valores políticos aos olhos das crianças

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 UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA AOS OLHOS DAS CRIANÇAS: A FORMAÇÃO DE VALORES POLÍTICOS Elisa Sardão Colares Brasília, 2009.

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    UNIVERSIDADE DE BRASLIAINSTITUTO DE CINCIAS SOCIAISDEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA

    AOS OLHOS DAS CRIANAS:A FORMAO DE VALORES POLTICOS

    Elisa Sardo Colares

    Braslia, 2009.

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    UNIVERSIDADE DE BRASLIAINSTITUTO DE CINCIAS SOCIAISDEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA

    AOS OLHOS DAS CRIANAS:A FORMAO DE VALORES POLTICOS

    Elisa Sardo Colares

    Dissertao apresentada aoDepartamento de Sociologia daUniversidade de Braslia/UnB comoparte dos requisitos para a obtenodo ttulo de Mestre.

    Braslia, agosto de 2009.

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    UNIVERSIDADE DE BRASLIAINSTITUTO DE CINCIAS SOCIAISDEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM SOCIOLOGIA

    AOS OLHOS DAS CRIANAS:A FORMAO DE VALORES POLTICOS

    Elisa Sardo Colares

    Orientadora: Doutora Dbora Messenberg Guimares (UnB/SOL)

    Banca: ProfaDraDbora Messenberg Guimares ......................................... (UnB/SOL)ProfoDr Terrie Ralph Groth ............................................................ (UnB/IPOL)ProfoDr Caetano Ernesto Pereira de Arajo .............................(Senado Federal)ProfaDraSayonara de Amorim Gonalves Leal ................................ (UnB/SOL)

    (Suplente)

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    Rafael, Meu Amado,

    To you,

    Because your love is the beacon that lights up my way;

    To you,

    Because with you I know a lifetime could be just one heavenly day.

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    AGRADECIMENTOS

    Em minha ainda curta experincia de vida e de estudos por algumas vezes cheguei a

    pensar que sempre estarei em um trabalho acadmico extremamente solitrio e angustiante,

    porm alguns seres, simplesmente por existirem, fazem com que tudo seja menos cansativo

    e at menos desesperanoso. Por isso, sempre agradecerei a DEUS por tudo, pois Ele

    quem me guia e me abenoa todos os dias, mesmo sem que eu pea ou saiba pedir.

    Esta dissertao simplesmente no seria possvel sem a orientao, incentivo,

    envolvimento, presteza e disponibilidade de minha orientadora, Professora Dbora

    Messenberg Guimares, que ao orientar-me no esteve somente preocupada com

    problemas acadmicos ou burocrticos, mas, alm disso, conseguiu e objetivou ao longo de

    todo o processo entender a importncia deste trabalho para os meus anseios pessoais.Alguns professores foram bastante especiais para este trabalho de diferentes

    maneiras, so eles: Maria Francisca Pinheiro Coelho, Silviane Bonaccorsi Barbato e

    Professor Mozart. Aos professores Caetano Ernesto Pereira de Arajo e Terrie Ralph Groth

    por terem se mostrado to dispostos e atendido de pronto este convite, expresso minha

    sincera admirao e gratido.

    Esta pesquisa e este trabalho tambm s foram possveis por conta do incentivo do

    Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientfico e Tecnolgico (CNPq) por meio dabolsa de mestrado concedida.

    Rafael, meu amado, agradeo muito por acreditar tanto em mim, por conseguir me

    dar apoio quando parece que no vou conseguir. E, principalmente, por ter tanta pacincia

    e dedicao seja na leitura minuciosa, seja no dia a dia.

    Minha famlia querida, agradeo a cada um de vocs: papai e mame por

    entenderem minha ausncia e me darem conforto e ajuda; Vernica, Vincius e Helena por

    serem irmos to queridos; Cristina e Pedro que compreenderam minha distncia. minha nova famlia que Deus me presenteou: Daize por ter o corao mais nobre

    que conheci e com isso me dar um apoio que nunca conseguirei agradecer; Castilho que

    conseguiu compreender o meu trabalho ao se envolver e participar to de perto deste

    importante momento na minha vida; Keka e Guga por terem me acolhido carinhosamente

    em sua casa, oferecendo-me um lugar perfeito para trabalhar e ainda por cima me

    presenteando com o meu afilhado Edu.

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    Camila, Fernanda, Marcela e Luana, aquelas irms que Deus me deixou escolher,

    agradeo por me entenderem tanto e torcerem imensamente por mim a ponto de nem

    sequer se queixarem com a minha distncia e ausncia.

    Agradeo tambm ao Bruno e Tia D que me ajudaram a desvendar os tortuosos

    caminhos da burocracia que poderiam ter impedido que todo este trabalho fosse realizado.

    Agradeo a todas as pessoas que por diversos motivos seja por serem membros

    ou ex-membros do Poltica na Escola, ou por serem professores ou diretores de escolas,

    ou simplesmente por serem seres humanos preocupados com as diversas injustias que

    vemos no mundo cruzaram meu caminho e tornaram estes sonhos e esperanas um pouco

    mais reais. Principalmente, a todas as crianas que com cada sorriso e carinho tornaram os

    dias de estudos mais plenos, meu sincero agradecimento.

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    RESUMO

    Este trabalho procura investigar os elementos centrais que envolvem a concepo de

    poltica entre crianas de 9 a 11 anos matriculadas no ensino fundamental de escolaspblicas e privada do Distrito Federal. Intenta-se identificar de que maneira se d aformao de valores polticos no relacionamento das crianas com os seus agentessocializadores e como isso se processa no seu cotidiano. Desenvolve-se ao longo dotrabalho discusso em torno de trs parmetros conceituais da poltica o institucional, orelacional e o participativo , e a forma como eles se articulam na formao dos valorespolticos desses agentes sociais. Recorre-se, fundamentalmente, ao marco terico definidocomo sociologia da infncia, considerando o seu carter terico-metodolgico quecompreende a criana como ator social ativo no processo de construo de significados darealidade. Discutem-se aspectos relacionados histria social da infncia, aos diferentesprocessos e agentes de socializao e realiza-se leitura das crianas como sujeitos em

    constante formao e interao social. Est-se aqui tratando de sujeitos-ao, os quais sesituam em ambientes reais e demarcveis, que constroem concepes de mundo interativase cambiveis. Trata-se, portanto, de dar voz a um segmento social secundarizado naliteratura poltica, e de revelar uma face pouco explorada sobre o pensar e o agir polticonas sociedades modernas.

    PALAVRAS-CHAVE: crianas, poltica, valores polticos e socializao poltica.

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    ABSTRACT

    This work seeks to investigate the central elements that involve the conception of politicsformulated by children from 9 to 11 years old registered in the Distrito Federal private andpublic schools of fundamental education. This research intends to identify the way theformation of political values are been related with the children and their socializatingagents and how is it processed in their daily lives. It is developed on the course of the worka debate around three political conceptual parameters the institutional, the relational andthe participatory, and the way that they are articulated in the formation of the politicalvalues of those social agents. It is go through, fundamentally, to the theoretical landmarkdefined as "sociology of childhood" considering its theoretical-methodological characterwhich understands children as an active social actor in the process of construction ofrealitys meanings. This work discuss, also, aspects related to the social history of theinfancy, to the different processes and socialization agents and make a reading about the

    children as an individual in constant formation and social interaction. Here are beenthreated the "action subjects", which are situated in a real and demarcated ambient, thatbuild their own interactive world conceptions. It is a research that intends, therefore, togive voice to a social segment looked down upon the others elements in the politicalliterature, and to reveal a face poorly explored on political thinking and acting in themodern societies.

    KEYWORDS: children, politic, political values and political socialization.

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    ............................................................................................. 11

    .................................................. 12 .................................................................................... 14

    E ...................................................................................................................... 18

    ................................................................................................... 19

    ........................................................... 21

    ................................................................. 21

    ..................................................................... 27

    ................................................................. 37

    ......................................... 48

    .............................................. 48

    C C C ..................................................................... 62

    C ........................................... 68

    C ............................................. 72

    E ......................................................................... 87

    ................................. 91

    A .............. 97

    .................................................................. 103

    ? ........................................... 115

    ................................................................................. 125

    ............................................................................ 129

    ..................................................................................................... 137

    C A E E D F . 137

    C E ...................................................... 138

    C E ....................................................... 139

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    ndice de Figuras

    Figura 1 - Elementos que constituem uma "cidade ideal" ....................................... 96

    Figura 2 - Educao est vinculada Poltica ....................................................... 103

    Figura 3 As instituies e a "sala da poltica" .................................................... 104

    Figura 4 - Rara e fraca referncia a partidos .......................................................... 106

    Figura 5 - Desenho sobre o que a poltica ........................................................... 106

    Figura 6 - Trabalho com base em recorte de revista sobre o que a poltica ........ 106

    Figura 7 - Polticos falam ao microfone ................................................................ 109

    Figura 8 - Associao entre poltica e dinheiro ..................................................... 112

    Figura 9 - Representao e concepo da poltica ................................................. 114

    ndice de Tabelas

    Tabela 1 - Informaes sobre a amostra ................................................................. 15

    Tabela 2 - Plano de atividades realizadas nas Escolas Pblicas ............................. 16

    Tabela 3 - Plano de atividades realizadas na Escola Privada ................................. 17

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    Diversos trabalhos trazem contribuies sobre o papel de instituies como a

    famlia, a escola e o Estado na formao e perpetuao dos valores polticos na ao dos

    indivduos. Entretanto, poucos so aqueles que discutem essa formao luz dos sujeitos

    em interao, o que acaba por distanci-los dos fatores humanos existentes no mundo real.

    Ou seja, ao se propor uma anlise sobre sujeitos, seus espaos de ao e suas identidades,

    necessrio que se defina e caracterize os agentes sociais na forma como estes se

    apresentam e compreendem suas aes. A adoo de conceitos humanizados intenta

    despertar no trabalho acadmico uma percepo constante de que todas as denominaes

    institudas diro respeito a condies, situaes, realidades e indivduos concretos.

    sob esta perspectiva que se desenvolver anlise acerca da concepo de poltica

    por crianas de 9 a 11 anos matriculadas no 4 e 5 anos do ensino fundamental em 04

    (quatro) escolas (pblicas e privada) do Distrito Federal.

