vendramini, josé eduardo. o teatro de origem não-dramatúrgica

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    O teat ro de or igem no-dramatrg ica

    Jos Eduardo Vendramini

    E

    Jos Eduardo Vendramini professor Titular do Departamento de Artes Cnicas da ECA-USP,dramaturgo e encenador.

    ntendo por teatro no-dramatrgico aque-le que criado diretamente no palco e noa partir de um texto, o que no impede quese possa chegar a ele, no final do processo.No Brasil, j houve este tipo de manifesta-

    o, de forma espordica, caracterizando umadas vertentes do assim chamado teatro experi-mental. Porm, mais recentemente, a partir dosespetculos que Gerald Thomas comeou a fa-zer no Brasil, criou-se uma celeuma que deu ori-

    gem necessidade de organizao do pensamen-to crtico a respeito. Assim, dada a quantidade,a qualidade de acabamento e o carter provoca-tivo de seus espetculos, as pessoas tiveram quese posicionar.

    Foi preciso, em primeiro lugar, situar quetipo de teatro era esse a que se estava assistindo;em segundo, estabelecer o que se pensava a res-peito; e, em terceiro, em sala de aula, decidir oque dizer em termos sistematizadores, pois, ape-

    sar de os alunos terem total liberdade quanto ssuas escolhas estticas, o docente precisa seposicionar, por necessidade da profisso.

    A razo do tema foi o aparecimento deum determinado tipo de teatro, que rompeucom o dramaturgo tradicional, prescindindo da

    figura do Autor. Aquele velho costume de sepegar uma pea de teatro para montar, passou ater uma variante perturbadora. E desse tipode teatro que eu vou falar. Mas, para isso, euvou ter que voltar atrs, aos gregos, para lem-brar como eram os fios principais que existirame que fio esse novo tipo de teatro que prescin-de do dramaturgo, que comea direto no palco,que feito pelo diretor cortou.

    Existe uma tese de doutoramento recente

    (Memria e Inveno: Gerald Thomas em Cena),j publicada, de autoria de Slvia Fernandes, queinforma, por exemplo, que as idias dele s ve-zes partem de desenhos, os quais se transfor-mam em cenas. Portanto, ele um dramatur-go-diretor, ou um diretor-dramaturgo, comoquiserem, mas sua base no obrigatoriamenteum texto, dilogos, conflitos, enredo.

    Esta palestra no especificamente so-bre Gerald Thomas, mas sobre uma vertente

    que apareceu recentemente e da qual ele emblemtico.Voltando um pouco no tempo, percebe-

    se que sempre se trabalha com modelos, deixa-dos pela histria do teatro. Na Grcia, cinco s-culos antes de Cristo, houve o auge da tragdia.

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    No sculo seguinte, Aristteles teorizou a res-peito, tomando dipo Rei, de Sfocles, como atragdia modelo. Em suaPotica, h predomi-nantemente uma teoria do texto dramatrgico

    e muito pouco sobre o espetculo.Com o tempo, a Poticafoi adquirindo

    uma importncia cada vez maior, principalmen-te a partir do Renascimento, com a revaloriza-o dos autores gregos e romanos. Assim, a obrade Aristteles foi transformada num modelo decomo fazer teatro, utilizado durante o Neo-Classicismo como parmetro para diferenciaros bons dos maus escritores. A obedincia s re-gras passou a ser uma camisa-de-fora para os

    artistas; alguns deles, excelentes, por no faze-rem peas de acordo com as regras, eram me-nosprezados, ao passo que outros, medocres,eram elogiados por obedec-las cegamente.

    Por sua importncia e influncia, aPoti-caacabou fornecendo um modelo de como es-crever teatro e, como uma decorrncia natural,um modelo de como dirigir teatro. Ambos fun-cionaram durante muitos sculos, at o mo-mento em que, j no sculo XX, Bertolt Brecht

    praticou e sistematizou o chamado Teatro pi-co, que na verdade j existia antes dele e se opu-nha ao sistema teatral proposto por Aristteles.

