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Historia e ficção em Oliveira Martins: imagens da degenerescência

Autor(es): Matos, Sérgio Campos

Publicado por: Imprensa da Universidade de Coimbra

URLpersistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/41749

DOI: DOI:https://doi.org/10.14195/2183-8925_21_6

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Sérgio Campos Matos* Revista de Historia das Ideias Vol. 21 (2000)

HISTORIA E FICÇÃO EM OLIVEIRA MARTINS Imagens da degenerescência

1. Controversa e incómoda, ainda hoje a obra historiográfica de Oliveira Martins continua a suscitar problemas. Tem-se sublinhado que, não raro, Oliveira Martins dá expressão à fantasia e à imaginação literária, em detrimento da verdade e do rigor históricos^). Colocou- se em evidência o seu processo artístico e poético(2). Mas raramente se tem considerado o modo concreto como o Autor construiu as suas narrativas. Até que ponto se baseia ele em fontes históricas? Em que medida as ultrapassa e cai num registo ficcional, distanciado das exigências de uma história documental e crítica?

É sabido que Martins entendia o ofício do historiador à maneira de Michelet, como uma "ressurreição" em que o "processo artístico e sintético" é "sempre adequado". Compreende-se que sustentasse em termos teóricos esta concepção: a propensão para a síntese e as indiscutíveis qualidades que revelou como artista da língua motivavam-no nesse sentido. O reconhecimento da indeterminação e do fortuito na transformação histórica levavam-no a resistir a uma

* Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.(’) Veja-se, a este respeito, A.H. Oliveira Marques, Introdução a Antologia da

historiografia portuguesa, vol. I, 2a ed., Lisboa, Publicações Europa-América, 1974, pp. 39-40 e Amadeu Carvalho Homem, "Oliveira Martins", in História de Portugal (dir. de João Medina), vol. IX, Alfragide, Ediclube, 1993, p. 146.

(2) A. José Saraiva, "Três ensaios sobre Oliveira Martins", Para a história da cultura em Portugal, vol. I, 5a ed., Lisboa, Bertrand, 1980, pp. 165-198.

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ideia primária de história-ciência capaz de, adoptando o modelo das ciências experimentais, definir leis que regem os fenómenos sociais e de prever os desenvolvimentos futuros das sociedades humanas(3). Legitimava assim Oliveira Martins a diluição da fronteira entre a história e a literatura? Quer isto dizer que não sendo a história uma ciência comparável às ciências exactas, em seu entender se tornassem válidos os processos da ficção? Não nos parece. Neste sentido apontam as considerações que o Autor d'Os filhos de D. João I tece na advertência a esta obra:

"[...] o que domina sobre tudo a história são os motivos morais, e esses motivos parecem verdadeiros ou falsos conforme as épocas e os lugares. Assim a história há-de ser objectiva, sob pena de as obras do artista não passarem de criações fantásticas do seu espírito. E há-de, por outro lado, assentar sobre a base de um saber sólidamente minucioso, de um conhecimento exacto e erudito dos factos e condições reais, sob pena de, em vez de se escrever história, inventarem-se ro­mances. Arena amplíssima onde o artista e o erudito, o pensador e o crítico se encontram e se confundem, o jurista para indagar com escrúpulos, o psicólogo para avaliar com subtileza, a história, se não é a forma culminante das manifestações intelectuais do homem, é sem dúvida a mais complexa e a mais compreensiva"(4).

Acresce que Oliveira Martins era muito crítico em relação ao romance histórico, género que considerava híbrido e falso - daí que rejeitasse a obra com que, neste género, se estreara em 1867, Febo Moniz. Mas logo ocorre a pergunta: seria o método artístico compatível com a autenticidade e a verdade que a história exigia, já no seu tempo?

(3) A consciência da complexidade dos problemas humanos e a sua irredutibilidade às teorias naturalistas e organicistas levavam-no, marcado por Hegel, a notar, já na História da civilização ibérica (volume com que inaugurava a Biblioteca das Ciências Sociais), que no seu momento culminante de desenvolvimento social, as nações não são meros organismos vivos, seres apenas mecânicos, antes que nelas existe uma dimensão espiritual, um pensamento, uma ideia. Cf. História da civilização ibérica, 8a ed., Lisboa, Parceria A.M. Pereira, 1946, p. 213

(4) J.P de Oliveira Martins, "Advertência", in Os filhos de D. João I, Lisboa, Guimarães Ed., 1983 (Ia ed.1891), pp. 8-9.

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No âmbito desta concepção de história, não surpreende que Oliveira Martins tenha encontrado no processo biográfico um dos seus terrenos de eleição. A psicologia individual constitui um terreno privilegiado da indeterminação (embora o biologismo social c outros sistemas deterministas estivessem em voga, ao tempo). O indivíduo exprime tendências sociais, traduz o todo em que se insere - no seu pensamento, nas suas crenças e mitos, na sua psicologia. Como sugeriu um dia, "um carácter bem estudado vale por um mundo visto"(5). É certo que o Autor perfilhava uma concepção estática da natureza humana: em seu entender, esta permanecia no essencial a mesma através dos tempos. Daí que considerasse legítimo basear-se nas observações dos homens seus contemporâneos como critério de apreciação dos mortos(6). Mas tinha como adquirida a complexidade da mente humana.

No âmbito de uma narrativa dramática dos sucessos, as biografias permitiam-lhe transmitir um efeito ao mesmo tempo trágico e realista da vida do homem no passado. Por outro lado, constituíam um meio de aceder à visão de conjunto sobre o contexto social e mental das épocas a que diziam respeito.

As considerações teóricas de Oliveira Martins sobre o seu processo artístico são todas elas posteriores à primeira obra em que, de um modo bem evidente, o Autor o punha em prática(7). Queremos referir-nos à História de Portugal (1879): nela se estruturam os mais intensos quadros da decadência e da degenerescência nacional de toda a historiografia portuguesa. Ora entre os múltiplos quadros biográficos que nesta obra encontramos, nenhum deles é tão desenvolvido como o que diz respeito a D. João VI (só os retratos de D. João II e de D. Sebastião lhe merecem atenção comparável, embora não tão detalhada). Salta à vista a desproporcionada atenção que o Autor concede aos monarcas portugueses.

Na verdade, em toda a galeria de figuras representadas, o retrato de D. João VI é o mais extenso e pormenorizado, tanto no plano

(5) Idem, ibidem, p. 275(6) Idem, Carta a Eça de Queiroz s.d. (1893?), in Correspondência de J.P. de

Oliveira Martins (pref. e anotada por F.A. de Oliveira Martins), Lisboa, Parceria A.M. Pereira, 1926, p. 266.

(7) Caso de "Da natureza e do lugar das ciências sociais", in Literatura e filosofia (pref. de Cabral do Nascimento), Lisboa, Guimarães Ed., 1955, pp. 325- 338.

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físico como no ponto de vista psicológico. Importa notar neste perfil os aspectos em que o historiador se baseia em fontes da época e aqueles em que a imaginação o leva a distanciar-se dessas mesmas fontes (e a construir, ou não, uma imagem ahistórica). Oliveira Martins sustentava, aliás, a legitimidade de uma história hipotética que, na ausência de documentação, trabalhasse com a intuição, no âmbito de um escopo fundamental - a verosimilhança: "A intuição, aadivinhação, hão-de amiúde suprir o que o exame directo não pode mostrar; e nessa história - como de resto, em tantas outras mais recentes! - a nossa curiosidade só pode saciar-se com hipóteses. A verosimilhança ê, porém, a primeira das nossas exigências intelectuais; e as probabilidades suprem muitas vezes a falta de provas". E acrescentava, defendendo- se já de eventuais críticas: "não há fantasia, nem romance, na história assim concebida; e se até hoje o processo de reconstrução sintética das sociedades nos tem revelado tamanhos segredos, tempo é já de o aplicar também às idades que estão para além das primeiras datas das civilizações humanas" (8). Tal era, aliás, o ponto de vista de Ernest Renan, historiador com quem Martins nutria profundas afinidades.

2. Registemos alguns exemplos desta história que se alimenta de fontes e estudos, mas também de intuição, verosimilhança e construção simbólica. Está neste caso a primeira referência que surge na História de Portugal, ao príncipe D. João: "D. Maria I endoideceu de todo; e na cena portuguesa levantou-se a espessa figura do príncipe- regente, com o seu olhar vago, na imóvel contemplação da régia ociosidade, bocejando em permanência - a assitir, com as mãos nos bolsos, indiferente e passivo, ao desabar ruidoso do carcomido edifício da nação" (9). Oliveira Martins colhe em William Beckford a ideia da passividade e da ociosidade do príncipe a bocejar. No seu Diário..., Beckford faz duas referências aos bocejos do príncipe D. João e do seu irmão, o príncipe do Brasil: uma quando de uma merenda em casa do marquês de Marialva em que houve um espectáculo de fogo de artifício ("andavam

(8) Idem, Elementos de Antropologia, 7.a ed., Lisboa, Guimarães Ed., 1954 (1880), p. 20 (sublinhados nosso).

(9) Idem, História de Portugal (pref. de Martim de Albuquerque e introd. de Isabel F. e Albuquerque), Lisboa, I. Nacional/C. da Moeda, vol. II, p. 230 (sublinhado nosso).

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de um lado para o outro, de mãos nas algibeiras, sempre a bocejar, e os olhos vagos e pasmados, como é próprio de uma augusta ociosidade"); outra a assistir a uma peça de teatro, no Teatro do Salitre ("O Príncipe do Brasil e D. João, durante todo o espectáculo, só abriam a boca para bocejar" )(10). Oliveira Martins capta estes instantâneos, que retomará na narrativa do embarque da família real para o Brasil, generalizándo­os: esta é uma das imagens paradigmáticas do Regente, imagem quase fotográfica, a acentuar a ideia da sua inércia perante o arruinar da nação. Nela intervém, como era frequente na época (e, em particular, na prosa martiniana), a metáfora do organismo.