    Encontra-se em geral na literatura poltica, que aborda questionamentos

    semelhantes, correlao direta da educao com aspectos da mudana social

    (BROOKOVER, 1966; FERNANDES, 1966), trazendo, por vezes preocupaes

    propositivas muito bem definidas quanto ao posicionamento e a opinio com relao sformas e limites de participao das crianas (HART, 1992). Entretanto, esse no o

    intuito deste trabalho. Aqui no se tratar de analisar proposies ou normatizaes acerca

    do comportamento poltico das crianas, mas de compreender e interpretar como elas

    percebem e agem politicamente.

    Para tanto, esse trabalho apresenta inicialmente a discusso sobre aspectos centrais

    que envolvem tradicionalmente o conceito de poltica na contemporaneidade. Trs so as

    dimenses apontadas: a institucional, a relacional e a participativa. Tal recorte permitir areflexo acerca de como se entende e conceitua a poltica na literatura sociolgica e as

    conseqncias que tais desdobramentos trazem para a formao e participao dos

    cidados.

    Em seguida, tratar-se- da discusso de um mbito especfico da sociologia,

    denominado Sociologia da Infncia1. Essa frente terica se compe de anlises que

    1

    Conforme sintetizadas por: MONTANDON, 2001; SIROTA, 2001; SARMENTO, 2005; QUINTEIRO,2003 e DELGADO, MULLER, 2005.

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    propem uma nova maneira de questionar os problemas que envolvem a vida e o cotidiano

    de crianas. A sociologia da infncia traz contribuies significativas para a formatao

    deste trabalho, na medida em que o seu substrato terico-metodolgico compreende a

    criana como ator social ativo no processo de construo de significados da realidade.

    Por ltimo, sero apresentados os dados resultantes do trabalho emprico realizado

    com crianas de 9 a 11 anos matriculadas no 4 e 5 anos do ensino fundamental em 04

    (quatro) escolas (pblicas e privada) do Distrito Federal, e discutidas suas emisses

    valorativas acerca da poltica.

    Com este trabalho tem-se, portanto, o anseio em trazer algumas contribuies

    iniciais para uma temtica ainda muito pouco explorada quando colocada sob a perspectiva

    destes sujeitos. E por se dar como um ponto inicial de reflexo, pretende-se expor osdiversos desdobramentos e as diversas frentes de pesquisa que podem ser tomadas

    posteriormente a partir das elucidaes alcanadas com este estudo.

    A compreenso das crianas enquanto sujeitos-ao requer a adoo de

    metodologia e tcnicas de pesquisa singulares. Diante de um problema que abarca valores

    e entendimentos subjetivos no h apenas uma tcnica que consiga abarcar os diversoselementos complexos e multifacetados que envolvem a temtica. Sendo assim, as tcnicas

    de pesquisa adotadas configuram um entendimento pluri-dimensional sobre o problema,

    buscando respeitar as diversas instncias institucionais e processuais envolvidas.

    A escolha terico-metodolgica adotada neste trabalho envolve, fundamentalmente,

    os conceitos elaborados na rea definida como sociologia da infncia. Porm, a empreitada

    proposta nesta pesquisa perpassa trs questes cruciais que acarretaram a tomada de

    determinadas ressalvas frente s contribuies desta principal linha terica, so elas: a

    limitao de recursos2financeiros e temporais; a seleo de determinados procedimentos

    metodolgicos; e as necessidades peculiares exigidas pelo tema e pelos atores em questo.

    Uma das maiores contribuies metodolgicas que a sociologia da infncia vem

    trazendo se relaciona com o questionamento da posio que se deve assumir frente

    criana no processo investigativo. Admite-se como ponto pacfico que:

    2

    Este ponto comum a toda e qualqn guer pesquisa independente de sua fonte de financiamento, seu tempodisponvel e de sua amplitude possvel.

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    A sociologia clssica, sobretudo quando ela privilegia tcnicas quantitativas, est malinstrumentada para abordar os territrios das crianas. No somente estas so poucoaptas (e dispostas) a responder a questionrios estandardizados, mas os aspectosestudados, fora a freqncia com a qual aparecem (popularidade de um brinquedo, porexemplo, ou difuso de um trao lingstico), acham-se dificilmente nos clculos

    estatsticos. (JAVEAU, 2005, 385)

    No trabalho Childrens participation: from tokenism to citizenship, Hart

    apresenta uma escala interessante sobre quais formas podem ser apresentadas s crianas

    nos estudos de investigao social. Esta escala varia do tokenismo3 cidadania. O que este

    estudo e os demais trabalhos da sociologia da infncia buscam trazer uma reflexo, alm

    de comprovaes empricas, de como um redesenho de metodologia permite que as

    crianas possam, em suas falas e aes, trazer contribuies maiores do que se fossem

    passivamente analisadas.Hart (1992) d grande importncia sobre as formas com que a participao das

    crianas (incluindo crianas e adolescentes) tem sido construda nas pesquisas

    sociolgicas. Com isto, o autor se embasa em artigos da Conveno sobre os Direitos da

    Criana (1989) em que se destaca o direito e a capacidade que elas possuem de se

    expressar e decidir sobre os assuntos que lhes so de interesse4.

    Ao mesmo tempo em que no se tem aqui o intuito de reproduzir degrau por degrau

    o que fora catalogado por Hart (1992), pode-se entender que, de modo sumrio, o autordivide em oito possibilidades a formatao de uma pesquisa, dividindo-as em no-

    participativas e participativas. De modo geral, para que um projeto seja tido como

    verdadeiramente participativo, ele deve conter alguns elementos enumerados pelo autor,

    sendo que estes serviro como norte para a realizao desta pesquisa, so eles:

    1. The children understand the intentions of the project; 2. They know who made thedecisions concerning their involvement and why; 3. They have a meaningful (ratherthan decorative) role; 4. They volunteer for the project after the project was made

    clear to them. (HART, 1992, 11)5

    3Tokenism is used here to describe those instances in which children are apparently given a voice, but infact have little or no choice about the subject or the style of communicating it, and little or no opportunity toformulate their own opinions (HART, 1992, 09)4So eles: Artigo 12 1. Os Estados Partes garantem criana com capacidade de discernimento o direitode exprimir livremente a sua opinio sobre as questes que lhe respeitem, sendo devidamente tomadas emconsiderao as opinies da criana, de acordo com a sua idade e maturidade.; e Artigo 13 1. A crianatem direito liberdade de expresso. Este direito compreende a liberdade de procurar, receber e expandirinformaes e idias de toda a espcie, sem consideraes de fronteiras, sob forma oral, escrita, impressa ou

    artstica ou por qualquer outro meio escolha da criana.5Traduo livre: 1) as crianas entendem as intenes do projeto; 2) elas sabem quem tomou as decises que

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    Rayou (2005), em consonncia com os demais autores da sociologia da infncia, d

    prioridade ao mtodo qualitativo por conta da forma especfica com que as crianas

    interagem e exteriorizam suas representaes. Diante disto, o autor tambm descobriu que

    se deve conciliar a teoria com a philia, isto , que o vnculo de amizade entre as crianas

    permite uma maior exposio de seus entendimentos.

    Tendo observado que os alunos produziam muito mais informaes quando sejuntavam dois ou trs, deixei-os formar pequenos grupos que aceitavam ser gravados.Metodologia e problemtica ajudavam-se mutuamente, pois me dava conta de que osalunos se abriam mais desde que confortados pelo nmero e pela relao eletiva que osunia, e que pensavam no ter muito o que temer de algum, o qual, no entanto, pelo seuestatuto, era prximo da instituio sobre a qual se lhes pedia para falarem. (RAYOU,2005, 469-470)

    Mesmo tendo em vista as grandes contribuies destes estudos, deve-se fazer umaressalva sobre a possibilidade em se adotar integralmente as diversas tcnicas propostas. O

    contexto e as condies de pesquisa que estes autores se inserem relacionam-se a anlises

    que objetivam pesquisar o universo das crianas de maneira significativamente autnoma,

    com um acesso bastante amplo aos diversos recursos necessrios a uma pesquisa. Esta

    configurao contextual diversa quela vivenciada por esta pesquisadora, tendo em vista

    as limitaes de recurso e dos prprios objetivos de trabalho.

    Este ponto merece realce em decorrncia do ao contato que a literatura dasociologia da infncia permite sobre as pesquisas que so realizadas pelas prprias

    crianas, nas quais a iniciativa, o formato, a interveno e as concluses so todas de

    impulso prprio das mesmas. Por fim, quer-se deixar claro que o intuito de uma empreitada

    que coloca as crianas no centro de anlise deve saber que:

    se trata antes de tudo de pr em evidncia as significaes que as crianas atribuemaos diversos componentes dos estilos de vida que levam, tanto na perspectiva daconstituio bruta de uma cultura especfica quanto na da relao desta com os

    diversos processos de socializao em ao, dos quais um grande nmero surge narealidade da auto-socializao, qualquer que seja o quadro: famlia, escola, rua,terreno vago, colnia de frias, etc. (JAVEAU, 2005, 385)

    A pesquisa foi iniciada quando se contatou escolas pblicas e particulares da

    Ceilndia e do Plano Piloto. s escolas particulares foram pedidas autorizaes e s

    interessam o envolvimento deles/delas e por que; 3) elas tm um papel significante (ao invs de 'decorativo');4) elas participam voluntariamente do projeto depois que este foi esclarecido a elas.

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    15

    escolas pblicas o consentimento da direo depois de autorizada a pesquisa pela prpria

    Secretaria de Educao do Distrito Federal6.

    Aps o consentimento e autorizao de algumas escolas pblicas e uma escola

    particular, o contato passou a ser diretamente com as(os) professoras(es) das turmas

    designadas pela direo das escolas. Aps esclarecimento aos professores sobre os

    objetivos e as atividades da pesquisa, pde-se estabelecer o primeiro contato com as

    crianas. Este se deu diretamente na sala de aula com a apresentao da pesquisadora e da

    prpria pesquisa, pedindo para que as crianas que se voluntariassem, levassem para casa a

    autorizao7que deveria ser preenchida pelos pais e/ou responsveis. Neste momento, a

    adeso das crianas era espontnea e generalizada. As crianas se interessavam,

    levantavam questes sobre a pesquisa e demonstravam sua disponibilidade. Quando asautorizaes eram recolhidas e estas excediam o nmero mximo estabelecido para o

    desenvolvimento das atividades com cada grupo (isto , mais do que seis crianas

    autorizadas), fazia-se o sorteio em sala de aula com a participao das prprias crianas.

