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UNIVERSIDADE NOVE DE JULHO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO - PPGE
A DISCIPLINA DE LÍNGUA PORTUGUESA PARA O CICLO I DO ENSINO FUNDAMENTAL DA SECRETARIA ESTADUAL DE EDUCAÇAO DE
SÃO PAULO
SHEILA MORESCHI CAMPOS DE SOUZA
SÃO PAULO 2014
SHEILA MORESCHI CAMPOS DE SOUZA
A DISCIPLINA DE LÍNGUA PORTUGUESA PARA O CICLO I, DO ENSINO FUNDAMENTAL DA SECRETARIA ESTADUAL DE EDUCAÇAO DE SÃO PAULO
Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Educação da Universidade Nove de Julho –
UNINOVE, Linha de Pesquisa em Políticas Educacionais e
Organização do Trabalho Escolar, como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre em Educação.
Prof. Celso do Prado Ferraz de Carvalho, Dr. -
Orientador
SÃO PAULO/SP 2014
Souza, Sheila Moreschi Campos de.
A disciplina de língua portuguesa para o Ciclo I do Ensino Fundamental da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo./ Sheila Moreschi Campos de Souza. 2014.
111 f.
Dissertação (Mestrado), Uninove, 2014.
Orientador: Prof. Dr. Celso do Prado Ferraz de Carvalho.
SOUZA, Sheila Moreschi Campos de. A disciplina de língua portuguesa para o Ciclo I, do Ensino Fundamental da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo. São
Paulo: UNINOVE, Dissertação de Mestrado em Educação, 2014. Banca Examinadora:
______________________________________________________
Prof. Dr. Celso do Prado Ferraz de Carvalho – UNINOVE
______________________________________________________ Prof. Dr. Miguel Henrique Russo - UNINOVE
_____________________________________________________ Prof. Dr. Júlio Gomes Almeida – UNICID
_____________________________________________________ Prof. Dr. José Eustáquio Romão – UNINOVE
Diretor do Programa - PPGE
RESUMO
Esta pesquisa tem como tema central a Proposta Curricular Unificada implantada de
forma linear, pela Secretaria de Estado da Educação de São Paulo, na rede estadual
de Educação Básica, no início do ano de 2008. Nosso objeto é a disciplina de Língua
Portuguesa para o Ciclo I, do Ensino Fundamental. Considerando os objetivos da
proposta, busca-se compreender, por meio da fala dos professores dos anos iniciais
da Educação Fundamental, como eles tem-se apropriado da proposta no exercício
da prática escolar, o que pensam a respeito da oferta de recursos didático-
pedagógicos para as escolas e de que modo articulam suas mudanças com o debate
sobre a qualidade na educação. As fontes primárias da pesquisa se constituíram dos
documentos que orientam o currículo para as séries iniciais e de entrevistas
semiestruturadas com professores. Nas respostas dos professores, a maioria se
mostra sensível à proposta curricular, diferindo apenas pela maior incidência de
certos elementos apontados nas mudanças e o grau de importância que lhes é
atribuído. Pôde-se perceber, também, que as mudanças introduzidas nas
orientações curriculares estão sendo apropriadas no cotidiano e na prática dos
professores. Por meio das entrevistas foi possível verificar que, dar voz aos
professores para que exponham o cotidiano escolar, criam-se condições que podem
ajudar no desenvolvimento do pensamento crítico sobre as políticas educacionais e
na melhoria de sua condição de trabalho.
Palavras-chave: Políticas educacionais. Currículo. Ensino Fundamental. Ciclo I. Língua Portuguesa.
ABSTRACT
This research has as its central theme the Unified Curriculum Proposal implanted
linearly by the Secretary of Education of the São Paulo State in the state system of
Basic Education at the beginning of the year 2008. Our object is the discipline of
Portuguese Language for the Cycle I of the Elementary School. Considering the
objectives of this proposal seeks to understand by means of the speech of teachers
in the early years of elementary education as they have appropriated the proposal in
the course of school practice, what they think about the offer of didactic-pedagogical
resources to schools and how they articulate their changes of this subject with the
debate on quality in education. The primary sources of research are constituted of
documents that guide the curriculum for the early grades and semi-structured
interviews with teachers. In the teachers' responses the majority of them show
sensitive to curriculum proposal differing only by the higher incidence of certain
elements pointed out on the changes and the degree of importance attributed to
them. It might also be noticed that the changes introduced in the curriculum
guidelines are appropriate in everyday life and in the practice of teachers. Through
the interviews it was possible to verify that giving voice to the teachers to expose the
school routine creates conditions that can help in the development of critical thinking
on educational policies and the improvement of their working condition.
Key words: Educational Policies. Curriculum. Elementary Education. Cycle I.
Portuguese Language.
RESUMO
Esta investigación tiene como tema céntrico la Propuesta Curricular Unificada
implantada de forma lineal, por la Secretaría de Estado de la Educación de São
Paulo, en la red provincial de Educación Básica en el inicio del año 2008. Nuestro
objeto es la disciplina de Lengua Portuguesa para el Ciclo I, de la Enseñanza
Fundamental. Considerando los objetivos de la Propuesta, búsqueda-comprenderse,
por medio del habla de los profesores de los años iniciales de la Educación
Fundamental, como ellos se ha apropiado de la propuesta en el ejercicio de la
práctica escolar, lo que piensan acerca de la oferta de recursos didáctico-
pedagógicos para las escuelas y de que modo articulan sus cambios con el debate
sobre la calidad en la educación. Las fuentes primarias de la investigación se
constituyeron de los documentos que orientan el currículo para las series iniciales y
de entrevistas semi estructuradas con profesores. En las respuestas de los
profesores, la mayoría se muestra sensible a la propuesta curricular, difiriendo sólo
por la mayor incidencia de ciertos elementos apuntados en los cambios y el grado de
peso que les es atribuido. Se pudo percibir, también, que los cambios introducidos en
las orientaciones curriculares están siendo apropiados en el cotidiano y en la práctica
de los profesores. Por medio de las entrevistas fue posible verificar que, dar voz a los
profesores para que expongan el cotidiano escolar, se crean condiciones que
pueden ayudar en el desarrollo del pensamiento crítico sobre las políticas
educacionales y en la mejoría de su condición de trabajo.
Palabras clave: Políticas Educacionales. Currículo. Enseñanza Fundamental. Ciclo
I. Lengua portuguesa.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...................................................................................................12
Capítulo 1- Contexto contemporâneo das Reformas Curriculares......................................................................................................22
1.1 As agências de financiamento internacionais..............................................31
1.2 A ideologia da globalização.........................................................................35
1.3 O discurso sobre a qualidade da educação................................................38
Capítulo 2 - O Currículo...................................................................................41
2.1 Teoria curricular clássico-humanista............................................................43
2.2 Teorias curriculares tradicionais ..................................................................48
2.3 Teorias curriculares tradicionais-progressivistas .........................................49
2.4 Teorias curriculares tecnicistas ....................................................................51
2.5 Teorias curriculares críticas .........................................................................52
2.6 Teorias curriculares pós-críticas ..................................................................55
2.7 Teorias curriculares estruturalista e pós-estruturalista.................................56
Capítulo 3 - Currículo de Língua Portuguesa para o Ciclo I do Ensino Fundamental no Estado de São Paulo...........................................................60
3.1 A origem das “Orientações Curriculares”.....................................................60
3.2 As “Orientações Curriculares” e o “Programa Ler e Escrever”....................66
3.3 Os objetivos das “Orientações Curriculares”...............................................68
3.4 A Proposta Curricular para o Ensino Fundamental do Estado de São Paulo..................................................................................................................75
3.5 As “Propostas Curriculares” e as “Orientações Curriculares”......................78
Capítulo 4 - As mudanças nas orientações curriculares na perspectiva dos professores..................................................................................................... 83
4.1 Mudanças na formação básica profissional dos professores..................... 85
4.2 Mudanças nas orientações curriculares..................................................... 88
4.3 Mudanças curriculares na disciplina de Língua Portuguesa...................... 95
Considerações finais.....................................................................................102
Referências ....................................................................................................104
Tabela
Caracterização dos professores entrevistados................................................ 84
Gráfico
Ordem hierárquica na elaboração do Currículo............................................... 64
12
INTRODUÇÃO
A escola é citada como espaço de transmissão de cultura, aprendizagem e
intercâmbio de ideias por diversos autores que se têm dedicado ao estudo e à
reflexão, sob perspectivas diversificadas, da forma que ela se organiza. Com um
olhar mais investigativo, movimentos econômicos e políticos dominantes, no decorrer
da história, deixam nesse espaço de transmissão suas influências materializando-as
nas particularidades do currículo escolar que transparecem, por exemplo, nas ideias
que norteiam os livros-texto e outros materiais pedagógicos distribuídos aos alunos.
Sem se aprofundar em todos os motivos e no alcance da sua influência, ‒ pois este
não é o foco desta pesquisa ‒ podemos encontrar na dicotomia entre teoria e prática
o que está registrado nas orientações oficiais e o que, de fato, é colocado em prática
na sala de aula, indícios do efetivo produto do trabalho escolar.
Nas bases do discurso teórico curricular aparecem marcas de momentos
econômicos e políticos que proporcionam condições à escola para que esta ‒ como
espaço de transmissão ‒ perpetue relações, preparando futuras gerações para
assumirem postos de trabalho e, também, a conviver em sociedade, conformando-as
às regras de disciplina e comportamentos aceitáveis e colaboradores para o bom
andamento da ordem. Nesta dimensão, a cultura escolar assume um caráter
funcionalista e/ou estruturalista.
Os momentos econômicos e políticos e a alternância de movimentos
dominantes refletem no sistema educacional. O poder de influência que a escola é
capaz de exercer na cultura tem sido usado como objeto por diversos setores da
sociedade. Explícitos ou velados, o discurso e as práticas escolares através do
currículo, demostram formas de transmissão e transformação da cultura.
Neste trabalho de pesquisa, parto do princípio de que “[...] um objeto de
pesquisa nunca é dado; é construído.” e que este “[...] não é um pacote fechado que
o pesquisador abre e investiga e sim um conjunto de possibilidades que o
pesquisador percebe e desenvolve, construindo, assim, aos poucos, o seu objeto.”
(BUFFA; NOSELLA, 2009, p. 56) sendo que a atividade consciente de reflexão e
objetivação nas práticas do trabalho é a marca que diferencia a atividade da espécie
humana da animal, que é apenas repetitiva, instintiva e esvaziada de sentido. Ao
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objetivar o trabalho, somente o homem demonstra essa capacidade de reflexão com
vistas ao futuro. Marx (1867) menciona essa característica do homem em O capital:
Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua colméia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho aparece um resultado que já existia antes idealmente na imaginação do trabalhador. Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade. E essa subordinação não é um ato fortuito. Além do esforço dos órgãos que trabalham, é mister a vontade adequada que se manifesta através da atenção durante todo o curso do trabalho. (MARX, v. 1, parte III, Cap. VII, Seçção1).
No percurso deste trabalho, tenho como ponto de partida na construção do
objeto de pesquisa para a dissertação de Mestrado em Educação na Uninove, a
minha formação na graduação em Pedagogia pela Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo (FEUSP), além da vivência, ao longo dos últimos dez
anos dedicados à alfabetização nas séries iniciais, como professora efetiva do
Ensino Fundamental, do Ciclo I, na Rede Estadual de Educação do Estado de São
Paulo e dos cursos de aprimoramento como o “Programa de Formação de
Professores Alfabetizadores – Programa Letra e Vida”1, destinado aos professores
que trabalham com leitura e escrita.
Em busca de aperfeiçoamento para o trabalho como professora, com vistas a
identificar possibilidades de oferecer aos alunos oportunidades em situações de
aprendizagem significativas na leitura e escrita, conforme constam nas orientações
curriculares para o ensino da Língua Portuguesa, encontrei nas referências
bibliográficas relacionadas a alfabetização, o “currículo” como tema recorrente.
Assim, nesta pesquisa, tenho como objeto de estudo a Proposta Curricular de Língua
1-O “Programa Letra e Vida” tem como Órgão/Instituição responsável a Coordenadoria de Estudos e Normas Pedagógicas (CENP) e Secretaria Estadual de Educação (SEE). A equipe foi constituída em abril de 2003 com a justificativa de promover a formação de todos os professores da rede estadual que atuam no Ciclo I e, a partir de 2005, foi estendido a 420 municípios que solicitaram a parceria com a SEE. (VIANA, 2000, p.6), cf: <http://www.bibliotecavirtual.sp.gov.br/cgibin/wxis.exe?IsisScript=/projetos/bv/script2.xis&base=cds&from=00086&to=00086>.
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Portuguesa do Ensino Fundamental, no Ciclo I, na rede estadual de ensino, em São
Paulo.
O currículo, dentro da prática educativa, compõe-se de um conjunto de
características e peculiaridades que variam dependendo de quem, como e em que
condições foi produzido política, histórica, filosófica, socialmente etc. O formato do
currículo se define, a princípio, a partir das escolhas que se fazem no âmbito dos
conteúdos nele contidos. Portanto, esses conteúdos não são um agrupamento
aleatório e desordenado de conhecimentos e essas escolhas refletem desde o
contexto da sua elaboração, na prática como se realiza e no resultado obtido que se
mostra através de instrumentos de avaliação. Portanto, a concepção processual do
currículo no contexto em que se produziu, situa-se num elemento fundamental para o
estudo das ações que lhe deram forma e conteúdo.
O currículo atual da rede estadual de Educação Básica do Estado de São
Paulo tem sua origem na Proposta Curricular Unificada, implantada de forma linear
em toda rede estadual de Educação Básica, no início do ano de 2008, como parte
integrante dos objetivos do Programa São Paulo Faz Escola.
Este programa, criado em 2007, tem como foco a implantação de um currículo
único para todas as mais de cinco mil escolas da rede pública estadual. A fim de
consolidar a articulação com o currículo em ação nas salas de aula, a Coordenadoria
de Gestão da Educação Básica (CGEB) da Secretaria de Educação Estadual
disponibiliza a toda a rede o conteúdo do currículo proposto (Currículo, Cadernos do
Gestor, Cadernos do Professor e Cadernos do Aluno). “Com a intenção de subsidiar
o ensino dos conteúdos mais relevantes a serem garantidos ao longo das quatro
séries iniciais do ciclo I do Ensino Fundamental [...]” (SP-SEE, 2008, p. 3) pela
sistematização da utilização do mesmo material didático e seguindo o mesmo plano
de aula, o Programa São Paulo Faz Escola pretende contribuir para o processo da
melhoria na qualidade do ensino paulista.
Segundo a Secretaria Estadual de Educação (SEE), a proposta de construção
de um currículo unificado teve como objetivo “[...] organizar melhor o sistema
educacional de São Paulo [...]”, por meio de uma “[...] ação integrada e articulada
[...]” entre as escolas, visando promover “[...] uma educação à altura dos desafios
contemporâneos [...]”, fundamentada nos “[...] princípios para um currículo
15
comprometido com o seu tempo.. (SP-SEE Proposta Curricular, 2008, p. 8-10) De
modo geral, a proposta apresentada foi construída a partir dos seguintes princípios:
Uma escola que também aprende; O currículo como espaço de cultura; As competências como referências; Prioridade para a competência da leitura e da escrita; Articulação das competências para aprender; Articulação com o mundo do trabalho. (SP-SEE, PROPOSTA CURRICULAR, 2008, p.10-24).
Segundo o documento, o princípio de “[...] uma escola que também aprende
[...]” parte da concepção de que “[...] ninguém conhece tudo e de que o
conhecimento coletivo é maior que a soma dos conhecimentos individuais.” (SP-SEE
PROPOSTA CURRICULAR, p. 12, 2008). As ações individuais são desestimuladas e
se sugere maior empenho ao trabalho colaborativo, fazendo uso da tecnologia que
viabilize e imprime maior ritmo, por parte de professores, gestores, agentes
formadores e todos aqueles envolvidos na aprendizagem dos alunos.
Como o objetivo geral da proposta é a unificação do currículo além do avanço
na qualidade do ensino, os termos utilizados como “construção coletiva”, “reflexão e
prática compartilhada”, “convivência como situação de aprendizagem”, “trabalho
colaborativo” encontrados no texto de apresentação, vem confrontar o
posicionamento individualista que possa vir a ser encontrado por alguns profissionais
na escola e que, consequentemente, acabam por dificultar a introdução de
mudanças no coletivo. “[...] a capacidade de aprender terá de ser trabalhada não
apenas nos alunos, mas na própria escola, enquanto instituição educativa: tanto as
instituições como os docentes terão de aprender.” (SP-SEE PROPOSTA
CURRICULAR, p.12, 2008). A nova proposta investe na mudança de posicionamento
dos docentes de que não apenas ensinem, mas também aprendam e que a própria
escola não é a exclusiva detentora de conhecimentos a ensinar, mas é um espaço
de cultura e de expressão do conhecimento que não é finito.
Ações propostas pela Secretaria Estadual de Educação como a construção
coletiva e as práticas pedagógicas compartilhadas rompem com a concepção da
teoria do currículo tradicional, onde o conhecimento é fixo e imutável, extraído de
valores tradicionais, absolutos, incondicionais, incontestáveis e se aproximam das
teorias críticas cedendo espaço ao questionamento e à transformação.
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As orientações curriculares propõem articular o conhecimento que a
humanidade acumulou nas culturas científica, artística e humanista para desenvolver
competências que tornem os alunos “[...] adultos preparados para exercer suas
responsabilidades (trabalho, família, autonomia, etc.) e para atuar numa sociedade
que muito precisa deles [...]” (SP-SEE, PROPOSTA CURRICULAR, p.13, 2008) no
mundo trabalho. “O trabalho enquanto produção de bens e serviços revela-se como
a prática humana mais importante para conectar os conteúdos do currículo com a
realidade.”, e “[...] a LDB faz referência ao trabalho, juntamente com as práticas
sociais, como elemento que vincula a educação básica à realidade, da Educação
Infantil até o final do Ensino Médio.” (SP-SEE, PROPOSTA CURRICULAR, 2008, p.
23).
O conceito de competências, como referência para atender as
demandas do mundo contemporâneo, do ponto de vista cultural, político e
econômico, está fundamentado na Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB) e nas Diretrizes e Parâmetros Curriculares Nacionais. Além de
dar prioridade para a competência de leitura e da escrita, as orientações
curriculares contemplam as múltiplas linguagens presentes no cotidiano pelos
meios de comunicação ‒ códigos sonoros e visuais, gráficos, diagramas,
desenhos, fotografias, símbolos, linguagens específicas utilizadas em
programas automatizados etc. – que os alunos possam se utilizar para
expressar sua forma de compreensão e representação do mundo. A
ampliação dos tipos de linguagem está articulada à diversidade do repertório
cultural e ao grupo social dos alunos que, nas orientações curriculares,
precisa reconhecer a multiculturalidade e a diversidade em consonância com
o art. 210 da Constituição Federal de 1988, que determina como dever do
Estado fixar “[...] conteúdos mínimos para o Ensino Fundamental, de maneira
a assegurar a formação básica comum e respeito aos valores culturais e
artísticos, nacionais e regionais.” (BRASIL, 1988).
A ênfase no desenvolvimento de competências para o mundo do trabalho se
distancia do modelo humanista clássico que tinha como um dos objetivos mais
destacados introduzir os educandos nos mais altos ideais do espírito humanista e se
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aproxima do modelo tecnocrático e progressista pela valorização da preparação para
o mundo do trabalho, ainda que restem, nas especificidades das orientações
curriculares, outras possibilidades de análise.
Um dos objetivos destacados da nova proposta curricular é “[...] contribuir no
processo para a melhoria na qualidade do Sistema de Ensino, principalmente no
tocante às 10 metas estabelecidas pela Secretaria, em agosto de 2007.”, conforme a
seguir enumerado:
1.Todos os alunos de 8 anos plenamente alfabetizados. 2.Redução de 50% das taxas de reprovação da 8ª série. 3.Redução de 50% das taxas de reprovação do Ensino Médio. 4.Implantação de programas de recuperação de aprendizagem no Ensino Fundamental e Médio. 5.Aumento de 10% nos índices de desempenho do Ensino Fundamental e Médio nas avaliações nacionais e estaduais. 6.Atendimento de 100% da demanda de jovens e adultos de Ensino Médio com currículo diversificado. 7.Implantação do Ensino Fundamental de nove anos, com prioridade à municipalização das séries iniciais (1ª a 4ª séries). 8.Programas de formação continuada e capacitação da equipe. 9.Descentralização e/ou municipalização do programa de alimentação escolar nos 30 municípios ainda centralizados. 10.Programa de obras e melhorias de infra-estrutura das escolas. (SP-SEE, ORIENTAÇÕES CURRICULARES, 2008, p. 3).
Traçadas as metas a serem alcançadas em data pré-determinada,
subsequentes medidas regulamentadoras foram aprovadas através de mecanismos
legais que delinearam a política educacional que se buscou implementar. Das 10
metas estabelecidas em 2007, as questões de caráter estrutural são as que tiveram
normas baixadas por leis e decretos e estão entre as que mais se aproximaram de
resultados positivos esperados. Isso pode ser visto, por exemplo, pelos dispositivos
criados e aprovados que se ajustam ao cumprimento da meta 7 com respeito a
ampliação da duração do Ensino Fundamental para nove anos2. No tocante às
questões da qualidade do ensino, porém, apesar de fundamentadas nos regimentos
legais, as limitações no cumprimento são evidentes. Na meta 1, por exemplo, que
2 Em 6 de fevereiro de 2006 é instituída a Lei nº 11.274, que alterou os artigos 29, 30, 32 e 87 da LDB nº 9.394/1996, de 20 de dezembro de 1996, estabelecendo prazo até 2010 para que os municípios, os estados e o Distrito Federal programem a nova política obrigatória nos estabelecimentos de ensino.
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trata de todos os alunos de oito anos plenamente alfabetizados, há indícios que não
foi plenamente atingida, conforme estudos realizados de acordo com os índices
apresentados pelo sistemas de avaliação nacional. O percurso para o cumprimento
das metas de qualidade é complexo e a identificação das iniciativas exitosas e os
avanços significativos nas propostas até agora manifestas precisam encontrar
condições e espaços para que se transformem em potenciais instrumentos em prol
da melhoria da qualidade do ensino.
A SP-SEE, através do documento Orientações Curriculares de Língua
Portuguesa para as séries iniciais, pretende subsidiar e dar referências para a
elaboração dos planejamentos de ensino e escolha de materiais didáticos
adequados a todos os envolvidos no processo de ensino de Língua Portuguesa. (cf.
SP-SEE, APRESENTAÇÃO DAS ORIENTAÇÕES CURRICULARES, 2008, p. 3). Considerando os objetivos expostos pela SP-SEE para as atuais mudanças
no currículo oficial, este trabalho orienta sua investigação no sentido de responder
ao seguinte questionamento: qual a compreensão que os professores dos anos
iniciais no Ensino Fundamental têm da atual proposta curricular de Língua
Portuguesa? Essa proposta alterou o trabalho do professor? Se sim, de que forma?
Quanto os professores se mostram sensíveis às mudanças introduzidas em relação
ao modelo anterior? Estes compartilham as expectativas da SP-SEE de que as
mudanças contribuem para melhoria da qualidade de ensino?
A partir de outras pesquisas, há elementos para que a hipótese em estudo
indique que, a princípio, a atual proposta curricular tenha enfrentado certa medida de
resistência dos professores, não pela consciência desses acerca do conteúdo da
reforma, mas sim, de uma reação à mudança e pela interferência em seu cotidiano.
Os professores deverão perceber que a proposta não modifica substancialmente seu
trabalho à medida que terão maior contato com esta e/ou que a SEE venha a utilizar
recursos para diminuir a resistência, são elementos que apontam para a
pressuposição de que ela passe, após a sua implantação, a encontrar maior
aceitação.
No exercício de pesquisa e análise, tenho como objetivo compreender a atual
proposta curricular, à luz das concepções teóricas do currículo, ou seja, verificar com
qual concepção essa proposta da SP-SEE se identifica. Dentro de um contexto
político-econômico, busco, também, perceber na fala dos professores ‒ por meio de
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entrevistas semiestruturadas ‒ como estes se tem apropriado da proposta no
exercício da prática escolar, o que pensam sobre a oferta de recursos didático-
pedagógicos às escolas e como articulam as mudanças desta com o debate sobre a
qualidade na educação.
A pesquisa contempla a realização de entrevistas com 15 professores da rede
pública estadual de ensino, que atuam em duas escolas na região de Pirituba, zona
norte de São Paulo. Todos os professores atuam nos anos iniciais do Ciclo I, no
Ensino Fundamental e, tem em comum, o fato de possuírem tempo de serviço no
magistério que lhes permite terem conhecimento tanto da atual proposta curricular
como da anterior. São professores com formação em nível superior e participação
em cursos de aperfeiçoamento ao longo da carreira.
