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Quarenta anos

livros artesanais

Mário de Andrade

A vida é para mim, está se vendo,

Uma felicidade sem repouso;

Eu nem sei mais se gozo, pois que o gozo

Só pode ser medido em se sofrendo.

Bem sei que tudo é engano, mas sabendo

Disso, persisto em me enganar… Eu ouso

Dizer que a vida foi o bem precioso

Que eu adorei. Foi meu pecado… Horrendo

Seria, agora que a velhice avança,

Que me sinto completo e além da sorte,

Me agarrar a esta vida fementida.

Vou fazer do meu fim minha esperança,

Oh sono, vem!… Que eu quero amar a morte

Com o mesmo engano com que amei a vida.

© Scenarium Livros Artesanais, 2017

Revista Plural Avesso

Edição: Scenarium Livros Artesanais

Responsáveis: Lunna Guedes e

Marco Antonio Guedes

Revisão: Julia Bernardes e Tatiana Kielberman

Projeto Gráfico: Lunna Guedes

Editora: Lunna Guedes

Autores convidados: Adriana Aneli, Caetano Lagrasta,

e Claudinei Vieira

A reprodução parcial ou total desta obra,

por qualquer meio, somente será permitida

com a autorização por escrito do autor.

(Lei. no. 9.610 de 19.02.1998)

Impresso em São Paulo

Estava a ouvir Caetano e sua tropicália —

movimento baseado no modernismo brasilei-

ro — quando comecei a pensar a plural de mar-

ço... e, sem ter com quem dialogar — dada a

ocupação dos editores da revista nos dias primei-

ros desse ano ímpar — me ocupei de um diálogo

imaginário com o compositor de 'sampa'...

'Alguma coisa — sempre — acontece no meu

coração'... que me põe a pensar a realidade e su-

as transmutações mecânicas... o contemporâneo

e sua perplexidade...

Por Lunna Guedes

05

Tateei minhas experiências — novas e anti-

gas... e rapidamente 'aprendi a chamar-te de rea-

lidade', porque a idéia de um exterior que se

conjuga no interior é, sem dúvida alguma, a base

da arte-vida-matéria-memória — tudo que so-

mos... uma espécie de avesso, a olhar para fora,

sempre em busca de si mesmo — sem, contudo,

conseguir encontrar os cardeais...

E, orientada por esse mapa particular de sensa-

ções... acabei dentro das linhas do livro de Lygia

Clark: 'o dentro é o fora'... onde a artista afirma,

sem meneios... que a arte é sempre 'fora' dela

mesma, do mundo. E é também a capacidade

de se deixar moldar-adequar... através de si, do

outro e de todas as esferas, o que faz dos artistas:

nômades — sujeitos em busca de um molde, sem

jamais se deixarem moldar... porque, como afir-

ma Lyotard: 'todos os ensaios e as frases são fei-

tos dentro do ser e não diante de seus olhos'.

06

Dito isso, basta ser barco e navegar por esse

Avesso que somos... aceite o convite que deixa-

mos em cada um das páginas seguintes... e venha

aplaudir a conclusão de Caetano, que nos faz

perceber que a cidade, o lugar, o sujeito e a arte

são 'o avesso do avesso do avesso'... e trate essas

páginas como sendo um objeto longínquo, exte-

rior a ti, que te obriga a sair de ti e vir de encon-

tro a elas... para um instante de contemplação.

Traga uma xícara de café, uma taça de vinho ou

um maço de cigarros.

07

08

Menotti Del Picchia —personagem

Juca Mulato és meu! Não fujas que eu te sigo...

Onde estejam teus pés, eu estarei contigo.

Tudo é nada, ilusão! Por sobre toda a espera

há uma cova que se abre, há meu ventre que espera...

Nesse ventre há uma noite escura e ilimitada,

e nela o mesmo sono e nele o mesmo nada.

Por isso o que te vale ir, fugitivo e a esmo,

buscar a mesma dor que trazes em ti mesmo?

Tu queres esquecer? Não fujas o tormento...

Só por meio da dor se alcança o esquecimento.

Não vás. Aqui serão teus dias mais serenos,

que, na terra natal, a própria dor dói menos...

E fica, que é melhor morrer (ai, bem sei eu!)

no pedaço de chão em que a gente nasceu!

09

Descobrir um poeta, sometimes, é como adentrar

uma dessas casas antigas que a cidade preserva —

independente das tentativas humanas de lhes dar

um fim — e topar com um porta-retrato sobre um

móvel igualmente antigo e empoeirado... onde se

pode espiar certas figuras eternizadas em tempo e

espaço.

Paralisados, observamos primeiro o lugar em pa-

ralelo ao móvel — como maneira de nos posicionar

nessa realidade atemporal... nos certificando de que

o tempo passa e nós também passamos por um sem-

fim de coisas absolutas. Só depois é que nos dedica-

mos à figura que nos chega em gotas.