    As crianas sorteadas passavam, portanto, a pertencer ao grupo pesquisado8.

    Depois de todos estes procedimentos, a pesquisa foi realizada em quatro escolas,

    contando com a participao de trinta e trs crianas distribudas da seguinte maneira:

    Tabela 1 - Informaes sobre a amostra

    01 01 1 10 5 2008

    02 2 10 4 5 2008

    02 03 6 09 11 4 2008

    04 6 09 11 4 2008

    03 05 6 09 11 4 2008

    06 6 10 11 5 2008

    04 07 6 09 11 5 2009

    A proposta inicial dada s escolas foi de que as atividades da pesquisa fossem

    realizadas no mesmo turno das aulas, em decorrncia da maior facilidade de acesso s

    crianas. Porm, na escola particular do Plano Piloto foi sugerido e aceito pela direo que

    6Conforme Anexo 1 e 2.7Conforme Anexo 3.8O anonimato das crianas que participaram da pesquisa garantido ao longo de todo o trabalho. Para isso, a

    exposio da fala das crianas acompanhada pela identificao das crianas por meio de siglas.Conforme poder ser visto no ltimo captulo do trabalho.

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    16

    as crianas realizassem as atividades no contra-turno. O intuito da direo era de no

    prejudicar as crianas com relao s matrias que seriam passadas no curso normal, alm

    de levar em considerao o hbito das crianas freqentarem a escola no contra-turno para

    atividades espordicas. Em decorrncia desta modificao, pode-se perceber uma menor

    disponibilidade das crianas, mesmo que interessadas, para participarem das atividades de

    pesquisa.

    As atividades foram desenvolvidas nas escolas pblicas durante trs dias, com uma

    hora cada e na escola particular durante dois dias, com uma hora e meia cada. Essas

    atividades se deram em torno da seguinte proposta que procurou desenvolver os aspectos

    qualitativos da pesquisa:

    Leitura e audio da histria Os Saltimbancos: com o intuito de contribuirno envolvimento das crianas nas atividades que seriam propostas.

    Atividade individual com desenho e com colagem: as crianas expressaram

    individualmente suas respostas frente s questes propostas por meio de

    desenhos.

    Discusses e oralizaes das crianas: este espao foi construdo ao longo

    da realizao das outras atividades. Para tanto, a pesquisadora instigou o

    debate a partir de perguntas que iam sendo feitas sem qualquerpreocupao em seguir um roteiro prvio.

    De maneira mais sistematizada, essas atividades foram realizadas conforme o Plano

    de Atividades que segue abaixo:

    Tabela 2 - Plano de atividades realizadas nas Escolas Pblicas

    1

    A , 10

    "

    "

    A

    50 A

    2

    15

    D

    ,

    .

    " ".

    50

    ,

    ,

    , ,

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    17

    3

    "

    "

    15

    D B .

    50

    D /

    E ,

    / .

    /

    .

    ,

    ,

    , ,

    , ,

    Tabela 3 - Plano de atividades realizadas na Escola Privada

    1

    A ,

    10

    "

    "

    A

    50 A

    D

    ,

    .

    " ".

    1

    ,

    ,

    , ,

    2

    "

    "

    15

    D

    B . 1

    D /

    E ,

    / .

    /

    .

    50

    ,

    ,

    , ,

    , ,

    Desta forma, os dados obtidos concentraram-se nas conversas extradas das

    degravaes9 e nos desenhos feitos pelas crianas durante as atividades. Ocorreram em

    alguns grupos e apenas com algumas crianas a produo de outros pequenos trabalhos

    9 Quanto transcrio das falas das crianas, elas sero apresentadas ao longo do trabalho sem qualquer

    alterao, nem mesmo quando implicar em equvoco sinttico ou interrupo na prpria expresso depensamento.

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    escritos realizados voluntariamente na forma de poesias e textos que tambm contaram

    como dados para a pesquisa.

    A primeira escola da amostra da pesquisa, chamada aqui por escola 01, integrou a

    pesquisa inicialmente como projeto piloto. Neste piloto foram testadas as formas de

    abordagem s crianas, como a formulao das questes, bem como o formato e o tempo

    das atividades que poderiam ser realizadas. Porm, as contribuies encontradas nas falas

    dessas crianas mostraram-se de grande valia, sendo impensvel a dispensa destas

    informaes para a pesquisa.

    A escola 01 tem sua proposta pedaggica voltada para o ensino com bases emvalores religiosos e prope uma pedagogia centralizada no educador como mediador do

    ensino. Em conjunto com esta proposta, pode-se identificar o interesse da escola na

    implementao de projetos voltados para o civismo. Em decorrncia da proposta da

    Campanha da Fraternidade10de 200911, a escola 01 demonstrou significativo interesse em

    elucidar s crianas informaes sobre polticas pblicas voltadas para a questo de

    segurana pblica.

    As demais escolas (02, 03 e 04), por serem todas pblicas, possuem a mesmaproposta pedaggica, isto , voltada para o desenvolvimento harmonioso [do ser humano]

    em suas dimenses fsica, social, emocional, cultural e cognitiva nas relaes individuais e

    sociais (GOVERNO DO DISTRITO FEDERAL, 2009) e contam com iniciativas pontuais

    de civismo por parte da Secretaria de Educao do Distrito Federal. Uma delas o

    Programa Cidadania na Escola que se restringe distribuio de kits contendo

    representaes dos nossos smbolos nacionais12, cartilhas contendo direitos constitucionais

    e o Estatuto da Criana e do Adolescente. Os demais aprofundamentos sobre este tema so

    realizados por meio de iniciativa prpria das escolas.

    10 " uma campanha realizada anualmente pela Igreja Catlica Apostlica Romana no Brasil, sempre noperodo da Quaresma." (CNBB, 2009)11 O objetivo da Campanha da Fraternidade de 2009 consistia em suscitar o debate sobre a seguranapblica e contribuir para a promoo da cultura da paz nas pessoas, na famlia, na comunidade e nasociedade, a fim de que todos se empenhem efetivamente na construo da justia social que seja garantia desegurana para todos. (CNBB, 2009).12 Uma Bandeira Nacional, uma do Distrito Federal, CDs com msica e letras dos Hinos Nacional, da

    Independncia, da Proclamao da Repblica, Bandeira, do Distrito Federal e Braslia Capital daEsperana.

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    Em decorrncia da caracterstica muito pontual dessas iniciativas que se colocou

    na amostra a ltima escola, a escola 04. Esta escola foi escolhida, intencionalmente, a

    partir de seu perfil semelhante s outras duas escolas, porm sua contribuio adviria da

    possibilidade destas crianas serem uma espcie de grupo controle da pesquisa. Isto

    porque esta escola vem recebendo h cinco anos um projeto de extenso da Universidade

    de Braslia chamado Poltica na Escola, projeto este que se volta para o processo de

    socializao poltica das crianas. Este projeto composto por estudantes de graduao da

    UnB que tem como proposta

    estimular, junto ao contedo escolar e a partir dele, discusses que permitam a criaode uma viva conscincia poltica, capaz de possibilitar futuramente uma participaosensvel no seio da sociedade. Formando, uma cultura poltica em que a cidadania e a

    participao possam ser (re)pensadas e aprofundadas. (MONTEIRO, 2007)

    Entretanto, percebeu-se que as distines passveis de serem encontradas nas falas

    das crianas, de acordo com a natureza das escolas isto , pblica e particular ou a

    localidade das mesmas Plano Piloto e Ceilndia , no consistia em ponto nevrlgico de

    anlise, pois percebeu-se a importncia que as falas traziam por serem elas advindas de

    crianas. No se quer dizer com isso que as possveis distines de estmulos que estas

    crianas possuem foram ignoradas, mas sim, de que isso no consistiu em categorizaes

    dos dados.

    Se no existe qualquer tradio ou herana de pesquisas sobre este tema, primeiro

    precisou-se empreender um trabalho que buscasse identificar como a poltica vista pelas

    crianas, para que s a posteriori se possa pensar em pesquisas que tragam recortes e

    comparaes socioeconmicas, tnico raciais, ou at de gnero que tambm sero

    pertinentes.

    Tendo a percepo de que o estudo ento empreendido implicaria em instigar nas

    crianas uma discusso, no mnimo, pouco comum s suas tarefas cotidianas, buscou-se

    trazer referncias ldicas externas para iniciar o dilogo pretendido. Para tanto, a busca se

    deu em torno de histrias que poderiam ser contadas por meio de filmes, desenhos ou

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    livros, e que trouxessem relao com o tema a ser abordado. Deste modo, a histria

    escolhida foi o conto Os Saltimbancos 13.

    A histria foi disponibilizada s crianas por meio de udio e livro, isto , enquanto

    as crianas ouviam a histria que ia sendo contada e cantada, elas iam acompanhando as

    falas e a narrativa que estavam presentes no livro.

    A analogia feita entre a histria e as atividades desenvolvidas centralizou-se na

    questo da formulao de uma cidade ideal. Em Os Saltimbancos todas as personagens

    centrais da histria constroem sua concepo de cidade de acordo com os problemas que

    vo sendo apresentados ao longo da trama. A idia foi, ento, que as crianas pudessem

    desenvolver sua percepo de cidade ideal, a fim de identificar suas percepes sobre o

    espao pblico e, com isso, analisar quais relaes as crianas poderiam formular entre oespao pblico e a poltica.

    Ao final, pretende-se que a utilizao de todas estas tcnicas e de toda esta

    reformulao metodolgica traga consideraes diferenciadas sobre este sujeito re-

    significador, contribuindo para o entendimento da formao de valores polticos, em

    especial no contexto brasileiro.

    13

    Conhecida pela montagem teatral de 1977, inspirada no conto Os Msicos de Bremen, e de autoria deSergio Bardotti e Luis Enrquez Bacalov, com verso em portugus de Chico Buarque de Holanda.

