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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE INSTITUTO DE CIÊNCIAS DA SOCIEDADE – MACAÉ
DEPARTAMENTO DE DIREITO CURSO DE DIREITO
THAÍS DA SILVA GUIMARÃES
O PERFIL SOBERANO DA ASSEMBLEIA GERAL DE CREDORES E A INTERVENÇÃO JUDICIAL: REFLEXÕES ACERCA DO INSTITUTO DO
CRAM DOWN NA LEI 11.101/2005
MACAÉ/RJ 2018
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THAÍS DA SILVA GUIMARÃES
O PERFIL SOBERANO DA ASSEMBLEIA GERAL DE CREDORES E A INTERVENÇÃO JUDICIAL: REFLEXÕES ACERCA DO INSTITUTO DO
CRAM DOWN NA LEI 11.101/2005
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao programa de Graduação da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Direito, sob orientação do Professor Doutor Saulo Bichara Mendonça.
MACAÉ/RJ
2018
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THAÍS DA SILVA GUIMARÃES
O PERFIL SOBERANO DA ASSEMBLEIA GERAL DE CREDORES E A INTERVENÇÃO JUDICIAL: REFLEXÕES ACERCA DO INSTITUTO DO
CRAM DOWN NA LEI 11.101/2005
Trabalho de Conclusão de Curso aprovado pela Banca Examinadora do Curso de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), Instituto de Ciências da Sociedade de Macaé (ICM-Macaé).
Macaé, ___ de __________ de _____ 2018.
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________________ Prof. Dr. Saulo Bichara Mendonça – Universidade Federal Fluminense - Orientador _______________________________________________________________ Prof. Me. Francisco de Aguiar Alves – Universidade Federal Fluminense _______________________________________________________________ Prof. Dr. Jorge Luiz Lourenço das Flores – Universidade Federal Fluminense
MACAÉ/RJ
2018
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À minha mãe, luz da minha vida.
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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS AGC Assembleia Geral de Credores
AJ Administrador Judicial
ANATEL Agência Nacional de Telecomunicações
AREsp Agravo em Recurso Especial
CF Constituição Federal
LRE Lei de Recuperação de Empresas e Falências
OI COOP Oi Brasil Holdings Cooperatief U.A
PRJ Plano de Recuperação Judicial
PTIF Portugal Telecom International Finance B.V
SEC Securities and Exchange Comission
STJ Superior Tribunal de Justiça
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RESUMO
O presente estudo tem por objeto primordial estabelecer um paralelo analítico
quanto à interferência judicial no processamento das recuperações judiciais no
país. Para tanto, observou-se o viés doutrinário e jurisprudencial acerca do
poder decisório do juízo recuperacional, face aos interesses dos credores,
tomando-se por base o direito comparado. Importante, neste sentido, ressaltar
como se dá a recuperação de empresas no país, seus objetivos e princípios
norteadores, bem como as razões que levam as sociedades a requererem sua
tutela, sob a égide da Lei nº 11.101/2005. Em seguida, destaca-se a função
precípua da Assembleia Geral de Credores, cujo quórum deliberativo tem a
alçada de permitir, ou não, a recuperação judicial. Para isto, traçou-se um perfil
administrativo e prático da AGC, no objetivo de possibilitar o entendimento
sobre a autonomia e soberania da decisão dos credores, no Brasil. No terceiro
capítulo o estudo se volta a aludir o instituto do Cram Down, explicando sua
origem no direito norte-americano, e os princípios balizadores do poder
decisório do magistrado no feito recuperacional. Assim, trata-se uma reflexão
crítica sobre a legislação pioneira e inspiradora da atual Lei de Recuperação de
Empresas brasileira, contrapondo a decisão dos credores e discricionariedade
do juízo na recuperação judicial. Seguidamente, aponta-se a adoção do
mecanismo norte-americano no país, demonstrando os limites de sua
efetividade, e como o magistrado poderia exercer o juízo de admissibilidade do
plano de recuperação judicial, verificada a viabilidade da empresa. Assinala-se,
por último, a necessidade de flexibilização da Lei 11.101/2005, no intuito de
propiciar decisões eficazes e justas do ponto de vista social-econômico, quanto
à continuidade da atividade comercial da empresa em recuperação.
Palavras-chave: Direito Empresarial. Recuperação Judicial. Lei nº
11.101/2005. Princípios da Função Social e Preservação da Empresa.
Assembleia Geral de Credores. Soberania. Cram Down. Intervenção judicial.
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ABSTRACT
The present study has as main objective to establish an analytical parallel with
respect to judicial interference in the processing of judicial recoveries in the
country. Therefore, the doctrinal and jurisprudential bias regarding the decision-
making power of the judge, in this context, was observed, against the interests
of the creditors, based on the comparative law. It is important, in this sense, to
emphasize how the recovery of companies in Brazil occurs, their objectives and
guiding principles, as well as the reasons that lead the companies to require
their guardianship, under the aegis of Law 11.101/2005. Next, the essential
function of the General Meeting of Creditors (AGC) is highlighted, whose
deliberative quorum has the jurisdiction to allow, or not, judicial recovery. For
that, an administrative and practical profile of the AGC was drawn up, in order
to allow an understanding of the autonomy and sovereignty of the creditors'
decision in Brazil. In the third chapter, the study focuses on the approach of
Cram Down Institute, exposing its origin in US law, and the principles that guide
the decision-making power of the magistrate in the recovery act of the United
States. Then, it is pointed out the adoption of the US mechanism in the country,
demonstrating the limits of its effectiveness, and how the magistrate could
exercise the judgment of admissibility of the judicial recovery plan, when the
viability of the company was verified. Lastly, the need for flexibility in Law
11.101/2005 is highlighted, in order to provide effective and fair decisions, from
a social-economic point of view, regarding the business continuity of the
company in recovering.
Keywords: Business Law. Judicial recovery. Law nº 11.101/2005. Principles of
the Social Function and Company Preservation. General Meeting of Creditors.
Sovereignty. Cram Down. Judicial intervention.
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SUMÁRIO
CONSIDERAÇÕES INICIAIS ....................................................................................... 9
CAPÍTULO I ............................................................................................................... 11
SOBRE A RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS .............................................. 11
1.1 Disposições gerais ............................................................................... 11
1.2 Da recuperação judicial ....................................................................... 12
1.2.1 Do plano de recuperação judicial .................................................. 16
1.3 Pressupostos de incidência da recuperação judicial............................ 17
1.3.1 Quanto ao exercício regular da atividade há mais de dois anos ... 18
1.3.2 Quanto a não ser falido ................................................................. 18
1.3.3 Quanto a não ter obtido outra recuperação judicial ....................... 19
1.3.4 Quanto a não condenação por crime falimentar ............................ 20
1.4 A relevância dos princípios da função social e preservação da empresa
no procedimento de recuperação .............................................................. 21
CAPÍTULO II .............................................................................................................. 24
OS CREDORES EM ASSEMBLEIA ............................................................. 24
2.1 Noções da assembleia geral de credores ............................................ 24
2.1.1 Competências ................................................................................ 25
2.1.2 Composição e deliberação ............................................................ 27
2.2 Perfil administrativo da assembleia geral de credores ......................... 29
2.3 Perfil prático da assembleia geral de credores .................................... 34
2.3.1 Caso concreto: Considerações legais a partir do verificado na
recuperação judicial do Grupo Oi, no Brasil ........................................... 34
CAPÍTULO III ............................................................................................................. 41
SOBRE O CRAM DOWN ............................................................................. 41
3.1 Breves considerações ...................................................................... 41
3.2 O sistema recuperacional norte-americano e o Cram Down ............... 41
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3.2.1 Breve comparação entre aspectos do sistema recuperacional
norte-americano e brasileiro ................................................................... 45
3.3 Aplicação do Cram Down na recuperação judicial brasileira ............... 48
CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................ 55
REFERÊNCIAS .......................................................................................................... 58
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9
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O direito falimentar no Brasil veio para substituir o obsoleto instituto do
Decreto-Lei nº 7.661/1945. A nova Lei nº 11.101/2005, denominada Lei de
Recuperação de Empresas e Falências (LRE) surge para se readaptar ao
contexto social e econômico, trazendo uma novidade legislativa: a possibilidade
de recuperação de empresas, cujo procedimento foi inspirado no Bankruptcy
Code, legislação falimentar norte-americana.
Deste modo, o cenário empresarial brasileiro foi modificado, permitindo,
a partir de então, a continuação da atividade produtiva por meio de um plano
de recuperação judicial, que fixou a perspectiva de estabelecer e coadunar
diversos meios para superar a situação empresarial de crise econômico-
financeira. Assim, a empresa deixa de ter somente a alternativa da liquidação
para adimplir com seus débitos.
Contudo, para que o processamento da recuperação judicial seja
deferido, imprescindível a análise de alguns critérios, dentre os quais se
destaca a viabilidade da empresa. Isto porque, conforme se verá, na
recuperação judicial ocorre um repasse do risco empresarial para os credores,
de modo que só se justifica quando a atividade represente relevância social,
acarretando o seu encerrando ônus mais gravoso do que a falência.
O instituto da recuperação de empresas apresenta, portanto, um caráter
negocial, propiciando moldes contratuais à tutela judicial, de modo que, já que
haverá o repasse do risco empresarial, os credores têm o direito de deliberar
acerca do plano de recuperação judicial proposto pela empresa em crise, a fim
de que se recupere o status quo ante.
Deste modo, dotou-se o processo de recuperação judicial de três fases
pontuais: fase postulatória, fase deliberativa e fase executória.