No retrato que observo hoje, adormece a figura

ilustre de Menotti Del Picchia. Cidadão paulistano,

filho de italianos. Um homem que batalhou por uma

realidade local... brasiliana, ao lado dos seus.

Enquanto poeta, escreveu inúmeros artigos polê-

micos. Sempre no sentido de provar que o Brasil es-

tava em condições de fundar uma literatura própria,

recorrendo aos próprios mistérios — sem precisar

se deixar macular pela realidade literária que chega-

va da Europa.

Menotti nasceu na Paulicéia do amigo Mário de

Andrade... mas, ainda menino, respirou os ares da

terra cabocla, que inspirou toda a sua escrita futu-

ra — tanto em sua poesia, como em seus romances.

Quando moço, Menotti resolveu ser bacharel...

o epipã mestiço da floresta — como lhe chamou

Júlio Dantas, em sua notável síntese. Só encontrou

uma solução: abandonar a fazenda, partir sem des-

tino, correr mundo, à procura de outra terra... por-

que, em seu tempo, o destino dos poetas era con-

quistar um diploma na Faculdade de Direito.

O Menotti escritor... foi tudo: jornalista, poeta,

romancista, novelista, cronista, contista, teatrólogo,

polemista.

Recebeu, por ser futurista, as vaias destinadas a

Mário de Andrade... e não fugiu desse importante

capítulo de sua vida. Em sua biografia, é possível

saber, dentre outras coisas, que ele foi — no auge

de sua inquietação e notoriedade — um dos demô-

nios iniciadores do Movimento Modernista.

Mas, o menino-moço-bacharel não queria saber

do futurismo nascido nos grandes salões burgueses

da Capital. Seu desejo era ser mais de seu país e de

seu tempo: modernos e brasileiros, livres e espon-

tâneos. Individuais e sinceros. E foi o que fez em

seu discurso, que quase não foi ouvido pelo públi-

co presente no Municipal.

10

“Queríamos, todos, uma arte que tivesse pátria:

ou melhor, uma arte que, para adquirir o seu

maior sentido humano e universal, realizasse

aquele pensamento de Gide, que Maritain (um

católico) reproduz em sua Arte e Escolástica:

'toda obra de arte será tanto mais universal

quanto mais refletir o sinal da Pátria'.

Queríamos, ainda, uma arte que espelhasse os

anseios da época. Uma arte que aspirasse a

alguma coisa acima de si mesma. E não a arte

pela arte; não a literatura pela literatura”.

11

12

Sem encontrar para si um lugar ao sol no Futu-

rismo de Mário e Oswald, Menotti fundou — com

outros escritores — o Grupo Verdamarelo e, mais

tarde, o Grupo da Anta... demonstrando seu profun-

do espírito de brasilidade, já documentado anterior-

mente em Juca Mulato.

No Manifesto Verdamarelo, não apenas comba-

teu o Futurismo, como também condenou a chama-

da “poesia pau-brasil”, fundada por Oswald de An-

drade, vista por ele como uma pura contrafação do

Dadaísmo francês.

Menotti era múltiplo, numeroso, onímodo, colo-

rido, instantâneo, ágil, inquieto... uma figura exi-

gente e com o pensamento sem sossego. Escrever

era sua maneira de fotografar sua própria consciên-

cia de lugares, sentimentos, pessoas e suas relações

conflitantes. Foi considerado, por muitos, um per-

sonagem ítalo-brasileiro... mas seu idioma sempre

foi o brasileiro. ‘Sois, portanto, brasileiro do me-

lhor quilate — afirmou Cassiano Ricardo, em seu

discurso encomendado —não tendes... quatrocen-

tos anos. Tendes apenas 51. Que importa? Sem os

quatrocentos, e mesmo sem um sobrenome indíge-

na, sois tão brasileiro como o nosso inesquecível

Alcântara Machado e — possivelmente — mais

brasileiro do que o Sr. Acaiaba Montezuma’.

13

Menotti Del Picchia tinha um nome terrivel-

mente italiano, mas era desesperadamente brasilei-

ro. Sua escrita reafirmava tal condição... Juca Mu-

lato — seu principal personagem — era um mesti-

ço. Um capataz de sítio, possuidor de uns alqueires

de chão...

Menotti contou a história de um camarada que

vivia integrado à natureza, ‘forte como a peroba e

livre como o vento’... uma espécie de autobiografia.

Como se sente bem,

recostado no chão!

Ele é como uma pedra,

é como a correnteza,

uma coisa qualquer

dentro da natureza,

amalgamada ao mesmo anseio,

ao mesmo amplexo,

a esse desejo de viver,

grande, complexo

que tudo abarca em sua

força de coesão.

