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Humanística e Teologia. 38:2 (2017) 165-185 }2.1. O Povo d’As Farpas Ética democrática e cívica em Ramalho Ortigão* PEDRO VILAS BOAS TAVARES** 1. Ramalho falou daqueles que vão para as aventuras da escrita como os gatos para as aventuras do telhado: «Quando lhes não fareja outro que tivesse passado primeiro, hesitam em sua marcha, tremem-lhes as pernas e acocoram» 1 . Neste caso, referia-se especificamente à pena de numerosos espíritos domesticados, propensos a repetirem tudo aquilo que as conveniên- cias do seu tempo e do regime aconselhavam… * O presente texto é uma adaptação da conferência proferida pelo autor em 10.12.2015, na Sala das Sessões da Irmandade da Lapa, Porto, integrada no ciclo de conferências promovido pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, em colaboração com a Câmara Municipal do Porto, a Fundação Eng. António de Almeida e a Irmandade da Lapa, dedicado a Ramalho Ortigão, por ocasião do centenário do seu falecimento. Adverte-se para o facto de este texto estar escrito sem obediência ao acordo ortográfico de 1990. ** Membro do Grupo de Investigação Sociabilidades, Práticas e Formas de Sentimento Religioso, da Unidade de I&D (FCT) CITCEM – Centro de Investigação Transdisciplinar Cultura, Espaço e Memória, Faculdade de Letras, Universidade do Porto, Via Panorâmica s/n 4150-564, Porto, Portugal. [email protected] 1 As Farpas, VI, p. 99. Não havendo indicação em contrário, citaremos sempre pelas Obras Completas de Ramalho Ortigão que a Livraria Clássica Editora, de Lisboa, começou a publicar em 1942.

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165O POVO D’AS FARPAS. ÉTICA DEMOCRÁTICA E CÍVICA EM RAMALHO ORTIGÃO

Humanística e Teologia. 38:2 (2017) 165-185

}2.1.

O Povo d’As FarpasÉtica democrática e cívica em Ramalho Ortigão*

PEDRO VILAS BOAS TAVARES**

1. Ramalho faloudaquelesque vãopara as aventurasdaescrita comoos gatos para as aventuras do telhado: «Quando lhes não fareja outro quetivesse passado primeiro, hesitam em suamarcha, tremem-lhes as pernaseacocoram»1.Nestecaso, referia-seespecificamenteàpenadenumerososespíritosdomesticados,propensosarepetiremtudoaquiloqueasconveniên-ciasdoseutempoedoregimeaconselhavam…

*Opresentetextoéumaadaptaçãodaconferênciaproferidapeloautorem10.12.2015,naSaladasSessõesdaIrmandadedaLapa,Porto, integradanociclodeconferênciaspromovidopelaFaculdadedeLetrasdaUniversidadedoPorto, emcolaboraçãocomaCâmaraMunicipaldoPorto,aFundaçãoEng.AntóniodeAlmeidaeaIrmandadedaLapa,dedicadoaRamalhoOrtigão,porocasiãodocentenáriodoseufalecimento.Adverte-separaofactodeestetextoestarescritosemobediênciaaoacordoortográficode1990.**MembrodoGrupodeInvestigaçãoSociabilidades,PráticaseFormasdeSentimentoReligioso,daUnidadedeI&D(FCT)CITCEM–CentrodeInvestigaçãoTransdisciplinarCultura,EspaçoeMemória, Faculdade de Letras, Universidade do Porto, Via Panorâmica s/n 4150-564, Porto,[email protected] As Farpas, VI, p. 99.Não havendo indicação em contrário, citaremos sempre pelasObras Completas de Ramalho Ortigão queaLivrariaClássicaEditora,deLisboa,começouapublicarem1942.

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À primeira vista, alguém mais supina-menteprimárioou refolhudamentesecundá-riopoderiadesconfiardoteoremóbildotítulodestaintervenção.Nadadeequívocos!Sóporpreconceitoeaparênciasfalazesselobrigaránele algo de atrevidamente provocatório. Enemotelhadoédezincotãoescaldantequenão se possa pisar, nem lobrigamos quais-quer razões para que não ensaiemos aquiumamarcharegular,de isenta reflexãopes-soalpartilhada.

É certo que nos falececurriculum pro-porcionado e acaso apetrechamento conve-nienteparaaevocaçãocabalde tãograndemestre da «mentalidade portuguesa do seutempo», transplantadodoensinodoColégiodaLapaparaa«cátedradasFarpas»2.Mas,sobretudo dado tratar-se aqui de Ramalho,ousar é preciso, e o tema é mesmo umainevitabilidade…

«Turistaemviagemnasuaprópriaterra»,oferecendo-nosnasuaobra–en’As Farpasparticularmente–,umaimpressivaeoriginal«revistageraldopaís inteiro», dopaís real, coevo,por si amadoentranhadamente, supomosqueninguémiria–estultamente–questionarqueaobservaçãodasgentes,asinteracçõessociaisdescritas,asteoriaseconceitossociopolíticos,implícitoseexplícitosnaobradeRamalho,sejamalgoessencial,pelasimplesrazãodequenãoháverdade,nempitoresco,nemviagemondenãohápovo,edequenãohápedagogiaondenãoháumpúblicovivoainstruir.Ostiposeambientessociaisehumanos,nascasas,nasruas,nostransportes,noscampos,naslojas,nas fábricas,nossalões,nas igrejas,nas festas,nosespectáculos,pintadosporRamalho«alargostraçosdeimpressionista»3,sãoalgodecentral,enessaextensagaleriaporsiproduzidaoautornãodeixoudepermanentementeinsi-nuarouexprimir–comsuficienteclareza–asconcepçõesteóricasporsiabra-çadassobreadefiniçãohistórico-sociológicatantodePovo,enquantogrupo

2A.deMagalhãesBasto,Figuras Literárias do Porto,Porto,ManuelBarreira,1947,p.65.3Cf.MariaHelenadaRochaPereira,O Porto na Obra de Ramalho Ortigão,Porto,FundaçãoEng.AntóniodeAlmeida,2015[Ed.Maranus,1950],p.21.

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social,comodePovo,enquantouniversodetodososportuguesesunidosporhistóriacomum,língua,raçaeterritório.