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    H neste captulo o intuito de descobrir no mbito terico o que se entende por

    polticabem como quais so os elementos a ela associados e que, por sua vez, acabam pormold-la atribuindo a este conceito um lugar especfico e peculiar de existncia14. Portanto,

    nada mais propcio e essencial do que iniciar esta discusso a partir de um delineamento

    terico sobre algumas concepes importantes deste conceito no mbito das cincias

    sociais. Sendo assim, o objetivo deste captulo o de refletir sobre a maneira com que se

    entende e se conceitua o termo poltica na literatura sociolgica e que conseqncias e

    desdobramentos tais concepes trazem para formao e participao dos cidados.

    Contribuir-se-ia muito pouco caso aqui fossem feitos apenas levantamentosdiversos sobre a conceituao de poltica para vrios autores importantes do cenrio das

    cincias sociais, pois tal trabalho poderia em muito se assemelhar a um compilado

    enciclopdico de definies. Para no incorrer neste equvoco, ser perpassado um fio-

    condutor que se basear na percepo de que os entendimentos presentes no pensamento

    poltico, em especfico o caso brasileiro, em decorrncia da maneira com que so

    construdos, acabam por determinar as possibilidades de ao dos indivduos. E, ainda

    querendo ir alm, na revelao sobre a quais indivduos se atribui, por cada uma dessasconcepes, a possibilidade ou no de ao.

    A diversidade de formas com que se constri o entendimento deste tipo de relao

    poltica, e que faz com que se atribua significados e formas diferentes sobre um mesmo

    espao existente, exige o esclarecimento sobre quais as concepes de poltica nortearo

    este trabalho. Para tanto, identificou-se trs parmetros tericos distintos que do recortes

    diferentes poltica tendo em vista suas perspectivas e objetivos de anlise. Estas trs

    formas de conceituar a poltica podem ser distinguidas pelo vis institucional, relacionale

    participativoque pode ser nela identificado.

    Sobre este parmetro de conceituao traz-se um autor que ao ser esmiuado

    contribui de forma significativa sobre o entendimento deste conceito, tanto em decorrncia

    da sua originalidade quanto pela herana deixada e incrustada em diversos trabalhos e

    14Sendo este lugar entendido de maneira metafrica ou real, subjetiva ou objetivamente.

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    pensamentos da atualidade. Max Weber nunca pretendeu desenvolver uma teoria que fosse

    capaz de explicar a realidade em sua completude, pelo contrrio, em sua obra h um gosto

    pelo singular, pelo particular, pelas caractersticas peculiares de cada momento histrico,

    alm de uma busca incessante pelo entendimento da racionalidade (BERLINCK, 2005).

    Weber comparava acontecimentos distintos, diferentes no tempo e no espao, de

    modo a buscar captar no leis histricas gerais, mas as prprias diferenas entre os

    acontecimentos. Do estudo do protestantismo ao comportamento capitalista, Weber (2004)

    analisa diversos conceitos que implicam em formalizaes e institucionalizaes como o

    desenvolvimento do Estado, da poltica, da autoridade e da dominao, da manipulao do

    poder e da instituio da burocracia. E sobre este foco, Weber ento define o Estado como

    uma

    associao poltica, com uma constituio racionalmente regida por leis, leisracionalmente ordenadas e uma administrao coordenada por regras racionais ouleis. O Estado administrado por funcionrios treinados. Essa combinao decaractersticas apenas identificada no Ocidente, a despeito de todas as outras quedele se aproximam (WEBER, 2002, 25-26).

    Weber no nega o carter generalista que o termo poltica pode tomar15, e admite

    ele deve ser tomado de um modo recortado. Por isso, em sua fala registrada emAPoltica

    como Vocao, ele define que se entender por poltica apenas a direo do agrupamentopoltico hoje denominado Estado ou a influncia que se exerce em tal sentido.

    (WEBER, 2005, 55).

    Deste modo, o autor delimita a legitimao dos sujeitos para a ao poltica, porm

    no sem admitir que tal restrio corresponde aos objetos e fins perseguidos. Interessante

    observar que Weber um dos autores que mais direta e explicitamente influenciou a

    sociologia brasileira e, com isso, fundamentou teorias que limitam a poltica ao exerccio

    do poder no cerne do aparato coercitivo e institucional do Estado.

    Para Weber, ento, o exerccio da poltica est diretamente relacionado existncia

    de um agrupamento poltico especfico, que se encontra em uma circunscrio territorial

    definida para que empregue seus recursos monolticos de violncia fsica. Weber ainda

    salienta:

    15

    O conceito extraordinariamente amplo e abrange todas as espcies de atividade diretiva autnoma.(WEBER, 2005, 55)

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    Quando de uma questo se diz que poltica, quando se diz de um ministro oufuncionrio que so polticos, quando se diz de uma deciso que foi determinadapela poltica, preciso entender, no primeiro caso, que os interesses de diviso,conservao ou transferncia do poder so fatores essenciais para que se possaesclarecer aquela questo, no segundo caso, impe-se entender que aqueles mesmos

    fatores condicionam a esfera da atividade do funcionrio em causa, assim como, noltimo caso, aspira ao poder seja porque o considere como instrumento a servio daconsecuo de outros fins, ideais ou egostas, seja porque deseje o poder pelo poder,

    para gozar do sentimento de prestgio que ele confere. (WEBER, 2005, 56-57)

    Um ponto importante da conceituao da poltica em Weber seu entendimento

    sobre as relaes de poder, mesmo que indissociveis da caracterizao da aplicao de

    fora circunscrita a um territrio e, de maneira bem peculiar, relativas ao Estado. Por tais

    tipos de relao se estabelece uma moeda codificada em aspectos de representao

    pautados no reconhecimento e na apropriao do prestgio16. O prestgio se relaciona,

    primordialmente, ao aspecto de representao implicados nas relaes sociais, quaisquer

    que estas sejam.

    A todo poder de formaes polticas inerente uma dinmica especfica: podetornar-se a base de uma pretenso especfica de prestgio de seus membros, queinfluencia seu comportamento para fora. (WEBER, 1999, 162)

    A representao, que possui relao direta com a construo e a apropriao do

    prestgio, possui na teoria weberiana um papel importante e explicativo sobre a questo da

    diferenciao dos sujeitos frente poltica. sob este ponto de vista que o autor categoriza

    os indivduos de acordo com as formas que esses se dedicam poltica da seguinte

    maneira: aqueles que se relacionam ocasionalmente com a poltica; aqueles que tm nela a

    sua profisso secundria; e, por ltimo aqueles que so polticos profissionais, e que, assim

    sendo, podem viver da ou para a poltica.

    A primeira forma de dedicao poltica a que Weber entende ser a mais geral

    possvel, no sentido de abarcar um grande nmero de pessoas17, pois consiste em votar ou

    exprimir sua vontade de maneira binria, isto , concordando ou discordando de

    determinado assunto poltico. Deste modo, segundo o referido autor, uma parcela

    16No por acaso que esta sentena em muito remonta a teoria posterior construda por Pierre Bourdieu, poiscomo apontado por Wnia Gonzalez: A influncia de Weber na Sociologia contempornea se faz presente,dentre outros autores, na abordagem da teoria da ao, de Talcott Parsons, nas noes de campo e violnciasimblica, de Pierre Bourdieu & Jean Claude Passeron, e na noo de efeitos perversos da ao social deRaymond Boundon. (GANZALEZ, 2001, 01).17 importante relembrar que esta obra de Weber na verdade um registro de uma conferncia do autor a

    estudantes da Universidade, portanto natural que ao utilizar uma referncia tal Todos exercitamosocasionalmente a poltica., Weber est se dirigindo a seu pblico, e no, construindo uma generalidade.

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    considervel de pessoas exercita ocasionalmente a poltica. Alis, para numerosas

    pessoas, o contato com a poltica se reduz a esse gnero de manifestaes. (WEBER,

    2005, 63).

    Outra forma de dedicao s atividades da poltica realizada por aqueles

    indivduos que tem ela como sua profisso secundria. Isto , as pessoas que assim a

    exercem possuem outras formas de ocupao, mas tm nela uma maneira de assegurar

    renda, alm de garantir vantagens pessoais. Estas pessoas podem ser membros de partidos

    polticos, homens de confiana, ou, at mesmo, parlamentares18.

    Por ltimo se encontram aqueles que so polticos profissionais e so estes sob os

    quais Weber ir se debruar para entender a vocao poltica. Para poder entender tal

    vocao, Weber far uma distino que possui como base primordial elementos de origemeconmica, que, por sua vez definiro a possibilidade de um poltico profissional viver

    da poltica ou viver para a poltica19. O primeiro destes indivduos concentra suas

    atividades na poltica e tem nela a forma de assegurar sua renda e esta a finalidade dada

    atividade poltica exercida por ele. O segundo, porm, tem na prpria poltica o fim de sua

    vida, pois este abraa uma causa que guia suas aes muito mais do que a possibilidade

    da remunerao.

    Segundo Weber, o que distingue um homem que vive da de um que vive para apoltica a fortuna pessoal que este ltimo possui, tornando-o economicamente

    disponvel e possibilitando que a ele no sobressaiam preocupaes sobre seu pagamento

    enquanto profissional poltico. Sendo assim, ainda segundo Weber, encontra-se na figura

    do capitalista - pessoa que recebe rendas sem nenhum trabalho (WEBER, 2005, 65).

    Weber jamais partiria de tamanha ingenuidade que chegasse a conferir ao homem

    que vive para poltica total desprendimento dos ganhos pecunirios que este poderia

    ascendentemente obter mediante determinadas aes. Tanto o que, ao descrever orecrutamento plutocrtico como aquele que permite a um partido ou Estado serem dirigidos

    por homens que vivem exclusivamente para a poltica, ele acrescenta que:

    Fazendo essa assero, no pretendemos, de maneira alguma, dizer que a direoplutocrtica no busque tirar vantagem de sua situao dominante, com o objetivo de

    18Tal , ainda, o caso de numerosssimos parlamentares que s exercem atividade poltica durante o perodode sesses. (WEBER, 2005, 63)19

    Nessa oposio no h nada de exclusivo. Muito ao contrrio, em geral se fazem uma e outra coisa aomesmo tempo, tanto idealmente quanto na prtica. (WEBER, 2005, 64).

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    tambm viver da poltica, explorando essa posio em benefcio de seus interesseseconmicos. Claro que isso ocorre. (WEBER, 2005, 66)

    Outro ponto importante na discusso incitada por Weber diz respeito distino

    entre os politicamente ativos e os politicamente passivos. Os politicamente ativos soaqueles que tornam a poltica uma empresa de interesses, tal qual definido por Weber.