Noite

As casas fecham as pálpebras das janelas e dormem.

Todos os rumores são postos em surdina,

todas as luzes se apagam.

Há um grande aparato de câmara funerária

na paisagem do mundo.

Os homens ficam rígidos,

tomam a posição horizontal

e ensaiam o próprio cadáver.

Cada leito é a maquete de um túmulo.

Cada sono em ensaio de morte.

No cemitério da treva

tudo morre provisoriamente.

14

Estátuas perdidas

Há formas irrealizadas de ti

no côncavo de minha mão

que poderiam fazer cem estátuas.

Instantes de felina beleza

movimentos bruscos de quem freme

ou foge às carícias,

detalhe do teu corpo esquivo

feitos de curvas plásticas e inéditas

que ficaram decalcadas na minha pelo,

no meu insatisfeito desejo

como se eu fosse um molde vivo

de obras-primas que esperam ser fundidas

em bronze, em verso, em música.

Nessas estátuas perdidas

vai-se tua própria mocidade

porque forma teus instantes de amor

que tive em minhas mãos.

15

Chuva de pedra

O granizo salpica o chão como se as mãos das nuvens

quebrassem com estrondo um pedaço de gelo

para a salada de fruta dos pomares...

O cafezal, numa carreira alucinada,

grimpa as lombas de ocre

apedrejada matilha de cães verdes...

fremem, gotejam eriçadas suas copas

como pêlos de um animal todo molhado.

O céu é uma pedreira cor de zinco

onde estoura dinamite dos coriscos.

Rola de fraga em fraga a lasca retumbante de um trovão.

Os riachos

correm com seus pés invisíveis e líquidos

para o abrigo das furnas. No terreiro,

as roupas penduradas nos varais

dançam, funambulescas, com as pedradas,

numa fila macabra de enforcados!

16

O beco

O BECO ao crepúsculo é uma paisagem de limbo

um carvão de Steinlein. Mulheres endomingadas

atravancam as calçadas onde homens sisudos

de braços peludos fumam cachimbo.

Um rancho infantil o silêncio desmancha

e a canção se desata:

— Senhora D. Sancha

coberta de ouro e prata ...

Salta de uma janela um gramofone rouco

que rasca range ri parece louco.

Brusco cessa. O silêncio desce pelas

almas. Nos céus ardem constelações.

Passa o acendedor de lampiões

como um mágico doido que andasse

a semear estrelas

17

As Máscaras

— O teu beijo é tão quente, Arlequim

— O teu sonho é tão manso, Pierrot

Pudesse eu repartir-me

encontrar minha calma

dando a Arlequim meu corpo…

e a Pierrot a minh’alma!

Quando tenho Arlequim,

quero Pierrot tristonho,

pois um dá-me o prazer,

o outro dá-me o sonho!

Nessa duplicidade o amor todo se encerra:

um me fala do céu… outro fala da terra!

Eu amo, porque amar é variar,

e em verdade, toda a razão do amor

está na variedade…

Penso que morreria o desejo da gente

se Arlequim e Pierrot fossem um ser somente.

Porque a história do amor

só pode escrever-se assim:

um sonho de Pierrot…

e um beijo de Arlequim!

18

Ressurreição

II

"Ser feliz! Ser feliz estava em mim, Senhora...

Este sonho que ergui, o poderia por

onde quisesse, longe até da minha dor,

em um lugar qualquer, onde a ventura mora;

onde, quando o buscasse, o encontrasse a toda hora,

tivesse-o em minhas mãos... Mas, louco sonhador,

eu coloque! muito alto o meu sonho de amor...

Guardei-o em vosso olhar e me arrependo agora.

O homem foi sempre assim... Em sua ingenuidade

teme levar consigo o próprio sonho, a esmo,

e oculta-o sem saber se depois o achara...

E, quando vai buscar sua felicidade,

ele, que poderia encontrá-la em si mesmo

escondeu-a tão bem, que nem sabe onde está!

19

III

E Mulato parou.

Do alto daquela serra,

cismando, o seu olhar era vago e tristonho:

" Se minha alma surgiu para a gloria do sonho,

o meu braço nasceu para a faina da terra.'

Reviu o cafezal, as plantas alinhadas,

todo o heróico labor que se agita na empreita,

palpitou na esperança imensa das floradas,

pressentiu a fartura enorme da colheita...

Consolou-se depois: "O Senhor jamais erra...

Vai! Esquece a emoção que na alma tumultua.

Juca Mulato! volta outra vez para a terra,

procura o teu amor, numa alma irmã da tua.

Esquece calmo e forte. O destino que impera,

um recíproco amor as almas todas deu.

