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ISSN 2176-1396
VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E APRENDIZAGEM DA LÍNGUA
ESCRITA: O DESENVOLVIMENTO DA CONSCIÊNCIA
LINGUÍSTICA
Lucilene Lisboa de Liz1– UDESC
Eixo – Alfabetização, leitura e escrita
Agência Financiadora: FAPESC (financiamento parcial)
Resumo:
Este artigo tem como finalidade verificar como a marcação dos infinitivos verbais ocorre
nas produções de crianças do 2º e 3º anos dos anos iniciais. No que se referem aos
aspectos metodológicos, os textos foram coletados a partir de duas situações que
possibilitassem às crianças a escrita em situações de uso da língua tanto no registro formal
como no registro informal. Nesse sentido, na situação sociocomunicativa de uso informal
da língua, foram convidadas a escrever um bilhete para um amigo/a convidando-o/a para
brincar e que falassem sobre as brincadeiras das quais mais gostassem e, na segunda
situação, de uso formal, encaminharam uma carta à diretora, solicitando melhorias para a
sua escola. È importante frisar que as crianças foram convidadas a escrever, em nenhum
momento, foram obrigadas a esta tarefa. Esta discussão está ancorada no pressuposto
teórico de que a criança chega à escola com um saber inconsciente, inato sobre a sua
língua; assim, para adquirir uma língua humana, basta que a criança esteja exposta a uma
língua durante o período de aquisição de linguagem. Além desta assunção, assumimos
ainda a concepção de língua como atividade social heterogênea e, por isso, mesmo
passível de variação e de mudança, conforme Coelho et.al. (2014). Admitimos que os
aspectos relacionados à variação linguística não se restringem à língua oral, mas também
se refletem na língua escrita. Os resultados apontam que as crianças operam com duas
regras no que se refere à marcação de infinitivo, a marcação canônica com o morfema –
r, brincar, e a regra que apaga esta marca, brinca, independente da situação
sociocomunicativa que se coloca.
Palavras-Chave: Infinitivo verbal. Aprendizagem da escrita. Consciência linguística.
Introdução
1 Doutora em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina. Profa. Adjunta II do Departamento
de Pedagogia, do Centro de Ciências Humanas e da Educação/FAED, da Universidade Estadual de Santa
Catarina.
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Este artigo tem como propósito verificar como o aspecto da marcação canônica
de infinitivos verbais tem se manifestado na produção escrita de crianças do 2º e 3º anos
dos Anos Iniciais.
Para tanto, serão analisados os dados de escrita em situação sociocomunicativa
que exigem os usos dos registros formal e informal da língua, com o intuito de observar
se há consciência linguística no que concerne às escolhas realizadas pelas crianças ao
empregar as formas verbais no infinitivo. Salienta-se que este estudo apresenta apenas
parte dos resultados da pesquisa “Aprendizagem da língua escrita: interfaces com as
TIC”. Nesta pesquisa, nos propúnhamos a investigar em que medida o uso das
Tecnologias da Informação e da Comunicação (TIC) influencia na aprendizagem da
língua escrita e, por outro lado, verificar de que modo esta influência é percebida pelos
professores dos Anos Iniciais.
Reis e dias (2012, p.3), Coelho et. al.(2014, p.27), a marcação de infinitivo verbal
encontra-se em variação na fala dos brasileiros. Tais estudos nos conduzem a hipótese de
que se tal fenômeno encontra-se em ascensão entre os falantes brasileiros, isso significa
que esta forma linguística está no input de crianças adquirindo esta língua.
Consequentemente, estando presente na fala das crianças, no momento da alfabetização
esses traços se refletem na aprendizagem da língua escrita, já que a criança inicialmente
acredita que a escrita é a representação da fala.
Em estudo que toma como sujeitos de pesquisa professores da Educação Básica,
também alunos em formação na Pedagogia, Liz e Trindade (2016) mostram que, embora
as pesquisas recentes apresentem estudos à luz de novas concepções de língua, as autoras
verificaram pouca ou quase nenhuma apropriação das diferentes correntes teóricas
emanadas da linguística contemporânea. Entre essas concepções, embora imbuídas de
muitas imprecisões, evidenciamos a prevalência de língua como instrumento de
comunicação e de língua como expressão do pensamento; concepções essas já
amplamente debatidas e refutadas por diferentes estudiosos, de diferentes correntes
teóricas da ciência da linguagem tais como Chomsky (1995), Bakhtin (1992), ambos
teóricos estudados ao longo do curso de formação inicial de professores da Educação
Infantil e também dos Anos Iniciais.