A fase postulatória concerne ao pleito pela recuperação, atendendo a
certos pressupostos e com a devida elaboração de um plano para efetivá-la. Já
quanto à fase deliberativa, observa-se como a mais relevante para o
processamento da recuperação judicial, em que pese haver a constituição de
uma Assembleia Geral de Credores, de modo que, com o advento da LRE,
adquiriram o direito a intervir no processo, deliberando acerca do plano
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proposto pela Recuperanda, aquiescendo-o, rejeitando-o, ou propondo-lhe
modificações.
Outra das novidades trazidas pela LRE, se refere ao fato de que, ao
passo que concedeu ao credores a prerrogativa de intervir ativamente no
processamento do plano, sopesou a interferência do magistrado, possibilitando
também o controle de legalidade e cerceamento do direito de voto quando este
represente abuso de direito. Eis o foco do presente estudo: a ponderação da
interferência do juízo recuperacional, face à negativa de deferimento do plano
de recuperação judicial em assembleia geral de credores.
Para que se proceda esta análise, no entanto, necessária a abordagem
da legislação norte-americana, retomando sua origem, porque, muito embora
tenha sido por ela inspirada, a legislação falimentar brasileira alterou
substancialmente a intervenção do magistrado, no que se refere à interferência
do juiz no processo, a despeito da deliberação assemblear. Denominado Cram
Down no direito norte-americano, o mecanismo foi recepcionado pela LRE,
estabelecendo, entretanto, critérios legais rígidos para sua aplicação.
Deste modo, será aprofundada a perspectiva de que o instituto norte-
americano propicia ao magistrado competente maior interferência e
discricionariedade ao processo de recuperação judicial. Porque pode, inclusive,
com a assistência de órgão especializado do governo federal, fazer juízo de
viabilidade econômica da empresa. Diferentemente do que ocorre no âmbito
recuperacional do país, cuja atuação do juiz é cerceada.
Por fim, observa-se, de acordo com o enfoque doutrinário, que em vista
das limitações legais impostas pela rigidez da intervenção judicial na
recuperação judicial no país, o mecanismo do Cram Down aqui empregado
carece de certa flexibilização, com vistas a propiciar maior efetividade ao
processo recuperacional, beneficiando o sistema recuperacional e a cadeia
produtiva por ele contornada.
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CAPÍTULO I
SOBRE A RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS
1.1 Disposições gerais
É sabido que a crise empresarial acarreta em efeitos indesejáveis para
toda uma cadeia produtiva. Seja pelo inadimplemento das obrigações, pela
possível afetação do patrimônio dos sócios, pelo desemprego oriundo desse
descompasso, ou pela desconstituição da contribuição para com o fisco (de
interesse do Estado), dentre diversos outros possíveis resultados
desencadeados pela crise. Isto é, o ônus da restruturação reflete na sociedade,
de modo geral. Deste modo, modernamente, tem-se priorizado pela
criação/aprimoramento de institutos capazes de auxiliar na superação do
quadro de crise econômico-financeira, bem como de saldar o que é passível de
liquidação. Dentre tais institutos, que encontram variações de incidência por
todo o mundo, “cada direito procura seus próprios caminhos no emaranhado da
difícil questão da recuperação das empresas em crise”1, mas, no Brasil,
destacam-se a falência, a recuperação judicial, e a recuperação extrajudicial,
regulamentadas de acordo com a Lei nº 11.101/2005, também chamada de Lei
de Recuperação de Empresas e Falências (LRE).
Muito embora a aplicação destes institutos seja ampla, não há que se
falar em incidência indiscriminada. Importante ressaltar o texto trazido pela lei,
no seu art. 1º: “Esta Lei disciplina a recuperação judicial, a recuperação
extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, doravante
referidos simplesmente como devedor”2. Segundo Marlon Tomazette, infere-se
que estão sujeitos à recuperação judicial, extrajudicial, ou à falência, somente
as empresas e sociedades empresárias. Isto é, sujeitos que exerçam atividade
economicamente organizada, para circulação de bens e serviços. Que exerçam
empresa. Deste modo, o empresário individual, ainda que pessoa física, é
amparado por um CNPJ, sendo titular de empresa, motivo pelo qual pode ser
enquadrado no conceito de empresário; da mesma forma, a empresa individual
1 ULHOA, Fábio. Curso de Direito Comercial. 13ª ed. São Paulo, Saraiva, 2012, p. 483. 2 BRASIL, Lei nº 11.101/2005, 9 de fevereiro de 2005. Disponível em: . Acesso em 11 de abril de 2018.
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de reponsabilidade limitada (EIRELI), também pode exercer atividade
empresária, bem como, por óbvio, as sociedades, com a conjunção de esforços
e capital, que assumirão deveres e obrigações sob seu CNPJ3. Fundamental,
por este motivo, identificar quem se enquadra, ou não, no conceito de
empresário, razão pela qual, certas atividades econômicas são expressamente
afastadas do instituto, como atividades de natureza intelectual, sua exploração
por sociedades simples, sociedades de economia mista (empresas estatais),
bem como as sociedades de fato, com fulcro no art. 2ª da LRE.
1.2 Da recuperação judicial
Dita como a mais ampla medida de recuperação de empresas, a
recuperação judicial - objeto primordial do presente estudo -, é um meio
genérico de solucionar a crise econômico-financeira, e se utiliza mesmo para
evitar que se instaure um quadro de desequilíbrio ainda mais danoso. À luz do
art. 47, da Lei nº 11.101/2005, se esclarecem os objetivos de incidência do
instituto4:
Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.
De modo sucinto, pode-se afirmar que a recuperação judicial é um
conjunto de atos praticados no bojo de um processo judicial, legalmente
autorizados, respeitando-se também o critério de viabilidade da atividade,
primordial para sua aplicação.
Fala-se, teoricamente, de quatro elementos intrínsecos ao processo de
recuperação, quais sejam: “(a) série de atos; (b) consentimento dos credores;
3 TOMAZETTE, Marlon. Curso de Direito Empresarial. 5ª ed. São Paulo, Atlas, 2017, pp. 47 e 48. 4 BRASIL, Lei nº 11.101/2005, 9 de fevereiro de 2005. Disponível em: . Acesso em 11 de abril de 2018.
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(c) concessão judicial; (d) superação da crise; (e) manutenção das empresas
viáveis”5.
Assim, pode-se dizer que não há apenas um ato capaz de reestruturar a
empresa, mas uma série de medidas cabíveis, como mudanças obrigacionais
(renovação contratual com credores), alterações na gestão, ajustes de mão de
obra (contratação e demissão de pessoal), contratação de perícias, atualização
tecnológica, etc. Essas mudanças têm o condão de restabelecimento da
atividade.
De modo análogo, para que possa ser oportunizada a tentativa de
restabelecimento por meio de tais medidas, é necessária uma maioria
representativa de credores que estejam de acordo com as disposições. As
peculiaridades dessa deliberação de credores serão melhor abordadas no
capítulo seguinte.
Quanto à concessão judicial, pressupõe-se o exercício do direito de
ação, até porque, devido ao princípio da inércia da jurisdição, depende-se de
que o empresário ou sociedade empresária requeira a tutela jurisdicional.
Deste modo, uma vez requerida, a interferência judiciária é essencial
para avaliar os critérios formais da recuperação. Tema base para o presente
estudo, em que pese haver um contrabalanceamento da atuação dos credores
e magistrados na dinâmica do processo de recuperação, que também será
melhor abordada.
Já no que se refere à manutenção de empresas viáveis, importante
ressaltar que nem toda empresa pode e deve ser recuperada.
Existe, no âmbito do processo de recuperação, um repasse de despesas
e custos, seja por meio de investimentos em um negócio em crise, ou por
perda de parte dos créditos de direito dos credores. Significa que se exige um
sacrifício dos credores, ao passo que o risco empresarial é, em teoria,
incumbência apenas de seu titular.
Deste modo é importante ponderar entre o ônus de recuperação da
empresa, e o ônus de seu possível encerramento. A viabilidade significa que,
após análise de tais critérios, vale mais a manutenção da atividade. A intenção
5 TOMAZETTE, Marlon. Op. cit., p. 88.
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é de que o risco empresarial seja novamente transferido ao titular, e não mais
ao credor após esse processo.
Para tanto, é fundamental analisar o impacto gerado pelo negócio na
sociedade, ou seja, sua importância social em âmbito local, regional ou
nacional. Isto porque “o encerramento de uma empresa socialmente importante
gera muito ônus”6, motivo pelo qual se justificaria a conjunção de esforços em
sua recuperação. Segundo Fábio Ulhoa, “o crédito bancário e os produtos e
serviços oferecidos e consumidos ficam mais caros porque parte dos juros e
preços se destina a socializar os efeitos da recuperação das empresas”7. Isto
é, ocorre uma sequência de efeitos nas relações patrimoniais, econômicas (em
âmbito geral), e sociais.
Então, se a sociedade brasileira arca (em maior ou menor escala) com
os prejuízos oriundos do processo de recuperação, que pelo menos estes
valham o esforço, demonstrando a empresa condições mínimas de ser
saneada.
Com fundamento no art. 53, II, da LRE, infere-se que a viabilidade é,
portanto, critério inerente ao plano de recuperação judicial8, a ser apresentado
aos credores. A viabilidade deve ser amplamente provável, “sob pena de não
aprovação do plano pelos credores em assembleia. Essa credibilidade poderá
ser maior quando houver um relatório assinado por especialista em
recuperação e, se possível, no segmento em que a empresa atua”9.