Quantoaestaúltimaesfera,adaHistóriadoPovoPortuguês,RamalhoOrtigãotemumavisãomuitocomumaoshomensdaGeração de 70:adeum«Brave petit peuple heroique…queabriuaomundoumhorizonteimenso»4. Surpreendemo-lofrequentementediscreteandosobre«ogénioheroicamenteaventuroso,confiadoeaudazdopovoportuguês»,que «encheudeglóriaomundodurantepertodequatroséculos,desdeafundaçãodanacionalidadepelaaclamaçãodadinastiaafonsina,atéàperdadaindependênciapelader-rotadeAlcácer-Quibir epela subsequentedominaçãocastelhana»5.DepoisdeSousões,Braganções,SenhoresdaMaia,deBaiãoedeRibaDouroterempostoumacoroanacabeçadeAfonsoHenriques6,feitaareconquista,eesta-belecidasnoreino«sobresólidasbasestradicionaiseétnicasasnossaspri-meiras instituiçõesadministrativas:direitopúblicoedireitoconsuetudinário,poder central, nobreza emilícia, forais, inquirições, côrtes, corporações dearteseofícios,regimedetrabalho,regimedepropriedade,admissãodopovonasassembleiasgeraisdoreino,fundaçãodoensino»7,«pelaforçadonossobraçoedanossafé,pelaprogressivaculturadonossoespíritoepelapoderosacoesãodanossadisciplinahierática», teríamos fundado, segundoRamalho,«nocontinenteeuropeueatravésdosmares,umadasmaisvastas,dasmaisfortes,dasmaisricasedasmaiscivilizadasnaçõesdomundo»8.ARestauraçãode1640restituíraaPortugalasuaautonomiapolítica,masnãologrararecons-tituiressaplenitudedevidaanteriormenteexperimentadapelanação,antesselimitandoaprolongarnovostemposdefatal«decadênciadeumagranderaça,delidanaquelaapagada e vil tristeza»emque,alegadamente,Camõesteriaprevisto«ofimdasuapátria»9.Emsuma,naanterianalinhadasCausas da Decadência dos Povos Peninsulares,teriahavidosoluçãodecontinuidadenasmanifestaçõesmórbidasínsitasànossavidacolectiva,doséculoXVIemdiante,porcausado«despotismomonárquico»,do«despotismoteológico»e,finalmente,peloregímenliberal,alegadamentefalhodecritérioscientíficosnavidasocialenavidaprática10.

4Cf.Últimas Farpas,XIV,pp.171-172.5Últimas Farpas,II,25.6Últimas Farpas,II,9.7Últimas Farpas,II,26.8 Últimas Farpas,II,26.9Últimas Farpas,II,38.10AntónioManuelBettencourtMachadoPires,A Ideia de Decadência na Geração de 70,PontaDelgada,UniversidadedosAçores,1980,p.329.

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DesurpreenderseriaqueRamalhonãofizesserepercutiravisãodeca-dentista da História de Portugal após Quinhentos na organização social, ecomotal,naidiossincrasiadasclassespopulares,umavezqueamolaque-bradadasrazõesvitaisnecessariamenteatingiriatodaaGrei.Daíqueapreo-cupaçãocomovastogruposocialPovotenhasidotãoobsidiantenoautordeA Holanda,fazendo-oacompanharosavataresdeevoluçãopolíticadopaísnoseutodo,decujosmalescomungariaeseriaexpressão.

Como tal,claroquen’As Farpasé isolávelamatéria referentea “PovoRepublicano”,tentadoraqualificaçãocomcarácterdelocalizaçãoespecífica,numacronologiadeanálisecircunscritaàscondiçõesderupturaevigênciadonovoregímen.MasclarotambémqueaquestãodoregímenedasopçõesdeRamalhoperanteaRepública,apesardelegítimas,racionaisemuitonítidas,talcomonoseutempo,continuamhojeasuscitardapartedealgunssectoresumtratamentode«delitodeopinião»ouquase…

Umapena!Tentandoexplicarestatinetaquaseincompreensível(afinalaRepúblicaéumaSenhoracommaisdecemanos),oprestigiadohistoriadorRuiRamoscrêqueaquedadoMurodeBerlimeaorfandadeideológicamar-xistaterãocontribuídoparaque,entrenós,dahabitualdetracçãodeumarevo-luçãodita«pequeno-burguesa»ecomtiquesanti-sindicais,setenhapassadoàsuadesmedidaexaltaçãohistoriográfica11.EafiguradeRamalho,maisumavez,nãoquadranoscânonesdohagiológiorevolucionário…

Neste caso importa reconhecer o significado do depoimento de ummemorialistarepublicano–JúliodeSousaeCosta–que,visitandoRamalhopouco tempo depois da implantação da República, ficou desarmado pelacompreensão, lisura, isenção e ausência de sectarismodos conselhos queoescritorlhedeu,incentivando-oacolaborar«comasuagente»,tornando-se«útilaopaís»12.

Bastantesanosantes,ojovemJúliodeSousaeCosta,entãocomvinteedoisanoseemquemRamalhoviaambiçõespolíticas, favorecidaspelousodobarretefrígio,confessando-se-lhefanáticodaleiturad’As Farpas,ousaradisparar ao escritor que, avaliando aquele «remar para as esquerdas», vianelas«belasnotasrepublicanas»,equedesejavapoderrotularpoliticamenteoseuadmiradointerlocutor.Instado,oautordeJohn Bull,escarnecendodestapremênciaderotulação,«comonogarrafóriodecategoria», terárespondidomuitosimplesmente:«Independente,comofitodedarlambadaparatodososlados…,emgregosetroianos…àdescrição…»13.

11Cf.Ler, Livros e Leitores,n.º87,Janeirode2010,entrevistaaCarlosVazMarques,pp.33-39.12 Ramalho Ortigão. Memórias do seu Tempo,Lisboa,RomanoTorres,s/d.,p.166.13Cf.Ramalho Ortigão. Memórias do seu Tempo,pp.17-18.

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Narealidade,seodiálogoassimtevelugar,JúlioSousaeCostaparecedemonstrarnãoterlido,ounãoterlidocomatençãoAs opiniões sobre a forma de Governo expressasn’As Farpas, casocontráriosaberiaqueoseuautorafirmarapoucoseimportarcomaformadoregimeedeorganizaçãodopoder,massim–emuito–comoproblemaeconómicoedesaber«comoseha[via]dedistribuirariqueza»14.

Pacientemente, aeste jovem,queentendiaquequem,comoEça, «emCoimbralidaracomAnterodeQuentaleTeófiloBraga»eemLisboa,em1871,comos promotores dasConferências Democráticas, tendo toda a obra deinquérito crítico e sátira à sociedadeportuguesado constitucionalismoqueselheconhecia,deveriaporforçaserrepublicano,Ramalhoteráobservado:«AcercadasuasuspeitasobreorepublicanismodeEçadeQueiroz,direioseguinte,eapontelánoseucartapácioparafuturascrónicas:ummonárquicopodeserdemocrata,istoé,teridealquepropendaàdefensadosinteresseslegítimosdagrei.Eçapairamuitoaltoparadesceraentenderempartidaris-mos.Comigodá-seomesmocaso[…]»15.

Efectivamente,RamalhoOrtigãoescreveuabundantementesobreosseuscritérioseopções,sabendobemdoónusdepensarlivremente,pelaprópriacabeça.Nãooenfatizaraelen’As Farpas,após«noveanosdeironiapersis-tente»iniciadosdesde1871,nessesanosexperimentando«agrandeeamadatristezadesersó»?:

«Nãoserdenenhumaseitaedenenhumpartido,denenhumclube,denenhumgrémio,denenhumbotequimedenenhumestanco,nãoterescola,nem irmandade, nem roda, nem correligionários, nem companheiros, nemmestres,nemdiscípulos,nemaderentes,nemsequazes,nemamigos,épos-suiraliberdade,éterporamantearudemusaaux fortes mamelles et aux durs appas,cujobeijoclandestinoeardentepõenocoraçãoamarcadosfortes,masrequeimanosbeiçosorisodosengraçados»16.

