isso não pretendemos estar supondo uma posição neutra do analista em relação aos sentidos. Não só ele está sempre afetado pela interpretação, como um dispositivo analítico marca uma posição em relação a outras. (...) O que estamos afirmando, sim, é que o dispositivo analítico é capaz de deslocar a posição do analista, trabalhando a opacidade da linguagem, a sua não-evidência, e, com isso, relativizando (mediando) a relação do sujeito com a interpretação.

Ao final deste trabalho, refletimos sobre até que ponto nosso dispositivo

teórico foi capaz de deslocar a posição do analista, mediando a relação do sujeito

com a interpretação e em que medida ele não é resultado do conjunto de complexas

formações discursivas (de professora e pesquisadora, para citar apenas duas) do

sujeito que produz essa dissertação. Concordamos com Orlandi (1996a) quando ela

afirma que não é possível supor uma posição neutra do analista e que a própria

escolha de um dispositivo analítico marca uma posição em relação a outras,

entendendo, portanto, que muitos poderiam ter sido os caminhos de análise nessa

pesquisa. Reconhecemos, assim como a autora (ORLANDI, 1990, p. 9), que “esse

meu texto será sempre meu texto no seu modo de significar, com sua contribuição

específica”.

O dispositivo analítico utilizado (GALIETA, 2013; ORLANDI, 2002) para

analisar textos dos estudantes ao final de uma sequência didática planejada com

base no letramento científico humanístico foi constituído por três etapas. Na primeira

etapa (constituição do corpus), o critério de delimitação do corpus (a mobilização de

conhecimentos científicos apresentados durante a sequência didática) foi explicitado

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e justificado. Na segunda etapa (descrição do corpus), apresentamos aspectos do

como se diz e do quem diz a respeito de cada uma das nove produções analisadas

e destacamos: como o mecanismo de antecipação em relação a um interlocutor real

(a professora) contribuiu para produção de um discurso de valorização da ciência e

do cientista; como o discurso dos alunos apontou para uma ênfase em aspectos

relacionados às relações interpessoais em detrimento de questões sociais, culturais

ou econômicas a respeito do racismo e; como os termos igualdade e diferença se

apresentaram de forma polissêmica. Na terceira etapa (interpretação do objeto

discursivo), com base nas descrições realizadas na etapa anterior, tratamos

primeiramente de aspectos gerais da autoria, observando que é na função-autor que

a determinação do sujeito pela ideologia se revela; explicitando o mecanismo

inconsciente da “censura psíquica”, que evita conflitos mentais e pode até sustentar

determinada ideologia e; apresentando o que identificamos como marcas da função-

autor, tais como o apagamento do sujeito, a historicização do dizer por meio de

interdiscursos (“dando voz” ao outro), a antecipação a um interlocutor virtual e

marcas de “estilo”.

Algumas dessas marcas de autoria foram identificadas com base em um

trabalho de Possenti (2002) que tinha por propósito justamente dar objetividade à

noção de autoria. Em trabalho posterior, no entanto, Possenti (2013) se posiciona de

forma mais clara em relação a essa noção que, segundo ele, teria sido inaugurada

por Foucault (1969 apud POSSENTI, 2013) e, apesar de ter sido abordada por

Pêcheux e outros analistas de discurso franceses, só passa a tornar-se tema de

discussão a partir dos trabalhos de Orlandi (1988). Para Possenti (2013), portanto, a

autoria é um tema brasileiro. Conforme comentamos na seção reservada a

discussão da perspectiva teórica dessa pesquisa, a noção de autoria de Orlandi

difere daquela introduzida por Foucault: para Orlandi (2002), o princípio da autoria é

necessário para qualquer discurso, está na origem da textualidade; já Foucault

(1969 apud POSSENTI, 2013) atribui autoria apenas a quem tem uma “obra” que

possa ser avaliada como uma unidade. Possenti (2013), então, assume a opinião de

que textos escolares podem revelar indícios de autoria, mas isso não significa que

alunos sejam autores, fazendo a seguinte analogia com práticas esportivas:

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(...) se um aluno se destaca jogando futebol, nem por isso é jogador de futebol. Para que o seja, são necessárias numerosas outras características. Isto é, o que a sociedade considera como jogador de futebol é alguém submetido a regras e práticas que ultrapassam de longe ter certas habilidades e um possível sonho. O máximo que se pode dizer desse aluno é que leva jeito, que tem algumas condições (técnicas, físicas) para tornar-se jogador de futebol. Do mesmo modo, de um aluno que domina o texto se pode dizer que talvez possa vir a ser um escritor – porque seus textos exibem alguns traços que chamam a atenção (POSSENTI, op. cit., p. 243, grifo nosso).