    Portanto, h pelo menos duas gran-des teorias teatrais: a de Aristteles (sculo IVa.C.) e a de Brecht (sculo XX). Evidentemente,nesse enorme percurso, muita gente escreveusobre Teatro e/ou praticou um tipo de espet-culo que no obedecia ao modelo aristotlico,da mesma maneira que muita gente tambm fezum tipo de teatro que j previa o que Brecht sviria a praticar e teorizar no sculo XX. A ques-to no to esquemtica como est sendo co-locada; porm, didaticamente, preciso lembrarque existiu um grande pilar quatro sculosantes de Cristo e que o outro pilar, diame-tralmente oposto, s vai aparecer sistematizadoem sua totalidade no sculo XX, no perodoentre as duas grandes guerras.

    Recentemente e difcil precisar comexatido qual a data em que isso comeou a

    acontecer apareceu uma nova vertente da pr-

    tica teatral, que no se baseia nem em Aristte-les, nem em Brecht. Estes propunham um tipode teatro que partia do texto dramatrgico; osegundo era tanto escritor quanto encenador.

    Portanto, o modelo operacional escrever primei-ro / dirigir depois, seja com Aristteles, seja comBrecht, continuou existindo sem objees demonta, at que, mais recentemente, comeou aaparecer com freqncia cada vez maior um tipode teatro que no nascia da dramaturgia tradi-cionalmente entendida como tal.

    Aristteles propunha um teatro de empa-tia, de identificao emocional entre palco e pla-tia. Brecht propunha o contrrio, um teatro

    em que no houvesse a referida empatia, propi-ciando, em seu lugar, a reflexo crtica se lem-brarmos que Brecht produziu sua obra no con-texto da II Guerra Mundial, no momento emque a Alemanha estava sendo hipnotizada e le-vada ao delrio por Hitler, fica mais fcil com-preender sua averso empatia.

    O teatro-no dramatrgico em questono voltado empatia; tenderia, portanto, mui-to mais para Brecht do que para Aristteles. Pa-

    rece querer ter um novo tipo de relao com opblico, na qual contaria muito mais aquilo quese vai formando na mente do espectador, do queo enredo e/ou conceito que dramaturgo e ence-nador tradicionais teriam querido transmitir.

    At poderia existir uma proposta na cabea doAutor do espetculo (o encenador-dramaturgo);porm, o que parece interessar a ele, enquantoartista, seria o quebra-cabea formal /conceitualque se forma na mente do espectador, e no acoincidncia com a sua intencionalidade.

    O modelo proposto por Aristteles desa-guava num teatro que contava um enredo, quetinha uma narrativa embutida nos dilogos; oteatro feito por Brecht tambm contava um en-redo, com certeza de uma maneira diferente eoposta quela fornecida por Aristteles, pormsem elimin-lo. J o teatro no-dramatrgicono quer contar histria alguma. Ele se instalano palco enquanto um evento cnico, sem in-teno narrativa. Sua recusa do enredo resulta em

    fragmentao, para que no haja nada linear;

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    porm, se o espectador assim o quiser, nada im-pede que ele possa estabelecer elos narrativos emsua cabea.

    O teatro no dramatrgico no costuma

    fornecer um enredo organizado, seja em ordemcronolgica, seja fora dela; trata-se muito maisde umjogo de armare, nesse sentido, este umtipo de teatro absolutamente sintonizado comas propostas da vanguarda que j ecoaram na li-teratura, como na obra de Julio Cortzar, porexemplo.

    O teatro no-dramatrgico, por no que-rer ser narrativo, elege um tema (nem semprefcil de perceber) e faz com que ele volte de for-

    ma repetitiva, recorrente; portanto, ao contr-rio do teatro tradicional, estamos diante de umevento cujo tema muitas vezes nebuloso e noevolui. como se fosse um movimento em es-piral, em torno de um objeto: volta-se e no sevolta sempre ao mesmo lugar. Por paradoxal quepossa parecer, um movimento sempre igual esempre diferente.