O trabalho de análise se dá baseado em documentos oficiais por meio de
legislação, no referencial teórico em autores que, com publicações no tema currículo,
têm sido referência em projetos e em outros trabalhos de pesquisa como os de
Telma Weisz, Magda Soares, Gimeno Sacristán, Michel Apple, Tomaz Tadeu da
Silva, Dermeval Saviani e os textos produzidos por esta pesquisa através de relatos
e depoimentos em entrevistas. A preocupação está em mostrar qual a configuração
das orientações curriculares vigentes, seus pressupostos, concepções, metas,
necessidades, supostos conflitos, rupturas e continuidades na elaboração em
relação aos anteriores. Identificar pontos centrais e questões adjacentes que vieram
a compor o cenário em que se deu sua elaboração, o quanto os que os utilizam são
sensíveis às mudanças introduzidas e o quanto estão relacionadas, ou não, às
diferentes formas de apropriação por esses. Pensando naqueles para quem foram
concebidos ‒ os alunos ‒ e aqueles que os utilizam no cotidiano ‒ os professores ‒,
a caracterização das concepções e a fala dos professores nas entrevistas revela os
modos de apropriação inclusive em que medida a proposta curricular, no processo
educacional, sofre ou não influências posteriores a sua elaboração, em um
panorama da educação bem próximo da realidade encontrada na escola.
O Capítulo 1 contextualiza as mudanças nas orientações curriculares dentro
do programa de reformas educacionais, citando fatos ocorridos numa abordagem
política e econômica em que se sustentou o setor educacional. Na temática das
mudanças curriculares se entrecruzam componentes muito diversos que configuram
a realidade escolar. O aprofundamento investigativo para compreensão dos aspectos
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que compõem o currículo revela a implicação em fazer referências a participação de
fatores determinantes das práticas políticas, econômicas além das ideológicas,
sociais e de todas as áreas que participam na configuração geral. O enfoque nesse
capítulo aponta interações, dependências e operação de forças que se manifestaram
na elaboração e implantação das reformas curriculares.
No Capítulo 2 há a preocupação em aprofundar o tema currículo com a
construção da compreensão do conceito a partir de alguns autores que se tem
dedicado ao assunto, situando-o em referenciais históricos, políticos, econômicos e
sociais. Uma das questões importantes para essa pesquisa é a de verificar as
relações, as proximidades entre a proposta curricular paulista e as concepções
teórico-ideológicas de currículo. Para tanto, esse capítulo mostra, ainda que de
forma resumida, as diferentes concepções de currículo presentes no debate teórico.
O Capítulo 3 está dedicado a tornar compreensível o debate geral das
recentes propostas curriculares e a estrutura das Orientações Curriculares de Língua
Portuguesa para os anos iniciais do Ensino Fundamental, na rede publica do Estado
de São Paulo (2008). Tem por objetivo não somente mostrar o que a SEE apresenta
como proposta curricular para a disciplina de Língua Portuguesa, mas também criar
condições analíticas para um melhor entendimento de qual é a concepção curricular
presente na proposta da SEE e sua proximidade com as concepções mais gerais de
currículo.
Após ter contextualizado política e economicamente as mudanças nas últimas
propostas curriculares no Capítulo 1, destacado as concepções teórico-ideológicas
curriculares no Capítulo 2 e os eixos norteadores das propostas curriculares de
Língua Portuguesa para o Ensino Fundamental, Ciclo I, no Estado de São Paulo no
Capítulo 3, o objetivo no Capítulo 4 é fazer uma verificação e mostrar a
representação dos professores em seus discursos da reforma curricular. Para tanto,
a utilização de entrevistas semiestruturadas com eixos definidos a priori se constitui
em ferramenta essencial, pois permite compreender como os professores estão se
relacionando com os dispositivos pretendidos pelos reformadores, seja do ponto de
vista do uso de instrumentos pedagógicos, seja no sentido da incorporação das
teses reformistas. A parte final do capítulo está dedicada à análise tanto das
entrevistas como dos documentos. Para tanto, são retomados os eixos principais
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destacados na proposta de Língua Portuguesa, as entrevistas e as concepções
teóricas sobre currículo.
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CAPÍTULO 1
CONTEXTO CONTEMPORÂNEO DAS REFORMAS CURRICULARES
Em princípio, é importante esclarecer que, como em qualquer dissertação,
existem discutíveis limitações e inconsistências nas suas aplicações mais gerais. O
que se propõe neste trabalho é mostrar a forma como os professores representam a
reforma curricular em seu discurso, partindo de uma contextualização mais geral
numa abordagem política e econômica do período que compreendeu a implantação
das últimas propostas curriculares, seguida por uma apresentação que procura
destacar, dentre algumas das concepções teórico-ideológicas curriculares presentes
no debate atual, elementos que estabeleçam possíveis relações com essas
propostas. Estudar o contexto fornece informações que complementa a
compreensão de como os professores, pelas marcas e traços ideológicos, políticos e
econômicos impressos em seus depoimentos, construíram a representação que têm
da atual proposta curricular.
Ao ressaltar indícios e elementos que constituam nas propostas oficiais de
ensino e na fala dos professores uma aproximação com certa concepção teórica
convêm lembrar que não se pretende eliminar ou ignorar a contribuição de outras
análises já feitas e as que possam surgir e, igualmente válidas, venham
complementar, contribuir e estimular ainda mais o debate para o estudo do tema. O
processo é dinâmico e as dimensões variáveis. Este estudo, portanto, procura a
partir de um determinado recorte propor com elementos estruturais significativos e
uma abordagem sob uma perspectiva diferenciada, possibilidades de novos
encaminhamentos às questões que estão postas na política educacional.
Para a etapa de entrevistas nesta pesquisa foram escolhidos professores que
ingressaram no serviço público estadual de São Paulo com experiência de trabalho
na atual e na anterior proposta curricular para as séries iniciais do Ciclo I, do Ensino
Fundamental que atualmente compreende os 1ºs, 2ºs e 3ºs anos. Esses professores
trabalhavam, na ocasião das entrevistas, em duas escolas estaduais na zona norte
23
do município de São Paulo. Com exceção de apenas um que iniciou em 2004, todos
estão atuando desde a década de 1980 no serviço público e forneceram relatos de
experiência prática de como, durante a sua jornada profissional, inclusive nos
períodos de transição de uma proposta para outra, as orientações com base na
legislação vigente guiaram a sua prática. Os materiais didáticos distribuídos foram
utilizados e também relataram a repercussão das mudanças no trabalho pedagógico
em sala de aula. A contextualização política e econômica se dá, portanto, a partir da
década de 1980 com foco nas ações que desencadearam mudanças na proposta
curricular durante esse período e com as quais estes professores têm vivenciado ao
longo da sua atuação profissional.
Nesse período, o país passou por grandes transformações políticas e
econômicas que tiveram impacto no setor educacional influenciando a tomada de
medidas que resultaram em mudanças significativas: a democratização do ensino, a
sistematização de conteúdos mínimos, a multiculturalidade curricular, a construção
de indicadores de qualidade, a formação mínima exigida para a atuação de
professores no serviço público e outras medidas relevantes que serão apresentadas
oportunamente.
No setor político, a década de 1980 iniciou-se com um representante da
ditadura militar3 dando continuidade aos sucessivos governos exercidos por esse
regime já estabelecido em décadas anteriores. Passou pelo processo de abertura
democrática com uma campanha que mobilizou o País, reivindicando eleições
diretas para a Presidência da República. Em 1985 foi eleito, por voto indireto, um
presidente da República civil, Tancredo Neves, que não chegou a ser empossado
por motivo de seu falecimento. José Sarney, vice-presidente de Tancredo Neves,
tomou posse e exerceu de 1985 a 1990 a Presidência da República, por sucessão, e
se tornou o primeiro governo civil a exercer o mandato após o movimento Militar de
1964. Durante o governo Sarney foi reelaborada e aprovada uma nova Constituição
Federal (CF 1988). A década terminou com um presidente da República eleito pelo
voto direto do povo4.
Nesse período de abertura política, o princípio democrático foi aprovado pela
Assembleia Nacional Constituinte no texto da Constituição Federal de 1988 e
3 General João Baptista de O. Figueiredo -1979 a 1985 (www.biblioteca.presidencia.gov.br). 4 Fernando C. de Mello – 1990 a 1992 (www.biblioteca.presidencia.gov.br ).
24
norteou mudanças em vários setores do governo no processo de gestão e
organização. No Título I, Dos Princípios Fundamentais, pode ser lido, por exemplo, o
disposto no parágrafo único do art. 1º, da CF (1988): “Art. 1º - Parágrafo único. Todo
o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição.”
Como o primeiro presidente da República eleito por voto popular direto depois
de 25 anos de regime de militar, Fernando Collor de Mello foi empossado em 1990 e
renunciou ao cargo em 1992, em meio a denúncias de corrupção e a abertura de
processo de impeachment impetrado pela Câmara dos Deputados. Foi substituído
pelo seu vice, Itamar Franco, que assumiu definitivamente a Presidência da
República, exercendo o mandato de 1992 até 1995.
A implementação de um novo programa econômico no governo de Itamar
Franco, tendo como Ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso, teve
continuidade após este ser eleito presidente da República, de 1995 a 1999, em seu
primeiro mandato e reeleito, de 1999 a 2003.
O foco da política de ação preventiva, repressiva e operativa destinada a
evitar o desenvolvimento de um processo subversivo da segurança nacional vigente
no período do regime militar se deslocou, no período seguinte de transição, para a
política social e se inseriu no país em meio a globalização econômica, cultural,
tecnológica, educacional, constituindo-se num fenômeno que redefiniu as relações
estabelecidas no país e em esfera mundial.
Na economia, na década de 1980 o país se encontrava num quadro de crise
estrutural. A elevação dos juros no mercado internacional, aumento da dívida
externa, crescimento negativo do Produto Interno Bruto (PIB) e altos índices
inflacionários estagnaram as atividades econômicas no país. Apesar de adotadas
várias medidas heterodoxas e radicais de estabilização econômica, segundo fontes
governamentais, o ano de 1989 encerrou-se com a taxa anual de inflação de
1.764,86%, aumento das taxas de juros americanas e recessão mundial que
atingiram as exportações brasileiras. Os efeitos da crise econômica afetaram
diretamente os investimentos públicos na área social. No período de 1980-1989,
conforme cálculo dos autores Ometto; Furtuoso, Silva (1995, p. 411), com base em
informações contidas em Iunes e Monteiro (1993) houve variação no volume de
investimentos, com períodos alternados de corte de recursos em 1983 e em 1984 e
25
de elevação nos anos seguintes. Mesmo que se mostrasse crescente o volume de
investimentos de uma maneira geral, a desigualdade na distribuição de renda e na
distribuição dos recursos para a implementação das políticas públicas na área social
se mostra, até hoje, num ponto problemático e controverso.
No quadro internacional, surgiram na década de 1990 sucessivas crises
econômicas em outros países5 que repercutiram no país devido aos fortes vínculos
existentes entre a economia nacional e o capital estrangeiro. Aqui, as medidas
adotadas de combate a inflação, reforma monetária, criação de imposto, redução de
gastos públicos, intensificação do processo de privatizações entre outras, encerrou a
década de 1990 com a queda da inflação e a reversão no quadro de recessão
econômica no país. Contudo, os mecanismos utilizados no processo de estabilização
econômica também implicaram um ritmo lento de crescimento econômico no país e,
consequentemente, a elevação do índice de desemprego que atingiu 5,6% em 1997
e 7,6% em 1998, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE).
As reivindicações pela democratização dos direitos políticos foram
acompanhadas também pela discussão da ampliação dos direitos sociais com
atendimento a questões específicas como o da ampliação da oferta e do acesso a
escolarização que possibilitassem maiores oportunidades de atendimento a setores
situados, até então, à margem das atenções do Estado.
As mudanças políticas e as reivindicações pela ampliação dos direitos sociais
ocorreram em meio à crise econômica desencadeada pelo setor petroleiro, no ano
de 1973 e, 1979 em nível mundial. “Interpretada como um sinal de esgotamento do
modelo econômico delineado em resposta à crise da década de 1930 [...]”
(ALGEBAILE, 2004, p. 181), a crise econômica irrompida na década de 1970 gera
modificações em muitos aspectos e traz à discussão o quadro em que esteve
organizada a sociedade até então.
A crise econômica da década de 1930 foi uma crise de superprodução que mostrou os limites do crescimento capitalista sem mudanças econômico-sociais que dessem sustentação à ampliação da produção, garantindo, no mínimo, novas condições e escalas de consumo. Como resposta à crise, surgiram formulações em diversos campos, dentre as quais se destacariam as de Keynes
5 México e Rússia, em 1998.
26
e de Beveridge, que vincularam o equilíbrio da economia à necessidade do Estado assumir um papel claro na regulação das relações econômicas e no asseguramento de um patamar de acesso a bens, proteções e serviços garantidores de certas condições de participação na vida econômica e social. (ALGEBAILE, 2004, p. 181).
O papel mais significativo de atuação do Estado, nos aspectos da vida social,
principalmente após a Segunda Guerra Mundial, é comumente conhecido como
“Estado de bem-estar social” ou Welfare State. Alber (1988) assim o define,
enfatizando o caráter político:
Um Welfare State pode ser definido como uma política na qual as responsabilidades estatais vão além da mera manutenção da ordem interna e externa e da segurança, em direção a uma responsabilidade pública pelo bem-estar dos cidadãos. (ALBER, 1988, p.451 apud FLEURY, 1994, p. 110).
Outros autores definem Welfare State enfatizando a relação Estado/Mercado.
Briggs (1961), seguindo este enfoque, afirma que Welfare State “ [...] é um estado no
qual se usa deliberadamente o poder organizado através da política e da
administração num esforço para modificar o jogo das forças do mercado [...]”
(BRIGGS, 1961, p.228 apud FLEURY, 1994, p.111) É notável em muitas
interpretações, em caráter abrangente, a questão das condições que propiciaram a
emergência e o desenvolvimento do Welfare State. Wilensky (1975) afirma o caráter
estrutural e abrangente:
O Welfare State é a maior tendência estrutural da sociedade moderna. Com o crescimento econômico, todos os países desenvolvidos criam programas similares de Seguridade Social. Qualquer que seja seu sistema político ou econômico, qualquer que sejam as ideologias das elites ou das massas, os países ricos convergem em tipos de programas de saúde e assistência, no aumento da abrangência da cobertura e, em menor grau, nos métodos de financiamento. (WILENSKY, 1975, p. 86 apud FLEURY, 1994, p.113).
Como causas responsáveis pela emergência do Welfare State existem
diversas interpretações que apontam o desenvolvimento econômico e as
27
consequências da urbanização e industrialização. Em algumas publicações de
autores que refletiram sobre o Welfare State aparecem citados:
• conflito de classes acerca dos padrões de vida (visto pelas classes
privilegiadas como alteração do poder em direção às classes mais
desfavorecidas e por isso deve ser evitada e as outras classes veem como um
meio que propicia o cultivo da unidade para o enfrentamento contra a
desvantagem na competição econômica e a conquista de direitos sociais);
• crescimento do grau de mobilização e organização da classe trabalhadora
direta ou através da representação de partidos e sindicatos;
• introdução do sufrágio universal e outros instrumentos da democracia liberal
que potencializam a reivindicação aos direitos políticos;
• o período pós Primeira Guerra Mundial onde a preocupação da e com a
população viabiliza programas governamentais de proteção social.
A educação como influente instrumento do processo de socialização adquire
centralidade no sistema político nesse momento. Contribui para a sua legitimação,
aparece como ponto estratégico para transformação da situação social e meio
decisivo por oferecer oportunidade para amenizar a desigualdade social. Assume
ainda a função adicional no campo da educação profissional de preparação para o
mundo do trabalho.
Numa abordagem funcionalista, a interferência do Estado no papel de
regulador da educação como uma política social encontra apoio com uma
formulação precisa nos argumentos de Durkhein que,
Admitindo que a educação seja função essencialmente social, não pode o Estado desinteressar-se dela. Ao contrário, tudo o que seja educação deve estar até certo ponto submetido à sua influência. Isto não quer dizer que o Estado deva, necessariamente, monopolizar o ensino. [...] Os limites dentro dos quais deve permanecer essa intervenção não podem ser determinados de uma vez por todas; mas o princípio de intervenção não se contesta. (DURKHEIN, 1968, p. 49-50 apud AZEVEDO, 2004, p. 24).
Há ainda um questionamento que merece consideração, declarado por Offe
(1990) quanto à postura adotada pelo Estado na função intervencionista como
28
“instância neutra” na promoção da igualdade de oportunidades, supondo existir
problemas na identificação e legitimidade dos verdadeiros mecanismos que geram
as desigualdades e que permanecem intocáveis.
A política educacional é, entre todas as outras políticas setoriais, talvez o exemplo mais patente de como o Estado procura produzir uma aparência de igualdade de oportunidades e com isso de uma neutralidade em relação as classe no que concerne às suas próprias funções, quando na verdade o status social e as oportunidades de vida dos indivíduos estão ligadas ao movimento de uma economia regulada pelo lucro. (OFFE, 1990, p. 40-41).
Segundo as proposições de Offe, interessa ao Estado manter sua aparente
neutralidade, pois assim “[...] pode preservar a sua própria legitimidade, ou seja, o
apoio e o reconhecimento dos cidadãos [...]” evitando ser “[...] identificado e
combatido como parte da classe dominante.” (OFFE, 1990, p. 40-41).
O esgotamento do modelo intervencionista nos aspectos sociais, adotado pelo
Estado, se torna inegavelmente visível na década de 1970 quando, diante da crise
de recessão econômica inviabiliza manter o padrão de gastos sociais. Com baixas
taxas de crescimento e altas taxas de desemprego e de inflação o Estado passa a
adequar-se às novas demandas econômicas, reduzindo os gastos públicos por meio
de medidas de ajustes como privatizações de empresas em que atua, terceirizações
de serviços prestados e a realização de reforma fiscal. O poder de atuação do
Estado na função intervencionista a partir daí ainda se mostra instável inclusive pela
transferência de controle do capital por meio de privatizações de empresas do setor
público para o privado que passam a ser controladas por grandes conglomerados
internacionais. Enquanto o Estado tende a limitar o alcance dos seus programas de
proteção das pessoas em situação de vulnerabilidade e dos serviços básicos de
educação e saúde, se intensifica a mobilização da sociedade pela garantia e
manutenção da continuidade e ampliação de direitos sociais adquiridos nesse
período.
A busca da compreensão dos elementos que participaram das chamadas
reformas educacionais, as implicações da redefinição do papel e das funções do
Estado, os limites e possibilidades de sua atuação perante a crise e, de maneira
geral, as causas do período de instabilidade que afetaram o mundo geraram uma
29
multiplicidade de interpretações. A relação entre a crise econômica e o papel do
Estado nas políticas sociais produziu estudos diferenciados com maior ênfase ou em
aspectos econômicos, ou políticos ou ideológicos.
A teoria econômica liberal clássica, com raízes nos séculos XVII e XVIII,
predominou na Inglaterra e se espalhou pelo resto do mundo por certo período
durante a primeira metade do século XX. Em contraposição ao mercantilismo e como
fruto da modernidade, a economia política nasce com o capitalismo e tem Adam
Smith entre os grandes expoentes. “Ele a inaugura com uma interpretação
sistematiza da ordem social capitalista, observando-a tanto pela ótica da produção,
da acumulação e do excedente como pela forma de mercado.” (GANEM, 2012,
p.145). Esse economista propõe um sistema definido pelo mercado como de
“liberdade natural”, a livre concorrência entre capitais. Sem a intervenção do governo
na economia e seguindo a ordem natural do mercado, a este caberia intervenção em
apenas três deveres:
[...] três deveres, por certo, de grande relevância, mas simples e inteligível ao entendimento comum: primeiro, o dever de proteger a sociedade contra a violência e a invasão de outros países independentes; segundo, o dever de proteger, na medida do possível, cada membro da sociedade contra a injustiça e a opressão de qualquer outro membro da mesma, ou seja, o dever de implantar uma administração judicial exata; e, terceiro, o dever de criar e manter certas obras e instituições públicas que jamais um indivíduo ou um pequeno contingente de indivíduos poderão ter interesse em criar e manter [...] (SMITH, 1983, p. 147).
O foco da proposta mercantilista centrada na circulação se desloca no
capitalismo para os aspectos sociais da produção, ou seja, o aumento das riquezas
das nações se daria por meio do trabalho do homem, o valor contido no processo de
produção. O Estado deve intervir apenas para garantir e preservar o equilíbrio
natural, sem interferir nas liberdades individuais.
Já nas proposições da economia chamadas de neoclássicas e defendidas,
dentre outros, pelo inglês Stanley Jevons e pelo francês Leon Walras, o Estado teria
a função de instaurar políticas de subsídio a fim de garantir o equilíbrio e a harmonia
caso as leis econômicas naturais faltassem, por exemplo, pela perda de
competitividade em determinados setores tidos como essenciais. A interferência do
30
Estado é admitida supondo-se certas condições até que, sem coibir a liberdade, o
equilíbrio natural pudesse operar.
As raízes das propostas neoliberais surgem formuladas no período
identificado com a II Revolução Industrial, pela Grande Depressão da década de
1930 envolvendo o colapso de fortes economias baseadas no livre mercado, relativo
sucesso da economia soviética baseada num modelo centralizado de controle do
Estado e a ascensão dos regimes fascistas e nazistas declaradamente contra o
liberalismo econômico. Como resposta, a crise econômica do liberalismo da época é
alternativa para os regimes socialistas, fascistas e nazistas, John Maynard Keynes é
um dos mais destacados que concebeu sua teoria trazendo ao debate uma maior
intervenção do Estado para o alcance da estabilização econômica do sistema
capitalista, porém, por meio de instituições democráticas, respeitando os princípios
de cidadania onde todos são iguais.
O Estado deverá exercer uma influência orientadora sobre a propensão a consumir, seja através de seu sistema de tributação, seja, em parte, por meio da fixação da taxa de juros e, em parte, talvez, recorrendo a outras medidas [...]. Eu entendo, portanto, que uma socialização algo ampla dos investimentos será o único meio de assegurar uma situação aproximada de pleno emprego. (KEYNES, 1964, p. 378).
Da crise econômica dos anos 1970 surge uma nova face dos neoclássicos.
Contrapondo-se à adoção de políticas econômicas com tendências keynesianas de
maior intervenção estatal e incorporando elementos da teoria de Smith, F. A. Hayek
construiu uma teoria baseada nos postulados neoliberais ‒ também conhecida como
Teoria da Evolução Cultural ‒, onde segue a ordem espontânea de mercado, não
cabendo ao Estado intervir. O respeito aos princípios de liberdade e individualidade
criariam condições de livre concorrência e competitividade que consequentemente
favoreceriam o equilíbrio do mercado econômico.
Com efeito, faz parte da atitude liberal supor que, especialmente no campo econômico, as forças auto-reguladoras do mercado de alguma maneira gerarão os necessários ajustamentos às novas condições [...] (HAYEK, 1983, p. 275 e 470).
31
A intervenção do Estado na área social por meio de programas, segundo os
neoliberais, tende a aumentar os gastos sociais desequilibrando as contas públicas o
que levaria ao aumento das taxas tributárias, da inflação e do desemprego,
desestimulando a competitividade natural do mercado6. Tal qual o liberalismo
clássico, o neoliberalismo tem como princípio a liberdade individual, menos
interferência do Estado e mais mercado.
Dentro da lógica neoliberal, interessa ao Estado em busca do equilíbrio
econômico, garantir a qualquer cidadão condições de autonomia e gestão da vida,
mas com acesso a padrões mínimos das condições de vida e ao bem-estar.
Programas estatais de assistência social podem ser apontados como onerosos e
intensificadores de crises econômicas. A marginalização social acompanhada pela
exclusão econômica de grande parcela da sociedade também oferece imprecisões e
ameaça a estabilização administrativa e econômica. O Estado na busca da liberdade
e do individualismo, assim justificado pela ótica neoliberalista, intervém assumindo o
papel de regulador das relações econômicas a fim de garantir igualdade de acesso e
condições de participação na vida econômica e social. A intervenção do Estado na
educação é tida como uma de suas funções para a redução das desigualdades.
Existem autores que atribuem essa intervenção como estratégia para regular e
manter a continuidade do trabalho assalariado segundo os parâmetros do
capitalismo.