Em vez de desejar o olhar que te exaspera,

procura esse outro olhar, que te espreita e te espera,

que há por certo um olhar que espera pelo teu!..."

20

O século era outro... o ano 1922... e o mês de março

ficaria reduzido a três míseros dias, que mudaria pa-

ra todo o sempre a história da Arte brasileira.

A cidade de São Paulo fervia. Impulsionada pelo di-

nheiro do Café, vivia a fase inicial da industrializa-

ção... e começava a se transformar numa espécie de

monstro mutante, se projetando na jovem República

como 'a cidade do futuro'. O lugar onde o dinheiro

estava.. o Templo do progresso.

Em pouco mais de trinta anos, São Paulo tinha dei-

xado a condição de vila afastada dos principais cen-

tros econômicos do país e vivia o sonho de indepen-

dência... plano arquitetado por ambiciosos meda-

lhões, que louvavam o mito do Bandeirante e goza-

vam da fortuna advinda do café, principal fonte da

riqueza paulistana.

21

'Ora São Paulo estava muito mais "ao par" que o

Rio de Janeiro. E, socialmente falando, o modernis-

mo só podia ser importado por São Paulo e arreben-

tar aqui. Havia uma diferença profunda, já agora

pouco sensível, entre Rio e São Paulo. O Rio era

muito mais internacional, como norma de vida exte-

rior. Está claro: capital do país, porto de mar, o Rio

tem um internacionalismo ingênito. São Paulo era

muito mais "moderna" porém, fruto necessário da

economia do café e do industrialismo consequente.

Ingenitamente provinciana, conservando até agora

um espírito provinciano servil, bem denunciado na

política. São Paulo ao mesmo tempo estava, pela su-

a atualidade comercial e sua industrialização, em

contato, se menos social, mais espiritual (não falo

"cultural") e técnico com a atualidade do mundo.

Em São Paulo o exotismo folclórico não frequenta a

Rua Quinze. Vive em núcleos mortos, não funcio-

nais, abastardados na separação, Santa Isabel. Ca-

rapicuíba.

Ora no Rio malicioso, uma exposição com a de

Anita Malfatti, podia ter reações publicitárias, mas

ninguém se deixava levar. Na São Paulo sem malí-

cia, criou uma religião. Com seus Neros também... O

artigo "contra" de Monteiro Lobato, embora fosse

apenas uma baladilha zangadinha, sacudiu uma po-

pulação, modificou uma vida.

plural avesso — semana de vinte e dois

22

E Mário de Andrade foi vaiado ao fazer o discurso

de abertura da Semana de arte moderna... nas esca-

darias do Teatro Municipal por essa gente aristocrata

burra — 'incentivada pelo bon-vivant' — Oswald de

Andrade —, que se importava muito mais em fazer

barulho, causar náusea, e incentivar o burburinho,

que com as premissas de Mário e Menotti... que que-

riam fazer uma Arte brasileira e louvar as caracterís-

ticas do lugar.

plural avesso — semana de vinte e dois

Junto disso, o movimento renovador era nitidamente

aristocrático. Pelo seu caráter de jogo arriscado,

pelo seu espírito aventureiro, pelo seu internaciona-

lismo modernista, pelo seu nacionalismo embrabeci-

do, pela gratuidade antipopular, era uma aristocra-

cia do espírito. Era natural que a alta e a pequena

burguesia o temessem.

Paulo Prado, ao mesmo tempo que um dos expoen-

tes da aristocracia intelectual paulista, era uma das

figuras principais da nossa aristocracia tradicional.

E foi por tudo isto que ele pôde medir bem o que ha-

via de aventureiro, de exercício do perigo no movi-

mento, e arriscar a sua responsabilidade intelectual

e tradicional na aventura'. (...)

— artigos sobre o modernismo, publicado no jornal

O Estado de São Paulo.

23

plural avesso — semana de vinte e dois

Oswald parecia mais consciente da 'pequenez' dos

homens da 'boa terra'. Vacinado... sabia como rugir

entre os seus...e responder a quem rotulava a cidade,

desde o princípio como sendo o lugar que, em: 'se

plantando nada dá' — frase dita pelos portugueses

ao descreveram São Paulo de Piratininga, que não ti-

nha pedras preciosas e seu solo pantanoso não era

propício ao plantio.

Mário — mero intelectual, quieto e acanhado — era

um sonhador. Sua participação na Semana de arte

moderna foi mérito alheio. Foi encorajado, encegue-

cido pelo entusiasmo dos outros. E, apesar da confi-

ança absolutamente firme que tinha na estética reno-

vadora, não teria forças para arrostar aquela tempes-

tade de achincalhes. Sua ambição era o momento, o moderno... a sua lite-

ratura. Mas ele tinha se deixado contagiar pelas co-

res de Anita e queria se vestir da estética moderna.

