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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS - CCSA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO - PPGD CURSO DE MESTRADO EM DIREITO PROGRAMA DE RECURSOS HUMANOS EM DIREITO DO PETRÓLEO, GÁS NATURAL E BIOCOMBUSTÍVEIS PRH-ANP/MCT Nº 36 FÁBIO AUGUSTO DE CASTRO CAVALCANTI MONTANHA LEITE O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA REDUÇÃO DAS DESIGUALDADES REGIONAIS E O TRANSPORTE DE GÁS NATURAL NATAL - RN 2008

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CINCIAS SOCIAIS APLICADAS - CCSA

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO - PPGD CURSO DE MESTRADO EM DIREITO

PROGRAMA DE RECURSOS HUMANOS EM DIREITO DO PETRLEO, GS NATURAL E BIOCOMBUSTVEIS

PRH-ANP/MCT N 36

FBIO AUGUSTO DE CASTRO CAVALCANTI MONTANHA LEITE

O PRINCPIO CONSTITUCIONAL DA REDUO DAS

DESIGUALDADES REGIONAIS E O TRANSPORTE DE GS NATURAL

NATAL - RN

2008

FBIO AUGUSTO DE CASTRO CAVALCANTI MONTANHA LEITE

O PRINCPIO CONSTITUCIONAL DA REDUO DAS DESIGUALDADES REGIONAIS E O TRANSPORTE DE GS NATURAL

Dissertao apresentada ao Programa de Ps

Graduao em Direito da Universidade Federal do

Rio Grande do Norte, rea de Concentrao em

Constituio e Garantia de Direitos, Linha de

Pesquisa Constituio, Regulao Econmica e

Desenvolvimento, como requisito para a

obteno do ttulo de Mestre em Direito.

Orientador: Prof. Doutor Yanko Marcius de

Alencar Xavier

NATAL RN

2008

Catalogao da Publicao na Fonte. UFRN / Biblioteca Setorial do CCSA Diviso de Servios Tcnicos

Leite, Fbio Augusto de Castro Cavalcanti Montanha.

O princpio constitucional da reduo das desigualdades regionais e o transporte de gs natural / Fbio Augusto de Castro Cavalcanti Montanha Leite. - Natal, 2008.

188 f.

Orientador: Prof. Dr. Yanko Marcius de Alencar Xavier

Dissertao (Mestrado em Direito) Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Cincias Sociais Aplicadas. Programa de Ps-Graduao em Direito.

1. Direito - Tese. 2. Desenvolvimento - Tese. 3. Desigualdades regionais - Tese. 4. Gs natural Tese. 5. Integrao energtica Tese. I. Xavier, Yanko Marcius de Alencar. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Ttulo.

2. RN/BS/CCSA CDU 34 (81) (043.3)

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE CENTRO DE CINCIAS SOCIAIS APLICADAS - CCSA

PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM DIREITO - PPGD CURSO DE MESTRADO EM DIREITO

PROGRAMA DE RECURSOS HUMANOS EM DIREITO DO PETRLEO, GS NATURAL E BIOCOMBUSTVEIS

PRH-ANP/MCT N 36

A dissertao O princpio constitucional da reduo das desigualdades regionais e o transporte de gs natural foi avaliada e aprovada pela Comisso Examinadora formada pelos professores:

Natal, 24 de julho de 2008

COMISSO EXAMINADORA

Presidente: ________________________________________________

Prof. Dr. Yanko Marcius de Alencar Xavier Orientador, UFRN

Membro externo:

________________________________________________

Prof. Dra. Yara Maria Pereira Gurgel, UNP

Membro:

________________________________________________

Prof. Dr. Vladimir da Rocha Frana, UFRN

_________________________________________

Coordenador do PPGD: Prof. Dr. Vladimir da Rocha Frana

AGRADECIMENTOS

Neste momento, j no crepsculo de uma longa jornada que talvez tenha durado at

mais que o devido, repleta de descobertas, alegrias, frustraes, idas e vindas, posso dizer que

todo esse perodo foi de grande valia pessoal. No momento em que escrevo tais linhas me

encontro a, talvez, pouco menos de duas semanas para a defesa de uma idia surgida no

decorrer do prprio curso, a qual, por longas noites e dias, me tirou a tranqilidade e paz de

esprito, mas que, tambm, foi causa de imensa alegria e satisfao, seja por procurar abordar

idias aparentemente to dspares, ou ento pela constatao de, ao final, ter sido possvel

confirmar sua prpria viabilidade. A persistncia para continuar neste caminho, contudo, no

pode ser dedicada apenas ao prprio autor que ora traa essas linhas, mas, tambm, ao seu

orientador, professor Yanko Marcius de Alencar Xavier, que no incio do curso chancelou a

mudana de tema, com reservas verdade (pois no sabia at ento se tal assunto seria capaz

de ensejar uma dissertao de mestrado), mas que ainda assim acreditou, quando talvez

ningum mais acreditaria e, agora, c estamos.

O desenvolvimento de uma dissertao, bem verdade, no pode nunca ser tratado

como fruto do trabalho solitrio do seu autor, analisar desta forma seria desconsiderar as

pequenas e grandes contribuies, todas fundamentais para contribuir na elaborao do texto

final que agora se apresenta para debate. Merecem referncia, portanto, pela contribuio

realizada, seja pelo exemplo ou ento pela literal ajuda na discusso (e correo) de idias, as

seguintes pessoas: Rafael Galvo, Hirdan Katarina, Oswalter de Andrade, Anderson Souza,

Fbio Bezerra, Sofia Zanforlin, Jos Carlos Zanforlin, Vladimir, Jahyr, Otaclio, Fabiano

Mendona, Lgia, Apresentao, que seja ainda na fase da elaborao do projeto de dissertao,

ou ento j durante o curso e aps o trmino do perodo de aulas, com o auxlio no plano

administrativo ou ento atravs da leitura e correo de umas das vrias verses preliminares

do presente texto, contriburam para sua formao. Por fim, em face de todo o apoio moral e

financeiro, que me sustentou atravs desses dois longos anos de vida franciscana, mas

extremamente rica em todos os outros aspectos, aos meus pais e minha av, sem poder deixar

de lado o suporte fornecido pela AGNCIA NACIONAL DO PETRLEO, GS NATURAL

E BIOCOMBUSTVEIS ANP, pela bolsa fornecida, que sempre me auxiliaram na concluso

desta empreitada. A todos, meu mais sincero obrigado.

LEITE, Fbio Augusto de Castro Cavalcanti Montanha. O princpio constitucional da reduo das desigualdades regionais e o transporte de gs natural. 2008. 188 p. Dissertao de mestrado. Programa de Ps-Graduao em Direito. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

RESUMO

Em um pas de dimenses continentais como o Brasil, tem-se como um dos principais

desafios para o seu crescimento econmico a questo logstica relativa capacidade de

suprimento de demanda energtica. Vive-se atualmente a era da defesa do meio ambiente e,

neste novo contexto de priorizaes, passa-se pela busca da substituio da matriz energtica,

seja pela necessidade decorrente dos altos custos do petrleo no plano internacional (e da

finitude das reservas), como tambm pelo grave desgaste ecolgico por ele gerado. Essa

tentativa de substituio precisa de solues focadas na realidade nacional, num plano

estratgico de desenvolvimento a longo prazo e na anlise da viabilidade jurdico-econmica

da sua realizao. Buscar-se-, neste estudo, sem descurar de uma anlise econmica de

fundo, verificar a legitimidade jurdica da opo pelo gs natural como novo protagonista do

desenvolvimento nacional (em substituio ao petrleo) e a necessria induo a ser exercida

pelo direito, via uma poltica econmica voltada estritamente para tal fato, como agente

modificador dessa realidade. O estudo, portanto, estar voltado sempre no plano

constitucional, subordinado aos princpios da ordem econmica e da busca pela reduo das

desigualdades regionais, que devem permear a elaborao do plano de desenvolvimento.

Procurar-se- demonstrar, ao final, a viabilidade jurdica do empreendimento, sintonizada em

critrios jus-econmicos, e tambm que, na indstria do gs natural, a regulao do seu setor

de transporte exerce importncia crucial para a integrao energtica nacional, no apenas por

se tratar tal atividade de uma indstria de rede, ainda sujeita ao monoplio natural de uma

nica empresa, mas tambm pelo perfil competitivo ou cooperativo a ser priorizado quando se

for desenvolver o planejamento econmico do setor (tanto a poltica de investimentos, quanto

s prprias regras que submetero os agentes econmicos privados).

Palavras-chave: desenvolvimento, reduo das desigualdades regionais, transporte de gs

natural, integrao energtica nacional.

LEITE, Fbio Augusto de Castro Cavalcanti Montanha. The constitutional principle of

regional inequalities reduction and the natural gs transport. 2008. 188 p. Work. Post-

graduate Program in Law. Federal University of Rio Grande do Norte

ABSTRACT

In a country of continental dimensions as Brazil, one of the top challenges to its economic

growth is the logistic related to energetical demand supply. We live now in the era of

environmental protection and, in this new context of priorizations, it passes trough the search

for alternative energies for the energetic matrix, due the petroleum elevated costs in the global

market (and its finitude), but also due its pollution over the environment. This attempt of

substitution needs solutions related to the national reality, into a national long term

developing plan and based at a juridical-economic analysis of its realization. This study will

look for, also based in an economical analysis, the juridical legitimity of choosing natural gas

as the new protagonist of national economic growth (as a substitute of petroleum) and the

necessary boost that must be done by law, based on an economic policy focused strictly for

that fact, as a modifying agent of this reality. This study, therefore, will always be turned to a

constitutional aspect, respecting the principles of economic order and the goal of reducing

regional inequalities, which must influence the making off of a developing plan. At the end, it

will try to demonstrate the juridical viability of such undertaking, tuned in jus-economical

criteria. Another goal is related to the analysis of the natural gas industry, due the regulation

of its transport has a major importance for national energetic integration, not only because this

activity be characterized as a net industry, still under control of a natural monopoly, but also

because the competitive or cooperative profile that should be priorized at the beginning of the

economic planning for this activity (such as investment policies and its own rules that will

submit private agents).