Ainda, de acordo com Fábio Ulhoa, o exame da viabilidade deve ser
conduzido segundo elementos tais como: (I) importância social - anteriormente
citada -; (II) idade da empresa, em que pese algumas empresas estarem
contribuindo para a economia e a sociedade há décadas, o que as difere de
empresas muito recentes, que não demonstram tal potencial econômico; (III)
volume do ativo e passivo, que se demonstra essencial para os levantamentos
contábeis, vez que o cunho da crise pode exigir diferentes medidas; (IV) mão
de obra e tecnologia empregadas, ainda que este elemento deva ser
6 TOMAZETTE, Marlon. Op. cit., p. 90. 7 ULHOA, Fábio. Op. cit., p. 485. 8 Diploma por meio do qual a empresa informa sob quais medidas de recuperação se pretende sair da crise, além das novas condições pelas quais se planeja o adimplemento dos credores. 9 TEIXEIRA, Tarcísio. A Recuperação Judicial de Empresas. Revistas USP, 2012, p. 17. Disponível em: . Acesso em 12 de abril de 2018.
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cuidadosamente avaliado: a empresa tecnologicamente atrasada exige o
investimento em tecnologia, muito embora a modernização em sentido amplo
retire postos de trabalho, o que seria maléfico à comunidade, do mesmo modo.
Logo, o desenvolvimento precisa ser implementado tomando-se por base os
empregados e seus interesses; (V) porte econômico, dado que as medidas
aplicáveis à uma multinacional ou empresa de grande porte não devem ser
tomadas quando se trate de uma microempresa ou empresa de pequeno
porte10.
Neste viés, concluindo-se que um negócio não representa a viabilidade
necessária à aplicação da recuperação judicial, o mais adequado é se pleitear
pela convolação em falência, que é a saída mais adequada para empresas
inviáveis. Isto é, se nenhum empreendedor observou na empresa uma
alternativa atraente de investimento, e a reorganização do negócio não
estimula nem mesmo os seus proprietários/controladores, o encerramento da
atividade e realocação dos recursos nela existentes atendem mais à
economia11.
Um exemplo característico de disfunção no caráter da viabilidade está
relacionado ao “valor idiossincrático da empresa”, que consiste em atributo
exclusivamente conferido pelo dono. Isto porque é natural que o controlador da
sociedade empresária, muitas vezes seu fundador, e responsável pela maior
parte das quotas, tenha uma relação subjetiva com o negócio, valorizando a
empresa de modo particular. Neste caso, pode atribuir ao negócio um valor
econômico não condizente com a realidade, o que por vezes torna difícil a
perspectiva de que é necessária a realização de medidas em favor da
recuperação.
Por vezes, o controlador resiste à realização de negócios voltados à recapitalização e reorganização do negócio porque não sente devidamente considerado pelos adquirentes ou investidores o esforço pessoal dele impregnado na empresa. A característica essencial da valoração idiossincrática é a de que nenhum empreendedor, especulador, corretor, especialista em avaliação de ativos ou qualquer outro agente econômico acha que a empresa vale o quanto
o dono quer12.
10 ULHOA, Fábio. Op. cit., p. 486 e 487. 11 Ibid., p. 296. 12 Ibid., p. 297.
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1.2.1 Do plano de recuperação judicial
Sob a ótica dos elementos analisados, a partir da decisão que defere o
processamento da recuperação judicial, deverá ser apresentado um Plano de
Recuperação Judicial (PRJ) aos credores no prazo de 60 dias, de acordo com
o artigo 53 da LRE. Mas, devido à complexidade da estruturação de um plano
efetivo, muitas empresas iniciam-no antes mesmo do ajuizamento da ação ou
da negociação com os credores. De qualquer modo, entende-se tratar de prazo
dilatório, visto que, havendo justificativa plausível, é viável a ampliação do
prazo para que se apresente um plano em atenção às condições materiais
necessárias13, dentre elas, a discriminação pormenorizada dos meios a serem
aplicados. Isto é, uma demonstração prática de como se realizará o
procedimento.
Assim, o art. 50 da LRE enumera, num rol exemplificativo, possíveis
maneiras de recuperação da atividade, estando a cargo do Administrador
Judicial – AJ – (agente nomeado pelo magistrado para gerir o processamento
da recuperação) juntamente ao advogado e demais profissionais, fazer a
análise dos meios que tenham o condão de manter a atividade, a despeito de
que nada impeça se pensar em outro modo de reestruturar o negócio.
Dentre as hipóteses listadas no artigo 50, encontram-se condições e
prazos especiais para pagamento; operações societárias (cisão, fusão,
incorporação, transformação); venda de ativos; usufruto da empresa;
restruturação do capital ou da administração; arrendamento do
estabelecimento; renegociação de obrigações trabalhistas; etc.
Sendo muitas as possibilidades, ressalte-se a classificação realizada por
Ricardo Negrão, que separa os meios de recuperação de acordo com a
conjuntura da crise sobre a qual incidirão: (I) meios dilatórios, remissórios ou
mistos; (II) meio meramente remissório; (III) meios que agem diretamente sobre
13 GUERRA, Luiz Antônio. Recuperação judicial e contrato de trespasse como meio de
recuperação judicial - Alienação do estabelecimento à sociedade empresária constituída
por empregados do devedor, inviabilidade jurídica de constituição de sociedade
cooperativa para explorar empresa. Âmbito Jurídico, 2009. Disponível em:
. Acesso em 12
de abril de 2018.
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o perfil objetivo da empresa; (IV) meios que agem diretamente sobre o perfil
funcional da empresa; (V) meios que agem diretamente sobre o perfil
corporativo da empresa14. Já Marlon Tomazette, para fins didáticos, estabelece
a classificação dos meios como “medidas financeiras, medidas societárias,
medidas referentes à gestão, captação de recursos e transferência da
atividade”15. Fato é que há uma margem de liberdade para definir e coadunar
tais hipóteses, de acordo com suas peculiaridades, a fim de que se demonstre
aos credores as reais perspectivas de soerguimento da atividade.
1.3 Pressupostos de incidência da recuperação judicial
A despeito de haver algumas pessoas jurídicas excluídas dos efeitos da
Lei em comento, como já dito, a recuperação judicial é a mais amplamente
utilizada para recuperação das empresas, denominando-se recuperação
judicial ordinária. Há, no entanto, outras modalidades legalmente previstas,
como o plano especial (previsto nos arts. 70 a 72, da LRE), a homologação de
recuperação extrajudicial (arts. 161 a 166, da LRE), bem como o acordo
privado entre credores e devedor (art. 167 da LRE).
Muito embora cada meio cuide de suas peculiaridades, há incidência de
requisitos comuns à todas as modalidades de recuperação, estabelecidos no
artigo 48 da LRE, a saber:
Art. 48. Poderá requerer recuperação judicial o devedor que, no momento do pedido, exerça regularmente suas atividades há mais de 2 (dois) anos e que atenda aos seguintes requisitos, cumulativamente: I - não ser falido e, se o foi, estejam declaradas extintas, por sentença transitada em julgado, as responsabilidades daí decorrentes; II - não ter, há menos de 5 (cinco) anos, obtido concessão de recuperação judicial; III - não ter, há menos de 8 (oito) anos, obtido concessão de recuperação judicial com base no plano especial de que trata a Seção V deste Capítulo; III - não ter, há menos de 5 (cinco) anos, obtido concessão de recuperação judicial com base no plano especial de que trata a Seção V deste Capítulo; (Redação dada pela Lei Complementar nº 147, de 2014)
14 NEGRÃO, Ricardo. Direito Empresarial, Estudo Unificado. 5ª ed. São Paulo, Saraiva, 2014, p. 189. 15 TOMAZETTE, Marlon. Op. cit., p. 271.
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IV - não ter sido condenado ou não ter, como administrador ou sócio controlador, pessoa condenada por qualquer dos crimes previstos nesta Lei16.
1.3.1 Quanto ao exercício regular da atividade há mais de dois anos
Este requisito será comprovado com a juntada de certidão da junta
comercial, que demonstrará o exercício da atividade, a regularidade deste
exercício e permanência na atividade há pelo menos dois anos. Isso se justifica
porque o instituto da recuperação visa preservar empresa que esteja em
funcionamento, logo, os que não estejam em plena atividade não atendem ao
critério da viabilidade, anteriormente tratado. E, também, porque uma empresa
exercida há menos de dois anos não goza da relevância econômica que
justifique a intervenção judicial, não satisfazendo o critério.
De outro modo, importante verificar se o empresário não é impedido e
cumpre os deveres inerentes à atividade que são a ele impostos, mesmo
porque a lei não pode conceder a prerrogativa à empresários irregulares, com
escriturações contábeis pendentes, que não demonstrem as verificações legais
exigidas17.
1.3.2 Quanto a não ser falido
O falido é inabilitado para o exercício da empresa, pelo menos até a
extinção de suas obrigações. Logo, impedido de exercer a atividade, não
consegue preencher o requisito do exercício regular, gerando uma reação em
cadeia. Marlon Tomazette acredita tratar-se de uma redundância legislativa,
mas que, apesar disso, o legislador impôs tal condição para impossibilitar o
pedido de recuperação judicial apenas com vistas a suspender os efeitos da
falência. Com efeito, a recuperação judicial pode ser pleiteada até o prazo pra
16 BRASIL, Lei nº 11.101/2005, 9 de fevereiro de 2005. Disponível em: . Acesso em 28 maio de 2018. 17 Justamente devido à necessidade de demonstração da regularidade do exercício da empresa é que as sociedades de fato não têm acesso à recuperação judicial. Assim, mesmo que haja atividade empresarial, não conseguem preencher o requisito do exercício regular, porque sequer são registradas em Junta Comercial. Em suma, sem exercício formal da atividade, não há que se falar em recuperação judicial.
