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132
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE CENTRO DE CIÊNCIAS MÉDICAS FACULDADE DE FARMÁCIA PÓS-GRADUAÇÃO EM ADMINISTRAÇÃO E GESTÃO DA ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA ESTERLITA BOUÇAS IMPLICAÇÕES DO PROCESSO DE ACREDITAÇÃO EM SERVIÇOS DE FARMÁCIA DE HOSPITAIS PRIVADOS SOB A PERSPECTIVA DA QUALIDADE DA ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA: UM ESTUDO DE CASO. Niterói 2014

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IMPLICAES DO PROCESSO DE ACREDITAO EM SERVIOS DE FARMCIA

DE HOSPITAIS PRIVADOS SOB A PERSPECTIVA DA QUALIDADE DA ASSISTNCIA FARMACUTICA: UM ESTUDO DE CASO.

NNiitteerrii

22001144

2

ESTERLITA BOUAS IMPLICAES DO PROCESSO DE ACREDITAO EM SERVIOS DE FARMCIA DE HOSPITAIS

PRIVADOS SOB A PERSPECTIVA DA QUALIDADE DA ASSISTNCIA FARMACUTICA: UM ESTUDO DE CASO.

Dissertao apresentada ao Curso de Ps-graduao em Administrao e Gesto da Assistncia Farmacutica da Universidade Federal Fluminense como requisito parcial para obteno do grau de Mestre. rea de concentrao: Gesto de Servios Farmacuticos.

Orientadora: Profa. Dra. DBORA OMENA FUTURO Coorientadora: Profa. Dra. SELMA RODRIGUES CASTILHO

Niteri 2014

3

4

Dedico este trabalho a todos os colegas farmacuticos, que fazem do seu dia-a-dia, um novo comeo para esta profisso.

5

AGRADECIMENTOS

A Deus, pela graa da vida e f que me conduz todos os dias.

Aos meus pais, pela educao primorosa, que me deu as bases morais fundamentais para me tornar o que sou hoje. Sem seu amor, proteo e incentivo eu no teria chegado a lugar

algum.

Ao meu marido, Leonardo Dias Pinto, pelo carinho, pacincia e compreenso em tantas horas de ausncia, ansiedade e nervosismo, sempre tentando me animar com suas piadas e

frases de efeito.

Prof.a Dr.a Dbora Omena Futuro, minha orientadora, por me ensinar a manter a medida certa do equilbrio nos momentos mais difceis, sempre com muito carinho. Sua orientao

me conduziu a um novo caminho profissional, que certamente ser muito promissor.

Prof.a Dr.a Selma Rodrigues de Castilho, minha coorientadora, por seu estmulo, ateno e dedicao, que tanto contriburam para minha formao.

Aos profissionais que prontamente aceitaram participar do estudo, abrindo mo de

preciosas horas de trabalho.

A Jos Carlos Magalhes e Charles Souleyman Al Odeh, pela oportunidade profissional que me possibilitou a conduo desta pesquisa.

6

O papel do Farmacutico no mundo to nobre quo vital. O Farmacutico representa o rgo de ligao entre a medicina e a humanidade sofredora. o atento guardio do arsenal de armas com que o Mdico d combate s doenas. quem atende s requisies a qualquer hora do dia ou da noite. O lema do Farmacutico o mesmo do soldado: servir. Um serve ptria; outro serve humanidade, sem nenhuma discriminao de cor ou raa. O Farmacutico um verdadeiro cidado do mundo. Porque por maiores que sejam a vaidade e o orgulho dos homens, a doena os abate - e ento que o Farmacutico os v. O orgulho humano pode enganar todas as criaturas: no engana ao Farmacutico. O Farmacutico sorri filosoficamente no fundo do seu laboratrio, ao aviar uma receita, porque diante das drogas que manipula no h distino nenhuma entre o fgado de um Rothschild e o do pobre negro da roa que vem comprar 50 centavos de man e sene.

Monteiro Lobato

7

RESUMO

A discusso a respeito da avaliao da qualidade em sade tornou-se um fenmeno universal, cuja essncia garantir os mais elevados padres assistenciais, a fim de obter bons resultados em um mercado cada vez mais competitivo. Apesar dos avanos no setor, falhas continuam acontecendo, especialmente em relao m utilizao dos medicamentos, cujo gerenciamento inadequado constitui um autntico problema de sade pblica. Este estudo analisa o impacto do processo de acreditao na assistncia farmacutica hospitalar, sob a perspectiva de farmacuticos e seus clientes internos. Para isso, foi realizado um estudo de casos mltiplos em cinco hospitais privados do Estado do Rio de Janeiro, pertencentes a uma grande operadora de sade e acreditados pela ONA at Abril de 2012. Partindo-se da aplicao de dois instrumentos investigativos, caracterizaram-se as unidades hospitalares e seus servios de farmcia, buscando identificar as mudanas promovidas pela acreditao nos eixos estrutura, processo e resultados. Paralelamente, aplicou-se a tcnica de grupo focal para compreender as implicaes do processo de acreditao na assistncia farmacutica hospitalar, a partir das percepes dos sujeitos que vivenciaram o fenmeno. Constatou-se que a acreditao resultou em investimentos de infraestrutura, recursos tecnolgicos e humanos. Houve incremento na execuo de atividades desejveis para um servio de farmcia hospitalar, com destaque para a farmcia clnica, que resultaram em adequao de processos e melhora geral de desempenho. A diferena observada se mostrou significativa (p=0,0088) para um nvel de confiana de 95%. Observou-se que os servios farmacuticos hospitalares esto em expanso na amostra avaliada, criando um novo modelo de prtica profissional, resultante de mudanas estruturais e processuais, que contribuem para uma transformao lenta, porm contnua da realidade da farmcia hospitalar. Na perspectiva dos clientes, houve discreta melhora na eficincia, qualidade e a segurana do servio prestado. No entanto, a qualidade do atendimento global oferecido ao paciente permanece aqum do desejado, o que contribui para uma viso frgil dos processos implantados em decorrncia da acreditao. Apesar do atendimento parcial das expectativas dos clientes, o impacto geral no desempenho da farmcia hospitalar foi positivo. Nesse contexto, as diretrizes da acreditao em servios de sade podem apontar o caminho para o aprimoramento da farmcia hospitalar, ao exigir o cumprimento de padres necessrios a uma assistncia farmacutica de qualidade, pautada na segurana e otimizao dos resultados clnicos, econmicos e sociais. Palavras-chave: Avaliao da qualidade. Acreditao hospitalar. Assistncia farmacutica. Farmcia hospitalar.

8

ABSTRACT

The discussion of quality assessment in health care has become a universal phenomenon, whose essence is to ensure the highest standards of patient care in order to obtain good results in an increasingly competitive market. Despite the sector's development, failures are still happening. Among the most serious events are medication errors, as a result of inappropriate drug management, becoming a real public health problem. This study analyzes the impact of accreditation in hospital pharmacies from the perspective of pharmacists and their stakeholders. For this, a case study was conducted in five private hospitals in the city of Rio de Janeiro, belonging to a large health carrier and accredited by ONA until April 2012. Two questionnaires were applied to the personal to characterize the hospitals and their pharmacy services trying to identify the changes promoted by the Accreditation in structure, processes and outcomes. In parallel, focus group was conducted to understand the implications of the accreditation in the hospital pharmacies from the perceptions of the subjects who experienced the phenomenon. The questionnaires identified changes resulting from the pharmacys accreditation, such as investments on structure, technology and personnel. It also provided an increase in desirable activities for hospital pharmacy, with emphasis on clinical pharmacy, which resulted in processes' adaptations and overall performance improvement. The difference was significant (p = 0.0088) for a confidence level of 95%. It was observed that the hospital pharmacys services are expanding in the sample studied. This creates a new model of professional practice that contributes to a slow but continuous transformation in the hospital pharmacy's reality. From the perspective of stakeholders there was a slight improvement in efficiency, quality and safety of services provided by hospital pharmacy. However, the overall quality of care provided to the patient remains below the desired level which contributes to a weak view of processes deployed as a result of accreditation. Despite the partial fulfillment of customer expectations, the overall performance was positive. In this context it is concluded that the accreditation's guidelines may point the way for the development of hospital pharmacies, since they require compliance with standards for the quality of pharmaceutical care, based on security and optimization of clinical, economic and social outcomes. Key Words: Quality evaluation. Hospital accreditation. Pharmaceutical Assistance. Hospital pharmacy.