Keywords: development, regional inequalities reduction, natural gas transport, national

energetic integration

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ADIN AO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

ANP AGNCIA NACIONAL DO PETRLEO, GS NATURAL E BIOCOMBUSTVEIS

BEN BALANO ENERGTICO NACIONAL

BNDES BANCO NACIONAL DO DESENVOLVIMENTO ECONMICO E SOCIAL

BOE BARRIL DE LEO EQUIVALENTE

CADE CONSELHO ADMINSITRATIVO DE DEFESA ECONMICA

CEPAL - COMISSO ECONMICA PARA AMRICA LATINA E O CARIBE

CF CONSTITUIO FEDERAL DE 1988

EMBRAPA EMPRESA BRASILEIRA DE PESQUISA AGROPECURIA

EPE EMPRESA DE PESQUISA ENERGTICA

GASPETRO PETROBRS GS S/A

GNC GS NATURAL COMPRIMIDO

GNL GS NATURAL LIQUEFEITO

OCDE ORGANIZAO PARA COOPERAO E DESENVOLVIMENTO

ECONMICO

ONU ORGANIZAO DAS NAES UNIDAS

OPEP ORGANIZAO DOS PASES EXPORTADORES DE PETRLEO

PDE PLANO DECENAL DE EXPANSO DE ENERGIA/2007-2016

PETROBRS PETRLEO BRASILEIRO S/A

PIB PRODUTO INTERNO BRUTO

PPT PROGRAMA PRIORITRIO DE TERMELETRICIDADE

SBDC SISTEMA BRASILEIRO DE DEFESA DA CONCORRNCIA

SDE SECRETARIA DE DIREITO ECONMICO

SEAE SECRETARIA DE ACOMPANHAMENTO ECONMICO

TRANSPETRO PETROBRS TRANSPORTE S/A

SUMRIO

INTRODUO .......................................................................................................................... 1

1 A ORDEM ECONMICA CONSTITUCIONAL E A BUSCA DA REDUO DAS

DESIGUALDADES REGIONAIS ............................................................................................. 6

1.1 A nova geopoltica do direito e a profissionalizao do Estado...........................................8

1.1.1 A crise do direito em face da globalizao dos mercados...............................................15

1.2 O papel do Estado: de agente transformador a gerente fiscalizador ............................... 18

1.3 O planejamento de um desenvolvimento focado na reduo das desigualdades

regionais....................................................................................................................................31

1.3.1 A reduo das desigualdades regionais por meio de uma poltica energtica

integracionista...........................................................................................................................44

1.3.2 A integrao energtica nacional atravs do transporte de gs natural e a reduo das

desigualdades regionais.............................................................................................................52

2 A REGULAO E O PAPEL DO GS NATURAL NA MATRIZ ENERGTICA

NACIONAL .............................................................................................................................. 57

2.1 O transporte por gasodutos e seu enquadramento na indstria do gs natural................66

2.1.1 A Portaria da ANP n. 170 de 26 de novembro de 1998..................................................69

2.1.2 A Resoluo da ANP n. 27 de 14 outubro de 2005.........................................................71

2.1.3 A Resoluo da ANP n. 28 de 14 de outubro de 2005....................................................74

2.1.4 A resoluo da ANP n. 29 de 14 de outubro de 2005...............................74

2.2 Modelos de indstria do gs natural e a estrutura verificada no Brasil ........................... 76

2.3 O transporte de gs natural sob a perspectiva constitucional .......................................... 86

2.4 O transporte de gs natural e a necessidade do planejamento ..................................... ....94

2.4.1 A autorizao conferida pela ANP................................................................................98

2.4.2 A diferenciao entre dutos de transporte e de transferncia......................................104

2.4.3 A infra-estrutura do transporte como um bem de uso essencial (essential facility)....114

3 A REGULAO DO TRANSPORTE DO GS NATURAL E A REDUO DAS

DESIGUALDADES REGIONAIS ....................................................................................... ..127

3.1 O problema do modelo jurdico adotado para a regulao da indstria do gs natural e a

reduo das desigualdades regionais.......................................................................................129

3.2 O novo marco regulatrio para a indstria do gs natural e seu papel para a reduo das

desigualdades regionais...........................................................................................................137

3.2.1 O projeto de lei do Senado Federal PLS, n. 226 de 16 de junho de 2005 (tambm

classificado pelo nmero 334/2007)...............................138

3.2.1.1 O regime jurdico de delegao escolhido pelo projeto e suas conseqncias para a

reduo das desigualdades regionais.......................................................................................142

3.2.2 O projeto de lei PL n. 6.673/2006 de autoria do Poder Executivo.............................146

3.3 A reduo das desigualdades regionais atravs do reforo da estrutura institucional

vigente.....................................................................................................................................148

CONSIDERAES FINAIS...............................................................................................156

REFERNCIAS....................................................................................................................162

APNDICE............................................................................................................................176

1

INTRODUO

Unir na mesma pesquisa o direito constitucional a um assunto especfico e de pouca

elaborao doutrinria (no mbito jurdico), como o transporte de gs natural, foi uma tarefa

instigante. A meta de explorar a questo do transporte via gasodutos, tendo sempre como foco

a matria constitucional e a partir da extrair contedo para uma dissertao de mestrado

capaz de referendar a idia que se almejou transmitir, qual seja, da possibilidade de reduo

das desigualdades regionais atravs desta atividade econmica, se mostrou como um ideal que

a cada dia da pesquisa se mostrava mais concreto e capaz de justificar o aprofundamento na

temtica.

A problemtica vislumbrada que ensejou o desenvolvimento deste trabalho possui dois

aspectos, intrinsecamente relacionados e de diferentes nuances (uma econmica e outra

jurdica), que so a necessidade de diversificao da matriz energtica nacional (aspecto ftico

e de claras conseqncias econmicas) e a forma jurdica como se proceder para assegurar

tal diversificao de modo a atrair interessados nesta empreitada.

Verificou-se que o gs natural, um energtico at poucos anos atrs tido como

secundrio em relao ao petrleo, possui, dadas as suas caractersticas fsicas e ao volume de

reservas existentes1, a capacidade de atuar como uma soluo vivel no apenas para diminuir

a dependncia hdrica do pas (na gerao de eletricidade), mas tambm para atuar como

combustvel menos poluente e mais barato que os atualmente existentes.

Porm, o fato de se possuir uma quantidade de reservas capaz de diversificar a matriz

energtica brasileira de nada significar se no for possvel realizar a interligao destas ao

1 Segundo dados da Agncia Nacional do Petrleo, Gs Natural e Bicombustveis ANP, no seu mais recente anurio estatstico, as reservas provadas (que so aquelas que, com base na anlise de dados geolgicos e de engenharia, se estima recuperar comercialmente com elevado grau de certeza) de gs natural chegaram, no ano de 2006, a 347,9 bilhes de metros cbicos, tendo apresentado no perodo de 1997 a 2006 um crescimento da ordem de 4,8% ao ano. Fonte: http://www.anp.gov.br/conheca/noticias_int.asp?intCodNoticia=256, acesso em 05 de fevereiro de 2008.

2

seu mercado consumidor (seja ele existente ou ainda em potncia, dependente da chegada da

energia para se desenvolver). Da a importncia desta pesquisa, pois ela buscar tratar

exatamente do principal gargalo existente, tanto no plano ftico quanto no jurdico, que a

questo do transporte, para superar o impasse ainda existente da utilizao do gs natural

como fonte de energia vivel para a atenuao do problema da escassez energtica do pas2.

Partindo-se do mtodo dedutivo de anlise (e com o entendimento do conceito de

mtodo como organizao do conjunto de tcnicas do qual se vale o estudioso de qualquer

campo do saber para produzir conhecimentos sistematicamente3), procurou-se traar os

argumentos trazidos para a pesquisa de modo a gerar um encadeamento lgico entre eles,

sempre tendo em vista uma perspectiva maior, qual seja, da reduo das desigualdades

regionais, mas tambm levando em considerao pequenos detalhes, como o tipo de outorga

juridicamente passvel de ser utilizada (se concesso ou autorizao) e a necessidade de

criao de um mercado secundrio capaz de dar suporte e sustentabilidade energia que ser

ofertada.

Procurar-se-, no decorrer dos tpicos subseqentes, traar no apenas o panorama

geral da questo existente, que essencial para justificar a viabilidade da anlise, mas

tambm, especialmente, realar o enfoque jurdico necessrio para assegurar a transformao

que se busca atingir (da reduo das desigualdades regionais por meio de um maior e melhor

fornecimento de energia limpa e barata), onde se tem, na Constituio Federal, a sua principal

gnese, localizada especialmente nos artigos 3, ao traar como um dos objetivos da

2 Segundo dados da Empresa de Pesquisa Energtica EPE (Criada pela Lei n. 10.847/2004, tendo por finalidade, de acordo com o artigo 2 da citada lei, prestar servios na rea de estudos e pesquisas destinadas a subsidiar o planejamento do setor energtico, tais como energia eltrica, petrleo e gs natural e seus derivados, carvo mineral, fontes energticas renovveis e eficincia energtica, dentre outras), no seu Plano Nacional de Energia para 2030 PNE 2030, a anlise do contexto atual da questo da energia no mundo sugere que entre os principais condicionantes da matriz energtica brasileira, ao final do horizonte de estudo do PNE 2030, esto os preos internacionais do petrleo e do gs natural, os impactos ambientais e o desenvolvimento tecnolgico. Fonte: Plano Nacional de Energia 2030. p. 47. Disponvel em: www.epe.gov.br, acesso em 01/02/2008.

3

Repblica Federativa do Brasil a reduo das desigualdades regionais e tambm no artigo

170, que ao instituir um novo modelo de Ordem Econmica Constitucional, marcadamente

capitalista, positivou como princpio a meta da reduo das desigualdades regionais (inciso

VII).

Essa nova feio da Ordem Econmica Constitucional, a ser abordada no primeiro

captulo, ser essencial para o entendimento do modo escolhido pelo Brasil para conduzir o

processo de desenvolvimento do mercado do gs natural, regulado at agora por uma agncia

reguladora setorial, cujas prerrogativas de atuao se mostram positivadas em um novo

modelo de legislao que lhe assegura ampla liberdade de ao, capaz de conferir at mesmo

uma forma de poder normativo secundrio (posto que decorrente de lei) a fim de regular, de

modo tcnico e especializado, toda a indstria do petrleo e do gs natural.