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defesa, mas nunca após a falência, pois, a partir deste momento, a solução da
crise será a liquidação patrimonial e não a manutenção da atividade18.
Decretada a falência, desde que estejam adimplidas as obrigações que
a ensejaram, pode-se pedir a recuperação para o início da nova atividade,
cumprindo-se os demais requisitos.
1.3.3 Quanto a não ter obtido outra recuperação judicial
Este requisito se justifica por não permitir que o empresário se utilize
indiscriminadamente do instituto para superar as crises econômico-financeiras.
A recuperação é sim um meio que deve ser incentivado, mas não pode servir
como alicerce para a transferência do risco empresarial para os credores (já
tratada anteriormente). Deste modo, a recuperação judicial não pode ser regra
no âmbito da administração, aplicável somente em caráter excepcional. “O uso
da recuperação judicial em mais momentos próximos denota a incompetência
do empresário em gerir aquele negócio e, por isso, afasta a possibilidade de
nova recuperação”19.
No que diz respeito ao decurso do prazo entre pedidos de recuperação
judicial, deve-se observar um lapso de pelo menos cinco anos para a
recuperação judicial ordinária e especial (nesta, o prazo era de oito anos,
sendo reduzido pela Lei Complementar nº 147/2014 no intuito de não onerar
aqueles que por ela optem), e de apenas dois anos com relação à recuperação
extrajudicial (art. 161, §3º, da LRE), há, portanto, regra especial para cada
modalidade20. Infere-se que, embora não deva ser utilizada sem critério, é
possível que o empresário se utilize do instituto mais de uma vez, desde que
atendido o limite temporal, sendo os prazos contados entre o dia da concessão
da recuperação por ato judicial e o dia do novo pedido.
18 TOMAZETTE, Marlon. Op. cit., p. 110. 19 Ibid., p. 110. 20 NEGRÃO, Ricardo. Op. cit., p. 186.
-
20
1.3.4 Quanto a não condenação por crime falimentar
A ideia deste requisito é restringir o acesso à recuperação apenas aos
devedores de boa-fé, isto é, de idoneidade presumida. No entanto, a ausência
de condenação por crime falimentar é obrigatória apenas quando do pedido,
cumprindo destacar, também, que eventual condenação deve ter transitado em
julgado, não cabendo recurso ou outro meio de suspendê-la. Isso se deve à
presunção de inocência prevista no artigo 5º, LVII, da Constituição Federal
(CF), de modo que o recebimento da denúncia ou a condenação sem trânsito
em julgado não impedem a feitura do pedido de recuperação, assim como não
obstam o seu prosseguimento, quando já iniciada.
No que se refere às sociedades empresárias, o requisito é aplicável aos
administradores (diretores e membros de conselho de administração) e
controladores (sócios ou acionistas), isto é, àqueles que tenham poder de
direção da atividade empresária, não recaindo sobre o controle externo,
exercido por pessoas que façam uso de meios diferentes do voto para gerir a
atividade.
Já no que toca às sociedades, Tomazette afirma haver um retrocesso na
legislação, tendo em vista a indefinição legislativa entre a pessoa jurídica e
seus sócios controladores ou administradores.
Se a pessoa jurídica cumpre os requisitos, não se deve impedir a recuperação, pois é ela que se sujeitará a tal procedimento e não os seus sócios. Ora, apenas sociedades personificadas podem pedir a recuperação e, nessas sociedades, há uma clara distinção entre a pessoa jurídica e os sócios ou administradores21.
Logo, misturar esse conceito faz com que o erro dos sócios acarrete no
prejuízo da pessoa jurídica, que não poderá pedir a recuperação. O autor
defende que, para compatibilizar a prática com tal exigência, ao requerer a
recuperação a sociedade deve proceder pela prévia substituição dos
administradores ou alienação do controle societário.
21 TOMAZETTE, Marlon. Op. cit., p. 112.
-
21
1.4 A relevância dos princípios da função social e preservação da
empresa no procedimento de recuperação
O art. 5º, XXII, da Constituição Federal (CF), determina o direito à
propriedade como direito fundamental, sendo assegurada a todos os
particulares a propriedade de seus meios de produção, e é justamente o que
possibilita a atividade empresarial. Ocorre que a própria Constituição delimita o
exercício deste direito, com vistas ao princípio da função social. O art. 170 da
CF apresenta de modo claro os princípios gerais da ordem econômica, dentre
os quais se incluem a propriedade privada, e a função social da propriedade:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) II - propriedade privada; III - função social da propriedade; (...) Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei22.
Sob essa ótica, conclui-se que o direito de propriedade também se
desenvolveu de acordo com as mudanças ideológicas do Estado, de modo que
se preza pela riqueza social, em detrimento de uma visão egocêntrica do
proprietário, em função do atendimento às necessidades materiais difusas23.
Tomazette afirma que “o direito à propriedade passa a ser um poder-dever de
exercer a propriedade vinculada a uma finalidade”24, não havendo, portanto,
liberdade absoluta no direito de propriedade, justamente com vistas a coibir os
atos emulativos (abuso de direito) e permitir o cumprimento da função social,
22 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal. Disponível em: Acesso em 04 de junho de 2018. 23 GUERRA, Érica. Função Social da Empresa e Recuperação Judicial. Jus Brasil, 2014. Disponível em: Acesso em 30 de maio de 2018. 24 TOMAZETTE, Marlon. Op. cit., p. 95.
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22
expressamente norteador do processo de recuperação judicial, conforme se
depreende do artigo 47 da Lei nº 11.101/2005.
Portanto, é inerente ao exercício da empresa a atenção aos demais
interesses sociais que a envolvem, como os interesses dos trabalhadores, do
fisco, da comunidade, dos consumidores, fornecedores, e também dos
credores.
Ademais, reiterando entendimento já abordado, pode-se dizer que o
princípio da função social é corolário do critério de viabilidade, pois, ao se
pensar em proceder pela recuperação judicial, deve-se observar sua
importância social. Notoriamente, se a empresa for viável e puder exercer
muito bem sua função social, justificam-se os esforços no sentido da sua
recuperação.
Precisamente, pelo artigo 47 da LRE se deduz a importância do princípio
da preservação da empresa, justamente porque dele decorre o objeto principal
do instituto: a manutenção da atividade. Não há deste modo, intenção precípua
de auxiliar a pessoa do empresário, embora esta seja uma consequência,
justamente porque a empresa, em si, é mais importante do que o interesse
individual, ao passo que sua manutenção viabiliza o amparo a outros direitos
difusos. Por isso independe-se de quem seja o titular (o que justifica, por
exemplo, a prévia substituição de administradores que tenham cometido crime
falimentar para propiciar que a sociedade requeira sua recuperação judicial,
como anteriormente abordado).
Mesmo o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ponderou pela aplicação do
princípio em detrimento da aplicação literal da lei. Isto porque determinou a
continuidade da suspensão de todas as ações e execuções em face do
devedor, ainda que ulterior ao prazo de 180 dias fixado no artigo 6º, §4º da
LRE, tendo em vista que, se assim não fosse, inviabilizaria a superação da
crise e manutenção da atividade. Trata-se de uma acentuação do stay period,
período de suspensão de todas as ações e execuções em face do devedor,
quando do deferimento do processamento da recuperação judicial pelo juízo.
-
23
Deste modo, consoante Tomazette, o princípio da preservação da
empresa vem para atenuar o rigor da lei, em prol do interesse maior da
superação das crises25.
Daí, inclusive a instalação de Assembleia Geral de Credores visa
atender tais princípios, essencialmente porque, retraçar uma rota,
estabelecendo um plano para a crise, é interesse tanto das sociedades quanto
dos próprios credores. Estes poderão analisar os riscos em que incorrerão com
a aprovação do plano, bem como as chances reais de ver seu crédito
adimplido; e é de interesse das sociedades porque dependem justamente da
deliberação e aprovação do plano de recuperação judicial para manutenção da
atividade.
Neste contexto, os princípios da função social e preservação da
empresa são consectários do trâmite da recuperação judicial, devendo estar
plenamente demonstrados na fase postulatória (de elaboração do plano e
pedido de recuperação judicial), para que possam ensejar sua aprovação na
fase deliberativa, em Assembleia Geral de Credores, objeto do capítulo
seguinte.
25 TOMAZETTE, Marlon. Op. cit., p. 97.
-
24
CAPÍTULO II
OS CREDORES EM ASSEMBLEIA
2.1 Noções da assembleia geral de credores
Primeiramente, cumpre destacar que, quando da decisão que defere o
processamento da recuperação judicial, ocorrem dois efeitos importantes: (I) a
paralisação de quaisquer ações/execuções em face do devedor, ou seja, o stay
period, já abordado; e (II) ajustes para determinação de um quadro-geral de
credores.
No momento do ajuizamento da petição inicial que pleiteia o favor legal,
o devedor deve elaborar lista com a relação nominal completa de credores, a
natureza e valor atualizado de seus créditos, de acordo com o que dispõe o art.
51, inciso III, da LRE. Após, nomeando-se Administrador Judicial pelo juízo,
este fica responsável pela elaboração de uma segunda relação de credores,
cujo prazo é de 15 dias para que apresentem habilitações ou impugnações aos
créditos relacionados, conforme se extrai dos artigos 22 c/c 7º, §§1º e 2º, da
LRE. Deste modo, o objetivo principal é a elaboração de uma terceira lista,
referente à consolidação de um quadro-geral de credores, que deve ser
homologada pelo magistrado responsável, de acordo com o art. 18, caput, da
LRE. Assim, vê-se que a relação de credores sofre um fracionamento a fim de
que se chegue a um denominador comum, habilitando-se os respetivos
créditos e seus respectivos titulares ao processamento da recuperação judicial,
qualificados para participação na Assembleia Geral de Credores (AGC).