9

SUMRIO

1 INTRODUO 15

1.1 JUSTIFICATIVA 17

1.2 OBJETIVOS 18

1.2.1 OBJETIVOS GERAIS 18

1.2.2 OBJETIVOS ESPECFICOS 18

2 REFERENCIAL TERICO 20

2.1 O HOSPITAL: CONCEITOS E CLASSIFICAES 20

2.2 QUALIDADE EM SADE 23

2.2.1 ANTECEDENTES HISTRICOS 24

2.2.2 AVALIAO DA QUALIDADE EM SERVIOS DE SADE 28

2.2.2.1 Acreditao hospitalar 33

2.2.3 ASSISTNCIA FARMACUTICA HOSPITALAR NO CONTEXTO DA ACREDITAO E DA CULTURA DA SEGURANA

40

2.3 GRUPO FOCAL 54

3 METODOLOGIA 57

3.1 DETERMINAO DA POPULAO DE ESTUDO 57

3.2 SUJEITOS DA PESQUISA 57

3.3 COLETA DE DADOS 58

3.3.1 CARACTERIZAO DOS HOSPITAIS E DOS SERVIOS DE FARMCIA 58

3.3.2 GRUPO FOCAL 62

3.4 VALIDAO DOS INSTRUMENTOS INVESTIGATIVOS 64

3.5 ASPECTOS TICOS 66

3.6 TRATAMENTO DE DADOS 67

4 RESULTADO E DISCUSSO 68

4.1 CARACTERIZAO DOS SUJEITOS DA PESQUISA 68

4.2 CARACTERIZAO DOS HOSPITAIS 69

4.3 CARACTERIZAO DA FARMCIA HOSPITALAR 71

4.3.1 ORGANOGRAMA 71

4.3.2. ESTRUTURA 74

4.3.3 ATIVIDADES DESENVOLVIDAS PELA FARMCIA HOSPITALAR 76

4.3.3.1 Gerenciamento 77

4.3.3.2 Participao em comisses institucionais 79

4.3.3.3 Logstica 81

4.3.3.4 Distribuio 82

10

4.3.3.5 Fracionamento e manipulao 83

4.3.3.6 Farmcia clnica 84

4.3.3.7 Informao 87

4.3.3.8 Ensino e pesquisa 88

4.3.3.9 Inovaes tecnolgicas associadas dispensao 88

4.4 PERCEPO DO IMPACTO DA ACREDITAO 90

4.4.1 ACREDITAO COMO FONTE DE MUDANAS NA ASSISTNCIA FARMACUTICA 92

4.4.2 ASPECTOS FACILITADORES PARA ACREDITAO NA FH 94

4.4.3 OBSTCULOS PARA ACREDITAO NA FARMCIA HOSPITALAR 95

4.4.4 IMPACTOS DA ACREDITAO NA ASSISTNCIA FARMACUTICA 99

4.4.5 CONTRIBUIES DA ACREDITAO PARA ASSISTNCIA FARMACUTICA 102

5 CONCLUSO 106

6 REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS 110

7 APNDICES 119

7.1 QUESTIONRIO DE PESQUISA - CARACTERIZAO DO HOSPITAL 119

7.2 QUESTIONRIO DE PESQUISA - CARACTERIZAO DA FARMCIA HOSPITALAR

120

7.3 AUTORIZAO PARA REALIZAO DO PROJETO DE PESQUISA 123

7.4 TERMO DE AUTORIZAO PARA REALIZAO DO PROJETO DE PESQUISA

124

7.5 TERMO DE TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO 125

7.6 TERMO DE COMPROMISSO GRUPAL 126

7.7 ATIVIDADES DESENVOLVIDAS PELO SERVIO DE FARMCIA EM FUNO DA UNIDADE HOSPITALAR

127

7.8 IMPACTO DA ACREDITAO SOBRE O NMERO DE ATIVIDADES DESENVOLVIDAS PELAS FARMCIAS HOSPITALARES

129

7.9 IMPACTO DA ACREDITAO NA SEGURANA E EFICINCIA DAS ATIVIDADES DESENVOLVIDAS PELAS FARMCIAS HOSPITALARES

131

11

LISTA DE ILUSTRAES

Figura 1 Ciclo da Assistncia Farmacutica 41

Figura 2 Evoluo do foco da gesto na farmcia hospitalar 43

Grfico1 Tipos de funes exercidas pelos profissionais atuantes nas farmcias

hospitalares

72

Grfico 2 Tipos de atividades de gerenciamento desempenhadas pelas farmcias

hospitalares

78

Grfico 3 Participao do farmacutico em comisses institucionais 79

Grfico 4 Tipos de atividades clnicas desempenhadas pelas farmcias hospitalares 85

12

LISTA DE QUADROS

Quadro 1 Classificao das organizaes hospitalares 22

Quadro 2 Caractersticas, princpios orientadores e tipo de certificaes adotado

pela ONA

38

Quadro 3 Componentes essenciais para o desenvolvimento das atividades da FH

brasileira

44

Quadro 4 Diretrizes para a FH brasileira segundo MS 47

Quadro 5 Requisitos do padro para acreditao na FH 54

Quadro 6 Publicaes empregadas como referencial terico para elaborao dos

questionrios de pesquisa

59

Quadro 7 Objetivo e abordagem de questionrio de pesquisa para caracterizao

da unidade hospitalar

60

Quadro 8 Objetivo e abordagem das sees temticas que compem

questionrio de pesquisa para caracterizao da FH

61

Quadro 9 Roteiro estruturado com perguntas norteadoras do GF 63

Quadro 10 Codificao dos sujeitos convidados a participar da pesquisa conforme

cargo institucional

68

13

LISTA DE TABELAS

Tabela 1 Dados para caracterizao dos hospitais submetidos ao pr-teste 65

Tabela 2 Caracterizao dos sujeitos participantes da pesquisa 69

Tabela 3 Dados de caracterizao das unidades hospitalares 70

Tabela 4 Caracterizao das unidades hospitalares quanto natureza da

assistncia, porte, nvel de ateno, corpo clnico, sistema de edificao e

tipo de certificao

70

Tabela 5 Relao farmacutico/leito 73

Tabela 6 Caracterizao da estrutura fsica das farmcias Hospitalares 74

Tabela 7 Distribuio das farmcias satlites nos setores Hospitalares 76

Tabela 8 Nmero de atividades desenvolvidas pela farmcia hospitalar em funo

da acreditao

77

Tabela 9 Adoo de inovaes tecnolgicas pelos servios de farmcia em funo

da acreditao

89

Tabela 10 Tipo de impacto percebido pelos servios de farmcia na adoo de

inovaes tecnolgicas aps a acreditao

91

14

LISTA DE SIGLAS

AF Assistncia Farmacutica

ANVISA Agncia Nacional de Vigilncia Sanitria

ASHP American Society of Health-System Pharmacists

BVS Biblioteca Virtual em Sade

CAC Colgio Americano de Cirurgies

CCIH Comisso de Infeco Hospitalar

DST Doena Sexualmente Transmissvel

EUA Estados Unidos da Amrica

FH Farmcia Hospitalar

GF Grupo Focal

ISQua International Society for Quality in Health Care

JCAH Joint Commission on Accreditation of Hospitals

JCAHO Joint Commission on Accreditation of Healthcare Organization

JCI Joint Commission International

MS Ministrio da Sade

OMS Organizao Mundial de Sade

ONA Organizao Nacional de Acreditao

OPAS Organizao Panamericana de Sade

OPME rteses, Prteses e Materiais Especiais

PNAF Poltica Nacional de Assistncia Farmacutica

PNM Poltica Nacional de Medicamentos

POP Procedimento Operacional Padro

RDC Resoluo da Diretoria Colegiada

SBRAFH Sociedade Brasileira de Farmcia Hospitalar

SIDA Sndrome da Imunodeficincia Adquirida

SIM Servio de Informaes de Medicamentos

SUS Sistema nico de Sade

TI Tecnologia da Informao

15

1 INTRODUO

O sculo XX, palco de guerras e profundas transformaes nas conformaes sociais,

trouxe consigo a valorizao, cada vez maior, do conceito de qualidade nas reas de

produo e servios, fruto da necessidade de controle, escassez de recursos e reorganizao

das Instituies. Esse quadro foi ampliado e reforado pelo recente cenrio de globalizao,

caracterizado pela forte competitividade do mercado, crescentes custos dos servios,

difuso do conhecimento tcnico-cientfico e o contnuo incremento tecnolgico (MANZO,

2009). A sociedade se mostra cada vez mais consciente e exigente em relao aos seus

direitos, permanecendo atenta s constantes mudanas de mercado. Dessa forma, os

sistemas de gesto organizacional com foco na qualidade tornaram-se expressamente

utilizados, almejando potencial competitivo e xito institucional (MANZO, 2009).

Acompanhando as transformaes do mercado, o setor hospitalar, objeto deste

estudo, vem passando por diversas mudanas, inevitveis e necessrias sua sobrevivncia,

visando principalmente melhoria da qualidade da assistncia e o controle dos custos

(RODRIGUES, 2004). As instituies hospitalares tornaram-se mais complexas, havendo

maior necessidade pela busca por inovaes em produtos, tecnologias e servios, que

resultaram em novas formas de organizao e reestruturaes que garantissem a

permanncia em um mercado cada vez mais competitivo e caro (MATOS et al., 2006). Diante

disso, a discusso a respeito da qualidade em sade tornou-se um fenmeno universal,

deixando o campo conceitual, para se tornar uma realidade, cuja essncia a garantia da

sobrevivncia das empresas (RODRIGUES, 2004; MATOS et al., 2006). A qualidade, antes

considerada desejvel, passa a ser um atributo indispensvel para obteno de resultados

satisfatrios em servios de sade, aparecendo como elemento diferenciador no

atendimento das expectativas dos clientes (RODRIGUES, 2004).

O hospital, pea chave no sistema de ateno sade brasileira, concentra a maior

parte dos recursos para a prestao dos servios populao, com cerca de 20 milhes de

internaes ao ano, a uma taxa de 115 admisses para cada 1000 habitantes (LA FORGIA e

COUTTOLENC, 2008). Em Dezembro de 2013, o Brasil contava com uma rede de 6.799

instituies hospitalares, das quais 65,9% eram privadas, concentrando aproximadamente

70% dos leitos disponveis para internao segundo dados do DATASUS/MS (BRASIL, 2013).

16

No Brasil, os gastos hospitalares representam 3,5% de seu produto interno bruto e

correspondem ao maior componente dos gastos em sade no pas, representando 67% do

total (LA FORGIA e COUTTOLENC, 2008). Contudo, o setor hospitalar brasileiro ainda est

abaixo do padro razovel de qualidade e apresenta deficincias em termos de

produtividade, mantendo aproximadamente 70% das instalaes privadas dependentes do

financiamento pblico (LA FORGIA e COUTTOLENC, 2008). Por isso, a conteno de custos e

a manuteno da qualidade da ateno e segurana do paciente transformaram-se nos

maiores desafios dos gestores de servios de sade e formuladores das polticas pblicas

brasileiras (MONTGOMERY e SCHNELLER, 2007).

Este cenrio exige uma profunda reestruturao dos servios, de maneira que sejam

organizados, adequados, produtivos e seguros, atravs do aprimoramento da gesto

hospitalar e da disseminao dos conceitos e mtodos de avaliao da qualidade, para

alcance da eficincia e dos mais elevados padres na prestao de servios de sade

(RODRIGUES, 2004). nesta perspectiva que surge a acreditao hospitalar, uma

metodologia de avaliao, desenvolvida para apreciar a qualidade da assistncia oferecida

em todos os servios de um hospital. A solicitao da acreditao por um servio de sade

um ato voluntrio e espontneo, em que se pretende obter a condio de acreditado, a

partir da averiguao de padres de referncia desejveis e previamente aceitos, elaborados

por peritos no assunto e certificados por instituies acreditadoras credenciadas

(RODRIGUES, 2004). Ao identificar as oportunidades de melhorias, a acreditao pode

contribuir para uma melhor utilizao dos recursos e prestao de servios de sade pelos

hospitais, na medida em que apoia e promove mudanas comportamentais, mobilizao

gerencial, inovaes estruturais e tecnolgicas.

Nesse contexto, as diretrizes da acreditao para os servios de sade podem

apontar o caminho para o aprimoramento das farmcias hospitalares brasileiras, na medida

em que exigem o cumprimento da legislao e padres necessrios efetiva promoo da

assistncia farmacutica (AF), em um cenrio onde grande parte dos servios ainda

apresenta baixo desempenho, quando consideradas as estruturas existentes, a qualidade

dos processos e os resultados das atividades, dado que seu desenvolvimento ocorreu de

forma pontual e no planejada (MESSEDER, 2005).

Sendo assim, a proposio desta pesquisa fundamenta-se na hiptese de que a

acreditao proporciona a melhoria da eficincia, qualidade e segurana no servio prestado

17

pela farmcia hospitalar (FH). Partindo-se deste pressuposto, buscou-se responder s

seguintes questes:

a) Que mudanas a acreditao promove na estrutura, processos de trabalho e

resultados conquistados pela FH?

b) Quais as percepes dos farmacuticos em relao s mudanas na AF provocadas pela acreditao?

c) Quais as percepes das partes interessadas - que se relacionam com a FH e utilizam os seus servios - em relao s mudanas na AF provocadas pela acreditao?