O desenvolvimento do primeiro tpico, portanto, se dar de modo a fixar as bases

constitucionais da pesquisa, do tratamento observado pela Carta Magna para assegurar o

alcance das metas objetivadas no artigo 3 (que essencialmente visam ao desenvolvimento do

pas) e a forma como se espera que a reduo das desigualdades regionais possa ser alcanada

por meio do transporte de gs natural, logo, ser analisada a prpria poltica energtica

nacional, por ser esta um fator essencial para se saber qual o direcionamento tomado pelo

Estado brasileiro e as conseqncias da decorrentes, no mbito infraconstitucional, que sero

verificadas no segundo tpico.

No segundo tpico, portanto, j tendo sido fixadas as bases constitucionais que iro

delinear o desenvolvimento jurdico e estrutural da indstria do gs natural (e em especial no

tocante questo do seu transporte), se procurar aprofundar a anlise no tocante aos modelos

de indstria do gs natural existentes, de modo a esclarecer o que vem a ser esta indstria,

3 FILGUEIRAS JUNIOR, Marcus Vincius. Conceitos jurdicos indeterminados e discricionariedade administrativa. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2007. p. 1.

4

como ela efetivamente regulada (e quem realiza tal regulao) e o enquadramento do

transporte de gs natural no seu interior, suas peculiaridades em relao ao restante da cadeia

de comercializao e o tratamento diferenciado que se mostra necessrio para viabilizar novos

investimentos, essenciais para uma maior interligao energtica do pas e,

conseqentemente, para a reduo das desigualdades regionais.

No terceiro tpico, j tendo sido fixados os fundamentos constitucionais, legais e

estruturais da indstria e do mercado de transporte de gs natural, bem como sua importncia

para assegurar uma repartio mais equnime de energia entre os entes federados (que

essencial para o seu desenvolvimento), a anlise agora se remeter para uma postura crtica

sobre a realidade jurdica existente (em especial sobre a normatizao infraconstitucional

sobre o gs natural), que por no tratar de modo aprofundado a atividade de transporte,

terminou por coibir investimentos e concentrar a explorao em regies j plenamente

desenvolvidas (especialmente a Sudeste).

Uma das formas para solucionar tal problema se verifica na existncia de projetos de

lei ainda em trmite no Congresso Nacional, que visam conferir um tratamento especializado

para o gs natural, especialmente o de nmero 226, de 16 de junho de 2005, o qual representa

a criao de um claro marco regulatrio para o setor (especializado e separado daquele j

existente para o petrleo).

A abordagem de tal projeto, bem como de iniciativas no plano estadual para fomentar

os investimentos privados na indstria de gs natural, sero analisadas de modo a verificar

como elas podero servir para reduzir as desigualdades regionais existentes. Neste momento,

portanto, os principais bices para o desenvolvimento deste mercado sero abordados, bem

como as possveis solues para a sua superao, de modo a conciliar os fatores econmicos

que so inerentes a realidade observada com os fundamentos jurdicos (constitucionais e

legais) que necessitam ser respeitados, de maneira a assegurar um modelo de

5

desenvolvimento sustentvel e economicamente vivel, capaz de ampliar a estrutura de

transporte de gs natural, tornando-a uma alternativa real capaz auxiliar na concretizao e

efetivao dos objetivos e princpios constitucionais.

6

1 A ORDEM ECONMICA CONSTITUCIONAL E A BUSCA DA REDUO DAS

DESIGUALDADES REGIONAIS

A Constituio Federal de 1988, ao possuir no corpo do seu texto um ttulo prprio

(Ttulo VII) relativo aos princpios e regras que devero nortear a atividade econmica, seja

esta realizada pelo prprio Estado, ou por particulares, passou a traar as balizas mestras de

ao para qualquer agente econmico.

O fato da Carta Magna adotar o que se pode denominar de Constituio Econmica4,

focalizando em sua estrutura um conjunto de regras e princpios prprios reguladores das

atividades econmicas, bem como o intento de modificar o papel do Estado, diminuindo o seu

perfil intervencionista, para figurar um novo modelo, de interveno branda, indireta,

qualificada no art. 174 pelo papel de agente normativo e regulador, j denota no apenas a

opo poltica pela adoo do sistema econmico capitalista5, que claramente expressada

pela adoo dos princpios da livre iniciativa (erigida a condio de fundamento da ordem

econmica pelo caput do art. 170) e da proteo propriedade privada (art. 170, II), mas

tambm representa o novo modelo de Estado que se procura alcanar.

A reforma do papel do Estado, bem como do prprio direito (que sero estudadas

abaixo), se mostram imprescindveis para a legitimao da atual estrutura de agente regulador

estatal, consubstanciada pelo advento das agncias reguladoras e a regulao por elas exercida

atravs de um processo de deslegalizao6 que termina por controlar todo um setor

econmico.

4 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito econmico. So Paulo: Celso Bastos Editora, 2003. p. 70; TAVARES, Andr Ramos. Direito constitucional econmico. So Paulo: Mtodo, 2006. p.73. 5 TAVARES, Andr Ramos. Direito constitucional econmico. So Paulo: Mtodo, 2006. p. 45. 6 A prtica da deslegalizao operada por meio de leis quadro (que sero analisadas adiante no texto), decorre de uma nova compreenso do prprio direito por parte da teoria dos ordenamentos setoriais, que preconiza um novo modo de atuar do Estado atravs de uma regulao especializada por setores, a fim de otimizar o alcance de seus objetivos e com uma maior intercomunicao do direito com outros subsistemas (econmico, cultural, religioso, dentre outros). A validade desta teoria decorre essencialmente da necessidade do direito em se

7

No se procurar discutir a constitucionalidade dos atos normativos expedidos pelas

agncias, por tal questo fugir ao mbito do presente estudo, porm procurar-se-, a partir da

presuno de constitucionalidade dos mesmos, analisar os atos expedidos pela ANP que se

mostrem mais relevantes para a atividade de transporte de gs natural, bem como em que

medida estes atos, se regularmente expedidos pela agncia reguladora nos limites conferidos

pelas chamadas leis deslegalizadoras, podem contribuir para a reduo das desigualdades

regionais.

No tocante ao alcance desta meta, considere-se que a abordagem conferida neste

estudo ser a de trat-la tecnicamente como verdadeiro princpio constitucional (conforme

previsto no art. 170 da Constituio Federal), apesar do tratamento explcito de objetivo,

previsto no art. 3 da Carta Magna, mas que no desnatura a prpria estrutura do instituto7,

apenas denotando um carter mais prospectivo, programtico, um verdadeiro vir a ser8

constitucional pleno de normatividade.

Essa configurao principiolgica da busca da reduo das desigualdades regionais se

mostra mais claramente demonstrada quando se verifica sua adequao ao estudo realizado

por Guastini e citado por Bonavides9, onde o mesmo afirma ser princpio apenas as normas

dotadas de alto grau de generalidade e indeterminao, em alguns casos dependente de uma

atualizar para a realidade que visa regular, concretizando-se, no ordenamento jurdico, por meio de novos centros de poder consubstanciados nas agncias reguladoras e no j citado processo de deslegalizao (ou delegificao), que implica na produo de leis com baixa densidade normativa (que terminam no tratando inteiramente do tema objeto de sua criao) cuja funo essencialmente consiste na transferncia do poder de regulamentar certas matrias do seu domnio para o domnio do regulamento (ocorrendo, destarte, uma degradao normativa). Fonte: ARAGO, Alexandre Santos de. As agncias reguladoras independentes e a separao de poderes: uma contribuio da teoria dos ordenamentos setoriais. Revista eletrnica de direito administrativo econmico (REDAE): Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Pblico, n 10, maio/junho/julho, 2007. Disponvel na internet: . Acesso em 6 de maro de 2008. 7 Segundo Tavares, o princpio da reduo das desigualdades regionais se revela mais como um objetivo da ordem econmica, carregando, todavia, uma funo principiolgica de carter prospectivo que lhe assegura a manuteno de uma estrutura normativa prpria dos princpios (ditos programticos). Cf. TAVARES, Andr ramos. Direito constitucional econmico. So Paulo: Mtodo, 2006. p. 128. No mesmo sentido, restringindo as normas constitucionais categoria de regras e princpios, vide: BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito econmico. So Paulo: Celso Bastos Editora, 2003. p. 129. 8 Tambm denominado por Bercovici de clusula transformadora. Cf. BERCOVICI, Gilberto. Constituio econmica e desenvolvimento. Uma leitura a partir da Constituio de 1988. So Paulo: Malheiros, 2005, p. 35

http://www.direitodoestado.com.br/redae.asp

8

interpretao posterior, com carter programtico, de elevada hierarquia dentro das fontes de

direito, desempenhando uma funo importante e fundamental no sistema jurdico ou poltico

unitariamente considerado e dotado de normatividade.

Verifica-se, portanto, por tais consideraes, que a busca da reduo das desigualdades

regionais, a despeito de poder ser entendida como meta (objetivo) a ser alcanado, no tem

seu carter principiolgico por isto afetado, configurando, apenas, uma modalidade de

princpio constitucional de carter programtico, balizador de condutas e que, da forma como

foi positivado, termina por fulminar de inconstitucionalidade qualquer disposio

infraconstitucional tendente a ampliar tal desigualdade, servindo, destarte, como elemento

norteador para o legislador ordinrio e aos prprios entes reguladores setoriais como a ANP

do modo como devero se portar ao exercerem seu poder normativo (seja este primrio ou

secundrio, respectivamente).

1.1 A NOVA GEOPOLTICA DO DIREITO E A PROFISSIONALIZAO DO

ESTADO

O desenvolvimento do direito como instrumento de garantia do planejamento

macroeconmico de um pas no um fato recente para os modernos Estados Democrticos.

at mesmo possvel constatar a utilizao do direito, por meio da prtica do planejamento

normativo, em graves perodos de crise dos Estados-nao, especialmente (e de forma mais

sistematizada) aps a Grande Depresso de 1929 e das duas grandes guerras mundiais, com a

crena no poder do Estado de organizar a economia, difundida pelas idias do economista

John Maynard Keynes10. Tal raciocnio, porm, pode ser inferido em perodos anteriores,

9 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. So Paulo: Malheiros, 2005. p. 257, 258. 10 John Maynard Keynes, economista autor do livro A teoria geral do emprego, do juro e do dinheiro, datado de 1936, foi o difusor do modelo de Estado intervencionista denominado de Estado de Bem-Estar Social, realizando severas crticas teoria do laissez-faire, laissez-passer, que trata da auto-regulao do mercado

9

notadamente a partir do iluminismo no sculo XVIII, que pregava o racionalismo como meio

para a condenao do autoritarismo e a afirmao da igualdade de todos os seres.