1.1 AS AGÊNCIAS DE FINANCIAMENTO INTERNACIONAIS
A reestruturação econômica trouxe ao debate na área social a questão das
reformas educativas. Os conceitos de liberdade, igualdade e democratização
correspondentes aos argumentos neoliberais passaram a ser discutidos visando à
qualidade do ensino conjuntamente ao progresso social e econômico.
6 Milton Friedmann em seu trabalho Capitalismo e liberdade, de 1984, aborda mais diretamente a questão das
políticas públicas.
32
Programas foram criados visando o desenvolvimento humano nesse período.
Na área da educação podem ser citados programas como Toda Criança na Escola
(alimentação escolar) e Bolsa-escola. Porém, o financiamento de recursos aos
programas na área social vinculados às bases político-econômicas governamentais
nem sempre se mostraram suficientes e alcançaram os resultados esperados. As
reformas educacionais passam então a contar com a cooperação técnica e maior
financiamento de recursos de agências internacionais como o Banco Mundial (BM), o
Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Interamericano de Desenvolvimento
(BID), o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), da Organização das
Nações Unidas (ONU). As ingerências dessas instituições no país intensificam-se
com a maior dependência dos financiamentos. As negociações para a liberação de
empréstimos se realizam com a vinculação à aprovação de projetos para a educação
guiados pelas estratégias das agências financiadoras e o governo brasileiro. A
redução da participação da sociedade nas decisões quanto à destinação dos
recursos nos gastos com a educação é inevitavelmente imposta.
O caráter determinante e decisivo dos organismos internacionais que atuaram
como agentes financiadores no país (UNICEF, ONU, FMI e, em especial, pelo BM)
fica evidenciado quando se considera os traços das concepções ideológicas dessas
instituições materializadas nessas reformas. “Para compreender as ideologias que
transformam a educação da América Latina, da África e de parte da Ásia [...]” Leher
diz que “[...] é preciso examinar o encaminhamentos do Banco Mundial [...]” e se
refere ao alcance da participação nas decisões dos países em que atua como este
sendo “[...] o ministério mundial da educação dos países periféricos [...]” (LEHER,
1999, p.19) e acrescenta “[...] não é possível compreender o sentido e o significado
das atuais reformas sem considerar a sua matriz conceitual, formulada no âmbito do
Banco Mundial.” (LEHER, 1999, p. 30).
As concepções ideológicas do Brasil na área educacional apresentam estreita
relação com os órgãos citados ao se considerar os fatos relevantes em meio aos
acordos firmados. Fazendo um recorte do contexto histórico desde a desastrosa
intervenção no Vietnã que deu força ao sentimento anti-Estados Unida nos países
chamados “periféricos”, as manifestações da crise estrutural do capitalismo na
33
década de 19707, o processo de descolonização que tomou conta do mundo nesse
período, o consequente aumento da tensão social, a exigência de mudanças
estruturais estratégicas de administração e gerenciamento coincidem com a
mudança dos propósitos do Banco Mundial que tiveram início no final da década de
1960, “[...] de uma agência voltada para a reconstrução europeia transformou-se, nos
termos de Noam Chomsky, num dos principais ‘senhores do Mundo’”. (CHOMSKY;
DIETERICH, 1995 apud LEHER, 1999, p. 21). Sem dúvida, a vulnerabilidade e a
dependência dos países cada vez mais endividados deram ao Banco Mundial
condições de impor ajustes e reformas estruturais segundo suas estratégias
econômicas políticas e ideológicas.
Existem diferentes leituras de quais interesses permitiram a intervenção na
política interna e, sobretudo nos sistemas educacionais, dos países pelo Banco
Mundial e de outras agências internacionais. Leher direciona sua análise enfocando
que para se evitar o aumento da influência comunista, encabeçada pelos Estados
Unidos e que se estendeu aos países sob sua influência, a preocupação voltou-se
para a segurança e para o pensamento de que a educação pode ser um instrumento
estratégico a ser utilizado pelo Estado e “[...] sustenta a tese de que a redefinição
dos sistemas educacionais está situada no bojo das reformas estruturais
encaminhadas pelo Banco Mundial, guardando íntima relação com o par
governabilidade-segurança.” (LEHER, 1999, p. 19). O Banco Mundial, por sua vez, justifica a centralidade adquirida pela
educação nas suas estratégias para se alcançar objetivos econômicos e sociais:
A educação é o maior instrumento para o desenvolvimento econômico e social. Ela é central na estratégia do Banco Mundial para ajudar os países a reduzir a pobreza e promover níveis de vida para o crescimento sustentável e investimento no povo. Essa dupla estratégia requer a promoção do uso produtivo do trabalho (o principal bem do pobre) e proporcionar serviços sociais básicos para o pobre. (WORLD BANK, 1990 apud LEHER, 1990, p. 25).
A maneira em que foram conduzidas as políticas educacionais no país se
mostra nos documentos elaborados a partir dos compromissos firmados por ocasião
7 Crise do petróleo, por exemplo.
34
da formulação de projetos de reforma. Em 1990, o Brasil participou da “Conferência
Mundial de Educação Para Todos” realizada em Jomtien, na Tailândia, organizada
pela Unesco, Unicef, PNUD e Banco Mundial. Entre os compromissos assumidos
nesta reunião estava a elaboração do que foi proposto em 1993, no “Plano Decenal
de Educação para Todos” elaborado Ministério da Educação e Cultura (MEC)
traçando metas para a política educacional a serem atingidas em prazos
determinados em esfera nacional. Este Plano subsidiou o Plano Nacional de
Educação (PNE), divulgado em 1997 e o Plano Decenal, que veio a ser futuramente
elaborado nas esferas estaduais e municipais. A concepção do PNE teve ainda
como eixo norteador o cumprimento ao que determina o art. 214 da Constituição
Federal de 1988: A lei estabelecerá o plano nacional de educação, de duração plurianual, visando à articulação e ao desenvolvimento do ensino em seus diversos níveis e à integração das nações do poder público que conduzam à: I- Erradicação do analfabetismo; II- Universalização do atendimento escolar; III- Melhoria da qualidade do ensino; IV- Formação para o trabalho; V- Promoção humanística, científica e tecnológica do País. (BRASIL, 1988).
E ao que decide a LDBN de 1996:
Art. 87 § 1º A União, no prazo de um ano a partir da publicação desta Lei, encaminhará, ao Congresso Nacional, o Plano Nacional de Educação, com diretrizes e metas para os dez anos seguintes, em sintonia com a Declaração Mundial sobre Educação para Todos. Art. 9º, inciso I Elaborar o Plano Nacional de Educação, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. (BRASIL, LDBN nº 9.9394/96).
O documento elaborado pelo MEC intitulado “Proposta para o Documento:
Roteiro e Metas para Orientar o Debate sobre o Plano Nacional de Educação” (1997)
afirma que
A elaboração de um Plano Decenal específico e integrado para cada unidade da Federação deve ser, portanto, anterior à formulação do
35
PNE e deve ficar a cargo das secretarias estaduais de Educação, as quais estabelecerão as formas adequadas de colaboração com seus Municípios. (BRASIL, 1997, p. 5).
Saviani, que tem examinado a política educacional brasileira pelo ângulo das
medidas regulamentadoras da LDBN, faz a seguinte leitura:
Embora o referido Plano Decenal de Educação Para Todos se propusesse a ser instrumento que viabilizasse o esforço integrado das três esferas de governo no enfrentamento dos problemas da educação, ele praticamente não saiu do papel, limitando-se a orientar algumas ações na esfera federal. Em verdade, ao que parece, o mencionado plano foi formulado mais em função do objetivo pragmático de atender a condições internacionais de obtenção de financiamento para a educação, em especial aquele de algum modo ligado ao Banco Mundial. (SAVIANI, 2008, p. 183).
As políticas sociais e educacionais no processo de construção e ampliação
dos direitos de cidadania são associadas ao poder do Estado, na medida em que é
este que a reconhece e garante, no contexto das sociedades capitalistas
democráticas e
[...] podem ser interpretadas como instrumentos de controlo social e como formas de legitimação da acção do Estado e dos interesses das classes dominantes, por outro lado, também não deixam de poder ser vistas como estratégias de concretização e expansão de direitos sociais, económicos e culturais, tendo, neste caso, repercussões importantes (embora, por vezes, conjunturais) na melhoria das condições de vida dos trabalhadores e grupos sociais mais vulneráveis às lógicas da exploração e da acumulação capitalistas. (AFONSO, 2001, p. 22).
1.2 A IDEOLOGIA DA GLOBALIZAÇÃO
A ideologia da globalização associada à revolução tecnológica da informação
também tem sido vinculada com frequência às mudanças que afetaram o período
dos anos 1970 e 1980. Esse pensamento é expresso assim por Stewart:
36
As mudanças que nos rodeiam não são fenômenos passageiros mas o produto de forças poderosas e ingovernáveis: a globalização, que tem aberto imensos mercados novos com seu corolário inexorável, uma enorme quantidade de competidores novos; a difusão da tecnologia da informação e o crescimento desordenado das redes informáticas. (STEWART, 1998, p. 33 apud LEHER, 1999, p. 24).
A relação entre os efeitos da crise estrutural do capitalismo e a globalização
na mudança do papel do Estado é reconhecida por muitas pesquisas. O estudo do
papel do Estado é complexo e existem diferentes pressupostos teórico-conceituais
que expressam nas suas relações com as classes sociais poder, organização, limites
e possibilidades de ação deste. Ainda assim, não se pode deixar de considerar que o
Estado em si mesmo, continua a existir política e historicamente. Uma nova
configuração internacional política, econômica e social, implica necessariamente em
mudanças no Estado e em seu papel. Afonso, ao refletir sobre a reforma do Estado e
políticas educacionais entre a crise do Estado-Nação e a emergência da regulação
supranacional, analisa as implicações políticas e culturais pelo fato do “[...] papel do
Estado estar em redefinição, em grande medida, por influência, mais ou menos
direta, dos processos de globalização cultural e de transnacionalização do
capitalismo.” (AFONSO, 2001, p.19). Nas dimensões do processo de globalização
[...] é inegável que, com uma intensidade maior ou menor, todos os países se confrontam hoje com a emergência de novas organizações e instâncias de regulação supranacional (ONGs, Mercosul, Organização Mundial do Comércio, União Europeia), cuja influência se vem juntar a outras organizações que já não são recentes, mas que continuam a ser muito influentes (Banco Mundial, OCDE, FMI), sendo que elas tem sempre implicações diversas, entre as quais, e de acordo com o objeto deste trabalho, aquelas que directa ou indirectamente ditam parâmetros para a reforma do Estado nas suas funções de aparelho político-administrativo e de controlo social [...] (AFONSO, 2001, p. 24).
Outros estudos discutem criticamente a relação entre a globalização e a
educação como outra especificidade das mudanças a partir da crise estrutural do
capitalismo do final da década de 1970. Roger Dale examina duas abordagens
37
dessa relação. Numa delas, a existência de uma “Cultura Educacional Mundial
Comum”, desenvolvida por John Meyer e seus colegas da Universidade de Stanford
(Califórnia). Este argumenta que “[...] os proponentes desta perspectiva defendem
que o desenvolvimento dos sistemas educativos nacionais e as categorias
curriculares se explicam através de modelos universais de educação, de estado e de
sociedade, mais do que através de factores nacionais distintivos.” (DALE, 2004, p.
425). A influência através de organizações internacionais como OCDE, UNESCO,
Banco Mundial etc. “[...] é vista como mais determinante nos sistemas educativos e
na disseminação de orientações e categorias organizacionais e curriculares do que
os factores internos a cada um dos diferentes estados-nações (cf., por exemplo,
MEYER, 2000; AZEVEDO, 2000; TEODORO, 2001).” (AFONSO, 2003, p. 41).
A outra abordagem desenvolvida pelo próprio Roger Dale como “Agenda
Globalmente Estruturada para a Educação” baseia-se em trabalhos
[...] sobre economia política internacional (por exemplo, Cox, 1996; Mittelman, 1996; Hettne, 1996) que encaram a mudança de natureza da economia capitalista mundial como a força directora da globalização e procuram estabelecer os seus efeitos, ainda que intensamente mediados pelo local, sobre os sistemas educativos. (DALE, 2004, p. 426).
Comparando as duas abordagens, Dale percebe que “[...] a primeira conota
uma sociedade, ou política, internacional constituída por Estados-nação individuais
autônomos [...]”, a segunda, “‘Global’, pelo contrário, implica especialmente forças
económicas operando supra e transnacionalmente para romper, ou ultrapassar, as
fronteiras nacionais, ao mesmo tempo que reconstroem as relações entre as
nações.” (DALE, 2004, p.426). Ao verificar como é que a natureza mutável da
economia capitalista afeta os sistemas educativos, Afonso, com base nos estudos de
Dale, recomenda que se deva ter em conta que “[...] há efeitos de mediação que se
produzem nacionalmente e que não são completamente independentes do lugar e
situação de cada país relativamente a essa mesma economia global [...]”.
(AFONSO, 2003, p.41-42).
38
1.3 O DISCURSO SOBRE A QUALIDADE DA EDUCAÇÃO
A Constituição Federal de 1988 demonstra nos direitos sociais uma
perspectiva democrática de universalização do atendimento e melhoria da qualidade
no setor educacional. A questão da qualidade do ensino é um tema complexo, pois
pode significar coisas diferentes se o enfoque for baseado, por exemplo, mais nos
resultados ou mais nos processos. As estratégias nos últimos planos de reforma em
busca da qualidade apresentam tendências teóricas e ideologias onde muitos
estudos apontam para feição neoliberal.
O controle e diminuição de gastos públicos, privatizações, ajuste fiscal e
utilização de recursos financeiros externos encaminharam as reformas educacionais
para uma lógica empresarial de mercado, distanciando-se da ideia inicial de
educação democrática. A retração na implementação dos direitos sociais previstos
na CF de 1988 nos anos seguintes a sua promulgação aproxima-se de um dos
argumentos neoliberais do “Estado Mínimo”. Algebaile (2004) vê identificação dessas
circunstâncias aos preceitos neoliberais, “[...] que tomariam forma, especialmente,
em um programa de reformas que levaria à redução do aparato institucional e dos
gastos sociais do Estado e, nesse sentido, ao redimensionamento e reorientação
restritiva da política social.” (ALGEBAILE, 2004, p.195).
No encaminhamento do que foi exposto, até o momento, é compatível com a
aproximação aos trabalhos publicados pelos referidos “institucionalistas mundiais”
que, embora tenham uma abordagem mais sociológica do que educacional, “[...] a
maior demonstração da teoria dos institucionalistas mundiais pode ser encontrada no
campo da educação, tanto na massiva e rápida expansão dos sistemas de educação
nacionais como no inesperado isomorfismo global das categorias curriculares em
todo o mundo [...]”. (DALE, 2004, p.427).
Esta teoria é densa e complexa e por isso difícil sintetizar todos aspectos por
ela discutidos. Segundo Dale, o capítulo principal no conjunto de trabalhos teóricos
mais significativos da abordagem dos institucionalistas mundiais pode ser
encontrado no artigo intitulado Ontology and rationalization in the western cultural
account (1987, p. 2-37), de Meyer, Boli e Thomas, onde estes argumentam que
39
As instituições ao construírem, e ao darem sentido a, entidades sociais modernas e sua acção racionalizada tem um carácter muito mais amplo e universal do que qualquer realização que possam constituir [...] em dois sentidos relacionados entre si. Primeiro, estas instituições incorporam reivindicações universalizadas ligadas a leis da natureza e de tipo moral. A acção económica, educacional ou política é legitimada em termos de afirmações muito gerais acerca do progresso, justiça e de ordem natural [...] As diferenças que sobrevêm no interior das realizações locais são limitadas e permanecem no âmbito do contexto do quadro cultural mais amplo. Por exemplo, os professores adoptam diferentes estilos, diferentes tipos de técnicas de gestão das organizações, e afirmam os diferentes regimes de instâncias ideológicas – tudo dentro da ordem constitutiva daquilo que significa ser um professor, uma organização de negócios e um estado-nação [...] Segundo, reivindicações e definições institucionais específicas tendem na prática a ser muito semelhantes em quase todos os lugares. Diferenças entre as várias realizações particulares resultam da organização dessa realização a partir da ênfase variável ou das interpretações de regras institucionais mais gerais [...] Não se deve ver essas instituições em toda a sua diversidade apenas como construções da experiência humana em contextos locais, mas como algo que se desenvolve a partir de uma cultura histórica universalística dominante [...] Assim, nos sistemas sociais modernos, é profícuo ver a estrutura social não como a reunião de padrões de interacção local, mas como edifícios ideológicos de elementos institucionalizados que substanciam a sua autoridade em regras e concepções mais universais. As estruturas formais da sociedade, desde a definição e propriedades do individual até à forma e ao conteúdo de organizações como as escolas, as empresas, os movimentos sociais e os estados, derivam ou são ajustadas para se adequarem às regras muito gerais que possuem pelo mundo fora significado e poder. (MEYER et al., 1997, p.27-29; sublinhado no original) (apud DALE, 2004, p. 427-428).
Dale (2004, p. 426-427), ao fazer uma análise sobre o assunto aponta
O argumento central dos institucionalistas mundiais é que as instituições do estado-nação, e o próprio estado, devem ser vistos como sendo essencialmente moldados a um nível supranacional através de uma ideologia do mundo dominante (Ocidente), e não como criações nacionais autônomas e únicas. Sob esta perspectiva, os estados tem a sua atividade e as suas políticas moldadas por normas e cultura universais.
Este argumento, quando pensado na escola de massas e nos currículos
escolares, tende a minar ou diluir as especifidades nacionais e caminha para uma
padronização educacional mundial. Porém não existe consenso absoluto quanto a
40
isso. A linearidade, intensidade, grau, alcance e quais particularidades têm maior ou
menor influência são algumas questões que não podem ser abordadas de modo
reducionista e simplista ao se tratar da intervenção estatal, globalização, educação e
cultura. Ao considerar as mudanças nas reformas educacionais definidas em caráter
oficial, a contribuição desse estudo pode vir sob o aspecto de explorar de que modo
os desdobramentos das ações dessas mudanças interferem na educação bem como
no funcionamento de todo o aparato educacional.
41
CAPÍTULO 2
O CURRÍCULO
O currículo, dentro da prática educativa, possui um conjunto de características
e peculiaridades que variam dependendo de quem o produziu, como e em que
condições foi produzido, observando-se as instâncias política, histórica, filosófica,
social etc. Assim, o conceito de currículo modifica-se historicamente e, por isso, só
pode ser compreendido no contexto no qual está inserido.
Do ponto de vista histórico, a definição está relacionada ao recorte que se faz
em um período determinado. A concepção do conceito de currículo, compreendida a
partir desse contexto, situa-se como elemento fundamental para o estudo das ações
que lhe dão forma. Esse processo, porém, é dinâmico, pois a definição de currículo
modifica-se juntamente com a mudança nos elementos específicos que o compõem
no decorrer do tempo.
O currículo concebido sob a perspectiva “experiencial”, como a soma de
experiências a que os alunos serão submetidos na escola, está apoiado nas
necessidades do desenvolvimento pessoal dos indivíduos cujas finalidades vão além
dos saberes acadêmicos, abrangem um projeto global de educação. Dar importância
à experiência se harmoniza com a concepção de educação de Dewey que era vista
como “[...] uma reconstrução e reorganização da experiência, que esclarece e
aumenta o sentido desta e também a nossa aptidão para dirigirmos o curso das
experiências subsequentes [...]”. (DEWEY, 1979, p. 83 apud MURARO, 2013, p.819).
Em alguns estudos publicados sobre concepção curricular aparecem
enfoques sob outras perspectivas como os de raiz psicológica centrada nas
experiências dos indivíduos, no desenvolvimento de metodologias que implicam
numa forma sistematizada de currículo autodenominada racionais, científica e lógica
e, ainda, há aquelas com destaque na contribuição pessoal dos indivíduos em busca
de mudança social. Para citar como exemplo significativo no campo de estudo de
concepções curriculares, Eisner, em 1974, conforme citado por Sacristán (1998, p.
38, grifos do autor), “[...] propõe uma série de concepções curriculares centradas no
desenvolvimento cognitivo, no currículo como auto-realização, como tecnologia,
42
como instrumento de reconstrução social e como expressão do racionalismo
acadêmico.”
Existe, ainda, a possibilidade de estudos a partir do formato do currículo. Este,
assim se define, a partir das escolhas que se fazem no âmbito dos conteúdos nele
contidos. Portanto, esses conteúdos não são um agrupamento aleatório e
desordenado de conhecimentos. São organizados por meio de escolhas e essas
sofrem influências desde o contexto: da sua elaboração, no processo de
implantação, na prática como se realiza e no resultado obtido que pode ser
percebido, por exemplo, através de instrumentos de avaliação.
A definição de currículo se particulariza a partir do foco que se estabelece
com a seleção das conexões entre os elementos no multifacetado campo de estudo
que o cerca. Para Sacristán (1998, p. 102), o currículo assim, “[...] é o resultado de
uma série de influências convergentes e sucessivas, coerentes ou contraditórias,
adquirindo, dessa forma, a característica de ser um objeto preparado num processo
complexo, que se transforma e constrói no mesmo.”
A concepção, portanto, depende do enfoque dado pelo autor em condições
particulares e num contexto histórico, cultural e político singular que é expresso na
valorização da forma de abordar o tema. Esse autor conclui que, se uma teoria “[...]
é uma forma ordenada de estruturar um discurso sobre algo, existem tantas teorias
como formas de abordar esse discurso, e, através delas, o próprio entendimento do
que é o objeto abordado”. (SACRISTÁN, 1998, p. 38).
Sendo assim, é razoável dizer que existe um sem número de concepções
curriculares, algumas mais e outras menos conhecidas, inclusive algumas delas
serão citadas mais adiante como “teorias” do currículo.
Uma concepção curricular pode, portanto, tratar de um discurso teórico feito a
partir de uma noção particular de um objeto ‒ o currículo ‒ que é abordado num
determinado recorte e sob pressupostos definidos. Estando em construção
permanente, talvez seja controverso falar em currículo como objeto passível de
descrição em um discurso teórico. Silva (SILVA, 2011, p. 12) adverte que
Um discurso, em troca, produz seu próprio objeto: a existência do objeto é inseparável da trama linguística que supostamente o descreve. (...) Do ponto de vista do conceito pós-estruturalista de
43
discurso, a “teoria” está envolvida num processo circular: ela descreve como descoberta algo que ela própria criou.
Como objeto de estudo e pesquisa, o currículo provavelmente aparece pela
primeira vez, segundo Silva, e ganha visibilidade na concepção que Bobbitt criou no
início do século XX nos Estados Unidos. (SILVA, 2011, p.12). “O que Bobbit fez,
como outros antes e depois dele, foi criar uma noção particular de “currículo”. Aquilo
que Bobbitt dizia ser “currículo” passou, efetivamente, a ser “currículo.” (SILVA,
2011, p. 13).
Sem a pretensão de esgotar todas as formas possíveis de abordagem, a
escolha de iniciar pela cronologia histórica, neste estudo, se dá em meio a outras
possibilidades, o que não implica no abandono total das outras formas de estudo.
Estas aparecem de forma secundária ou indireta, mas com sua devida parcela de
contribuição. O contato com algumas dessas formas tem como propósito subsidiar
um encaminhamento para a compreensão da questão das mudanças curriculares
que será apresentada nesta pesquisa. A seguir, segue uma breve caracterização das
grandes categorias de concepções teóricas, presentes no debate curricular.
2.1 TEORIA CURRICULAR CLÁSSICO-HUMANISTA
O currículo clássico-humanista, das chamadas “artes liberais”, vindo da
Antiguidade Clássica, se estabeleceu na Idade Média e no Renascimento na forma
dos chamados trivium (gramática, retórica, dialética) e quadrivium (astronomia,
geometria, música, aritmética). Com acesso restrito a uma classe dominante, seu
objetivo era a escolarização num repertório das grandes obras literárias e artísticas
das heranças clássicas grega e latina para formação nos mais altos ideais do espírito
humano. (SILVA, 2011, p. 26).
Na Idade Média inexistiam muitos elementos que permeiam a forma de
organização escolar atual, como a divisão do currículo em ano/série; hierarquia
temporal de conteúdos; correspondência de conteúdos para idade/série.
44
O tempo de permanência na escola não dependia da aprovação em exames
ou assiduidade do aluno. O aluno “De acordo com seus próprios desejos e
ambições, e, sem dúvida, também segundo seus recursos financeiros, ele
permanecerá menos ou mais tempo junto a seu mestre.” (PETITAT, 1994, p. 60).