Mas o fotográfico depressa se volve em cinematográfico na descrição dos jardins de Queluz, quadro animado em que domina a figura exuberante e grotesca de D. Carlota Joaquina, "rebento da família orgíaca em cuja seiva corria toda a podridão ardente da Itália do Sul". Em contraste com esse exterior festivo, exótico e carnal, em que não faltavam, à noite, "os bailados, os risos, o canto, o sapateio do bolero e o estalar das castanholas", o leitor é transportado para o interior do paço, de "salões nus, tristes e sombrios", "habitado pela sombra de um rei" e onde "vagueavam [...] as sombras de uma corte"(ri). Estes quadros contrastantes são, mais uma vez, e, em larga medida, inspirados nas impressões poéticas e pitorescas de William Beckford, escritas cerca de quarenta anos após a sua visita à corte em Queluz (Verão de 1794), aquando da sua segunda estadia em Portugal(12). Assim, a descrição dos jardins de Queluz com as suas cascatas e fontes, pássaros e flores trazidos do Brasil, o arvoredo à luz pálida de velas em resguardos de cristal, aias da princesa - quais ninfas

(10) Diário de William Beckford em Portugal e Espanha (introd. e notas de B. Alexander, trad, e pref. de J. Gaspar Simões), 2a ed., Lisboa, Biblioteca Nacional, 1983, pp. 150 e 176. Oliveira Martins restringe esta atitude ao príncipe D. João mas, ao mesmo tempo, generaliza-a.

(n) Idem, ibidem, pp. 231-232.(12) William Beckford, Recollections of an excursion to the monasteries of Alcobaça

and Batalha (introd. e notas de Boyd Alexander), Sussex, Centaur Press, 1972 (Ia ed., 1835). O quanto Oliveira Martins apreciava o testemunho de Beckford sobre Portugal fica bem patente num artigo publicado n'0 Tempo, em 1889: cf. "Beckford em Portugal (passeio a Alcobaça e à Batalha)", in Política e história, vol. II, Lisboa, Guimarães Ed., 1957, pp. 149-167. Trata-se de uma quase paráfrase e comentário da narrativa do escritor britânico, destituída esta do valor atrístico que tem a História de Portugal.

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risonhas e faladoras que apareciam e desapareciam, como num sonho. Mas o interessante é notar que Oliveira Martins não segue fielmente a descrição de Beckford. Por um lado acentua o lado extravagante e erótico de urna atmosfera maravilhosa e festiva: preenche o quadro traçado pelo escritor inglês com informações e pormenores que imprimem realismo e verosimilhança, mas, ao mesmo tempo, reforçam o que nele há de fantástico - no colorido, nos sons, na luz, nos aromas, na sensualidade:

"Era um jardim da Síria com o seu cortejo de bacantes, com as suas ruas de limoeiros, de buxo, de murta, folhagem de um verde quente e escuro, dir- se-ia carnal; com os repuxos e cascatas presididos por estátuas e grupos da mitologia amorosa dos gregos; com aviários, encerrando pássaros dessas cores rutilantes que embriagam e gritos estrídulos excitantes como a nota selvagem da malagueña; com estufas recheadas de plantas gordas do Brasil, tão extravagantes nas formas e nas cores como as talhas e jarras da índia e do Japão espalhadas ao longo das ruas misteriosas".

Era neste cenário que, D. Carlota, rodeada pelas suas aias e criadas espanholas, "sentada à moda do Oriente num tapete de veludo sobre a relva, assistia às danças voluptuosas da Andaluzia acompanhadas de castanholas, ao som das cantigas sensuais da Península". Ao ambiente encantado e erótico de festa não falta o sapateio do bolero, o estalar das castanholas, o aroma das laranjeiras e uma luminosidade tímida de velas "ardendo em campánulas de cristal [tudo informes que se devem ao testemunho de Beckford], como estrelas hibricas incitando amantes" [comparação de O. Martins]. E até o jardineiro preto que servira Beckford e o informara que só a princesa reinava nos jardins "parecia um eunuco" [extrapolação de O.M.]. O mistério, a sensualidade e o insólito - que já estavam presentes na brilhante narrativa de Beckford -, todavia destituída da intensidade da prosa martiniana - convivem neste quadro, porventura dos mais conseguidos de toda a obra.

Os contrastes e paradoxos são frequentes nas movimentadas narrativas martinianas. Nos antípodas da extravagante animação dos jardins está a descrição do interior do palácio de Queluz onde a figura melancólica e sonâmbula do príncipe D. João se arrasta na penumbra. Ora é precisamente no retrato do príncipe que Oliveira Martins mais se distancia de Beckford. É verdade que a solidão e o isolamento de D. João nos seus aposentos, o seu ar pensativo, abstracto e melancólico, o silêncio

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e a luz pálida (que Martins acentua, dando-lhe uma conotação sepulcral) já se encontram no relato do viajante britânico. Também o desabafo de D. João - "A nau do Estado [...] naufraga: Deus sabe a que praia irá bater!" - é adaptado da mesma fonte. Adaptado, ou melhor, dramatizado, pois passa a referir-se apenas a Portugal e não a todos os outros estados europeus (no original de Beckford, D. João dissera "the ship of the state in every country in Europe is labouring under a heavy torment - God alone can tell upon what shore we shall all be drifted!"(13)). Sem esquecer os pesadelos e os gritos de agonia da rainha louca, D. Maria - "Ai, Jesus! Ai Jesus!", que tanto haviam impressionado Beckford e que agora o historiador repetia três vezes! Mas aqui Oliveira Martins conjectura uma cena patética, em estilo de saborosa marca queiroziana, a encerrar o capítulo que dedicou à sociedade da "anarquia espontânea": "De joelhos, o príncipe chorava implorando sossego à mãe delirante; fora nos jardins, ouvia-se o estalar das castanholas e o grito selvagem da malagueña; e de longe, pelas quebradas das serras, vinha reboando o trovão ameaçador da tempestade francesa, a aproximar-se"(14). Não dispomos de qualquer fonte que nos confirme a autenticidade deste lance (em todo o caso verosímil). Mas o que nele mais se impõe ressaltar é, de novo, o contraste interior/exterior, agora dramatizado até ao paroxismo, a inútil intenção de um príncipe-regente perdido na borrasca dos tempos, prostrado aos pés da mãe a tentar acalmá-la, com a sonoridade festiva e agreste que vinha dos jardins.

No entanto, parte significativa do retrato muito positivo que Beckford traça do príncipe, respeitante à sua segunda estadia em Portugal, é esquecido pelo Autor da História de Portugal. De facto, embora reconheça a tão falada fealdade do príncipe, o viajante britânico reconhece nele "an expression of shrewdness, and at the same time of benignity, in his very uncommon countenance, singularly pleasing" e impressiona-se com o seu "decided look particulary about the mouth, of his father's maternal ancestors". Se em Beckford os lábios descaídos de D. João ("wide-spreading, domineering lips") têm uma forte conotação de poder e domínio, herança da Casa de Áustria, em Oliveira Martins esse traço hereditário insere-se num retrato que tem um sinal diametralmente oposto, de atavismo, atonia e decrepitude.

(,3) J.P. de Oliveira Martins, História de Portugal, vol. II, p. 213.(14) Idem, ibidem, p. 233.

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Interessado que estava em transmitir aos seus conterrâneos uma impressão de familiaridade com a corte portuguesa, Beckford não esconde a sua simpatia por D. João VI, referindo-se às suas "affable expressions of regard", "excellent heart", carácter honesto e bem intencionado, que lhe valia o afecto popular; e ainda à suprema pureza e eloquência com que falava a língua portuguesa, à solenidade ou ao humor que adoptava consoante as circunstâncias. Tudo isto é ignorado por Martins(15). Dir-se-á que algumas destas impressões são de teor subjectivo e que obedecem à já assinalada intencionalidade do escritor britânico, proscrito pelas elites do seu país. Sem dúvida. Mas grande parte das componentes com que Oliveira Martins constrói o retrato grotesco do soberano são do mesmo (ou de um mais intenso) cariz impressionista.

A descrição da corte em Queluz é escolhida para caracterizar a sociedade palaciana no Portugal de finais de Setecentos. Como vimos, baseia-se, essencialmente, no testemunho de Beckford, mediatizado e construído pela memória deste ficcionista romântico, a grande distância temporal da sua visita ao palácio e aos jardins reais. Não se refere a nenhum acontecimento histórico singular, a não ser o significado que encerra uma festa nos jardins e uma recepção no palácio.

Outro exemplo do modo diferenciado como Oliveira Martins recorre às fontes e estudos de que dispunha é o modo extremamente expressivo (mas parcial) como narra a partida da corte para o Brasil - facto que suscitou na historiografia portuguesa e na historiografia brasileira as mais desencontradas interpretações(16). E conhecida

(15) Todavia, no artigo publicado dez anos mais tarde, n'O Tempo, Oliveira Martins matiza um pouco o retrato, baseando-se numa releitura do texto de Beckford: "Pobre príncipe! Era bom, tinha espírito, acaso inteligência - mas tão mole! mas tão fraco! Espécie de Luís XVI do extremo ocidente, também teve a sua fuga de Varrennes - fuga a valer, para o Brasil; e se em França o rei pôs na cabeça o barrete frigio saudando a plebe vitoriosa, também D. João VI ouviu os declamadores de 20 negarem-lhe o veto. Pobre Príncipe, que escapou do patíbulo para vencer na Poeira" ("art. cit.", pp. 165-166; sublinhados do Autor). Oliveira Martins sublinhava ainda o medo em que o Regente vivia da França revolucionária e a aflição com a loucura da sua mãe.

(16) Veja-se Sara Marques Pereira, "A transferência da corte para o Brasil - os contornos de uma polémica historiográfica", in Actas do II Congresso Luso-

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a especial aptidão do historiador para construir narrativas de cenas movimentadas - lembre-se o relato de entrada triunfal em Roma de Paulo Emílio, o vencedor de Perseu (na História da República Romana), ou do insucesso da tomada de Tânger (rí Os filhos de D. João I). Quanto à retirada para o Brasil, tratava-se, não apenas de narrar o movimento do embarque, mas de salientar, num determinado sentido, o simbolismo do acontecimento. Também aqui dominam as imagens literárias, de uma qualidade que raramente terá sido atingida na historiografia portuguesa. Neste trecho, as fontes e estudos em que o historiador se baseia, sem os citar, são essencialmente três: a História geral da invasão dos franceses..., de José Acúrsio das Neves (1810, redigida decerto em 1809), a História de El-Rei D. João VI (ed. francesa, de 1826)(17) e a História da Guerra Civil..., de Luz Soriano (vol. I, 1866).