    Acabam acontecendo, portanto, reescritu-ras sucessivas. Tem-se a sensao de que j se viu

    aquela cena que est voltando; porm, ela voltatransformada. No se sabe o quanto ela voltatransformada, se para mais, se para menos. Oimportante estar transformada. Isso acontecemuito na msica de Philip Glass: fica-se comaquele compasso repetitivo na mente; mas, en-tre o primeiro compasso e o ltimo, houve mo-dificaes. Como estas so mnimas, tem-se asensao de que se est ouvindo sempre o mes-mo compasso (este tipo de msica costuma sermuito adequado para teatro, porque no geraluma mesma cena tambm costuma ter um ni-co clima que no se modifica; portanto, sem-pre bom poder dispor de uma msica que tam-bm no module muito, claro que dependendo,caso a caso, da concepo).

    Fala-se muito, atualmente, de descons-truo. Por exemplo, o modelo do teatro comenredo pode ser desconstrudo pelo teatro nodramatrgico, que recusa o enredo. Concordan-do-se ou no com a proposta de desconstruo

    em arte, no se pode ignorar que existe um gru-

    po, seja em msica, seja em artes plsticas, sejaem teatro, trabalhando claramente com esteconceito. Os resultados da desconstruo emarte sero aferidos pela resposta do pblico, pela

    crtica e pelo tempo.Os partidrios da desconstruo recusam

    as estruturas habituais, para trabalhar com no-vas combinatrias; portanto, inegvel que de-vem ter algo a dizer, em termos artsticos; pormais desconcertante que seja a arte por eles pra-ticada, v-se que h, subterraneamente, um pro-

    jeto. Em sua defesa, pode ser lembrado que spoderia praticar a desconstruo aquele quesoubesse recriar a partir do que foi pulverizado.

    Em sntese, e ainda que de forma simplificada,pode-se pensar em re-combinatrias criativas apartir da desconstruo dos cnones.

    No nosso sculo, alguns nomes influen-ciaram muito os grupos brasileiros ou no afinados com a vanguarda internacional: T.Kantor, que vem marcando muito a arte da di-reo; Pina Bausch, oriunda da rea da dana;finalmente, o encenador norte-americano Bob

    Wilson, que influenciou alguns diretores brasi-

    leiros muito atuantes.Pina Bausch o nome mais conhecido noBrasil, tendo estado em nosso pas por mais deuma vez. Da primeira, houve enorme perplexi-dade, por no existir um contexto que clareasseo entendimento de suas propostas, o que noaconteceria novamente, uma vez que j doconhecimento geral a bibliografia existente a seurespeito.

    Pina Bausch trabalha nas interseces en-tre Teatro e Dana, tendo como resultado umadana mais teatral e um teatro essencialmentecorporal. Enfim, uma arte de fronteira. Porm,deve-se lembrar que Pina Bausch uma artistaalem com uma histria pessoal/nacional es-pecfica, marcada pela Guerra. Seus espetcu-los so fundamentados sobre uma base niilista,ao contrrio dos musicais norte-americanosproduzidos pela Disney, fundamentados numafilosofia otimista, que costuma encarar a vidacomo um mar de rosas possvel, um eterno

    encantamento.

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    Pina Bausch, entre outros mtodos, tra-balha com a colagem, sendo que o resultado fi-nal tem um impacto esttico muito forte. Al-guns de seus admiradores quiseram obter este

    mesmo impacto; porm, ao invs de absorverseu mtodo de trabalho (usar modelos umprocedimento normal em arte), copiaram seusresultados. O que aconteceu foi um grandeequvoco, j que resultados relevantes so, nogeral, produto de vivncia e criatividade, deven-do ser longamente elaborados, em termos deresoluo artstica, e no meramente copiados.