Compreendemos a formulação teórica de Possenti (2013), mas discordamos

dessa posição, pois nela a noção de autor e de escritor confundem-se, enquanto

que para Orlandi (1988, p. 82), elas são distintas:

Quanto ao escritor, o que gostaríamos de dizer é o seguinte: não é a relação com a escola que define o escritor. Ela poderá ser útil, mas não é nem necessária, nem suficiente. Não é sua tarefa específica formar escritores. Ao contrário, para ser autor, sim: a escola é necessária, embora não suficiente, uma vez que a relação com o fora da escola também constitui a experiência da autoria (grifo nosso).

Como o próprio autor (POSSENTI, 2013) argumenta ao final de seu trabalho,

a atribuição ou não da autoria a quem não tem obra é uma decisão política. Nossa

posição política em defesa da autoria na escola tem relação com aquilo que nos traz

Lagazzi-Rodrigues (2010, p. 99) a respeito da questão:

esse cotidiano, em nossa sociedade letrada, demanda por textualização nos diferentes modos de formulação significante. (...) Portanto, a relação simbólica do sujeito com nossa sociedade se faz sob a injunção de textualizar. No entanto, essa injunção se propõe como exigência da responsabilização do sujeito pelo texto, sem nomeá-lo como autor. Estamos sob a injunção da textualização, mas negados como autores possíveis.

Defendemos, portanto, a autoria na escola e, mais, defendemos a autoria nas

aulas de ciências. Nesse contexto, é desejado que os alunos produzam e atribuam

sentidos ao conhecimento científico, que é muito valorizado em nossa sociedade,

talvez tanto quanto a cultura letrada. Entendemos que quando o aluno não

atribui/produz sentidos para esse conhecimento, ele não se insere na estrutura

social das ciências e é colocado a margem dela.

Na segunda parte da interpretação do objeto discursivo discutimos justamente

dois aspectos da autoria nos quais reconhecemos relações com o letramento

científico: a compreensão e as repetições.

No que tange às repetições, concluímos que há uma tendência à repetição

formal ou técnica no contexto das aulas de ciências no que diz respeito àquilo que é

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dito sobre o conhecimento científico devido à constituição tradicional da ciência

escolar como um corpo de conhecimentos estáticos e consolidados, que conduzem

a uma restrição de sentidos. No entanto, se analisarmos o aspecto da inscrição do

dizer na memória discursiva e a ressignificação dos conhecimentos científicos na

relação com contextos sociais mais amplos, podemos identificar repetições ditas

históricas. Enxergamos como importante contribuição dessa pesquisa, justamente

esse entendimento do peculiar funcionamento das repetições no discurso científico

escolar, que não podem ser tão facilmente categorizadas em mnemônica, formal ou

histórica, pois vimos que não são categorias totalmente excludentes.

Desta forma, a pesquisa contribuiu ao problematizar os limites das relações

entre as formas de repetição que possibilitam alunos em aulas de ciências

constituírem-se enquanto autores de seus discursos de forma historicizada e ampla

de acordo com o letramento científico humanístico.

Já a respeito da compreensão, concluímos que os alunos até

problematizaram suas posições, mas o fizeram apenas se referindo a relações

interpessoais e não a contextos sociais, econômicos e culturais mais abrangentes.

Considerando que a escola deva enfatizar uma educação que almeja a

transformação da realidade social e não apenas a reprodução dela, salientamos

uma perspectiva humanística da noção de letramento científico. Nessa perspectiva,

questionamos um discurso pedagógico em que o conhecimento tem um fim em si

mesmo, e desejamos que os alunos sejam capazes de utilizar o conhecimento

científico em contextos mais amplos que não apenas nas avaliações e aulas de

ciências e nas relações interpessoais. Mesmo entendendo que nosso trabalho

aponta para possíveis modos de promoção de uma educação científica pautada na

problematização e transformação da realidade social em aulas de ciências,

reconhecemos que ainda há muito que se avançar a esse respeito.