A fim de facilitar o desenvolvimento do tema proposto, a redao da presente

dissertao estruturou-se em referencial terico, metodologia, resultados e concluso,

No referencial terico so apresentados conceitos relacionados qualidade e

avaliao de servios de sade, resgatando tpicos que confluem sobre a acreditao, a FH,

a segurana do paciente e a tcnica do grupo focal (GF), para melhor embasamento do

estudo.

A metodologia detalha o desenho e os procedimentos adotados no presente

trabalho, ressaltando pontos considerados cruciais para o mtodo, como: escolha da

amostra e sujeitos da pesquisa, construo dos instrumentos para levantamento de dados, o

GF e finalmente as questes ticas envolvidas na produo deste estudo.

Nos resultados, so apresentados e discutidos os achados obtidos a partir dos

questionrios, enunciando os de maior relevncia no que tange a estrutura e os processos

de trabalho. Alm disso, so descritas as percepes e vivencias dos sujeitos, extradas a

partir do desenvolvimento do GF, com nfase na discusso das mudanas e impactos

provocados pela acreditao na FH.

Finalmente, so apresentadas as concluses da pesquisa, apontando as limitaes e

contribuies do estudo em questo.

1.1 JUSTIFICATIVA

Este estudo fundamenta-se na crescente demanda por eficincia e profissionalizao

nas aes globais em sade, como forma de garantir a qualidade e segurana do servio

prestado ao paciente hospitalizado.

18

A FH, como parte integrante dos servios de sade, deve contribuir para a obteno

de tais resultados, na medida em que permeia de forma crucial as atividades finalsticas do

cuidado e seu produto base - o medicamento - interfere diretamente nos custos da

assistncia (OSRIO-DE-CASTRO; CASTILHO, 2004). Neste sentido, a FH deve estruturar-se

para garantir o uso seguro e racional de medicamentos em prol da qualidade da AF e a

acreditao, como importante ferramenta de avaliao, pode contribuir com esses alcances.

Em consulta biblioteca virtual em sade (BVS)1, foram identificados alguns

trabalhos relacionados aos resultados dos programas internacionais de acreditao na FH,

realizados em outros pases (RICH, 2010; YOUNG, 2004; KOWIATEK et al., 2002; TRAVERSO

et al., 2002; HOFFMANN, 1988). No Brasil, contudo, localizou-se apenas uma iniciativa, cuja

meta foi sistematizar e propor indicadores para FH com foco na acreditao nacional

(CIPRIANO, 2004).

Desta forma, a escassez de informaes disponveis sobre o impacto do processo de

acreditao no mbito da FH brasileira motivou a realizao da pesquisa aqui proposta. No

se sabe a fundo que mudanas so promovidas pela acreditao e, nem mesmo, quais so as

percepes ou o conhecimento dos sujeitos que empregam tal ferramenta como meio de

excelncia para a AF, havendo uma lacuna cientfica entre a exposio terica do assunto e a

aplicao prtica da metodologia pelos farmacuticos no cenrio nacional.

1.2 OBJETIVOS

1.2.1 OBJETIVOS GERAIS

Analisar o impacto do processo de acreditao em servios de FH de

estabelecimentos privados de sade no Estado do Rio de Janeiro e acreditados pela

Organizao Nacional de Acreditao (ONA).

1.2.2 OBJETIVOS ESPECFICOS

Caracterizar os hospitais em estudo e suas farmcias;

1 Descritores empregados: acreditao, servio de farmcia hospitalar.

19

Investigar a percepo dos diferentes atores sobre o processo de acreditao, identificando os aspectos facilitadores e dificultadores para a sua implantao no servio de farmcia;

Investigar as mudanas que a certificao provocou na AF na perspectiva dos farmacuticos e partes interessadas dos servios de farmcia;

Identificar possveis melhorias na segurana e eficincia do servio prestado pela FH como decorrncia do processo de acreditao.

20

2 REFERENCIAL TERICO

2.1 O HOSPITAL: CONCEITOS E CLASSIFICAES

O hospital uma organizao de natureza social que tem por finalidade produzir e

oferecer servios de sade populao (GOMES; REIS, 2003). Segundo a Organizao

Mundial de Sade (OMS), o hospital definido como:

Parte integrante de uma organizao mdica e social, cuja funo prover completa assistncia sade da populao curativa e preventiva e cujos servios atingem a famlia e seu meio-ambiente. tambm um centro de formao para os que trabalham no campo da sade e das pesquisas biossociais (OMS, 1957

2

apud CIPRIANO, 2004, p. 12).

Conforme Resoluo da Diretoria Colegiada (RDC) publicada pela Agncia Nacional

de Vigilncia Sanitria (ANVISA), o hospital definido como:

Todo estabelecimento de sade dotado de internao, meios diagnsticos e teraputicos, com o objetivo de prestar assistncia mdica curativa e de reabilitao, podendo dispor de atividades de preveno, assistncia ambulatorial, atendimento de urgncia/ emergncia e de ensino/ pesquisa (BRASIL, 2002).

Este conceito aplicado para todos os estabelecimentos com pelo menos cinco leitos

para a internao de pacientes, que garantam um atendimento bsico de diagnstico e

tratamento, com equipe clnica organizada e com prova de admisso e assistncia

permanente prestada por mdicos (BRASIL, 2011).

Os hospitais evoluram desde pequenos grupos estruturados informalmente at as

grandes organizaes dos dias atuais, cujas caractersticas e funes transformam tais

instituies nas mais complexas e dinmicas do setor sade (BRASIL, 2011).

Na concepo de Gonalves (1998), a principal funo das organizaes hospitalares

proporcionar servios de qualidade com os recursos disponveis adequados s

necessidades da sociedade, atendendo aos doentes, promovendo a educao profissional,

conduzindo a pesquisas e exercendo a medicina preventiva e curativa. Para isso, devem

apresentar projeto arquitetnico, estrutura e densidade tecnolgica compatveis com suas

funes e complexidade, em escala adequada para operar com eficincia e qualidade. Em 2 Organizacin Mundial de la Salud. Comit de Expertos en Organizacin de la Asistencia Mdica. Funcin de los

hospitales en los programas de proteccin de la salud. Ser Inform. Tecn., v.122, n.4, 1957.

21

geral, os hospitais so dotados de emergncia, centro cirrgico, unidades de tratamento

intensivo, semi-intensivo e internao, estrutura diagnstica e servios de apoio teraputico,

como assistncia farmacutica, nutricional e hemoterpica (GOMES; REIS, 2003).

As caractersticas e complexidade das organizaes hospitalares tm forte influncia

na estrutura e nas atividades desenvolvidas pela FH, de maneira que sua organizao est

diretamente relacionada com o tipo de assistncia prestada pelo hospital, tornando-se

compatvel com suas necessidades (MESSEDER, 2005). Para um melhor entendimento da

insero da farmcia no complexo sistema hospitalar e para fins desta pesquisa adotou-se a

classificao, apresentada no quadro 1.

O hospital contemporneo, seja ele pblico ou privado, representa a emergncia de

interesses submersos da produo industrial na sade, apesar de seu resultado mais

aparente ser o cuidado ao doente (RIBEIRO, 1993, p.30). Isso porque forma e qualifica

profissionais, recupera fora de trabalho, movimenta e reproduz capital (RIBEIRO, 1993).

A todo instante, o hospital ajusta-se a um novo modelo que busca oferecer conforto,

alm do tratamento e cura dos seus usurios, preocupado em proporcionar mximo bem-

estar e segurana. Assim, deixa-se de lado a viso austera de sua estrutura, para buscar um

clima familiar, harmnico e confortvel, preocupado em proporcionar servios de qualidade

e, ao mesmo tempo, eficientes, que os diferencie e preserve a sustentabilidade das

organizaes (GALVO, 2003).

22

Quadro 1: Classificao das organizaes hospitalares CLASSIFICAO DESCRIO

Natureza Jurdica

Pblico: integra o patrimnio Federal, Estadual, Municipal, autarquias e fundaes institudas pelo poder pblico.

Privado filantrpico: reserva assistncia gratuita para populao carente. No remunera sua diretoria e os lucros so direcionados manuteno e desenvolvimento da instituio.

Privado sem fins lucrativos ou beneficentes: presta assistncia principalmente para seus associados. Fundado e mantido por contribuies ou doaes. No remunera sua diretoria e os lucros obtidos so direcionados manuteno e desenvolvimento da instituio.

Privados com fins lucrativos: presta servios para auferir resultados financeiros lucrativos.

Natureza da assistncia

Geral: presta assistncia aos pacientes portadores de doenas das especialidades mdicas bsicas (clnica mdica, cirurgia geral, clnica ginecolgica e obsttrica e clnica peditrica).

Geral com especialidades: presta assistncia aos pacientes portadores de doenas de vrias especialidades, alm das bsicas.

Especializado: presta assistncia aos pacientes portadores de doenas especficas ou predominantes.

Nvel de ateno

Secundrio: presta servios com recursos bsicos de diagnsticos (laboratrio de anlises clnicas, radiologia, eletrocardiografia, possuem leitos para reas bsicas da medicina ou seja, clnica mdica, cirurgia geral, clnica ginecolgica e obsttrica e clnica peditrica).

Tercirio: presta cuidados gerais, contemplados em vrias especialidades e se destinam tambm ao ensino.

Quaternrio: presta cuidados gerais, contemplados em vrias especialidades, onde o desenvolvimento da pesquisa e o avano tecnolgico os destacam no Pas.

Porte

Pequeno: tem capacidade menor ou igual a 50 leitos;

Mdio: possui de 51 a 150 leitos;

Grande: oferece de 151 at 500 leitos;

Especial: possui mais de 500 leitos.

Sistema de edificao

Monobloco: oferece servios concentrados em uma nica edificao;

Multibloco: distribui servios em edificaes de mdio ou grande porte, interligados ou no;

Pavilhonar: divide os servios em prdios isolados de pequeno porte, interligados ou no;

Horizontal: possui estrutura predominantemente disposta na horizontal;

Vertical: apresenta estrutura principalmente na dimenso vertical.

Corpo Clnico

Aberto: permite que mdicos externos instituio efetuem internaes e assistncia aos seus pacientes, tendo ou no mdicos efetivos.

Fechado: possui corpo clnico permanente, permitindo apenas eventualmente (mediante permisso especial) o exerccio de profissionais externos.

Fonte: Adaptado de CIPRIANO, 2004.

23

2.2 QUALIDADE EM SADE

Qualidade, segundo Ferreira (2008, p. 669), a propriedade, atributo ou condio

das coisas ou das pessoas, que as distingue das outras e lhes determina a natureza.

Superioridade, excelncia de algum ou de algo. Dote, virtude.

O termo qualidade apresenta inmeras definies na literatura, devido ao seu carter

pluridimensional, que pode assumir vrios sentidos de natureza objetiva ou subjetiva

(UCHIMURA; BOSE, 2002). Nesse contexto, a qualidade, na sua dimenso objetiva, passvel

de mensurao, sendo considerada um atributo de objetos ou pessoas e, portanto,

generalizvel (UCHIMURA; BOSE, 2002). Em sua dimenso subjetiva, pode ser considerada

uma expresso da sensibilidade humana, que no pode ser medida. Tem estreita relao

com o espao das vivncias, das emoes, do sentimento, os quais no cabe quantificar,

uma vez que expressam singularidades (UCHIMURA; BOSE, 2002, p. 1565).