Além disso, quando questionados a respeito da influência do uso das TIC na
aprendizagem da língua escrita, as vozes ecoavam no sentido de que as tecnologias
representariam a praga do século por favorecerem as mais distintas transgressões
linguísticas. Assim é que, entre os discursos destes docentes, observamos a prevalência
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da insegurança teórico-metodológica e dos discursos de senso comum. Os reflexos deste
perfil podem ser sentidos diretamente no tratamento em relação aos aspectos relativos à
aprendizagem da língua escrita, visto que a concepção de língua do professor é guia de
sua prática docente. A ausência de uma concepção clara e contemporânea sobre a língua
oral ou escrita perpetuam práticas que desconsideram os saberes linguísticos
inconscientes que as crianças apresentam. Assim, o que deveria ser o ponto de partida
para o desenvolvimento de um trabalho em língua materna, visando à ampliação do
repertório linguístico da criança, é reduzido à mera substituição do saber linguístico da
criança pela imposição da língua institucionalizada, a norma padrão.
Assim, o texto oral ou escrito, produzido pela criança, apresenta apenas um
critério de avaliação, a observância dos padrões normativos. Tudo o que foge ao padrão
da língua preconizada pela escola é considerada como erro. A questão é muito mais
complexa do que esta observação possa aparentar a primeira vista. Enquanto este docente,
sem uma formação adequada e atual, olha para um texto escrita e percebe nele apenas
aspectos de natureza ortográfica a serem abordados, perde-se a oportunidade de se fazer
um trabalho de consciência linguística em prol da ampliação do repertório de saberes
linguísticos trazidos por esta criança.
Neste estudo, uma vez mais sublinhamos a relevância da competência técnica do
professor e o domínio do conhecimento dos fenômenos linguísticos relacionados à
docência em alfabetização, assim como alguns estudiosos têm apontado ao longo do
tempo, tais como Cagliari (2012), Lemle (2007), Kato (1999), entre outros. Sem isso, a
escola enfrentará sempre novos dilemas sem, no entanto, atacar antigos problemas
relacionados à aprendizagem da língua escrita desde a alfabetização.
No que se refere aos aspectos metodológicos, trata-se de uma pesquisa qualitativa.
O corpus deste estudo é composto por 60 produções escritas, envolvendo 60 crianças,
dentre os quais 31 textos foram escritos por crianças do 2º ano e 29 por crianças do 3º
ano, dos Anos iniciais, de uma escola da Grande Florianópolis. Nesta situação, os
estudantes foram convidados a produzirem textos em dois contextos sociocomunicativos:
um dos contextos e o primeiro a ser aplicado foi o experimento de coleta de dados em
ambiente não monitorado, no qual as crianças foram orientadas a produzir um bilhete para
um amigo, falando sobre as coisas de que mais gostava de fazer quando não estava na
escola e convidando/a para ir a sua casa; na segunda situação, em ambiente linguístico
monitorado, as crianças foram convidadas a escreverem uma carta para Diretora da
escola, solicitando algumas melhorias. Salientamos que para compor o ambiente não
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monitorado, os estudantes eram orientados para escreverem como soubessem; já no
ambiente monitorado, a orientação consistia em lembrar-se das regras para a escrita, de
acordo com a língua que se aprende na escola. É importante informar que as crianças não
eram obrigadas a escrever, por isso mesmo, a primeira proposta de escrita versou sobre
texto informal cujo interlocutor era um amigo da sala. A opção por esta ordem deveu-se
em razão de se criar um ambiente favorável para uma escrita mais espontânea, sem tantas
preocupações com os aspectos formais relacionados às normas vigentes para a escrita.
Este texto está assim organizado: na seção 2, apresentamos o diálogo com as
teorias que subjaz este estudo; na seção 3, apresentamos a descrição e a análise dos dados
obtidos; finalmente, na seção, 4 as considerações finais relativas a este recorte da
pesquisa.