14Cf.As Farpas,IV,pp.111-112.15Cf.Ramalho Ortigão. Memórias do seu Tempo,p.65.Aindanãohámuitosanos,aestepropó-sito,assimseexprimiaBeatrizBerrini:«[…]paramim,nãofoiRamalhonemrepublicanomilitantenocomeço,nemmonárquicoapaixonadoao final:sãorótulosquenão lhecabem.Teve ideiasdemocráticasereformistas,paraafectivamenteseligardepoisàmonarquia,acabandoporperce-berqueoPortugalmelhorquesonharanãonasceriatãosomentedasconvicçõespartidáriasdesteoudaquelegrupooudesistemasdegoverno(Introdução,inRamalhoOrtigão,Cartas a Emília,Lisboa,LisóptimaEdições/BibliotecaNacional,1993,pp.23-24).16As Farpas,VI,p.104.

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E todavia, segundodeclaravaaosmaisnovos, numaFarpa datadadeAbril de 1882, essa solidãoda «arte satírica» tinhaas suascompensações,desde logoadecolocarosseuscultores«aoabrigodabanalidade triunfale domau gosto vitorioso, dois grandes suplícios para a sensibilidade dosartistas»17.

RelativamenteaoPRPédelembrarqueRamalhosaudouoseuapareci-mentoem1876,correspondendoàfundaçãoemLisboadeumcentrorepu-blicano. Era, segundo escrevia, excelente oportunidade de educação do«espírito público» relativamente a valores expressos na experiência demo-cráticaentãoemcursoemFrança,«repúblicaem nome da ordem»,tirandoa formadegoverno «nãodasconvulsõesdeuma revolta,masda reflexão,doraciocínio,doestudo,dadedicaçãopatrióticade todososseushomensmaishonradosemaisilustresnafilosofia,naciênciadahistória,namoralenapolítica»,evotada«pacificamente»em«sufrágionacional»18.MaserabomqueoPRPresolvesse«conservar-seinalteravelmentebomfilósofo»,entregueàsuafunçãopedagógicaedoutrinária.Casocontrário–ironizava–«seemvezdeensinarpuraeunicamente»,ocentrorepublicanopretendesse«fazereleições,fazerpolíticae–oquee[ra]maisquetudolastimável–fazerrepú-blica»,entãoseria«maisútil,maispatrióticoemaissublimedeixar-sedissoeirpassearparaoAterro»19.

JárelativamenteàRepúblicaefectivamenteproclamadaem5deOutubro,àépocadasuainstauração,oGovernoProvisórionãopareciaaRamalho«maisautenticamenteoprefáciodeumaliberalrepúblicaqueodamaisdespóticatirania»;vianomeadamentenaleideimprensaenaleidascongregaçõesreli-giosas,«poratropelamento,adenegaçãodasmaissagradasdasliberdadespúblicas, a liberdadedepalavraea liberdadede reunião»20.Nempor issoessegovernodesmereciaasuaestima,porque–declarava–«molecularmenterebeldeatodoosectarismo»,elenãopodia«sersenãomuitomoderadamenteemuitocondicionalmentemonárquico,enãoeranemnuncaforarepublicano,apesardefrequentementeo«acusaremdeprófugoederenegado»osjornaisdoPRP,«ligandoa tal invectivaumtãograndedesdourodo[s]eucarácter»comosefosseparasi«umopróbioteracamaradocomeles»21.

17As Farpas,IX,p.182.18 As Farpas,VII,p.197.19As Farpas,VII,p.198.20Últimas Farpas,II,p.12.21 Últimas Farpas,II,p.15.Sobreestamatéria vide As Farpas,IV,Cap.X,«AsOpiniõessobreaformadeGoverno».

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Clarificadapelopróprioescritorestaquestãoprévia, aindaassiméderecordarquelogoem1912lhepareciajáapátria«comparávelaumprédiodequesecretamentesetivessemextraídoosalicerces»22.

Asátiraaomomentopolíticovivido(aoTeófilocomasvaretasdeguarda--chuvaamolgadasdascutiladasaplicadasao inimigo,ao«istoagoraé tudonosso!» dos impantes libertadores da “tirania”, aosmilhares demisteriosos“sobrevivos” àsescaramuçasdaRotunda)23 faz-seacompanhardeum juízodevaloredeumaimportanterecordatória:ojuízodequeosnovéispolíticosrepublicanoscomeçavamdaformacomotinhamacabadoaquelesqueeleshaviamsubstituído,ealembrançaaindadeque,nessaaltura,istoé,«quandoemPortugalnãohaviasenãoconservadoresdediversasmarcas»,eletomara«parteconsiderável»,juntamentecomoseuamigoEçadeQueirós,«naobrapreparatóriadarevoluçãoemPortugal».Nempor issoesperavaoagradeci-mentodajovemRepública,achandomesmonatural–semprenasuaexpres-sivafrase–queelanãolheenviasseagoraoseucartãodevisitas,desejando--lhe «Saúde e Fraternidade»24.Explicação?:oparlamentarismodopresenteeraaindamais«oco»queodopassado,e igualmenteexercidopor«ávidospolitiqueiros de ofício, sem nenhumconhecimento dos interesses e aspira-çõesnacionais»;oraseentão,com«algunsdoseutempo»,haviadeliberado«acordardoseuletargoaconsciênciapública,aduches,aventosas,apontasdefogo,abuscapés,aempurrõeseacartoladas»,damesmaforma,«esfre-gasdestas»nãopoderiamdeixarde«exactamente»seaplicaraospolíticosdaRepública25.

De resto, «os revolucionáriosdasFarpas» apenasvisavam«uma remo-delaçãodasociedadeportuguesa»,masnão«umamudançaderegimepolí-tico».Aindaantesdesedeclararsolidáriocomosentidodalutadageraçãonova de 191426, não deixaria Ramalho de proclamar «não ser por meio derevoluções,massimpormeiodesimplesrevulsivos,quesetratamasatoniassociais»,nomeadamentepelo«saneamentodosindivíduos»e«pelotratamentopaciente,pacíficoemelindrosodacélulaFamília».Acreditavajáentão,«uni-camente»,nastransformaçõesrealizadas«pelaacção,lentamasdefinitiva,dainfluênciadasélitessobreaobtusidadedasmassas»27.Falaaquiem«massas»enão,evidentemente,emPovo…

22 Últimas Farpas,II,p.123.23 Últimas Farpas,II,p.121.24Últimas Farpas,II,p.125.25Últimas Farpas,II,p.124.26Cf.Últimas Farpas,II,pp.209-220(Carta de um velho a um novo [dirigidaaJoãodoAmaralepublicadanodiárioA Restauração,deHomemCristo,Filho].27Últimas Farpas,II,p.127.