O contexto do surgimento do conceito de currículo clássico-humanista pode
ser identificado a partir dos séculos XV e XVI quando, iniciou-se, gradualmente, o
que mais tarde se tornaria “[...] uma revolução do espaço de ensino, pela
substituição dos locais dispersos mantidos por professores ‘independentes’ por um
prédio único abrigando várias salas de aula [...]” (PETITAT, 1994, p. 144). Os
reformadores e os jesuítas deram sua contribuição neste período de reorganização
escolar, conforme exemplifica Petitat (1994, p. 78-79),
Nos primeiros tempos, são introduzidas somente três ou quatro divisões; depois, forma-se o hábito de destinar um mestre a cada uma delas. Contudo, o ensino continua a ser ministrado em uma única peça, com as três classes reunindo-se em torno de seus mestres em pontos diferentes da sala. Na última etapa desta evolução são introduzidos tantos graus quanto anos de aprendizagem, e cada classe passa a ter seu local e seu mestre específicos. [...] Depois, este tempo é repartido em períodos anuais: horários estritos e bem carregados dividem as matérias pelos dias e horas.
Portanto, o espaço e o tempo escolar fazem parte de uma nova organização
burocrática institucionalizada de transmissão do saber que se estendeu ao próprio
conhecimento ensinado e aprendido e resultou, segundo Petitat (1994, p. 144), “[...]
numa gradação sistemática e numa divisão correspondente de matérias.” Para
Magda Soares, “É assim que surgem graus escolares, as séries, as classes, o
curriculum, as matérias e disciplinas, os programas – enfim, aquilo que constitui até
hoje a essência da escola.” (SOARES, 2002, p. 156).
A Reforma Protestante no final do século XVI, mais ligada ao calvinismo,
participou efetivamente nesse processo de grandes transformações na educação.
“Com o tempo, o termo currículo evolui da ideia inicial de registro de vida estudantil
de cada aluno [...] para indicar o conjunto dos ‘novos traços ordenados e seqüenciais
da escola do século XVI." (SAVIANI, 1994, p. 26). Em meio à reforma pedagógica se
45
dá a abertura das escolas a “setores mais amplos da sociedade”, ganhando
popularidade a escolarização não ligada à Igreja e “[...] expandindo-se a convicção
de Calvino e seus seguidores de que ‘todas as crianças, independentemente de
gênero e classe, deveriam ser evangelizadas através da escolarização’ [...]” (cf.
HAMILTON, 1991, p. 204-205 apud SAVIANI, 1994, p. 26). O uso pela primeira vez
do termo currículo de que se tem registro na educação foi identificado, segundo
Nereide Saviani, no final do século XVI, “[...] segundo o Oxford English Dictionary, o
de um atestado de graduação outorgado a um mestre da Universidade de Glasgow
(Escócia), em 1663.” (HAMILTON, p.197, 1991 apud SAVIANI, p. 25, 1994) Nas
escriturações da universidade “[...] registra-se a referência ao currículo enquanto
‘curso multianual’ total seguido por cada estudante [...]” (Glasgow), bem como
formulações do tipo “[...] havendo contemplado o ‘currículo’ de seus estudos”.
(Leiden) (HAMILTON, 1991, p.198-199 apud SAVIANI, 1994, p. 25).
Nas premissas de João Amós Comenius em Didactica Magna, editada pela
primeira vez na Opera Didactica Omnia, em Amsterdã, 1657, observa-se a forma de
organização em graus, conteúdos e métodos. A arte de ensinar, segundo Comenius
“[...] não exige mais que uma disposição tecnicamente bem feita do tempo, das
coisas e do método.” (COMENIUS, 1997, Op. cit. 127 apud WALKER, 2002, p. 45)
“Propondo-me a ensinar tudo, precisei mostrar o todo, não a parte, e a estrutura
devia começar pelas mais profundas, imutáveis bases.” (COMENIUS, 1997, Op. cit. 8
apud WALKER, 2002, p. 59).
Na seguinte citação de Comenius, percebe-se algumas bases que
revolucionaram o ensino na época e que estão presentes na forma de organização
da educação até hoje.
• A democratização e universalização:
Didactica Magna que mostra a arte universal de ensinar tudo a todos, ou seja, o modo certo e excelente para criar em todas as comunidades, cidades ou vilarejos de qualquer reino cristão escolas tais que a juventude dos dois sexos, sem excluir ninguém [...]
• A citação da divisão de conteúdos específicos formando uma grade
curricular, a idade em que deveria começar os estudos e a importância do
método:
46
[...] possa receber uma formação em letras, ser aprimorada nos costumes, educada para a piedade e, assim, nos anos da primeira juventude, receba a instrução sobre tudo o que é da vida presente e futura, de maneira sintética, agradável e sólida. Os princípios de tudo o que se aconselha aqui são extraídos da própria natureza das coisas; a verdade é demonstrada através de exemplos paralelos das artes mecânicas [...]
• A divisão dos estudos dispostos em seriação:
[...] a ordem dos estudos é disposta segundo anos, meses, dias, horas; o caminho, enfim, fácil e seguro, é mostrado para pôr essas coisas em prática com bom êxito. (COMENIUS, 1997, Op. cit. 11- 12 apud WALKER, 2002, p. 59)8.
As reformas no ensino instituídas pelo Marques de Pombal, em Portugal e em
suas colônias, nos meados do século XVIII, tornou, particularmente dentre outras
mudanças, obrigatório a inclusão do ensino de Língua Portuguesa para fins de
alfabetização no currículo escolar. Numa citação de Soares, o Marques de Pombal
declara assim: [...] nesta conquista (no Brasil) se praticou pelo contrário, que só cuidavam os primeiros conquistadores estabelecer nela o uso da língua, que chamamos geral, invenção verdadeiramente abominável e diabólica, para que privados os índios de todos aqueles meios que os podiam civilizar, permanecessem na rústica e bárbara sujeição, em que até agora se conservam, determina que um dos principais cuidados dos Diretores (será) estabelecer nas suas respectivas povoações o uso da língua portuguesa, não consentindo por modo algum que os Meninos e Meninas, que pertencerem às escolas, e todos aqueles índios, que forem capazes de instrução nesta matéria, usem a língua própria das suas nações ou a chamada geral, mas unicamente da Portuguesa, na forma que S. M. tem recomendado em repetidas ordens, que até agora não se observaram, com total ruína espiritual e temporal do Estado.9 (apud SOARES, 2002, p. 159,160).
8 Transcritos da edição italiana de Marta Fattori, Didactica magna. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 390, 1997 apud WALKER, 2002. 9O texto é do Diretório de 3 de maio de 1757, em que são determinadas medidas aplicadas
inicialmente ao Pará e ao Maranhão, estendidas posteriormente, em 17 de agosto de 1758, a todo o Brasil; citado em Cunha, C. A questão da norma culta brasileira. Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, p. 79-80, 1985 apud SOARES, p. 160, 2002.
47
Para Soares, até então não havia espaço no currículo escolar para o ensino
da Língua Portuguesa, pois três línguas conviviam no Brasil colonial e
[...] a língua portuguesa não era a prevalente: ao lado do português trazido pelo colonizador, codificou-se uma língua geral, que recobria as línguas indígenas faladas no território brasileiro (estas, embora várias, provinham, em sua maioria, de um mesmo tronco, o tupi, o que possibilitou que se condensassem um uma língua comum); o latim era a terceira língua, pois nele se fundava todo o ensino secundário e superior dos jesuítas. (SOARES, 2002, p. 157, grifos da autora).
Outras condições que não favoreciam a sua inclusão no currículo escolar,
conforme citado por Soares são:
[...] os poucos que se escolarizavam durante todo esse período pertenciam a camadas privilegiadas, cujo interesse e objetivo era seguir o modelo educacional da época, que se fundava na aprendizagem do latim e através do latim, fugindo à tradição dos sistemas pedagógicos de então atribuir às línguas nacionais estatuto de disciplina curricular; [...] embora a primeira gramática da língua portuguesa tenha sido publicada já em 1536 (a Gramática de Fernão de Oliveira) e várias gramáticas e ortografias tenham sido produzidas no correr do século XVII, o português ainda não se constituíra em área de conhecimento em condições de gerar uma disciplina curricular. (SOARES, 2002, p. 157-158).
Outra particularidade do sistema de ensino até o fim do século XIX era que
disciplina escolar não representava mais do que a vigilância em relação às condutas
prejudiciais à boa ordem, se aproximando no sentido emprestado de Michel
Foucault, de tecnologia de controle. Segundo esse autor, disciplina seriam, “[...]
métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a
sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade
[...]” e que “[...] visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco
aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo
o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente [...]” (FOUCAULT, p.
48
127, 1997, p. 126-127). “Os termos que equivaleriam à disciplina, durante o século
XIX, como conteúdos de ensino, eram: objetos, partes, ramos ou ainda matérias de
ensino.” (SOUZA JR.; GALVÃO, 2005, p.395).
As disciplinas do ensino secundário, no sentido aproximado, como
representação de divisão de conteúdos foram incluídas no currículo e, em particular
a disciplina de Língua Portuguesa, foi incluída sob a forma de retórica, poética
abrangendo a literatura e a gramática nacional quando, em 1837, foi criado no Rio
de Janeiro o Colégio Pedro II e este se tornou, nos anos seguintes, modelo e padrão
de ensino secundário no país. (SOARES, 2002, p.163).
No modelo de organização escolar do Colégio Pedro II, o currículo passa ter
maior visibilidade no processo educacional. Também por envolver questões de poder
(nas relações professor/aluno), de classes sociais (dominantes/dominados), políticas,
étnicas, de gênero e influência direta nos sujeitos este ganha importância no campo
de estudo e pesquisa. Para tentar explicar e abordar, ainda que de maneira indireta,
os problemas práticos em educação surgem às teorias curriculares como expressões
de mediação entre o pensamento e a ação em educação.
2.2 TEORIAS CURRICULARES TRADICIONAIS
As teorias curriculares apresentadas como tradicionais pretendem ser neutras,
científicas, desinteressadas enquanto as teorias críticas e pós-críticas argumentam
que nenhuma teoria é neutra, científica e desinteressada, mas que está
inevitavelmente implicada em relações de poder. Outros pontos relevantes entre
estas serão oportunamente abordadas.
Na visão das teorias tradicionais, o conhecimento fixo e imutável, é extraído
de valores universais, absolutos, incondicionais e incontestáveis por serem
identificados com a natureza. Como não se pode modificar a natureza estes valores
tendem a ser naturalizados e não propensos a questionamentos. O foco da
escolarização desloca-se da formação humanística para a profissional. No contexto
da crescente industrialização e urbanização, a teoria tradicional visa aceitação,
ajuste e adaptação ao mundo do trabalho.
49
“Provavelmente”, para Silva,
[...] o currículo aparece pela primeira vez como objeto específico de estudo e pesquisa nos Estados Unidos dos anos vinte. Em conexão com o processo de industrialização e os movimentos imigratórios, que intensificavam a massificação da escolarização, houve um impulso, por parte de pessoas ligadas à administração, para racionalizar o processo de construção, desenvolvimento e testagem de currículos. (SILVA, 2011, p. 12).
Nesse período, em 1918, Frankin Bobbitt escreveu o livro The curriculum que
se tornou um marco no campo especializado de estudos. O autor descreve o
currículo como um processo industrial inspirado na administração científica de Tylor:
“[...] a especificação precisa de objetivos, procedimentos e métodos para a obtenção
de resultados que possam ser precisamente mensurados.” (SILVA, 2011, p. 12).
Mais tarde, Ralph Tyler consolidou o modelo de currículo apresentado por
Bobbitt, publicando em 1949, Princípios básicos de currículo e ensino. Com
preocupação em questões técnicas, para Tyler, o currículo deveria buscar responder
a que objetivos educacionais a escola procura atingir em termos claramente
definidos e estabelecidos. Formulados em procedimentos de comportamento
explícito,
[...] essa orientação comportamentalista iria se radicalizar, aliás, nos anos 60, com o revigoramento de uma tendência fortemente tecnicista na educação estadunidense, sobretudo, por um livro de Robert Mager, “Análise de objetivos”, também influente no Brasil na mesma época. (TYLER apud SILVA, 2011, p. 25,26).
2.3 TEORIAS CURRICULARES TRADICIONAIS-PROGRESSIVISTAS
Numa linha progressivista, mas também tradicional, aparece a teoria de
Dewey, no início do século XX, nos Estados Unidos, com uma preocupação maior
com princípios democráticos e nos interesses e experiências das crianças e jovens
(base psicológica) do que com o funcionamento da economia e a preparação para a
vida ocupacional adulta. “Para Dewey, a educação não era tanto uma preparação
50
para a vida ocupacional adulta, como um local de vivência e prática direta de
princípios democráticos.” (SILVA, 2011, p. 23). O movimento “progressivo”
americano e a “Escola Nova” europeia dão “[...] lugar a acepções muito
diversificadas, próprias da ruptura, pluralismo e concepções diferentes das
finalidades educativas dentro de uma sociedade democrática.” (SACRISTÁN, 1998,
p. 41). No Brasil, a partir da década de 30 do século passado o movimento
“escolanovista” ganha espaço nas discussões antes ocupado pelos movimentos
sociais dos anarquista e socialista que buscavam a ampliação nas escolas do
número de vagas para os trabalhadores.
A crença tradicional da escola com poder de equalização social passa a ser
vista como instrumento de discriminação social em razão da falta de acesso e do
grande número de evasão dos que nela ingressam. Os estudos de Montessouri e
Declory, por exemplo, com preocupação nos chamados “anormais” que
representavam o setor dos excluídos educacionalmente, são estendidos a todos que
não se integravam. Os procedimentos pedagógicos aplicados aos “anormais” são
generalizados e aplicados a todos os marginalizados pelo sistema escolar. Enquanto
a teoria tradicional tendia a harmonização e coesão dos membros da sociedade e
toda distorção devia ser corrigida, o movimento conhecido como “escolanovista”
concebe a escola como reprodutora de uma sociedade essencialmente marcada
pela divisão em grupos que se relacionam a base de forças sendo a marginalidade
vista como seu fenômeno inerente por ser dependente da estrutura social geradora.
Dermeval Saviani, por entender “[...] que a função básica da educação é a
reprodução da sociedade [...]” as denominou de teorias “[...] crítico-reprodutivistas.”
(SAVIANI, 2008, p. 5).
O currículo no ideário “escolanovista”, tendo por referência a pedagogia
tradicional, deslocou o eixo
[...] da questão pedagógica do intelecto para o sentimento; do aspecto lógico para o psicológico; dos conteúdos cognitivos para os métodos ou processos pedagógicos; do professor para o aluno; do esforço para o interesse; da disciplina para a espontaneidade; do diretivismo para o não-diretivismo; da quantidade para a qualidade; de uma pedagogia de inspiração filosófica centrada na ciência da lógica para uma pedagogia de inspiração experimental baseada principalmente nas contribuições da biologia e da psicologia. (SAVIANI, 2008, p.9).
51
Apesar de sua contribuição para o aprimoramento na qualidade de ensino, a
abrangência de tais mudanças acabou por não se estender à maioria das escolas
por causa do seu elevado custo em relação das escolas tradicionais, beneficiando,
assim, apenas um pequeno grupo da elite e agravando as principais questões por
ela mesma levantadas, a saber: a exclusão, a equalização, a falta de acesso e
evasão ao sistema de ensino.
2.4 TEORIAS CURRICULARES TECNICISTAS
Devido aos evidentes fracos resultados apresentados e às frustradas
expectativas iniciais depositadas no “escolanovismo”, somados a preocupação com
os métodos pedagógicos com o passar do tempo, ganha espaço outra concepção
teórica, a chamada tecnicista.
A partir do pressuposto da neutralidade científica e inspirada nos princípios de racionalidade, eficiência e produtividade, essa pedagogia advoga a reordenação do processo educativo de maneira a torná-lo objetivo e operacional. De modo semelhante ao que ocorreu no trabalho fabril, pretende-se a objetivação do trabalho pedagógico. (SAVIANI, 2008, p. 12).
O foco do trabalho pedagógico não é mais o professor como instituído na
escola tradicional, nem o aluno como na “escolanovista”, mas se torna a organização
racional, a mecanização do processo na busca da eficiência. A fragmentação e o
detalhamento do processo a cargo de especialistas aos professores que agiam como
executores do planejamento destes gerou a burocratização do ensino e os
resultados negativos convalidaram mais uma vez o espectro de exclusão e evasão
de uma grande parcela de alunos na escola, marcadamente presente nas
concepções teóricas anteriores.
52
2.5 TEORIAS CURRICULARES CRÍTICAS
Já na década de 1930, as ideias principais da teoria crítica foram discutidas
no livro Teoria tradicional e teoria crítica no qual Horkheimer (1980) questiona o
conceito de objetividade e de neutralidade científica no processo de conhecimento.
Nos anos de 1960, surgiram muitos movimentos sociais e culturais em todo o
mundo e também questionamentos da estrutura educacional tradicional bem como
as concepções de currículo. As teorias críticas aparecem nesse contexto com maior
preocupação em apontar o papel da escola e do currículo na reprodução da
estrutura social marcada pelas injustiças e desigualdades. Boaventura Santos
identifica algumas características da teoria crítica:
[...] uma preocupação epistemológica com a natureza e validade do conhecimento científico, uma vocação interdisciplinar, uma recusa da instrumentalização do conhecimento científico ao serviço do poder político e econômico [...] uma concepção de sociedade que privilegia a identificação dos conflitos e dos interesses [...] um compromisso ético que liga valores universais aos processos de transformação social. (SANTOS, 1999, p. 8).
Na visão crítica, o currículo é concebido por meio de alguma operação de
correspondência, representação do conhecimento sob outra forma, algo que o
precede.
Essa concepção representacionista do currículo e do conhecimento tem sua versão crítica: na visão marxista, por exemplo, inspirada pelo conceito de ideologia, o currículo e conhecimento existentes só não correspondem à verdade porque estão indevidamente distorcidos pelos interesses da classe dominante. (SILVA, 2002, p.11, grifos do autor).
Duas correntes mais conhecidas das teorias críticas podem ser citadas: a
Sociologia do Currículo, com origem nos Estados Unidos e que tem como
representantes mais conhecidos Michael Apple e Henry Giroux e a Nova Sociologia
do Currículo, com origem na Inglaterra que tem em Michael Young um dos principais
representantes.
53
Apple em seu primeiro livro, Ideologia e currículo, de 1979, mostrou
preocupação em evitar uma concepção mecanicista e determinista dos vínculos
entre produção e educação. Para entender as formas complexas em que as tensões
e contradições sociais, econômicas e políticas são mediadas nas práticas concretas
dos educadores o autor se apoia numa orientação cultural e ideológica. Henry
Giroux, a partir dos anos 1980, se aproxima das ideias da chamada Escola de
Frankfurt, formada por um grupo de intelectuais alemães, que propunha, entre outros
aspectos, revitalizar o materialismo dialético, denunciar o caráter de exploração do
capitalismo e questionar a instrumentalização da razão.
Sacristán, seguindo na linha de estudo do currículo no contexto sociocultural,
estabelece relação entre o projeto cultural e de socialização na escola, por meio do
currículo, em seu livro O currículo uma reflexão sobre a prática:
[...] o projeto cultural e de socialização que a escola tem para seus alunos não é neutro. De alguma forma, o currículo reflete o conflito de interesses dentro de uma sociedade e os valores dominantes que regem os processos educativos. (SACRISTÁN, 1998, p.17).
Para Sacristán, os procedimentos de seleção e organização são mecanismos
através dos quais o conhecimento é distribuído socialmente no currículo:
A Nova Sociologia da Educação contribui de forma decisiva para atualidade do tema, que centrou seu interesse em analisar como as funções de seleção e de organização social da escola, que subjazem nos currículos, se realizam através das condições nas quais seu desenvolvimento ocorre. (SACRISTÁN, 1998, p.19).
Como campo de atividade, onde se entrecruzam múltiplos subsistemas,
Schubert assinalou: “O campo do currículo não é somente um corpo de
conhecimentos, mas uma dispersa e ao mesmo tempo encadeada organização
social.” (SACRISTÁN, 1998, p.101).
Os questionamentos e as críticas, apresentados ao modelo instituído de
currículo contribuem para mutação e adaptação frente às transformações e aos
interesses dos setores prevalecentes da sociedade. Stenhouse considera que: “Um
54
currículo é uma tentativa para comunicar os princípios e traços essenciais de um
propósito educativo, de forma tal que permaneça aberto à discussão crítica e possa
ser transferido efetivamente para a prática.” (SACRISTÁN, 1998, p.84, grifos do
autor). O currículo, assim, passa a ser um espaço importante para mediar os
conflitos da sociedade e possibilita a construção e a instituição segundo os objetivos
valorizados por determinados setores e não apenas reprodução dos modelos
educacionais existentes.
A escola na teoria crítica vista como espaço de luta e resistência e não
apenas de reprodução da sociedade dá visibilidade a discussão da existência, além
do currículo prescrito, ao currículo oculto. O currículo prescrito por meio de legislação
e projetos educativos indicam os conteúdos mínimos obrigatórios apresentados
pelos docentes aos alunos. Para Sacristán, o currículo prescrito tem função
intervencionista pelo sistema administrativo estatal na sociedade:
A ordenação do currículo faz parte da intervenção do Estado na organização da vida social. Ordenar a distribuição do conhecimento através do sistema educativo é um modo não só de influir na cultura, mas também em toda a ordenação social e econômica da sociedade. (SACRISTÁN, 1998, p.108).
Já o currículo oculto está relacionado aos conhecimentos, habilidades, valores
e atitudes subjacentes ao currículo prescrito que os alunos adquirem no cotidiano do
processo de ensino e aprendizagem. É nas relações sociais dentro da sala de aula e
nas situações que envolvem a vida escolar que o currículo oculto implicitamente se
apresenta e se estabelece na formação e transformação de valores socioeconômicos
e políticos. “Analisar o sistema educativo e, por conseguinte, o que os cidadãos e
cidadãs aprendem com a sua passagem pelas instituições escolares implica prestar
atenção não só ao que denominamos currículo explícito, mas também ao currículo
oculto.” (SANTOMÉ, 1995, p. 201).
A partir da premissa de que nos currículos prescritos que se apresentam e se
transmitem a seleção de conteúdos culturais representando os interesses de grupos
dominantes que se revezam em uma luta de interesses hegemônicos é no currículo
55
oculto que os outros grupos aceitam, rejeitam, criam e propõem suas mensagens
ideológicas próprias.
O currículo oculto costuma incidir no reforço dos conhecimentos, valores e expectativas mais de acordo com as necessidades e interesses da ideologia hegemônica desse momento sócio-histórico. [...] No entanto, o desenvolvimento do currículo oculto nem sempre vai à direção de uma consolidação dos interesses dos grupos sociais dominantes e das estruturas de produção e distribuição vigentes. (SANTOMÉ, 1995, p. 201).
O currículo oculto se mostra como espaço e manifestação dos interesses dos
outros grupos não pertencentes aos chamados dominantes. A produção de
conhecimento, resistência à falta de liberdade de expressão, mediação de interesses
entre diferentes grupos se apresentam em contato com a realidade do cotidiano na
instituição escolar sem a formalização de um currículo oficial. Desse modo, a “[...]
essência do currículo oculto seria estabelecida no desenvolvimento de uma teoria da
escolarização preocupada tanto com a reprodução quanto com a transformação [...]”
(GIROUX, 1986, p. 89).
Dentro da teoria crítica, o currículo oculto se mostra como espaço de
manifestação, de resistência, de mudança, de rejeição e todas as formas de
expressão presentes nas relações sociais institucionalizadas. Longe de ser neutro
como na teoria tradicional, o currículo oculto tanto quanto o prescrito, serve aos
interesses de segmentos dentro do contexto social, político e econômico no qual
estão inseridos.
2.6 TEORIAS CURRICULARES PÓS-CRÍTICAS
A partir da década de 1990 a linha de pesquisa em currículo tem dado ênfase
na análise da relação entre currículo e construção de identidades e subjetividades.
Também estão presentes os estudos sobre a cultura escolar e as diferenças culturais
56
dos grupos sociais nela presentes, os estudos multiculturais, que exploram a
necessidade do currículo “dar voz” às culturas excluídas.
Falando sobre os diferentes tipos de alunos com diferentes origens sociais
presentes nas modalidades da educação, a multiculturalidade na escola, Sacristán
levanta o questionamento sobre o uso do currículo como forma de segregação:
A formação profissional paralela ao ensino secundário segrega a coletividade de alunos de diferentes capacidades e procedência social e também com diferente destino social, e tais determinações podem ser vistas nos currículos que se distribuem num e noutro tipo de educação. (SACRISTÁN, 1998, p.17).