Com a verificao da inviabilidade prtica da racionalidade individual pregada por

Adam Smith para garantir o bem estar social (por meio da lgica do mercado), procurou-se

garantir tal ideal atravs de instrumentos indutores, que necessariamente passavam pela ao

estatal. Neste caso, passou-se do perodo individualista para a era da solidariedade, onde o

planejamento se fazia necessrio para atingir determinadas idias de interesse pblico. No

Brasil possvel verificar um esboo de planejamento, no mbito jurdico, j na Constituio

de 1934, que fazia referncia palavra plano no seu art. 5, IX11.

A interao existente entre a ordem jurdica e a econmica, no sistema capitalista

contemporneo12, se apresenta como um fator legitimador e garantidor da segurana jurdica

necessria ao desenvolvimento da economia como um todo. O mundo no se encontra mais na

poca em que se tinha a imposio de planos macroeconmicos13 ou de economias

(sendo essa tese da mo invisvel uma das causas da Grande Depresso, em 1929, pela falta de fiscalizao do Estado no mercado, bem como das concentraes econmicas decorrentes dos monoplios privados), defendendo forte participao de empresas estatais na oferta de bens e servios e a crescente regulamentao das atividades do setor privado por meio da interveno governamental nos diversos mercados particulares da economia. Cf. MACHADO, Luiz Alberto. Grandes economistas: Keynes e os keynesianos. Fonte: http://www.cofecon.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=399&Itemid=114. Acesso em 06 de maro de 2008. 11 Vide: FONSECA, Joo Bosco Leopoldino da. Direito econmico. 4 edio. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 299, 300. Ainda neste sentido, tratando especificamente sobre planejamento como instrumento de implementao de polticas pblicas, vide: SCOOT, Paulo Henrique Rocha. Direito constitucional econmico. Estado e normalizao da economia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2000. p. 56. 12 O sistema capitalista pode ser compreendido como um modelo de sistema econmico, entendido este como um conjunto coerente de estruturas econmicas, institucionais, jurdicas, sociais e mentais organizadas em vista de assegurar a realizao de um certo nmero de objetivos econmicos. Cada sistema, que um modelo terico e idealizado, d lugar a vrios tipos de regimes, onde, no capitalista, tem-se as espcies comercial, industrial, financeiro, que refletem a realidade poltico econmica da poca. Cf. FONSECA, Joo Bosco Leopoldino da. Direito econmico. 4 edio. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 52 (notas 13 e 14). Segundo Nester, sistema econmico o conjunto de instituies organizadas, que seguem um princpio comum para administrar os seus recursos escassos de uma maneira minimamente eficiente, de modo a evitar desperdcios. NESTER, Alexandre Wagner. Regulao e concorrncia (compartilhamento de infra-estruturas e redes). So Paulo: Dialtica, 2006. p. 17. 13 A criao de planos econmicos uma caracterstica do Estado do sculo XX, diametralmente oposta do modelo liberal existente no sculo XVII, que o concebeu como um ente distanciado da sociedade e cujas conseqncias negativas j so claramente sabidas. A incapacidade de solucionar as profundas falhas de mercado decorrentes das aes egosticas dos agentes econmicos levou formao dos planos, que, no seu contexto mais extremado, desenvolvidos no sistema socialista, implicaram na conduo coercitiva do mercado l existente pelo

10

planificadas, vive-se hoje a era das legitimaes14, onde tudo que apresentado precisa ser

justificado.

O direito do sculo XXI se encontra, neste sentido, intrinsecamente ligado a fatores

econmicos, pois a sua concretizao num Estado de economia capitalista demanda a

existncia de receitas suficientes, logo, ora se discute a submisso da ordem jurdica a

elementos econmicos, como superestrutura ideolgica, ou ento se apresenta a capacidade do

direito em conduzir a economia, de regul-la segundo padres ditados pelo ordenamento

jurdico legitimamente institudo.

A sinergia destas duas foras - o direito e a economia - resultou na busca da

maximizao da eficincia de ambas, visando garantir o desenvolvimento (no confundido

com crescimento15) econmico do Estado. O direito econmico, como instrumento da

regulao macroeconmica do Estado16, apresenta-se como um reflexo claro desta busca de

jurisdicizar fatores econmicos sem faz-los perder a legitimidade e de submet-los gide da

Constituio Federal.

governo. Cf. SCOOT, Paulo Henrique Rocha. Direito constitucional econmico. Estado e normalizao da economia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2000. p. 50, 51. 14 A legitimao seria um corolrio da necessria motivao e publicidade que deve permear todos os atos emanados do Poder Pblico e exigidos pela prpria Constituio Federal (art. 37, caput). Para Comparato, o consenso poltico geral dentro do Estado contemporneo no mais se estabelece na supremacia dos valores tradicionais, na hegemonia de lderes carismticos ou na racionalidade burocrtica, mas, sim, em torno da eficincia operacional do Estado na consecuo de metas scio-econmicas predeterminadas. COMPARATO apud SCOOT, Paulo Henrique Rocha. Direito constitucional econmico. Estado e normalizao da economia. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2000.. p. 178. A legitimao, portanto, depende do pragmatismo a que esteja submetida para atingir seus objetivos, o que no se faz mais por meio de discursos e retrica vazia. 15 A idia de desenvolvimento aqui considerada aquela que o preconiza como um processo de expanso das liberdades do ser humano, ampliando suas escolhas e oportunidades. Neste sentido, o crescimento econmico deve ser visto como uma parcela inserida no contexto maior do desenvolvimento, que no pode ser confundido apenas com a acumulao de riquezas. Cf. SEN, Amartya Kumar. Desenvolvimento como liberdade. So Paulo: Companhia das letras, 2000. p. 29. 16 Direito econmico pode ser entendido como o ramo do direito destinado a reger a direo da poltica econmica pelo Estado. Cf. FONSECA, Joo Bosco Leopoldino da. Direito econmico. 4 ed. p. 11. Segundo Forgioni, o conjunto de tcnicas de que lana mo o Estado contemporneo em sua funo de implementar polticas pblicas. FORGIONI, Paula A. Os fundamentos do antitruste. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 23.

11

O direito, agora sob uma tica mais econmica17, passou apenas a partir do sculo

XX a desenvolver um vis cientfico e independente que antes no existia, representado por

iniciativas de legislao esparsas, bem como por experincias jurisprudenciais inicialmente

tmidas18, que no refletiam toda a robustez ora vivenciada, onde a ordem jurdica influencia a

economia e recebe o feedback desta, num constante crculo que no mais parece ser possvel

de ser destacado sem se correr o risco de sofrer com experincias de conduo

macroeconmicas irresponsveis e insustentveis a mdio e longo prazos19.

reforma do direito, no sculo XX, seguiu-se uma paralela e simultnea reforma do

Estado, de mudana de prioridades e de focos de atuao, ante a falncia dos modelos

intervencionista e liberal que precederam a busca da configurao atual.

Tal constatao, no Brasil, j foi verificada at mesmo na Suprema Corte brasileira, a

qual, ao analisar a questo da legalidade da dispensa de licitao para a celebrao de

contratos de prestao de servio com Organizaes Sociais OS, por meio da Lei n.

9.637/98, traou importantes consideraes sobre o processo de reforma e profissionalizao

do Estado. Procurou-se destacar, ao se propugnar pela legalidade dessa forma de contratao,

a necessidade do governo se tornar mais empresarial, mas no propriamente uma empresa, de

modo a desenvolver uma terceira via entre o modelo do laissez faire neoliberal e o do Estado

intervencionista. Desta maneira, o Supremo Tribunal Federal - STF contribuiu para o

17 A relao direito-economia caracterstica do modo de produo capitalista e a forma como tal interao se determina tem como base o direito econmico, desenvolvido historicamente como instrumento de proteo das liberdades econmicas contra a concentrao de poder dos grandes grupos empresariais. J no sculo XIX era possvel verificar o efeito da concentrao capitalista na economia (barreiras entrada, monoplios, preos abusivos), logo, o direito no podia mais se apresentar alheio a tal realidade, que no se coadunava com os prprios preceitos do liberalismo reinante. FONSECA, Joo Bosco Leopoldino da. Direito econmico. 4 edio. Rio de Janeiro: Forense, 2003.. p. 15 e 17. 18 Quando do desenvolvimento do direito econmico (cujo marco jurdico pode ser tido com a publicao do Sherman Act em 1890 nos EUA), que teve como ponto de partida o controle das concentraes de capital em poucas empresas, notoriamente nos Estados Unidos, ainda no se tinha a noo exata dos efeitos negativos a serem causados pelas mesmas, especialmente em funo da existncia de economias de escala que garantiriam uma maior eficincia econmica dos mercados. 19 Vide o exemplo da Venezuela, onde o presidente Hugo Chavez desenvolve uma poltica interna e externa exclusivamente baseada em suas vastas e sobrevalorizadas, porm finitas, reservas de petrleo e gs natural.

12

reconhecimento de que a reforma do Estado brasileiro no se trata de uma resposta neoliberal

crise do Estado intervencionista, estando inserida num contexto mundial de re-estruturao

do papel do Poder Pblico que no representa unicamente a necessidade de reduo do

tamanho do Estado, muito menos a priorizao do capital e do mercado como soluo para

todos os males. Segundo o Tribunal, a reforma no implica em dasaparelhamento, mas em

reconstruo, em modificao estrutural do aparato estatal que no pode ser confundida

apenas com a implementao de novas formas de gesto20. Dentre as mudanas envolvidas,

decorrentes dessa redefinio de funes, com a passagem do papel de agente interventor e

produtor direto de bens e servios para a de promotor e regulador do desenvolvimento, teve-se

a criao das agncias reguladoras, notrias pela nova classificao do Estado, agora

denominado de Regulador.