Demo3 (1999, apud UCHIMURA; BOSE, 2002, p.1565) identifica dois tipos de

qualidade: a formal e a poltica. A primeira est relacionada a instrumentos, formas,

tcnicas e mtodos diante dos desafios do desenvolvimento, em uma dimenso objetiva,

mensurvel. A outra estaria relacionada a finalidades, valores e contedos, assumindo uma

dimenso subjetiva, simblica. Desta forma, explicita-se mais uma vez a qualidade valendo-

se de suas dimenses objetiva e subjetiva.

H quem considere que qualidade em sade seja a ausncia de enfermidades, o que,

no entanto, pode ser insuficiente sob a luz do conceito sade. A qualidade pode implicar em

contornos muito amplos, que ultrapassam o foco da eliminao das doenas, caracterstico

do modelo mdico tradicional, em direo busca pelo bem estar social e melhores

condies de vida (AKERMAN; NADANOVSKY, 2000). Escolher entre apenas uma das

possveis definies de qualidade, no campo da sade, pode levar omisso de aspectos

significativos e complexos da rea em questo, reduzindo seu conceito pluridimendional,

que tambm admite a subjetividade.

Contudo, a qualidade dos programas e servios de sade ainda tratada, quase que

exclusivamente, de maneira objetiva e quantitativa. Conforme Uchimura e Bosi (2002)

predominam, na literatura cientfica, os estudos que consideram a qualidade da sade

unicamente com base em sua dimenso formal, baseado em um de seus componentes ou

3 DEMO, P. Avaliao Qualitativa. So Paulo: Editora Cortez, 1999.

24

elementos, conferindo um tratamento reducionista ou unidimensional qualidade.

Conforme ressalta Nuto4 (1999, apud UCHIMURA; BOSI, 2002, p.1565) esse conceito

mantido pelos servios de sade resulta da apropriao da racionalidade cientfica moderna,

em que o conhecimento biolgico se superpe a qualquer discusso e descoberta dos

significantes socioculturais.

A discusso a respeito de qualidade carrega consigo a noo, implcita ou explcita, de

avaliao, a partir da determinao de valores, pela realizao de um julgamento (MALIK;

SCHIESARI5, 1998, apud CIPRIANO, 2004). coerente afirmar que a qualidade nos servios de

sade depende da busca contnua pela melhoria dos processos de atendimento ao paciente,

considerando a segurana do usurio e dos profissionais que trabalham no servio, a

distribuio eficiente dos recursos materiais, financeiros e humanos, a reduo do

desperdcio e a adequao dos procedimentos diagnsticos e teraputicos, a fim de permitir

o melhor resultado possvel em termos dos benefcios na sade dos pacientes. Para tanto

necessria a implementao de aes em toda a organizao a fim de aumentar a eficincia

e a efetividade das atividades e dos processos (RODRIGUES, 2004).

Entendendo-se que o principal objetivo das unidades de atendimento seria oferecer

servios de sade com a melhor qualidade possvel, carece aqui discutir a evoluo e as

possveis dimenses do atributo qualidade no mbito da avaliao dos servios de sade.

2.2.1 ANTECEDENTES HISTRICOS

As atividades relacionadas qualidade do cuidado coincidem com o incio da histria

registrada da medicina, com Hamurabi e Hipcrates (CARVALHO et al., 2004). Entretanto, os

primeiros registros formais, de modelos direcionados gesto da qualidade da assistncia

mdica, datam do sculo XIX com a enfermeira britnica Florence Nightingale (CAMPOS,

2006). Na ocasio, foram desenvolvidos mtodos de coleta de dados para melhorar a

qualidade do atendimento prestado aos feridos de guerra, que revolucionaram a abordagem

dos fenmenos sociais e permitiram o surgimento de movimentos para a melhoria das

condies de sade e qualidade de vida da populao (CAMPOS, 2006).

4 NUTO, S. S.; NATIONS, M. K. Avaliao qualitativa dos servios como processo de construo de cidadania.

Ao Coletiva, Braslia, v.2, p.25-29, 1999.

5 MALIK, A.M.; SCHIESARI, L.M.C. Qualidade na gesto local de servios e aes de sade. So Paulo: Ed.

Fundao Petrpolis: Faculdade de Sade Pblica; 1998.

25

A avaliao da qualidade em sade, propriamente dita, iniciou-se no sculo XX e

desenvolveu-se lentamente, pois custou a ser considerada como aspecto essencial da

medicina (REIS et al., 1990). O primeiro trabalho clssico sobre avaliao dos servios de

sade, denominado a study in hospital efficiency: the first five years, foi publicado em 1916

por Codman (REIS et al., 1990). Este trabalho, influenciado pelo relatrio Flexner de 1910,

apresenta uma metodologia de avaliao rotineira do estado de sade dos pacientes, para

estabelecer os resultados finais das intervenes mdicas intra-hospitalares, atribuindo o

sucesso ou o insucesso dos tratamentos (REIS et al., 1990, p.51).

Sob a influncia do trabalho de Codman, em 1913, foi fundado o Colgio Americano

de Cirurgies (CAC), que assume a responsabilidade pela avaliao da qualidade das

prticas cirrgicas e dos hospitais, atravs do estabelecimento do Programa de Padronizao

Hospitalar (REIS et al., 1990, p. 51).

Como resultado de todo esse movimento, a cultura da qualidade difundiu-se

rapidamente atravs dos espaos acadmicos e institucionais, ocasionando a aprovao de

leis mais complexas na rea da sade, que enfatizavam os aspectos de avaliao, educao e

consultoria hospitalar (FELDMAN; GATTO; CUNHA, 2005). Com isso, na dcada de 1960, a

maior parte dos hospitais americanos j havia atingido os padres mnimos preconizados

inicialmente (FELDMAN; GATTO; CUNHA, 2005).

Ao mesmo tempo em que surgiam organizaes e programas voltados

especificamente melhoria da qualidade dos servios hospitalares, um segundo conjunto de

eventos tambm desempenhou um papel importante no movimento de ampliao da

qualidade dos servios de sade: a expanso do consumo de medicamentos em todo o

mundo ocidental. Como ilustrao deste fenmeno, Messeder (2005, p.5) afirma que entre

1950 e 1960 foram incorporados 400 novos produtos farmacopeia americana.

Contudo, este vertiginoso crescimento da produo e do consumo de medicamentos

foi acompanhado de graves acidentes. Entre os registros mais marcantes esto o emprego

do solvente dietilenoglicol em um xarope de sulfanilamida na dcada de 1930 e a epidemia

de focomelia pelo uso da talidomida por gestantes no incio da dcada de 1960. Ao lado de

outros acidentes, estes eventos contriburam para criao da agncia americana reguladora

de alimentos e drogas, mudanas na legislao sanitria e publicao de trabalhos voltados

26

identificao e anlise de reaes adversas a medicamentos (LAPORTE; TOGNONI6, 1993

apud SILVA, 2003). Estes trabalhos contriburam para intensificar os estudos de utilizao de

medicamentos, consolidando a farmacoepidemiologia como cincia e a farmacovigilncia

como importante instrumento sanitrio para a promoo da qualidade em sade (SILVA,

2003).

Apesar disso, o movimento de melhoria da qualidade em sade tornou-se maior e

mais complexo nas ltimas trs dcadas do sculo XX, influenciado por movimentos pela

qualidade no setor industrial, como forma de garantir sua sobrevivncia e hegemonia na

sociedade moderna (BERWICK; GODFREY; ROESSNER7, 1991 apud SILVA, 2003).

As primeiras pesquisas no campo da avaliao em sade, ainda na dcada de 1970,

foram motivadas por um certo grau de desconfiana e insegurana da sociedade em

relao aos servios (BERWICK; GODFREY; ROESSNER7, 1991 apud SILVA, 2003, p. 31). O

modelo, denominado quality assurence, baseava-se na garantia de padres mnimos de

qualidade, atravs do monitoramento do desempenho de casos individuais, pelo uso de

indicadores que determinavam se atingiam certo padro e se estavam dentro de limites

aceitveis (CARVALHO et al., 2004, p.220).

Carvalho e colaboradores (2004) destacam que problemas com este modelo levaram

experimentao da abordagem industrial de melhoria contnua da qualidade, cuja ateno

deixa de ser focada em casos individuais, para analisar as estatsticas de padres de

assistncia ofertados. De acordo com esta teoria, a melhoria da qualidade depende da

compreenso e da reviso dos processos de produo/prestao de servios, baseados nos

dados gerados pelos prprios processos (CARVALHO et al., 2004, p.220). O foco a

melhoria contnua por toda a organizao, atravs do empenho constante para se reduzir o

desperdcio, o trabalho refeito e a complexidade (CARVALHO et al., 2004, p.220).

somente na dcada de 1980 sobretudo entre 1985 e 1989, que uma certa reduo

da distncia entre os movimentos pela qualidade no setor industrial e na sade veio a

acontecer, motivada por presses econmicas (SILVA, 2003). Com os crescentes custos e

complexidade da ateno mdica, decorrentes do uso indiscriminado de tecnologias e

procedimentos cada vez mais sofisticados, acontece um impulso objetivo para a expanso

6 LAPORTE, J.R.; TOGNONI, G. Princpios de epidemiologa Del medicamento. 2 ed. Barcelona: Masson; 1993.

7 BERWICK, D.M.; GODFREY, A.B., ROESSNER, J. Curing health care: new strategies for quality improvement. San

Francisco: Jossey-Bass; 1991.

27

de trabalhos e pesquisas de avaliao da qualidade em sade. Reis e colaboradores

destacam essa tendncia, caracterizando a dificuldade de padronizao nos cuidados e a

frequente incorporao de tecnologias no substitutivas.

O cuidado mdico, alm de difcil padronizao, no possui valor de troca, mas to somente valor de uso para aquele que o consome. Alia-se a este fato que, ao contrrio do que ocorre na evoluo da manufatura para a indstria, a incorporao tecnolgica no substitui o trabalho vivo consumido no cuidado, nem tecnologias mais antigas (REIS et al., 1990, p.52).

Tornou-se, assim, imperativo conhecer melhor o que acontecia de fato nos servios

de sade, qual a sua real participao na dinmica social, e quais os seus efeitos para os

indivduos e para a sociedade. Desta forma, as estratgias de avaliao se tornaram uma

ferramenta importante para permitir a racionalizao das decises e das prticas, visto que

os resultados poderiam ser teis para facilitar a tomada de deciso e subsidiar intervenes

necessrias (MESSEDER, 2005).