    Grandes invenes viram clichs, que na era do vdeo vo passando facilmente de

    pas para pas. O problema crucial, porm, entender os mtodos alheios, uma vez que re-sultados artsticos so autorais.

    O teatro no-dramatrgico tambm tra-balha com o conceito defragmentao, que temrelao com a postura filosfica que compreen-de o ser humano como uma estrutura fragmen-tria, e no mais coesa. No teatro, tal posturaresultou em personagens fragmentrias. Antes,uma personagem costumava ter coerncia, bio-

    grafia, vida psicolgica, objetivos. Estava tudoamarrado, no havia pontas soltas. Atualmente,algumas personagens no s so fragmentrias,como muitos dramaturgos e encenadores sen-tem-se mais atrados por personagens deste nai-pe. Portanto, j se procura a fragmentao, evitan-do-se personagens, peas, enredos excessiva-mente coesos, em benefcio de fiapos de enredo,de personagens, de temas.

    O propsito de fragmentao resultaautomaticamente num jogo de armar, em quese destri o que estava estruturado, transfor-mando-se tudo em mdulos, com os quais possvel estabelecer mltiplas re-combinatriasldicas.

    Uma das grandes contribuies legadaspela ruptura do teatro no-dramatrgico comos cnones o que se poderia denominar comodescontextualizao. Por exemplo, se uma trag-dia grega costumava ser encenada num espaocnico composto de elementos semnticos gre-

    gos, tal no mais obrigatrio, podendo qual-

    quer pea acontecer num espao absolutamen-te imprevisto, inusitado. Em sntese, no hmais aquela obrigatoriedade rgida de corres-pondncia entre representante e representado,

    como havia costumeiramente no teatro anteri-or ao teatro no-dramatrgico.

    Nadescontextualizao, tira-se a pea docontexto visual bvio e opta-se por um outro,no geral simblico. Ocorre, portanto, uma re-contextualizao.

    Assim, as regras do teatro em geral, sejamelas advindas de Aristteles ou Brecht, passam aser desobedecidas voluntariamente. Suspende-se oenredo, a poca, a evoluo seqencial. Rompe-

    se com tudo aquilo que era considerado usual,para se descobrir como que as coisas ficam seforem re-combinadas de maneira diferente.

    Existe, evidentemente, um grande atrevi-mento neste tipo de postura; desse atrevimentopodem resultar tanto grandes invenes quantosonoras banalidades. O princpio perfeitamen-te operacionalizvel; os resultados tm variadomuito, em termos de qualidade. O aspecto ex-cntrico pode desconcertar crtica e pblico e di-

    ficultar a anlise, dando portanto muita margempara o blefe. Como a arte essencialmenteemprica, os artistas devem ter liberdade de cria-o, cabendo crtica especializada aprofundarquestes e separar o joio do trigo, identificandoas grandes invenes e denunciando o blefe.

    Se, durante tantos sculos, a arte semprecontextualizou em termos de correspondncia exa-ta, o teatro no-dramatrgico props a discor-dncia, a no correspondncia, o descompasso.Este tipo de postura costuma vir acompanhadode um grande desenvolvimento dos aspectos sen-soriais (imagem e som), somado rarefao doreferente (o que resulta em contedos de difcilacesso). O original alheio (quando existe) vemsintetizado; no caso de haver o prprio original,ou este um roteiro sem palavras, ou a palavrano tem mais a mesma funo que possua noteatro tradicional. Em sntese, predominnciada imagem e do som corresponde a diminuioda importncia da palavra, que enfraquece ou de-

    saparece; no caso de haver a presena da palavra,

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    esta no costuma ter o mesmo valor anterior,vem esvaziada atravs da verborragia.

    Operacionalmente, o sistema poderia serassim resumido: compactao, procura do con-

    ceito, transformao do conceito em imagem,mudana de funo da palavra (eliminao purae simples; esvaziamento atravs da verborragia;perda da funo de portadora de contedos e/ou articuladora do fio narrativo). A palavra, por-tanto, poderia passar condio de mais umapea no jogo de armar.