A discussão do papel formativo do currículo na construção de identidades está
presente também na produção de Silva ao dizer:
O currículo tem significados que vão muito além daqueles aos quais as teorias tradicionais nos confinaram. O currículo é lugar, espaço, território. O currículo é relação de poder. O currículo é trajetória, viagem, percurso. O currículo é autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no currículo se forja nossa identidade. O currículo é texto, discurso, documento. O currículo é documento de identidade. (SILVA, 2011, p. 150).
2.7 TEORIAS CURRICULARES ESTRUTURALISTA E PÓS-ESTRUTURALISTA
A teorização contemporânea denominada “pós-estruturalista” ou “pensamento
da diferença” remete aos anos sessenta e o seu surgimento em geral está ligado a
um grupo de pensadores franceses Michel Foucault, Gilles Deleuze e Jacques
Derrida que, seguindo um núcleo de temas comuns, passam a questionar a
metafísica, a fenomenologia, a dialética, o marxismo e o estruturalismo. Limita-se a
teorização social sobre linguagem e o processo de significação. Silva define o pós-
estruturalismo
57
[...] como uma continuidade e, ao mesmo tempo, como uma transformação relativamente ao estruturalismo. Como se sabe, o estruturalismo foi o movimento teórico que, com base no estruturalismo linguístico de Ferdinand de Saussure, dominou a cena intelectual nos anos 50 e 60. (SILVA, 2011, p. 118).
O movimento estruturalista privilegia a estrutura das relações entre os
elementos de um fenômeno partindo das investigações de Saussure que
enfatizavam as regras de formação estrutural da linguagem. Ele estava
particularmente interessado no estudo da língua mais do que da fala por entender
que esta com um número limitado de regras sintáticas e gramaticais permite
combinações e permutações em qualquer língua enquanto que a fala se restringe a
utilização concreta desse conjunto limitado de regras.
O pós-estruturalismo partilha da ênfase na linguagem como sistema de
significação do estruturalismo, contudo, efetua
[...] certo afrouxamento na rigidez estabelecida pelo estruturalismo. O processo de significação continua central, mas a fixidez do significado que é, de certa forma, suposta no estruturalismo, se transforma, no pós-estruturalismo, em fluidez, indeterminação e incerteza. (SILVA, 2011, p. 119).
Para o pós-estruturalismo, tal como para o estruturalismo, esse sujeito não passa de uma invenção cultural, social e histórica, não possuindo nenhuma propriedade essencial ou originária. [...] mas se podia vislumbrar a emergência de um outro sujeito, uma vez removidos os obstáculos, sobretudo a estrutura capitalista, que estavam na origem desse sujeito espúrio. [...] O pós-estruturalismo, entretanto, radicaliza o caráter inventado do sujeito. [...] não existe sujeito a não ser como simples e puro resultado de um processo de produção cultural e social. (SILVA, 2011, p. 120).
Na perspectiva pós-estruturalista, a teoria do currículo rejeita qualquer tipo de
sistematização e, dada a concepção que vê, o processo de significação como
basicamente indeterminado passa a questionar o saber de quem são os valores,
para quem e para que servem, como objetos de uma problematização e não como
pontos finais de uma busca pela essência. O currículo é caracterizado pela
indeterminação e incerteza.
58
Seguindo, nesse caso, especificamente, Foucault, uma perspectiva pós-estruturalista sobre currículo desconfia das definições filosóficas de ‘verdade’. [...] a verdade é simplesmente uma questão de verificação empírica; é uma questão de correspondência com uma suposta “realidade”. A perspectiva pós-estruturalista não apenas questiona essa noção de verdade; ela de forma mais radical, abandona a ênfase na “verdade” para destacar, em vez disso, o processo pelo qual algo é considerado como verdade. A questão não é, pois, a de saber se algo é verdadeiro, mas, sim, de saber por que esse algo se tornou verdadeiro. (SILVA, 2011, p. 123, 124, grifos do autor).
As separações curriculares entre diversos gêneros de conhecimento, a
concepção de sujeito autônomo não resultante de uma construção histórica, a
transformação da noção de poder como uma relação móvel onde poder e saber são
mutuamente dependentes, uma não existindo sem a outra, o pressuposto da
identidade entre a consciência e a linguagem oral, os significados transcendentais
ligados à religião, à pátria, á política, à ciência presentes no currículo, constituem
alguns dos questionamentos que poderiam surgir neste dentro de uma perspectiva
pós-estruturalista.
As relações de poder estão postas nas citadas “reformas educacionais” em
consonância com as teorias críticas e pós-críticas. Conceitos pedagógicos de ensino
e aprendizagem são perpassados por conceitos de ideologia e poder e, mais do que
nunca, as teorias presentes nos currículos oficiais não se apresentam de forma
neutra, puramente científica ou desinteressada. Além do “currículo oficial” ganha
espaço nas discussões o papel do “currículo oculto” na prática escolar e, a
desconfiança tem gerado a construção e a desconstrução de modelos pedagógicos
curriculares instituídos.
O currículo atual reflete influências dos anos de 1990 que, em meio a
questões postas por um mundo em transformação pelos desígnios da globalização,
passa impor a necessidade de ajustes do sistema educacional a nova ordem do
capital e a democratização do ensino. A pressão de organismos internacionais para
estes ajustes nas políticas públicas de educação foi marcante, em forma de oferta de
financiamentos, conferências, assessorias técnicas e grandes eventos ao custo da
redução dos gastos e, consequentemente, do déficit público. Os ajustes se
materializaram em projetos, acordos, programas, e outras denominações para as
59
reformas educativas, elaborados por “especialistas”, conforme identificado por
Frigotto (2003, p. 107),
Na sua maioria, intelectuais altamente preparados em universidades do exterior com passagem, algumas muito longa, outros mais breves, nos organismos internacionais que estão na base das reformas educativas: Banco Mundial, Banco Interamericano de Desenvolvimento, Organização Internacional do Comércio (OIT), etc.
60
CAPÍTULO 3
CURRÍCULO DE LÍNGUA PORTUGUESA PARA O CICLO I, DO ENSINO FUNDAMENTAL NO ESTADO DE SÃO PAULO
As Orientações Curriculares da rede estadual de Educação Básica do Estado
de São Paulo tem sua origem na Proposta Curricular Unificada, implantada no início
do ano letivo de 2008 e é parte integrante dos objetivos do “Programa São Paulo Faz
Escola” que foi criado em 2007 e tem como foco a instituição de um currículo único
para todas as escolas daquela rede. “Com a intenção de subsidiar o ensino dos
conteúdos mais relevantes a serem garantidos ao longo das quatro séries iniciais do
Ciclo I, do Ensino Fundamental” (SP-SEE, 2008, p. 3) pela sistematização da
utilização do mesmo material didático e seguindo o mesmo plano de aula, o
“Programa São Paulo Faz Escola” pretende contribuir para o processo na melhoria
da qualidade do ensino paulista.
A Coordenadoria de Gestão da Educação Básica (CGEB) disponibilizou o
conteúdo do currículo proposto através de uma publicação chamada “Orientações
Curriculares do Estado de São Paulo – Língua Portuguesa e Matemática – Ciclo I”,
em 2008.
3.1 A ORIGEM DAS “ORIENTAÇÕES CURRICULARES”
“Orientações Curriculares” é a nomenclatura dada pela rede estadual de São
Paulo para o documento distribuído a partir de 2007 que deverá ser utilizado como
subsídio pelos professores para elaboração do planejamento escolar anual. No
Estado do Paraná ele é chamado de “Expectativas de Aprendizagem”, “Reorientação
Curricular do 1º ao 9º ano” em Goiás, “Currículo da Educação Básica” no Distrito
Federal, variando, assim, em outros estados da federação.
Anterior a essa nomenclatura, de 1986 a 2001, o documento no Estado de
São Paulo era chamado de “Proposta Curricular”. A Secretaria de Estado da
Educação de São Paulo (SEE-SP) sob a Coordenadoria de Estudos e Normas
61
Pedagógicas (CENP) produziu e distribui para toda a rede estadual de educação a
primeira edição do documento, conforme intitulado em 1986, no final do mandato do
então governador André Franco Montoro, que foi de 15/03/1983 a 15/03/1987. Nele
estão contidos os conteúdos disciplinares de Língua Portuguesa para CB (Ciclo
Básico) que corresponde a 1ª e 2ª séries até a 8ª série e algumas orientações
didáticas para os professores. Este documento foi reimpresso com algumas
alterações, mas mantendo a mesma estrutura básica durante os governos de
Orestes Quércia (15/03/1987 a 15/03/1991), Luiz Antonio Fleury Filho (15/03/1991 a
01/01/1995) e Mário Covas Júnior (01/01/1995 a 31/12/1998 e reeleito, tomou posse
de 10/01/1999 até 06/03/2001, quando faleceu no exercício do cargo).
O currículo de Língua Portuguesa ‒ conforme está proposto nas Orientações
Curriculares (2008) ‒ teve seus fundamentos previstos na forma da lei já há algum
tempo. O art. 9º, inciso IV, da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), Lei 9.394/96, de 20
de dezembro de 1996, determina ser incumbência da União:
[...] estabelecer, em colaboração com os Estados, Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e os seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar a formação básica comum.
Os currículos e seus conteúdos mínimos (art. 210 da CF/88), propostos pelo
Ministério da Educação e Cultura (MEC) (art. 9º da LDB), serão estabelecidos
através de “diretrizes”. Cabe à Câmara de Educação Básica (CEB) do Conselho
Nacional de Educação (CNE) (art. 9º, § 1º, alínea “c” da Lei nº 9.131, de 24 de
novembro de 1995) as funções normativas, de supervisão e definição das Diretrizes
Curriculares Nacionais que deverão se dar de forma articulada com Estados e
Municípios respeitando os princípios da igualdade, da liberdade, do reconhecimento,
do pluralismo de ideias e concepções pedagógicas conforme exposto no art. 3º da
LDB e Parecer Nº CEB 04/98 p. 2.
Para elaborarem suas Propostas Pedagógicas, as escolas têm por referência
os PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais) e as Propostas Pedagógicas dos
Estados e Munícipios. Os PCNs são as diretrizes concebidas pelo Governo Federal
sem caráter obrigatório e que servem como referência para os Estados e munícipios
62
elaborarem seus currículos. A elaboração dos PCNs teve como base a Declaração
Mundial sobre Educação para Todos: Satisfação das Necessidades Básicas de
Aprendizagem (NEBA) assinada pelos países participantes da Conferência sobre
Educação, realizada em Jomtien, na Tailândia, em 1990. (SAMPAIO, 2010, p. 8). Nas Orientações Curriculares do Estado de São Paulo – Língua Portuguesa e
Matemática – Ciclo I estão presentes referências ao PCN de Língua Portuguesa. A
divisão por disciplinas e por ciclo, as especificidades nos conteúdos, recursos
didáticos, critérios de avaliação são algumas das características presentes nos dois
documentos.
De acordo com a Constituição Federal de 1988, a fim de garantir a todos
“Igualdade de condições para acesso e permanência na escola;” (art. 206, Inciso I),
no art. 210 diz que: “Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental,
de maneira a assegurar formação básica e respeito aos valores culturais e artísticos,
nacionais e regionais.” A LDB complementa no art. 26:
“Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum,
a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por
uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da
sociedade, da cultura, da economia e da clientela.” (Lei n. 9.394/96 das Diretrizes e
Bases da Educação Nacional, art. 26).
No art. 27 da LDB estão as diretrizes que atendem a base nacional comum:
I - a difusão dos valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática; II - consideração das condições de escolaridade dos alunos em cada estabelecimento; III - orientação para o trabalho; IV - promoção do desporto educacional e apoio às práticas desportivas não-formais. (Lei n. 9.394/96 das Diretrizes e Bases da Educação Nacional, art. 27).
A base diversificada está relacionada à contribuição da multiplicidade das
etnias no espaço nacional e nos espaços regionais e locais quanto ao
aprofundamento teórico e prático de qualquer ponto e de qualquer componente
curricular da base comum que se materializará pela autonomia na elaboração dos
63
projetos pedagógicos nas escolas. A proposta tem em vista que ambas se articulem
por uma consolidação integrada e contextualizada “[...] pois, numa perspectiva de
organicidade, integração e contextualização do conhecimento, não faz sentido que
elas estejam divorciadas” (Parecer CEB n.15/98). Ao contemplar a multiplicidade das etnias no espaço regional, a ampliação da
escolarização atinge as camadas mais populares que se achavam excluídas no
modelo clássico-humanista de currículo e apresenta uma tendência à perspectiva
crítica de multiculturalismo que podem estar representadas ainda sob outras
perspectivas.
A perspectiva liberal ou humanista enfatiza um currículo multiculturalista baseado nas ideias de tolerância, respeito e convivência harmoniosa entre as culturas. Da perspectiva mais crítica, entretanto, essas noções deixariam intactas as relações de poder que estão na base da produção da diferença. (SILVA, 2011, p. 88).
Seja qual for a perspectiva, a multiculturalidade passou a estar presente nas
discussões das teorias críticas do currículo.
O Conselho Nacional de Educação (CNE), por intermédio do relator Carlos
Roberto Jamil Cury, no Parecer CEB n.06/2001 expressa no texto que a Lei
9.394/96, com respeito à autonomia dos estabelecimentos escolares, numa
concepção de flexibilidade face à organização curricular,
[...] recebe nominalmente a expressão “parte diversificada” advinda da lei 5.692/71 e tal expressão não deve ser entendida no sentido de uma adição a uma outra parte: a de um núcleo comum. Ela deve ser compreendida como um respeito à estrutura federativa do país, à diversidade situacional dos estabelecimentos escolares, aos modos autônomos e contextuados de se compor os componentes curriculares. Ela representa também um momento de múltiplas possibilidades de organização curricular em vista de objetivos expressos na lei e nas diretrizes curriculares nacionais que, materializados num ordenamento coerente e flexível da organização curricular por meio dos projetos pedagógicos, conduzam a processos de formação da cidadania e de qualificação para o trabalho. (CEB n. 06/2001).
64
Segue esquema gráfico da ordem hierárquica na elaboração do Currículo:
Gráfico - Ordem hierárquica na elaboração do currículo Fonte: a autora.
Na Apresentação da Proposta Curricular EF, Ciclo I, disponível no site “São
Paulo faz Escola”, da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo, o texto diz no
primeiro parágrafo:
65
O presente documento foi elaborado, como já colocado, a partir das Orientações Gerais para o Ensino de Língua Portuguesa e de Matemática publicadas pela S.M.E. São Paulo, com a intenção de subsidiar o ensino dos conteúdos mais relevantes a serem garantidos ao longo das quatro séries do Ciclo I do Ensino Fundamental. (SP-SEE, 2013). Parte dessa informação é repetida no segundo parágrafo da Apresentação
das Orientações Curriculares do Estado de São Paulo - Língua Portuguesa e
Matemática, Ciclo I, feita pela Secretária da Educação Maria Helena Guimarães de
Castro, no Governo de José Serra e distribuídas nas escolas da rede estadual,
conforme segue:
Não saímos do zero. Nosso ponto de partida, fruto de uma relação de colaboração mútua, foram as Orientações Gerais para o Ensino de Língua Portuguesa no Ciclo I, publicadas em agosto de 2005 pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo (SME) no Diário Oficial da Cidade. (SP-SEE - Orientações Curriculares, 2008, p. 3).
Tanto a Apresentação da Proposta Curricular como a Apresentação das
Orientações Curriculares do Estado de São Paulo informam que o texto foi elaborado
“a partir” e em “relação de colaboração mútua” com a Secretaria Municipal de
Educação de São Paulo, respeitando a organização dos conteúdos do paradigma
curricular da Base Nacional Comum.
O Comunicado SME 816 de 03.08.05 - DOC 04.08.05, que também serviu de
referência para “Orientações Curriculares do Estado de São Paulo”, em 2008,
instituiu na rede municipal de ensino de São Paulo, o Programa Ler e Escrever a
partir do ano de 2006 com objetivos bem parecidos ao da rede estadual em 2007. No
Comunicado SME 816, já citado, o objetivo de desenvolver projetos visava “[...]
reverter o quadro de fracasso escolar ocasionado pelo analfabetismo e pela
alfabetização precária dos alunos do Ensino Fundamental e Médio da Rede
Municipal de Ensino.”
66
3.2 AS “ORIENTAÇÕES CURRICULARES” E O PROGRAMA “LER E ESCREVER”
Na Apresentação do documento “Orientações Curriculares do Estado de São
Paulo – Língua Portuguesa e Matemática – Ciclo I”, diz que este “[...] não deve ser
analisado isoladamente [...]”, pois “[...] faz parte de um conjunto de ações
desencadeadas em 2007 pela Secretaria Estadual de Educação (SEE-SP,
ORIENTAÇÕES CURRICULARES, 2008, p. 5).” Na sequência do texto, a
implantação do “Programa Ler e Escrever Prioridade na Escola” é citado como a
primeira dessas ações.
A supervisora pedagógica do “Programa Ler e Escrever”, Telma Weisz, ‒ que
também é coordenadora com Neide Nogueira, da publicação Orientações
Curriculares ‒ relata que o “Programa Ler e Escrever” faz parte de um trabalho
criado, progressivamente ao longo dos últimos 25 anos, na história dos avanços na
melhoria da qualidade do ensino nos anos iniciais do Ensino Fundamental, em São
Paulo. Para citar na linha do tempo estes programas, temos em: 1984 – Ciclo
Básico; 1988 – Por uma alfabetização sem fracasso; 1993 – Alfabetização: teoria e
prática; 2003 – Letra e Vida, SARESP e, 2007- Ler e Escrever. Este último abrange
um conjunto articulado de quatro programas: 1) Formação de formadores e gestores
com acompanhamento institucional; 2) Produção e distribuição de material impresso
(tanto para os professores quanto para os alunos); 3) Bolsa alfabetização e 4)
Avaliação do desempenho das 2ªs séries (SARESP). O Programa Ler e Escrever
“[...] foi pensado como um conjunto de ações cujo objetivo é fazer avançar a
qualidade do ensino oferecido em cada escola.” (WEISZ, 2010, p. 21) Tem como
meta alfabetizar plenamente todas as crianças com até oito anos de idade e
desenvolver as competências necessárias “[...] para terem acesso à cultura letrada e
à plena participação social.” (SP-SEE ORIENTAÇÕES CURRICULARES, 2008, p.
42).
A Secretaria de Educação do Estado de São Paulo organizou em janeiro de
2008 um encontro de dirigentes regionais, supervisores de ensino e diretores de
escola onde foi feita a apresentação dos principais projetos e ações do planejamento
para o ano.
A partir dos resultados do Sistema de Avaliação do Ensino Básico (SAEB) e
do resultado de outras avaliações, o governo do Estado de São Paulo elaborou um
67
Plano de Metas e Planejamento. Na apresentação do Plano, em janeiro de 2008, a
então Secretária da Educação, professora Maria Helena Guimarães de Castro,
destacou 10 metas para serem alcançadas até o ano de 2010. As metas
contemplavam ações visando melhorar o desempenho dos alunos do Ensino Médio
e Fundamental do Ciclo I e II e a primeira delas era “Todos os alunos de 8 anos
plenamente alfabetizados”. A implantação do “Projeto Ler e Escrever” foi tratado
dentro do tema “Qualidade da educação: dez ações para uma escola melhor” como
uma destas ações e seria subsidiada pela distribuição de material de apoio didático-
pedagógico para alunos e professores e divulgação dos conteúdos básicos de
aprendizagem para todas as séries do Ensino Fundamental e Médio em 2008. (SP-
SEE, 2008).
Dispondo sobre a implementação da Proposta Curricular, a Resolução SE-76
de 7/11/2008, destaca, conforme citado na íntegra, nos artigos 1º e 3º, que se
constituiria num “referencial básico obrigatório para a formulação da proposta
pedagógica das escolas” e a sua implementação se daria “com o apoio de materiais
impressos” entre outros recursos e ações.
Artigo 1º - A Proposta Curricular do Estado de São Paulo para o Ensino Fundamental e para o Ensino Médio, elaborada por esta Pasta, a ser implantada no ano em curso, passa a constituir o referencial básico obrigatório para a formulação da proposta pedagógica das escolas da rede estadual. Artigo 3º - A implantação da Proposta Curricular ocorrerá com o apoio de materiais impressos, recursos tecnológicos e com ações de capacitação e monitoramento que, mediante a participação direta e contínua dos educadores da rede de ensino, possibilitarão seu aperfeiçoamento. (RESOLUÇÃO SE-76, 7 nov. 2008).
O Programa Ler e Escrever, introduzido em 2007 na rede estadual de
educação de São Paulo, foi oficialmente assumido, desde seu início, como política
pública. A publicação posterior de legislação e normas que garantiram as condições
de implementação e funcionamento vieram assim, subsidiar as Orientações
Curriculares no trabalho pedagógico.
68
3.3 OS OBJETIVOS DAS “ORIENTAÇÕES CURRICULARES”
A Secretaria Estadual de Educação do Estado de São Paulo (SP-SEE, 2008)
na introdução das “Orientações Curriculares do Estado de São Paulo - Língua
Portuguesa e Matemática, Ciclo I” sob o título “O ensino de Língua Portuguesa nas
séries iniciais” nos informa que esta se organiza em torno de um objetivo central:
[...] subsidiar todos os envolvidos no processo de ensino da Língua Portuguesa (Leitura, Escrita e Comunicação Oral) para sistematizar os conteúdos de ensino mais relevantes a serem garantidos ao longo das quatro séries do Ciclo I do Ensino Fundamental. (SP-SEE ORIENTAÇÕES CURRICULARES, 2008, p.7).
A formação de leitores e escritores é priorizada, pois, conforme citado na carta
de apresentação do documento, “[...] saber ler e escrever não só é condição
indispensável para que os estudantes adquiram os conhecimentos de todas as áreas
– e principalmente – para terem acesso à cultura letrada e à plena participação
social” (SP-SEE– ORIENTAÇÕES CURRICULARES, 2008, p. 4-3).
Conforme previsto nas “Orientações Curriculares”, o “Programa Ler e
Escrever” faz uso de textos nas situações de aprendizagem de leitura feitas pelo
professor e pelo aluno como conteúdo didático e estão presentes no “Guia de
Planejamento e Orientações Didáticas”, criado para subsidiar e dar referência às
aulas, na “Coletânea de Atividades” publicadas com especificidades aos alunos do 1º
ao 5º ano e no “Livro de Textos do Aluno” que deverá ser utilizado por todos os
alunos durante o Ciclo I. Nas “Expectativas de Aprendizagem” do “Guia de
Planejamento- 1º Ano” espera-se que o professor, ao “oferecer oportunidades
frequentes de contato com diferentes suportes de texto, tornando observáveis as
características linguísticas, estruturais e função social”, ao final do 1º ano, o aluno
deverá ser capaz de pelo menos ao “ler, ainda que não convencionalmente”:
• Identificar parlendas, quadrinhas, advinhas e outros textos de tradição oral apresentados pelo professor. Ajustar o falado ao escrito a partir dos textos já memorizados, tais como parlendas, quadrinhas e outros do repertório de tradição oral.
69
• [...] Diferenciar tipos de livros, literários, informativos e demais suportes de texto, e, saber nomeá-los, conhecendo seus usos. • Diferenciar publicações tais como jornais, cartazes, folhetos, textos publicitários, etc. Distinguir algumas características básicas dos textos informativos e jornalísticos e conhece os diferentes usos e funções desses portadores. Ler legendas ou partes delas a partir das imagens e de outros índices gráficos. Apreciar a leitura e comentar suas preferências.
Ao final do 2º ano, espera-se que o aluno seja capaz de, pelo menos:
• Ler – com o apoio do professor ou colegas – textos de diferentes gêneros (como contos, lendas, fábulas, mitos, textos instrucionais, de divulgação científica, notícias, entre outros) com diferentes propósitos, apoiando-se em conhecimentos sobre o tema do texto, as características de seu portador, do gênero e do sistema de escrita; • Ler por si mesmo textos conhecidos, tais como parlendas, advinhas, poemas, canções, trava-línguas, ainda que seja por meio de um procedimento de ajuste do falado ao escrito; • Ler por si mesmo textos diversos como além de placas de identificação, listas, manchetes de jornal, legendas, histórias em quadrinhos, tirinhas, rótulos, entre outros, utilizando-se de índices linguísticos e contextuais para antecipar, inferir e validar o que está escrito; (SP-SEE- GUIA DE PLANEJAMENTO – 1º ano, 2012, p. 20-22).
Do 3º ao 5º ano, nas “Expectativas de Aprendizagem”, espera-se que o aluno
leia por si mesmo, em parceria ou individualmente, diferentes tipos de gênero,
aprenda a apreciar textos literários e leia para estudar ou informar-se.