Mais uma vez, fortes contrastes marcam a narrativa deste dramático evento, logo desde o seu início: "Três séculos antes, Portugal embarcava, cheio de esperanças e cobiça, para a índia; em 1807 [...] embarcava um préstito fúnebre para o Brasil". E logo a visão de conjunto, o cenário geral marca o olhar do escritor:

"A onda da invasão varria diante de si o enxame dos parasitas imundos, desembargadores e repentistas, peraltas e sécias, frades efreirás, monsenhores e castrados. Tudo isso, a monte, embarcava, ao romper do dia, no cais de Belém. Parecia o levantar de uma feira, e a mobília de uma suja barraca de saltimbancos falidos: porque o príncipe-regente, para abarrotar o bolso das louras peças de ouro, seu enlevo, ficara a dever a todos os credores, deixando a tropa, os empregados, os criados por pagar"(18).

Na esteira do cronista francês do reinado de D. João VI, que já

Brasileiro de História da Educação (no prelo). Sobre o significado da retirada para o Brasil, veja-se Jorge Borges de Macedo, História diplomática portuguesa constantes e linhas de força, s.l., Instituto da Defesa Nacional, s.d., pp. 348-356 e António Pedro Vicente, Política exterior de D. João VI no Brasil: a acção de D. Carlota Joaquina, São Paulo, USP, Estudos Avançados, Agosto de 1992, pp. 2-12.

(,7) Segundo Barbier, o autor desta obra seria Lenormand (1772-1843) (Apud Castelo Branco Chaves, Prefácio a J.B.F. Carrére, Panorama de Lisboa no ano de 1796, 2 a ed., Lisboa, Biblioteca Nacional, 1989, p. 18).

(1lS) Oliveira Martins, ob. cit., pp. 237-238 (sublinhados nossos).

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notara o aspecto a um tempo "melancólico e grotesco" do cais de Belém no momento da retirada, Oliveira Martins acentuava a desordem e a confusão que marcaram a precipitada partida da corte, não perdendo oportunidade agora para colocar o príncipe-regente em oposição ao interesse nacional, representando-o como avaro e cobiçoso - quando o povo ficava sem os seus vencimentos, na inquietação de um futuro incerto -, ainda para mais, alegadamente a cometer uma fuga vergonhosa. A reforçar esta ideia, Oliveira Martins afirma que o regente decidira que o embarque se fizesse de noite ("por ter consciência da vergonha da sua fuga") - mas como a notícia corresse, "o cais de Belém encheu-se de povo que apupava os ministros, os desembargadores, toda essa ralé de ineptos figurões de lodo". Não temos conhecimento de qualquer fonte que revele a intenção da partida nocturna: Oliveira Martins conjectura va. Pode também duvidar-se que o sentimento de revolta se traduzisse em apupos, embora João Bernardo da Rocha Loureiro, também ele muito crítico em relação à retirada para o Brasil, se lembrasse de ouvir imprecações e gritos de desespero dos populares concentrados no cais, quando a frota se fez ao largo(19). Mágoa e desespero populares sim, nas palavras de José Acúrsio das Neves. Quando muito, afirma este autor, "chegou a temer-se que no excesso da sua dor rompessem em algum desatino contra os que julgavam culpados na desgraça pública"(20). Martins insiste na avareza de D. João VI, enlevado pelas "louras peças de ouro" com as quais enchia os bolsos (ideia colhida em Herculano)(21).

A chegada do príncipe-regente ao cais de Belém é tratada em termos muito diversos pelas fontes que Martins utilizou: se na História de El-Rei D. João VI, o regente não encontra ninguém para o receber^),

(19) Georges Boisvert, Un pionnier de la propagande liberale au Portugal: João Bernardo da Rocha Loureiro, Paris, Fundação C. Gulbenkian, 1982, p. 70.

(20) José Acúrsio das Neves, História geral da invasão dos franceses em Portu­gal e da restauração deste reino (estudos introd. de A. Almodovar e Armando Castro), vol. 1, Porto, Ed. Afrontamento, s.d. (Ia ed., 1810), p. 224.

(21) Veja-se adiante. Também Frei Mateus da Assunção Brandão, no panegírico que dedica à memória do monarca, regista, entre outros atributos, que D. João VI era "frugal e económico para consigo" (Elogio necrológico do muito alto e muito poderoso Imperador e Rei o Senhor D. João VI, Lisboa, Academia Real das Ciências de Lisboa, 1828, p. 18).

(22) História de El-Rei D. João VI, Lisboa, 1866, p. 55.

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Luz Soriano nota que na ausência de quaisquer tropas (dada a pressa do embarque), o povo precipitou-se sobre ele, rodeando-oí23). Oliveira Martins prefere a primeira versão, referindo que ninguém reparou na sua chegada pois "cada qual cuidava de si, e tratava de escapar", acentuando assim a ideia do salve-se-quem-puder, nesse momento derradeiro da existência nacional. Já no que respeita ao estado de espírito do regente ("soluçava e tremia-lhe muito as pernas") e aos brados da rainha louca dirigidos ao cocheiro que a levava ao cais ("Mais devagar! [...] diriam que fugimos!"). Martins baseia-se em Acúrsio das Neves e em Luz Soriano. Mas logo aproveita a dimensão trágica deste último transe, explorando-o num lancinante paradoxo, tão ao gosto da sua imaginação visionária: "A sua loucura [de D. Maria] proferia com juízo brados de desespero, altos gritos de raiva, estorcendo- se, debatendo-se, às punhadas, com os olhos vermelhos de sangue, a boca cheia de espuma. O protesto da louca era o único vislumbre de vida. O brio, a força, a dignidade portuguesa acabavam assim nos lábios ardentes de uma rainha doida\"(24). Note-se que Oliveira Martins nem sempre se limita a amplificar e a acentuar com pormenores de sua lavra a verosimilhança e o sentido dramático do episódio - "os olhos vermelhos de sangue, a boca cheia de espuma". No que se refere ao embarque do príncipe-regente e ao seu estado psicológico, transforma a versão de que dispunha - o regente e o Infante de Espanha (D. Pedro Carlos) levados a braços para o escaler (Soriano) - numa outra, bem diversa - "Dois soldados da polícia levaram-nos ao colo para o escaler". O que envolve um processo que poderíamos designar de infantilização destas personagens, em consonância aliás com a redução do choro do Regente ("D. João também soluçava, e tremiam-lhe muito as pernas que o povo de rastos abraçava") - note-se que a comoção do príncipe é muito mais marcada na prosa de Acúrsio das Neves ("os seus pés trémulos e sem firmeza mal podiam sustentar o seu corpo vacilante [...] Seu rosto nadava em lágrimas; porque os seus olhos eram duas torrentes") ou mesmo na de Luz Soriano ("As pernas parecia que tremiam ao príncipe debaixo do peso do corpo, os olhos viam-se-lhe arrasados de lágrimas, mostrando bem a todos quanto o seu coração se achava profundamente contristado

P) Luz Soriano, História da Guerra Civil e do estabelecimento do governo parlamentar em Portugal, 1.1, Ia época, Lisboa, Imprensa Nacional, 1866, p. 674.

(24) Oliveira Martins, ob. cit., p. 239

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e inquieto em situação tão crítica"; sublinhados nossosX25). A Oliveira Martins não interessava tanto a intensidade como a subtileza da sugestão visual.

O historiador sondava assim os recessos do estado de espírito da rainha D. Maria e do príncipe D. João, acentuando a sua sintonia com a psicologia colectiva da massa anónima que acorrera ao cais de Belém. Era a derrocada, na total desordem, bem expressa na descrição desse episódio fúnebre (como de resto já notara Acúrsio das Neves), em tons sombrios, com referência a essa massa anónima, de múltiplas origens sociais:

"Desabava tudo a pedaços; e só agora, finalmente, o terramoto começado pela Natureza, continuado pelo marquês de Pombal, se tornava um facto consumado. Os cortesãos corriam pela meia-noute as ruas, ofegantes, batendo às lojas para comprarem o necessário; as mulheres entrouxavam a roupa e os pós, as banhas, o gesso com que caiavam a cara, o carmim com que pintavam os beiços, as perucas e rabichos, os sapatos e fivelas, toda a frandulagem do vestuário. Era um afã, como quando há fogo(26), e não havia choro nem imprecações: havia apenas uma desordem surda. Embarcavam promiscuamente, no cais, os criados e os monsenhores, as freirás e os desembargadores, alfaias preciosas e móveis toscos sem valor, nem utilidade. Era escuro, nada se via, ninguém se conhecia. Os botes formigavam sobre a onda sombria, carregando, levando, vazando, bocados da Nação despedaçada, farrapos, estilhas, aparas, que o seco vento do fim dispersara nessa noute calada e negra" (f7).

É um bom exemplo de como a imaginação plástica do historiador traça, em termos trágicos, um quadro verosímil, mas obviamente excessivo, do suposto desabar da Nação que, nas suas palavras, chegava ao fim - a contrastar com as representações iconográficas do evento, de que dispomos(28). Oliveira Martins

(25) José Acúrsio das Neves, ob. cit., p. 225 e Luz Soriano, ob. cit., p. 674.(26) Note-se que já Rocha Loureiro, testemunha presencial do evento,

transmitia uma impressão similar "Dava ares (como eu o vi) de um despejo de casa aonde prendeu o fogo" (Apud Georges Boisvert, ob. cit., p. 70, nota 77).

(27) Idem, ibidem, p. 238. Sublinhados nossos.(28) Ana Cristina Araújo,- "As invasões francesas e a afirmação das ideias

liberais", in História de Portugal (dir. de José Mattoso), vol. V (coord, de Luís Reis Torgal e João L. Roque), Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, p. 26.

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sublinhava ainda duas outras ideias-força: a subordinação da política nacional aos interesses ingleses - bem marcada por Laura Junot e por José Liberato Freire de Carvalho - e a total impotência da nação, debatendo-se na sua atonia, ausência de audácia e inteligência. Todavia, num panfleto ainda anterior à decisão do embarque para o Brasil, já se notara o valor estratégico do Brasil na resistência à tirania de Napoleão sobre a Europa e que a partida da corte para a grande colónia da América do Sul seria a melhor e mais útil medida a adoptar, "a única esperança de salvação'^29). Mais tarde, diversos historiadores portugueses e brasileiros já distanciados dos juízos de valor negativos, característicos da leitura anti-absolutista e liberal da história pátria, viriam a reconhecer que se tratara de uma retirada estratégica da família real (alvitrada, aliás, noutros momentos históricos), para que o Estado português pudesse preservar a sua independência^).