O chamado Estado Regulador21, notoriamente em decorrncia do advento das

denominadas Autoridades Administrativas Independentes22, ou agncias reguladoras,

representou essa busca de reao do Poder Pblico frente a uma incapacidade gerencial clara

dos fatores macroeconmicos e da insuficincia de recursos para a realizao das reformas

20 Vide voto-vista do Ministro Gilmar Ferreira Mendes na Ao Direta de Inconstitucionalidade ADIN, n 1923 MC/DF. 21 O advento do conceito de regulao decorre do processo de reforma do papel poltico-econmico do Estado, com a reduo da sua interveno direta e a liberalizao da economia. Tratou-se de uma mudana dos instrumentos por meio dos quais se buscava alcanar objetivos constitucionalmente consagrados e esse processo demandou o reconhecimento da inaptido estatal como agente de mercado. Como decorrncia disso, a introduo da concorrncia (pela chamada desregulao) passou a demandar novos instrumentos capazes de controlar as foras de mercado (como as concentraes econmicas). A busca dessa regulao do mercado que deu origem ao conceito de Estado Regulador. A denominao, todavia, padece de crticas, pois no existe um padro de Estado regulador, mas sim modelos de regulao variveis e contingentes a depender do pas em que foi inserida. Cf. FIGUEIREDO, Marcelo. As agncias reguladoras. So Paulo: Malheiros, 2005. p. 200. No mesmo sentido: NESTER, Alexandre Wagner. Regulao e concorrncia (compartilhamento de infra-estruturas e redes). So Paulo: Dialtica, 2006. p. 66. 22 As terminologias variam, porm todas buscam retratar o mesmo fenmeno, da criao de entes com autonomia reforada face ao Poder Executivo. A denominao administrao independente, ou autoridade administrativa independente (AAI) europia, enquanto que o termo Agncia advm do direito norte-americano. FIGUEIREDO, Marcelo. As agncias reguladoras. So Paulo: Malheiros, 2005. p. 205.

13

necessrias concretizao dos direitos fundamentais universalizados e consagrados,

especialmente, aps a segunda Guerra Mundial23.

A profissionalizao do Estado, em pases que sequer chegaram a se dizer como

liberais ou de bem-estar social (como o Brasil24), representou uma tentativa, por parte do

Poder Pblico, de angariar o reconhecimento internacional perdido em funo de dcadas de

m-gesto e, tambm, de garantir iniciativa privada o espao mais livre possvel para a sua

atuao. Foi, efetivamente, uma busca para recuperar mais credibilidade, realizada, porm, de

forma a agradar apenas a parcela dos potenciais investidores, logo, no se procurou,

inicialmente, em adequar a estrutura institucional vigente Constituio Federal e no

estabelecimento de regras claras para os futuros investimentos, simplesmente emendou-se25 a

Carta Magna para adequ-la aos interesses econmicos envolvidos26.

O processo de liberalizao da economia brasileira, iniciada em 1994 pelas

desestatizaes27, resultou numa ampliao da rea de atuao dos agentes econmicos, agora

23 A Declarao Universal dos Direitos do Homem, assinada em Paris em 1948, representa o ponto alto da sistematizao dos direitos fundamentais e a sua positivao no plano do direito internacional pblico. MORAES, Alexandre de. Direitos humanos fundamentais. 6 edio. So Paulo: Atlas, 2005. p. 18. 24 Segundo Diogo de Figueiredo Moreira Neto, o Estado passou at agora por trs fases, a primeira, denominada de pr-modernidade (perodo liberal), seria o Estado da virada do sculo XIX para o XX. A segunda, chamada de modernidade, a do Estado social, intervencionista, que se iniciou na segunda dcada do sculo XX e a ltima seria a ps-modernidade, caracterizada pelas reformas do Estado, a desregulao, privatizao e organizaes no-governamentais. O Brasil, pas de industrializao tardia, chegou terceira fase sem nem ter sido liberal, nem moderno. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito regulatrio. So Paulo: Renovar, 2003. p. 18. 25 A onda reformista brasileira se deu em trs aspectos. No primeiro teve-se o fim da restrio ao capital estrangeiro, por meio da emenda constitucional n 06/95. Um outro momento veio com a flexibilizao dos monoplios estatais, por meio das emendas n 05/95 (gs canalizado), 08 e 09/95 (nestas duas ltimas, telecomunicaes e petrleo respectivamente). A terceira transformao se deu com o processo de privatizao, por meio da lei n 8.031/97. MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito regulatrio. So Paulo: Renovar, 2003. p. 23 e 24. 26 Conforme salientado em voto-vista do Ministro do STF Gilmar Ferreira Mendes, na ADIN n 1923 MC/DF, a Reforma do Estado brasileiro envolveu, num primeiro momento ou numa primeira gerao de reformas, alguns programas e metas, voltadas primordialmente para o mercado, tais como a abertura comercial, ajuste fiscal, estabilizao econmica, reforma da previdncia social e a privatizao de empresas estatais, criao de agncias reguladoras, quase todas j implementadas, ainda que parcialmente, na dcada de noventa. 27 Convm esclarecer a utilizao de tais terminologias (privatizao, desregulao, desestatizao, liberalizao), para evitar a confuso no seu uso e trat-las como sinnimas. Segundo Vital Moreira, privatizao significa a alienao do setor pblico pela venda das empresas estatais; j liberalizao consiste na abertura dos setores at ento monopolizados pelo Estado com a introduo da concorrncia e desregulao representa o estabelecimento da concorrncia por meio da diminuio de restries ao ingresso de novos agentes econmicos no mercado, com a contrapartida do aumento da ao regulatria do Estado. MOREIRA, Vital.

14

em regime concorrencial, que, todavia, gerou o risco da formao de concentraes

econmicas28 em reas onde antes havia apenas a interveno estatal (alterou-se ento o

agente do setor e a sua lgica de ao, agora voltada para o lucro e no mais universalizao

do servio)29. O Estado regulador se consolida no intuito de dirimir as diferenas entre os

agentes econmicos privados e para fomentar a concorrncia, a qual, segundo a lgica

privatista, apesar de gerar efeitos benficos aos consumidores, no querida pelos

concorrentes, por demandar constantes investimentos em novas tecnologias, melhorias de

servio e reduo de preos.

A tendncia anticompetitiva do mercado teve seu reflexo cientfico com a Escola de

Chicago30 na final dcada de 70 para a seguinte, por ser profusa defensora do aproveitamento

das economias de escala31 geradas pelas concentraes de poder econmico no sentido de,

desta forma, atingir uma melhor eficincia alocativa32 e, por conseguinte, a maior satisfao

do destinatrio final dos servios.

Auto-regulao profissional e administrao pblica. Apud NESTER, Alexandre Wagner. Regulao e concorrncia (compartilhamento de infra-estruturas e redes). So Paulo: Dialtica, 2006. p. 64 (nota 9). 28 A existncia de concentraes econmicas um fenmeno emprico-factual e no tcnico-jurdico, representando o aumento de poder de determinados agentes econmicos num dado mercado relevante. FORGIONI, Paula A. Os fundamentos do antitruste. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 464. 29 NESTER, Alexandre Wagner. Regulao e concorrncia (compartilhamento de infra-estruturas e redes). So Paulo: Dialtica, 2006. p. 12, 13. 30 Convencionou-se chamar de Escola de Chicago o conjunto de teorias capitaneadas por Aaron Director, ainda na dcada de 50, acerca dos estudos sobre preo e direito antitruste, cujo desenvolvimento se verificou nos anos 60 e 70 com os trabalhos de R. Bork e R. Posner, que elevaram a eficincia produtiva como critrio a justificar posies dominantes e, conseqentemente, concentraes de mercado, em razo da eficincia gerada que repercutiria no preo final dos produtos. No se trata, todavia, dos idelogos de Chicago defenderem um mnimo de concorrncia, pelo contrrio, o consenso entre seus autores era de que o Estado deveria intervir o mnimo possvel no mercado, dada sua incapacidade administrativa, para desta forma a concorrncia se desenvolver. As concentraes econmicas garantiriam a reduo dos custos de transao no mercado, garantindo maior eficincia e ganho para os consumidores. Cf. SALOMO FILHO, Calixto. Direito concorrencial as condutas. So Paulo: Malheiros, 2003. p. 21 e GOLDBERGH, Daniel. Poder de compra e poltica antitruste. So Paulo: Singular, 2006. p. 89. 31 Existe economia de escala toda vez que o custo unitrio mdio (que o custo total dividido pelo nmero de unidades produzidas) de um produto diminui medida que se expande a sua escala (volume) de produo, ou seja, quanto mais unidades elaboradas, menos custosa ela ser para o produtor. Cf. NESTER, Alexandre Wagner. Regulao e concorrncia (compartilhamento de infra-estruturas e redes). So Paulo: Dialtica, 2006. p 40. 32 A eficincia alocativa diz respeito capacidade do mercado de alocar bens e servios a seu uso mais valioso, medido pela disposio dos consumidores em pagar por eles e deixar de consumir outros bens. GOLDBERGH, Daniel. Poder de compra e poltica antitruste. So Paulo: Singular, 2006. p. 98. A defesa da eficincia alocativa, como ideal maior da poltica antitruste para a Escola de Chicago, se deve ao fato que o antitruste

15

Um dos mercados no qual se verificou a profissionalizao do Estado, com a criao de

uma agncia reguladora especfica e a liberalizao de suas regras, no intuito de atrair

investidores privados e promover a competio, nos termos idealizados pela Constituio

Federal, foi o do petrleo e gs natural, onde a cultura jurdica monopolista e que privilegiava

as concentraes teve seu refreio com a flexibilizao imposta pela Emenda Constitucional n.

09/95, possibilitando a entrada de agentes privados nas fases de explorao e produo de tais

bens, antes reservadas Petrleo Brasileiro S/A Petrobrs.

A flexibilizao do monoplio estatal sobre o petrleo e gs natural, bem como o

processo de privatizao do sistema eltrico brasileiro, mostram-se paradigmticos no novo

modelo de mercado idealizado para o setor da energia, com o Estado figurando como mero

ente regulador, deixando de realizar intervenes diretas, numa nova estrutura de mercado

auto-regulada, submetida ao processo de globalizao econmica de forma passiva e

meramente reativa s novas injunes internacionais, tratando o mesmo como uma fora

inevitvel e irrefrevel, no sujeita a limitaes e adequaes realidade nacional.33

1.1.1 A crise do direito em face da globalizao dos mercados

Aps a internacionalizao dos mercados com o desenvolvimento tecnolgico e a

globalizao, o pensamento jurdico passou a enfrentar uma crise paradigmtica em face da

incapacidade de suas idias at ento reinantes de cuidar da nova realidade que se afigurava34.