Reafirmamos, no entanto, nossa posição na direção do letramento científico

de perspectiva humanística citando aquele que nos serve de inspiração:

Se, na verdade, não estou no mundo para simplesmente a ele me adaptar, mas para transformá-lo; se não é possível mudá-lo sem um certo sonho ou projeto de mundo, devo usar toda possibilidade que tenha para não apenas falar de minha utopia, mas para participar de práticas com ela coerentes. (FREIRE, 2000, p. 17).

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Finalmente, apontamos a necessidade de que em pesquisas futuras sejam

estreitadas as relações entre letramento científico, autoria e escrita de forma

empírica, por meio de planejamento e observação de episódios de ensino na escola,

entendendo que possam contribuir para a difícil tarefa de construção (e de

desconstrução) de um discurso científico escolar que não tenha um fim em si mesmo

e que aponte para relações com a realidade social.

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APÊNDICES

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APÊNDICE A – TEXTO 1 DA SEQUÊNCIA DIDÁTICA

Somos todos um só

Pesquisa genética internacional mostra que não existem raças na espécie humana,

derrubando qualquer base científica para a discriminação

Se um pesquisador do IBGE bater à sua porta e perguntar qual é sua raça, você terá dúvidas

para responder? Por mais banal que pareça, essa questão está gerando muita polêmica nos

Estados Unidos. O presidente Bill Clinton chegou a formar uma comissão de alto nível para

discuti-la. Isso porque, assim como os brasileiros, os americanos irão realizar no ano 2000 o

último censo do século. Lá, porém, o resultado do perfil racial da população não é apenas

mais um quesito estatístico. Influi, entre outras coisas, na distribuição de recursos aos órgãos

federais e não-governamentais dedicados às chamadas minorias étnicas. Enquanto aqui você

tem total liberdade de definir qual é sua raça, lá é o recenseador quem identifica o cidadão

entre nada menos do que sete grupos raciais. Mas, se a questão já tinha implicações políticas,

econômicas e culturais, ficou ainda mais difícil há poucos dias com a publicação de um amplo

e meticuloso trabalho científico que chegou a uma conclusão taxativa: não existem raças na

espécie humana.

Diferenças insignificantes Para chegar a esta afirmação, uma equipe de cinco cientistas

estudou e comparou mais de oito mil amostras genéticas colhidas aleatoriamente de pessoas

de todo o mundo. Segundo Alan Templeton, biólogo americano que dirigiu a pesquisa,

diferentemente de todas as outras espécies de mamíferos, não há raças entre os humanos

porque "as diferenças genéticas entre grupos das mais distintas etnias são insignificantes".

Para que o conceito de raça tivesse validade científica, "essas diferenças teriam de ser muito

maiores". Ou seja, não importa a cor da pele, as feições do rosto, a estatura ou mesmo a

origem geográfica de qualquer ser humano (traços que distinguem culturalmente as etnias):

geneticamente, somos todos muito semelhantes. Curiosamente, foi no Brasil que Templeton

tomou consciência de que o conceito de raças poderia ser puramente cultural. "Em minha

primeira visita ao Brasil em 1976, eu descobri que a classificação racial usada pelos

brasileiros não era a mesma usada nos Estados Unidos; que a mesma pessoa poderia ser

classificada de forma bem diferente em dois países", disse ele a ISTOÉ. "Aquela experiência

me ensinou então que o conceito de raça não é necessariamente biológico." [...]

O trabalho realizado pela equipe de Templeton se somou a pesquisas anteriores que já vinham

apontando essa unidade na espécie humana. "Infelizmente, a noção popular de raça esteve

sempre tão vinculada erroneamente à biologia que será difícil derrubar essa crença", afirmou

o cientista americano. [...]

Tese brasileira Os resultados mostraram que, quando há diferença genética significativa,

pelo menos 85% dela acontece entre indivíduos dentro de um mesmo grupo étnico (como os

asiáticos, por exemplo). As diferenças entre etnias (brancos europeus e negros africanos, por

exemplo), que seriam a base para haver raças distintas, são de apenas 15% ou menos que isso.