A qualidade, portanto, deixou de ser apenas um requisito dos servios oferecidos,

assumindo um papel estratgico para melhorar a competitividade das instituies, pelo

aumento da eficcia de suas operaes. Perez Arias e Feller reforam esta percepo ao

afirmar que:

O incremento desenfreado dos custos ultrapassou o previsvel e desejvel, ainda que em pases ricos. O gasto anrquico beneficia alguns setores e prejudica outros, sem que isto signifique maior eficcia. O aumento global dos custos e a incorporao de grande quantidade de tecnologia para o diagnstico e tratamento de enfermidades no tm dado, como resultado, a reduo da morbimortalidade. A qualidade da ateno mdica sofre uma evidente deteriorao devido, entre outras causas, diluio da responsabilidade que transpassada e atomizada por numerosos atores intervenientes (PEREZ ARIAS ; FELLER

8 apud REIS et al., 1990,

p.52).

Como consequncia direta deste cenrio de profundas transformaes, a criao de

instrumentos, destinados melhoria da qualidade da assistncia na sade, tornou-se um

fenmeno universal, deixando de ser um mero conceito terico para ser uma realidade cuja

essncia garantir a sobrevivncia das empresas (LABBADIA et al., 2004, p.83).

8 PEREZ ARIAS, E. B.; FELLER, J. J. El Control de los Sistemas de Atencin Mdica Conceptualizacin y Mecnica

Operativa. Medicina y Sociedade, Buenos Aires, v.6, n.6, p. 239-246, 1983.

28

A demanda, cada vez mais expressiva, por conceitos de melhoria da qualidade, fez

com que diversos pases desenvolvessem e sistematizassem mtodos de avaliao, para

comparao de resultados e planejamento de metas, visando melhorias no mbito da

prestao dos servios de sade (LABBADIA et al., 2004).

2.2.2 AVALIAO DA QUALIDADE EM SERVIOS DE SADE

No tocante ao movimento pela qualidade em sade, possvel identificar uma

associao direta entre os temas da avaliao e da qualidade, conforme observado por

Labbadia e colaboradores.

Avaliao constitui um pilar fundamental de garantia da assistncia na sade e entendida como sendo um instrumento da gesto necessrio para mensurar os esforos de uma organizao, a qualidade dos servios prestados, bem como sua utilidade e relevncia social (LABBADIA et al., 2004, p.83).

De maneira mais especfica, Worthen, Sanders e Fitzpatrick9 (1997, apud SILVA, 2003,

p.39) definem avaliao como a identificao, clarificao e aplicao de critrios

defensveis para determinar o valor e o mrito de um determinado objeto avaliado, sua

qualidade, utilidade, efetividade ou significado em relao a estes critrios, definio que

essencialmente compartilhada por Contandriopoulos (1997).

Um dos elementos comuns a estes autores o fato de colocarem a definio de

critrios como condio essencial para se avaliar um objeto ou fenmeno. Pelo exposto,

para que se possa afirmar o que bom ou ruim, o que est ou no correto, o que vale ou

no a pena, o que mais custo-efetivo, o que mais satisfaz profissionais, consumidores e

financiadores, necessrio que critrios sejam estabelecidos pelos interessados e que o

processo de avaliao se d com base nestes critrios, para que se estabelea uma avaliao

sistemtica (MESSEDER, 2005).

Conforme Alfoldi10 (apud ESHER et al., 2010, p.204), critrio uma ferramenta tpica

da avaliao e pode ser definido como uma dimenso padro em funo da qual a realidade

do objeto da avaliao receber julgamento qualitativo e/ ou quantitativo. A explicitao

9 WORTHEN, B.R.; SANDERS, J.R., FITZPATRICK, J.L. Program evaluation: alternative approaches and practical

guidelines. 2nd

ed. New York: Longman; 1997. 10

ALFLDI, F. Savoir valuer en Action Sociale et Mdico-Sociale. Paris: Dunod; 2006.

29

dos critrios utilizados aumenta a legitimidade da avaliao, por tornar o julgamento do

avaliador mais objetivo e passvel de considerao por outros (MALIK e SCHIESARI5, 1998

apud CIPRIANO, 2004).

Silva (2003, p.39) tambm explicita essa relao entre os critrios e o processo de

avaliativo, definindo avaliao como o ato de medir um fenmeno ou o desempenho de um

processo, comparar os resultados obtidos com os critrios estabelecidos, e fazer uma anlise

destes resultados considerando-se a natureza da diferena.

O estabelecimento de critrios claros e definidos, acerca de um padro de qualidade

nos servios de sade, requer um estudo aprofundado de tudo que envolva a assistncia de

sade, norteado por uma viso global da conjuntura atual (MALIK; SCHIESARI5, 1998 apud

CIPRIANO, 2004). Sendo assim, no processo de elaborao, escolha e aplicao de critrios

para avaliao da qualidade em sade, a necessidade de chegar a consensos tornou-se

imperativa.

O termo qualidade estaria relacionado a um vasto espectro de caractersticas

desejveis na prestao do cuidado. Uchimura e Bosi (2002) citam algumas publicaes

(ACURCIO; CHERCHIGLIA; SANTOS, 1991; GATTINARA et al., 1995), nas quais a definio da

qualidade, no contexto dos servios e programas de sade, est apoiada nas seguintes

determinantes na prestao do cuidado:

Competncia profissional: habilidades tcnicas, atitudes da equipe, habilidades de comunicao;

Satisfao dos usurios: tratamento recebido, resultados concretos, custo, tempo;

Acessibilidade da ateno: remoo de obstculos culturais, sociais, geogrficos, econmicos para a utilizao de servios disponveis;

Eficcia: capacidade de produzir o efeito desejado, com o uso de normas adequadas, tecnologia apropriada, respeito s normas pela equipe;

Eficincia: relao entre o efeito real e os custos da produo;

Efetividade: relao do impacto real com o impacto potencial numa situao ideal;

Eqidade: distribuio dos servios de acordo com as necessidades de sade objetivas e percebidas da populao;

30

Qualidade tcnico-cientfica: nvel de aplicao do conhecimento e da tecnologia;

Adequao: suprimento de nmero suficiente de servios em relao s necessidades e demanda;

Aceitabilidade: fornecimento de servios que esto de acordo com as normas culturais, sociais e outras, e com as expectativas dos usurios em potencial.

Todos esses determinantes abordam a qualidade sob a tica de quem a define e/ ou

se beneficia, ou seja, os agentes dos servios (stakeholders). Sendo assim, planejadores

poderiam estar interessados em enfatizar aspectos relativos equidade na distribuio dos

servios; administradores procurariam formas eficientes de proviso; mdicos estariam

interessados nos resultados das suas condutas; e usurios dariam ateno a aspectos ligados

ao acesso ao cuidado e ao tratamento por parte dos profissionais de sade (AKERMAN;

NADANOVSKY, 1992). Com isso, a qualidade pode ter seu significado reduzido a uma de suas

mltiplas dimenses.

Donabedian (1978) teceu expressivas consideraes a respeito de modelos de

qualidade e sua aplicabilidade na rea da sade. De acordo com Messeder (2005, p. 30),

Donabedian apresenta trs definies diferentes para qualidade da assistncia: absolutista,

que apresenta uma perspectiva meramente tcnica; individualista, onde h incorporao

dos valores do consumidor; social, na qual a distribuio de benefcios para a populao

assume maior importncia.

Segundo Donabedian11 (apud REIS et al., 1990, p.53), a avaliao da qualidade pode

determinar o grau de sucesso das profisses relacionadas com a sade, em se

autogovernarem, de modo a impedir a explorao ou a incompetncia. Alm disso,

conforme o autor, o monitoramento da qualidade garante vigilncia contnua, de tal forma

que desvios dos padres possam ser precocemente detectados e corrigidos. Sendo assim, a

qualidade da assistncia deve proporcionar aos pacientes o mximo e mais completo bem-

estar, considerando o equilbrio previsto entre ganhos e perdas decorrentes do processo de

assistncia em toda a sua complexidade (DONABEDIAN10, apud REIS et al., 1990, p.53).

O autor aponta a influncia do desempenho profissional e o aprimoramento do

modelo de gesto como estratgias para a garantia e melhoria da qualidade e sugere que o

11

DONABEDIAN, A. The Quality of Medical Care. Science, v.200, n.4344, mai. 1978.

31

xito depende do esforo permanente realizado no melhoramento da sade, pela

monitorizao e avaliao continuada da estrutura, do processo e dos resultados da

avaliao dos servios (DONABEDIAN10, apud REIS et al., 1990). Nesse contexto, os estudos

de estrutura se desenvolvem, fundamentalmente, nos nveis institucionais, tomando como

base a teoria dos sistemas de ateno sade, j os estudos de processo e resultado podem

ter como referncia o indivduo, grupos de usurios ou toda a populao (REIS et al., 1990).

O eixo estrutura envolve as caractersticas estveis dos servios de sade, como

instalaes, equipamentos, recursos humanos, materiais e financeiros. O eixo processos diz

respeito s interaes e procedimentos envolvendo profissionais de sade e pacientes, e o

eixo resultados engloba a realizao do objetivo de curar, barrar a progresso, restaurar a

capacidade funcional, aliviar a dor, entre outros (SILVA, 2003).

Esses determinantes, no entanto, abordam os componentes objetivos da avaliao

da qualidade em servios e programas de sade sem, contudo, levar em considerao os

aspectos subjetivos inerentes ao conceito de qualidade. Sendo assim, no apreendem a

experincia vivencial de atores sociais (usurios, profissionais, gestores ou polticos) que

interagem com os programas ou servios.

Em 1990, Donabedian especificou sete atributos-chave, essenciais e complementares

ao trinmio estrutura, processo e qualidade, para a obteno da qualidade na prestao de

assistncia sade, a saber:

Eficcia: habilidade dos servios de sade em promover, sob as melhores condies possveis, os melhores resultados que visem o bem estar dos pacientes;

Efetividade: representa a melhoria possvel, em condies normais, no bem estar dos pacientes;

Eficincia: custo associado ateno sade;

Otimizao: forma de analisar efetividade e eficincia em termos relativos;

Aceitabilidade: maneira de adaptar a ateno sade aos desejos, expectativas e valores dos pacientes;

Legitimidade: forma de garantir que a ateno sade se d com bases nos valores da sociedade e do indivduo;

Equidade: forma de analisar o acesso dos indivduos a ateno sade.

32

Nessa publicao de Donabedian (1990), possvel constatar a presena de

elementos que sugerem a importncia da subjetividade na anlise da qualidade. Para o

autor, a qualidade da ateno sade deve definir-se como o grau em que os meios

desejados se utilizam para alcanar as maiores melhorias em sade (DONABEDIAN, 1990).

Portanto, a qualidade em sade se refere relao entre os meios e fins, em que os meios

compreendem o conjunto das estratgias tcnicas, psicolgicas e sociais de interveno

(UCHIMURA; BOSI, 2002, p.1566).

Acredita-se que a posio dos atores sociais, que avaliam ou emitem um julgamento,

influencia a definio de qualidade e a relevncia de determinados critrios ou componentes

em detrimento de outros (ACURCIO; CHERCHIGLIA; SANTOS, 1991; AKERMAN;

NADANOVSKY, 1992; CARVALHO et al., 2004).