    Em suas palavras:

    um nmero relativamente restrito de homens interessados pela vida poltica e desejososde participar do poder aliciam seguidores, apresentam-se como candidato ouapresentam a candidatura de protegidos seus, renem os meios financeiros necessriose se pem caa de sufrgios. (...) Equivalem essas palavras a afirmar que, na

    prtica, os cidados com o direito a voto dividem-se em elementos politicamente ativose elementos politicamente passivos. Como essa distino tem por base a livre decisode cada um, no possvel suprimi-la, a despeito de todas as medidas de ordem geralque se possam sugerir, tais como o voto obrigatrio, a representao das profissesou qualquer outro meio destinado, formal ou efetivamente, a fazer desaparecer adiferena e, por esse meio, o domnio dos polticos profissionais. A existncia de chefese seguidores que, enquanto elementos ativos, buscam recrutar, livremente, militantes e,

    por outro lado, a existncia de um corpo eleitoral passivo constituem condiesindispensveis existncia de qualquer partido poltico. (WEBER, 2005, 84)

    Essa deciso entre tornar-se politicamente ativo ou passivo deve se manter

    enquanto possibilidade. Seria invivel e, at mesmo, uma afronta essncia da ao

    poltica, que todos fossem impelidos a exerc-la, invariavelmente e indistintamente.

    manuteno dessa livre deciso acresce-se o elemento do esclarecimento e da variao depossibilidades vislumbrveis de ao poltica, que no se restringindo apenas ao jogo

    realizado dentro das instituies. Alm disso, percebe-se em uma anlise superficial da

    realidade que existe uma distino passvel de ser encontrada dentro do grupo dos

    politicamente passivos.

    indiscutvel que na leitura weberiana, o que caracteriza um indivduo como

    politicamente ativo o seu envolvimento com as instituies polticas e sua ao em meio

    s regras e aos regulamentos presentes neste meio. Sendo assim, o fator etrio elementoindelvel para definir o indivduo ativo nos processos institucionalmente existentes.

    Por outro lado, no grupo dos politicamente passivos, h aqueles que possuem como

    responsabilidades e aes polticas, na esfera institucional, algo restrito expresso por

    meio do voto e pelo resultado eleitoral. Se levarmos isso em considerao, torna-se

    possvel entender uma importante distino no aviltada por Weber: existem aqueles

    politicamente passivos e apticos ou, qui, inanimados, e aqueles politicamente passivos,

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    porm, participativos20. Estes ltimos so aqueles que no tm na poltica o seu fim ou

    meio de trabalho, no se detm a ela cotidianamente, porm possuem opinio sobre os

    assuntos polticos, discutem com seus pares, interessam-se pela conjuntura poltica que os

    cerca e, em alguns casos, abraam determinadas causas, defendo-as o quanto podem21.

    Por meio dessa tipologia exposta por Weber, um mapeamento dos indivduos que

    se encontram sob o poder do Estado pode ser feito, a fim de identificar quem so os

    indivduos e como esses se relacionam com a poltica. Primeiramente, poderamos

    identificar num Estado nmero bastante significativo de pessoas que estariam no rol de

    indivduos que exercitam a poltica ocasionalmente. Porm, se entre essas pessoas pudesse-

    se fazer uma distino entre aqueles que a exercem exclusivamente por meio de seu voto

    no necessariamente no mbito eleitoral, mas em todas as situaes possveis em que suaopinio expressa e considerada apenas pelo fator binrio e numrico e aqueles que a

    exercem ocasionalmente por meio de instrumentos um pouco mais sofisticados de

    expresso22, estas ltimas seriam um nmero nfimo perto das demais.

    Em segundo lugar, h aqueles que tm a atividade poltica como profisso

    secundria, os quais se revelam entre os profissionais dos quadros administrativos das

    instituies polticas existentes nos mbitos federais, estaduais e municipais de todos os

    pases. Porm, com toda certeza, estes no conseguiriam fazer frente ao grande nmero deindivduos pertencentes ao primeiro grupo e, muito menos, se distinguiriam daqueles com

    relao a sua dedicao exposio de opinies e tentativas de mudana sob o curso das

    decises j dadas.

    Por ltimo, quando listados os poucos que tem na poltica a sua principal profisso,

    evidencia-se um nmero bastante restrito de indivduos que poderia ser contabilizado no

    rol daqueles que vivem para a poltica em contrapartida daqueles que vivem da

    poltica.Diante disso, se para Weber as maneiras mais substanciais e importantes de se

    exercer a poltica se encontram apenas nessas trs modalidades23 (ocasional, profisso

    20Por mais paradoxal que possa parecer primeira vista.21E cada vez mais o esforo na defesa de causas escolhidas por tais indivduos vem se dissolvendo no mundodas aparncias (se quisermos utilizar os termos de Arendt) e ganhando anonimato e dinmica por meio deveculos concentrados pela internet.22Tal qual enumerados por Weber, como manifestando desaprovao ou acordo no curso de uma reuniopoltica, pronunciando um discurso poltico, etc. (WEBER, 2005, 63)23

    Em nenhum momento Weber afirma que as trs formas de dedicao poltica que descreve so as nicasexistentes, muito ao contrrio: So possveis mltiplas formas de dedicao poltica e o mesmo dizer

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    secundria e profisso principal), est se admitindo que o exerccio da poltica regido

    pelo princpio de minorias, ou seja, pela capacidade de manobra poltica superior de

    pequenos grupos dirigentes. Essa caracterstica elitista , segundo Weber, inevitvel em

    sociedade de massas (WEBER, 1993, 68).

    Pode-se perceber que as crianas no poderiam ser identificadas em nenhuma das

    categorias tipificadas por Weber, pois na viso institucionalista weberiana a ao poltica

    fica restrita a uma elite de representantes que reforam a caracterstica adultocentrada da

    poltica. A questo da faixa etria torna-se elemento intransponvel participao das

    crianas, pois este se vincula s possibilidades de votarem ou de possurem uma profisso.

    Aqueles que possivelmente pudessem advogar a ao poltica das crianas a partir desta

    viso institucionalista, passaria a defender uma relao poltica das crianas de igual paraigual com os adultos. Com isto, estar-se-ia realizando um ato ingnuo, fantasioso e

    irresponsvel, pois o que se estaria fazendo no seria dar voz s crianas, mas sim encurtar

    sua infncia e exigir que dela fossem extirpadas suas mais peculiares aes.

    Mediante a descentralizao dos poderes da administrao estatal, cada vez mais,

    os assuntos e preocupaes locais vm sendo formulados e solucionados por um maior

    nmero de cidados que compem o grupo dos politicamente passivos, porm

    participativos. mediante a extrapolao da distino weberiana entre aqueles que sopoliticamente passivos e aqueles que so politicamente ativos que se poderia encontrar a

    ao exercida ou exercvel pelas crianas. Quando so identificadas as aes de indivduos

    politicamente participativos que se pode e se tem visto a ao das crianas 24, alm de ser

    a que se encontra a passagem para o ltimo parmetro conceitual de poltica a ser

    apresentado.

    Uma das formulaes conceituais mais importantes que define a poltica como um

    elemento eminentemente relacional encontra-se na obra de Hannah Arendt. Segundo ela, a

    poltica concebe-se a partir da possibilidade de que uma determinada ao promovida por

    um ou mais agentes sociais, fundamentada numa relao de poder, tem a possibilidade de

    impactar na ao de outros indivduos.

    que possvel, de muitas maneiras, exercer influncia sobre a diviso do poder entre formaes polticas

    diversas ou no interior de cada qual delas. (WEBER, 2005, 63)24Como, por exemplo, as diversas experincias de Oramento Participativo Criana OPC.

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    Para Hannah Arendt (2003), o aspecto da ao central para a compreenso do

    conceito de poltica. Sua anlise funda-se no estabelecimento dos aspectos centrais da

    condio humana que, para ser compreendida, deve ter seu foco voltado para trs

    atividades humanas fundamentais: o labor, o trabalho e a ao. A ao, entendida como a

    atividade poltica por excelncia, est ligada diretamente com o ciclo vital, correspondendo

    ao elemento da natalidade. nela que reside a condio humana da pluralidade, que faz

    com que sejamos todos os mesmos "sem que ningum seja exatamente igual a qualquer

    pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir." (ARENDT, 2003,16).

    Na conceituao de poltica feita por Hannah Arendt, centralizada na idia de

    natalidade, pode ser percebida a possibilidade de interpretar e dar outras denotaes s

    relaes polticas, sendo estas feitas de maneira um pouco mais ampliadas do que a polticarepresentativa e delegativa de Weber (2005). Assim sendo, para Hannah Arendt a ao

    poltica em si o que nos diferencia uns dos outros. E s nela que se pode conceber e

    esperar a possibilidade do novo, da transformao, visto que a ao entendida como

    elemento eminentemente relacional que gera reflexos nas demais aes que esto em curso

    ou naquelas que ainda iro surgir.

    Dentre as trs atividades humanas fundamentais, a ao a nica que no pode ser

    imaginada fora da sociedade dos homens, pois o labor e o trabalho podem ser feitos por sie para si. Nem um animal nem um deus, capaz de ao, e s a ao depende

    inteiramente da constante presena dos outros. (ARENDT, 2003, 31). Deve-se saber,

    portanto, que a ao, assim como o discurso, se situa no mbito poltico, e no no social.

    Arendt ressalta a no incomum confuso que se faz com o termo zoon politikon,

    traduzindo-o como animal social. Esta definio infere que, por falhas biolgicas, o

    homem necessita viver em sociedade. Mas na prpria definio aristotlica a distino do

    homem se faz na ao e no discurso (ou seja, napraxise na legis). Para Arendt, portanto, aorganizao humana se difere totalmente da associao natural, por ser poltica e ter como

    centro a casa e a famlia.

    A ao e o discurso elementos que so estritamente condicionados ao carter

    de pluralidade humana possuem dois aspectos que a princpio parecem paradoxais,

    mas na verdade so complementares. Estes aspectos so a igualdade e a diferena. Se

    no houvesse a igualdade, em espcie, no haveria como nos comunicarmos.