Estabelecer uma espécie de perímetro: antes e depois

da Semana de 22.

Mário considerava que, se o Brasil tinha dado o seu

grito de independência, os artistas deveriam seguir

pelo mesmo caminho: encontrar um ritmo próprio,

usar e abusar das cores. Sair do academicismo e ocu-

par as ruas. Libertar-se do poder do estrangeirismo e

24

'cantar' versos de si, como fez Manual Bandeira e

seu poema 'os sapos'... que ao ser lido no Municipal,

causou reações inflamadas.

Anita Malfati — outra personagem do modernismo

— queria apenas pintar... não pensava articular mo-

vimentos, apenas se juntou ao famoso 'grupo dos

cinco' por encontrar neles qualquer coisa para si...

Ao contrário das elites ilustradas, a menina tímida

foi estudar em Berlim — e não na França e na Itália.

Se tornou aluna de Fritz Buerger, e da Academia Le-

win Funcke, onde estudou com os pintores Lovis

Corinth e Ernst Bischoff-Culm.

Ao voltar ao Brasil — com sua arte cheirando a fres-

cor — protagonizou o que ainda hoje é considerada a

primeira mostra coletiva de arte moderna... no espa-

ço cedido pelo Conde de Lara, na Rua Libero Bada-

ró, n. 111.

Anita Malfatti expos ali cinquenta e três trabalhos,

dentre eles, estava o 'O Homem Amarelo', adquirido

por Mário de Andrade.

25

As telas expressionistas apresentadas por Anita Mal-

fatti representavam um conjunto inédito para o pú-

blico da época, que não estava acostumado com a re-

lação dinâmica e tensa entre a figura e fundo... a pin-

celada livre, que valoriza os detalhes da superfície.

Os tons fortes e usados de forma não convencional.

As sugestões de luz, que fogem ao claro-escuro tra-

dicional... e uma liberdade de composição.

O modernismo surgia dentro dos Salões que a cidade

'inventava' para os seus futuristas... foram seis anos

de orgia literária, que para a Burguesia paulista, não

era apenas espiritual. O 'grupo dos cinco' —

composto por Mário, Oswald, Menotti, Anita e Tar-

sila foi alvo de toda uma semântica de mal dizer:

champanha com éter, vícios mil. As almofadas vira-

ram 'coxins.

plural avesso — semana de vinte e dois

26

Mas se Mário acabou seduzido... uma voz — tipica-

mente braziliana — se levantou para recriminar a

arte de Anita. Em um texto agressivo, intitulado ini-

cialmente..."A propósito da exposição de Anita Mal-

fatti"... que ficou conhecido por 'Paranóia ou mistifi-

cação?'... o senhor Lobato, na condição de crítico ci-

ta o: 'suposto equívoco da arte moderna: seu elitis-

mo, hermetismo, adesão aos modismos, sua "falta de

sinceridade'... mas, considerou, como se fosse algum

alento, o "talento vigoroso" da artista... sem, contu-

do, poupá-la do que considerou: excesso de 'futu-

rismo'.

O Senhor Lobato, em suas intermináveis linhas, deu

uma bela mostra do lado provinciano de São Paulo.

Deixou bem claro que a arte de Anita era demais pa-

ra o convencionalismo da época. A exposição cres-

ceu em escândalo, embora muitos quadros tenham

sido adquiridos num primeiro momento, foram de-

volvidos depois e toda a crítica violenta de Lobato

refletiu desastrosamente sobre a exposição e a vida

de Anita...

plural avesso — semana de vinte e dois

"Há duas espécies de artistas. Uma composta dos

que vêem normalmente as coisas e em conseqüência

disso fazem arte pura, guardando os eternos rirmos

da vida, e adotados para a concretização das emo-

ções estéticas, os processos clássicos dos grandes

mestres. Quem trilha por esta senda, se tem gênio, é

Praxíteles na Grécia, é Rafael na Itália, é Rem-

brandt na Holanda, é Rubens na Flandres, é Rey-

nolds na Inglaterra, é Leubach na Alemanha, é Iorn

na Suécia, é Rodin na França, é Zuloaga na Espa-

nha. Se tem apenas talento vai engrossar a plêiade

de satélites que gravitam em torno daqueles sóis i-

morredouros. A outra espécie é formada pelos que

vêem anormalmente a natureza, e interpretam-na à

luz de teorias efêmeras, sob a sugestão estrábica de

escolas rebeldes, surgidas cá e lá como furúnculos

da cultura excessiva. São produtos de cansaço e do

sadismo de todos os períodos de decadência: são

frutos de fins de estação, bichados ao nascedouro.

Estrelas cadentes, brilham um instante, as mais das

vezes com a luz de escândalo, e somem-se logo nas

trevas do esquecimento.