Embarque da família real para o Brasil, em 1807, gravura de Francisco Bartolozzi (col. de gravuras do Arquivo Histórico-Militar).

(29) Reflexões sobre a conduta do príncipe regente de Portugal revistas e corrigidas por Francisco Soares Franco, Coimbra, Real Imprensa da Universidade, 1808, p. 7. Argumentação do mesmo teor foi difundida no periódico londrino States­man (ll-VIII-1808) e, pouco depois, na Gazeta de Lisboa no mesmo ano: cf. "Mani­festo ou justificação e exposição do comportamento da corte de Portugal a respeito da França, desde o princípio da revolução até ao tempo da invasão de Portu­gal...", Suplemento extraordinário à Gazeta de Lisboa, n° 34, 27-IX-1808.

(30) Cf., por exemplo, Angelo Pereira, D. João VI Príncipe e Rei, vol. I, Lisboa, 1953, p. 174. Veja-se ainda Sara Marques Pereira, "art. cit.".

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Importa, por último, considerar mais detalhadamente o retrato do príncipe regente, traçado pelo Autor da Historia de Portugal em termos negativos até à caricatura. Nele coexistem diversas componentes, dificilmente isoláveis, na reconstituição física e psicológica da figura. Podemos distinguir elementos de três graus no seu tratamento: 1) informes colhidos em fontes e estudos de que dispunha; 2) alusões conjecturadas, plausíveis, mas não funda­mentadas ou tão-só fundadas em alusões aplicáveis a outras situações e 3) comentários críticos que sempre envolvem juízos de valor do Autor, não raro associados a alusões fantasiadas, imaginadas.

Todas estas componentes se integram num perfil que vai sendo desenvolvido desde a primeira referência que surge na obra. Deve reconhecer-se que Oliveira Martins se baseou em múltiplas fontes para construir o perfil de D. João. O que importa averiguar é em que termos são utilizadas essa fontes. Podem-se distinguir vários momentos na aproximação de Oliveira Martins à personalidade de D. João VI:

a) uma primeira imagem estática e indiferenciada, a que já fizemos alusão - "ergueu-se a espessa figura do príncipe regente..." -, retomada mais à frente.

b) no palácio de Queluz, submerso na tristeza e na escuridão, povoada pela "sombra de um rei" sonâmbulo e pelas "sombras de uma corte"; aqui o regente limita-se a dar audiência a Beckford e a desabafar-lhe "a sua miséria com ironias pungentes".

c) no embarque para o Brasil: como vimos, num primeiro tempo, à chegada, numa intensa comoção, o príncipe soluça e treme, em comunhão com o sentimento do povo que o abraçava; depois, já a bordo "ia contente com a sua esperteza saloia, única espécie de sabedoria aninhada no seu gordo cérebro" e bocejava com o balançar do mar(31) - de novo um instantâneo, agora conjecturado a partir de uma ideia de Herculano e de um informe de Beckford. De facto não dispomos de qualquer fonte que ateste o contentamento do regente uma vez chegado a bordo, nem tão pouco que bocejasse (Beckford, como vimos, havia-se referido aos bocejos do príncipe, mas em contextos diversos). A retirada da corte para o Brasil é vista como fuga, demissão, acto egoísta que apenas visava a salvação individual do Regente(32).

(31) J.P. de Oliveira Martins, ob. cit.f p. 240.(32) "O D. Sebastião de agora, o D. Sebastião dos Braganças sabia fugir em

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Dissociando o príncipe do sentimento popular, Oliveira Martins deixava a descoberto uma leitura manifestamente parcial e irrealista: ao invés da impressão negativa, generalizada, que D. João VI teria deixado, é de admitir que terão sido sobretudo e quase exclusivamente homens da elite política e intelectual a considerarem negativamente a figura do monarca - caso de João Bernardo da Rocha Loureiro, José Liberato Freire de Carvalho ou Almeida Garrett(^).

d) já após a Revolução de 1820, num tempo que era ainda de "decomposição" e de "anarquia espontânea" (expressão tomada de H. Taine(34)), no regresso a Lisboa, ainda a bordo, D. João teria sido "maltratado" e "insultado". Baseando-se na narrativa de Luz Sorianoí35), Oliveira Martins exagerava assim na sua leitura dos condicionalismos que as cortes impuseram ao desembarque do monarca e da sua comitiva (proibição do desembarque de alguns cortesãos, fixação da hora para o rei o fazer), transformando-os em maltratos e insultos. Além disso omite que, quando o rei desembarcou, um grupo de vereadores de Lisboa foi ao seu encontro e beijou-lhe a mão (no que teriam sido seguidos de todos os que presenciavam a cerimónia). Martins esquece este gesto protocolar bem como a recepção efusiva do povo a D. João VI pelas ruas de Lisboaí36).

vez de morrer; sabia apenas sacrificar tudo para se salvar a si". E enquanto "o último homem dos de Avis deixou no coração do povo um rasto de luminosa saudade [...] o último homem dos Braganças deixou apenas aquele enjoo que provoca o vómito" (ob. cit., p. 249).

(33) J.B. da Rocha Loureiro, Memoriais a Dom João VI (edição e cornent, de Georges Boisvert), Paris, Fundação C. Gulbenkian, 1973, p. 46; José L. Freire de Carvalho, Ensaio histórico-político sobre a constituição e o governo do Reino de Portu­gal.., 2a ed., Lisboa, Imprensa Nevesiana, 1843 (escrito em 1829-30), p. 254 ss. e Almeida Garrett, Portugal na balança da Europa, Lisboa, Livros Horizonte, s.d. (Ia ed. 1830), pp. 51-52 e 94-95. Também o Marquês de Fronteira avaliou em termos críticos a retirada para o Brasil, cf. Memórias do Marquês de Fronteira e Alorna D. José Trazimundo Mascarenhas Barreto, vol. I, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1928, p. 29.

í34) É o título do Livro I das Origines de la France Contemporaine, 18a ed., t. I, Paris, 1896 (Ia ed., 1878), que incide sobre o período que ¿mediatamente antecede a constituição da Assembleia Nacional em Assembleia Constituinte francesa.

(35) Luz Soriano, ob. cit., 3a época, 1.1, Lisboa, Imprensa Nacional, 1881, pp. 628-631.

(36) Idem, ibidem, pp. 637-645. Ao invés, Oliveira Martins afirma ironicamente que as cortes proibiram "que os fiéis súbditos beijassem a mão papuda do seu soberano" (ob. cit., p. 256).

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e) por último, os sucessos de 1823 (Vilafrancada e abolição da Constituição de 1822) dão ensejo a Oliveira Martins de concluir o subcapítulo dedicado ao vintismo com um extenso retrato físico e psicológico do rei, agora de novo plenamente identificado com a dinastia e com a nação. Diversos aspectos se impõe realçar neste retrato que traduz "um tipo complexo, merecedor dos louvores de alguns, igualmente digno do enjoo de muitos". É o momento culminante do inventário da decadência e da degeneração portuguesas. O Autor detém a sua narrativa para focar agora a atenção sobre uma figura típica, um protótipo da dissolução nacional.

Do ponto de vista físico, a figura de D. João VI, tal como nos é retratado na História de Portugal tem um perfil disforme. Não é por acaso que o Autor se refere por diversas vezes à sua ascendência, sublinhando aquilo que nele era produto da hereditariedade - caso da "inchação das pernas doença antiga da família" (expressão quase literalmente retirada da História de El-Rei D. João VI ) e do "conhecido beiço, carnudo, sem vida, peculiar dos Bourbons"(37). Resumia-o, a rematar, a um "epitáfio vivo dos Braganças, sombra espessa de uma série de reis doidos ou ineptamente maus'^38). Aqui, Oliveira Martins inspirou-se sobretudo nos retratos grotescos que a Duquesa de Abrantes (mulher de Junot) e Alexandre Herculano dele traçaram, sem esquecer a História de El-Rei D. João VI, e, provavelmente, algumas representações iconográficas(39).

(37) Idem, ibidem, p. 260. Note-se como esta caracterização dos lábios do monarca é tão distante da traçada por Beckford, que nela via a determinação dos Áustrias.

í38) Idem, ibidem, p. 262.(39) Muito possivelmente no óleo de José Inácio S. Paio (datado de 1824 e

guardado no Palácio de Mafra) que representa o monarca posando, sentado num cadeirão junto a uma mesa onde figuram a coroa e o ceptro. Esta tela dá- nos uma imagem algo anedótica e boçal do monarca, como já foi observado por José-Augusto França. Refira-se ainda um busto de cera executado em 1831, da autoria de Joaquim Rafael, que fixa D. João VI já envelhecido, com a face flácida e amarelada (a que alude Oliveira Martins) e uma coroa de louros (cf "Iconografia e crítica", D. João VI e o seu tempo. Exposição no Palácio da Ajuda, Maio-Jul. 1999, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1999, pp. 133-134 e 183). A iconografia do monarca é muito vasta, incluindo, porventura, a primeira caricatura referenciada em Portugal (e desaparecida) que, teria sido afixada em Lisboa na manhã do embarque para o

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Laura Junot não podia transmitir pior impressão do príncipe: "Jamais pouvoir ne tomba dans des mains moins dignes de le porter. Presque inepte, sans aucune éducation, chassant comme un sauvage d'Amérique du Nord, sans aucune qualité apparente, même la plus infime, d'un phisique presque repoussant"i40).

D. João VI.José Inácio S. Paio (a., d., 1824). Óleo sobre tela, in D. João VI e o sen tempo, s. L, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses,

s. d. [1999], p. 1777.

Brasil (1807). Nesta imagem desconhecida ridicularizava-se o monarca, representado com as pernas tortas, barriga proeminente e grandes cornos, a par de uma nação deficiente com perna de pau e uma legenda a chamar-lhe ladrão (cf. José Augusto França, ob. cit., p. 134). Laura Junot descreve também esta caricatura (.Mémoires de la Duchesse d'Abrantes, vol. V, p. 426). Terá Oliveira Martins conhecido esta última representação?

(40) Laura Junot, Souvenirs d'une Embassade et d'un séjour en Europe et en Portugal 1808-1811, vol. 2, Paris, lmp. H. Dupuy, 1837, p. 262.