"Um índice muito abaixo do nível usado para diferenciar raças dentro de qualquer espécie

animal", explica Templeton. Isso quer dizer que dois brancos europeus diferem mais entre si

do que em conjunto diferem de um africano. "Portanto, os humanos são a mais homogênea

espécie que conhecemos", diz ele. [...]

Trechos de reportagem de Norton Godoy, publicada na revista Isto é (1998), disponível na íntegra em:

http://www.icb.ufmg.br/labs/lbem/aulas/grad/evol/humevol/templeton/

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APÊNDICE B – TEXTO 2 DA SEQUÊNCIA DIDÁTICA

GENÉTICA ALIMENTA POLÊMICA SOBRE 'RAÇAS' NO BRASIL

Pesquisas genéticas recentes, que mostram o intenso grau de miscigenação do brasileiro,

têm alimentado o debate em torno da definição de "raças" na sociedade brasileira.

O termo já é evitado na genética hoje em dia por ser considerado impreciso e pelo uso político

que se fez dele no passado, mas ainda é usado como categoria sociopolítica - o IBGE, por

exemplo, divide a população brasileira em pretos, brancos, pardos, indígenas ou amarelos.

Críticos do uso dessas categorias dizem que, especialmente no Brasil, a miscigenação foi tão

intensa que uma pessoa considerada preta pode ter a mesma composição genética de um

"branco" e vice-versa.

Mas há quem acredite que a classificação é válida.

"Raça no Brasil é uma categoria política: negro é quem é tratado como negro", afirma o

advogado Hédio Silva, ex-secretário de Justiça do Estado de São Paulo. "Ninguém pede a

carta genética da pessoa para discriminar."

Segundo ele, usar exames de DNA para demonstrar que do ponto de vista genético é mínima a

diferença entre brancos e negros passa pela estratégia de "humanizar" os negros, coisa que, na

sua avaliação, vem sendo tentada sem sucesso no Brasil há cem anos.

Para Silva, basear-se na biologia para desqualificar a noção de raça no Brasil é um

"despropósito", comparável a perguntar a um nazista se a perseguição aos judeus tinha base

científica, ou se a ciência tinha definição para quem foi queimado como bruxo pela

Inquisição.

O advogado vê na tentativa de "desracializar" o Brasil um desserviço às políticas de ação

afirmativa que, segundo ele, estão dando certo nos locais do país em que já são

implementadas.

"Eu concordo com esse ideal utópico de uma sociedade desracializada. Mas para atingir isso

precisamos ter o reconhecimento de que o legado africano não é inferior, nem menos

complexo ou sofisticado do que o europeu. A gente afirma a raça como uma estratégia para no

futuro falarmos em outra coisa."

Silva se mostra otimista com a formação da primeira leva de beneficiados pela política de

cotas, hoje adotada em 40 universidades, e acredita que, se bem aplicado, o instrumento das

ações afirmativas pode ser dispensado no tempo de duas gerações.

Reportagem de Carolina Glycerio, da BBC Brasil, disponível em

http://www.bbc.co.uk/portuguese/reporterbbc/story/2007/05/070523_dna_polemica_raca_cg.shtml.

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APÊNDICE C – QUESTIONÁRIO DA AULA 1 DA SEQUÊNCIA DIDÁTICA

Em uma folha separada, com base nos dois textos trabalhados na aula de hoje e em

tudo que conversamos, responda as questões abaixo:

1) Pesquisas recentes afirmam que não existem raças na espécie humana. Quais as

justificativas para essa afirmação?

2) Frei David dos Santos, ativista do movimento negro, critica a tentativa de

“desracializar” os negros.

"Nunca vi nenhuma batida policial em ônibus, por exemplo, que antes de discriminar perguntasse à pessoa quantos por cento de genes afro ela teria. [...] A discriminação

e o discriminador, que tantos estragos trazem ao tecido social brasileiro, não vêem na genética os argumentos para parar de discriminar. No entanto querem que o

discriminado pare de lutar por seus direitos porque 'todos temos genes afro'."