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2.Abramosporagoraumparêntesis,talvezulteriormenteútilparaoquenospropomostransmitir.Oseuconteúdoparecepacífico.Asaber:sobretudomercêdoinfluxodafilosofiapositivista,orepublicanismo,muitomaisdoqueumaquestãomeramenterelativaàtitularidadedachefiadoEstado,perfilou--se entre nós como mundividência alternativa à da tradição cristã/católicaeuropeia. Era umprojecto visandomudar a ordem cultural existente, daí aimportânciacometidaaosmeioseagentesideológicos,educativosepropa-gandísticos.Assim,aoestudareste«movimento»,da«redeorgânica»inicial,àfundaçãodoPRP(partidopretendendoafirmar-secomodeideologiaedemassas),FernandoCatroganãopôdedeixardereconhecerque«aquedadaMonarquia»constituiuumareivindicação«inicial»e«específica»,umavezqueinscritanumatendênciaapontandoparaobjectivosmaisvastos,como«alaici-zaçãodasinstituiçõesedasconsciências»;ouseja,«àboamaneirailuminista,achamadarevoluçãorepublicanapressupunhaaconsumaçãodeumaverda-deirarevoluçãocultural»28.

Como tal, mudando a face e fundamentos da sociedade, impor-se--iaatarefade«refundarPortugal»29.Umaatitudejáconsagradanopassado:sempre que houve grandes rupturas na tradição histórica portuguesa (nosdomínios ideo-político, institucional e cultural) logo seperfilou, como legiti-maçãodasopçõesdopresente, aatitude refundadora.Conformese vira, ainstauraçãodanovaordempolíticaeeconómicadoliberalismotinhareque-rido«novasformasdeinteriorizaçãoedelegitimação»,e«issopassa[r]apelatomadadeconsciênciadequeurgiacriarumanovaopiniãopúblicaimbuídadevaloresede ideiasquealicerçassemopropósitode“refundar”aNaçãoembasesrepresentativas»30.E,noseutempo,acasoo«terramoto»pombalinonão apresentara os jesuítas e a educação jesuítica comooprincipal obstá-culoà«rementalizaçãopolíticadasociedadeeàreestruturaçãodoestado»31,numalinhadedespotismoesclarecido,comerecçãodaCompanhiano“bodeexpiatório”daconstruçãodonovoPortugal?Comoébemsabido,estarefle-xãosobreascausasdoatrasoedadecadênciadopaísrenovar-se-iadesde

28 FernandoCatroga,O republicanismo em Portugal, da formação ao 5 de Outubro de 1910,Coimbra,Minerva,1991,p.12.29Cf.PedroVilas-BoasTavares,Projectando e justificando a «refundação republicana»: polémi-cas e tensões no “tribunal” da História,in«MVSEV»,IVSérie,n.º18(2010),pp.161-185.30 FernandoCatroga,Alexandre Herculano e o Historicismo Romântico, in LuísReisTorgal,JoséMariaAmadoMendeseFernandoCatroga,História da História em Portugal, Sécs. XIX-XX,VolumeI,Lisboa,TemaseDebates,1998,p.45.31Aludindoàconhecidapersonificaçãomartiniana(História de Portugal,Vol.I,LivroSexto,Cap.V),remetemo-nosaquiàspalavrasesentidogeraldeumimportanteestudodeJoséSebastiãodaSilvaDias,Pombalismo e teoria política,in«Cultura–HistóriaeFilosofia»,Vol.I,Lisboa,1982,pp.45-70.

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iníciosdeoitocentos,eapalavra“mágica”«regeneração»,acadasobressaltodanossavidacolectiva,seriasucessivamenteadoptadaegeneralizada(comusodesignificadoporvezescontraditório),comosímboloesperançosodeumfuturodeprosperidade,harmoniasocial,projecçãoeprestígiointernacionaisdePortugal,resultantedeprofundasreformasintroduzidasouaintroduzirnaadministraçãoegestãodacoisapública32.

Apesardetodasasrealizaçõesdoconstitucionalismoliberal,nocampomaterialenocampodacultura,os «anosdecontestação» (1865-1880)edefimdeséculoencarregar-se-iamdedesmentiroudesfazeralegadas«ilusões».Nobalançodoliberalismo,osprincipaisnomesdaGeração de 70,sobretudoAnteroeOliveiraMartins,nãoalinharamapenascausashistóricas,institucio-naiseculturaisexplicativasdaalegadacaquexiadanação.Fizeramconhe-cido,duroedefinitivo“diagnóstico”.Segundoambos,todososgrupossociaisparticipariamdesse fenómenocolectivode letargia,atoniaoumorte irreme-diável…Etodavia,aseulado,contrastivamente,umTeófiloouumJunqueirodetectavamna“lareiradapátria”,entreasfranjassociaispopulares,esperan-çosaseesquecidas“brasas”de revivescênciamoral33,ocultasporbaixodacinzadedecomposiçãodasinstituiçõesedasclassesdirigentesdopaís34.

EstanosparecesertambémaatitudedeRamalhoOrtigãoperanteaenti-dade«Povo».Umarealidade–aseuver–talvezaindatoscamenteinacabada,porculpaalheia(dasclassesdominantesedasinstituições),masdinâmicaerecheadadepotencialidades…àesperadaoportunidadedepassaremaacto.

3. DezanosvolvidossobreasConferências do Casino,Ramalhofarpeavaousodapalavra«liberdade»como«ograndepratoderesistênciaemtodososjubilososbanquetesdopalavreadonacional», umentusiasmoapenas supe-radopelodainvocaçãodo«povo»,porque–ironizava–«quemdizpovotemdito tudo quanto se pode dizer emdemocracia». Por isso, «os patriotas deambasascasasdoparlamento»,mesmoosdaaristocrática,«batendonopeitoaspunhadasmaisplebeiaseconvictas»,gritavamtambémserpovo!Todoseram«filhosdopovo»,«povoelesmesmos»,nãoquerendo«nadadestemundosenãodopovo,paraopovoepelopovo»35.Asátiraiadirectaparaainautenti-cidadedasalegações,pois«semprequeopovodeixa[va]deserumaimagem

32 Cf. v.g. Maria Cândida Proença, A Primeira Regeneração. O Conceito e a Experiência Nacional (1820-1823),Lisboa,LivrosHorizonte,1990.33Cf.PedroVilasBoasTavares,História da Literatura em Teófilo Braga – Romantismo, gestão de informação e estratégias de luta ideológica,in«BracaraAugusta»,LVIII(2013),p.260.34Cf.José-AugustoFrança,O Romantismo em Portugal,Lisboa,LivrosHorizonte,1993,p.542.35Farpas Esquecidas,XVII,p.82.

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parlamentareumaabstracçãooratória[…],eapareciadejalecaoucamisola,desapatos ferradosedebonésobreoolho,dandovivasoudandomorras,o povo, para todos esses senhores, cessava imediatamentede ser opovo»paraser«algunsmaltrapilhos»ou,paraosburgueses,«garotagemébria»;algosemelhanteàliberdadenalógicadaCarta:«umsagradodireitometidodentrodeumfrasco»,nãoresistindoàretiradadarolha,àprovadoseuusoconcreto,poisemtalcasoasinstituiçõespressurosamenteadvertiamousuáriodadife-rençaentrelicençaeliberdade36…

Estava ainda fresca a memória do encerramento das ConferênciasDemocráticasedarepressãodealgumasoutraslicenciosaspugnasposterio-res,comdestaqueparaosprotestospopularesemLisboacontraotratadodeLourençoMarques…Ramalho limita-seaqui–simplesmente–aconfrontaras «caríciasdaMunicipal» como irrepreensível respeitopela liberdadedeopiniãoeexpressãogozadaspelocidadãonadetestadaInglaterra37.