A justificativa em oferecer uma diversidade de gêneros textuais nas situações
de leitura pelo professor aos alunos é percebida na citação do “Guia de
Planejamento”:
Dentre os objetivos gerais das Expectativas de Aprendizagem O contato com textos literários, especialmente aqueles voltados à cultura da infância, é uma excelente maneira de aproximar as crianças do universo da escrita. O fascínio que despertam nelas os contos tradicionais faz com que esse seja um canal privilegiado para garantir uma aproximação favorável entre os pequenos e o mundo dos livros. (SP-SEE– GUIA DE PLANEJAMENTO – 1º ano, 2012, p. 70). [...]
70
A rica literatura infantil, que a cada dia ganha novos autores, ilustrações cheias de humor e desafios estéticos, projetos editoriais inovadores, convive com os contos tradicionais, em geral originados na tradição oral de diferentes povos, que trazem a vida em realidades muito diferentes daquela vivida pela criança que acompanha tais narrativas. (SP-SEE – Guia de Planejamento – 1º ano, 2012, p. 71) [...] Pela literatura, as crianças entram em contato com realidades distintas que lhes permitem relativizar seu próprio modo de vida, enriquecendo assim seus conhecimentos de outras épocas e lugares. (SP-SEE Guia de Planejamento – 1º ano, 2012, p. 72).
nas Orientações Curriculares está a de que os alunos se tornem capazes de: “[...]
integrar uma comunidade de leitores, compartilhando diferentes práticas culturais de
leitura e escrita [...]” (SP-SEE ‒ ORIENTAÇÕES CURRICULARES, 2008, p. 9). Na
justificativa de que oferecer diferentes gêneros textuais possibilita o aluno “entrar em
contato com realidades distintas” e enriquecer “conhecimentos de outras épocas e
lugares” encontra-se implícita a relação ao multiculturalismo presente no conceito
das teorias críticas.
Ao selecionar os textos, é proposto buscar no meio de uma grande oferta que
existe “aqueles que se mantem comprometidos com a produção de uma literatura de
qualidade”, pois o objetivo principal dessa proposta é “[...] favorecer que os alunos
construam um repertório amplo de boas histórias, tenham oportunidade de apreciar
um livro bem escrito (do ponto de vista literário) e aprendam os diferentes elementos
e possibilidades que compõem as narrativas.” (SP-SEE ‒ GUIA DE
PLANEJAMENTO – 1º ano, 2012, p. 74).
Os materiais produzidos a partir das “Orientações Curriculares” estão em
consonância com as orientações citadas nos Parâmetros curriculares Nacionais
(PCNs) de Língua Portuguesa que, considerando os diferentes níveis de
conhecimento prévio, indicam como responsabilidade da escola promover a sua
ampliação progressivamente de forma que “[...] cada aluno se torne capaz de
interpretar diferentes textos que circulam socialmente.” (BRASIL, 2000, p. 23).
Os PCNS são específicos ao abordar o sentido em que os textos serão
utilizados na disciplina de Língua Portuguesa e de que forma estes se relacionam
com “gênero”:
71
Todo texto se organiza dentro de um determinado gênero (O termo “gênero” é utilizado aqui como proposto por Bakthin e desenvolvido por Bronckart e Schneuwly). Os vários gêneros existentes, por sua vez, constituem formas relativamente estáveis de enunciados, disponíveis na cultura, caracterizados por três elementos: conteúdo temático, estilo e construção composicional. Pode-se ainda afirmar que a noção de gêneros refere-se a “famílias” de textos que compartilham algumas características comuns, embora heterogêneas, como visão geral da ação à qual o texto se articula, tipo de suporte comunicativo, extensão, grau de literariedade, por exemplo, existindo em número quase ilimitado. Os gêneros são determinados historicamente. As intenções comunicativas, como parte das condições de produção dos discursos geram usos sociais que determinam os gêneros que darão forma aos textos. É por isso que, quando um texto começa com “era uma vez”, ninguém duvida de que está diante de um conto, porque todos conhecem tal gênero. Diante da expressão “senhoras e senhores”, a expectativa é ouvir um pronunciamento público ou uma apresentação de espetáculo, pois sabe-se que nesses gêneros o texto, inequivocamente, tem essa fórmula inicial. Do mesmo modo. Pode-se reconhecer outros gêneros como cartas, reportagens, anúncios, poemas, etc. (BRASIL, 2000, p. 26-27).
Embora nos PCNs não esteja estabelecido exatamente quais gêneros seriam
adequados para o trabalho específico com a leitura e a produção de textos, sob o
título “Gêneros discursivos”, há a citação de gêneros para a linguagem oral de:
• contos (de fadas, de assombração, etc.) mitos e lendas
populares;
• poemas, canções, quadrinhas, parlendas, adivinhas, trava-
línguas, piadas;
• saudações, instruções, relatos;
• entrevistas, notícias, anúncios (via rádio e televisão);
• seminários, palestras.
Seguindo essas indicações, recomenda-se que os textos não sejam utilizados
indiscriminadamente e que “[...] o critério de seleção de quais textos podem ser
abordados em quais situações didáticas cabe, em última instância, ao professor.”
(BRASIL, 2000, p. 109).
É recomendado que a leitura pelo professor tenha “espaço garantido no dia a
dia” dos alunos. Como uma das “Condições didáticas para situações de leitura do
professor”, a escolha dos livros deverá considerar a “qualidade do texto”. Em alguns
72
momentos, os livros trazidos de casa e escolhidos pelas crianças deverão ser
avaliados antes de serem lidos pelo professor quanto a “qualidade literária, em que a
temática ou o modo como o texto é construído é o mais adequado.” “Porém, não se
deve esquecer que a responsabilidade pelo repertório de histórias conhecidas pelos
alunos é do professor.” (SP-SEE – Guia de Planejamento – 1º ano, 2012, p. 76).
O Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) envia às escolas
participantes do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), acervos de obras
complementares para as salas de aula, em média com 30 títulos destinados a cada
turma dos alunos do 1º ao 3º ano do Ensino Fundamental, com o objetivo de
complementar os recursos didáticos disponíveis em sala de aula no ciclo de
alfabetização.
Do exposto até o momento, o professor com a responsabilidade pela escolha
dos textos a serem lidos aos alunos, dentre os materiais oferecidos nas “Orientações
Curriculares” e os trazidos por estes de casa, ainda se depara na prática com a
incorporação de alterações na organização curricular e estratégias ao longo do
trabalho escolar a partir de resultados obtidos da participação dos alunos em
Sistemas de Avaliação em larga escala no Brasil.
Na década de 1990, foi criado o Sistema Nacional de Avaliação da Educação
Básica (Saeb) para avaliar a proficiência dos alunos em Língua Portuguesa e
Matemática em nível nacional e traçar um diagnóstico da qualidade da educação
básica, com base nas propostas curriculares estaduais, municipais e os PCNs. Em
2005 o Saeb foi reestruturado pela Portaria Ministerial nº 931, de 21 de março de
2005 e passou a ser composto por duas avaliações: da Avaliação Nacional da
Educação Básica (Aneb) que abrange, de maneira amostral, os estudantes das
redes públicas e privadas do país, localizadas na área rural e urbana e matriculados
no 5º e 9º anos do Ensino Fundamental e também no 3º ano do Ensino Médio; e a
da Avaliação Nacional do Rendimento Escolar (Anresc) que recebe também o nome
de “Prova Brasil” e é aplicada, censitariamente, aos alunos de 5º e 9º anos do
Ensino Fundamental público, nas redes estaduais, municipais e federais, de área
rural e urbana, em escolas que tenham no mínimo 20 alunos matriculados na série
avaliada.
A “Prova Brasil” foi aplicada pela primeira vez em 2005 e concebida com o
intuito de fornecer dados mais detalhados de modo a complementar as informações
73
já oferecidas pelo Saeb. Seus resultados são utilizados para compor o Índice de
Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb).
O Ideb foi criado pelo Inep em 2007, em uma escala de zero a dez. Sintetiza dois conceitos igualmente importantes para a qualidade da educação: aprovação e média de desempenho dos estudantes em língua portuguesa e matemática. O indicador é calculado a partir dos dados sobre aprovação escolar, obtidos no Censo Escolar, e médias de desempenho nas avaliações do Inep, o Saeb e a Prova Brasil. (INEP, 2011).
O Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), utiliza os índices do Ideb
como ferramenta para estabelecer metas bienais de qualidade a serem atingidas por
escolas, municípios e unidades da Federação, de forma a alcançar o patamar
educacional da média dos países da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE), o que significa progredir da média nacional
3,8 em 2005, na primeira fase do Ensino Fundamental para 6,0 em 2022.
Em nota, o Portal Ideb do governo explica que:
As autoridades educacionais podem, por exemplo, financiar programas para promover o desenvolvimento educacional de redes de ensino em que os alunos apresentam baixo desempenho. [...] Aliás, o financiador poderia estipular previamente o avanço desejado no indicador como contrapartida para a liberação de recursos. (INEP, 2011).
Em 2013 foi aplicada pela primeira vez Avaliação Nacional da Alfabetização
(ANA), elaborada no contexto do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa
(PNAIC). Instituído pelo Ministério da Educação em julho de 2012, o PNAIC tem
como proposta “[...] apoiar os sistemas públicos de ensino na alfabetização e no
letramento dos estudantes até o final do 3º ano do ensino fundamental.” (INEP,
2013, p. 5). Com a atenção voltada para o Ciclo de Alfabetização, ANA será aplicada
nas escolas públicas brasileiras anualmente com os objetivos de:
i) Avaliar o nível de alfabetização dos educandos no 3º ano do ensino fundamental; ii) Produzir indicadores sobre as condições de oferta de ensino;
74
iii) Concorrer para a melhoria da qualidade do ensino e redução das desigualdades, em consonância com as metas e políticas estabelecidas pelas diretrizes da educação nacional. (INEP, 2013, p. 7).
Elaborada com base em documentos oficiais gerados no âmbito do PNAIC, os
dados criados pela aplicação da ANA produzirão um índice de alfabetização em nível
nacional “[...] de modo a servir como “linha de base” para a implementação das
políticas previstas no Pacto.” (INEP, 2013, p. 14).
Ainda, os governos estaduais criaram seus próprios Sistemas Estaduais de
Avaliação. No Estado de São Paulo, a Resolução SE nº 27, Artigo 1º, de 29 de
março de 1996,
Fica instituído o Sistema de avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo, tendo como objetivos: I - desenvolver um sistema de avaliação de desempenho dos alunos dos ensinos Fundamental e Médio do Estado de São Paulo, que subsidie a Secretaria da Educação nas tomadas de decisão quanto à Política Educacional do Estado; II - verificar o desempenho dos alunos nas séries do Ensino fundamental e Médio bem como nos diferentes componentes curriculares, de modo a fornecer ao sistema de ensino, às equipes técnico-pedagógicas das Delegacias de Ensino e às Unidades Escolares informações que subsidiem: a) a capacitação dos recursos humanos do magistério; b) a reorientação da proposta pedagógica desses níveis de ensino, de modo a aprimorá-la; c) a viabilização da articulação dos resultados da avaliação com o planejamento escolar, a capacitação e o estabelecimento de metas para o projeto de cada escola, em especial a correção do fluxo escolar. (RESOLUÇÃO SE nº 27, 29 mar. 1996, Artigo 1º).
A implementação de avaliações externas em larga escala nas últimas
décadas produziu diversos indicadores que pretendem oferecer subsídios aos
sistemas públicos de ensino visando à melhoria na qualidade da educação. Tem sido
uma prática constante, nos planos e projetos educacionais em nível municipal,
estadual e nacional, a utilização de provas de avaliação e rendimento escolar. Com a
identificação pela interpretação dos índices das competências básicas adquiridas
dos alunos e das escolas de desempenho abaixo do previsto nos resultados dessas
provas, o sistema educacional pretende possibilitar a participação dessas escolas
75
em programas públicos voltados à melhoria do padrão de qualidade do desempenho,
ou seja, a retroalimentação do processo pedagógico e revisão da política escolar. Os
professores são incentivados a participar desse processo por refletir nos dados
dessas avaliações, identificar falhas no processo e assim rever as estratégias
utilizadas com a incorporação de práticas, a priorização de certas áreas do
conhecimento e o reforço nos conteúdos cobrados pela prova. Também serve como
um instrumento a mais no processo avaliativo da escola. Percebe-se que se torna
quase inevitável a interferência das Avaliações Nacionais no currículo escolar e esta
será ainda maior caso se identifique que a unidade escolar não atingiu os índices
previstos quanto às competências básicas.
3.4 A PROPOSTA CURRICULAR PARA O ENSINO FUNDAMENTAL DO ESTADO
DE SÃO PAULO
As Propostas Curriculares na década de 1980 foram elaboradas dentro de um
contexto de grandes mudanças políticas e econômicas no país. O princípio
democrático reivindicado em meio a grande mobilização popular permeou o texto da
Constituição Federal promulgada em 1988. Nela está destacado no que se refere ao
Capítulo III – Da Educação, art. 206, Inciso VI: o princípio da “[...] gestão democrática
do ensino público na forma da lei;” As mudanças ocorreram na forma de uma ampla
Reforma do Estado. Na área educacional, a descentralização administrativa, uso da
política de avaliações externas no cumprimento de metas em busca de melhoria da
eficiência e da qualidade, introduz um modelo de gestão educacional alinhado com
as mudanças adotadas também no setor econômico.
A Reforma do Ensino Público no Estado de São Paulo desencadeada a partir
de outubro de 1991 instituiu pelo Decreto n. 34.035, de 22 de outubro de 1991, o
Projeto Educacional Escola-Padrão. Com ênfase em criar condições para maior
autonomia na escola no campo administrativo e pedagógico o Estado apontava
mudanças na organização dos serviços públicos.
No mesmo período, as anunciadas mudanças na política educacional não são
tão evidentes quanto ao currículo no Ensino Fundamental. Desde a sua primeira
76
edição, em dezembro de 1985, a Proposta Curricular para o Ensino de Língua
Portuguesa – 1º grau, do Estado de São Paulo, foi reeditada em 1987, 1988, 1991 e
reimpressa em 1992, 1993 e 1998, com poucas alterações. O caderno “Criatividade
e Gramática”, criado a fim de possibilitar ao professor melhor aprofundamento e
compreensão da Proposta Curricular, teve sua primeira edição em 1987 e foi
reimpresso em 1988, 1991, 1996 e 1998. Tanto a Proposta Curricular como
“Criatividade e Gramática” que, desde sua primeira até a quinta edição, foram
reeditados por quatro diferentes mandatos de governadores no Estado de São Paulo
durante um período de mais de 12 anos. Na apresentação da edição de 1991, o
texto diz:
A 4ª edição da Proposta Curricular para o Ensino de Língua Portuguesa – 1º grau, seis anos depois da primeira formulação de seu texto (dezembro de 1985), traz algumas modificações necessárias. Essas modificações não alteram seus eixos centrais, mas visam a uma melhor compreensão dos seus conteúdos e objetivos, procurando delinear os parâmetros de avaliação do trabalho pedagógico. [...] No mais, a Proposta Curricular permanece fiel a seus fundamentos. Numa perspectiva construtivista-interacionista, as atividades de operação e reflexão sobre a linguagem são propostas como atividades ligadas aos interesses e necessidades dos alunos, em situações que devem sugerir, na medida do possível, usos efetivos da língua, na relevância da sua função social. (ESTADO, 1993, p. 11).
No mandato de Mário Covas (1995) como governador do Estado foram
sinalizadas mudanças por meio da criação de programas como o Programa Estadual
de Desestatização (PED). Instituído em 1996, o programa tinha como um dos
objetivos no Artigo 1º, II, “[...] a) a concentração de esforços e recursos nas
atividades em que a presença do Estado seja indispensável para a consecução das
prioridades de governo, especialmente nas áreas de educação, saúde e segurança
pública;” Porém, uma aparente contradição quanto à existência de mudanças reais
na área educacional aparece na apresentação da Proposta Curricular de 1998 (p. 5)
onde diz que, implantação de um novo modelo pedagógico, através do Projeto “A
Escola de Cara Nova”
77
[...] ao estabelecer um novo padrão de relações humanas, fez emergir uma dinâmica interna nos espaços de reflexão e discussão dos conteúdos curriculares, evidenciando a importância que os documentos e os materiais didático-pedagógicos disponíveis nos ambientes escolares representam no processo de construção da autonomia pedagógica. (ESTADO, 1998, p. 5).
Mas, logo a seguir, admite a reimpressão de um material editado há mais de
12 anos (desde 1985): Nesse sentido, acreditamos que a reimpressão do material
em questão possa se constituir em uma das vias de acesso à construção dessa
autonomia. (ESTADO, 1998, p. 5).
Na reforma educacional promulgada pela LDB, em 1996, o governo federal
tomou a incumbência de elaborar parâmetros curriculares nacionais para a
Educação Infantil, Ensinos Fundamental e Médio. Em 1999, a primeira edição dos
PCNs elaborados após a LDB, apresentou mudanças na educação básica e incluiu
alguns princípios gerais, como o da relevância da função social nos conteúdos, já
presentes nas Propostas Curriculares do Estado de São Paulo. Na Introdução dos
PCNs de Língua Portuguesa (2. ed.) o texto da uma visão do processo de
elaboração apontando mudanças ao mesmo tempo em que dá continuidade a alguns
elementos:
Nos últimos dez anos, a quase-totalidade das redes de educação pública desenvolveu, sob forma de reorientação curricular ou de projetos de formação de professores em serviço (em geral os dois), um grande esforço de revisão das práticas tradicionais de alfabetização inicial e de ensino de Língua Portuguesa. (...) Daí estes Parâmetros Curriculares Nacionais soarem como uma espécie de síntese do que foi possível aprender e avançar nesta década, em que a democratização das oportunidades educacionais começa a ser levada em consideração, em sua dimensão política, também no que diz respeito aos aspectos intra-escolares. (BRASIL, 2. ed. 2000, p. 19-20).
Além da utilização dos PCNs, as orientações curriculares no Estado nesse
período se deram, também na forma legal, através de Pareceres, Resoluções e
Comunicados. A bibliografia do concurso para professores da educação básica, Ciclo
78
I, no ano de 2005 indica, além dos PCNs nas publicações institucionais, o CEE n.º
08/2001 – Diretrizes Curriculares para o Ensino Fundamental no Sistema de Ensino
do Estado de São Paulo; Deliberação CEE n.º 05/00 e Indicação CEE nº 12/99 –
Fixa normas para a educação de alunos que apresentam necessidades educacionais
especiais na educação básica do sistema estadual de ensino, entre as referências
legais em nível estadual somando-se as federais. (DOE, 2005, p. 13).
3.5 AS “PROPOSTAS CURRICULARES” E AS “ORIENTAÇÕES CURRICULARES”
A recomendação das Orientações Curriculares é de que o professor considere
quanto à escolha de textos a serem utilizados na sala de aula valores culturais,
artísticos, especificidades regionais e locais conforme previstos na legislação já
citada. Na premissa de que a escola é o espaço onde a criança estabelece interação
em um processo social de troca e aquisição no desenvolvimento de atividades
linguísticas, os textos aos quais estes são expostos nessa interação constituem-se
em objetos centrais enquanto atividades dirigidas nas Orientações Curriculares. O
modelo de atividade restrita a aquisição de normas às quais se deva obedecer ou a
transferência de conteúdos que se deva assimilar há muito tem sido questionada por
estabelecer uma série de limitações e impeditivos.
A “Proposta Curricular” (SP-SEE - PROPOSTA CURRICULAR, 1988, p. 18)
anterior fala que a escola não poderá deixar de contrapor-se a todas as “[...] formas
de discriminação pela linguagem e ao uso da linguagem como instrumento de poder
e de máscara ideológica das contradições sociais [...]”, por levar o aluno,
[...] pouco a pouco, a exercitar-se na leitura, interpretação e mesmo produção de textos técnicos, sejam os de outras áreas de conhecimento, sejam os que se prestam aos serviços de natureza administrativa. Também nesse aspecto o trabalho da escola é no sentido de favorecer a independência dos escolarizados para que o relacionamento com os mediadores da administração e dos detentores das informações não seja passivo. (SP-SEE - PROPOSTA CURRICULAR, 1988, p. 18).
79
Não encontramos sugestões para tal “exercício na leitura” neste documento,
ficando o tema para discussão e escolha em cada escola pelo grupo de professores
e a equipe pedagógica local. (SP-SEE - PROPOSTA CURRICULAR, 1988, p. 23).
O esforço em aproximar as “classes menos favorecidas” do “[...] grupo
daqueles que participam, com voz, da sociedade [...]” se dá, conforme a Proposta
Curricular (1988), se a escola tiver por objetivos fundamentais “Levar a criança ao
domínio da norma padrão e culta, dar-lhe condições de responder às exigências
formais do texto escrito, faze-la ampliar os modos de representação do mundo.” (SP-
SEE - PROPOSTA CURRICULAR, 1988, p. 19). Mesmo ao tocar em temas como
“respeito à linguagem da criança” e ao “dialeto de sua comunidade”, “modalidade
coloquial”, “variedade linguística”, na escola, a criança “[...] deve adquirir o domínio
do dialeto padrão e praticar na modalidade culta e formal, não somente porque por
ela será socialmente avaliada mas porque por ela terá acesso à tradição cultural
escrita.” (SP-SEE - PROPOSTA CURRICULAR, 1988, p. 18). Seguindo nesta linha
de trabalho, a fim de proporcionar “um espaço de rica interação social” entre duas
classes, o foco do trabalho escolar se dá, segundo a Proposta Curricular (1988), por
aproximá-las do “dialeto padrão” e “modalidade culta e formal”, o que coloca em
vantagem a “classe mais favorecida” por pertencer ao grupo que a valoriza em
relação ao outro que utiliza variante linguística coloquial. Ao se referir a “linguagem
coloquial” e a “norma culta”, a criança levada a “perceber os valores sociais que são
atribuídos a umas e outras” mais facilmente poderá “compreender como elas
associam a diferentes atividades e a diferentes propósitos sociais” e assim, “[...]
dominar a modalidade padrão valorizada para certos propósitos e para certos tipos
de atividade linguística e produção de textos.” (SP-SEE - PROPOSTA
CURRICULAR, 1988, p. 19). Não encontramos alguma sugestão ou indicação
específica de utilização nesta Proposta Curricular (1988) de textos que atendam a
“norma padrão” e nem a referida “linguagem coloquial” com propósitos sociais como
pode ser encontrada, por exemplo, no Livro de Textos do Aluno nas canções,
quadrinhas ou em outros portadores de textos, distribuído atualmente na rede
estadual de ensino.
O caráter social da linguagem no processo dialógico dentro do contexto
escolar está presente na estrutura no documento Proposta Curricular (1988). Esse
caráter social da linguagem possui elementos de origem nas teorias críticas, com
80
traço no campo de pesquisa da sociologia do currículo, presentes no debate que
teve início por volta dos anos 70 do século XX e que se desdobraram em duas
correntes mais conhecidas: a Sociologia do Currículo e a Nova Sociologia do
Currículo (NSC). Bernstein, um dos representantes desta corrente sociológica do
currículo, se refere nos seus estudos ao conceito de um tipo de “código” ou conjunto
de regras que a pessoa aprende ou produz na interação social presente também
dentro do ambiente escolar. Silva ao comentar a questão do “código” de Bernstein,
sintetiza:
O código é precisamente a gramática da classe. O código é a gramática implícita e diferentemente adquirida pelas pessoas das diferentes classes – uma gramática que lhes permite distinguir entre os diferentes contextos, distinguir quais são os significados relevantes em cada contexto e como expressar publicamente esses significados nos contextos respectivos. (SILVA, 2011, p. 74).
Dos debates sobre as interações sociais dentro da escola nas teorias críticas,
na década de 1990 passa-se a se dar ênfase à relação entre currículo e a
construção de identidades nas teorias ditas pós-críticas e suas vertentes
estruturalistas e pós-estruturalistas. As teorias críticas transmitem o caráter de
construção social do currículo e as pós-críticas ampliam a compreensão por colocar
em análise as relações de poder envolvendo o Estado e toda a rede social, com
ênfase na linguagem e nos processos de significação.
Do exposto, as diferenças parecem ser evidentes nos objetivos educacionais
quanto ao uso da sua linguagem quando confrontados com as atuais Orientações
Curriculares discutidas no início. A seguir, estão destacados alguns pontos na
Proposta Curricular (1988) que serão levadas a reflexão quando comparadas as
atuais Orientações Curriculares:
- atividades com textos mais “complexos e elaborados” se dá “[...] por parte
dos alunos com maior experiência e informação” (a partir da 6ª série); (SP-SEE -
PROPOSTA CURRICULAR, 1988, p. 14).