Os chamados estudos antropossociais, vertente cuja metodologia baseada nos

indivduos ou grupos sociais, apoiam-se no estudo da acessibilidade e, principalmente, da

satisfao dos usurios (REIS et al., 1990).

Satisfao do paciente pode ser definida como as avaliaes positivas individuais de

distintas dimenses do cuidado sade (LINDER-PELZ12, 1982 apud VAISTMAN; ANDRADE,

2005, P.600) e reflete as percepes do paciente em relao s suas expectativas, valores e

desejos. Estas avaliaes expressariam uma atitude, uma resposta afetiva baseada na crena

de que o cuidado possui certos atributos que podem ser avaliados pelos pacientes

(VAISTMAN; ANDRADE, 2005). Donabedian (1988) ilustra este pensamento ao descrever a

satisfao do paciente como medida importante da qualidade da ateno prestada, porque

proporciona informaes sobre o xito do prestador ao alcanar os valores e expectativas

dos usurios. Segundo o autor, a qualidade do cuidado deve ser julgada pela sua

conformidade com um conjunto de expectativas ou padres que derivam de trs fontes: a

tcnica, que determina a eficcia; os valores e expectativas individuais, que determinam a

aceitabilidade; os valores sociais e as expectativas, que determinam a legitimidade.

A noo de satisfao tornou-se mais um dos elementos da avaliao da qualidade

em sade, permitindo avanar no sentido de incorporar os no especialistas na definio de

parmetros (VAISTMAN; ANDRADE, 2005). justamente o julgamento destes atores que

12

LINDER-PELZ, S. Toward a Theory of Patient Satisfaction. Social Science and Medicine, v.16, p.577-582, 1982.

33

influencia a qualidade e a relevncia que certos aspectos podem assumir dentro de uma

avaliao (ACURCIO; CHERCHIGLIA; SANTOS, 1991).

Para Donabedian (1990), a avaliao do ponto de vista dos usurios feita,

sobretudo, por meio da categoria aceitabilidade, que se refere conformidade dos servios

oferecidos em relao s expectativas e aspiraes individuais dos respondentes em relao

ao atendimento e suas prprias caractersticas individuais como idade, gnero, classe social

e estado psicolgico. Neste sentido, a segurana surge como importante dimenso da

qualidade, considerada talvez como a mais crtica e decisiva para os pacientes, j que um

cuidado inseguro aumenta o risco de danos desnecessrios, que podem ter impacto

negativo, representando um verdadeiro hiato entre os resultados possveis e os alcanados

(ANVISA, 2013).

Assim, o desafio da avaliao da qualidade em sade est em compreender o

complexo e conflituoso jogo de interesses e construir critrios que atendam diferentes

expectativas. Contudo, no deve ser considerada um fim em si mesma, mas um processo

onde um julgamento explcito elaborado, e a partir da desencadeia-se um movimento de

transformao na direo da qualidade previamente desejada.

2.2.2.1 Acreditao hospitalar

O verbete Acreditao no faz parte da maioria dos dicionrios da lngua portuguesa,

mas o verbo acreditar tem como uma de suas definies dar crdito a; tornar digno de

crdito, confiana (FERREIRA, 2008, p.92). Portanto, o adjetivo acreditado tem como

significado algo que tem crdito, que merece ou inspira confiana; autorizado ou

reconhecido por uma potncia junto outra (FERREIRA, 2008).

Segundo o glossrio de termos comuns nos servios de sade do MERCOSUL (BRASIL,

2002), a acreditao definida como:

Um procedimento de avaliao dos estabelecimentos de sade, voluntrio, peridico e reservado que tende a garantir a qualidade da assistncia integral, por meio de padres previamente aceitos. Acreditao pressupe avaliao da estrutura, de processos e resultados, e o estabelecimento ser acreditado quando a disposio e organizao dos recursos e atividades conformem um processo cujo resultado final uma assistncia sade de qualidade (BRASIL, 2002, p.1)

34

Dentre outros objetivos, visa principalmente a construo e o estabelecimento da

cultura da segurana, ou seja, a reduo a um mnimo aceitvel do risco de dano

desnecessrio ao paciente associado ao cuidado de sade, como medida efetiva para

garantia da qualidade (ANVISA, 2013, p.24). Desta forma, a acreditao hospitalar possui

uma forte abordagem educativa, baseada na reflexo da prtica profissional, que leva a

elaborao de padres de excelncia de desempenho. Por ser um processo, sobretudo

reflexivo, sempre revela novas formas de visualizar e agir sobre os problemas da instituio

(SILVA, 2003).

Conforme Schiesari (1999), a acreditao de organizaes de sade originou-se nos

Estados Unidos da Amrica (EUA) quando foi formado o CAC, que estabeleceu o programa

de padronizao hospitalar em 1924. Segundo o mesmo autor, nesse programa foi definido

um conjunto de padres mais apropriados para garantir a qualidade da assistncia aos

pacientes, criando um ambiente adequado para proteger o mdico e a prtica clnica. Estes

padres, no entanto, no levavam em considerao outras necessidades, como o

dimensionamento das equipes assistenciais no mdicas, a avaliao dos resultados com o

paciente e o atendimento por 24 horas (FELDMAN; GATTO; CUNHA, 2005). Apesar disso, o

programa atingiu um grande nmero de hospitais e tornou-se to complexo, abrangente e

caro que levou o CAC a juntar-se, em 1950, a outras importantes instituies mdicas para

compor a Joint Commission on Accreditation of Hospitals (JCAH). Tal organizao, de

natureza privada, ficou oficialmente responsvel pela acreditao de hospitais, enfatizando

o trinmio avaliao, educao e consultoria (SCHIESARI, 1999).

Em 1959, a Canadian Medical Association desligou-se da comisso e formou o

Canadian Council, para desenvolver um programa semelhante, com algumas caractersticas

diferenciadas, de modo a adaptar-se s circunstncias canadenses (CAMPOS, 2006).

Com a mudana do sistema de financiamento pblico da assistncia mdica nos EUA

e consequente adoo do Medicare e Medicaid, o governo federal americano estabeleceu,

atravs de legislao especfica, que o credenciamento hospitalar e reembolso dos custos

assistenciais estaria condicionado a uma avaliao do cuidado mdico (REIS et al., 1990).

Desta forma, somente os hospitais acreditados pela JCAH estariam habilitados a participar

do Medicare, j que observavam a maior parte dos requisitos necessrios a seu

funcionamento. Uma vez certificados pelo Medicare, os hospitais estariam automaticamente

35

aptos a participar do Medicaid. Sendo assim, a acreditao possibilitava a participao dos

servios de sade em ambos os sistemas (REIS et al., 1990).

Com a adoo dos padres mnimos pela maior parte dos hospitais americanos,

surgiu a necessidade de modificar o grau de exigncia preconizado pela JCAH. Com isso,

publicado o Accreditation Manual for Hospitals em 1970, contendo padres timos de

qualidade, que consideram os processos e os resultados como elementos reveladores do

nvel de prestao de assistncia mdica (SCHIESARI, 1999). Essa mudana no perfil dos

critrios, utilizados para o estabelecimento de padres, indica a transio de ateno da

JCAH, originalmente preocupada com a estrutura dos servios, para a considerao dos

processos e resultados da assistncia (ANTUNES, 2002).

Paralelamente em 1974, a Austrlia tambm inaugurou seu Conselho de Padres

Hospitalares, fazendo com que o movimento em busca da qualidade em sade, inspirado no

modelo norte-americano, ganhasse contornos mundiais (CAMPOS, 2006).

Como reflexo da expanso do escopo de atividades da acreditao, a JCAH alterou

sua denominao para Joint Commisson on Accreditation of Healthcare Organization

(JCAHO) em 1987. Com isso, sua atuao passou a enfatizar a assistncia clnica monitorada

por indicadores de desempenho e cercada por programas educacionais, ressaltando estes

aspectos na publicao de uma srie de documentos e recomendaes com padres

internacionais, que acabaram por direcionar sua atuao para fora dos EUA (SCHIESARI,

1999).

Com a publicao da agenda para a mudana, em 1988, a JCAHO definiu a filosofia e

a metodologia da gesto da qualidade como instrumentos vlidos para o desenvolvimento

dos servios de sade, em um cenrio que exigia cada vez mais racionalidade (SCHIESARI,

1999). A partir disso, a mensurao de seus resultados passou a ser expressa em nveis:

acreditao com distino, acreditao sem recomendao, acreditao com recomendao

e acreditao condicional. Sua atuao expandiu-se para o cenrio internacional, passando a

denominar-se Joint Comission Internacional - JCI (SCHIESARI, 1999).

Em 1989, a OMS iniciou um trabalho com a rea hospitalar na Amrica Latina,

adotando como tema a qualidade da assistncia, no qual a acreditao passou a ser vista

como elemento importante para desencadear e apoiar iniciativas de qualidade nos servios

de sade. Sua pretenso principal era:

36

Contribuir para uma mudana planejada de hbitos, de maneira a provocar nos profissionais de todos os nveis e servios um novo estmulo para avaliar as debilidades e foras da instituio, com o planejamento de metas claras e mobilizao constante para o aprimoramento dos objetivos no que se refere garantia da qualidade da ateno mdica (ANTUNES, 2002, p.26).

Paralelamente, Espanha, Polnia e Zmbia desenvolveram experincias que

ampliaram a disseminao do conceito e a busca por qualidade em sade atravs da

acreditao hospitalar, contribuindo para a expanso mundial do fenmeno a partir da

dcada de 1990 (SILVA, 2003).

Na mesma ocasio, mais precisamente em 1990, foi firmado um convnio entre a

Organizao Pan-americana de Sade (OPAS) e a Federao Latino-americana de Hospitais

para a produo de um manual de Padres de Acreditao para a Amrica Latina,

estruturado em padres e nveis de complexidade, onde a avaliao final seria determinada

pelo nvel mnimo atingido (CAMPOS, 2006).

Acompanhando as mudanas propostas pela OMS, j em vigor na Amrica Latina e

Caribe, e vivendo um momento de plena discusso sobre a reorganizao do sistema de

sade com a normatizao do Sistema nico de Sade (SUS), deu-se incio ao processo de

acreditao brasileiro. Como forma de programar a avaliao da qualidade dos servios de

sade no cenrio nacional, em 1992, foi apresentado o primeiro manual de acreditao

(NOVAES; PAGANINI, 1994). Em 1998, foi elaborada uma nova verso deste manual e

discutidas as normas tcnicas que regulamentam o papel do rgo acreditador, a relao

entre a instituio acreditadora e o Ministrio da Sade (MS), o cdigo de tica e o perfil do

avaliador (NOVAES; PAGANINI, 1994). Finalmente em 1999, o MS divulgou o projeto

Acreditao do Brasil por meio de um ciclo de palestras, cujo objetivo era apresentar,

sensibilizar e melhorar a compreenso sobre o sistema brasileiro de acreditao, bem como

criar a ONA (SCHIESARI, 1999). Oficializada pela Portaria No. 538 de 17 de Abril de 2001, a

ONA foi reconhecida pela ANVISA em 2002, por intermdio da Resoluo No. 921, que

estabeleceu um convnio de cooperao tcnica entre as duas entidades (CIPRIANO, 2004).