    Entretanto, se no fossemos diferentes, tal qual ocorre com os animais, no

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    precisaramos agir. At porque teramos a nossa imortalidade garantida em funo da

    repetio do ciclo vital, decorrente da falta de singularidade. (...) A pluralidade

    humana a paradoxal pluralidade de seres singulares. (ARENDT, 2003, 189). Chega-

    se singularidade apenas quando se perpassa a alteridade, isto , quando se identifica

    que h o outro e este reconhecido como igual e s assim percebendo a singularidade

    que advm da observao de que o outro justamente outro25.

    A ao e a necessidade desta esto intimamente ligadas natalidade, pois nela

    que se tem a possibilidade de incio, alm de seu carter de surpreender por ser

    imprevisvel. Quanto a isso, na relao ao e discurso, pode-se perceber que a revelao

    est mais ligada ao discurso, assim como o incio est mais intrinsecamente relacionado

    com a ao. Mas apesar de se concentrarem separadamente, no se pode desvincular um dooutro j que sem o discurso, a ao deixaria de ser ao, pois no haveria ator; e o ator,

    agente do ato, s possvel se for ao mesmo tempo, o autor das palavras. (ARENDT,

    2003, 191).

    A ao e o discurso s podem existir na esfera pblica, porque dependem da inter-

    ao dos indivduos. a que se encontra o conceito de teiade Hannah Arendt. A teia a

    relao dos indivduos na ao e no discurso que, apesar de intangvel, real. O incio e a

    revelao se inserem nessa teia dando uma forma efmera a ela. No h nos negcioshumanos ou na histria, um agente protagonista que ter sozinho a responsabilidade de um

    resultado final. Nem mesmo existe um autor platnico que ser como uma mo invisvel

    da histria, pois ela no foi criada, mas sim construda por todas as interferncias feitas

    nesta teia.

    A suscetibilidade e fragilidade dos negcios humanos podem ser definidas em trs

    aspectos: a imprevisibilidade, a irreversibilidade e o anonimato dos autores. Por

    conseqncia desses aspectos que o homem h muito, e principalmente na modernidade,tem verdadeira averso ao. Os gregos, por meio do conceito de eudaimonia, tentaram

    contornar ao menos o primeiro dos aspectos. O sujeito se preocupava com aquilo que seria

    permanente e inaltervel, que o seu prprio carter. Por meio da ao (e dos grandes

    feitos) se tornava tangvel a sua existncia de modo que no se estaria mais susceptvel

    imprevisibilidade. J a soluo da modernidade quanto a esse problema vai ser justamente

    abster-se da ao.

    25No sentido literal: diverso, diferente.

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    Ainda sobre estas trs caractersticas dos negcios humanos, Hannah Arendt aponta

    que estas so a base para as crticas aos modelos democrticos. Quem assume tal posio

    de criticar a democracia diz que esta forma de governo tem princpios que vo levar a uma

    maior imprevisibilidade e irreversibilidade j que expande a quantidade e a diversidade de

    atores polticos.

    Na convivncia humana a nica forma de se esconder quem realmente se , no

    agindo, pois somente a ao e o discurso so capazes de fazer aparecer26quem e no o

    que . E essa idia d base para argumentao de Hannah Arendt sobre as conseqncias

    da inverso do labor pela ao na modernidade. O nico espao em que os homens passam

    a agir no mercado de trocas, mas nesta esfera no h o contato de um indivduo com o

    outro, no h inter-ao e sim uma relao de fabricantes com produtos. Assim, aaparncia de quem se , torna-se irrelevante, fazendo com que o indivduo deixe de s-lo,

    para tornar-se membro de algo maior. O convvio totalmente anti-poltico. O espao da

    aparncia e do poder se esvazia completamente, pois ele s existe quando esto

    aglomerados. Quando existe essa disperso, no existe mais corpo poltico, pois a

    potencialidade de convivncia e de inter-relao entre os homens se perdeu.

    Na modernidade, a ao se instrumentaliza, ou seja, torna-se apenas um processo

    sem que com isso haja supresso da ao. Quando a ao se instrumentaliza, ela perde aspossibilidades de se tentar contornar os aspectos da irreversibilidade e da imprevisibilidade

    que seriam o perdo ou, como alternativa, a punio e a promessa27, respectivamente.

    At a ao do raciocnio atribuda aos aparelhos fabricados pelo homem, pois so

    considerados mais eficientes. A poltica fica ento mais restrita ainda, sendo balizada para

    poucos que deixam de cuidar do labor e se preocupam com o pensar e o agir politicamente.

    Como experincia vivida, sempre se sups, talvez erradamente, que a atividade de pensar

    fosse privilgio de poucos. (ARENDT, 2003, 338).Uma grande inquietao de Hannah Arendt quanto s formas tiranas (e mais

    especificamente totalitrias) de se governar e, segundo a argumentao anterior, neste tipo

    de forma de governo fora extrado qualquer carter de poder ou de poltica dessas formas

    de governo. At porque, para a Arendt, o poder no tem nenhum vnculo com o uso da

    26 Aparecer aqui no carter de que o que aparece o que se considera verdadeiro.27 claro que estes no fazem com que se retroceda ao que j foi feito ou que se tenha plena certeza do que

    ser feito, entretanto, a forma com que no se restrinja o agir devido as conseqncias, ento,intransponveis.

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    fora. O primeiro existe enquanto palavra e ato, que no se dissociam, j o segundo s

    usado quando j no se convence por palavras. A ao e o discurso perdem todo o seu

    carter quando se tornam mero meio para se atingir um fim (como o caso da violncia ou

    da falcia). A questo de aparecer quem se deixa de apresentar-se neste tipo de ao,

    iludindo e ofuscando uma realidade.

    A violncia pode at destruir o poder, mas no conseguir substitu-lo. Alm de

    esta s poder ser usada quando o poder tornar-se impotente. Pois:

    O poder preserva a esfera pblica e o espao da aparncia e, como tal, tambmprincpio essencial ao artifcio humano, que perderia a sua suprema raison d'tre sedeixasse de ser o palco da ao e do discurso, da teia dos negcios e relaes humanase das histrias por eles engendradas. (ARENDT, 2003, 216)

    A questo do uso da fora pelo Estado como meio de garantir a ordem, como se v

    em vrios autores modernos e contemporneos, como em Max Weber, no admissvel,

    para Arendt. O uso da fora levaria concepo de domnio e submisso, mas na esfera

    pblica deve-se ter como princpio a liberdade, mas a liberdade no conceito dos antigos, ou

    seja, sem lig-la e denot-la justia, mas sim igualdade. A liberdade que se tinha na

    esfera pblica condizia com a idia de que todos que podiam (ou pode-se dizer que de certa

    forma eram capazes de) participar do corpo poltico eram iguais.

    Como ncleo de seu pensamento referente condio humana, a autora coloca em

    foco a conceituao, bem como as mudanas ao longo da histria, das esferas pblica e

    privada, e mais tarde da esfera social. Na esfera privada, para os antigos, no havia a

    percepo do indivduo enquanto ser humano, mas sim como o animal homem, pois nesta

    esfera se encontrava o labor e o suprimento das necessidades do homem enquanto ser vivo,

    sendo assim, ali poderiam ser encontradas apenas as atividades e relaes necessrias para

    a permanncia da vida. A esfera pblica, por outro lado, constitua-se no local de

    diferenciao de um indivduo sobre os demais o que caracteriza o conceito deexcelncia mediante sua ao e seu discurso.

    A esfera pblica, acrescenta Arendt, o mundo comum, e o que mantm a

    existncia deste mundo , seno, o interesse da comunidade de pessoas na existncia dele

    prprio. Tal mundo construdo pelos homens que nele habitam, ou seja, no se constitui

    de uma mera localizao destes que nele se encontram, mas sim do lugar onde as questes

    verdadeiramente pblicas e, conseqentemente, polticas nascem e so mantidas. a partir

    da compreenso de como se estabelece e se perpetua o mundo comum, na leitura de

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    Hannah Arendt, que se pode perceber como o conceito de bem comum, que hoje permeia

    as relaes polticas, visto por ela seno como conseqncia da sobreposio do social ao

    pblico. O bem comum, para Arendt, seria a prevalncia dos interesses individuais e

    privados transformados em algo socialmente comum pela subverso dos limites e

    contornos das esferas pblica e privada.

    Tudo isto em decorrncia da decadncia da esfera pblica e o surgimento da esfera

    social. Esta ltima, por sua vez, no pblica nem privada e tambm no permite uma

    distino clara de quando se inicia ou termina, mas se estabelece entre as outras duas: a

    pblica e a privada. Em contraposio, na antigidade a distino entre estas duas esferas

    fez-se ntida, pois com o advento da cidade-estado separou-se a famlia que condizia

    manuteno da mesma da polis o mundo comum de forma at mesmo axiomtica.Arendt aponta que, j na modernidade, deixa-se a nitidez e parte-se para o difuso, pois se

    passa a aceitar a comunidade poltica como uma grande famlia e os negcios e a

    administrao passam a ser um assunto domstico-nacional.

    A poltica, em Hannah Arendt (2002), ocorre no convvio no mundo comum e se

    volta para ele, a fim de que as relaes de livre agir e falar entre iguais seja possvel.

    neste sentido que a poltica no s se relaciona com a liberdade, mas se torna idntica a ela.

    Quando, ento, h a decadncia da esfera pblica, a poltica tambm deixa de estar numpatamar hierrquico distinto, pois o que antes condizia esfera privada, ou seja, s

    necessidades vitais, torna-se pblico por meio da prevalncia da economia e a forma com

    que o dinheiro passa a ser o meio de saciar tais necessidades. Diante disto, a poltica que

    possua o seu espao demarcado pelo mundo comum, abre espao para a busca do bem

    comum e, com isto, h uma substituio do entendimento da poltica enquanto finalidade,

    isto , enquanto liberdade em si, para o entendimento dela enquanto meio, objeto,

    processo, para a conquista de interesses que no podem ser entendidos como coletivos,mas sim como, no mximo, o somatrio de interesses individuais, conforme apresentado

    por Aguiar (2004):

    A absolutizao da questo social ocasionou enorme estreitamento do conceito de BemComum. O Bem Comum transformou-se nos elementos necessrios ao bem-estar da

    populao. Bem Comum passou a ser coisas e no o mundo comum que nasce daconvivncia livre dos cidados, campo da memria e imortalizao. (AGUIAR, 2004,17)

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    a partir deste momento que se passa a ver a comunidade pblica como uma

    grande famlia e as necessidades e carncias do indivduo passam a ser preocupao do

    mundo comum. Apresenta-se a um ponto de discusso de fundamental importncia em A

    Condio Humana: a decadncia da esfera pblica e a supremacia da esfera social.