EmcontrastecomosentidoderacionalidadeemedidadeRamalho,nãofaltamautorescoevos,algunsaliásilustres,empenhadosnarevoluçãoenascartilhasdedoutrinaçãourbanacorrespondentes,comoutraperspectivaçãode«Povo».Estãotodos–naturalmente–emsintoniacomoteordadesconstru-çãorepublicano-positivistadahistóriadoconstitucionalismomonárquicopor-tuguês,apresentadocomomomentointermédioeincoerentedeumaevoluçãonecessariamenteconducenteàrefundaçãorepublicana.Novoregimeenovaleifundamental,novabandeira,novohino,novamoeda,eenfim…novopovo.

Sampaio Bruno advertia do alto da sua cátedra informal da Rua doBonjardim: «Queopartido republicanonãopercadevistaqueemPortugalnãobastaaniquilarogoverno,éprecisoaindacriaropovo»38.

FalandodamortedeD.Carlos,comahabitualcruezaepreconceitointe-lectualistadasclassesletradasrelativamenteàsplebes“incivilizadas”,idênti-costermosusavaFialhodeAlmeida:«Povo?Nãohápovo.Aturbaacéfalaesentimental(taradaemtodoocaso),queemPortugalfazasvezesdepovo,éumaforçadeinérciasemamenorconsciênciadesiprópria,equenoestadodebestialidadeafricanaemquejaz,tãocedo[não]podeterpapelnamarchadopaiz,restando-lhecontinuaraserexploradaporcaciques,oulevadaparaomalporpapagaiosdecomício,nosentidodassuastarashomicidas»39.

36Farpas Esquecidas,XVII,p.84.37Farpas Esquecidas,XVII,p.86.VidetambémXVIIIeXIX.38«Incivismo»,art.publicadoemA Discussão – Diário Democrático da Manhã,1.ºAno,n.º158(Porto,10.6.1884),inDispersos II (organizaçãodeAfonsoRocha,recolhadeJoaquimDomingueseJoséCardosoMarques),Lisboa,INCM,2011,p.523.39Saibam quantos… (Cartas e artigos políticos),Lisboa,A.M.Teixeira,1912,p.97.

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João Chagas, por seu turno, por detrás do parapeito da máquina deguerrasubversivaconstituídapelassuasCartas Políticas,seporumladonãohesitavaemjustificaropapeldassociedadessecretasnaeclosãodasrevo-luçõeseemdeclararqueBuiça,comoseugestoassassino, «reabilitara»e«dignificara»oPovo(!),poroutrolado,contraditoriamente,declaravatambémque,poisoPovo«nuncaexistira»(!),eranecessáriocomarevolução«dar-lhenascimentoemostrá-loàpróprianaçãoassombrada,comoumhomemnovoesemprecedentes»40…Pelosvistosnãoherdeirodessapeonagemqueoutroraacorriaaochamamentonaépocaincertadasalgaradasedareconquista,doscolonosesesmeirosquefertilizavamasglebas,dosmesteiraiseburguesesqueanimavamaeconomiadevilasecidades,dosgrumetes,pilotosesolda-dosdaexpansão…

MasoPovoexistia,claro–«eeramuitobemconhecidodanação,nomea-damentedassuas“apariçõessalvíficas”notabladodosacontecimentosdasgrandescrisespolíticascolectivas,daspatrióticasjacqueriesde1383-85,oudos«levantamentos»da«Restauração»,àresistênciaàstropasfrancesasinva-soras».Sabia-omuitíssimobemChagas,mastratava-seentão,nalógicadele,demerapropagandasubversiva,«de fazerumapersonagemnova,ajustadaaosdesígniosdarevolução»41…

Aestes“arquitectos”,autoproclamadosconstrutoresdeumhomemedeummundonovos,tudoparecialícitoepossível,ereeditandoatitudesdavelhamatriz iluminista, em nomede intocáveis princípios abstractos, «não escru-pulizavamemanatematizarsumariamente,semremissão,ouemfazer“tábuarasa”detodoumvastoericopecúliocolectivodeexperiênciassociaiseinsti-tucionais,afinal“segregadas”,adaptadaseconsagradaspelapróprianação,aolongodoseuconcretoemultisseculartrajectodevida»42…

Oautord’As Farpas,pelocontrário,viaumaespéciedeinsanoefunestomessianismo (ou simplesmente uma cínica fraude) nessa singular crença,segundoaqualbastariamudaroregime(o«rótulopolítico»eaconstituição)«pararenovarumpovo»43.Aoreformismofundomasgradualista,práticoecon-cretodeRamalhoOrtigão,bastavaareivindicação(enãoeracoisadepoucamonta!)dequeopovofosserealmentetratadopelos«públicospoderes»comadignidadedepovoe«povosoberano»,ascendendodamenoridadecívicaa

40 Carta [n.º 19] ao Congresso de Setúbal, ao reunir-se para eleger o Ultimo Directório do Partido Republicano Portuguez,p.291.41PedroVilas-BoasTavares,Projectando e justificando a «refundação republicana…,art.cit.,p.181.42PedroVilas-BoasTavares,Projectando e justificando a «refundação republicana…,art.cit.,ibid.43Últimas Farpas,VI,p.83.

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agenteesenhordoseudestino.Ramalho, talcomoOliveiraMartins44,aindaque demarcando-se da iconoclastia jacobina e do republicanismo, sintoni-zava, tal comonãopodiadeixardeser, comadoutrinaçãodemocráticadohistoriador,vendonademocraciaoderradeiromomentoevolutivodassocie-dadesocidentais,correspondendoaonexoagregadordopatriotismocívico,aumsistemadeleisabstractaseuniversaiseaumfundamentodaautoridadeassentenavontadecolectiva.Aumeaoutroimportavatodaviaumademocra-cianãoapenas formal,mas tambémsocial,culturaleeconómica,naqualoEstadoexerceriavocaçãointerventoraecorrectiva.

4. Nãoédifícilperceberesta lógicaemRamalho,nomeadamentenumtextonotável,desátira,pordemaisconhecido,eque,noÁlbum das Glórias45,acompanhaacélebrecaricaturadoZé Povinho,deRafaelBordaloPinheiro,

44Cf.Quadro das Instituições Primitivas,Lisboa,Bertrand,1883,p.300.45Cf.EdiçãoFac-similadadoOriginal,comPrefáciodeJosé-AugustoFrança,Lisboa,MoraesEd.,1969,n.º32.

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umestereótipocolectivoluso46,porsiinventado,aprimeiravezapresentadoempúbliconoperiódico«ALanternaMágica»,de12deJunhode1875.