Outrossim, como se sabe, uma das finalidades precípuas do direito
empresarial é justamente a proteção ao crédito. A AGC, neste sentido, é o
meio de se assegurar às pessoas sujeitas aos efeitos da falência/recuperação
judicial a chance de participar ativamente dos procedimentos, haja vista que,
conforme já demonstrado, são as principais interessadas. Esta consiste na
reunião dos credores, “ordenados em categorias derivadas da natureza de
seus respectivos créditos, com o fim de deliberar sobre as matérias que a lei
-
25
venha a exigir sua manifestação, ou sobre aquelas que possam lhes
interessar”26.
É fato que, no que se refere à AGC, há interesses em comum entre os
credores, ao passo que todos objetivam o adimplemento do devedor, assim
como a busca pelo maior número possível de bens. Mas os interesses podem
divergir a medida que cada credor visa alcançar condições especiais para ter
saldado seu credito.
Dessarte, necessária a deliberação destes pra que se determine, por
maioria, se, e por quais meios o plano será efetivado. Não o sendo, a rejeição
ao plano acarreta na convolação da recuperação judicial em falência, e pode-
se dizer que isto, de certo modo, incentiva a aprovação do plano ou a
apresentação de alterações, por ser de melhor interesse para os credores27.
Neste sentido, pode-se dizer que a assembleia de credores será
convocada em caso de impugnação ao plano por parte de qualquer credor,
devendo ocorrer, de acordo com o artigo 56, §1º da LRE, em data que não
extrapole o prazo de 150 dias entre o deferimento do processamento e
realização da assembleia. Não havendo objeção, o juiz deferirá, de plano, o
pedido de recuperação judicial, independentemente de convocação da
assembleia, conforme se extrai do art. 57, da mesma lei.
Trata-se, neste caso, de um aceite tácito, caso em que o devedor
somente ficará obrigado à apresentação das certidões negativas de débitos
tributários, nos termos do Código Tributário Nacional.
2.1.1 Competências
Contrario sensu, ao tomar conhecimento de qualquer objeção, de acordo
com o art. 56, da LRE, será convocada a assembleia. E, em consonância com
o art. 35, da Lei 11.101/2005, compete à ACG, na recuperação judicial,
deliberar sobre:
26 CAMPINHO, Sérgio. Curso de Direito Comercial: Falência e Recuperação de Empresa. 8ª ed. São Paulo, Saraiva, 2017, p. 89. 27 TADDEI, Marcelo. Alguns aspectos polêmicos da recuperação judicial. Âmbito Jurídico, 2010. Disponível em: Acesso em 31 de maio de 2018.
-
26
Art. 35. A assembleia-geral de credores terá por atribuições deliberar sobre: I - na recuperação judicial: a) aprovação, rejeição ou modificação do plano de recuperação judicial apresentado pelo devedor; b) a constituição do Comitê de Credores, a escolha de seus membros e sua substituição; c) (VETADO) d) o pedido de desistência do devedor, nos termos do § 4o do art. 52 desta Lei; e) o nome do gestor judicial, quando do afastamento do devedor; f) qualquer outra matéria que possa afetar os interesses dos credores28.
Sérgio Campinho estabelece uma classificação de competências da
assembleia geral de credores, relacionada às matérias que requerem a
deliberação. Se incidentais ao procedimento, sua instalação será facultativa,
motivada apenas por interesse verificado em caráter geral ou particular a
determinada categoria de credores29.
Se a matéria se referir a incidente processual específico, obrigatória a
sua instalação para deliberar sobre: a aprovação, rejeição, ou modificação do
plano de recuperação judicial, desde que impugnado; pedido de desistência do
devedor quanto ao requerimento da recuperação judicial, desde que já deferido
seu processamento; escolha do gestor judicial, quando do afastamento do
devedor da administração direta da empresa. Ou seja, obrigatória a deliberação
de credores nos casos das alíneas “a”, “d”, e “e”. No que toca à competência
de modificação expressa pela alínea “a”, interprete-se que a real função dos
credores, neste caso, é apenas levantar propostas de modificação, não
devendo impô-las de modo autônomo.
Quanto à deliberação facultativa, naturalmente, verificar-se-á para
decidir acerca: da constituição do Comitê de Credores (alínea “b”); ou no caso
de qualquer outra matéria que possa afetar os interesses dos credores (alínea
“f”).
Infere-se, no caso desta última, que atribui-se à assembleia competência
geral para deliberar sobre quaisquer temáticas que lhes sejam de interesse,
28 BRASIL, Lei nº 11.101/2005, 9 de fevereiro de 2005. Disponível em: . Acesso em 30 de maio de 2018. 29 CAMPINHO, Sérgio. Op. cit., p. 89.
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27
tratando-se de cláusula geral que objetiva assegurar a atuação dos credores
sempre que for possível30. Porém, para esta situação, a LRE (art. 36, §2º)
prevê a convocação judicial pelos credores cujo crédito seja de, ao menos,
25% do valor total dos créditos de uma determinada classe.
2.1.2 Composição e deliberação
Para que se assegure proporcionalidade na deliberação da AGC, esta é
dividida em classes, que terão prerrogativas distintas relativamente ao voto.
São estas as seguintes: (I) titulares de créditos trabalhistas ou decorrentes de
acidentes de trabalho; (II) titulares de crédito com garantia real; (III) titulares de
créditos quirografários, com privilégio especial, geral ou subordinados; (IV)
titulares de créditos referentes à microempresa31 ou empresa de pequeno
porte.
Os créditos trabalhistas, derivados tanto da legislação do trabalho como
por acidente de trabalho, têm prioridade absoluta no concurso de credores,
mas esse privilégio, com ressalva aos créditos por acidente, se limita a 150
salários mínimos por credor na falência. Quanto ao excedente, portanto, aplica-
se a categoria dos credores quirografários. No entanto, essa regra não
encontra aplicação na assembleia geral, de modo que aos credores
trabalhistas é assegurado o voto pelo total de seu crédito, não importando o
valor. Já os titulares de créditos gravados de garantia real votam na proporção
do valor do(s) bem(s) gravado(s), enquadrando-se também como quirografários
no que se exceder32.
A aprovação do plano de recuperação judicial, mesmo tendo em vista as
peculiaridades do peso dos votos de cada classe, deverá ocorrer por todas as
classes de credores, no entanto. De acordo com Campinho, “a votação terá um
curso especial, sendo realizada dentro de cada classe em particular”33.
30 TOMAZETTE, Marlon. Op. cit., p. 206. 31 Sérgio Campinho (op. cit., p. 93) esclarece que, neste caso, incluem-se os microempreendedores individuais (MEI), devido ao fato de que se incluem na categoria de microempresa. 32 FÁZZIO JR., Waldo. Nova lei de falência e recuperação de empresa. 2ª ed. São Paulo, Atlas, 2005, p. 171. 33 CAMPINHO, Sérgio. Loc. cit., p. 96.
-
28
Para os créditos quirografários, créditos com privilégio especial, créditos
com privilégio geral ou subordinados, bem como os com garantia real, a
aprovação depende de mais de 50% do valor total dos créditos em aberto,
cumulativamente à maioria simples dos credores presentes. Isto é, deve-se
observância a dois requisitos não alternativos.
Em relação aos créditos trabalhistas, contudo, há mais uma prerrogativa,
porquanto para a aprovação baste a maioria simples de credores presentes,
sendo o voto por cabeça, independentemente do saldo em aberto. O mesmo
método se observa quanto aos créditos enquadrados em microempresa e
empresa de pequeno porte.
Não obstante, a Lei 11.101/2005 prevê outra possibilidade de aprovação
do plano a despeito do não preenchimento dos requisitos anteriormente
tratados. Esta se dá em atenção ao princípio da recuperação judicial da
empresa, e prevê a opção de o juiz deferir o plano de recuperação judicial de
ofício, desde que atingidas as seguintes condições: (I) independentemente de
classes, que haja o voto favorável dos credores que representem mais da
metade dos créditos totais da assembleia; (II) aprovação do plano de
recuperação por pelo menos duas das classes participantes da assembleia e,
não havendo mais de duas, a aprovação de uma delas; (III) voto favorável de
mais de um de um terço dos credores.
Atendidas essas premissas, o §1º do art. 58, da LRE, enuncia que o
magistrado deverá conceder a recuperação, não o fazendo somente se
verificada ilegalidade no conteúdo do plano ou nos pressupostos de incidência
da recuperação judicial34. No mesmo sentido, Joaquim Antônio Penalva Santos
leciona que o juiz goza desta prerrogativa, e aponta:
Manoel Justino Bezerra Filho (op. cit., p.113) adota o entendimento de que o juiz pode tomar decisões fundamentadas, contrárias às da assembleia-geral, ao constatar existência de prática de ato ilícito no curso da recuperação, obedecido o disposto no art. 165 do CPC e no inciso IX do art. 93 da Constituição Federal35.
34 CAMPINHO, Sérgio. Op. cit., p. 97. 35 PENALVA, J. A. Santos. Recuperação Judicial de Empresas. 1ª ed. Rio de Janeiro, Espaço Jurídico, 2007, p. 72. Apud BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Nova Lei de Recuperação e Falências Comentada. 3ª ed. São Paulo, Revista dos Tribunais. 2005.