A ONA uma organizao privada, sem fins lucrativos e de interesse coletivo, que

tem como principais objetivos:

37

A implantao e implementao em nvel nacional de um processo permanente de melhoria da qualidade da assistncia sade, estimulando todos os servios de sade a atingirem padres mais elevados de qualidade, dentro do processo de acreditao (ONA, 2010, p. 12).

responsvel pelo estabelecimento de padres e pelo monitoramento do processo

de acreditao realizado por instituies acreditadoras (FELDMAN; GATTO; CUNHA, 2005,

p.217). Estas, por sua vez, so empresas de direito privado, credenciadas pela ONA, com a

responsabilidade de proceder avaliao e a certificao da qualidade dos servios de sade

em mbito nacional (FELDMAN; GATTO; CUNHA, 2005, p. 217).

O Programa brasileiro de acreditao hospitalar visa o amplo conhecimento a

respeito do processo permanente de melhoria da qualidade assistencial, mediante a

avaliao peridica do servio de sade, tomando como base o Manual Brasileiro de

Acreditao Hospitalar (FELDMAN; GATTO; CUNHA, 2005). O manual foi desenvolvido dentro

de um contexto que considera as caractersticas dos hospitais brasileiros, de maneira a

adaptar-se s pronunciadas diferenas existentes entre as vrias regies geogrficas do

pas, s distintas complexidades das instituies e ao processo evolutivo da cincia e da

administrao de servios de sade (FELDMAN; GATTO; CUNHA, 2005, p. 217).

O manual composto por sees e subsees. As sees representam os servios,

setores ou unidades, com caractersticas semelhantes, para que a instituio seja avaliada

segundo uma consistncia sistmica; as subsees tratam do escopo de cada servio, setor

ou unidade, segundo trs nveis, do mais simples ao mais complexo, sempre com um

processo de incorporao dos requisitos anteriores de menor complexidade (CIPRIANO,

2004). Cada subseo composta por padres que procuram avaliar estrutura, processo e

resultado dentro de um nico servio, setor ou unidade, sempre de forma interligada, onde

o funcionamento de um componente interfere em todo o conjunto e no resultado final

(CIPRIANO, 2004). Cada padro constitudo por uma definio e uma lista de itens de

orientao que auxiliam na identificao do que se busca avaliar. Alm disso, so divididos

por nveis, de acordo com seus princpios norteadores, conforme ilustrado no quadro 2. Um

nvel superior s alcanado quando o anterior tiver sido atingido (LABBADIA et al., 2004).

38

Quadro 2: Caractersticas, princpios orientadores e tipo de certificaes adotado pela ONA

NVEL CARACTERSTICA INSTITUCIONAL PRINCPIO

ORIENTADOR TIPO DE

CERTIFICADO VALIDADE

1

Atende aos requisitos formais, tcnicos e de estrutura para a sua atividade conforme legislao correspondente. Identifica riscos especficos e os gerencia com foco na segurana.

Segurana Acreditada 2 anos

2

Gerencia os processos e suas interaes sistemicamente; Estabelece sistemtica de medio e avaliao dos processos. Possui programa de educao e treinamento continuado, voltado para a melhoria de processos.

Organizao (Processos)

Acreditada Plena

2 anos

3

Utiliza perspectivas de medio organizacional, alinhadas s estratgias e correlacionadas aos indicadores de desempenho dos processos. Dispe de sistemtica de comparaes com referenciais externos pertinentes, bem como evidncias de tendncia favorvel para indicadores. Apresenta inovaes e melhorias implementadas, decorrentes do processo de anlise crtica.

Excelncia na Gesto

(Resultados)

Acreditada com

Excelncia 3 anos

Fonte: Adaptado de ONA, 2010.

Os parmetros de qualidade adotados pela ONA tm passado por constantes

adequaes, para atendimento s exigncias internacionais de gesto de riscos com foco na

melhoria da segurana do paciente que, desde o ano 2000, tem sido tratada como questo

de alta prioridade pela OMS (ANVISA, 2013). Dentre as vrias iniciativas relacionadas ao

assunto, o marco de confluncia do movimento global ocorreu em 1999, com a publicao

do relatrio sobre erros relacionados com a assistncia sade, intitulado To err is human:

building a safer healh system (ANVISA, 2013). Outro marco importante deu-se em 2004,

quando a OMS lanou formalmente a Aliana Mundial para a segurana do paciente na 57

Assemblia Mundial da Sade, recomendando aos pases maior ateno ao tema, atravs do

despertar da conscincia e do comprometimento poltico (ANVISA, 2013).

39

Desde ento, vrias naes vm se articulando para cumprir as aes previstas na

aliana, atravs do lanamento de planos e alertas tcnicos que concorram para a garantia

da segurana dos pacientes e a qualidade da assistncia prestada, com base em metas

internacionais (ANVISA, 2013). No Brasil, o assunto ganhou fora legal em 2013 com a

publicao da RDC 36, que institui aes para a promoo da segurana do paciente e

melhoria da qualidade dos servios de sade, a partir da criao de ncleos de

gerenciamento do risco para vigilncia, monitoramento e notificaes de eventos adversos.

Entre os eventos de interesse encontram-se aqueles relacionados ao uso de medicamentos,

produtos para sade e terapias nutricionais (BRASIL, 2013).

Na mesma ocasio, a ONA associou-se a International Society for Quality in Health

Care (ISQUA), uma organizao independente, sem fins lucrativos, cuja misso melhorar a

qualidade e segurana dos cuidados de sade no mundo. Seu programa de acreditao

nico, porque acredita os acreditadores e confere um reconhecimento mundial para

organizaes acreditadas que atendem a padres internacionalmente aprovados (JCI, 2013).

A acreditao representa uma distino que a organizao de sade recebe pela

qualificao evidenciada, ao mesmo tempo em que sinaliza para os clientes e comunidade

que alcanou um padro de gesto do negcio e da assistncia externamente reconhecido

(ONA, 2010). Trata-se, portanto, de uma metodologia de consenso, racionalizao,

ordenamento dos hospitais e, principalmente, de educao permanente do pessoal destes

servios e de seus lderes, cujo objetivo final da avaliao ser:

(...) demonstrao da responsabilidade e comprometimento com a segurana, com a tica profissional, com a eficincia dos procedimentos que realiza e com a garantia da qualidade do atendimento, transmitindo, assim, confiana e credibilidade para os clientes internos e externos, bem como para a sociedade (ONA, 2010, p.12).

Segundo dados da ONA, em Junho de 2013, foi atingida a marca de mil acreditaes

concedidas a partir da sua criao em 1999. At Setembro de 2013, o Brasil contava com 203

hospitais acreditados pela ONA, em diferentes estgios de evoluo no processo da

qualidade (ONA, 2013).

Diante de todo o exposto, conclui-se que a acreditao, como forma de avaliao em

sade, sedimentou-se como um instrumento de gesto fundamental para garantia da

assistncia prestada, na medida em que permite mensurar os esforos de uma organizao

40

em relao qualidade da assistncia, sua utilidade e relevncia social (LABBADIA et al.,

2004).

2.2.3 ASSISTNCIA FARMACUTICA HOSPITALAR NO CONTEXTO DA ACREDITAO E DA CULTURA DA SEGURANA

A normatizao do SUS, em 1990, suscitou a necessidade de elaborao de uma

poltica especfica para o setor de medicamentos no Brasil, com o objetivo de garantir acesso

a uma assistncia farmacutica integral (MAGARINOS-TORRES; OSRIO-DE-CASTRO; PEPE,

2007, p. 974). Com esse propsito foi aprovada, em 1998, a Poltica Nacional de

Medicamentos (PNM), atravs da Portaria Ministerial No. 3916/1998, visando garantir a

necessria segurana, eficcia e qualidade dos medicamentos, a promoo do uso racional e

o acesso da populao queles medicamentos considerados essenciais (CIPRIANO, 2004,

p.4). Seguindo os preceitos adotados pela OMS, a PNM incorporou a AF como uma diretriz e

a definiu como:

Grupo de atividades relacionadas com o medicamento, destinadas a apoiar as aes de sade demandadas por uma comunidade. Envolve o abastecimento de medicamentos em todas e em cada uma de suas etapas constitutivas, a conservao e controle de qualidade, a segurana e a eficcia teraputica dos medicamentos, o acompanhamento e a avaliao da utilizao, a obteno e difuso de informao sobre medicamentos e a educao permanente dos profissionais de sade, do paciente e da comunidade para assegurar o uso racional de medicamentos (BRASIL, 1998, p.22).

Observou-se uma lacuna de dez anos entre o estabelecimento do SUS e as iniciativas

para efetivao da AF como rea de atuao do sistema, uma vez que as demandas para a

sua estruturao mantiveram-se reprimidas ao longo desse tempo (VIEIRA, 2008). Somente

a partir de ento, o MS intensificou a elaborao de programas, com o propsito de garantir

e melhorar o acesso da populao aos medicamentos. Entretanto, ainda observou-se um

descompasso na estruturao de tais programas, em relao aos seus componentes tcnicos

(seleo, prescrio, dispensao e uso) e logsticos (programao, aquisio,

armazenamento e distribuio), evidenciando as fragilidades do sistema e suscitando novos

esforos para a reorientao da AF.

Em 2004, foi publicada a Poltica Nacional de Assistncia Farmacutica (PNAF),

atravs da Resoluo No. 338 do Conselho Nacional de Sade, que complementou a PNM e

41

deu maior importncia gesto e aos servios, especialmente dispensao e ateno. Tal

Resoluo integra as aes de AF e privilegia a efetivao do acesso, da qualidade e da

humanizao, como garantias para o uso racional e seguro de medicamentos (OLIVEIRA,

BERMUDEZ; OSRIO-DE-CASTRO, 2007, p.91). Neste contexto, o acesso deixou de restringir-

se ao produto para focar tambm no usurio, principal beneficirio dos servios, uma vez

que disponibilizar medicamentos no o suficiente para melhorar as condies de sade

dos indivduos (OLIVEIRA, BERMUDEZ; OSRIO-DE-CASTRO, 2007).

Como resultado destas polticas, a AF ganhou amplitude e viso sistmica, passando a

ser considerada uma das prioridades na assistncia sade, face sua transversalidade

com as demais aes e programas (CIPRIANO, 2004, p.4). O medicamento transformou-se

em um insumo estratgico, com forte impacto sobre a capacidade resolutiva dos servios

de sade (CIPRIANO, 2004, p.4), representando gastos que chegam a comprometer at 12%

do oramento do MS (BRASIL, 2009).

Nasceu a o entendimento de que a AF um campo multidisciplinar, cuja viso

sistmica corporifica-se em um ciclo (figura 1), constitudo pelas etapas de seleo,

programao, aquisio, armazenamento, distribuio, dispensao e utilizao de

medicamentos, que s se completa na medida em que a atividade anterior tenha sido

adequadamente realizada, gerando produtos prprios com interfaces nas aes da ateno

sade (CIPRIANO, 2004).