O que você acha dessa polêmica? Concorda ou não com o uso do termo raça? Qual

sua opinião sobre o assunto?

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APÊNDICE D – TEXTO DA AULA 2 DA SEQUÊNCIA DIDÁTICA

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APÊNDICE E – LETRA DA MÚSICA “LAVAGEM CEREBRAL” UTILIZADA NA

AULA 2 DA SEQUÊNCIA DIDÁTICA

Lavagem Cerebral

(Gabriel O Pensador - 1993)

Racismo preconceito e discriminação em geral

É uma burrice coletiva sem explicação Afinal que justificativa você me dá para um povo que precisa de união

Mas demonstra claramente

Infelizmente Preconceitos mil

De naturezas diferentes

Mostrando que essa gente Essa gente do Brasil é muito burra

E não enxerga um palmo à sua frente

Porque se fosse inteligente esse povo já teria agido de forma mais consciente

Eliminando da mente todo o preconceito E não agindo com a burrice estampada no peito

A "elite" que devia dar um bom exemplo

É a primeira a demonstrar esse tipo de sentimento Num complexo de superioridade infantil

Ou justificando um sistema de relação servil

E o povão vai como um bundão na onda do racismo e da discriminação

Não tem a união e não vê a solução da questão Que por incrível que pareça está em nossas mãos

Só precisamos de uma reformulação geral

Uma espécie de lavagem cerebral

Não seja um imbecil

Não seja um Paulo Francis Não se importe com a origem ou a cor do seu semelhante

O quê que importa se ele é nordestino e você não?

O quê que importa se ele é preto e você é branco?

Aliás, branco no Brasil é difícil, porque no Brasil somos todos mestiços Se você discorda então olhe pra trás

Olhe a nossa história

Os nossos ancestrais O Brasil colonial não era igual a Portugal

A raiz do meu país era multirracial

Tinha índio, branco, amarelo, preto Nascemos da mistura então porque o preconceito?

Barrigas cresceram

O tempo passou...

Nasceram os brasileiros cada um com a sua cor Uns com a pele clara outros mais escura

Mas todos viemos da mesma mistura

Então presta atenção nessa sua babaquice Pois como eu já disse racismo é burrice

Dê a ignorância um ponto final:

Faça uma lavagem cerebral

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Negro e nordestino constroem seu chão

Trabalhador da construção civil conhecido como peão

No Brasil o mesmo negro que constrói o seu apartamento ou que lava o chão de uma delegacia É revistado e humilhado por um guarda nojento que ainda recebe o salário e o pão de cada dia graças

ao negro, ao nordestino e a todos nós

Pagamos homens que pensam que ser humilhado não dói

O preconceito é uma coisa sem sentido Tire a burrice do peito e me dê ouvidos

Me responda se você discriminaria

Um sujeito com a cara do PC Farias Não, você não faria isso não...

Você aprendeu que o preto é ladrão

Muitos negros roubam mas muitos são roubados

E cuidado com esse branco aí parado do seu lado Porque se ele passa fome

Sabe como é:

Ele rouba e mata um homem Seja você ou seja o Pelé

Você e o Pelé morreriam igual

Então que morra o preconceito e viva a união racial Quero ver essa música você aprender e fazer

A lavagem cerebral

O racismo é burrice, mas o mais burro não é o racista É o que pensa que o racismo não existe

O pior cego é o que não quer ver

E o racismo está dentro de você Porque o racista na verdade é um tremendo babaca

Que assimila os preconceitos porque tem cabeça fraca

E desde sempre não para pra pensar Nos conceitos que a sociedade insiste em lhe ensinar

E de pai pra filho o racismo passa

Em forma de piadas que teriam bem mais graça

Se não fossem o retrato da nossa ignorância Transmitindo a discriminação desde a infância

E o que as crianças aprendem brincando

É nada mais nada menos do que a estupidez se propagando Qualquer tipo de racismo não se justifica

Ninguém explica

Precisamos da lavagem cerebral pra acabar com esse lixo que é uma herança cultural

Todo mundo é racista, mas não sabe a razão Então eu digo meu irmão

Seja do povão ou da "elite"