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29
Destaque-se, ainda, que para que a recuperação judicial seja deferida
nestes moldes, o plano não deverá ensejar tratamento desigual para os
credores das classes que o houverem rejeitado. Esta questão, no entanto,
apresenta pontos muito controversos. Havendo polêmica também no que toca
ao tratamento diferenciado entre credores de mesma classe, e mesmo quanto
à possibilidade de o plano aprovado em assembleia geral sofrer alterações de
ofício pelo juízo. Questões a serem melhor destrinchadas no próximo capítulo,
tratando-se do mecanismo do Cram Down.
2.2 Perfil administrativo da assembleia geral de credores
O perfil administrativo da AGC associa-se à sua equidistância da esfera
judicial, isto é, as decisões passam tão somente pelo crivo dos credores, em
detrimento da atuação do magistrado responsável. Isto porque a recuperação
judicial, tendo o condão de beneficiar a empresa em crise, não pode, para
tanto, prejudicar em grandes proporções os seus credores. O objetivo é que o
plano traga proveitos ao devedor, mas sem corroborar em prejuízos à
coletividade. De conformidade com esta ideia, a Lei 11.101/2005 prima pelo
princípio da autonomia da vontade dos credores, nos termos do art. 58:
Art. 58. Cumpridas as exigências desta Lei, o juiz concederá a recuperação judicial do devedor cujo plano não tenha sofrido objeção de credor nos termos do art. 55 desta Lei ou tenha sido aprovado pela assembleia-geral de credores na forma do art. 45 desta Lei36.
Observa-se, neste sentido, que não há faculdade do magistrado quanto
à concessão do plano de recuperação judicial já aprovado pelos credores, de
modo que a autonomia da vontade é tida como regra, sendo apenas
circunstancialmente necessária a análise judicial. Não cabe ao magistrado, por
exemplo, decidir sobre o percentual do aviltamento proposto pelo devedor, ou
sobre os critérios de parcelamento da dívida, porque são os agentes de
mercado os responsáveis por avaliar se a proposta da devedora tem o
36 BRASIL, Lei nº 11.101/2005, 9 de fevereiro de 2005. Disponível em: . Acesso em 04 de junho de 2018.
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30
potencial de conduzir a atividade à recuperação. Justamente por essa lógica,
do caráter central da negociação entre credores e devedores, se fundamenta o
princípio da Soberania da Decisão dos Credores em Assembleia.
Pode-se antecipar que há um paradoxo jurídico com relação a esta
interferência, mas, em termos gerais, diz-se que as deliberações da AGC têm
sim este caráter soberano, não cabendo ao juiz, a princípio, ir contra a vontade
dos credores. Isto é, uma vez aprovado o plano, não cumpre ao magistrado
rejeitá-lo; ou, desaprovado, o juiz não pode (a princípio), decidir pela sua
aprovação. Infere-se que, de acordo com essa concepção se incumbe ao
julgador papel meramente homologatório37.
Principalmente no que diz respeito ao conteúdo econômico financeiro do
plano de recuperação judicial, o papel administrativo da assembleia se torna
mais evidente, até mesmo porque “parece equivocado o fato de o judiciário
interferir nas concessões ou acréscimos de juros e correções no plano de
recuperação judicial, uma vez que não há melhor defensor dos interesses da
recuperação que os próprios credores”38. Assim, toma-se por óbvio o fato de
que o magistrado não tem capacitação técnica para intervir em questões de
economia e finanças empresariais. Havendo um consenso entre as partes –
credores e devedor –, desde que não fique expresso vício de vontade ou
ilegalidade, não há fundamento que respalde a interferência judiciária no
deferimento do plano.
No mesmo sentido se firmou a Primeira Jornada de Direito Comercial,
cujo enunciado de nº 46 aduz:
46. Não compete ao juiz deixar de conceder a recuperação judicial ou de homologar a extrajudicial com fundamento na análise econômico-financeira do plano de recuperação aprovado pelos credores39.
37 TOMAZETTE, Marlon. Soberania da Assembleia Geral de Credores. Direito Comercial, 2017. Disponível em: Acesso em 31 de maio de 2018. 38 FERREIRA, Erick; CONSTANTINI, Viccenzo. A Soberania da Assembleia Geral de Credores e o Controle de Legalidade. Jus Brasil, 2016. Disponível em: Acesso em 31 de maio de 2018. 39 I Jornada de Direito Comercial. Conselho da Justiça Federal. 2013. Disponível em: Acesso em 31 de maio de 2018.
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31
Também, a jurisprudência dos Tribunais brasileiros já se firma neste
sentido: de que o juiz não deva interferir nos aspectos negociais do plano de
recuperação judicial. Mas, por outro lado, tem o poder-dever de controlar os
aspectos legais. Mesmo o Superior Tribunal de Justiça, que em recente
julgamento de Agravo em Recurso Especial (AREsp 1277075 SP
2018/0064911-8) negou provimento ao recurso, tendo em vista que a decisão
que trancou o seguimento do Recurso Especial atendia aos fundamentos
anteriormente mencionados, não procedendo sua impugnação:
AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL Nº 1.277.075 – SP (2018/0064911-8). RELATOR: MINISTRO MARCO AURÉLIO BELIZZE. AGRAVANTE: BANCO DO BRASIL S/A. AGRAVADO: ALIMENTOS WILSON LTDA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL; DTHOKI INVESTIMENTOS E PARTICIPAÇÕES S.A – EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. REPRESENTADOS POR: ELY DE OLIVEIRA FARIA – ADMINISTRADOR JUDICIAL. AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. 1. IRRESIGNAÇÃO AO PLANO DE RECUPERAÇÃO APROVADO PELA ASSEMBLEIA DE CREDORES. REVISÃO DAS CONCLUSÕES ESTADUAIS. IMPOSSIBILIDADE. NECESSIDADE DE REVOLVIMENTO FÁTICO-PROBATÓRIO DOS AUTOS. SUMULA 7/STJ. 2. AGRAVO CONHECIDO PARA NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO ESPECIAL. DECISÃO Trata-se de agravo interposto por Banco do Brasil S.A contra decisão que negou seguimento ao recurso especial, com fundamento na alínea a do permissivo constitucional, desafiando acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo assim ementado (e-STJ, fl. 244): AGRAVO DE INSTRUMENTO RECUPERAÇÃO JUDICIAL insurgência contra decisão que, nos termos do art. 58, caput, e §1º da Lei 11.101/05, concedeu a recuperação judicial à agravada (...) Exercício do controle de legalidade do plano de recuperação judicial. Dever do magistrado, que se restringe ao controle de legalidade do plano de recuperação no que se refere ao repúdio à fraude e ao abuso de direito de Criação de subclasses. Ausência de ilegalidade no tratamento conferido a grupo de credores colaborativos/parceiros/fomentadores, que contribuem para o êxito da recuperação judicial. (...) Como sabido, o plano de recuperação judicial é destinado aos credores e a assembleia geral de credores é que possui soberania para sua aprovação. Conforme já expressou este E. Tribunal de Justiça, o Plano de Recuperação Judicial nada mais é do que uma transação realizada entre devedora e credores, com a novação da dívida original e a concessão de novos prazos para pagamento. (...) Não se olvide que nos termos do Enunciado nº 44 da I Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal, a homologação do plano de recuperação judicial aprovado pelos credores está sujeita ao controle judicial da legalidade (...) Nesse contexto, a revisão do julgado com o consequente acolhimento da pretensão recursal não prescindiria do reexame das circunstâncias fático probatórias da causa, o que não se admite em âmbito de recurso especial, ante o óbice da Sumula n. 7 deste Tribunal. Ademais, o tribunal de origem concluiu ser inviável a discussão judicial acerca do mérito do plano de recuperação devidamente aprovado em Assembleia soberana, como
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32
ocorreu na espécie, ficando a cargo do Judiciário apenas o controle da legalidade do ato jurídico em seu aspecto formal. (...) (STJ – AREsp: 1277075 SP 2018/0064911-8, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELIZZE, Data da Publicação: DJ 01/06/2018)40.
Vale dizer, ainda, que muito embora já tenha se pacificado o
entendimento aqui abordado, na prática há sim muitos problemas de
identificação dos limites entre legalidade e mérito. O juiz de Direito da 1ª Vara
de Falências de São Paulo, Daniel Carnio, também membro da comissão de
juristas do Ministério da Fazenda que elaborou o projeto da Lei 11.101/2005,
propõe um critério prático para que ocorra o exercício do controle de legalidade
do PRJ, no sentido de orientar a conduta dos envolvidos no processo
recuperacional, devendo este se dar em quatro fases41:
A primeira fase, mais evidente dentre as outras, trata-se de realizar o
controle das cláusulas do plano, verificando, se mesmo aprovado em AGC, não
há violação ao ordenamento jurídico ou à ordem pública. Um exemplo menos
abstrato seria, por exemplo, com relação à cláusula que versa sobre haver
convolação da recuperação em falência em caso de descumprimento da
obrigação, mesmo com vencimento posterior aos dois anos de fiscalização
legal. Por óbvio, este tipo de critério não compete aos credores, mas à Lei que
o regulamenta.
Já no que se refere à segunda fase, ocorre a verificação de defeitos no
negócio jurídico proveniente da AGC. Este deve ser desprovido de vícios de
consentimento ou vícios sociais, como dolo, erro, estado de perigo, lesão,
coação, ou fraude contra credores, por exemplo. Neste sentido, o intuito é
verificar se os credores estavam devidamente informados quanto ao conteúdo
e objetivos do plano, e mesmo se o devedor não ficou em patamar de
vulnerabilidade quanto à possíveis modificações propostas. Para tanto,
40 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo em Recurso Especial: AREsp n. 1277075 SP 2018/0064911-8. Ministro Relator Marco Aurélio Belizze. Julgado em 01/06/2018. Jus Brasil, 2018. Disponível em: Acesso em 05 de junho de 2018. 41 CARNIO, Daniel. O Critério Tetrafásico de Controle Judicial do Plano de Recuperação Judicial. Brasil Jurídico, 2018. Disponível em: Acesso em 31 de maio de 2018.