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O retrato é bem mais desenvolvido nas suas Mémoires, com referência, entre outros aspectos caricaturais e burlescos, ao seu "gros ventre, ses grosses jambes", "son énorme tête surmontée d'une chevelure de nègre, qui, au reste, était bien en harmonie avec ses lèvres épaisses, son nez africain et la couleur de sa peau" e à sua fealdade. A duquesa de Abrantes traçava um quadro em geral negativo da nobreza portuguesa e denunciava o domínio inglês, a seu ver na origem da doença que minava Portugal(41). Do ponto de vista político, considerava-o totalmente inepto e nulo. E no que respeita ao perfil psicológico, notava o medo em que vivia o regente de ser assassinado, que o levara a deixar de sair, ou a chorar como uma criança quando o embaixador britânico o informou da determinação francesa segundo a qual a Casa de Bragança tinha deixado de reinar na Europa. Oliveira Martins não utilizou esta fonte de um modo sistemático. Antes aproveitou alguns pormenores dispersos e, no conjunto, o lado caricatural e cómico do retrato evocado por Laura Junot. Martins esquece diversos traços assinalados por esta autora - caso da "grosse tête hébétée, ses gros mollets, ses épaules commme celles d'un Galego".

Bern mais subtil na sua ironia é Herculano que, num célebre opúsculo consagrado a Mouzinho da Silveira (escrito em 1856), evoca "ce bon Jean VI, qui était, peut-être, le plus brave homme de son royaume", "espèce de roi René affublé du chapeau crasseux de Louis XI". Lembrem-se duas das mais significativas passagens desse notável ensaio em que o historiador mobilizou a sua memória individual respeitante ao monarca:

"Quoiqu'il fût très laid, nos vieux libéraux, avec quelques grains de bons sens, en auraient fait l'un de plus beaux types de roi constitutionnel qui ne fut jamais. Philosophe et théologien à sa manière, les questions tant soit peu creuses et mystiques du droit divin et de la souveraineté populaire ne semblent lui avoir donné donc beaucoup de souci [...]. On l'accusait de pencher du côté des francs-maçons, ce qui peut faire honneur à sa bonté, mais pas du tout à son intelligence. Il aimait ses sujets, qui le payaient de retour; il les aimait presquautant que ses bonnes pièces d'or, qu'il encaissait avec une tendresse vraiment paternelle; presqu'autant que ses moines franciscains à la voix de Stentor, avec

(41) Ibidem.

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lesquels il psalmodiait, à Mafra, des Oremus [sublinhado do Autor]. Les libéraux lui avaient ponctuellement payé je ne sais combien de millions de francs de sa dotation royale [...]. Il ne pouvait raisonnablement pas garder rancune à de si honnêtes gens. Du reste, ces démocrates de 1820 [...] ne pouvaient inspirer moulte crainte à Jean VI, qui avait toute cette finesse proverbiale des campagnards de la banlieue de Lisbonne où il était né. Après la chûte de la constitution, quelques bonnes âmes voulaient, à toute force, qu'il tâtât un peu de la tyrannie; mais ce n'était pas un mets de son goût; il préférait les poules grasses que ses compères, les campagnards de la banlieue, lui vendaient le plus cher possible, et que, bien assaisonnés, sa majasté se plaisait à dépecer, sans couteau ni fourchette, de ses royales mains. C'était sa cruauté à lui! On insista, croyant que, parcequ'il portait un chapeau troué et rapiécé comme Louis XI, il devait porter aussi un coeur de tyran. Le roi riait dans sa barbe de cette étrange bévue. S'il portait ce chapeau, c'est qu'il ne voulait pas en acheter un autre..."[...]

"[...] pour moi ces mots - 'Le roi est mort!' - signifiaient tout bonnement que je ne verrais plus un gros et laid vieillard, à l'oeil terne, aux joues basanées et flasques, au dos voûté, aux jambes enflées, enfoncé dans une carrosse et suivi d'un escadron de cavalerie"(42).

A evocação irónica e burlesca de D. João VI que Herculano traça, construída com bom humor e comiseração, não chega ao sarcasmo nem ao desprezo - como sucede pontualmente no retrato de Oliveira Martins. Todavia, em qualquer deles a ironia, na medida em que exprime o contrário daquilo que se pretende dizer, tende a relativizar os próprios enunciados e, nesse sentido, a levar quase à caricatura a figura do monarca.

Para além do tom geral, Oliveira Martins aproveita múltiplos elementos para a construção do seu D. João VI: traços fisionómicos, indumentária, atitudes, hábitos gastronómicos, situações em que o evoca e episódios cómicos - caso do capote de doze moedas que um dia lhe roubaram, o que o teria levado "a ponto de revolucionar Lisboa

(42) Alexandre Herculano, "Mousinho da Silveira ou la révolution portugaise", Opúsculos I (org., introd. e notas de Jorge Custódio e J.M. Garcia), Lisboa, Ed. Presença, s.d., p. 297. Sublinhámos as frases e expressões em que Oliveira Martins se baseou, retomando algumas quase literalmente.

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para descobrir o ladrão". A este respeito e, ao contrário do que seria de esperar, Herculano relatava diversos pormenores que o seu jovem amigo esquece ("superbe manteau de drap bleu tout neuf [...] qu'on lui vola dans sa carrosse, un jour qu'il s'était rendu à l'église patriarchale..."). Em contrapartida, Martins levava ao paroxismo os sentimentos que Herculano atribuía ao monarca, nesse lance: onde este afirmava - "Sa colère lui avait fait mal; les idées de vengeance et de sang qui lui avaient trotté par la cervelle, en se trouvant volé, le remplissaient d'horreur" - Oliveira Martins limita-se a sugerir hiperbólicamente que o rei teria estado "a ponto de revolucionar Lisboa".

É, em larga medida, no teor geral do expressivo testemunho de Herculano que Martins se inspira para pintar o retrato do monarca. Deve lembrar-se, no entanto, que Herculano se baseava essencialmente na sua memória individual (em 1826, quando D. João VI faleceu, tinha 16 anos). E que o opúsculo "Mousinho da Silveira ou la Révolution portugaise", escrito em 1856 (mas só definitivamente concluído em 1873), é um texto de natureza ensaística assente essencialmente na vivência pessoal do historiador e não apresenta as mesmas exigências patentes noutros trabalhos seus.

Noutros pormenores, nomeadamente relativos aos padecimentos do rei e ao seu perfil psicológico, Martins segue a História de El-Rei D. João VI, por vezes bastante pormenorizada a este respeito:

"Tinha o príncipe regente repetidas vezes vertigens e acessos de melancolia, como sujeito que era desde muito tempo a ataques hemorroidais: havendo-se pois agravado em 1805 este padecimento habitual, redobraram os delíquios, e a sua natural fraqueza chegou a tal auge, que temia montar no cavalo ainda o mais manso: certo terror pânico prestes o obrigou pronto a abandonar a caça e os outros exercícios, figurando-se-lhe ver por toda a parte precipícios a seus pés: abandonou a quinta de Queluz, transpassado [sic] pela ideia, de que fora neste sítio de recreio que sua mãe manifestara os primeiros sinais de alienação...."(43).

(43) História de El-Rei D. João VI, p. 44.

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Confronte-se agora com o texto de Oliveira Martins:

"Sofria de vertigens e ataques de melancolia, por padecer de hemorroidas. A má saúde amarelara-lhe a cor do rosto flácido, donde pendia o conhecido beiço, carnudo, sem vida, peculiar dos Bourbons. Por 1805 os seus padecimentos tinham-se agravado, repetindo-se-lhe os delíquios, e aumentando, com a fraqueza, a timidez e os medos. Deixou de andar a cavalo, temendo cair. Abandonou Queluz por ter visto aí endoidecer a mãe, e recear também a loucura: receava, sobretudo e sempre, morrer. Este medo trazia-o estonteado e pronto a subscrever a todas as baixezas e humilhações: ninguém talvez as sofreu tão grandes!" (44).

É nítido o aproveitamento, por vezes quase literal, do texto da História de El-Rei D. João VI, processo que Oliveira Martins utilizou com alguma frequência. Naquela obra, colhe Martins vários outros elementos para compor o retrato de D. João: os seus hábitos monacais, o gosto pelo cantochão, a indolência e fixação a certos lugares (repugnando-lhe as mudanças), o carácter melancólico, impressionável e desconfiado. Torna­se, porém, evidente que esse aproveitamento de informações colhidas aqui e ali se subordina ao versátil e inconfundível estilo de Oliveira Mar­tins, de superior recorte literário, bem como a uma perspectiva nem sempre em sintonia com a que fora adoptada pelo Autor daquela obra (o que, como vimos atrás, sucede igualmente com as outras fontes que utilizou). Na verdade, se na História de El-Rei D. João VI se encontram grande parte dos elementos em que Oliveira Martins se baseia, também sucede que o historiador não aproveita outros dados que não interessam à composição do seu retrato: nesta obra reconhece-se que em 1799, quando fora nomeado Regente, o príncipe mostrou, no exercício do poder, "firmeza de carácter e desenvolveu certa energia, de que ninguém até ali o julgava capaz" - o que se traduziu na recomposição do ministério(45). Oliveira Martins esquece esta ideia que não convém ao perfil negativo que traça da personagem.

Outra obra, também da autoria de um francês, Jules de Lasteirye, datada de 1842, expõe um retrato nada favorável do monarca

(44) J.P. de Oliveira Martins, ob. cit., p. 260.(45) História de El-Rei D. João VI, p. 28.

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considerado "piedoso, mas débil [...] pusilánime" e egoísta. Todavia, acabava por reconhecer a sua bondade (como o faria Oliveira Mar­tins), e que "não se pode deixar de sentir uma certa simpatia por este príncipe desgraçado como rei, como filho, como pai, como esposo'^46). Vejamos como na Historia de Portugal se transfigura esta ideia: "Se como rei não pode deixar de inspirar tédio, o homem não deixa de provocar em nós a simpatia caridosa que nos merecem as pessoas moles, pesadas, incapazes de bem e de mal, seres inofensivos que não nos irritam os nervos". Para logo de imediato traçar uma síntese animada em que se identifica a imagem burlesca e anacrónica do monarca com o estado de decrepitude a que, no seu olhar crítico, chegara a nação: "Representante quase póstumo de uma dinastia, epitáfio vivo dos Braganças, sombra espessa de uma série de reis doidos ou ineptamente maus, D. João VI, já velho, pesado, sujo, gorduroso, feio e obeso, com o olhar morto, a face caída e tostada, o beiço pendente, curvado sobre os joelhos inchados, baloiçado como um fardo entre as almofadas de veludo dos velhos coches doirados de D. João V, e seguido por um magro esquadrão de cavalaria - era, para os que assim o viram, sobre as ruas pedregosas de Lisboa, uma aparição burlesca. Para nós, ao lembrarmo- nos de que nesse coche, desconjuntado pelos solavancos das calçadas, vai o herdeiro e o representante do Condestável, o espectáculo ressuscita-nos a história da Nação, também desconjuntada pelos balanços da sua vida tormentosa"(47) (note-se aqui a evidente intertextualidade com a passagem de Herculano acima citada).