Diálogos com as teorias: a língua oral, a língua escrita e a relação de um contínuo
A criança que chega à escola para ser alfabetizada conhece e domina sua língua
materna com bastante destreza. Ora, se essas crianças conhecem a sua língua, ainda que
de forma inconsciente, é atribuição da escola partir deste conhecimento inconsciente para
atingir o grau de consciência linguística, proporcionando a elas o acesso daquilo que não
dominam e tornando possível a elas a opção das diferentes formas de dizer em sua língua.
Sendo assim, entendemos como função crucial da escola o desenvolvimento das
habilidades linguísticas. Tais habilidades são orientadas nos Parâmetros Curriculares
Nacionais de Língua Portuguesa desde os anos de 1997-1998, a saber, o de ensinar a
empregar a língua oral, a língua escrita e a leitura em diferentes situações
sociocomunicativas. Nesse sentido, é importante salientar que compete à escola habilitar
esses cidadãos para atingir a maior competência possível para os usos linguísticos nas
situações de convívio humano mais complexas.
Para situar a perspectiva que embasa as nossas discussões, cumpre salientar que
assumimos que a língua oral é adquirida via um mecanismo bilógico inato, ao passo que
a língua escrita necessita de intencionalidade, intervenção para a sua aprendizagem. Para
sermos um pouco mais específicos, para que a criança adquira a língua oral, basta que
esteja exposta à língua no período de aquisição de linguagem. Tal período, na literatura
referida, é denominado período crítico, o qual inicia desde a primeira exposição da criança
à língua até o início da puberdade, Chomsky (1995), assumido ainda por Cagliari (2012),
Lemle (2007), Kato (1999), entre outros.
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No que se refere à modalidade escrita da língua, há necessidade de uma
aprendizagem intencional tanto por parte do aprendiz, como parte daquele que ensina.
Trata-se de um processo mediado, em que a intervenção do outro é crucial para a sua
apropriação.
Essa distinção, no entanto, não é nova, mas está presente em estudos como de
Lenneberg (1964 apud KATO, 1999), para quem a língua oral está relacionada à
aquisição natural, por meio de um input linguístico; já a escrita, numa habilidade
culturalmente aprendida. É importante ressaltar que, embora estejamos assumindo a
apropriação dessas duas modalidades da língua como consequência de dois processos
distintos, em certo ponto dos processos de aquisição e aprendizagem da língua, há
influência de uma modalidade sobre a outra. Da mesma forma que em certo momento do
processo, a língua oral influencia na aprendizagem da língua escrita, também a
aprendizagem da língua escrita influencia a fala e a modifica, conforme Kato (1999).
De acordo com Kato (1999), em sua ontogênese, a língua escrita atravessa fases
distintas, a saber, de uma escrita ideográfica/icônica (a qual permanece até os dias atuais),
na cultura do extremo oriente, para uma escrita alfabética, “com caráter claramente
digital”, na cultura do ocidente.
A esse respeito, Kato (1999) e também Lemle (2007) ressaltam que a criança, em
fase inicial de aprendizagem da língua escrita também realiza este percurso, visto que
precipuamente acredita que a escrita é ideográfica, isto é, os riscos no papel são
concebidos como desenhos. Vencida esta etapa, ao tentar fazer a representação do som,
por meio do grafema/”letra”, a tentativa de reprodução não é do fonema, um conceito
mental abstrato, mas ao fone, realização concreta do fonema (KATO, 1999, p.203).
Ainda segundo essa autora, no que se refere ao nível morfológico, o que se observa
em textos/documentos antigos talvez também possa ser observado na escrita da criança.
Tarallo (1990 apud KATO, 1999, p.203) mostrou que há inconstância/instabilidade na
forma de segmentar os pronomes clíticos como formas livres, viu-nos- viu nos ou presas
viunos, como flexões verbais, exemplo.
Assim, com o propósito de explicar as fases ontogenéticas e filogenéticas da
aprendizagem da língua escrita, Kato (1999, p.203) propõe o seguinte esquema:
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FIGURA 1- Esquema- fases ontogenéticas e filogenéticas da aprendizagem da língua escrita.