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33
importante que o magistrado esteja munido com informações pertinentes,
fornecidas pelo AJ e credores em geral.
A terceira fase do controle judicial do plano é mais sutil, referindo-se à
investigação de que a decisão tomada pela maioria dos credores, quando se
estender aos credores discordantes, não afeta a legalidade. Se a aplicação da
cláusula aos dissidentes afetar a ordem pública, não pode ser eficaz. Neste
caso, o juiz pode homologar a cláusula desde que o faça ressalvando
expressamente a inaplicabilidade aos credores divergentes.
Por fim, a quarta fase é relativa à análise da abusividade do voto do
credor. Considera-se voto abusivo aquele que não é compatível com o
exercício do direito. Assim, poderá ser considerado abusivo o voto do credor
que for incompatível com a função social da recuperação judicial, critério tão
valorizado neste âmbito.
Por exemplo, se um credor se recusa a negociar, insistindo em receber 100% de seu crédito, ele age, em tese, de forma legítima e de acordo com a realização de seu interesse particular. Entretanto, se esse voto for decisivo para determinar o encerramento de atividade empresarial saudável, com o desaparecimento dos empregos, da renda, dos produtos, dos serviços e dos tributos, o juiz deverá desconsiderar esse voto, fazendo prevalecer o interesse social sobre o interesse particular de um credor específico42.
Apesar disso, considerando que não é um viés consolidado e pacífico,
infere-se que não se pode ser drástico em nenhum dos entendimentos.
Tomazette afirma que não se deve atribuir ao magistrado um papel de mero
homologador das manifestações dos credores. Assim como este não pode
gozar da prerrogativa de interferir livremente na recuperação judicial, ignorando
o crivo dos credores, justamente porque tal conduta afrontaria a ideia base de
haver um consenso no âmbito da recuperação judicial43.
Fato é que, de toda sorte, a Lei 11.101/2005 evidentemente ampliou a
autonomia da assembleia de credores, atribuindo ao judiciário uma postura
menos intervencionista em comparação ao Decreto-Lei 7.661/1945, em que a
42 CARNIO, Daniel. Op. cit., acesso em 31 de maio de 2018. 43 TOMAZETTE, Marlon. Op. cit., acesso em 31 de maio de 2018.
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concordata44 era tida como um favor legis, sendo as providências muito mais
concentradas no judiciário.
Então, haja vista a interpretação literal do art. 58 da LRE, infere-se que a
atuação do juiz é limitada à concessão da recuperação judicial desde que
cumpridas as exigências da norma. Sob essa ótica, a assembleia geral permite
a novação do contrato entre empresa e credores, sendo esta última relação
negocial de interesse precípuo dos detentores do direito patrimonial em
discussão, assim como a análise das projeções de sucesso do plano e os
graus de renúncia e tolerância – que têm base na transferência temporária do
risco da atividade, já mencionada -, dependendo exclusivamente da
ponderação dos credores45.
2.3 Perfil prático da assembleia geral de credores
2.3.1 Caso concreto: Considerações legais a partir do verificado na
recuperação judicial do Grupo Oi, no Brasil
Pode-se dizer que, dentre milhares de pedidos de recuperação judicial
sob a tutela da Lei 11.101/2005, sem dúvida o mais representativo até o
momento é o do Grupo Oi. A empresa, principal provedora de serviços de
telecomunicações do Brasil, abrange quase todo o país, com exceção de São
Paulo, tendo aproximadamente 60 milhões de clientes, que utilizam os mais
diversos tipos de serviços prestados pela Companhia, como telefonia fixa e
móvel, banda larga, TV por assinatura, etc.46
Além disso, o grupo conta com cerca de 131,3 mil trabalhadores, em
postos de trabalho diretos e indiretos, além de recolher cerca de 34 bilhões de
44 Possibilidade de o empresário obter, em juízo, prorrogação de prazo para pagamento de créditos quirografários e sem garantia real. Tratava-se de um benefício em favor do devedor para que se formasse uma espécie de contrato monitorado pelo magistrado, visando a reabilitação do devedor em estado de insolvência. Foi extinta com a entrada em vigor do instituto da recuperação judicial. 45 OLIVEIRA, Luciana Lima. Juiz deve limitar-se à análise formal de plano de recuperação judicial. Consultor Jurídico, 2016. Disponível em: Acesso em 31 de maio de 2018. 46 OI S.A, em Recuperação Judicial. Perfil Corporativo. 2017. Disponível em: Acesso em 31 de maio de 2018.
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reais em tributos aos cofres públicos, todo ano47. Como se vê, o número de
pessoas físicas e jurídicas envolvidas nas relações trabalhistas e
consumeristas do Grupo é expressivo, o que dá escopo (a julgar pela análise
da relevância social da empresa) à viabilidade que justifica a conjunção de
esforços e tutela judicial para manutenção da atividade.
O grupo atribui a instabilidade da situação econômico-financeira à
fatores como a retenção vultosa de recursos voltados aos depósitos judiciais,
oriundos de lides trabalhistas, fiscais, e cíveis, que têm impacto imediato na
liquidez da empresa; além de exorbitantes multas administrativas aplicadas
particularmente pela ANATEL (Agência Nacional de Telecomunicações). Não
obstante, o serviço de telefonia fixa não demonstrou progresso nos últimos
anos, de modo que, para manter essa prestação, a Companhia tem realizado
grandes investimentos em regiões remotas, cujo poder aquisitivo da população
é baixo, o que não traz o retorno financeiro quando se contrasta com a
exigência regulatória dos serviços de telecomunicações no país.
Ademais, o perfil de mercado atendido pelas concessionárias de
telefonia fixa, concorrentes do Grupo, se mostra mais homogêneo e de maior
controle econômico. Conjunção de fatores tais que impossibilitaram o
adimplemento de diversas obrigações do Grupo Oi, em especial as assumidas
com fulcro em empréstimos financeiros e captação de recursos48, o que levou a
Companhia a requerer sua recuperação judicial.
Tendo o pedido sido protocolizado em 20 de junho de 2016, perante a 7ª
Vara Empresarial do Rio de Janeiro, a recuperação judicial da Oi contempla
sete empresas coligadas, incluindo a holding49 e subsidiárias, tornando-se a
mais vultosa no Brasil, em todos os tempos.
O valor da dívida foi avaliado em cerca de 65 bilhões de reais, referente
à aproximadamente 55 mil credores. Resta claro, portanto, que uma
recuperação judicial tão complexa está sob o radar dos especialistas, no
47 OI S.A, em Recuperação judicial. Comunicados/Notícias. Ata da Assembleia Geral de Credores, 2017. Disponível em: Acesso em 31 de maio de 2018. 48 Ibid. Acesso em 05 de junho de 2018. 49 “Empresa-mãe”. Aquela que detém a porção majoritária de ações de outras empresas, subsidiárias, de modo a centralizar o controle sobre elas.
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objetivo de observar a interpretação da norma, que certamente servirá de
precedente para outros processamentos de recuperação judicial.
Interessante, também, notar que o Grupo Oi prima pela publicidade do
trâmite processual, tendo criado um site exclusivamente voltado para sua
recuperação, onde é possível ter acesso à uma série de relatórios mensais
progressivos, que visam fornecer tanto ao juízo, como aos possíveis
interessados, informações pertinentes sobre as recuperandas e operações por
elas efetuadas.
A seguir, é possível verificar organograma publicado no relatório mensal
do mês de janeiro deste ano, elaborado pelo Administrador Judicial, Escritório
de Advocacia Arnoldo Wald, em conjunto com a RC Consultores,
subcontratada pelo AJ para auxiliá-lo neste fim.
Figura 1 - Recuperandas do Grupo Oi50
Dentre os aspectos jurídicos da recuperação, pode-se destacar a
confirmação de posicionamentos jurisprudenciais precedentes, como a
50 OI S.A, em Recuperação Judicial. Relatório Mensal de Atividades (RMA) de Janeiro de 2018. Disponível em Acesso em 31 de maio de 2018
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prorrogação do stay period, anteriormente abordado, tendo em vista que um
processo de recuperação judicial deste vulto dificilmente obteria sucesso
autorizando-se o prosseguimento das execuções após apenas 180 dias.
De outro modo, no entanto, a 7ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro
desconsiderou parecer da 4ª Turma do STJ, que definiu a contagem dos
prazos processuais, no âmbito da recuperação judicial, em dias corridos e
ininterruptos. O juízo responsável pelo processamento da recuperação judicial
da Oi determinou, expressamente, que os prazos processuais, para este caso,
deverão ser contados em dia úteis.
Além disso, a recuperação judicial da Oi também exigiu o exame da
jurisdição estrangeira, em especial porque, dentre as recuperandas, duas das
empresas são voltadas para investimentos e captação de recursos, tendo sede
na Holanda: PTIF e Oi Coop. Observando que as atividades produtivas do
Grupo Oi ocorrem no Brasil, o magistrado deferiu o processamento da
recuperação judicial das empresas holandesas no país, mas, na Corte de
Justiça Holandesa, houve a decretação de sua falência51. Este entrave,
todavia, parece já ter sido dirimido, haja vista a Oi ter noticiado recentemente
que o PRJ também já foi aprovado pelos credores da PTIF e Oi Coop,
informando aos acionistas e ao mercado em geral que a assembleia das
recuperandas ocorreu em 1 de junho de 2018, no Tribunal de Amsterdã,
definidos planos de composição regidos pela lei holandesa, cuja função é de
dar eficácia ao PRJ brasileiro, internacionalmente.