Figura 1: Ciclo da Assistncia Farmacutica. Fonte: OLIVEIRA; BERMUDEZ; OSRIO-DE-CASTRO, 2007, p.15.

42

As diretrizes da AF, preconizadas na PNM E PNAF, estendem-se a todos os mbitos de

insero do medicamento e, portanto, so extensveis ao ambiente hospitalar, cabendo ao

servio de farmcia a responsabilidade pelo desenvolvimento das atividades que compem

tal ciclo.

A FH definida pela Sociedade Brasileira de Farmcia Hospitalar (SBRAFH) como

unidade clnica, administrativa e econmica, dirigida por farmacutico, ligada

hierarquicamente direo do hospital e integrada funcionalmente com as demais unidades

administrativas e de assistncia ao paciente (SBRAFH, 2007, p. 8). Tem como principal

objetivo a contribuio no processo de cuidado sade, visando melhorar a qualidade da

assistncia prestada ao paciente, promovendo o uso seguro e racional de medicamentos e

produtos para a sade (SBRAFH, 2007, p.8). considerada rea estratgica, uma vez que

medicamentos e produtos para sade so uns dos principais elementos geradores de

despesas nas organizaes, transformando a FH no centro gerador de custo mais

importante do hospital, onde devem dirigir-se todos os esforos, com o propsito de

garantir sua operacionalizao, controle e estabelecer qualidade e eficincia em seus

procedimentos (CIPRIANO, 2004, p. 6).

Assim, neste contexto, o servio de farmcia requer um gerenciamento nico, que

necessita de conhecimento tcnico especializado para o desenvolvimento de atividades

administrativas, logsticas e clnicas, organizadas de acordo com o tipo e o nvel de

complexidade do hospital onde se insere o servio e centradas na organizao sistmica da

AF (MAGARINOS-TORRES; OSRIO-DE-CASTRO; PEPE, 2007,). Para isso, fundamental que

as unidades hospitalares disponham de farmcias com infraestrutura fsica, recursos

humanos e materiais que permitam a integrao dos servios e o desenvolvimento eficiente

das aes sob sua responsabilidade, sobretudo por se tratar de um setor que demanda

elevados valores oramentrios (GONALEZ, 2012). Da mesma forma, imprescindvel que o

farmacutico esteja articulado e integrado com a equipe multiprofissional, atuando na

identificao dos problemas, na sua hierarquizao, no estabelecimento de prioridades, na

definio das estratgias e aes para interveno na perspectiva de que a AF faa parte das

aes globais de sade (PENAFORTE, 2006; PEREIRA; FREITAS, 2008; SANTANA, 2013).

Face ao exposto, a FH brasileira evoluiu ao longo das ltimas dcadas, agregando

atribuies e responsabilidades, passando da funo essencial de produo e proviso de

43

produtos preocupao com os servios e resultados da AF (REIS, 2008), conforme

esquematizado na figura 2.

Figura 2: Evoluo do foco da gesto na farmcia hospitalar Fonte: Adaptado de REIS, 2008.

Apesar do exposto, a FH brasileira ainda caracterizada por realidades distintas,

onde coexistem desde hospitais sem farmacuticos at farmcias extremamente modernas

prestando toda a gama de servios (GONALEZ, 2012). Seu desenvolvimento ainda encontra-

se em descompasso com o conjunto de demandas da ateno sade, pois historicamente

os procedimentos de aquisio e distribuio consolidaram-se como foco e limite de suas

atividades (BRASIL, 2009).

Somente nos anos mais recentes que a AF em mbito hospitalar ganhou corpo nas

discusses institucionais e acadmicas, incorporando-se a todo o conjunto das aes em

sade, ao centrar sua ateno no paciente e suas necessidades, mantendo o medicamento

como foco de trabalho (VARELA et al., 2011; SANTANA, 2013). Alm da implementao da

farmcia clnica, outros fatores tambm contriburam para grandes alteraes nas prticas

da FH, com especial destaque para a gesto de produtos para sade, os novos sistemas de

distribuio, a informatizao e a automao de processos com foco na segurana das

operaes (SANTANA, 2013).

No Brasil, esforos do MS, ANVISA e SBRAFH buscam assegurar a implantao e o

monitoramento de leis, polticas e recomendaes que propiciem o uso seguro de todas as

tecnologias utilizadas na prestao da assistncia, bem como o pleno desenvolvimento da

FH. Publicaes recentes, discutidas a seguir, refletem o esforo da sociedade acadmica e

44

do governo para conseguir a adequao dos servios de farmcia e garantir a efetiva atuao

dos farmacuticos segundo os conceitos internacionalmente aceitos.

Em reviso realizada por Magarinos-Torres, Osrio-De-Castro e Pepe em 2006, foram

identificados sete componentes essenciais para o pleno desenvolvimento das atividades da

FH, destacados no quadro 3.

Quadro 3: Componentes essenciais para o desenvolvimento das atividades da FH brasileira

Componente Objetivo

Gerenciamento Prover estrutura organizacional e infraestrutura que viabilizem as aes do Servio de Farmcia.

Seleo de Medicamentos

Definir os medicamentos necessrios para suprir as necessidades do Hospital segundo critrios de eficcia e segurana, seguidos por qualidade, comodidade posolgica e custo.

Logstica

Programao Aquisio Armazenamento

Definir especificaes tcnicas e quantidades dos medicamentos a serem adquiridos, tendo em vista o estoque, os recursos e prazos disponveis.

Suprir a demanda do hospital, tendo em vista a qualidade e o custo.

Assegurar a qualidade dos produtos em estoque e fornecer informaes sobre as movimentaes realizadas.

Distribuio Fornecer medicamentos em condies adequadas e tempestivas com garantia de qualidade do processo.

Informao Disponibilizar informao independente, objetiva e apropriada sobre medicamentos e seu uso racional a pacientes, profissionais de sade e gestores.

Seguimento Teraputico

Acompanhar o uso de medicamentos prescritos a cada paciente individualmente, assegurando o uso racional.

Farmacotcnica Elaborar preparaes magistrais e oficinais, disponveis ou no no mercado, e/ou fracionar especialidades farmacuticas para atender s Necessidades dos pacientes, resguardando a qualidade.

Ensino e pesquisa

Formar recursos humanos para a FH e para a assistncia farmacutica.

Produzir informao e conhecimento que subsidiem o aprimoramento das condutas e prticas vigentes.

Fonte: Adaptado de MAGARINOS-TORRES; OSRIO-DE-CASTRO; PEPE, 2006. p.975

Outra iniciativa importante foi a publicao pela SBRAFH, em 2007, do guia com

padres mnimos para FH e servios de sade, no qual so reconhecidas seis grandes

atribuies essenciais para a organizao e a proviso da AF nos hospitais brasileiros,

detalhadas a seguir:

45

Gesto:

Estabelecer a sua misso, valores e viso de futuro;

Definir organograma, preferencialmente celular, da Farmcia, inserido no organograma institucional;

Formular, implementar e acompanhar o planejamento estratgico para o cumprimento de sua misso;

Estabelecer indicadores para a avaliao do desempenho do servio;

Acompanhar e/ou monitorar a implementao das aes estabelecidas;

Avaliar continuamente o estabelecimento de aes preventivas ou correo das no conformidades;

Prover corpo funcional capacitado, dimensionado adequadamente s necessidades do servio;

Estabelecer atribuies e responsabilidades do corpo funcional;

Promover treinamentos necessrios e educao permanente do corpo funcional;

Elaborar e revisar continuamente o Manual de Procedimentos Operacionais Padro;

Qualificar, quantificar e o gerenciar logstica de suprimento de medicamentos e produtos para sade;

Realizar acompanhamento do desempenho financeiro/oramentrio;

Analisar custos das terapias medicamentosas de impacto econmico no hospital;

Participar de comisses responsveis pela formulao de polticas e procedimentos relacionados assistncia farmacutica (Comisso de Farmcia e Teraputica, Comisso de Controle de Infeco Hospitalar, Comisso de tica, Comisso de Suporte Nutricional e Comisso de Gerenciamento de Resduos de Sade, Comisso de Avaliao de Tecnologias, Comisso de Riscos Hospitalares, dentre outras).

Desenvolvimento de infraestrutura:

Disponibilizar equipamentos e instalaes adequadas ao gerenciamento de suprimentos;

Implantar um sistema de gesto informatizado;

Disponibilizar recursos para a informao e comunicao;

Disponibilizar salas para prtica de atividades farmacuticas, respeitando suas necessidades tcnicas;

Disponibilizar servios de manuteno, para assegurar o pleno funcionamento das tecnologias disponveis e instalaes fsicas;

Implantar e manter sistemas de arquivo.

Preparo, distribuio, dispensao e controle de medicamentos e produtos para sade:

Armazenar, distribuir, dispensar e controlar dos medicamentos e produtos para sade usados pelos pacientes internados e ambulatoriais do hospital;

46

Preparar, fracionar e reembalar medicamentos em condies ambientais (estrutura fsica), tecnolgicas (equipamentos) e pessoais (quantitativo e capacitao) adequadas ao grau de complexidade da manipulao proposta, seja ela estril ou no estril;

Implantar sistema racional de distribuio, de forma a buscar processos que promovam maior segurana para o paciente;

Analisar as prescries mdicas antes da dispensao, observando minimamente presena da assinatura e identificao do prescritor, legibilidade, nome do medicamento, concentrao, dose, via de administrao, posologia, incompatibilidades, interaes medicamentosas, diluentes e velocidade de infuso.

Otimizao da terapia medicamentosa:

Elaborar o perfil farmacoteraputico dos pacientes, incluindo:

Levantar histria medicamentosa de pacientes pr-selecionados contida no pronturio do paciente;

Analisar prescrio mdica quanto a seus componentes, quantidade, qualidade, compatibilidade, interaes, possibilidade de reaes adversas e estabilidade, entre outros aspectos relevantes;

Monitorar a teraputica farmacolgica, em especial os casos com baixa adeso ao tratamento, em uso de medicamentos potencialmente perigosos, em uso de medicamentos com maior potencial de produzir eventos adversos, em uso de medicamentos de alto custo, crianas e idosos;

Participar na deciso do plano teraputico;

Avaliar continuamente a resposta teraputica;

Elaborar e implantar sistema de farmacovigilncia.

Informao sobre medicamentos e produtos para sade:

Prover equipe de sade, estudantes e pacientes, informaes tcnico-cientficas adequadas sobre eficcia, segurana, qualidade e custos dos medicamentos e produtos para sade a partir de fontes adequadas de informaes primrias, secundrias e tercirias, isentas e atualizadas;

Prover informaes, baseadas em evidncias, s comisses de farmcia e teraputica, licitaes, controle de infeces, terapia nutricional, comit de tica em pesquisa, gerenciamento de riscos, gerenciamento de resduos de sade e avaliao de tecnologias;

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