29

Embora eles se dêem como novos precursores duma

arte a ir, nada é mais velho de que a arte anormal

ou teratológica: nasceu com a paranóia e com a

mistificação. De há muitos já que a estudam os psi-

quiatras em seus tratados, documentando-se nos

inúmeros desenhos que ornam as paredes internas

dos manicômios. A única diferença reside em que

nos manicômios esta arte é sincera, produto ilógico

de cérebros transtornados pelas mais estranhas psi-

coses; e fora deles, nas exposições públicas, zabum-

badas pela imprensa e absorvidas por americanos

malucos, não há sinceridade nenhuma, nem nenhu-

ma lógica, sendo mistificação pura. Todas as artes

são regidas por princípios imutáveis, leis fundamen-

tais que não dependem do tempo nem da latitude. As

medidas de proporção e equilíbrio, na forma ou na

cor, decorrem de que chamamos sentir. Quando as

sensações do mundo externo transformam-se em im-

pressões cerebrais, nós "sentimos"; para que sinta-

mos de maneiras diversas, cúbicas ou futuristas, é

forçoso ou que a harmonia do universo sofra com-

pleta alteração, ou que o nosso cérebro esteja em

"pane" por virtude de alguma grave lesão. Enquanto

a percepção sensorial se fizer anormalmente no ho-

mem, através da porta comum dos cinco sentidos,

um artista diante de um gato não poderá "sentir" se-

não um gato, e é falsa a "interpretação" que o bi-

chano fizer um "totó", um escaravelho ou um amon-

toado de cubos transparentes. Estas considerações

são provocadas pela exposição da Sra. Malfatti, on-

de se notam acentuadíssimas tendências para uma

atitude estética forçada no sentido das extravagân-

plural avesso — semana de vinte e dois

30

cias de Picasso e companhia. Essa artista possui ta-

lento vigoroso, fora do comum. Poucas vezes, através

de uma obra torcida para a má direção, se notam

tantas e tão preciosas qualidades latentes. Percebe-se

de qualquer daqueles quadrinhos como a sua autora

é independente, como é original, como é inventiva,

em que alto grau possui um semi-número de qualida-

des inatas e adquiridas das mais fecundas para cons-

truir uma sólida individualidade artística". (...)

O senhor Lobato não viu e não gostou... mas é inegá-

vel que suas palavras de desaprovação serviram para

arregimentar jovens poetas e escritores. As réplicas

se sucederam nos jornais da época... Mario da Silva

Brito e Paulo Mendes de Almeida defenderam a pin-

tora e desautorizou Lobato, desqualificando-o en-

quanto crítico de arte, tratado nos textos como "pin-

tor".

O barulho tão desejado por Oswald de Andrade,

acontecia... mas o estrago feito, jamais seria repara-

do. Perdemos a arte de Anita, que até então, tinha re-

alizado as obras mais importantes de sua carreira.

çã çã

31

plural avesso — semana de vinte e dois

Em seus trabalhos seguintes, é possível entrever cer-

to distanciamento das vanguardas e uma adesão

ao Retorno à Ordem. Anita recuou... recusou o novo

para voltar ao conceitual, ao pré-estabelecido, co-

nhecido, o comum... a fluir de acordo com as nor-

mas. Ela voltou 'a pintar suas flores'...como anun-

ciou em carta escrita ao amigo Mário. Se isolou em

seu canto de mundo e terminou seus dias acomodada

no ambiente nacionalista do país e de São Paulo, em

particular.

Mário de Andrade, que escreveu Macunaíma —

louvado hoje em dia, como o herói brasileiro — e

Paulicéia Desvairada — considerado um marco do

modernismo... também pagou caro pelo 'excesso de

futurismo'. E veio justamente do colega modernista

— amigo das famosas orgias espirituais — o mais

duro dos golpes. Oswald — acostumado ao barulho

— gritou aos pombais 'que achava Mário afeminado

demais'... argumento que serviu de munição para

questionarem a sexualidade do poeta paulistano, que

rompeu relações com o autor do 'manifesto Antropó-

fago'. Mário perdeu espaço... acabou demitido do Conser-

vatório e exilado no Rio de Janeiro, onde definhou

em vida. Se tornou um homem insatisfeito com sua

própria produção. De volta a São Paulo — com o

corpo frágil e aparência similar — ironicamente, se

parecia com a arte retratada por Anita, em seu

'homem amarelo'... veio a óbito em 1945 sem conse-

guir organizar sua vida literária, como pretendia, e

insatisfeito com o destino do 'modernismo'.