A crise ora verificada pode ser assemelhada quela pela qual passou a economia na

dcada de 20, quando o colapso da bolsa de valores de Nova Iorque e a Grande Depresso

resultou em mudanas estruturais que a teoria econmica ento reinante no era capaz de

passou a ser visto num contexto puramente econmico, livre de valoraes subjetivas ou principiolgicas, numa relao estrita e limitada de custo-benefcio. Cf. FORGIONI, Paula A. Os fundamentos do antitruste. So Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 174. 33 VIEIRA, Jos Paulo. Antivalor: um estudo da energia eltrica: construda como antimercadoria e reformada pelo mercado nos anos 1990. So Paulo: Paz e terra, 2007. p.26.

16

processar e se adaptar. Tem-se, j na dcada de setenta, o esgotamento do Estado de bem-

estar e a revalorizao do liberalismo (com a derrocada dos monoplios pblicos), movimento

este capitaneado pela Escola de Chicago na era Reagan35, cunhado de neoliberalismo, onde se

figuraria um tipo de capitalismo social, em que o mercado e no o Estado, seria o melhor

administrador da riqueza gerada na sociedade e um otimizador de suas eficincias36.

Com a globalizao (transnacionalizao) dos mercados, passou-se a efetuar as

mudanas necessrias no arcabouo jurdico-institucional para a nova realidade, o que

resultou, para o direito, num profundo impacto em relao a tautologias antes tidas como

insofismveis, como o do princpio da legalidade, da hierarquia das leis e da prpria soberania

estatal, agora relativizada em face dos blocos regionais e da interdependncia econmica

mundial.

A chamada lex mercatoria37 passou a ditar os rumos do mercado global e, com ela,

teve-se a gradativa reduo da fora normativa das ordens estatais, que ou se submetem s leis

34 FARIA, Jos Eduardo. O direito na economia globalizada. So Paulo: Malheiros, 2000. p. 53, 54. 35 A proeminncia da Escola de Chicago no cenrio econmico internacional se deu na era Reagan, na dcada de 80, quando eles passaram a defender toda a reformulao da poltica antitruste at ento adotada, especialmente em frontal oposio Escola de Harvard, cujo ideal maior era a defesa da concorrncia em si. Para os idelogos de Chicago, o antitruste deveria garantir a melhor eficincia alocativa (entendida esta como a capacidade do mercado de ofertar prioritariamente os bens e servios com mais demanda pelos consumidores) dos produtos nos mercados e tal passo no prescindiria da formao de grandes grupos econmicos, em decorrncia da reduo dos custos de transao envolvidos. O diferencial de tal linha de raciocnio se deu com a equiparao do conceito de eficincia econmica com o de bem-estar do consumidor. Segundo Carvalho, a defesa pura e simples da eficincia econmica como ideal do antitruste prejudicial prpria estrutura da concorrncia, pois isso significaria, num extremo, tal qual idealizado pela Escola de Chicago, at uma eventual monopolizao do mercado relevante, em face da possibilidade de benefcios, a curto prazo e mais imediatistas, para os consumidores. Cf. CARVALHO, Gilberto de Abreu Sodr. Responsabilidade civil concorrencial. Introduo ao direito concorrencial privado. Rio de Janeiro: Lmen Jris, 2002. p. 50. Ressalte-se que uma das maiores crticas a esta escola foi o fato de que no existe nenhuma garantia que os lucros monopolsticos resultantes da maior eficincia econmica gerada com a reduo dos custos de transao seja repassada ao consumidor, podendo a empresa simplesmente manter os preos finais inalterados e ampliar sua margem de lucro, ou seja, o chamado critrio de Kaldor-Ricks se mostraria apenas como uma realizao discricionria dos agentes econmicos, que no seriam obrigados a compensar as perdas das outras partes em decorrncia do seu excedente de riqueza. 36 BORGES, Alexandre Walmott. A ordem econmica e financeira da Constituio & os monoplios. Anlise das alteraes com as reformas de 1995 a 1999. Curitiba: Juru, 2001. p. 39. 37 Esta pode ser entendida como um conjunto de regras e princpios costumeiros reconhecido pela comunidade empresarial e aplicado nas transaes comerciais internacionais independentemente de interferncias governamentais. Vide: FARIA, Jos Eduardo. O direito na economia globalizada. So Paulo: Malheiros, 2000. p. 160.

17

internacionais de mercado ou so excludas do mesmo, logo, nesse novo contexto, embora

formalmente os Estados continuem a exercer soberanamente sua autoridade dentro de seu

territrio, em termos materiais eles j so incapazes de estabelecer e realizar os objetivos

visados, ou seja, perdem autonomia na elaborao de suas polticas pblicas (econmicas),

que passam a refletir a situao de interdependncia internacional em que esto inseridos.

O que se d com o direito, doravante, o mesmo que est ocorrendo com o Estado, pois

ele passa a necessitar de uma reformulao dos seus conceitos para se adequar realidade

vigente, porm, sem correr o risco de se tornar incapaz de condicion-la, servindo apenas

como instrumento de legitimao da dominao de determinado poder38.

A crise do direito pode ser tida como decorrente de uma crise de governabilidade, onde

esta pode ser entendida como a incapacidade de um governo ou de uma estrutura de poder

formular e de tomar decises no momento oportuno, sob a forma de programas econmicos,

polticas pblicas e planos administrativos e de implement-las de modo efetivo(...)39.

O direito ora em crise aquele do ps-guerra, de perfil intervencionista e inspirado nas

idias de Keynes, caracterizado essencialmente pela inflao legislativa40, que caracteriza a

ingovernabilidade sistmica do Estado, apresentada pela cada vez maior incapacidade do

direito positivo estatal em resolver as questes a ele propostas e a multiplicao de leis

casusticas destinadas soluo das crises de governabilidade decorrentes da dinmica da

economia global41.

38 Importa ressaltar que o controle do poder que origina a maturidade constitucional, doravante, o estudo a ser realizado sobre a crise da Constituio decorrer justamente dos levantamentos at aqui expostos, dada a falta de controle do poder pelo direito. 39 FARIA, Jos Eduardo. O direito na economia globalizada. So Paulo: Malheiros, 2000. p. 118, 119. 40 FARIA, Jos Eduardo. O direito na economia globalizada. So Paulo: Malheiros, 2000. p. 122. 41 A crise de governabilidade, especialmente nos pases de economia perifrica como o Brasil, se manifestou na incapacidade do Estado em cumprir como seus deveres institucionais, especialmente a partir das dcadas de 70 e 80, quando se verificaram os dois choques do petrleo (pela elevao internacional do preo do barril), em 1973 e 1979, implicando numa recesso econmica mundial e perda de liquidez para os pases perifricos, bem como o fim do financiamento externo para tais pases aps a moratria do Mxico em 1982, elevando-se as taxas de juros internacionais e, no caso brasileiro, teve-se ainda o agravante do desequilbrio financeiro decorrente do aumento da dvida externa, que levou o pas s portas do Fundo Monetrio Internacional. Cf. VIEIRA, Jos

18

O resultado dessa proliferao legislativa, da positivao da realidade, a prpria

banalizao e desvalorizao do direito positivo, que passa a perder coeso e unidade, se

tornando uma mera folha de papel, de parcos poderes normativos a quem ningum obedece,

seja pela sua contradio intrnseca, seja pelo prprio anacronismo do mesmo em face da

realidade inconstante que visa regular.

O direito, tal qual o Estado, se torna interdependente e at certa medida submisso

influncia global do poder econmico exercido pelas empresas transnacionais e grupos

econmicos, que mais afeta os pases de economias perifricas que aqueles efetivamente

desenvolvidos, em face do modo como o processo de abertura e liberalizao dos mercados

tenha se dado (que no Brasil ocorreu antes mesmo da criao das agncias reguladoras

responsveis pela profissionalizao da atuao do ente pblico no setor).

O Estado, por conseguinte, com a modificao de suas instituies e do prprio

ordenamento jurdico, reordenou suas prioridades e modo de atuao nos setores econmicos,

sejam estes relativos a servios pblicos ou atividades de atuao estritamente privada, se

transformando num gerente regulador da eficincia dos mercados, numa clara inverso de

valores, se considerados os objetivos estatudos no art. 3 da Carta Magna e a caracterstica

desta, que no foi modificada, de propugnar pela existncia de um modelo de Estado

Desenvolvimentista, seja com caractersticas regulatrias ou no.

1.2 O PAPEL DO ESTADO: DE AGENTE TRANSFORMADOR A GERENTE

FISCALIZADOR

Paulo. Antivalor: um estudo da energia eltrica: construda como antimercadoria e reformada pelo mercado nos anos 1990. So Paulo: Paz e terra, 2007. p. 89.

19

A reforma do direito face a nova geopoltica global, conforme se verificou, implicou

tambm numa re-estruturao do Estado, que passou a ser redimensionado para se adequar

nova realidade vigente e que, pela relao de interdependncia mundial que ora caracteriza os

pases capitalistas, no podia ser deixada de lado.

Foram mudanas na orientao poltica legitimadas e implementadas pelos pases

elaboradores do Consenso de Washington, datado de 1989, que requalificou o liberalismo

como modelo de Estado, procurando reduzir suas inconsistncias com elementos sociais

(porm indo de encontro ao modelo de Estado keynesiano, taxado de ineficiente, hipertrofiado

e inoperante), fato este batizado de neoliberalismo e protagonizado pelos governos de

Margareth Tatcher na Gr-Bretanha (1979-1990) e Ronald Reagan nos Estados Unidos da

Amrica (1981-1989)42. A reformulao do Estado e do direito, portanto, implicou tambm

numa nova postura ideolgica frente ao texto constitucional, que apesar da clara tendncia

neoliberalizante das modificaes operadas no mesmo, no chegou a perder seu perfil

desenvolvimentista, por agregar ainda em seu arcabouo normativo o objetivo do

desenvolvimento e tambm da reduo das desigualdades regionais, a serem alcanados por

meio de uma ao planejada, a qual garantiria a racionalizao da interveno estatal na

ordem econmica privada, de modo a promover a justia social, nos termos da nova ordem

econmica instituda (cujas balizas mestras se encontram no Ttulo VII da Constituio).