    O teatro tradicional era predominante-mente linear, seqencial, cronolgico. Posterior-mente, comeou-se a trabalhar com a no-li-

    nearidade; como exemplo, Vestido de Noiva, deNelson Rodrigues, perfeito. Porm, o autordeterminou a combinatria desejada por ele, oque determina a seqncia em que o jogo (j)armado deve ser percebido pelo pblico; eleembaralhou os tempos, mas determinou minu-ciosamente a seqncia; portanto, no h linea-ridade, mas h deciso sobre a combinatriadesejada, estabelecida como obrigatria, e queresulta na prpria potica da pea, sem a qual

    ela no existiria enquanto objeto reconhecvel.Aos encenadores sobra, portanto, uma grandemargem de criatividade, mas no de alteraoda estrutura determinada pelo dramaturgo.

    Nesse sentido, qual a contribuio do tea-tro no-dramatrgico? Recusa da linearidade emesmo da no-linearidade, quando estruturada,porque linearidade e estruturao poderiam soarcomo sinnimos de arte ultrapassada, contrria vanguarda e investigao.

    A decorrncia natural a problematizaoda recepo. Se, antigamente, o teatro era umevento compreensvel na ntegra, agora ele dei-xa de s-lo. Evidentemente, isso se constitui emuma dificuldade para o pblico, que, perplexo,passa a ter poucas alternativas: abandonar o tea-tro, porque este ficou incompreensvel; optarpelo teatro oposto, comercial, digestivo (o bes-teirol, por exemplo, o que lamentvel); ir aoteatro exatamente porque este ficou mais desa-fiador. Excentricidade e marketing, neste caso,

    andariam de mos dadas.

    Este um caso em que se poderia falarem opacidade. Antes que o pblico possa com-preender o contedo, antes de ver o mundoatravs de uma lente, precisa primeiramente re-

    parar nas caractersticas daquela lente. A lenteno seria apenas o instrumento que conduz aoscontedos, mas tem que ser entendida enquan-to lente; antes do acesso aos contedos, haveriaa necessidade de perceber a materialidade docdigo, que passa a ser problematizante; nessesentido, a linguagem do espetculo no estarial para facilitar o acesso aos contedos, mas simteria que ser percebida primeiro enquanto rea-lidade prpria.

    Este universo, ao qual tenho estado a mereferir, convive com uma nova postura, que pri-vilegia a arte do incompleto. O pblico, que es-tava acostumado com a arte das coisas com-pletas, comeou a ter contacto com a arte doincompleto, a arte do inacabado; portanto, in-completo, inacabado e aleatrio deixaramde soar como sinnimos de defeito, por se-rem objetivos procurados de forma voluntria.

    O aleatrio remete incorporao das

    coincidncias involuntrias e dos acasos impre-vistos, tratados artisticamente. O resultado aconvivncia (s vezes produtiva, s vezes descon-certante) de unidades dspares entre si e a sus-penso do conceito de unidade estilstica.

    Ao contrrio da poca do TBC, quandoternos significavam atualidade e armadurassignificavam Idade Mdia, a pesquisa de po-ca e a unidade de estilo cederam lugar para aconvivncia de pocas dspares, a multiplicida-de de estilos, a incorporao do aleatrio e doacaso. A correspondncia do cnico com o uni-verso retratado cedeu lugar intencionalidadesignificativa.

    Um outro elemento notvel, dentro des-te universo que se est tentando rastrear, o quepoderia ser denominado como cruzamento devariantes: vrios fiapos de enredo de peasdspares vo sendo entrecruzados, at o mo-mento em que o pblico j no sabe mais ondeest, ou ento (e de preferncia) tem uma viso

    mais rica, causada exatamente pelo referido

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    entrecuzar de enredos. Em sntese, da pea ni-ca e linear, parte-se para as possibilidadescombinatrias de vrias estruturas, que seentrecruzam sucessivamente, o que signo evi-

    dente da recusa de um determinado tipo de dra-maturgia, mais tradicional.