Não participe Pois como eu já disse racismo é burrice

Como eu já disse racismo é burrice (4 x)

E se você é mais um burro Não me leve a mal

É hora de fazer uma lavagem cerebral

Mas isso é compromisso seu

Eu nem vou me meter Quem vai lavar a sua mente não sou eu

É você

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APÊNDICE F – PROPOSTA DE PRODUÇÃO TEXTUAL APRESENTADA NA

AULA 2 DA SEQUÊNCIA DIDÁTICA

Nosso imaginário está repleto de estórias sobre a possibilidade de viajar no tempo, de voltar para o

passado, ou visitar o futuro. Você, muito provavelmente, já assistiu a um filme, seriado, desenho, ou leu

alguma estória sobre viagem no tempo, não é mesmo?

Pois bem! Vimos nas últimas aulas que nossa espécie surgiu na África e que as características físicas,

tais como cor da pele e traços do rosto, variam nos humanos de acordo com a distribuição geográfica, como

resultado da adaptação a diferentes ambientes. Essas diferentes características têm sido usadas para classificar

os humanos em raças, no entanto, pesquisas científicas recentes apontam que a espécie humana, diferente de

outras espécies, não possui raças biológicas. A ideia de raça em um sentido cultural, no entanto, é defendida

por muitos, como forma de afirmação do valor de grupos que vêm sendo historicamente discriminados. Fato é

que as diferenças existem e, seja lá qual forem, devem ser respeitadas.

Mas parece que nem todo mundo pensa assim. São muitos os casos de discriminação e preconceito

que vivenciamos, presenciamos ou escutamos (vide exemplo: http://g1.globo.com/sao-

paulo/noticia/2013/12/colegio-em-guarulhos-obriga-menino-cortar-o-cabelo-crespo.html).

E se você pudesse ser o guia de uma viagem no tempo que tivesse como objetivo convencer outras

pessoas a respeitarem as diferenças? Que tal uma excursão com um grupo de pessoas (ou uma pessoa) que

apresentam atitudes preconceituosas? Qual seria o destino? Ah, são tantas as possibilidades! Você poderia

levá-las ao passado mais remoto da África para que presenciassem a evolução das espécies e vissem com os

próprios olhos a jornada da expansão da espécie humana pelo mundo e sua diversificação ao longo do tempo!

Ou poderia ir até um passado mais recente, na Europa, observar como surge o conceito biológico de raça e as

drásticas consequências disso. Ou ainda, que tal um pulinho no futuro para descobrir avanços na ciência que

explicam ainda melhor nossas diferenças e origens genéticas? E será que no futuro a ideia de raças humanas

ainda estará presente? Será que a aparência física dos povos é igual à atual? Ainda teremos brancos, pretos,

amarelos...?

Diante de todo este cenário, use sua imaginação para escrever um texto no estilo da sua preferência

(uma carta a um amigo, um artigo de jornal, um diário de viagem, um conto de ficção, uma história em

quadrinhos...) que fale sobre essa viagem no tempo para enfrentar o preconceito.

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ANEXOS

ANEXO 1 – PRODUÇÃO TEXTUAL DA ALUNA AC

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ANEXO 2 – PRODUÇÃO TEXTUAL DO ALUNO AK

ANEXO 3 – PRODUÇÃO TEXTUAL DO ALUNO WE

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ANEXO 4 – PRODUÇÃO TEXTUAL DA ALUNA IS

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ANEXO 5 – PRODUÇÃO TEXTUAL DA ALUNA KA

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ANEXO 6 – PRODUÇÃO TEXTUAL DA ALUNA NA (primeira parte)

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ANEXO 6 – PRODUÇÃO TEXTUAL DO ALUNO NA (segunda parte)

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ANEXO 7 – PRODUÇÃO TEXTUAL DO ALUNO RI

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ANEXO 8 – PRODUÇÃO TEXTUAL DO ALUNO YU (primeira parte)

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ANEXO 8 – PRODUÇÃO TEXTUAL DO ALUNO YU (segunda parte)

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ANEXO 9 – PRODUÇÃO TEXTUAL DA ALUNA JE (primeira parte)

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ANEXO 9 – PRODUÇÃO TEXTUAL DA ALUNA JE (segunda parte)