Porm, aps toda a reformulao das instituies e do prprio ordenamento jurdico,

como definir o conceito de desenvolvimento presente na Carta Magna? Na atual configurao

da Constituio Federal brasileira, verifica-se a referncia a tal termo sendo realizada no

menos que 60 vezes, logo, a definio do conceito se mostra imprescindvel para o avano

42 Cf. VIEIRA, Jos Paulo. Antivalor: um estudo da energia eltrica: construda como antimercadoria e reformada pelo mercado nos anos 1990. So Paulo: Paz e terra, 2007. p.92, 93.

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desta pesquisa, especialmente no tocante sua ntima relao com a busca da reduo das

desigualdades regionais.

A Constituio, a despeito das constantes reformas ideolgicas do seu texto ocorridas ao

longo dos anos, com relao matria em apreo (relativa reduo das desigualdades

regionais e o desenvolvimento) no sofreu qualquer modificao, mostrando-se inclume e

fiel vontade do legislador constituinte originrio, sendo algo realmente merecedor de

aplausos e que facilitar exposio e encadeamento lgico dos argumentos que ora se

iniciam.

A referncia feita ao desenvolvimento, no texto constitucional, localiza-se

prioritariamente no artigo 3 (que trata dos objetivos da Repblica Federativa do Brasil),

sendo denominada na doutrina de clusula transformadora 43 por consubstanciar o ideal

constitucional da mudana dos padres vigentes de excluso econmica, social e cultural.

Atravs do artigo 3 so estabelecidas diretrizes para a interpretao e aplicao de todo

o restante do texto constitucional, que necessariamente haver de se submeter, quando da sua

tentativa de concretizao, de maneira a se harmonizar com o disposto no citado dispositivo44.

A partir do artigo 3, portanto, buscou-se a superao do modelo perifrico, excludente e

concentrador do Estado brasileiro existente at ento, em uma tentativa de mold-lo como

verdadeiro agente transformador e protagonista da realidade vigente.

Os objetivos constitucionais, dispostos logo no incio da Carta Constitucional,

condicionam a interpretao do texto, os quais propugnam por um modelo desenvolvimentista

43 BERCOVICI, Gilberto. Constituio econmica e desenvolvimento. Uma leitura a partir da Constituio de 1988. So Paulo: Malheiros, 2005, p. 35 44 Segundo Bercovici, enquanto instrumento de transformao social, a ideologia constitucional no neutra, poltica e vincula o intrprete, logo, como os princpios constitucionais fundamentais, tais como aqueles inseridos no art. 3, representam a expresso das opes ideolgicas sobre as finalidades sociais e econmicas do Estado, sua realizao obrigatria e vinculativa para os rgos e agentes estatais. Cf. BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades regionais, Estado e Constituio. So Paulo: Max Limonad, 2003. p. 299.

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voltado ao progresso da nao de maneira a no mais reproduzir a situao de excluso

existente. Muito pelo contrrio, visa-se a sua superao.

Tem-se, num primeiro momento, o entendimento do desenvolvimento (disposto no

inciso II) no apenas como um processo, mas tambm como um fim a ser alcanado. Ao se

tratar o desenvolvimento como um processo, visualiza-se no mesmo um carter de

continuidade, de evoluo para se chegar a determinado fim. J o entendimento do

desenvolvimento como um fim (objetivo), se daria mais como instrumento criado com o

intuito de assegurar outros direitos, os quais para serem aplicados haveriam de levar em

considerao o objetivo desenvolvimentista (o que inviabilizaria, por exemplo, a adoo

governamental de polticas pblicas recessivas, por serem contrrias ao norte

desenvolvimentista adotado pela Carta Magna).

Quando a Constituio fala em garantir o desenvolvimento nacional, tem-se a idia j

comentada de um processo em evoluo, que no exclui, todavia, seu outro aspecto

finalstico, condicionador da interpretao dos demais artigos e princpios do texto mximo.

Visualiza-se, neste primeiro momento, sua correlao inicial com o inciso seguinte, que

trata da erradicao da pobreza, marginalizao e da reduo das desigualdades sociais e

regionais. Apesar de ambos terem a mesma conformao de diretrizes45, ou seja, de princpios

programticos, verifica-se a constatao da situao atual de subdesenvolvimento, retratada

no inciso, bem como o ideal de sua superao, da sua colocao nos artigos 3 e 170

(exclusivamente no tocante reduo das desigualdades regionais e sociais), que trata da

Ordem Econmica constitucional.

No se concebe, todavia, que a reduo das desigualdades regionais, objeto especfico

do presente estudo, seja possvel sem a necessria concretizao do disposto no inciso

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anterior, pois apenas atravs do desenvolvimento nacional que ser possvel minorar as

disparidades existentes entre as regies do pas. Quando se busca, portanto, a reduo das

desigualdades sociais e regionais46 (o que se foca no apenas as diferenas entre as pessoas

que o aspecto social - mas tambm entre Estados que o aspecto regional), tem-se uma

clara situao de subdesenvolvimento que necessita ser superada, porm, como faz-lo?

A previso constitucional de desenvolvimento no estabelece um contedo previamente

definido ou garantias de concretizao, logo, os meios a serem usados para sua realizao

podem ser diversos, desde que assegurem sua aplicabilidade e levem em considerao,

tambm, o disposto no artigo 1, que trata dos fundamentos da Repblica, ou seja, os valores

que lhes so mais caros e que, doravante, devem ser protegidos e assegurados.

Como buscar algo, entretanto, que no possui um conceito definido e, alm disso, tem

dplice funo47, de processo e de objetivo?

A discusso acerca do conceito de desenvolvimento, bem como da prpria existncia de

um direito ao desenvolvimento, no algo restrito seara jurdica brasileira, muito pelo

contrrio, seu estudo teve incio no mbito do direito internacional, onde a primeira referncia

45 GRAU, Eros Roberto. A ordem econmica na constituio de 1988. So Paulo: Malheiros, 2003. p. 196; RISTER, Carla Abrantkoski. Direito ao desenvolvimento. Antecedentes, significados e conseqncias. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 246. 46 Outro aspecto da onda reformista levada a cabo nas instituies e na Constituio brasileira, se d no tocante postura da ideologia neoliberal quanto ao objetivo da Carta Magna de reduo das desigualdades regionais e sociais, pois para a doutrina difundida por Milton Friedman, as polticas que buscam realizar a justia social distributiva so sempre encaradas como um atentado contra a liberdade individual. Ou seja, partindo deste tipo de premissa, uma reforma neoliberal na Carta constitucional representaria um atentado aos seus prprios valores intrnsecos e, portanto, inconstitucional. Cf. NUNES, Antnio Jos Avels. Neoliberalismo, capitalismo e democracia. p. 34. In: Boletim de cincias econmicas XLV, Coimbra, v. 46, 2003. p. 17-74. No se procura, todavia, questionar os valores que ensejaram as reformas da Carta Magna, porm, o que se mostra temerrio esse processo de transmigrao sem critrios de uma espcie de direito para alm do seu pas de origem, tal qual ocorreu com a introduo do modelo de agncias reguladoras no Brasil, tendo em vista a ausncia de semelhana de condies e de desenvolvimento social verificadas no pas de origem, qual seja, os EUA. Essa transmigrao, ou propagao do direito, de um ordenamento para outro, pode ocorrer, segundo Figueiredo, citando Santi Romano, por conquista ou ento por contagiosidade, que o que parece ter se verificado no Brasil. Neste sentido, vide: FIGUEIREDO, Marcelo. As agncias reguladoras. O Estado Democrtico de Direito no Brasil e sua atividade normativa. So Paulo: Malheiros, 2005. p. 12. 47 Pois o legislador poderia ter utilizado, em substituio ao termo desenvolvimento a acepo desenvolvido, que retiraria o carter de evoluo e de continuidade ora comentado e se firmaria, apenas, como objetivo.

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a expresso direito ao desenvolvimento foi cunhada por Keba MBaye ainda em 197248, no

Instituto Internacional de Direitos do Homem, onde foi tratado como um direito inerente

pessoa humana, da qual os Estados se mostrariam os principais garantidores.

A Organizao das Naes Unidas - ONU, por conseguinte, consagrou o direito ao

desenvolvimento como um direito humano49, tendo posteriormente publicado Declarao

especfica sobre o tema, estabelecendo seu contedo, sujeitos e fundamentao jurdica.

no plano internacional, portanto, que se iniciam os debates acerca do referido direito,

cuja internalizao, no Brasil, h de ser observada tendo em vista os efeitos da globalizao,

especialmente sob o aspecto econmico e a prpria realidade histrica nacional.

J a anlise constitucional da temtica do desenvolvimento, tendo em considerao a

experincia internacional e a necessidade de observncia dos documentos exarados no mbito

do direito internacional pblico sobre tal questo, h de levar em conta no apenas a sua

precedncia em relao busca da reduo das desigualdades regionais (entre Estados), como

tambm o conhecimento e aplicao de instrumentos postos disposio pela prpria Carta

Magna, cujo destaque pode ser feito prtica do planejamento.

O Brasil possui uma Constituio de carter nitidamente desenvolvimentista, que

adotou o capitalismo como sistema econmico50, tutelando a proteo do prprio mercado

interno de forma expressa (art. 219 da CF) e cuja Constituio Econmica51 estabelece

princpios claros sobre a defesa do consumidor e da prpria concorrncia, que no podem ser

concretizados sem a devida influncia estatal.

48 DELGADO, Ana Paula Teixeira. O direito ao desenvolvimento na perspectiva da globalizao: paradoxos e desafios. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 85. 49 Resoluo n 4, de 04 de maro de 1979 da sua Assemblia Geral. Posteriormente, verifica-se ainda a Resoluo 41/128, art. 1, da Assemblia Geral, na data de 04 de dezembro de 1986 e a Declarao da Conferncia Mundial de Direitos Humanos, realizada em Viena, em 12 de julho de 1993, que reafirma a existncia do direito ao desenvolvimento em seu art. 10. Cf. BERCOVICI, Gilberto. Desigualdades regionais, Estado e Constituio. So Paulo: Max Limonad. 2003. p. 40. 50 TAVARES, Andr Ramos. Direito constitucional econmico. 2. So Paulo: Mtodo, 2006. p. 43, 45. 51 TAVARES, Andr Ramos. Direito constitucional econmico. 2. So Paulo: Mtodo, 2006. p. 77

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A atuao do Estado como agente protagonista da defesa dos objetivos nacionais,

consubstanciados no artigo 3, tendo como fundamento jurdico mximo as disposies

contidas no artigo 1, leva inevitvel concluso da adoo de um modelo de ao voltado

para a influncia direta do Estado na ordem econmica, destinado a garantir no apenas a

preservao da soberania nacional, como tambm a dignidade da pessoa humana e demais

fundamentos jurdicos.