Há todavia no D. João VI de Oliveira Martins elementos cuja fonte desconhecemos. Está neste caso um adereço que ajuda a compor a sua caricatura: as calças de ganga que, por avareza, "usava, até caírem de podres". Quanto ao prazer de acumular moedas de ouro e ao gosto dos "louros frangos assados", que comia prescindindo de talheres, é evidente a filiação no ensaio de Herculano. Todavia, há três pormenores que não constam na evocação da autoria do Mestre: 1) tratava-se de frangos assados (na verdade, Herculano limita-se a dizer que eram "poules grasses"); 2) com eles "abarrotava os bolsos da casaca

(46) Júlio de Lasteirye, Portugal depois da Revolução de 1820, Porto, Tip. da Revista, 1842, pp. 12 e 18-19.

(47) J.P. de Oliveira Martins, oh. cit., vol. II, p. 262. Sublinhámos as expressões aproveitadas do texto de Herculano.

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engordurada"; 3) comia-os "polvilhados de rapé"O18). São pormenores que contribuem não pouco para um certo "efeito de real" mas que, na verdade, pelo insólito, acentuam o perfil grotesco da personagem. E não os topamos em qualquer das fontes que compulsámos.

À avareza acrescentava-se a sujidade. Esta última característica seria comum a D. Carlota Joaquina (única regra em que concordavam, no dizer sarcástico de Martins), a "toda a família" e a "toda a Nação"(49). Onde teria Oliveira Martins colhido inspiração para estas alusões irónicas e caricaturais? Sem dúvida no hilariante testemunho de Laura Junoh50) e em Alexandre Herculano (lembre-se o "chapeau crasseaux de Louis XI" que o rei português envergava). Ainda assim, Martins generaliza os informes cómicos e surrealistas que a mulher de Junot e Herculano fixaram para a posteridade - também obedecendo a um evidente parti pris contra o casal real português. Por outro lado, no que se refere à nação em geral, Oliveira Martins foi decerto sensível aos pouco favoráveis testemunhos de viajantes estrangeiros do século XVIII (caso de Dumouriez) em relação ao carácter nacional e aos hábitos de higiene dos Portugueses(51).

No retrato de D. João VI da autoria de Oliveira Martins está bem marcada uma dimensão que só pontualmente encontramos nas

(4S) Idem, ibidem, p. 261.(49) Idem, ibidem, pp. 260-261. Embora abundassem também os informes acerca

de D. Carlota Joaquina, a maior parte deles compondo uma curiosa lenda negra (veja-se Sara Marques Pereira, D. Carlota Joaquina e os "espelhos de Clio". Actuação política efigurações historiográficas, Lisboa, Livros Horizonte, 1999), não surpreende que o historiador tenha deixado num plano secundário esta outra personalidade dotada de evidentes virtualidades para compor um outro tipo degenerado. De facto, Oliveira Martins estava sobretudo interessado em personificar a decadência e a degenerescência portuguesas no retrato único de um monarca que ainda era (embora longinquamente) descendente do Condestável.

(50) Laura Junot, Mémoires de la Duchesse d'Abrantès..., vol. V, pp. 377-378. Entre outros traços do príncipe regente, Laura Junot refere-se à "chevelure de nègre [...] bien en harmonie avec ses lèvres épaisses, son nez africain et la couleur de sa peau" e qualifica ainda a sua figura de "bien pommadée, bien poudrée" (sublinhados nossos). Quanto a D. Carlota Joaquina, traçava-lhe um retrato pormenorizado, em que avultava "une peau végétante [...] des lèvres bleuâtres" e "des cheveux secs, crépus [...] bouffants et sales" (Idem, ibidem, pp. 382-383; sublinhados da Autora).

(51) Veja-se Castelo Branco Chaves, Os livros de viagens em Portugal no século XVIII e a sua projeccção europeia, Lisboa, 1977, pp. 39-40 e 48-57.

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fontes em que se baseou (especialmente em Beckford e Laura Junot): a carga hereditária, o atavismo e alguns dos estigmas que, no século XIX, a psicopatologia atribuiu aos chamados degenerados. Note-se que este último termo nunca é utilizado pelo Autor a respeito dos monarcas da dinastia de Bragança. E, no entanto, o sentido está implícito ou até bem explícito na caracterização física e psicológica de vários monarcas - D. Sebastião, D. Afonso VI, D. Maria I, D. Pedro III - sem que a palavra ocorra uma única vez. Silêncio significativo.

3. A noção de degenerescência constitui um tópico-chave da cultura europeia de finais do século XIX. De origem francesa, o termo difunde-se extraordinariamente na segunda metade do século e, em especial, desde o decénio de 1870(52). Para tanto contribuíram os desenvolvimentos da psicopatologia (Pinei, Esquirol, Jacobi, entre outros) e sobretudo a obra do alienista francês Morei, o primeiro a introduzi-lo no discurso científico. A noção de degenerescência aplicava-se a determinados padrões de hereditariedade e, especificamente, a desvios em relação ao tipo humano considerado normal. Remetia para um conjunto muito variado de doenças e desordens, abrangendo os domínios conexos das condições fisiológicas, hábitos sociais e morais. Da configuração craniana e das orelhas à tuberculose e raquitismo, passando pelo bócio e a elefantíase, era toda uma panóplia de patologias físicas, sem esquecer perturbações das funções intelectuais e psíquicas - caso de inércia, melancolia e apatia. Como observaria no final do século Max Nordau, o abatimento associava-se à aversão de agir e à impotência da vontade (abuliaX53). No entender de Morel, a degenerescência traduzia-se num processo de transformação regressiva, patológica, na sociedade e no indivíduo, no corpo e no espíritoí54). De contornos pouco definidos, a noção generalizar-se-ia após os estudos deste psiquiatra, nomeadamente com os trabalhos de Lombroso, a um conjunto ainda mais vasto de estigmas.

(52) Contudo, surgiu muito antes, no séc. XVI, na forma degeneração. Para os séculos XIX e XX, veja-se Daniel Pick, Faces of degeneration. A european disor­der, c. 1848- C.1919, Cambridge, Cambridge University Press, 1996.

(53) Max Nordau, Dégénérescence, vol. I, Paris, Félix Alcan, 1894, p. 38.(54) Daniel Pick, ob. cit., pp. 50-51. Afirmava Morel: "L'idée la plus claire

que nous puissions nous former de la dégénérescence de l'espèce humaine, est de nous la répresenter comme une déviation maladive d'un type primitif. Cette

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Em Portugal, estavam reunidas as condições para que a ideia de degenerescência adquirisse larga voga, aplicando-se ao carácter nacional (mas não só). Entre outras razões devem destacar-se as profundas transformações que se verificam na economia e na sociedade portuguesas desde o início de Oitocentos com os efeitos da concorrência da indústria britânica, as invasões francesas, a abertura do mercado brasileiro e depois a perda do Brasil. Estas transformações marcaram a consciência do declínio da nação portuguesa no mundo da era das revoluções, em brusca mudança. Perdido o Império brasileiro, o investimento em África não passaria, durante largos decénios, do plano das intenções. E as elites políticas e intelectuais experimentaram como nunca o sentimento de decadência. Lembre-se ainda que no séc. XIX estava muito difundida a concepção mecânica de natureza tal como Newton a teorizara. Por meio da observação e da experiência, a filosofia natural (que passaria a designar-se de física) desvelava a estrutura e as operações da natureza, traduzindo-as em leis donde se deduziam causas e efeitos. O método experimental adquirira largo prestígio e fundamentava a crença racionalista no progresso. De tal modo fulgurante foi esse prestígio que o método tomou-se um paradigma válido também no domínio das ciências humanas e sociais, com destaque para a história. Por outro lado, o chamado organicismo social, com o seu expressivo cortejo de metáforas do organismo generalizava-se extraordinariamente do discurso político à historiografia, passando pelos jornais e pela literatura de cordel. Compreende-se assim a indagação quase obsessiva das causas da decadência nacional, que topamos em autores dos primeiros tempos do sistema liberal (José Liberato, Herculano), nos intelectuais que se afirmam nos anos 40 (Henriques Nogueira, Lopes de Mendonça) e na chamada Geração de 7CK55). O fenómeno do declino devia ser diagnosticado nas

déviation, si simple que Ton la suppose à son origine, renferme, néanmoins des éléments de transmissibilité d'une telle nature, que celui qui en porte le germe devient de plus en plus incapable de remplir sa fonction dans l'humanité, et que le progrès intellectuel déjà enrayé dans sa personne se trouve encore menacé dans celle de ses descendents" (Traité des dégenerescences phisiques, intellectuelles et morales de l'espèce humaine et des causes qui produisent ces variétés maladives, Paris, 1857, apud Max Nordau, oh. cit., p. 32). Conhecia Oliveira Martins os estudos de Morel? Embora nunca os cite, é de admitir que sim, pelo menos indirectamente, por via de outros - caso de Lombroso.

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suas múltiplas dimensões e sintomas, com vista a uma retoma do progresso. Ora o tópico da degenerescência surge, não raro, associado à tão marcante mitologia da decadência que, na Europa do Sul, conheceu larga expressão em finais de Oitocentos. Exemplo disso são as considerações de Ramalho Ortigão sobre a degenerescência dos reis, publicadas em 1875. Ramalho considerava as casas reais europeias como uma raça à parte, claramente diferenciada, por via da quebra das relações de sangue com a nacionalidade: uma raça "expatriada", decadente e degenerada pelos casamentos consanguíneos. A decadência e o fim à vista dos monarcas não ficaria a dever-se aos avanços da democracia mas sim às leis biológicas^56). Mas a noção de degeneração da espécie humana ou de certos povos já se encontra explícita em várias obras portuguesas do decénio de 1830, aplicada ao carácter nacional: refiram-se as de Tibúrcio Craveiro, Inácio José de Macedo e José Liberato Freire de Carvalho, sem esquecer Herculano, em meados do século. Posteriormente foi acolhida, entre outros, por Eça de Queiroz e Pinheiro Chagas(f7).