- “[...] há cobranças muito mais fortes em relação à norma culta padrão;” (SP-
SEE - PROPOSTA CURRICULAR, 1988, p. 44).
81
- “[...] construção e transformação dos textos, mediante diferentes operações
gramaticais, nas primeiras séries” e “descrição gramatical mais sistemática para as
últimas séries;” (SP-SEE - PROPOSTA CURRICULAR, 1988, p. 43).
- “[...] o detalhamento dos conteúdos por séries será feito pelo grupo de
professores da escola porque, entre outra coisas, depende do conhecimento e da
realidade social e linguística dos alunos, suas necessidades e aspirações.” (SP-SEE
-PROPOSTA CURRICULAR, 1988, p. 23).
A Proposta Curricular (1988) considera o fato de a sistematização e a
representação dos conhecimentos devam partir de “uma intensa exposição prévia
aos dados oferecidos” nas “situações de linguagem e de vida” como decorrência de
operações sobre a linguagem “no acesso multiplicado a diferentes instrumentos
verbais da cultura contemporânea – o jornal, a revista, o livro, a literatura.” Nessa
Proposta Curricular inexiste indicações de textos para leitura, deixando a cargo do
professor a tarefa de escolha.
Depois de contextualizar política e economicamente o setor educacional no
período em que abrangeu e precedeu as reformas curriculares atuais no Capítulo 1,
de realizar uma breve discussão sobre o conceito de currículo no Capítulo 2 e de ter
apresentado, de forma geral, o debate sobre as propostas curriculares recentes no
Capítulo 3, o objetivo no Capítulo 4 é procurar verificar como os professores se
apropriam desse debate e dessas propostas. Algumas questões que orientam este
estudo podem ser sintetizadas da seguinte forma:
Estão os professores na sua prática escolar apercebidos dessas mudanças
nos objetivos dos currículos? E, em estando, quais e como tem incorporado essas
mudanças na sua prática escolar?
A partir da exposição de algumas das alterações ocorridas entre as propostas
curriculares, essa pesquisa procura avançar sua compreensão sobre o objeto de
pesquisa por meio de um conjunto de entrevistas com professores e tendo as
seguintes questões norteadoras:
• Como os professores vêm a oferta de livros, revistas e outros materiais
para leitura destinados aos alunos oferecidos na atual proposta? Tem contemplado
as atuais “Orientações curriculares” a multiculturalidade, proporcionando interação,
respeito e valorização à diversidade cultural presente nas escolas através desses
materiais de leitura oferecidos?
82
• Como os textos cobrados nas Avaliações Nacionais interferem na
prática pedagógica dos professores e no atual currículo, tido como referência oficial
aos projetos pedagógicos na unidade escolar?
• É possível encontrar espaço para flexibilidade na escolha de textos do
professor para contemplar a parte diversificada do currículo conforme previsto nos
documentos oficiais citados anteriormente?
• Acreditam os professores que as mudanças quanto ao uso de textos na
disciplina de língua portuguesa contribuíram para a melhoria na qualidade da
educação, conforme objetivado nas Orientações Curriculares atuais?
Para dar conta dessas questões realizamos um conjunto de entrevistas
semiestruturadas com professores das séries iniciais da Rede Estadual de Ensino. O
roteiro básico das entrevistas é o seguinte:
1) Formação do professor;
2) Itinerário de carreira;
3) Qual a sua compreensão sobre currículo?;
4) Que importância tem o currículo na sua prática?;
5) Quais mudanças estão identificadas pelo professor no currículo atual e
quais estão sendo incorporadas na prática?;
6) Como o professor vê as mudanças no currículo atual procurando identificar
tensões, conflitos, contradições, silêncios?;
7) Quais mudanças ainda, seriam necessárias que justificadamente deveriam
ser feitas a fim de contribuir para a melhoria da qualidade de ensino?;
8) Qual o balanço de resultados que o professor pessoalmente faz do tempo
transcorrido da implantação das mudanças até o presente?
83
CAPÍTULO 4
AS MUDANÇAS NAS ORIENTAÇÕES CURRICULARES NA PERSPECTIVA DOS PROFESSORES
Após apresentar de maneira geral no Capítulo 1 o contexto político e
econômico em que as reformas foram implantadas no setor educacional, ter
resgatado no Capítulo 2 diferentes concepções teórico-ideológicas curriculares e de
ter no Capítulo 3 contato com particularidades que caracterizam as orientações
curriculares oficiais divulgadas no Estado de São Paulo e uma provável aproximação
destas com determinadas concepções teórico-ideológicas, este capítulo tem como
foco a percepção, as marcas e as impressões nas declarações dos professores
entrevistados no exercício do cargo, quanto às mudanças nas concepções
curriculares materializadas por meio das reformas educacionais desse período. Por
fim, encontra-se nas páginas de Considerações finais uma releitura do tema tratado,
a partir de pontos destacados citados, tanto na produção de pesquisadores como na
fala dos professores entrevistados.
A escolha dos entrevistados esteve vinculada à formação de um grupo de
professores que tivessem um tempo de experiência profissional que lhes teria
permitido trabalhar com a anterior e a atual proposta curricular de Língua
Portuguesa, no Ciclo I, do Ensino Fundamental e que os alunos atendidos pelas
escolas nas quais eles exerceram o trabalho pedagógico, tivessem perfis sócio-
econômicos não muito diferenciados, portanto de regiões situadas próximas. Tendo
os professores esses pontos em comum, o que possibilita concentrar a análise dessa
pesquisa nas questões pedagógicas e educacionais principais, já levantadas nos
capítulos anteriores. Seguindo o roteiro básico das entrevistas, na primeira etapa
foram coletados dados sobre a formação acadêmica e profissional dos entrevistados.
Estão apresentados na Tabela os dados coletados para a caracterização dos 15
professores entrevistados. A seguir estão destacadas nos depoimentos dos
professores as questões que justificam o trabalho dessa pesquisa quanto às
reformas curriculares, seguidas de algumas considerações das hipóteses formuladas
no início e ao longo da investigação.
84
Tabela: Caracterização dos professores entrevistados
Fonte: a autora.
Professor (a)
Formação Acadêmica/
Ano de conclusão
Curso (s) de Especialização
Tempo no
serviço público
Regiões de atuação no
serviço público
P1
Magistério/1993 Pedagogia/2010
Letra e Vida/ Ler e Escrever/ Teia do Saber/
17 anos DE Centro e DE Norte 1
P2
Magistério/1989 Pedagogia/2002
21 anos DE Centro DE Norte 1
P3
Magistério/1987 Pedagogia/2007
Letra e Vida/ Ler e Escrever
26 anos DE Norte 1
P4
Magistério/1984 Pedagogia/1990
Letra e Vida/ Ler e Escrever
25 anos DE CarapicuíbaDE Norte 1
P5
Magistério/1985 Pedagogia/1989
Pós Graduação em Psicopedagogia-2000
24 anos DE Norte 1
P6
Magistério/1983 Pedagogia/1985
28 anos DE Francisco Morato DE Norte 1
P7
Magistério/1983 Pedagogia/2002
27 anos DE Norte 1
P8
Magistério/1989 Pedagogia/2002
20 anos DE Centro DE Norte 1
P9
Pedagogia/1980 Letra e Vida/ Ler e Escrever
27 anos DE Norte 1
P10 Magistério/1977 Pedagogia/1980
Letra e Vida 23 anos DE Norte 1
P11
Magistério/1974 PEC-2005
Letra e Vida/ Teia do Saber
28 anos DE Osasco DE Norte 1
P12
Magistério/1988 PEC/2002
Letra e Vida/ Ler e Escrever/ Administração e Gestão escolar
25 anos DE Osasco DE Norte 1
P13
Pedagogia/1988 Letra e Vida/ Ler e Escrever
23 anos DE Norte 1
P 14
Magistério/1987 Pedagogia/1990
Letra e Vida 22 anos DE Jandira DE Norte 1
P15
Magistério/2004 História (não concluído) Pedagogia (em curso)
9 anos DE Centro Oeste De Norte 1
85
4.1 AS MUDANÇAS NA FORMAÇÃO BÁSICA DOS PROFESSORES
Conforme pode ser observado na Tabela 1, dos 15 professores(as) que foram
entrevistados(as): um ingressou na carreira após concluir o curso de Magistério em
nível médio no final da década de 1970 (P10), dez (P2, P3, P4, P5, P6, P7, P8, P11,
P12, P14) na década de 1980, um na década de 1990 (P1) e um em 2004 (P15).
dois professores (P9, P13) tiveram como formação inicial somente o curso superior
de Pedagogia.
Dentro do processo de reforma educacional, as prescrições curriculares
costumam se referir a conteúdos e orientações pedagógicas, ou seja, a intervenção
estatal se dá pelo controle centrado nos “produtos” ou pode ser centrado no
“processo” através de regulação da prática pedagógica. O controle no processo,
quando intervêm na autonomia dos professores, é uma tarefa difícil e sua tentativa
certamente levará a possíveis dificuldades nas relações dentro da esfera
educacional com repercussões que acabam acrescentando, talvez, resultados pouco
eficazes à qualidade da educação. Sem desviar o foco, pois já existem
pesquisadores que se tem dedicado a discussão sobre o processo na forma de
investimento, no grau de formação e competência profissional para atender aos
objetivos de melhorar a qualidade de ensino, se torna pertinente abordar essa
questão como um componente da matriz das intervenções e regulações das políticas
curriculares.
Tomando como um marco na educação do país, a LDBN nº 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, estabeleceu diretrizes e bases para a educação nacional e se
tornou, a partir de então, nos sistemas de ensino em instâncias estaduais e
municipais, a norteadora das reformas educacionais que se mostraram necessárias
para atender às políticas educacionais então aprovadas. Posteriormente, diversos de
seus dispositivos foram regulamentados por meio de legislação específica em
caráter complementar. O Conselho Nacional de Educação (CNE) instituído por essa
Lei consignou entre as competências da Câmara de Educação Básica (CEB)
deliberar sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) e outras ações na busca
da “universalização da educação de qualidade” (Parecer CEB nº 01/99) para a
educação básica no país.
86
O Parecer CEB nº 1/99, aprovado em 29 jan.1999, descreve o panorama
nacional da educação por ocasião da implantação destas reformas:
O Brasil, em que pese ter assegurado o acesso de 95% das crianças e dos jovens, dos 7 aos 14 anos, ao ensino obrigatório, ainda convive com milhões de analfabetos, jovens e adultos. Além disso, suas escolas registram significativos índices de evasão e repetência. (PARECER CEB nº 01/99).
Com baixos índices de professores com nível superior atuando na Educação
Fundamental, a formação docente, como parte do processo da educação, não
poderia deixar de sofrer as influências no contexto das transformações políticas e
educativas em que estava imerso o país.
Assim, na LDBN nº 9.9394/96 - Título IX Das Disposições Transitórias, o Art.
87 diz: É instituída a Década da Educação, a iniciar-se um ano a partir da publicação desta Lei. [...] § 4º Até o fim da Década da Educação somente serão admitidos professores habilitados em nível superior ou formados por treinamento em serviço. (REVOGADO PELA LEI nº 12.796, de 2013).
A partir desse período, ampliaram-se as ofertas de cursos relativos à
formação dos professores para a educação básica como os programas de educação
continuada para atender as recomendações da Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental,
Parâmetros Curriculares Nacionais, Referencial Curricular Nacional para a Educação
Infantil e dispositivos editados pelos Conselhos Nacional e Estadual de Educação.
Dos 15 entrevistados, 13 professores (P1, P2, P3, P4, P5, P6, P7, P8, P10,
P11, P12, P14, P15) buscaram conformar-se, em cumprimento do que ficou
estabelecido legalmente pela formação em nível superior após a de nível médio e no
decorrer do exercício do cargo. Alguns dos professores entrevistados cursaram o
Programa de Educação Continuada (PEC), desenvolvido pela Universidade de São
Paulo (USP) em convênio com a Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
87
(PUC), a União dos Dirigentes Municipais de Ensino (UNDIME) e a Fundação para o
Desenvolvimento da Educação (FDE). Com duração prevista de 24 meses, o
programa atendeu cerca de 4.500 professores no Estado de São Paulo em
2003/2004 que ainda não possuíam formação superior específica para a educação
infantil e séries iniciais do Ensino Fundamental. A criação do programa teve como
fundamentação legal o Art. 80 da LDB: “[...] o Poder Público incentivará o
desenvolvimento e a veiculação de programas de ensino a distância, em todos os
níveis e modalidades de ensino, e de educação continuada.” e o Art. 81: “É permitida
a organização de programas ou instituições de ensino experimentais, desde que
obedecidas as disposições desta lei.” (BRASIL, 1996, p. 3729). A oferta dos
programas de formação continuada aos professores multiplicou-se pelos estados
brasileiros, desde meados da década de 1990. Bello (2008), em sua tese de
doutorado, localizou 30 programas especiais/cursos de formação de professores em
serviço oferecidos por instituições públicas de ensino, com exceção de apenas um
com parceria pública e privada (Projeto Veredas-MG), implantados a partir de 1999
até 2006, dos quais 26 estavam ativos em 2007 e 4 extintos ou em processo de
extinção. Oferecidos nas modalidades: presenciais em regime especial ou regular
(14); telepresenciais (2); a distância (9); semi-presenciais (3) e presenciais com
apoio de mídias (2), Bello conclui que
Entre os objetivos dos projetos, destacam-se: atendimento ao disposto pela LDB/96, promoção da valorização da prática docente com base no processo de ação-reflexão-ação, formação do intelectual crítico, com visão interdisciplinar, titulação de professores e incorporação de competências relativas ao ser e fazer docentes. (BELLO, 2008, p. 72-73).
Alves, em sua tese de doutorado, verificou que o aumento do percentual de
professores com ensino superior tem um impacto positivo e significativo no
desempenho médio das redes de ensino das capitais brasileiras na 4ª série do
Ensino Fundamental. (ALVES, 2007).
Os programas de formação continuada de professores fazem parte da reforma
educacional. Contudo, como ressaltam Cardelli e Duhalde (2007),
88
[...] as propostas de reforma neoliberal ignoram questões básicas relacionadas ao salário e condições de trabalho dos docentes. As reformas educativas, segundo os autores, têm sido apresentadas como pacotes que podem ser aplicados em quaisquer países em desenvolvimento na América Latina, as quais visam, sobretudo, cumprir imposições dos organismos internacionais de financiamento. (CARDELLI; DUHALDE, 2007 apud BELLO, 2008, p. 96).
4.2 AS MUDANÇAS NAS ORIENTAÇÕES CURRICULARES
Nas reformas educativas é recorrente a utilização de programas e projetos
como meio para introduzir mudanças. Nesta pesquisa, destacam-se os anos que se
seguiram a 1995 com grande número de programas e projetos10 do Governo, em
todos os níveis de ensino e, principalmente, na educação básica. Os programas com
propostas de mudanças também no currículo escolar tem característica de atuação
como um mecanismo organizatório formal para atender as exigências de qualificação
das demandas sociais, políticas e econômicas.
Os PCNs, dentro da proposta de Reforma do Estado, a partir da CF de 1988
foram elaborados em decorrência da “[...] necessidade de reestruturação do ensino
de Língua Portuguesa [...]” apontada pelas “[...] evidências de fracasso escolar [...]”
(PCNs, 2000, p.19). Com o objetivo de auxiliar na execução do trabalho docente ‒
segundo o Ministro da Educação Paulo Renato de Souza ‒ “[...] muitos participaram
[...]” na elaboração destes, certos “[...] de poder contribuir para a melhoria da
qualidade do Ensino Fundamental”. (PCNs, 2000, p.5). Para dar subsídio à
elaboração dos PCNs, num trabalho coordenado por Barreto em 1995,
pesquisadores fizeram uma análise das propostas curriculares estaduais e algumas
municipais em todo o país nos dez anos anteriores. Na produção final do trabalho, a
autora relata ter constatado que a reedição de propostas é uma prática recorrente no
período analisado.
10 Campanha Acorda Brasil! Está na hora da Escola! (1997) objetivo: mobilizar a sociedade em torno dos
objetivos da política educacional; Campanha Toda Criança na Escola (1998) visando estimular a matrícula; Programa de aceleração de aprendizagem (1996) para alunos com alta defasagem idade-série. (AGUIAR, 2002, p. 72-89); Programa São faz escola (2007) foco na implantação de um currículo único para todas as escolas da rede pública estadual.
89
Como nas propostas examinadas nem sempre consta o número da edição, as datas de publicação recentes não são suficientes para indicar que elas foram elaboradas há pouco tempo, podendo ter sido objeto de várias reedições que por vezes são adotadas em diferentes administrações. Nesse sentido apurou-se que a maioria das propostas analisadas foi originalmente elaborada na década de 80, via de regra a partir da segunda metade. Quando reeditadas é usual que sofram alterações, ainda que geralmente não sejam de maior monta. (BARRETO, 1995, p. 1).
A prática de reedição com algumas alterações das propostas curriculares no
Estado de São Paulo continuou até o final da década de 1990. Desde o início da
circulação da primeira edição dos PCNs, em 1999, até 2006 não se encontram
outras mudanças relevantes quanto as questões curriculares. O que predominou na
política educacional desse período foi a adoção de uma nova forma de gestão na
administração pública. O Programa Estadual de Desestatização (PDE, 1995), a
instituição do Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo
(SARESP, 1996), aceleração de alunos com defasagem ano/série11 (1996),
programa de reorganização da rede estadual dividindo escolas as que atendiam da
1ª série do Ensino Fundamental ao último ano do médio (1996), municipalização do
ensino12 (1996), regime de progressão continuada13 (1997), pagamento de bônus
aos professores14 (2001), implantação do Ensino Fundamental de nove anos com
ingresso da criança de seis anos (2010)15, são algumas das ações de natureza
gerenciais‒administrativas que marcaram a política de reforma educacional durante
esse período.
As orientações curriculares após a reformulação com base nos PCNs
apresentam um caráter prescritivo ao assumir competências que vinham sendo
exercidas no âmbito dos governos estaduais. Os materiais pedagógicos e as
orientações curriculares produzidas pelo Estado e direcionadas aos professores para
dar subsídio à prática de alfabetização das séries iniciais também são responsáveis
pela difusão dos modelos pedagógicos e veiculam teorias educacionais, valores,
ideologias e conhecimentos de natureza institucional. Percebe-se na fala dos
11 Resolução SE n. 77, de 3 de julho de 1996. 12 Decreto n. 41.055, de 29 de julho de 1996. 13 Deliberação CEE n. 9/97, homologada pela Resolução SE de 04.08.97 14 Decreto n. 46.167, de 9 de outubro de 2001. 15 Lei n. 11.274, de 6 de fevereiro de 2006.
90
professores entrevistados que esses materiais foram recebidos como dispositivos de
intervenção e imposição sobre a prática docente e que vieram limitar as iniciativas
destes. A resistência às mudanças na prática ficou manifesta com as adaptações
pessoais introduzidas pelos professores. Quando perguntados sobre o que é
currículo e quando é utilizado, alguns responderam:
Currículo é um caminho a seguir, uma direção, o currículo é uma direção que eu tenho que seguir, então isso vem lá de cima, pelos nossos superiores e eu tenho que seguir aquilo só que eu não sigo esse currículo congelado, eu coloco várias coisas em cima e eu acredito no que foi, o que era o aprendizado no passado, ele não é pra ser jogado fora porque ele deu muito resultado (bom), então eu mesclo, e eu faço o currículo que é hoje o Ler e Escrever, o Emai, que ao meu ver, ele tá vindo junto com o livro didático. O meu (o adotado pela escola) livro didático tem exatamente o que tem no Emai e o que tem no Ler e Escrever, é o mesmo currículo, então eu não descarto o meu livro didático e junto eu tenho os paradidáticos. (P1). Percebo que antigamente você podia trabalhar moldando, mesclando (outros conteúdos) e agora com essa nova proposta você tem que trabalhar dentro da nova proposta. Muitas vezes você não pode tá mesclando (outros conteúdos). (P4). O currículo eu uso sempre durante o ano, apesar da indisciplina eu consigo seguir direitinho o que me é proposto, mas eu não fico só no currículo, eu vou além (do currículo). Eu sigo (o currículo) porque a gente tem que dar conta daquelas disciplinas. Eu vou em busca de outras atividades pra se adequar (as necessidades do aluno). (P6) Nós usamos sempre, mas de uma maneira parcial, acho que não existe aquela maneira integral, a interação (com o currículo), é muito parcial. Porque no currículo tudo é muito bonitinho, na teoria, só que na sala a realidade é outra, então eu acho que os professores usam muito parcialmente. Em outros momentos eu trabalho no individual, cada caso é um caso, cada aluno tem suas dificuldades, é muito heterogêneo (o aprendizado dos alunos). (P10). Temos um Plano na escola e eu procuro seguir, apesar de tanto tempo (no serviço público). Apesar de que eu mesclo muito, eu trabalho Ler e Escrever e eu tento incluir tudo o que eu aprendi, o currículo que eu aprendi. Tudo o que eu estou passando (ensinando), a minha experiência, mais todos esses cursos que eu fiz. (P11). [...] o nosso planejamento (da escola) é flexível, apesar do currículo ter a grade curricular pronta, que o professor tem que seguir. Além dele ainda tem muitas outras coisas boas: os PCNs, os projetos. O Ler e Escrever é um projeto que muitos não gostam, mas eu acho
91
que tem muita coisa boa. Então, eu adapto às necessidades e competências e habilidades dos alunos. Tem aluno que é bom em matemática mas não é bom em português e ali (o Ler e Escrever) dá ênfase (ajuda) à todos (quanto as dificuldades) os alunos. (P12). Quando não estou utilizando o currículo eu dou uma mesclada, a gente não fica nem só no tradicional nem só no construtivismo, a gente mescla de acordo com a necessidade (do aluno). (P13). É aquilo que eu tenho que desenvolver, é o que eu tenho que seguir, é o norte pra gente poder trabalhar, planejar em cima do currículo que o Estado exige e que é o mínimo. (P14).
Qualquer intervenção pode parecer negativa e cerceadora da autonomia dos
docentes. Mas com um olhar diferente é possível analisar a intervenção estatal ou a
regulação no currículo conforme a importância política do controle e a função do grau
de autonomia atribuída aos professores. O currículo é objeto da própria estrutura do
sistema educativo e a intervenção e regulação estatal uma consequência das
instâncias políticas, administrativas e econômicas. O uso de mecanismos de controle
no próprio sistema educacional se torna um instrumento técnico comumente utilizado
no cumprimento de sua função. O que pode indicar um aspecto revelador da questão
quando professores resistem às mudanças na política curricular é refletir no
pensamento de Sacristán:
Em qualquer sociedade complexa é inimaginável a ausência de regulações ordenadoras do currículo. Podemos encontrar graus e modalidades diferentes de intervenção, segundo épocas e modelos políticos, que tem diferentes consequências sobre o funcionamento de todo o sistema. (SACRISTÁN, 1998, p. 108).
O que gera descontentamento, por parte dos professores, pode ser o grau e a
modalidade de intervenção a partir das mudanças no sistema político que afetam,
não só o sistema educacional, como todos os setores da sociedade.
O que em princípio se supõe parecer uma atitude de simples negação às
mudanças e reformas educacionais pelos professores, pode ser usado como uma
importante contribuição para futuros debates em relação às expectativas
educacionais daqueles que utilizam o sistema.
92
Para realizar o controle sobre a qualidade do sistema educativo, a intervenção
estatal na forma de prescrição e regulação nos currículos de conteúdos e códigos
pedagógicos, tem utilizado a avaliação de rendimentos em larga escala. O uso da
avaliação como instrumento é uma estratégia empresarial adotada também pelo
sistema educacional para aferir qualidade e buscar comparativos através dos
indicadores referenciais. A reforma educacional adota modelos de avaliação
condizente com o ideário de racionalidade de organismos de financiamento
internacionais, conforme já discutidos anteriormente aqui. Como destaca Dias,
referindo-se a influência de fontes externas na avaliação:
Todas as ajudas do Banco a países em desenvolvimento e pobres são necessariamente associadas a avaliações ex-ante, intermediárias e ex-post. Por isso o Banco também está criando as competências locais em avaliação segundo seus critérios e necessidades. Portanto, ademais de uma função econômica de operações de empréstimo, o Banco cumpre também um forte papel ideológico. Evidentemente, a pedagogia da avaliação que estende aos países que se beneficiam de seus empréstimos tem as características do controle e da racionalidade econômica. (DIAS, 2002, p. 34-35).