32

“ “ Fazem vinte anos que realizou-se no Teatro Mu-

nicipal de São Paulo, a Semana de Arte Moder-

na. É todo um passado agradável, que não ficou

nada feio, mas que me assombra um pouco tam-

bém. Como tive a coragem para participar da-

quela batalha! É certo que com minhas experiên-

cias artísticas muito que venho escandalizando a

intelectualidade do meu país, porém, expostas em

livros e artigos, como se essas experiências não

se realizam in anima nobile. Não estou de corpo

presente, e isso abranda o choque da estupidez.

Mas como tive coragem pra dizer versos diante

duma vaia tão barulhenta que eu não escutava

no palco o que Paulo Prado me gritava da pri-

meira fila das poltronas?... Como pude fazer uma

conferência sobre artes plásticas, na escadaria

do Teatro, cercado de anônimos que me caçoa-

vam e ofendiam a valer?”...

plural avesso — semana de vinte e dois

Mário em momento algum recuou de seu propósito

em vida... insistiu na escrita e no pensamento. Ten-

tou encontrar uma cidade verdadeiramente desvaira-

da em sua escrita. Cantou São Paulo em "ode ao bur-

guês' e 'garoa sai dos meus olhos'... como quem tenta

nutrir a alma com o mais precioso dos ingredientes.

Teceu o desejo de permanecer nos cantos que consi-

derou seus... em vida, no poema 'quando eu mor-

rer'... nos mostrando que amar o lugar é não se ren-

der a ele. É desenhar na própria pele uma realidade

impossível. É não se deixar convencer pelas regras,

não se deixar amordaçar. Não servir de exemplo,

apenas galgar os próprios espaços, ainda que seja ne-

cessário esculpir com as próprias mãos.

Mas foi a voz de Oswald de Andrade que se sobres-

saiu na multidão... é dele a antropofagia do Moder-

nismo, o discurso que inspirou as gerações seguintes,

dando sobrevida ao movimento, considerado morto

pelos pesquisadores, que citavam a morte de Mário

de Andrade como a derradeira pá de cal sobre o mo-

vimento.

'Só a Antropofagia nos une. Socialmente. Economi-

camente. Filosoficamente.

Única lei do mundo. Expressão mascarada de todos

os individualismos, de todos os coletivismos. De to-

das as religiões. De todos os tratados de paz.

Tupi, or not tupi, that is the question. Contra todas as catequeses. E contra a mãe dos Gra-

cos. Só me interessa o que não é meu. Lei do ho-

mem. Lei do antropófago. Estamos fatigados de to-

dos os maridos católicos suspeitosos postos em dra-

ma. Freud acabou com o enigma mulher e com ou-

tros sustos da psicologia impressa.

O que atropelava a verdade era a roupa, o impermeá-

vel entre o mundo interior e o mundo exterior. A rea-

ção contra o homem vestido. O cinema americano

informará.

Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e ama-

dos ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade,

pelos imigrados, pelos traficados e pelos touristes.

No país da cobra grande.

Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções

de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era ur-

bano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiço-

sos no mapa-múndi do Brasil.

Uma consciência participante, uma rítmica religiosa'.

(...)

35

Mas se é a morte que dá vida aos poetas... ela — a

morte — não fugiu ao seu destino, e teve papel fun-

damental no Modernismo, que inspirou Caetano Ve-

loso e seu discurso no Festival da Canção, em

1968... sob o título 'é proibido proibir'... e o 'tropi-

calismo' de Gil, Caetano, Torquarto e outros... que

inspirou o cinema novo de Gláuber Rocha e o teatro

brasileiro anárquico de José Celso Martinez Corrêa.

A referência ao discurso de Oswald está explícita nas

páginas de Verdade tropical, ensaio memorialístico

escrito por Caetano Velloso, em 1997.

Tom Zé pegou emprestado o título do romance

'parque industrial', escrito pela escritora anarquista

Patrícia Galvão — a Pagu — para uma música sua,

que faz parte do disco Tropicália ou Panis et circen-

cis, de 1968, gravado... 40 anos depois de Oswald de

Andrade escrever o Manifesto Antropofágico.

plural avesso — semana de vinte e dois

36

Nos palcos da velha metrópole, o anárquico diretor

de teatro José Celso Martinez Corrêa encenou 'o rei

da vela'... escrito por Oswald em 33 e montado pela

primeira vez em 67...

O primeiro contato com o texto, diz ele, permaneceu

mudo por ser modernoso e futuristóide. Mas, tudo

mudou e de repente. O rei da vela iluminou um es-

curo enorme da realidade brasileira, numa síntese

quase inimaginável.

'Dei boas gargalhadas com os discursos, frases e

rompantes delirantes, com os disparates hediondos

dos personagens Oswaldianos, quase uma versão

paulistana das “personas” idealizadas por Dias Go-

mes em O bem-amado'

‘Fui ver O rei da vela cheio de grande expectativa.