É nesto contexto que podemos perceber a atenção que Oliveira Martins atribui à problemática que nos ocupa. É sabido que o Autor da Biblioteca das Ciências Sociais foi um dos divulgadores em Portugal de uma concepção dinâmica da natureza: o transformismo, tal como foi fundamentado por Darwin e Haeckel, entre outros autores^58). Martins

(55) Veja-se João Medina, Eça político. Ensaios sobre aspectos político-ideológicos da obra de Eça de Queiroz, Lisboa, Seara Nova, 1974, pp. 33-34; A.M. Machado Pires, A ideia de decadência na Geração de 70, Ponta Delgada, 1980 e Sérgio Cam­pos Matos, Historiografia e memória nacional no Portugal do século XIX, Lisboa, Ed. Colibri, 1998, pp. 350-384.

(56) Ramalho Ortigão, "A decadência dos Reis pelos casamentos consanguíneos", As Farpas, vol. X, Lisboa, Clássica Ed., s.d. (texto datado de Jul. de 1875). Cf. também Idem, "A decadência da raça pelos vícios da educação", As Farpas, vol. VIII, Lisboa, Liv. Clássica, 1949 (texto de 1879), pp. 211-223.

(57) Veja-se Sérgio Campos Matos, ob. cit., pp. 376-377; Idem, "Decadência", Dicionário Eça de Queiroz (coord. A. Campos Matos), Lisboa, Ed. Caminho, 1988, pp. 254-261 e A.M. Machado Pires, ob. cit., pp. 105-115.

(58) Veja-se Ana Leonor Pereira, Darwin em Portugal (1865-1914): filosofia, história, engenharia social [tese de doutor, policopiada], vol. I, Coimbra, s.n., 1997, p. 305 ss e Fernando Catroga, "História e ciências sociais em Oliveira Martins", História da História em Portugal. Sécs. XIX e XX, Lisboa, Círculo de Leitores, pp. 127-130.

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distancia-se da versão providencialista e mítica do homem para adoptar a explicação científica então em voga: a ideia dinâmica da hominização a partir de tipos primitivos, próximos dos antropóides. Mas, ao invés do que ao tempo era comum, não adopta uma teoria unilinear de progresso da humanidade, antes reconhece pontos de paragem e até de retrocesso na caminhada do homem(59). Tal como Darwin ou Haeckel, Martins admite que sob o efeito de determinadas mudanças de condições de existência, uma raça pode decair e regressar ao estado selvagem. Mas logo esclarece que os exemplos conhecidos não se encontram entre os povos semitas ou indo-europeus. E cita os casos de colónias dos egípcios, fenícios, gregos e portugueses que, afastadas da pátria, "secaram e morreram" ou, o caso dos boers, que regrediram a um estado primitivo^50). Ou ainda, os exemplos de tripulações naufragadas em regiões remotas. Entre as antigas colónias portuguesas, refere o caso de Malaca, em que os cerca de 3 000 descendentes dos primeiros colonizadores idos de Portu­gal, além de viverem num estado miserável de degradação e de terem perdido a tradição dos antepassados, seriam, entre a população malaia, os mais feios fisicamente e os mais degenerados do ponto de vista moral(61). Mas os próprios malaios de Samatra, Java ou outras ilhas da Polinésia, são em geral, considerados por Oliveira Martins um exemplo de civilização degenerada devido ao isolamento ou a uma catástrofe geológica. Embora fossem detentores de uma tecnologia dos metais, ao emigrarem para certas ilhas do Pacífico, caso de Taiti, teriam perdido esse uso e regrediram à Idade da Pedra(62).

Também no próprio seio das sociedades mais desenvolvidas e cultas, abundariam exemplos de seres degenerados que evidenciavam paralisação no desenvolvimento e um estádio anterior ao tipo humano. Seguindo Haeckel, Oliveira Martins refere os cretinos, os microcéfalos

(39) Já em 1873, em polémica com Antero de Quental e Júlio de Vilhena, Oliveira Martins considerava a Idade Média um retrocesso em relação à Antiguidade, do ponto de vista moral, social e político, embora historicamente superior, pois a civilização adquiria então um carácter europeu. Cf. A Idade Média na História da civilização (pref. e notas de F.A. de Oliveira Martins), Lisboa, 1925, p. 27.

(60) J.P de Oliveira Martins, As raças humanas, e a civilização primitiva, 4a ed., vol. I, Lisboa, Parceria A.M. Pereira, 1921 (Ia ed., 1881), p. 57.

(61) Ibidem.(62) Idem, ibidem, pp. 159-160.

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e brutos. Todos os graus de desenvolvimento do homem, "da pura bestialidade à humanidade pura" se encontrariam na época - o que faria das sociedades humanas um verdadeiro museu, "bem mais eloquente que os da arqueologia" (fô). As condições do meio e da historia, a hereditariedade e a capacidade genética concorreriam para a emergencia desses casos teratológicos. Desabafava Oliveira Martins:

"Em volta de nós andam bárbaros: por isso as sociedades carecem de se precaver contra a anarquia; andam verdadeiros selvagens, contra os quais ela criou as cadeias e patíbulos. A civilização eminente, privilégio ou sacerdócio de uma única das raças humanas, é no seio de cada sociedade o privilégio de um número mínimo. E não são opiniões mais ou menos vagas que o dizem: são observações positivas; são hábitos primitivos como a tatuagem comum nos soldados, nos marujos, nas prostitutas, nos criminosos; é essa fisionomia dos facínoras, prognatas, com o cabelo duro e crespo, a barba rara, a pele frequentemente escura, a oxicefalia, a obliquidade dos olhos, a pequenez do crânio, o desenvolvimento das mandíbulas e dos ossos sigomáticos, a fronte fugidia, a expansão das orelhas, as analogias entre os dois sexos, a pequena força muscular..."(64).

O olhar elitista era comandado pela teoria evolucionista, etnocêntrica, então em voga, segundo a qual só aos arianos pertencia um destino e uma missão civilizadora e progressiva. E todavia, Oliveira Martins reconhecia e denunciava a crueldade do tratamento que "as raças superiores" infligiam às raças consideradas inferiores, por analogia com o que se passa no universo social das nações desenvolvidas entre as classes dominantes e os desvalidos da fortuna.

Considerava, por outro lado, a inevitabilidade da degenerescência: num determinado momento, coincidente com o limite máximo da capacidade da raça mais apta, o desenvolvimento civilizacional teria de parar. No quadro de uma concepção naturalista e vitalista, essa degradação fazia parte da ordem das coisas ("[...] o ritmo vital é a condição de tudo o que realmente existe: só as ideias da razão são reais, absolutas, eternas!"). Compreende-se melhor, neste

(63) Idem, ibidem, p. 204 e 102.(64) Idem, ibidem, pp. 58-59

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âmbito, a sua ideia nihilista segundo a qual nas democracias - estádio para o qual, na sua visão, apontava a evolução social -, tal como nos tempos primitivos, tudo seria anónimo, inclusivé, a fama e a imortalidade, que se tornaria impessoaH65).

Esta teoria da degenerescência inscreve-se numa concepção dinâmica e dialéctica do homem, nas suas palavras "ser contraditório, deus e besta, umas vezes herói outras vezes réptil, generoso e baixo, agora clamando como um profeta, logo orneando como um onagro - ser feito de antíteses que habita no seio de todos nós" O’6).

Conhecem-se os termos em que o historiador via o carácter nacional, marcado por um pendor passivo e falta da afirmação (não era também essa uma das características psíquicas de D. João VI?). Esse pendor não excluía, no entanto, o entusiasmo religioso e o heroísmo na realização. Mas a expansão ultramarina que levou os Portugueses a distantes paragens teria tido um efeito dissolvente sobre o génio nacional. O clima, o meio, a sensualidade e a miscigenação com as raças orientais, a par do luxo, teriam propiciado essa degenerescência. Significativo é que Oliveira Martins designe os sucessores de Afonso de Albuquerque de "pigmeus", "bárbaros", "chatins" e animais, praticando o saque violento, feroz e anárquico(67): a corrupção do carácter nacional, a sua dissolução no mais baixo nível do instinto nisso se traduzia. Os heróis davam lugar a seres abjectos, degeneradosO8). Por outro lado, a educação jesuítica, pregando a obediência e a anulação da vontade, a par da superstição e da inércia intelectual teriam minado uma já débil curiosidade científica. Sob o efeito deste complexo de factores, a sociedade portuguesa mergulhara, desde o século XVI, na atonia e na decomposição - processo regressivo que se acentuaria até ao século XIX. A Restauração de 1640 não invertera essa deriva histórica - Portugal

(65) Idem, "Pró política", A Província, vol. III, Lisboa, Guimarães Ed., 1959, pp. 353-354.

(66) J.P de Oliveira Martins, Elementos de Antropologia, p. 26.(67) J.P de Oliveira Martins, História de Portugal, vol. I, pp. 270-274.(68) "Na índia o fumo desenfreava o animal que se retouçava delirante nas

sedas e nos perfumes, nas frutas e nas mulheres, coberto de diamantes, abarrotado de pardaus de oiro. Breve, porém, esse fumo se dispersou no ar; e a desolação universal trouxe a miséria, o luxo trouxe a fraqueza; e à violência de bárbaros, os portugueses juntaram a mesquinhez de chatins" (Idem, ibidem, p. 274).

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não passava então de uma sombra daquilo que fora e o messianismo sebastianista, sendo uma manifestação do génio nacional, não era mais do que "uma prova póstuma da nacionalidade" (69).