FONTE: Kato (1999, p.203)
Com relação aos conhecimentos envolvidos, a autora pontua que a escrita difere
da Fala 1 pelo processo inconsciente que está em cena; a FALA2 apresenta uma aspecto
da FALA1, o fator inconsciente, mas também revela aspectos conscientes emanados do
conhecimento da língua escrita. E então teríamos o seguinte esquema:
FIGURA 2- Esquema- uso consciente e inconsciente da língua oral e da língua escrita
FONTE: Kato (1999, p. 204)
A esse respeito Kato (1999) destaca que é comum se ouvir que a escrita é a
modalidade de língua conservadora enquanto a modalidade oral é inovadora. No entanto,
é a ESCRITA2, em que há uma preocupação maior com as convenções normativas, que
se revela conservadora. Além disso, observa-se que “[...] a tecnologia da escrita reprime
inovações e faz o falante voltar a formas já eliminadas, ou no limiar do
desaparecimento.”(KATO, 1999, p.204)
Resta claro, portanto, que temos de entender a escrita como um processo, o qual
pode ser mais bem compreendido como momentos em que o aprendiz passa de um uso
inconsciente da língua para momentos em que há uma mescla de consciência e
inconsciência.
Este estudo revela, portanto, que a escrita apresenta um caráter mais conservador
em relação à língua oral, nesse sentido, optamos por analisar os dados do 2º ano, momento
em que as crianças ainda se mostram pouco preocupadas com as normas e do 3º, fim do
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ciclo da alfabetização, no qual se espera que a criança oscile entre os níveis de
(in)consciência.
Mas antes de avançarmos para as análises, devemos deixar clara outra concepção
que subjaz este estudo, a saber, a de que as línguas humanas variam e mudam. Segundo
Coelho et. al. (2014, p.16), a variação linguística “[...] é o processo pelo qual duas formas
podem ocorrer no mesmo contexto com o mesmo valor referencial/representacional, isto
é, com o mesmo significado”.
Assim, quando nos reportamos à língua oral, é importante considerarmos o fato
de que não usamos a língua da mesma forma e ao usá-la, de certo modo, revelamos muito
sobre nós, nossas origens sociais e mesmo regionais.
Adicionalmente, é fundamental considerarmos que as crianças que chegam à
escola para serem alfabetizadas, empregam a sua língua com graus de bastante
diferenciados em relação à língua alvo para a aprendizagem, a língua institucionalizada.
Dessa forma, resta claro que quanto mais próximas estiverem as variedades linguísticas
que utilizam da norma de prestígio, mas rápida e tranquilamente passarão pelo processo
de aprendizagem da língua escrita.
Entre os distintos fenômenos linguísticos do português brasileiro, enfocaremos a
marcação de infinitivo verbal, procurando observar como tem se apresentado no processo
de aprendizagem da língua escrita.
A marcação de infinitivo verbal no português brasileiro: o que os estudos nos
revelam
Diferentes estudos linguísticos, em especial aqueles relacionados à variação
linguística, têm mostrado que marcações linguísticas redundantes sofrem apagamento
como é o caso da marcação de concordância no português brasileiro, conforme como
Sherre (1995), Vieira (2014).
No que se refere à marcação de infinitivos, estudos como os Callou (1979),
Oliveira (1981 apud REIS e DIAS, 2012), Reis e Dias (2012) têm mostrado que o
morfema –r que acumula a marcação modo-tempo também tem sofrido apagamento.
Callou (1979), ao analisar a fala urbana culta do Rio de Janeiro, verificou que os
fatores sociais não apresentavam influência no que se refere à distribuição das variantes
presença do morfema-r e apagamento deste morfema, mas constatou que mulheres
tendiam a apagar mais que os homens. Seu estudo mostrou ainda que o aspecto extensão
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do vocábulo favorece o apagamento do morfema-r, o que confirma o estudo de Votre
(1978).
Em estudo de Oliveira (1981 apud REIS e DIAS, 2012), a autora destacou que
os fatores ambiente seguinte (ser consoante ou vogal ou ainda pausa), vogal precedente ,
número de sílabas foram quase categóricas, favorecendo a regra de aplicação do
morfema-r que marca infinitivo na forma padrão.
Dias e Reis (2012), investigando crianças de 2 e 7 anos em fase final de aquisição
de linguagem. A referida pesquisa constituiu-se como um estudo longitudinal, com 19
meses de observação, coma observação de dois informantes, um do sexo feminino, com
5 anos e 9 meses de idade (início da coleta), e outro do sexo masculino, com 2 anos e 4
meses (início da coleta). Essas crianças frequentavam a creche na cidade de Criciúma/SC
e seus pais eram superescolarizados (nível superior completo).