Conforme já detalhado no Capítulo 3, a primeira iniciativa, em âmbito nacional
de avaliação do Ensino Fundamental, se deu no final da década de 1980 e início de
1990 com o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB). A partir de
2005, a Prova Brasil foi implementada a fim de aumentar as informações do ensino
oferecido e retratar as especificidades dos municípios e das escolas. Em 2013, ANA,
proposta de iniciativa do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais
Anísio Teixeira (INEP), começou ser aplicada com objetivo de avaliar o nível de
alfabetização dos estudantes no 3º ano do Ensino Fundamental, a fase final do
primeiro Ciclo de Alfabetização, no contexto previsto no Pacto Nacional pela
Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), instituído pela Portaria nº 867 de 4 de julho
de 2012. Paralelamente, Estados e municípios criaram e implantaram seus próprios
sistemas de avaliação. O Estado de São Paulo instituiu o Sistema de Avaliação do
Rendimento Escolar no Estado de São Paulo (SARESP) e o tem aplicado desde
1996 para avaliar o rendimento dos alunos.
93
Os resultados das avaliações externas à escola, quando utilizadas como
critério de acompanhamento no cumprimento de metas estabelecidas pelo sistema
educacional, adquirem grande importância na política educacional. Os resultados
também são utilizados na política de incentivos para remunerar os profissionais nas
escolas que atingirem índices de desempenho considerados suficientes.
O Bônus Mérito foi instituído no Governo de Mario Covas (1999-2001), pela Lei Complementar nº 891/00, e mantido durante as gestões de Geraldo Alckmin (2001-2002 e 2003-2006). (...) na gestão de José Serra, a Secretaria de Estado da Educação, instituiu novo Bônus Mérito, cujo cálculo baseia-se no Índice de Desenvolvimento da Educação do Estado de São Paulo (IDESP), o qual tem como um de seus critérios o desempenho dos alunos nas provas de língua portuguesa e matemática do SARESP. Essa vinculação fortalece a relação entre pagamento do bônus e a avaliação em larga escala. (BONAMINO, 2012, p. 381).
Nos planos elaborados pela política educacional fica evidente na descrição
das metas à associação da melhoria da qualidade do ensino com o resultado das
avaliações e este com a política de incentivo por bonificação aos professores. Nas
respostas dos professores entrevistados está presente essa associação como forma
de intervenção, cobrança ou exigência no currículo e na prática pedagógica.
Antigamente se trabalhava vários textos mas não tinha essa cobrança como hoje de dar vários tipos textos, o professor (é) que escolhia o texto, não vinha nada imposto. (P6). Antes as orientações eram apenas pelos sumários ou índices dos livros didáticos que eram sugeridos com respostas pré estabelecidas. Hoje as concepções atuais do currículo são expressas tanto na LDB quanto nos PCNs, a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade. (P7).
Quando perguntado sobre se consegue perceber mudança no currículo do
anterior para o atual, um dos professores respondeu:
O que houve é uma maior exigência de como o professor deve trabalhar o currículo. (P14).
94
Outro professor, quando perguntado sobre quais mudanças constatadas por
ele foram incorporadas na prática, respondeu por ele e pelos colegas com os quais
tem trabalhado:
Se o professor faz o que fala..., a maioria, pois estas são cobradas. (P7).
A fala dos professores entrevistados nesta pesquisa está alinhada com o
artigo publicado em 2011, pela jornalista Ana Aranha para a revista ADUSP, onde
relata as tensões e conflitos na gestão da rede pública estadual nos próximos 17
anos, a partir do governo de Mário Covas (1995-2002). No Governo de José Serra
(2007-2010), ela destaca, no artigo, a centralização dos materiais didáticos das
escolas com foco nos resultados do Saresp.
A Secretaria de Educação passou a produzir os textos e exercícios a serem trabalhados em aula, quando, antes, os professores escolhiam os livros didáticos de suas turmas. O conteúdo fixado para cada série tinha como base o que seria cobrado pelo Saresp. A política foi implementada por Maria Helena Guimarães de Castro, que assumiu a pasta em setembro de 2007 e lançou o material no início do ano letivo de 2008. (ARANHA, 2011, p. 106).
Quanto ao material utilizado por alunos e professores, a maioria dos
entrevistados reconhece de maneira positiva a qualidade, ressaltando que
atualmente as escolas recebem mais do que anteriormente e que, na maioria das
vezes, os poucos livros utilizados nas aulas tinham os conteúdos escolhidos apenas
pelo professor. A Diretoria de Ensino envia bastante material e ajuda muito e antes não tinha. A criança não tinha nem um livro consumível. A gente (o professor) pegava um livro e seguia o conteúdo e o aluno usava mais o caderno. (P 6). Antigamente a gente não tinha nada. Hoje os livros são muito bons. Eu recebi e tô lendo pros alunos em capítulos “Alice no país das maravilhas”, é um (livro) clássico. A qualidade dos livros são muito bons. Os gibis são maravilhosos e eles (os alunos) adoram. Até os que não sabem ler, folheiam e acabam interagindo (inferindo a leitura). (P 14).
95
Outro professor, apesar de reconhecer a qualidade dos livros, no entanto,
acha que, dentre os enviados para os alunos pela Diretoria de Ensino no acervo de
livros para leitura do Programa Ler e Escrever, nem todos são apropriados para o
ano/série e questiona o critério de escolha:
Eu acho que o material do Ler e Escrever para os 1º anos é bom. Aqueles livros que vem no acervo são bons pro professor ler para os alunos. Tem escola que fala que aqueles livros são do professor, não gostam que os alunos peguem. Mas eles (os alunos) também tem que manusear os livros, então eu passo de mesa em mesa para verificar (se estão lendo). Tô deixando (o aluno) pegar mesmo o livro. Mas tem uns livros no acervo que são muito chatos pra eles lerem. Tem um livro que fica comparando com outra coisa que para eles (os alunos) são muito... difíceis pra eles. Dá caixa, uns 5 ou 6 livros são bons para os alunos (...). Eu acho que quem elaborou (escolheu os livros) dessa caixa nunca entrou numa sala de aula. Eu só utilizo alguns daquela caixa (acervo), (o restante) não dá pra trabalhar com aquela faixa etária. (P 13).
4.3 MUDANÇAS CURRICULARES NA DISCIPLINA DE LÍNGUA PORTUGUESA
Nas orientações curriculares anteriores à publicação dos PCNs, a ênfase da
disciplina de Língua Portuguesa estava no ensino das regras de uso da gramática
normativa. Nas décadas de 1980 e 1990, o desenvolvimento de pesquisas e
trabalhos acadêmicos na área linguística, com crítica ao uso da gramática normativa,
começou a apontar para a necessidade de renovação no ensino. Os PCNs,
elaborados com a participação de muitos autores desses trabalhos, incorporaram
essa nova tendência. Sobre o uso do ensino de regras e a diversidade de textos, os
PCNs justificam assim a necessidade de mudanças:
A importância e o valor dos usos da linguagem são determinados historicamente segundo as demandas sociais de cada momento. Atualmente exigem-se níveis de leitura e de escrita diferentes e muito superiores aos que satisfizeram as demandas sociais até bem pouco tempo atrás – e tudo indica que essa exigência tende a ser crescente. Para a escola, como espaço institucional de acesso ao conhecimento, a necessidade de atender a essa demanda, implica uma revisão substantiva das práticas de ensino que tratam a língua como algo sem vida e os textos como conjunto de regras a serem
96
aprendidas, bem como a constituição de práticas que possibilitem ao aluno aprender linguagem a partir da diversidade de textos que circulam socialmente. (BRASIL, 2000, p. 30).
No bloco de conteúdos e tratamento didático dos PCNs de Língua
Portuguesa, a leitura na escola é encarada como fundamentalmente “um objeto de
ensino” e para que se torne também um objeto de aprendizagem recomenda o
trabalho com a diversidade de textos. “Se o objetivo é formar cidadãos capazes de
compreender os diferentes textos com os quais defrontam” os PCNs recomendam
“oferecer-lhes os textos do mundo”. “Eis a primeira e talvez a mais importante
estratégia didática para a prática de leitura: o trabalho com a diversidade textual.” (BRASIL, 2000, p. 54-55).
A preocupação em oferecer aos alunos diferentes textos nos PCNs refletiu
nos livros didáticos utilizados nas escolas. A adequação nos livros aos PCNs pelas
editoras não se deu de forma voluntária. Embora os livros didáticos fossem utilizados
no Brasil desde o início do século XX, foi com a criação do Programa Nacional do
Livro Didático (PNLD), em 1997, que o Estado começou exercer maior controle da
qualidade no material distribuído. Com a ampliação do mercado editorial, o processo
de escolha e distribuição dos materiais didáticos, baseados em critérios e princípios
das políticas públicas vigentes, tornou imprescindível o ajuste no compasso entre as
editoras e os programas governamentais para controle da qualidade. Esses critérios
de avaliação não tiveram como incumbência a preocupação apenas quanto a
qualidade técnica, mas também com a incorporação das bases didático-pedagógicas
nos materiais condizentes com o sistema educacional vigente.
Desde 2007, as Orientações Curriculares tem, por meio do “Programa Ler e
Escrever” para as séries iniciais do Ensino Fundamental, implantado no Estado de
São Paulo, elaborado e enviado às escolas acervos literários, publicações, livros e
outros materiais didáticos para professores e alunos compatíveis com os objetivos
declarados nos PCNs. Um desses objetivos nos PCNs para o Ensino Fundamental é
o de que os alunos sejam capazes de:
Compreender a cidadania como participação social e política, assim como exercício de direitos e deveres políticos, civis e sociais,
97
adotando, no dia-a-dia, atitudes de solidariedade, cooperação e repúdio às injustiças, respeitando o outro e exigindo para si o mesmo respeito; (BRASIL, 2000, p. 7).
Na apresentação das Orientações Curriculares, a participação social também
é destaque na educação fundamental, conforme declarado pela Secretária da
Educação do Estado de São Paulo, em 2008, Maria Helena Guimarães de Castro:
Priorizamos a formação de leitores e escritores, pois saber ler e escrever não só é condição indispensável para que os estudantes adquiram os conhecimentos de todas as áreas, mas também – e principalmente – para terem acesso à cultura letrada e à plena participação social. (SP-SEE, 2008, p. 4).
Nas Orientações Curriculares (2008), o incentivo à utilização da variedade
textual aos alunos para que se tornem capazes de “[...] ler diferentes textos,
adequando a modalidade de leitura a diferentes propósitos e às características dos
diversos gêneros [...]” (SP-SEE, 2008, p. 9) é acatada e permeia todo o material
direcionado aos alunos e professores do Ler e Escrever. Uma das muitas citações
pode ser encontrada na orientação dada ao professor quanto às expectativas
relacionadas às práticas de leitura: “Planejar momentos de leitura envolvendo textos
de diferentes gêneros para que os alunos ouçam e comecem a perceber algumas
características desses gêneros.” (SP-SEE, 2010, p. 82).
Os professores entrevistados expressaram nas entrevistas estarem
apercebidos dessa mudança na proposta curricular nos últimos anos. Quando
perguntados sobre a variedade de gêneros textuais oferecidos aos alunos na
anterior e na atual proposta curricular, deram as seguintes respostas:
Ele não era tão ... como se fala tão ... como eu falo assim ... uma coisa tão evidente ... ele não tinha essa ênfase que tem hoje. Hoje a gente trabalha muito os gêneros, fala muito dos gêneros, é pra criança adquirir mesmo esse aprendizado. Antes ele (gênero textual) tinha, mas não era tão cobrado, era dentro do livro didático, mas essa contextualização, esses gêneros não eram tão cobrados, a gente trabalhava muito mesmo era a parte da alfabetização em si.
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Hoje, a gente não pode nem falar na família silábica. Mas a nossa fala é fonada, é silábica, e quando eu vou ensinar meu alunos, eu faço esse trabalho ainda. Eles tem que entender que a palavra tem partes, que essas partes são chamadas de sílabas e, quando vou formar palavra, eu tenho que ter claro na minha cabeça a sílaba. Hoje eu percebo que os alunos levam muito tempo pra adquirir esse aprendizado e eles ficam amarrados, muito amarrados no som das vogais. Como o trabalho agora é mais contextualizado eu vejo que tem criança que não aprende no contexto, ela precisa desse apoio, dela entender que o som da fala é fonado, que é silabada, pra ela construir a palavra, no meu ver. (P1). Existe mais a diversidade de gêneros agora. Tudo foi feito pensando na criança se envolver mais com a leitura e escrita, pra melhorar a linguagem, pra ter mais gosto, porque as crianças não liam, não tinham o hábito de leitura. No currículo antigo a professora chegava na sala e dava página X do livro, texto tal e interpretação e agora não, tem a leitura... O professor tem que ter gosto pela leitura pra poder repassar isso pras crianças, pra elas verem que o professor gosta de ler. Você pode ler uma história e eles (as crianças) podem falar sobre aquela história, todos acabam falando ao mesmo tempo mas no finalzinho de um período de três meses, suponhamos, elas (as crianças) já sabem interpretar oralmente, (falando das crianças de 1º ano) e isso no início do 1º semestre. Há um tempo atrás, no currículo antigo, não (era assim). Era fechado num pequeno texto da cartilha, de um livro de literatura que a professora pediu pra ler só aquele trechinho, então eles eram muito limitados. Hoje já não (é assim), não são limitados tanto no falar, no pensar, no agir e no interpretar o texto oralmente. As crianças de 1º ano hoje, nós já estamos no finalzinho de setembro, os meus alunos já estão produzindo pequenos textos. Mesmo não sendo ortográficos, mas eles sabem o que é texto. Essa é a diferença do currículo antigo pro atual. (P9). Acho que ajuda muito. Antes era muito restrito. Antes era (muito trabalhado) descrição, muita descrição: a professora colocava um quadrinho, uma figura na lousa ou no painel e o aluno descrevia o que estava vendo, então tudo era muito limitado. Depois, eu trabalhei com o aluno bem a vontade, com o vocabulário livre pra ele se expressar. Agora esses materiais como os gibis... ajudam muito, principalmente aqueles não-alfabéticos. Eles fazem a leitura visual e isso ajuda muito, é muito rico pra (aumentar) o vocabulário deles, independente se eles sabem ler ou não. (P10). Eu acho que ajuda. Antigamente, tinham os textos dos livros. Os professores faziam as perguntas (de interpretação) em cima daquele livro e era aquilo (o que se ensinava), era a interpretação do texto. Aí com o tempo começou a mudar um pouco. Além disso, se fazia a gramática contextualizada do texto, era mais contextualizado. Do texto se tirava a gramática: as monossílabas, as dissílabas... era a gramática de acordo com aquele texto. E o que mudou também é que hoje não se fica só com português. O professor pega um determinado texto e se trabalha português, matemática geografia,
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história e até arte, a interdisciplinaridade. Eu gosto da diversidade de gêneros porque (quando) eles mexem com bolo, então eles tem que saber que aquilo é uma receita. Eles ajudam muito as mães em casa. Tem mãe que não sabe ler e eles leem para a mãe o que tem que fazer. Isso tá instruindo. A mesma coisa é pra (leitura da) bula do remédio. Os contos de fadas também eles gostam muito e eu também. (P12).
A seguir estão destacados alguns trechos das respostas dos entrevistados
onde o trabalho com a diversidade de gêneros textuais foi citado de maneira positiva
quanto:
• a qualidade do ensino: melhorou pela grande variedade de títulos
disponibilizados.
[...] tem bastante material. [...] eu acho que o material é bom. (P5). Acaba melhorando porque o professor pode mostrar que não é só na escola que ele pode ver determinados tipos de textos e com certeza ele acaba aprendendo mais. (P14).
• ao aprendizado dos alunos: também melhorou pois demonstram mais
interesse em aprender.
Acho que quanto mais (gêneros) você (o professor) trabalha você (o professor) consegue resultados melhores. (P5). Acho que melhorou o aprendizado. (P6). Melhorou o aproveitamento do aluno. (P9).
• os alunos podem descobrir e/ou escolher os de sua preferência na grande
variedade os textos.
Os contos de fadas eles (os alunos) gostam muito. (P12).
• a ter contato com gêneros desconhecidos e consequentemente todos leem
mais. Eu gosto da diversidade de gêneros porque eles (os alunos) mexem com o bolo então eles têm que saber que aquilo é uma receita. (...) A mesma coisa é pra bula do remédio, contos de fada (...) (P12).
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Mesmo os pequenininhos (1º ano) vão tendo aquela noção. (P13).
Os pontos negativos citados pelos professores são quanto:
• a cobrança pelo trabalho com gêneros nas avaliações externas que na visão
deles cerceia o direito tanto dos alunos como dos professores fazerem suas
próprias escolhas no tempo considerado por eles apropriado.
Não era tão cobrado (trabalho com textos). (P1) O que eu sinto mais falta é de (textos de) literatura infantil com linguagem adequada para as crianças. Tem bastante material, mas é uma leitura de entendimento muito difícil pra eles (alunos do 1ºano). (P9). Tem determinadas coisas (textos) que nós (professores) somos obrigados a dar porque está lá (no currículo). (P14). Antigamente se trabalhava vários textos, mas não tinha essa cobrança como hoje de dar vários tipos de textos. O professor que escolhia o texto. Não vinha nada imposto. (P6).
• o pouco tempo destinado a cada gênero ou o grande número de gêneros
trabalhados em pouco tempo acaba causando um pouco de confusão nos
alunos pela repentina mudança de gêneros.
Eu acho que é muita coisa ao mesmo tempo. Tem muita informação. [...] Quando ela (criança) tá começando a entender o que é um conto eu já estou entrando (trabalhando) com fábulas. [...] Ela (criança) não tem tempo para armazenar e guardar isso no cérebro. [...] É como se estivessem atirando 10 bolinhas ao mesmo tempo para as crianças pegarem. Elas vão (conseguir) pegar uma ou duas. (P1).
A palavra “qualidade” é muito utilizada em todo o sistema educacional. De
acordo com esta pesquisa, o uso da palavra “qualidade” está presente na legislação,
nos materiais didáticos e pedagógicos que circulam nas escolas e na fala dos
professores entrevistados, seja de maneira declarada ou subentendida. Não se pode
afirmar com exatidão se todos atribuem o mesmo significado ou representação a
esta palavra. Não convém a consulta ao dicionário em busca de uma definição
precisa, embora isto seja possível, pois na área pedagógica existem especificidades
e particularidades que não permitem a generalização das definições.
101
Quando se lê, em documentos oficiais, a palavra “qualidade” associada a
“educação”, muitas vezes, conforme foi citado nesta pesquisa, ela parece ser relativa
a indicadores governamentais criados para este fim. Para os professores, a
associação de “qualidade” a “educação” evoca outras possibilidades de
interpretação, embora estes mesmos não desconheçam os indicadores oficiais de
qualidade. No exercício da profissão, os professores entrevistados demonstraram
desenvolver uma forma de representação de seus próprios indicadores ou padrões
de qualidade. Ou, até mesmo, parece não quererem se desapegar de padrões de
indicadores incorporados como seus próprios e que já não são mais utilizados pelos
órgãos oficiais. O descompasso entre as políticas educacionais e os professores
com relação a representação da “qualidade” no setor educacional apareceu
indiretamente na fala dos entrevistados, na forma de uma provável relutância, para a
efetiva implantação das reformas nas escolas. Embora nos documentos oficiais
consta que as equipes que participaram na elaboração da legislação e de todos os
materiais produzidos e distribuídos tiveram a colaboração, assessoria e consultoria
de pessoas com estreita ligação com o ensino público, nas entrevistas os
professores demonstraram que não se identificaram plenamente com as propostas
educacionais. O sentimento de que os professores têm muito a falar e a sugerir por
estarem em contato direto e diário com as dificuldades de aprendizagem dos alunos
mas não têm oportunidades de serem ouvidos ou não se sentem representados
pelas equipes que elaboram a legislação e os materiais que são utilizados por eles,
apareceu espontaneamente em diversos momentos nas entrevistas. A falta de
representação dos professores nas discussões que produziram os materiais
distribuídos é percebida indiretamente, talvez se dê através da demonstração de
pouca aceitação a certos materiais ou propostas, e de modo declarado quando
dizem “[...] acho que deveria se ouvir mais os professores [...]” (P14) ou “[...] o
professor tem muito o que oferecer e fica muito podado [...]” (P10).
Esta percepção talvez encaminhe outras possibilidades de encarar as
dificuldades pedagógicas tanto de alunos como de professores. Medidas aplicadas
nesse momento educacional, mesmo as que antes já foram utilizadas mas
descartadas por não corresponderem aos interesses esperados, combinadas com os
elementos do momento atual podem resultar em estratégias com resultados
102
satisfatórios ainda não alcançados, se não for possível a todos, ao maior número dos
que compõem a estrutura educacional.
As diferenças nas relações sociais são aceitáveis e até mesmo desejáveis
desde que seja comum a todos o direito de liberdade e de livre escolha e, quando se
são respeitados os padrões morais e éticos consensualmente aceitáveis na
sociedade. Não é possível imaginar a existência de relações sociais sem as
diferenças individuais. Como as diferentes engrenagens de um relógio trabalhando
em seu próprio tempo e função com o propósito de mostrar as horas, as diferenças
promovem as relações sociais e as mudanças são ajustes consequentes da força e
do espaço que as demandas adquirem no processo. A educação como uma prática
social funciona da mesma maneira que outras formas de práticas sociais. Enquanto
as pessoas viverem em sociedade, as diferenças existirão segundo os talentos e
habilidades próprios e distintos a cada um e a articulação entre as diferenças é que
viabilizarão essa convivência.
Considerações finais
Novos paradigmas educacionais associados às mudanças econômicas,
políticas e sociais que tiveram início nos meados do século XX, configuram por
muitos autores, alguns citados nesta pesquisa, identificação com elementos teóricos
neoliberais e ideológicos críticos e pós-críticos. Nesse contexto, a educação ganha
importância nas políticas sociais pelo enfrentamento das desigualdades sociais e
quanto à capacitação às novas exigências do mercado de trabalho.
Nas respostas dos professores dos anos iniciais da Educação Fundamental,
quando questionados se identificam as mudanças introduzidas em relação à versão
anterior, a hipótese de que se mostrariam sensíveis a elas, pôde ser confirmada na
fala de todos os entrevistados. A maior incidência de certos elementos apontados
nas mudanças e na diferença do grau de importância que lhes trouxe consideradas
indicações da apropriação tem sido feita pelos professores. As manifestações
expressas nas respostas sugerem estar relacionadas a fatores como as diferenças
103
individuais existentes nas relações sociais ou, talvez, a estratégia no processo de
mudança e de implantação das Orientações Curriculares.
A disponibilização de maior número de livros destinados a leitura para os
alunos e a diversidade de gêneros textuais nas atividades pedagógicas estão entre
os elementos mais citados positivamente nas mudanças sentidas pelos professores
da anterior para a atual proposta curricular.
As mudanças sob a pressão de organismos internacionais condicionando a
liberação de financiamentos ao cumprimento de metas geradas a partir da criação de
indicadores educacionais tiveram como objetivo declarado a promoção da melhoria
na qualidade da educação brasileira comparável a demanda globalizada.
A interferência por meio dos instrumentos de avaliação, em larga escala, nos
componentes curriculares e na formação de professores, nas diferentes gestões do
aparelho governamental, pode ser percebida nas propostas dos chamados
“programas” educacionais dos planos de ação implantados e foram sentidas pelos
professores, conforme expressas nas declarações dos entrevistados nessa
pesquisa.
A hipótese, no início da pesquisa, de que haveria resistência dos professores
em reação às mudanças e à interferência em sua prática cotidiana se confirmou,
mas o motivo mais forte declarado foi o caráter impositivo pela cobrança de
resultados nas avaliações externas aplicadas aos alunos vinculadas à valorização do
magistério pela prática de distribuição de bônus. Os professores sentem como se a
aplicabilidade das mudanças, ou não, fosse a única responsável pelos índices a
serem alcançados pelos alunos. Pôde-se, ainda, perceber que as mudanças
introduzidas nas orientações curriculares estão cada vez mais absorvidas na prática
dos professores, seja pela constatação de que realmente são válidas, do ponto de
vista didático, pela contribuição no aprendizado dos alunos, na melhoria da
qualidade do ensino e muito, também, pela conscientização de que a adesão às
mudanças reverte em estímulos econômicos.
Dar voz aos atores no sistema educacional estimula o debate e o
desenvolvimento do pensamento crítico e autônomo e resulta na construção de
conhecimento de modo articulado e contextualizado dentro da realidade social. O
debate dos conflitos de interesses na sociedade considerando-se a diversidade de
classe, gênero, concepção de conhecimento e educação ainda cabe reflexão e se
104
mostra um desafio constante nas políticas educacionais imersas em um sistema
globalizado.
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