Verifica-se ainda o papel do Estado como o de um agente protagonista do

desenvolvimento econmico nacional, cujo conceito, neste momento, no pode ser

confundido com o de crescimento52, tendo sido destinado, portanto, a atuar de forma

propositiva.

O que se verificou, conforme tratado previamente, ao longo dos quase vinte anos de

promulgao da Carta Magna, foi a tentativa de modificao ideolgica do perfil estatal, o

qual perdeu o seu carter inicial de agente protagonista transformador da realidade excludente

e concentradora existente, para o de um mero gerente das transaes econmicas realizadas

no mercado interno.

A dcada de 90 se mostrou como um perodo de intensas reformas institucionais e

jurdicas para o Brasil53, pois nesse perodo se adotou claramente a tendncia por um novo

modelo de organizao estatal, na esteira da geopoltica internacional j reinante, de uma

estrutura mais enxuta e subsidiria do Poder Pblico, onde atividades antes monopolizadas

foram flexibilizadas e se criaram, no processo de mudana de personalidade (de agente para

gerente), as agncias reguladoras.

52 RISTER, Carla Abrantkoski. Direito ao desenvolvimento. Antecedentes, significados e conseqncias. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 36 53 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito regulatrio. So Paulo: Renovar, 2003. p. 23, 24; BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 17 ed. So Paulo: Malheiros, 2005. p. 659, 660.

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Caracterizando-se agora como um Estado subsidirio54, de atuao exclusivamente

normativa e reguladora das atividades econmicas (art. 174 da CF), convm, neste momento,

procurar estabelecer um elo entre tais prerrogativas e a forma como estas iro garantir a

concretizao dos objetivos nacionais, sem descurar dos fundamentos jurdico-constitucionais

que embasam a Repblica e que se encontram, ao menos normativamente, intocados pela

nsia reformista do legislador constituinte derivado.

O prprio artigo 174 cumpre tal tarefa, ao prever as funes de fiscalizao, incentivo

e planejamento, que realam o papel gerenciador do Estado na medida em que prevem uma

atuao indireta e indicativa (para o planejamento), nas atividades econmicas em sentido

estrito exercidas pelos agentes privados.

Tratam-se de instrumentos destinados a garantir o desenvolvimento nacional, sendo,

conseqentemente, potenciais redutores das desigualdades regionais, historicamente

consagradas pela disparidade de industrializao entre as regies sudeste e nordeste55.

O modelo de industrializao adotado pelo Brasil, bem como o processo de

concentrao de riquezas da decorrente, especialmente a partir do ps-guerra, quando a renda

per capita paulista j mostrava 4,7 vezes superior a da regio nordeste56, s veio a se agravar

com a abertura do mercado interno na dcada de 90, onde os investimentos se mostraram

claramente direcionados as regies onde j havia um relevante mercado consumidor e com

alto grau de modernizao.

Mudou-se, portanto, o papel do Estado, porm este no se mostrou capaz de agir

conforme suas novas prerrogativas, especialmente no tocante ao planejamento de suas

polticas pblicas, engessadas e reduzidas ao disposto nas previses oramentrias, ou seja, o

54 TAVARES, Andr Ramos. Direito constitucional econmico. 2. So Paulo: Mtodo, 2006. p. 282. 55 RISTER, Carla Abrantkoski. Direito ao desenvolvimento. Antecedentes, significados e conseqncias. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 180, 181, 182. 56 RISTER, Carla Abrantkoski. Direito ao desenvolvimento. Antecedentes, significados e conseqncias. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 180.

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pas continuou atuando de forma meramente reativa nova realidade que se implantava, onde

os novos protagonistas e investidores so as empresas multinacionais, principais detentoras do

capital necessrio para a realizao de investimentos de vulto.

O impacto da globalizao nos mercados e dos novos atores internacionais,

especialmente em pases perifricos como o Brasil, onde o subdesenvolvimento a regra, foi

uma das razes do comeo da doutrina do direito ao desenvolvimento ter ocorrido no plano

internacional, em face da percepo pela ONU que se iniciava um paralelismo entre as noes

de crescimento e desenvolvimento, com uma clara priorizao da elevao do princpio da

livre iniciativa (consubstanciado num liberalismo econmico exacerbado, regulado

exclusivamente pela lex mercatoria), nos mercados nacionais, at as ltimas conseqncias57.

Com o processo de globalizao os Estados Nacionais tiveram de reformular suas

estruturas, de modo a se adequar s novas injunes polticas e econmicas advindas de

organismos multilaterais (como o Fundo Monetrio Internacional - FMI) e corporaes

transnacionais, que demandam a existncia de um Estado mnimo, perifrico, cujos reflexos

se verificam no fenecimento da soberania e culminam por afast-lo das suas atribuies

originrias, de servo da sociedade e agente poltico transformador, para gerente da otimizao

das transaes de mercado 58 (justificada no discurso dos idelogos da Escola de Chicago pela

busca da eficincia e reduo dos custos de transao59).

57 Cf. DELGADO, Ana Paula Teixeira. O direito ao desenvolvimento na perspectiva da globalizao: paradoxos e desafios. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 02. 58 Cf. DELGADO, Ana Paula Teixeira. O direito ao desenvolvimento na perspectiva da globalizao: paradoxos e desafios. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 41. 59 A maximizao da eficincia se constitui em um dos maiores motores da promoo de polticas econmicas concentracionistas que se tem notcia, isto porque atravs da concentrao de poder numa nica empresa ou numa quantidade reduzida de agentes poder-se-ia diminuir os custos de transao no interior do mercado e, conseqentemente, aumentar a margem de lucro das empresas que seriam refletidas em preos menores aos consumidores. O critrio da eficincia, portanto, visa em ltima instncia o bem-estar do consumidor refletido em produtos melhores e de menor preo, ainda que ao custo da eliminao da concorrncia. Os custos de transao, nesse sentido, so entendidos como a despesa realizada pela empresa para negociar seus produtos e servios no mercado e sua reduo implicaria exatamente na no utilizao do mercado, ou seja, algo que antes necessitava ser negociado, gerando despesas com contratos, impostos, informaes, passaria a ser feito no interior de uma nica companhia. Cf. FORGIONI, Paula A. Os fundamentos do antitruste. 2 ed. So Paulo:

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Diante desta nova configurao da relao entre o poder poltico com o econmico,

onde este ltimo passa a assumir uma posio de prevalncia, a afronta Constituio

brasileira torna-se patente, pois apresentam-se poderosas foras coligadas numa conspirao

poltica contra o regime constitucional de 198860, afirmao esta que, longe de caracterizar

parania ou rano ideolgico, retrata os novos fatores reais de poder 61 em ao no pas, que j

alteraram consideravelmente a configurao estatal original.

A Constituio Federal de 1988 tem um carter nitidamente social que se busca

mitigar com as reformas do seu texto, fato este gerador de uma crise no prprio direito

constitucional (denominada de crise constituinte), que se mostra incapaz de jurisdicizar o

Estado social, ou seja, de concretizar as promessas transformadoras vislumbradas na Carta

Magna, a qual passa a se configurar, verdadeiramente, numa folha de papel de carter

meramente simblico.62

A crise constituinte relaciona-se a uma crise da prpria governabilidade63, decorrente

da incapacidade do Poder Executivo em cumprir com suas metas, o que, em ltima instncia,

legitimou a subsidiarizao do papel do Estado (j comentada), de forma a garantir um

mnimo de governabilidade junto ao que seria possvel executar pelo Poder Pblico.

Na seqncia de tais acontecimentos teve-se o advento, j citado, do chamado Estado

Regulador, caracterizado pela presena de autarquias especiais destinadas a prover

profissionalismo, imparcialidade e celeridade na regulao e normatizao das atividades

econmicas, retirando o papel do Estado como agente interventor direto e passando a prever

Editora Revista dos Tribunais, 2005. P. 424. No mesmo sentido: SALOMO FILHO, Calixto. Direito concorrencial as condutas. So Paulo: Malheiros, 2003. p. 29. 60 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 17 ed. So Paulo: Malheiros, 2005. p. 371. 61 Cf. HESSE, Konrad. A fora normativa da constituio. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991. p. 9. 62 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 17 ed. So Paulo: Malheiros, 2005. p. 373. 63 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 17 ed. So Paulo: Malheiros, 2005. p.. 390: A ingovernabilidade retrata o perecimento da ao executiva, a agonia final do exerccio do poder, o desenlace de uma doena de legalidade, que torna o Executivo, de fato, demissionrio de responsabilidades na administrao da crise.

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sua influncia apenas de modo indireto, por meio da fiscalizao, induo (incentivo) e

planejamento de polticas pblicas indicativas sobre o setor privado.

Apesar do novo conceito (regulador), da reforma das instituies e da prpria

Constituio, esta ainda no perdeu, juridicamente, seu carter social e desenvolvimentista (a

despeito da polissemia de valores discrepantes existentes, de carter liberal e socialista

presentes no texto), tendo ingressado na teoria da terceira gerao64 dos direitos fundamentais

com a clara e ainda expressa presena dos chamados direitos de fraternidade (ou de

solidariedade), consubstanciados no direito ao desenvolvimento, paz, ao meio ambiente, de

propriedade sobre o patrimnio comum da humanidade e de comunicao.65

Ao que interessa, no direito ao desenvolvimento, ntimo correlato da atividade de

planejamento estatuda no art. 174, aquele se caracterizaria pela mxima expanso das

oportunidades individuais dos cidados e dos prprios Estados, configurados na otimizao de

suas capacidades inatas e pelo maior estmulo possvel atravs de uma educao adequada,

alimentao saudvel, emprego digno e participao poltica, no tocante aos cidados e de

aproveitamento sustentvel dos recursos naturais em relao aos Estado