Os resultados obtidos neste estudo revelaram que a aplicação que a aplicação da
regra de apagamento do morfema –r de infinitivo verbal é quase categórica. Esse
resultado pode apontar para uma possível mudança na regra da marcação do infinitivo
verbal da marcação com morfema-r, para seu apagamento, o que vai ao encontro dos
estudos já referenciados pelas autoras e retomados no presente estudo.
A marcação do infinitivo verbal nas produções escritas dos 2º e 3 º anos dos Anos
Iniciais: análise e discussão
Nesta seção, faremos a análise das produções escritas de crianças do 2º e do 3º
anos, dos anos iniciais, numa abordagem qualitativa, procurando verificar como se dá a
marcação de infinitivo tanto em contexto formal como informal de uso da língua.
O corpus para análise foi composto de 31 textos escritos por crianças do 2º ano e
29 textos por crianças do 3º ano, dos Anos iniciais, de uma escola da Grande
Florianópolis, totalizando 60 dados obtidos.
As produções escritas foram elaboradas tanto em situação sociocomunicativa de
uso formal, como informal da língua. O propósito de se aplicar o experimento com textos
formais e informais consistiu em verificar se há consciência de uso do fenômeno
linguístico em foco, por parte das crianças, em função do contexto estilístico.
O estudo de Reis e Dias (2012) particularmente é mais relevante para discussão,
pois seleciona os informantes com idades próximas das faixas etárias das crianças que
produziram os textos para esta pesquisa.
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A figura apresenta o dado de uma criança do 2º ano. Obseve:
Texto 1- Texto informal- 2º Ano
Fonte: Acervo da autora- C10-2
Na produção do texto 1 acima, a situação de produção que se coloca é a seguinte:
a criança envia um bilhete a um amigo, informando-o sobre a razão de não ter realizado
a tarefa de língua portuguesa. Trata-se, portanto, de uma situação sociocomunicativa que
envolve o uso da língua no registro informal. Neste texto, é possível observar o seu
caráter sucinto e objetivo, mas que apresenta clareza. No que se refere aos aspectos
formais, focalizaremos o aspecto relativo à marcação de infinitivos verbais. Segundo a
norma padrão, o infinito no português é marcado pelo morfema-r. Observe, no entanto,
que na produção escrita em (1), na primeira linha, a criança não emprega a forma padrão
canônica, mas a forma variante, apagamento do morfema –r , o qual assume a forma que;
também nesta mesma linha, na sequência o verbo brincar, além da ausência da consoante
nasal –n, apaga o morfema-r; em seguida, na linha 2, o apagamento do morfema-r ocorre
com o verbo ir. Perceba que desprovida de um contexto, a forma verbal bri(n)ca poderia
ocasionar confusão com a forma verbal de 3ª pessoa, do presente do indicativo-ele
bri(n)ca. O contexto sintático no qual se ancora a expressão, no entanto, conduz à
interpretação deste termo como forma verbal no infinitivo.
O mesmo fenômeno também pode ser encontrado em textos produzidos pelas
crianças no 3º ano, na mesma situação sociocomunicativa de produção, conforme
mostra a figura (2):
FIGURA 2 - Texto (2) - Texto Informal- 3º Ano
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Fonte: Acervo da autora- C10-2
No texto 2, representado na figura 2, a criança L3, emprega a marcação canônica
de infinitivo com morfema –r, na linha 4, com o verbo ver. Em seguida, na linha 5, o
verbo querer assume a forma que, apagando o morfema r; assim como o verbo escolher
sofre o apagamento, assumindo a forma escolhe, na linha 7; também na linha 5, o verbo
ir aparece com a marcação canônica de infinitivo, ou seja, preservando o morfema -r;
ainda na linha 6, na grafia do verbo assistir , observa-se a marcação canônica novamente.
Com relação aos textos produzidos em situação sociocomunicativa, destacamos
os textos das figuras (3) e (4).
FIGURA 3- TEXTO 3- Texto formal- 2º Ano
Fonte: Acervo da autora- C01-2F
No texto apresentado na figura (3), é possível observar alguns aspectos típicos da
fase de alfabetização como a junção intervocabular, no s termos de Cagliari (2012),
unindo as preposições do e pra ao nome recreio e ao verbo brinca (brincar),
respectivamente. Observe que na segunda junção intervocabular prabrinca, a criança
aplica a regra de apagamento do morfema-r.