    A sociedade a forma na qual o fato da dependncia mtua em prol da subsistncia, ede nada mais, adquire importncia pblica, e na qual as atividades que dizem respeito mera sobrevivncia so admitidas em praa pblica. (ARENDT, 2003, 56)

    Sobre esta problemtica interposta entre os tempos da antiguidade e da

    modernidade, Arendt coloca que na antiguidade o homem que vivesse somente na esfera

    privada no era inteiramente humano, pois estava privado da ao, do convvio entre os

    homens28

    . Na modernidade o individualismo enriqueceu a esfera privada e fez surgir umcrculo de intimidade. A privacidade no mais oposta esfera poltica, mas sim social

    na qual constitui laos ainda mais estreitos e mais autnticos (ARENDT, 2003, 48). A

    famlia passa a ser absorvida por grupos sociais e deixa de pertencer esfera privada

    originando o sentimento de que o corpo poltico uma grande famlia.

    E diante disto, surge o fenmeno do conformismo que caracterstico do ltimo

    estgio dessa evoluo moderna (ARENDT, 2003, 50), no qual a esfera social passa a

    abranger e a controlar toda a comunidade, nascendo a sociedade de massa, que pode seridentificada pela tentativa de um pensamento nico, um interesse nico, ou seja, onde

    predomina a apatia. A ao (essencialmente poltica) d lugar para o comportamento

    (essencialmente social)29; a esfera pblica deixa de ser cenrio de grandes feitos; o

    indivduo deixa de agir; ele abre mo da nica atividade que o distinguia dos animais.

    E a vitria da igualdade no mundo moderno apenas o reconhecimento poltico ejurdico do fato de que a sociedade conquistou a esfera pblica, e que a distino e adiferena reduziram-se a questes privadas do indivduo. (ARENDT, 2003, 51)

    Entretanto, apesar de todas estas inverses, pode-se dizer que aquilo que, para

    autora, representava um pesar, hoje se tornaria insustentvel caso assim no o fosse, isto ,

    28E o quanto disso no acaba por ser semelhante quando percebemos hoje milhares de indivduos legal elegitimadamente cidados, porm completamente alheios autoria de quaisquer aes ou discursos queextrapolem as votaes?29 Ao invs de ao, a sociedade espera de cada um dos seus membros um certo tipo de comportamento,impondo inmeras e variadas regras, todas elas tendentes a normalizar os seus membros, a faz-loscomportarem-se, a abolir a ao espontnea ou a reao inusitada. (ARENDT, 2003, 50). No por acaso

    esta situao apontada de forma crtica por Arendt, sendo que para Bourdieu as mesmas caractersticas soentendidas como diagnstico.

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    caso a esfera pblica no fosse entendida de outra maneira, pois isto representaria a

    permanncia da privao formal de direitos totalidade dos indivduos.

    Arendt se preocupa com ascenso da esfera social esfera pblica na modernidade,

    em decorrncia do interesse por parte dos indivduos em preservar elementos da esfera

    privada, isto , defender a propriedade privada para garantir a conquista de outros bens

    privados interesse esse que para autora constitui-se de preocupao da esfera privada

    tendo em vista seu carter de preservao da vida. possvel que este interesse em

    termos semelhantes ao trazido pela autora quando disserta sobre a modernidade30 existia

    e existiu at mesmo na antiguidade. Pensa-se que da advm certo grau de ludbrio em

    Arendt ao admitir que aqueles responsveis apenas pelo discurso e pela ao nos tempos da

    antiguidade no garantiam, por meio destes discursos e aes, as suas necessidadesbsicas31.

    A nica diferena que de antemo pode-se perceber que este era um grupo

    restrito, que respondia pela denominao de cidados, enquanto que na modernidade a

    totalidade dos indivduos passa a se sentir no direito de, por meio da esfera pblica 32,

    garantir e proteger suas necessidades provenientes e manifestas na esfera privada.

    Diante disto, traz-se mais uma questo: quando a esfera pblica era destinada

    exclusivamente para as atividades que garantiam a imortalidade33

    dos homens que nelacircundavam, ela era de algum modo humana? Pergunta-se isso no no sentido do humano

    distinto do animal, pois neste caso a resposta afirmativa j est presente nos principais

    conceitos de Hannah Arendt, o que se pergunta : o que mais importante, o alvio por

    manter intacta a esfera pblica das necessidades vitais, fugazes e at mesmo fteis da

    esfera privada ou, aps ser contaminada por tais necessidades e ser submersa pelo grande

    nmero de indivduos nela composto, fazendo emergir a esfera social , a esfera pblica

    30Lembrando que, com isso, no se est ignorando a distino feita pela autora entre riqueza e propriedadeprivada na antiguidade. Pois, naquele tempo, entendia-se a propriedade como um lugar seu no mundo, noqual permitiria ao indivduo participar do corpo poltico, ou seja, a propriedade tambm era a forma dedelimitar fisicamente as duas esferas, no atravs de leis proibitivas, mas pelos muros que as separavam.31Tal qual visto em A Poltica de Aristteles quando este defende a demarcao, pelo legislador, de limitespara a acumulao de riquezas e para o nmero de filhos, a finalidade de tal proposio justificada pelapreocupao em no ensejar revoltas tanto pela desigualdade excessiva de condies entre os cidados comoa falta de reconhecimento pelo bom desempenho das funes de um determinado cidado. Lembrando queaqueles entendidos como cidados so indivduos pertencentes a um grupo bastante limitado.32Tal qual ela se apresenta para eles, ou seja, na concepo de Hannah Arendt, submersa esfera social.33

    Proveniente da ao e do discurso que permitem a perpetuao de um mundo comum de maneiraindependente da vida biolgica dos indivduos.

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    poder dialogar com injustias, desigualdades e necessidades sempre dantes havidas e

    sofridas pela grande maioria dos at ento no-agentes?

    Pode-se perceber a interlocuo que tais questionamentos fazem com a questo do

    entendimento das crianas como passveis de adentrar ou no neste mundo comum,

    portanto de poderem agir ou no na esfera pblica. Segundo Arendt (2005) tal

    possibilidade no seria pertinente, pois tambm o mundo necessita de proteo, para que

    no seja derrubado e destrudo pelo assdio do novo que irrompe sobre ele a cada nova

    gerao. (ARENDT, 2005, 235). Ento, mesmo sendo a poltica o lugar de transformao,

    Arendt afirma no ser possvel dar-se abertura para algo to novo assim, ou seja, aquilo

    que provm da ao das crianas. Antes, porm, deve-se dar educao o papel de

    controle daquilo que advm do novo. Com isto, Arendt revela um aspecto conservador desua leitura do mundo, colocando o mbito da educao como o responsvel por conservar

    os elementos presentes na esfera pblica e, somente aps isto, o papel da poltica pode ser

    o de transformar.

    No seria falacioso argumentar que a no possibilidade de investigar crianas como

    sujeitos polticos decorre do receio da transformao, pois o que Hannah Arendt entende

    por imprevisibilidade na esfera pblica, semelhante ao conceito de re-significao34

    apresentado nos trabalhos que estudam a perspectiva da criana. E como observa Arendt:a tentativa de eliminar essa pluralidade [decorrente da imprevisibilidade e

    irreversibilidade da ao e do discurso] equivale sempre supresso da prpria esfera

    pblica. (ARENDT, 2003, 233).

    Ao mesmo tempo, na vinculao entre o surpreendente proveniente da ao e a

    revelao surgida do discurso que se encontrar a concepo de re-significao constante

    nos atuais estudos que se focam na perspectiva das crianas. O foco na criana possvel

    tendo em vista as constantes comprovaes de que a criana pode ser concebida comoautora, conforme conceito apresentado por Hannah Arendt35:

    A ao que [o ator] inicia humanamente revelada atravs de palavras; e, embora oato possa ser percebido em sua manifestao fsica bruta, sem acompanhamento

    34 Processo no qual os elementos do mundo passam a ganhar contornos e sentidos diferenciados emdecorrncia de um novo ator que os contata, sente e representa (conforme se v nos estudos de JAVEAU,2005; PRADO, 2005; BORBA, 2007).35

    Porm, mesmo entendendo este conceito de autoria, Hannah Arendt no consegue identificar na criana apossibilidade de ser entendida enquanto ator da esfera pblica.

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    verbal, s se torna relevante atravs da palavra falada na qual o autor se identifica,anuncia o que fez, faz e pretende fazer. (ARENDT, 2003, 191)

    Por maior que seja a resistncia de Hannah Arendt em admitir que o uso que se faz

    na modernidade do espao pblico muito mais um comportamento social, o que se temfeito em projetos e programas que incentivam a participao das crianas a preservao

    do espao pblico tal qual ele se apresenta hoje.

    Youngsters can make positive contributions to society in many ways, such as protectingthe natural environment, paying attention to their brothers and sisters, or taking care ofa specific park in their neighborhood (Hart 1999), and these efforts can turn intocommunity-wide projects. (SENER, 2006, 202).

    Em decorrncia das questes e preocupaes atuais com relao preservao de

    determinados elementos da esfera pblica, fica ainda mais difcil no identificar tais

    prticas como voltadas para o mundo comum tal qual ele se apresenta para a sociedade

    moderna.

    Deste modo, a autora d importncia para que a criana se encontre entre as quatro

    paredes da vida privada para ficar protegida do mundo externo, onde o que se leva em

    conta so o trabalho [e a ao poltica] e as pessoas, mas no a vida, no a individualidade

    do ser humano. E, sendo a criana um adulto em formao (ARENDT, 2005), de suma

    importncia que se preserve seu aspecto vital. Pois a esfera pblica se constitui do que aparente, pois a aparncia constitui a realidade (ARENDT, 2003) e, ao mesmo tempo, tudo

    precisa da segurana da escurido para poder crescer. (ARENDT, 2005, 236).