Vale a pena recordar essaparceria satíricaBordalo/RamalhodoÁlbum,queconstitui, independentementedetodasasoutrasconsiderações,umarei-vindicaçãodetransformaçãoda«caranguejolatãoengenhosamenteconcebida»combasenaCarta Constitucional, ou seja, o incoerente sistema representa-tivodoliberalismo,numagenuínademocracia.Esta,segundoamanifestaechãdoutrinaçãodotextocríticodeRamalho,eraevidentementeincompatívelcomamenoridadedoPovinho… peloquesetratavadepugnarpelaefectivasobera-nia,participaçãoematuridadecívicadoPovo,soberanonãoapenas“denome”,deacordocomasconvençõesteóricasdaleifundamental,A Carta…

POVO SOBERANO

Filiação• filhodeestremosamãe,aCarta[Constitucional,1826]• edegalhofeiropai,oParlamentarismo.

Idade• brincabrincandoestacriançatemhojepertodecincoenta

anosdeidade[1882-50=1832/34]

Estadoactual• correspondendoàsesperançasneledepositadas.• comodesenvolvimentodecabeça…estápoucomaisou

menoscomoseotivessemdesmamadoontem• apenascumpresatisfatoriamenteamissãodesuarepagar

Presente• sistemavigente,produzindoZéPovinho(estereótipocaricatu-

raldanão-integraçãoeparticipaçãocidadãnares publica)

Futuro• «tempestuoso»,«umdiavirá»,trazendomudançadefigura

edenome:POVO!

TermocorrelatoàconstruçãodegenuínaDemocracia(política,socialeeconómica),naqualoPOVOérealmenteSOBERANO

46Sobreestamatériacf.JoãoMedina,O Zé Povinho, caricatura do «homo lusitanus»,inEstudos de Homenagem a Jorge Borges de Macedo,Lisboa,INIC,1992,pp.445-472.

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A Carta, n’As Farpas tratada como«documento palenteológico», é aqui noÁlbum apresentadacomoumavelha feia,de chinelos, gato aos pés, fogareiro eguarda-sol,usando«chinópretocheirandoa rato com banha», em contraste com aeducação «delambida», «para meninafina»,umavezqueseupai,o Romantismo,esuamãe,a Monarquia Constitucional,adestinavama«casarcomo Povo».

Segundo a “diegese” biográfica dapersonagem Carta, então contando cin-quenta anos, houve uma infeliz evoluçãodesdeaassolapada«lamechice»doPovo(«bom homem ingénuo, mas bronco elabrego»)por ela, «desdeaprimeira vezque a viu», até aos desenganos do con-vívio conjugal, sua expulsão de casa,“divórcio”,“aventuras”clandestinas«comváriossujeitosdaburguesia»,eamisériapresente.

Em suma, de acordo com esta metáfora: desajustada à realidade, aCartanãoseadequavaàslegítimasaspiraçõesdoPovo,chamadoporelaàsoberania.

Em registo bem humorado, ligeiro e algo impiedoso, aqui colocavaRamalhogravesquestõesde fundoede filosofiapolítica,que, emanosdecontestação,andavamnaordemdodia,eaqueoregime,deresto,nãodeixoudetentardarresposta.

Assim,comoésabido,em1878,oalargamentodosufrágiopela leide18deMarçodesse ano, atribuindoo voto aosportuguesesdemaior idadequesoubessemlereescreverou fossemchefesdefamília,chegaraa levaroPRPa elogiar essepasso, apelidando-ode «sufrágiouniversal comoutronome».Nova leide1884manteveessasdisposições47,eem1885,umnovoactoadicionalàCartaiatambémemsentidodemocratizante,comareduçãoda legislaturapara trêsanos, restriçõesaopodermoderador,supressãodopariatohereditário,combinaçãodaprerrogativarealdenomeaçãodospares

47 FernandoFareloLopes,Poder Político e Caciquismo na 1.ª República Portuguesa,Lisboa,Estampa,1994,pp.73e74.

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(100membrosvitalícios)comoprincípioelectivo(50membros),eaindacomadeclaraçãodequeospareseramrepresentantesdanação48.

Éporventuraparaadmirarquenosdoistextoscontundentementecríticosqueacabamosdeevocar,ambosarquivadosnoÁlbum comadatade1882,apreocupaçãocomademocratizaçãodoregimeecomanecessidadedoajus-tamentodaleifundamentalaosseusfinspróprioseàrealidadesociopolíticaportuguesasejamvectorescentrais?

5.Nessemesmo ano de 82 o autor deAs Praias de Portugal admitiahonestamenteque,nousodafiguradoZé Povinho,RafaelBordaloPinheiroalgumavezsefizesseecodefrases tribunícias«deumoudeoutroclube».Masteriadesereconhecerqueessagenialcriaçãonãorepresentavaapenas«umaespéciedePolichinelodaantigacomédiade títeres,encarregadodearrecadarassovasdePierroteArlequim»;representavatambém,noapren-dizadodoaindarecenteregimedediscussãoeliberdade,osoleneprotestopelaausênciaentrenósdeumagenuína«opiniãopopular»,porestaseacharainda«porconstituir»49.OPovo,àluzdodesenhodocaricaturistaesegundoRamalho,deixaradeser«exclusivamente»oqueservia;eraentãotambémoquepagava;«masnãoe[ra]aindaoquepensa[va],oquedecid[ia]eoqueresolv[ia] […]asquestões relativas àmarcha social. Já nãoe[ra] amassainerte,passivaeamorfa».Era–concediamesmo–«uminstrumentoconside-ravelmenteaperfeiçoadoeenobrecidonaproduçãodotrabalho»,masestava«aindalongedeserumfactornaequaçãoespeculativa»,no«problemainte-lectual»coevo50.

Diferentementedebastantesdosseuscontemporâneos, sobretudodosqueseinseriamnasestratégiasdepropagandaeconquistadopoderdoPRP,claudicandoàvelha tentação jacobina,RamalhoOrtigão tinha,dopaísedoPovo, não umanoção abstracta,mas uma visão concreta, real, compassivatambém,talcomooeramoseusentidodedignidadepessoaledejustiça.

OPovo,nomeadamenteo«homemdocampo»eooperárioestãomesmonocentrodaspreocupaçõesdeRamalho,aindaqueouniversodasclassescultas urbanas e omundanismo social da cidade condicionem a obra docronista.

48Cf.J.JoaquimGomesCanotilho,As Constituições,inHistória de Portugal(dir.deJoséMattoso),5.ºVol.O Liberalismo(coord.LuísReisTorgaleJoãoRoque),Lisboa,Estampa,pp.164-165.49As Farpas,IX,p.152.50As Farpas,IX,p.153.

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Assim,olavradordoMinho(caseirosecabaneirosvivendonassuassecu-lareseprimitivascasascolmaças)eratipoegruposocialdemasiadopode-rosonahistóriaenavidadopaísparaqueRamalhonãoofizessecomparecernassuaspáginas.ÉumavariedadedoZé:

«Elepagaparatudo–paraodistrito,paraacidade,eparaacôrte;pagaasestradas,inúteisàbárbaracarretademontanha[carrointeiriçodemodelocelta,emquetransportaosseusprodutos];alémdomestrequeonãoensinaedopadrequeonãoabençoa,pagaoslegisladores,ministrosedeputados,quenãolegislamparaele;pagaogásqueonãoalumia,aáguaquenãobebe,ocaminhode ferroemquenãoviaja,oexércitoquesenãobateporele,apolíciaqueonãodefende,ojuizquelhenãofazjustiça,ogovernadorcivilquenemogovernanemociviliza,oregedorqueonãorege,eomédicoqueonãocura./EmcompensaçãodamaçadadedaraoEstadotudoquantoganha,oEstado,porumaequitativatrocadeobséquios,poupaolavradoràmaçadadereceberoquequerqueseja»51.