Com relação ao texto em situação formal, produzido por uma criança do 3º ano,
temos o seguinte cenário:
FIGURA 4- Texto formal- 3º Ano
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FONTE: Acervo da autora- C 14-F
Na produção, representada pela FIGURA 5, realizada em contexto formal de
comunicação, a criança aplica categoricamente a regra de apagamento de infinitivo em
todos os verbos conserta(consertar) , pode (poder) , brinca (brincar), verbos trissílabos e
dissílabos, respectivamente.
As produções analisadas mostram que a marcação de infinitivo está claramente
em variação e as regras se aplicam independentemente da situação sociocomunicativa
formal ou informal. Talvez a razão para isso se dê pelo fato de as crianças ainda não
estarem num contexto de total consciência linguística para os diferentes usos em função
do contexto sociocomunicativo.
Adicionalmente, foi possível observar que a aplicação das regras ocorreu tanto em
contextos de verbos monossílabo como a exemplo do verbo ir; dissílabo, como o verbo
brincar, ou ainda trissílabo, verbo escolher. Nesse sentido, os dados parecem apontar para
a concepção de escrita como representação da fala; ideia que deve ser desconstruída
durante o processo de alfabetização, ressalta Lemle (2007). Assim é que o papel da escola
em despertar a consciência par os usos das formas linguísticas já deve ser parte da
primeira etapa da alfabetização, revelando para as crianças que nas línguas humanas,
temos de fazer algumas escolhas linguísticas em virtude do contexto sociocomunicativo.
Com isso, pensamos que a escola conseguirá se não encurtar o distanciamento entre a
língua da escola e a língua que as crianças falam, ao menos, tornar o percurso menos
árduo e mais consciente para os falantes que dominam variedades linguísticas diferentes
das variedades de prestígio.
Assim como Kato (2013), entendemos que um dos principais problemas
relacionados ao ensino do português é o distanciamento existente entre a língua falada, a
FALA1, e a língua preconizada pela escola como objeto final da aprendizagem, a língua
escrita institucionalizada. Acrescenta a autora:
Em todas as línguas se observam diferenças entre a fala e a escrita, mas no
Português do Brasil (PB) existe um fosso de tal ordem que para a criança
aprender a ler e a escrever, ela enfrenta a tarefa da aprendizagem de uma língua
estrangeira. (KATO, 2013, p.149)
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No que se refere às regras de aplicação da marca de infinitivo padrão, com
morfema-r, e a regra de apagamento deste, portanto, sem o morfema-r, é crucial trazer à
consciência da criança a forma como fala como uma opção válida, mas ao mesmo tempo
proporcionar a ela o acesso consciente à reagra que não coloca em uso da sua variedade
linguística de origem. Somente mostrando opções de uso, tornando conscientes as
escolhas linguísticas, conseguiremos levar a termo a educação em língua materna.
Considerações Finais
As análises dos dados de escrita de crianças em fase de alfabetização, 2º e 3º anos,
mostraram que a oralidade influencia diretamente a aprendizagem da língua escrita. Nesse
sentido, a variedade linguística de origem dos falantes manifesta-se concretamente na
escrita nesta fase de aprendizagem. Considerando tal fato e também a concepção de língua
como atividade social heterogênea, é crucial desenvolver a consciência linguística das
crianças que ingressam as classes de alfabetização. Elas precisam saber que a língua não
se pauta pelo certo e errado, mas pelas diferenças de usos linguísticos em virtude da
situação sociocomunicativa em cena. Há duas regras de aplicação para marcação de
infinitivos verbais no português brasileiro, as quais se aplicam independentemente de ser
um contexto de verbos monossílabos, dissílabos ou trissílabo. Adicionalmente, mostra
que as crianças aplicam essas regras independentemente de ser um contexto de uso formal
ou informal da língua, o que parece evidenciar que essas crianças ainda não tiveram
despertada a consciência linguística, ou seja, a noção de que dependendo da situação
sociocomunicativa é possível usar a língua na sua variedade de origem ou na variedade
de prestígio. Entendemos que este é um dos papéis centrais na educação em língua
materna e que a aprendizagem da língua escrita em contexto formal também atua como
reguladora desta aprendizagem.
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