Os termos vigentes refletem materialmente os termos do Plano RJ, de modo a assegurar que todos os aspectos materiais do Plano RJ tenham efeito obrigatório para credores e partes interessadas, não apenas no Brasil, mas também em outros territórios, incluindo os Países Baixos e o Reino Unido52.
51 PAES, Antônio. A recuperação judicial da Oi e sua influência nos próximos processos. Estadão, 2018. Disponível em: Acesso em 01 de junho de 2018. 52 OI S.A, em Recuperação Judicial. Comunicado ao Mercado, 2018. Disponível em: Acesso em 06 de junho de 2018.
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Ora, também há que se falar primordialmente sobre o papel decisivo dos
credores no cerne deste processo de recuperação. Inclusive, bastante
evidenciado pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, ao passo
que o Desembargador Cezar Augusto Costa reconheceu o princípio da
Soberania da Decisão dos Credores em Assembleia, dependendo a aprovação
do PRJ da prévia concordância dos milhares de credores, propiciada pela
medida de unificação de ativos e passivos das empresas em recuperação
judicial, atenuando a capacidade decisória das recuperandas.
Do mesmo modo, a recuperação judicial do Grupo Oi goza da
especificidade de admitir novas versões do PRJ mesmo após o prazo legal (de
60 dias, conforme artigo 53 da LRE, já abordado), o que demonstra mais uma
mitigação da interpretação estrita da lei (que traz o termo “improrrogável” em
seu texto), em função da soberania da decisão dos credores. A dilação do
prazo se justifica porque, a primeira versão do plano foi protocolada em
setembro de 2016, respeitando o prazo legal, mas a AGC veio a ocorrer
somente em dezembro de 2017.
Portanto, era de interesse das partes envolvidas no processo que o
plano fosse atualizado de acordo com as evoluções das transações entre as
empresas devedoras do Grupo Oi e os credores, isto é, em compasso com a
situação econômico-financeira destes53. Ainda assim, foram necessárias mais
de 15 horas de negociação para se chegar a um denominador comum, no dia
20 de dezembro de 2017, definindo-se certos ajustes ao PRJ, como a redução
da dívida, conversão de parte dos créditos em ações da Companhia e injeção
obrigatória de capital para prosseguimento do plano.
Parte do acordo firmado em assembleia trata-se do adimplemento inicial
de parte dos credores, referentes à lista publicada pelo AJ em maio deste ano,
cujo pagamento pode ser escolhido por meio de uma plataforma eletrônica
especialmente criada para este fim54, diferindo bondholders55 e credores em
geral. Neste sentido, observa-se que mais este passo do cumprimento do plano
53 PAES, Antônio. Op. cit., acesso em 01 de junho de 2018. 54 A plataforma eletrônica para a escolha da opção de pagamento está disponível em: 55 Investidores que efetivamente possuem interesse econômico no resultado da reorganização judicial, detentores de títulos de longo prazo da empresa.
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de recuperação judicial visa atender aos interesses dos credores, ideia análoga
à soberania da AGC.
Interessante observar, também, um incidente no processamento da
recuperação judicial, particularizado pela rejeição a um procedimento arbitral
iniciado pela acionista “Bratel” contra a Companhia, na Câmara de Arbitragem
do Mercado, para tratar sobre questões relacionadas ao PRJ já homologado
pelo juízo recuperacional.
A provocação do juízo arbitral ocorreu sem que houvesse qualquer
manifestação da Oi. Entendeu-se que a arbitragem, neste caso, criaria ilegais
obstáculos a realização das medidas estipuladas no PRJ, bem como iria de
encontro à deliberação soberana da Assembleia Geral de Credores, que já o
havia aprovado. Erro grotesco, levando-se em conta que, nos termos do artigo
59 da LRE, a homologação judicial das disposições do PRJ vinculam as
recuperandas, acionistas, sócios, e demais credores concursais.
Além disso, pode-se dizer que a provocação da arbitragem, neste caso,
também afronta a decisão judicial que homologou o plano, e ignora a
competência exclusiva da 7ª Vara Empresarial do Rio de Janeiro56.
Observa-se, neste sentido, clara primazia da AGC, solidificada no âmbito
do processo, pelo que se infere do Relatório Mensal de Atividades publicado
pela devedora.
Mas, ressalte-se que, além das peculiaridades processuais, no seu
campo de atuação, o Grupo Oi vem implementando programas de
reestruturação interna, que juntamente à execução do PRJ, objetivam
preservar e aumentar os seus ativos, compreendendo mais de 370 iniciativas
que visam aumentar a competitividade da Companhia no mercado, com
crescimento da produtividade, redução de custos e despesas, aumento da
eficiência operacional e melhoria da qualidade dos serviços.
Exemplo claro deste andamento se observa com a redução de 21,6% de
reclamações ao Procon, em que pese ter se investido num aplicativo que
funciona como um Técnico Virtual, fornecendo suporte técnico imediato e evita
transtornos aos consumidores57. Como fornecedora de produtos serviços, as
investidas em avanço na digitalização podem representar maior eficiência
56 OI S.A, em Recuperação Judicial. Op. cit. (RMA), acesso em 31 de maio de 2018. 57 OI S.A, em Recuperação Judicial. Op. cit. (Ata AGC), acesso em 05 de junho de 2018.
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operacional, em que pese reverter os gastos em depósitos judiciais, conforme
se abordou, para medidas preventivas, que poupam tempo e recursos.
De todo modo, a breve abordagem sobre o processamento da
recuperação judicial do Grupo Oi, e as suas medidas práticas para possibilitar a
recuperação, está aquém de esgotar o assunto.
Mas, certamente, se conclui que no âmbito deste processo se promovem
algumas inovações bastante representativas na interpretação legislativa, de
modo a preencher as lacunas da Lei 11.101/2005, adequando o texto
normativo ao seu propósito prático. Apenas com o desenrolar do processo,
observando a atuação do juízo e dos credores, e quando das próximas
recuperações judiciais, será possível verificar a abertura de efetivos
precedentes que, até o momento, são apenas projeções.
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CAPÍTULO III
SOBRE O CRAM DOWN
3.1 Breves considerações
Em observância ao papel soberano da Assembleia Geral de Credores,
abordada no capítulo anterior, viu-se que a concessão da recuperação judicial
é condicionada à aprovação dos credores em deliberação. Assim, ausentes
quaisquer objeções ao PRJ, uma vez aprovado (mesmo que com certas
modificações propostas em assembleia), este fica sujeito apenas ao controle
de legalidade formal pelo juízo, que se abstém de análise mais incisiva.
No entanto, pode-se dizer que a práxis, bem como parte da doutrina e
da jurisprudência, entendem que se pode aplicar a intervenção judicial para
além do parâmetro da legalidade. Questão ainda não sedimentada na
jurisdição brasileira, cuja análise será feita neste capítulo.
A Lei 11.101/2005, no artigo 58, ora comentado, excepciona a
concessão da recuperação judicial pelo juízo a despeito da rejeição pela
Assembleia Geral de Credores. Trata-se de uma perspectiva oriunda do
sistema falimentar norte-americano, melhor abordado a seguir, onde teve início
o Cram Down.
3.2 O sistema recuperacional norte-americano e o Cram Down
Nos Estados Unidos, o primeiro diploma legal que de fato dispôs sobre a
recuperação judicial de empresas surgiu em 1934, no contexto pós quebra da
Bolsa de Valores de Nova York, em 1929, propondo-se a atenuar os efeitos da
crise58.
Mas, o sistema falimentar norte-americano só fora fundamentalmente
disposto em meados de 1978, por meio do Bankruptcy Code59, cujo conteúdo
prevê cinco espécies de procedimentos falimentares, dentre os quais se
destaca o ordenamento relacionado ao processo de recuperação judicial,
58 ULHOA, Fábio. Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 9ª ed. São Paulo, Saraiva, 2013, p. 45. 59 Tradução literal: Código de Falências.
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disposto no Chapter Eleven (capítulo 11), denominado Reorganization, mais
semelhante à recuperação judicial brasileira, servindo-lhe de inspiração.
Este código, segundo Fábio Ulhoa, tem origem na crise do setor
ferroviário da segunda metade do século XIX, que gerou precauções no sentido
de se propiciar a negociação entre os interessados. Diz o autor, também, que
soluções como a conversão do crédito em ações da devedora, tornando os
credores sócios, são oriundas destes modelos iniciais de planos de
reorganização60. Inclusive, como se viu, a conversão do crédito inadimplido em
ações do Grupo Oi foi justamente uma das escolhas trazidas no âmbito de
negociação da recuperação judicial da Companhia.
De qualquer forma, o procedimento do capítulo 11 pode se resumir em
quatro principais fundamentos: (I) ampla possibilidade de transação entre
credores e devedores; (II) divisão de classes e subdivisão de credores de
interesses similares; (III) propensão em consentimento ao devedor, que requer
oportunidade de resgate e manutenção da atividade, uma nova oportunidade –
fresh start –; (IV) reconhecimento de amplos poderes jurisdicionais ao juiz,
tendo em vista a tutela e legalidade do processo, mas, essencialmente, a
possível determinação direta e obrigatória aos credores, a fim de que aceitem o
PRJ apresentado pelo devedor61.
No que diz respeito ao fresh start, cumpre destacar que se trata também
de possibilitar que o empresário retorne mais facilmente à atividade
empresarial, como