Há um outro aspecto que se impõe sublinhar no olhar de Oliveira Martins sobre a decadência portuguesa: a loucura colectiva da comunidade nacional, com a qual está em sintonia a loucura ou idiotia de alguns dos seus monarcas - caso de D. Sebastião, de D. Afonso VI, de D. Maria I ou de D. Pedro III. Os indivíduos, os heróis ou, pelo contrário, os seres abjectos na mais baixa escala da natureza humana, são sempre representativos de determinadas tendências sociais. Vejamos apenas dois exemplos, o retrato físico de D. Sebastião, esse Nun'Álvares da perdição, que "encarnara toda a loucura do povo": "Era um rapaz antes baixo do que alto, ruivo, de olhos azuis, com a tez branca picada um tanto de bexigas, e o beiço inferior grosso dos Habsburgos, cujo sangue tinha da mãe. Inquieto, nervoso, doentio, era um desequilibrado. Tinha todo o lado direito maior do que o esquerdo: a mão, o braço, o flanco, a perna e o pé, com um dedo a mais. As pernas eram excessivamente longas para as dimensões do tronco".

E de D. Pedro III: "O rei esposo, feiíssimo, com um aspecto de idiota, o olhar esgazeado, a peruca desgrenhada, parecendo bêbado, era um sacristão, ou cousa nenhuma: o ente que piedosamente fora encarregado de dar herdeiros à coroa" i70).

Que imagens mais drásticas e definitivas poderiam projectar- se da (suposta) doença nacional de que falava o historiador? - Oliveira Martins refere-se à "loucura mística" e à "doença do espírito português", que dominava a alma nacional nos séculos XVII e XVIII. A teoria da degenerescência dominava esta interpretação do Portugal da decadência. Já foram, com pertinência, estudados os sentidos das metáforas da morte que povoam a obra do historiador, bem como o darwinismo social, racialista, que igualmente a enformai71). Martins conhecia a obra de Darwin e era adepto da sua tese da descendência com modificações, por selecção natural. Também o naturalista britânico, na sequência de outros estudiosos (Morei, Galton), salientara

(69) Idem, ibidem, vol. II, p. 80.(70) Idem, ibidem, pp. 48, 50 e 215.(71) Augusto Santos Silva, "Morte, mediação e história. Uma viagem

tanatográfica ao pensamento de Oliveira Martins", Palavras para um país, Lisboa, Celta, 1998, pp. 65-107 e Ana Leonor Pereira, ob. cit., vol. II, p. 755.

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a transmissão hereditária dos fenómenos de loucura (tal como da genialidade e das perturbações do psiquismo), situações de paragem no desenvolvimento - caso de certas monstruosidades como o cérebro dos idiotas microcéfalos, o simus frontal exageradamente desenvolvido ou o prognatismo. Darwin notava a semelhança destes idiotas com os "tipos inferiores da humanidade" e admitia os fenómenos de regressão no sentido de um tipo primitivoí72). E que, quando as espécies se tornam muito raras, apresentando poucas variações favoráveis (o que retardaria o aparecimento de novas formas), o cruzamento entre parentes ajuda a exterminá-las(73). Não notara Ramalho Ortigão, também ele marcado pelo darwinismo social, esse mesmo fenómeno nas dinastias reais?

4. Sem ser explicitamente referido, o tópico da degenerescência constitui uma das chaves para a compreensão da História de Portugal de Oliveira Martins. Outros autores tinham discorrido largamente sobre a decadência e a degenerescência, inventariando sistematicamente causas e efeitos, sintomas e consequências. O reinado de D. João VI já tinha sido considerado por alguns autores liberais (caso de José Liberato Freire de Carvalho) o ponto mais baixo do declínio nacional. Mas ninguém tinha ido tão longe nesse inventário crítico descrevendo minuciosamente os sintomas de uma patologia colectiva que era ncessário esconjurar para retomar a senda do progresso. A novidade de Oliveira Martins na historiografia portuguesa reside no seu método totalizante, sintético e artístico. Na sua narrativa, o indi­vidual e o colectivo integram-se numa dialéctica em que o paradoxo irrompe a cada passo. O que prevalece não é apenas a visão de conjunto. É também o pormenor insólito, sintomático do todo. Degenerescência, o termo ausente, mas afinal sempre presente na História de Portugal é, nos seus pouco definidos contornos científicos, uma das palavras-chave que nos permite captar o sentido da narrativa. A caracterização da figura mais típica desse processo regressivo - "o velho imperador sem império", como Oliveira Martins designaria D. João VI no Portugal Contemporâneo - corresponde a um dos momentos mais expressivos de aplicação do seu método de reconstrução ideal do passado. i *

i72) Charles Darwin, La descendence de Vhomme, vol. I, Paris, 1872, p. 130.C3) Idem, El origen de las especies, Barcelona, Ed. del Serbal, 1994, p. 116.

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Na verdade, a personalidade de D. João VI emerge como figura- tipo culminante da deriva histórica da nação ao longo de três séculos de declínio e degenerescência. Nela centrou Oliveira Martins os vícios e estigmas desse processo regressivo em que, no olhar clínico de alguns dos intelectuais da geração de 70, a sociedade portuguesa se atolara desde Quinhentos.

Torna-se evidente a preocupação que teve o historiador em fundamentar esse retrato em múltiplas fontes e estudos de que dispunha ao seu tempo. Ao invés do que poderia supor-se, Martins aproveita até ao mais ínfimo detalhe os informes carreados pelos seus antecessores. Mesmo em alguns dos episódios em que recria situações - caso da derradeira imagem do rei num coche, aos solavancos pelas ruas de Lisboa -, Martins fundamenta-se nesses informes, integrándo­os depois na sua própria narrativa. Nesta, a conjectura tem uma função relevante na construção da situação verosímil. Trata-se assim de conferir unidade ao conjunto, não uma unidade fictícia, mas sim plausível, provável, na medida em que assente, directa ou indirectamente, com maior ou menor rigor, em testemunhos. A par disto, temos o comentário, em que, não raro, avulta o juízo de valor, mais ou menos marcado ideologicamente.

Decerto Oliveira Martins colhe apenas nas fontes aquilo que o seu olhar, à partida condicionado, deixa ver. Não são apenas pormenores significativos para compor o retrato físico e psicológico das personalidades históricas. É também a impressão de conjunto que as fontes transmitem: a atmosfera nocturna, silenciosa e de mistério do Paço de Queluz, fixada na memória de Beckford; a desordem surda, a melancolia e a marca fúnebre do episódio do embarque para o Brasil, já bem evidente no relato coevo de Acúrsio das Neves, ou o perfil burlesco de D. João VI construído num tom de irónico e compassivo, já patente em Herculano. O modo como Oliveira Martins aproveita o testemunho de Beckford - porventura o mais expressivo ponto de vista exterior de que ainda hoje dispomos sobre o Portugal de finais de Setecentos - é, a este propósito, dos mais significativos. O Autor da História de Portugal destaca tudo aquilo que convém ao retrato burlesco de um pobre rei Lear e esquece as impressões mais favoráveis do ficcionista britânico.

O caso de Oliveira Martins constituirá, porventura, um exemplo-limite para compreender a relação entre história e ficção, entre a imaginação do historiador e a imaginação do ficcionista - que, deve

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História e Ficção em Oliveira Martins

frisar-se, não era. Nos parâmetros em que se movia a historiografia oitocentista, é bem patente na sua obra uma preocupação que ultrapassa a de autenticidade histórica. Chamemos-lhe (adoptando aliás um termo caro ao Autor) verosimilhança. Chamemos-lhe conjectura. Mas, em rigor, dificilmente se poderá falar de ficção. Quando lemos que, à chegada ao cais de Belém, pouco antes de embarcar para o Brasil, D. Maria I se debatia "às punhadas, com os olhos vermelhos de sangue, a boca cheia de espuma", podemos duvidar da autenticidade da cena, no seu pormenor. Como não reconhecer, todavia, que fosse plausível? Outros autores, de resto, a relatam. Podem discutir-se as maiores ou menores exigências de distanciação crítica do historiador em relação às fontes que manuseia. É todavia bem evidente que há limites da veracidade que Martins não ultrapassa.

Um último aspecto se impõe salientar: a mensagem da História de Portugal para o presente do historiador (1879) - os finais do século XIX em Portugal. O olhar dissolvente sobre o Portugal da decadência e da degenerescência tornava-se particularmente acudíante no que respeita à dinastia de Bragança e ao seu expoente mais acabado - D. João VI. Sintomático é, de resto, que os republicanos tenham aplaudido esta dimensão da História de Portugal martiniana. D. João era, no dizer de Oliveira Martins, "um tipo complexo" marcado por variados contrastes. "Observando-o de agora, é mister concordar que, um pouco menos burlesco, seria o melhor dos reis constitucionais: bastava o cantochão e as peças de ouro para o distrair". É inevitável o paralelismo com D. Luís, o monarca que Oliveira Martins desconsiderava e a quem, poucos anos depois (1883) aconselharia a demissão. Pode, no entanto, perguntar-se se esta mensagem da História de Portugal estaria em consonância com a posterior intervenção política de Oliveira Martins, a partir da sua adesão ao Partido Progressista (1885). Parece-nos evidente que não. Mas também essa não sintonia com o projecto de regeneração da sociedade portuguesa a partir do interior do Constitucionalismo monárquico (e não dos partidos exteriores ao sistema, o Partido Socialista e o Republicanismo), não surpreende. Na verdade, entre 1879 e 1885, muita coisa sucedeu na sociedade portuguesa. Fontes Pereira de Melo regressou ao poder para um dos seus mais longevos governos e o republicanismo alargaria a sua influência. Acentuaram-se, por outro lado, os sinais da brutal crise financeira que iria eclodir pouco depois (1890-92). Acresce que a intencionalidade de Oliveira Martins ao erguer a sua Biblioteca das

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Page 36: URL DOI - digitalis-dsp.uc.pt · Acresce que Oliveira Martins era muito crítico em relação ao romance histórico, género que considerava híbrido e falso - daí que rejeitasse

Revista de Historia das ideias

Ciências Sociais não era doutrinária mas reflexiva e pedagógica. Havia que sacudir o indiferentismo e a modorra, fustigar a consciência social dos Portugueses, acordar as elites para um esforço voluntarista de redenção da comunidade nacional. Compreendem-se assim as interrogações com que o historiador encerra a História de Portugal e que podemos formular noutros termos: continuava o declínio nacional? Ou estar-se-ia perante afirmação de uma aspiração ainda obscura no sentido da reabilitação colectiva? Ao deixar intencionalmente em aberto a resposta, Oliveira Martins sabia que a sua obra poderia ser interpretada em múltiplos sentidos. Mas não sucede isso mesmo com todos os livros que deixam marcas profundas na cultura de uma nação?

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