    Conseqentemente, mudam as hierarqui-as. O dramaturgo cede lugar ao encenador-dra-maturgo, capaz de concretizar cenicamente umroteiro prprio ou de transformar em mdulosintercambiveis uma pea escrita por outra pes-soa. Nesse caso, a figura do dramaturgo, pelomenos tal como a conhecamos, tenderia a desa-parecer, a ceder lugar para a do encenador-dra-

    maturgo, que passaria a assumir dupla funo.Em sntese, no teatro no dramatrgico,parte-se de idias, de roteiros, de desenhos, ou no mximo de peas transformadas em m-dulos. Desaparece aquela estrutura to conhe-cida, em que um dramaturgo escreve previa-mente um texto, para s ento um encenadorcomear a dirigi-lo. A narrativa vai ficando sim-plificada, vai sendo compactada, at se transfor-mar em conceitos, por sua vez concretizados em

    imagens poderosas, que se sobrepem ou mes-mo substituem a palavra.No sem razo, o sculo XX um sculo

    muito influenciado pela imagem, o sculo docinema, da televiso, do mesmo modo que osculo XIX foi o sculo da palavra, da literatu-ra. Est-se vivendo agora no teatro a conseq-ncia dessa mudana. Radicalizando, ou no setem um texto, ou ento o texto passa a ser pre-texto para a imagem.

    Terminada a fase mais provocativa da ins-

    taurao do teatro no-dramatrgico, parece es-tar surgindo um momento mais sereno, de ma-turidade, em que os saldos positivos de cadavertente, mesmo que sejam opostas entre si, pas-sam a ficar disposio, em termos de enriqueci-mento da linguagem teatral propriamente dita.

    O aparecimento do teatro no-drama-trgico colocou a classe teatral, os tericos, os

    crticos e tambm o pblico numa grande en-cruzilhada, que a seguinte: postular oimobilismo da arte obviamente incorreto, por-que seus melhores momentos sempre foram

    aqueles de inconformismo. Mas, ao mesmotempo, nem todo resultado do inconformismo de boa qualidade. Ento, os produtos artsti-cos precisam ser identificados e qualificados, namedida do possvel. Como faz-lo, no caso doteatro no-dramatrgico, diante de sua realida-de ainda bastante nebulosa?

    Inveno e arte so irms gmeas, soxifpagas, uma vive do corpo da outra, porqueno existe arte sem inveno e no existe inven-

    o sem risco. Toda vez que se inventa, est-secorrendo riscos. O teatro no-dramatrgicotrouxe investigao, novidade, polmica, pertur-bao. Ns, especialistas praticantes da arte doteatro, j podemos nos posicionar e decidir sequeremos esse mtodo de trabalho ou no. P-blico e crtica, em seguida, daro a resposta ne-cessria, com a conscincia de cada um funcio-nando como parmetro.

    S com o tempo vai-se poder separar as

    contribuies realmente relevantes das irrele-vantes. A excessiva proximidade do objeto emanlise ainda no permite uma total visadacrtica.

    No entanto, possvel especular. Os fa-tos artsticos sucedem-se por alternncia; assim,do mesmo modo que, antes da predominnciada imagem, houve o momento em que reinavaa palavra politicamente engajada, portadora decontedo, articuladora da narrativa e da psico-logia da personagem, muito provvel que,

    numa prxima fase, ocorra um retorno a tudoaquilo que foi anteriormente abandonado. E,principalmente, ao teatro da condio humana,substitudo nas ltimas dcadas pela investiga-o esttica radical (o que no significa que es-tas duas vertentes no possam um dia voltara caminhar juntas, como j o fizeram nos gran-des momentos da histria do teatro).