    Entretanto, deve-se entender criticamente que tal idia s se torna verdadeira enquanto no

    se conhece a luz de que fala Arendt, pois depois de conhec-la, o processo de vendar os

    olhos no caracterizar proteo alguma36.

    Segundo a prpria Hannah Arendt:

    A diferena entre o que temos em comum e o que possumos em particular , emprimeiro lugar, que as nossas posses particulares, que usamos e consumimosdiariamente, so muito mais urgentemente necessrias que qualquer parte do mundocomum; sem a propriedade, como disse Locke, ' de nada nos vale o comum'. (ARENDT,2003, 80-81)

    Portanto, a criana se situa num mundo existente para os demais, mas no se situa

    na esfera pblica, por no poder compartilhar deste mundo. Na esfera pblica, ela, muitas

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    O exemplo que Arendt traz o dos filhos de celebridades pblicas, porm entre expor a vida privada deuma criana e permiti-la conviver com o mundo pblico existe uma substancial diferena.

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    vezes figura como assunto, como argumento, mas no como autora da fala. E isto est

    presente inclusive no auto-reconhecimento das crianas.

    Dito isto, levanta-se uma questo pertinente sobre a investigao social em torno da

    criana no que tange participao desta nas esferas pblica e privada. Ser que esta

    investigao de difcil execuo em espaos diferentes dos da escola e da famlia, pois

    em nossa realidade apenas em meio a um espao da esfera pblica37(o da escola) em que

    ela se encontra aparente? O fato da criana, enquanto ator social no pertencer de fato

    esfera pblica pode encontrar um respaldo bastante instigante sob a seguinte afirmao de

    Hannah Arendt sobre a relevncia daquilo que revelado:

    H muitas coisas que no podem suportar a luz implacvel e crua da constantepresena de outros no mundo pblico; neste, s tolerado o que tido como relevante,digno de ser visto ou ouvido, de sorte que o irrelevante se torna automaticamenteassunto privado. (ARENDT, 2003, 60)

    Este ltimo parmetro sobre a poltica ter de ser construdo em consonncia com o

    entendimento de poltica no Brasil, no porque os dois coincidam em suas concluses, mas

    sim porque o vis participativo em si pode ser melhor trabalhado quando aliado realidade

    em que ser aplicado. O pensamento poltico brasileiro possui uma riqueza de diagnsticos

    e propostas polticas que colaboraram tanto para o entendimento quanto para o surgimento

    de acontecimentos polticos importantes no que concerne a configurao de liberdades

    polticas.

    O que os principais autores brasileiros38 trazem em comum um preocupante

    prognstico sobre nossa sociedade, que, baseada em sua herana social e histrica, est

    condenada a no progredir nos valores polticos necessrios para o xito democrtico.

    Porm, tal concluso s pde ser alcanada a partir da atribuio de um referencial exterior

    de sucesso democrtico. A reflexo trazida por Jess Souza (2000) sobre a inautenticidade

    de nossa investigao sociolgica expe a maneira com que o imaginrio social e tambm

    o acadmico balizam-se no entendimento de democracia nos moldes daquela surgida dos

    37Relevando, por ora, toda a discusso de Hannah Arendt sobre o formato que se encontra a esfera pblica dasociedade moderna, tendo em vista que tal discusso ainda ser analisada adiante. Alm de lembrar que, paraa autora: [so] mbitos privados e pr-polticos [o] da famlia e [o] da escola. (ARENDT, 2005, 240).38Dentre eles poderiam ser citados: Oliveira Vianna, em Instituies polticas brasileiras; Azevedo Amaral,

    em Ensaios Brasileiros; Srgio Buarque de Holanda, em As razes do Brasil; e Raymundo Faoro, em Osdonos do poder.

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    Estados Unidos. Porm, tal modelo de democracia, na verdade, deve ser visto com uma

    exceo real sobre a formao e a constituio de valores democrticos e, mesmo assim, a

    histria tem comprovado no ser esse o nico meio de identificar uma civilidade.

    O principal problema de que se alcancem modelos singulares e especficos, como

    no caso mencionado, que, j de incio, se descartam as possibilidades de ao poltica e

    configurao de um sujeito, visto que em terras brasileiras, ou em quaisquer outras terras,

    no sero alcanados os mesmos modos idnticos de atuao. Isto ocorre no por qualquer

    razo baseada em superioridade ou inferioridade de qualquer uma das realidades, mas

    simplesmente pelas suas peculiaridades, objetivos, anseios e identidades construdas

    singularmente em cada uma das realidades, das naes, dos grupos e dos indivduos.

    Tal propenso por se buscar um modelo da realidade que constitua num pontotimo a ser alcanado, gerou, historicamente, diversos entraves para a transformao de

    certos elementos da sociedade brasileira, visto que foram delimitados elementos

    condicionantes para que se prosseguisse em uma determinada trajetria evolutiva, ou

    mesmo, levou-nos a adoo de ferramentas isoladas que pareciam muito bem preencher

    nosso vcuo de cidadania, mas que na prtica foram incorporadas s antigas prticas

    patrimonialistas e clientelistas. A cidadania brasileira viu-se, assim, desafiada a

    amadurecer em um terreno bastante imprprio em razo de sua herana poltica e marcadopela predominncia da concesso de direitos em detrimento do sentimento de conquista e

    usufruto dos mesmos.

    Jos Murilo de Carvalho (2004) explica que no Brasil no houve uma aquisio

    linear dos direitos, tal qual apresentado por Marshall (2002), e que este fenmeno

    tambm no se repetiu em outros pases. Ou seja, as trs dimenses da cidadania, que so a

    civil, a social e a poltica, foram nesta ordem conquistadas no caso especfico da Inglaterra,

    o que no torna o cidado ingls o nico que pode exercer sua cidadania de modo pleno.No Brasil, a inverso deu-se de modo a negligenciar a conquista dos direitos sociais

    e a garantia dos direitos civis, fazendo com que a populao fosse constantemente

    surpreendida por doaes e seqestros de direitos polticos. E mesmo obtendo avanos

    democrticos, a partir da Constituio Federal de 88, pode-se perceber que tais conquistas

    no implicaram, necessariamente, na dissoluo dos graves problemas sociais do povo

    brasileiro. Isto nos remonta ao que Benevides ir concluir sobre a nossa concepo

    histrica da poltica:

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    (...) entendida como a passagem de um autoritarismo excludente para uma democracia nomenos autoritria, e, ainda por cima pior dos males , incompetente. (BENEVIDES, 1991,80)

    A sociedade brasileira, que j se via marcada pela desigualdade social que

    fundamentava conseqentes injustias histricas depositadas em grupos que podem ser

    claramente definidos, acabou por se ver mais uma vez em convivncia com prticas

    polticas tradicionais, mesmo depois de garantidos seus direitos democrticos. Isto, em

    muito decorre na falta de percepo dos limites e potencialidades de seus direitos polticos,

    mas com o agravante da inexistncia de reconhecimento dos direitos civis de grande

    parcela da populao. Jos Murilo de Carvalho (1992) vai nomear este problema

    curiosamente de infantilidade democrtica, isto , a existncia formal de direitos

    polticos sem que o cidado esteja imbudo de direitos civis. (CARVALHO, 1992, 114).

    A relevncia da conquista da cidadania no Brasil, que se reflete na forma com que

    se revela a preocupao com a representao e com a participao, v-se muito ligada na

    literatura acadmica apenas aos aspectos jurdicos. No que estes no tenham de fato

    grande relevncia em um pas com uma histria democrtica to instvel e fragilizada.

    Porm, todas as conquistas de direitos civis, polticos e sociais que podem e devem ser

    listadas parecem ser diludas quando so analisadas a prtica e a aplicao desses direitos e

    a ausncia de conhecimento dos cidados frente s possibilidades abertas pelo aparato

    jurdico.

    Ao mesmo tempo, outros autores no ignoram este contexto real do Brasil, porm

    procuram salientar outras caractersticas da democracia brasileira que so passveis de

    serem observadas e que trazem consigo perspectivas um pouco menos desastrosas para a

    consolidao da cidadania. Fernando Henrique Cardoso (1992) trata o constante e

    generalizado desencanto com a poltica de forma no to bvia. Segue Cardoso:

    Todos aqueles que dizem que no ligam para poltica, que os partidos no servem paranada e que poltico s serve para roubar, na hora da eleio torcem para um poltico eat se matam por ele.(CARDOSO, 1992, 163)

    Isso revela que a constante apatia, to ressaltada em diversos trabalhos, nada mais

    do que uma percepo de apenas umas das dimenses da realidade poltica brasileira. Em

    muitos momentos, o histrico de participao poltica no Brasil tomado e estipulado

    como distante dos processos de deliberao e formulao de polticas pblicas, dando

    participao, um papel constantemente reativo, isto , restrita ao plano do protesto em

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    relao a polticas no satisfatrias. Aos poucos tem-se demonstrado como esta perspectiva

    est sendo superada no plano real a partir de novos instrumentos participativos (como os

    oramentos participativos, as associaes da sociedade civil e os conselhos gestores). Alm

    disso, esta perspectiva da apatia participativa se refere a alguns problemas de delimitao

    que podem ser vistos tambm quando, por exemplo, Moiss (1995) estipula a conceituao

    de cultura poltica como toda esfera no institucionalizada da poltica e, diante disso, seus

    pares (isto , os demais autores culturalistas) entendem que sua conceituao

    demasiadamente extensa ou indiscriminada, ou seja, a formulao de conceitos extra-

    muros institucionais ainda traz incmodo a estes tericos.

    E por isso, e no raramente, que se v acusarem a existncia de uma percepo,

    seja no imaginrio social, seja como pano de fundo dos acontecimentos polticos, de umasociedade civil

    vista essencialmente como um ente amorfo e esttico, dotado de uma espcie deincapacidade intrnseca para organizar-se e, portanto, para definir (a no ser de modohierrquico) o sentido da sua interao com a sociedade poltica, o Estado por sua

    parte, como organizao poltica, administrativa e burocrtica, desfrutaria de um altograu de autonomia (LAMOUNIER, 1977).

    A excessiva resistncia que se pode encontrar sobre a aplicao de mecanismos de

    participao direta provm do receio sobre uma possvel tentao totalitarista(BENEVIDES, 1991, 11) ou ditadura da maioria. Isso alimenta a idia de que a possvel

    utilizao benfica de tais mecanismos s seria possvel em pase