Neste caso, sucintamente, epigraficamente, lembra os «males» desta«prolíficaraça»,partedelaexportadaparaoBrasilcomsortediversa,fazendoaidentificaçãodolavradorcomaprópriaimagemdoboidasuaregião,queoserveecujasorteparecedecalcar,aténaalimentação:«Aervadoboiécruaechama-sepenso,adeleécozidaechama-secaldo».

Estaatençãoàsortedavetusta«raça»doslavradorescaseirosdeEntre--Douro-e-Minho merece ser tanto mais relevada quanto, depois do 5 deOutubro,comrarasehonrosasexcepções(comoasexcruciantespalavrasepropostasconcretasdoSenhordePascoaes,feitascomoCódigodeProcessoCivilnamão)52,elacontinuaráesquecidados«pátriospoderes»…

Amesmasolicitudepelasortedasclassespopularesseverificarelativa-menteàfamíliaoperáriaeàcondiçãofeminina.

Assim,asimpatiadeRamalhopelagrevedascostureirasdemodistas,declaradaemNovembrode1872,tinhaboasesimplesrazões,pormenoriza-damentedescritasn’As Farpas:péssimascondiçõeslaboraisnasoficinasdecostura,excessodehorasdetrabalhosemdescansoemiserávelremuneraçãodiária,mesmodepoisderedobradoempenhonaentregaaprazadadosves-tidosasenhorasricaseimpacientes,paraaópera,bailes,visitas,passeiosejantarespróximos…Efindaasofridaeexigentelabutadetodoumdia,para

51Cf.Costumes e Perfis,p.23.52Cf.MariadasGraçasMoreiradeSá,Estética da Saudade em Teixeira de Pascoaes,Lisboa,INCM,1992,p.202.

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receber–acrescentaocronista–,«portudoisto,àsnovehorasdanoite,umtostão.Umtostão,meussenhores,opreçodestemaucharutoqueeuvouacen-der!», realidadedramáticaquepodia fazer um vestido significar «o luxodeumagrandedamaeadesonradeumamiserávelrapariga»53.

Nesta matéria, o pedagogo d’As Farpas não poderia sequer deixarescamoteado o tratamento que frequentemente, por crassa deseducação eegoísmo,sepercebiaosoperáriosdispensaremnafamíliaàssuasmulheres,«tratadascomoentesubalternoepassivo[…],coisaquesepossuicomojus utendi et abutendi – aominosa propriedade enfim», emgeral tão «cordial-mente» detestada dos «senhores proletários». Amulher operária – escreviaentão–,excepçãofeitaaotempopassadonaigreja,«ninguémadistrai,nin-guémprocuratornar-lheaexistênciadoceerisonha,dar-lheonobreorgulhodesesentiramada,querida,necessáriaaomundoparamaisalgumacoisadoqueparalavaracasa,coseraroupaecozinharacomida»54.Panoramaqueoescritordesejavavermudarrapidamente.

Efectivamente,tantoassimeraque,porcoetaneamenteanovapastoraldocatolicismosocialterpassadoapugnarporaquiloqueoinsuspeitoSampaioBrunodesignavacomo«independencia sexual»e «dignidade feminina»,umnovo tipo de invectivas anticlericais surgira, como no seio da propagandarepublicanaapenadoprópriofilósofoportuensebemopatenteia55.

Comosinaldeumaculturasocialurgindorevisão,viaRamalhoqueemLisboa,aodomingo,aocontráriodasmulheresdoslojistas,queiampassearcom os seus maridos, as mulheres operárias dos bairros de Alcântara ouMouraria,ficavamàsportasoujanelasdassuaspequenascasas,numa«inac-çãodesconsoladaeabatida»,enquantooshomenssaíamparaos«divertimen-tospopulares»56.Oranestaenoutrasmatériasentendiaoautord’As Farpas essencialqueaos«senhoresoperários»fossemditasalgumasverdadessim-ples,semtabusneminibições,nomeadamenteque,ocupando-seelesexclu-sivamente«daquestãodosinteressesenãoseocupandonuncadaquestãodosprincípios,questionandoconstantementeosalárioenãotratandonuncadainterpretaçãododeveredaleimoral»,destemodocontribuíamparaimobi-lizaremeperderem«asuacausa»,materializando-a57.

53As Farpas,XIII,p.191.54As Farpas,XIII,p.193.55Cf.SampaioBruno,A Questão Religiosa,Porto,LivrariaChardron,1907,p.150.56As Farpas,XIII,p.194.57As Farpas,XIII,p.195.

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6.RamalhoOrtigãotevesemprea“obsessão”daescoladosaberandar,doandardireito,denunciandoohábitoportuguêsdecorcovaredesearrastarnamarcha,deseducandoaespinhaeosrins,compotenciaçãode«defeitosdeconsciênciaedecorpo»58.Depoisdoseudesaparecimento,nasruasdoPorto,continuaráaressoaramemória«doandarforteesonorodeRamalho»,comoquandodesciaaRuadeSantoAntónio«comumbengalãodejunco,ocordãodaslunetasàSegundoImpérioeoseujaquetãoinglês,àsriscas»,parafazerpequenapausaàportadoCamanho,antesdepartirparaCarreiros«res-piraromar»59.Dir-se-iaquenaquelasrecomendaçõesaosmaisnovosdasuaconvivênciasobreacorrectaposturafísicaeformadeandar,estavatodoummagistériomoraldevida.Almarecta,andavadireitoeapreciavarectamente,enas suasobservaçõesdecríticocortavaadireito, aindaquecombinandoumaalegriaeumaindulgênciaquerecomendavaaosescritoressatíricosmaisjovens60.

Destemodo, Ramalho tanto arrasava a oratória dos «nossos primeirosestadistas»naCâmaradosPares, forrageandonoDiário da Câmara, tropose afirmações controversas e de gosto politicamente duvidoso (extraídas deumagaleriade«glórias»ondeperpassamoViscondedeChanceleiros,JoséLucianodeCastro,VazPreto,AntóniodeSerpa,BarrosGomes,FontesPereiradeMelo, SaraivadeCarvalho, Pires deLima, os bisposdeBragança edeViseu,Carlos Bento)61, como criticava o carácter excessivo da propagandarepublicana,afirmandosemrodeiosque«opoderpopularnãoperiga[va]nacoexistênciadosreis»eque,«comrelaçãoàliberdade»,nãohaviadiferençaentremonarquiaconstitucionale república, lembrandoaoSenhordeputadoRodriguesdeFreitasque«amaisperfeitasoberaniarepresentativanagerên-ciadetodososnegóciosdoEstadoexist[ia]efectivamente,desassombradaelivre,sobamonarquiaportuguesa»,parecendo-lheoutrossim«queagranderesponsabilidadeeleitoraldadelegaçãodopodere[ra]exactamenteamesmana repúblicaenamonarquiaparlamentar»62.Tanto castigavao alegadoafãreformadordoregímen,quenuncaanunciavamelhoramentosquenãoimpli-cassemaumentodedespesaecrescimentodonúmerodosfuncionáriospúbli-cos63,comocriticavaamanipulaçãodemagógicaqueoPRPfaziadascama-das populares em comícios suburbanos de «propaganda revolucionária».

58 Cf.AugustodeCastro,Uma Recordação de Ramalho, inO Fumo do Meu Cigarro,Lisboa,SantoseVieira,1916,pp.180-181.59AugustodeCastro,Viagem no meu Jardim,Lisboa,ClássicaEd.,p.128.60Cf.As Farpas,IX,p.182.61Cf.As Farpas,IV,pp.299-309.62As Farpas,IV,pp.117-118.63As Farpas,IV,p.312.

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Ostermosdestametáforasãoconhecidos:«Comooboipuro,opovonãosedesilud[ia]nunca,nuncasedesengana[va]dalide»,eoslidadores,acenando--lhe«comotrapoencarnado»,iam-noexplorando,«comootouroemtardedecorridanomeiodoredondel»64.Paraoautord’As Farpaseraafinal,sobretudo,o operário politizado «por confusas e contraditórias teorias de jacobinismosocialistaeateu»,quenasruasdacapital,exercia,semprequechamado,asfunçõesdepovo»65…

Em todasasposiçõesdeRamalhoOrtigão,emmanifestozelodobemcomum,duasnotassãopordemaisevidentes:asuafirmeoposiçãoatodasasformasdeembaimento,eporissoàsdiferentesmodalidadesdedemagogia(doladodegovernanteseoposições),easuaênfasenaideiadequenãoháboaspolíticassemaprobidadepessoaldosseusagentes.A«virtudepública»,arectidão,a justiça(do ladodopoder,omeiodemanteraordempassariamuitosimplesmentepordeixardemanterosabusos)seriam«molaindispensá-veldetodooestadopopular»,consistindoresumidamente«empreferirodeveràconveniência,odireitoàforça,ajustiçaàpopularidadeeaoêxito»66.Eaosadeptosdassoluçõesradicais,àquelesqueexploravamasliberdadespúbli-casparatentarsubverteraordemvigente,comamesmaousadiae irritantesimplicidadeperguntava,doaltodoseupúlpitocívicod’As Farpas: «Quempoderácalcularonúmerodeliberdadesquenóssacrificaremosàordemnomomentoemqueadesordemcomeçara facultar-nosodireitoaogoverno,comasupressãododireitoaojantar?»…Paraconcluir:«Édasprofundidadesdemagógicasquesaemsempreàperiferiasocialostiranos»67.

Deplorandoaquioperigosocaminhodeinsegurançaeinstabilidadeemqueopaísforacolocadopelabacharelicedominante68,Ramalhorevelaperma-nentecepticismorelativamenteaqualquerpropostadesalvíficaregeneraçãodopaísquenãoviesseassentenumareformaéticapessoal.NãoporacasoevocaaexemplaridadedeMontesquieu,deWashingtonedeLincoln,nesteúltimoenfatizandoasconsequênciasfelizesdasuafénaimortalidadedasuaalma,emDeusenajustiça.Eao«Leitoramigo»,desejosode«fortalecer»asuapátria,recomendasumariamente:

«dá-lhemodestamente,napequenaórbitadatuainfluência,entreparen-teseamigos,aquiloqueelamaisprecisadeterparasuadefesadentroda

64Últimas Farpas,III,p.44.65Últimas Farpas,III,p.87.66As Farpas,X,p.130.67As Farpas,X,p.131.68Cf.As Farpas,X,p.124.

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casadecadacidadão:nãosetratadaforçadoteubraço,trata-sedarectidãodoteujuízo:sêprudenteejusto»69.

Seriaamelhorformadeevitargrandesmales.Ramalhoestámuitoperto

doregistodeEçanopequenocontoA Catástrofe.Ambosinsistemnainacti-vidadedissolventedeumajuventudedoseutempo,quecriticavaa«choldra»,masnãoseesforçavapor«salvaristo»,falavaaltissonantemente«naorganiza-çãosistemáticadotrabalhoenosdestinosdasclasseslaboriosas»,masnãodavaoexemplodeproveràssuasprópriasnecessidadesesustento70.

SegundoescreviaEça,haviaagoraumaoutrageração,nova,de«outragente»,quesepreparava,caladaeesperandoconcentrada.Tinhaaprendidocomosmalescolectivos,e,por seu turno,apontavaaosseus filhosoutroesegurocaminho,acostumando-osaamaraPátria,«emvezdeadesprezarem»:

«trabalhar, crer, e sendo pequenos pelo território, sermos grandespela actividade, pela liberdade, pela sciencia, pela coragem, pela forçad’alma…»71.

Comosabemose foi já referido,em1914,naCarta de um Velho a um novo,Ramalhodeclarava-se«confrade»e«companheirodeluta»dasgrandescausasdesta últimageração,marcadapelo lábaro integralista, equeera ageraçãodosseusnetos.

Até nesse generoso desassombro de final de percurso, declarando-secompletamente reconciliado com as grandes certezas da vida72, às quaistinhaacedidopela razão,pelaexperiênciaepelosafectos,semedeaesta-turadeRamalhoOrtigão,semprepletóricode juventudeedesaudávelale-gria,amando,e,porrazõesdebemcomum,sentindoapermanenteobrigaçãomoraldedeclararosseussentimentoseofundamentodosmesmos.

Mas, infelizmente, nomeio das ondas dematerialismo cínico e como-dismoavassaladorque nopresentedevoramas nossas sociedades, quem,comoemMaiode1871,estaráhojereceptivoàdenúnciade«consciênciasemdebandada»e«caracterescorrompidos»?…

69As Farpas,X,pp.130-131.70Cf.As Farpas,X,p.124;EçadeQueiroz,O Conde d’Abranhos e A Catastrophe,Porto,Lello&Irmão,1926,p.289.71EçadeQueiroz,A Catastrophe,ed.cit.,p.288.72Cf.MoreiradasNeves,A Última Lição de Ramalho,PosfácioaRamalhoOrtigão,As Farpas,TomoV,pp.311-316.

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185O POVO D’AS FARPAS. ÉTICA DEMOCRÁTICA E CÍVICA EM RAMALHO ORTIGÃO

Éverdadeiramentedetemerque,talcomosucedecomoutros“obsoletoscatões”dasnossasglóriasliteráriasdeoitocentos,politicamenteincorrectoseinconvenientesacertasintelligentziascoevasdominantes,seadensepesada-menteemtornodograndeRamalhonãoapenasosilênciocomemorativo,masoconhecimentointernodasuaobraeactualíssimolegadoéticoecívico,feitodereflexãocríticaecoerenteexemplodevida.

Outrossãoos“ídolos”donovo“panteãocívico”,masomaistemíveléque,segundohojeexperimentamos,asnovascrençasprimampelaiconoclastia!…

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