Mas não imaginava que iria encontrar algo que era

ao mesmo tempo um desenvolvimento dessa sensibi-

lidade e uma sua total negação. “Assistir a essa pe-

ça representou para mim a revelação de que havia

de fato um movimento acontecendo no Brasil. Um

movimento que transcendia o âmbito da música po-

pular”, — escreveu Caetano, em seu livro.

ã à …

— exclama Abelardo I, o herói marginal

de O rei da vela.

37

Se em um passado não tão distante, Zé Celso, ao ler

o texto de Oswald questiona: “Senilidade mental

nossa? Modernidade absoluta de Oswald? Ou pior,

estagnação da realidade nacional?”, o texto se reve-

la, no dia seguinte ao seu julgo, um verdadeiro divi-

sor de águas na arte 'futurista'... nos lembrando que é

preciso tomar contato com o que é novo, diferente

em pequenas doses, porque, como bem disse Ferreira

Gullar:

é ç çã

plural avesso — semana de vinte e dois

38

“ “Para muitos de vós a curiosa e suggestiva exposi-

ção que gloriosamente inauguramos hoje, é uma

aglomeração de 'horrores'. Aquele Genio supplicia-

do, aquelle homem amarello, aquele carnaval alluci-

nante, aquella paisagem invertida se não são jogos

de fantasia de artistas zombeteiros, são seguramente

desvairadas interpretações da natureza e da vida.

Não está terminado vosso espanto. Outros horrores

vos esperam"...

— discurso de Graça Aranha — destacado

pelo jornal O Estado de São Paulo,

em 14 de fevereiro de 1922.

42

Passei a gostar de congestionamento. Não, gostar

não, que seria exagero: mas aprendi a conviver

com ele e a usá-lo a meu favor. Tempo de olhar pa-

ra a cidade...

Foi aqui, parada sob o desastre do Minhocão, que

eu me apaixonei por São Paulo e seu rosto de sol

de capina, idoso, de uma vida inteira.

E este amor não começou pelos grafites; começou

pelas pichações dos muros, as frases, as letras, este

estranhamento. E me entusiasmei por elas, espele-

óloga a descobrir sentido em desenhos rupestres.

Afinal, como pretender se tornar um escritor sem

compreender a linguagem mais visceral: a das ru-

as?

“Eles existem sem permissão.

São odiados, caçados e

perseguidos. Vivem no lixo em

um desespero silencioso. E,

mesmo assim, são capazes de

fazer com que civilizações in-

teiras caiam de joelhos”

Banksy: Guerra e Spray

E A MENTE APAVORA O QUE AINDA

não é mesmo velho

ADRIANA ANELI

43

Decifrei com atenção o pixo, seus nomes de guer-

ra, grifes desenhadas com cuidado, as letras ensai-

adas em caderno. E assim, vi nomes se repetindo

por toda a cidade: “Autópsia”, “Vândalo”, “Har-

mony”, “Snob”, “Mano”, “Gouk”, “Tensão”, “Hot

City”, “Ton”, “PHG”, “Mutants”, “Chefe”... Pes-

soas marcando territórios, homens e mulheres ou-

sando suas histórias, arriscando a liberdade — e a

própria vida — para marcar prédios e pontes. Sozi-

nhos, em duplas, em grupos pela madrugada: esca-

lando e se arrastando para deixar de ser invisíveis.

As rugas marcam a pele da velha cidade... Tinta

preta, vermelha, azul alternam-se com janelas fe-

chadas, propagandas esmaecidas, murais grafita-

dos e paredes verdes. É assim que minha paisagem

cinza ganha contornos de casa habitada. Nossas

lendas urbanas.

Enquanto espero o carro da frente desgrudar do ce-

lular para engatar a marcha, admiro um pouco

mais as intervenções e seus lugares inusitados. A

coragem feita de spray, para muito além da beleza

elaborada dos grafites em muros autorizados: o ta-

pa, o grito, o feio, o sujo.

Traços indeléveis de mim.

44

Desacertos recalcitrantes, os sóis que aportam em minha janela não são mais os mesmos a cidade emudeceu diante do teu rosto você envelheceu junto com as cartas, e quem ainda as carrega? encastelado no 5º andar, da Barra Funda, o teu aceno se perde entre as árvores pernas poemas, centenas de frinchas conduzem à Paulista tão minha, na colisão de tantos desejos tranquei a boca mapeada por calçadas desferir um consolo em forma de begônias, na entrada do Trianon

45

plural avesso — poesia contemporânea

A Liberdade é vermelha a iluminação das lanternas modula o caminho, os olhos destilam um oriente em folha de arroz perdi o aroma da luz decerto, aflorara em outro bairro a liberdade sorri nessas esquinas fulgura numa gramática típica do amor impensado, os sons repousam no Templo enquanto a Festa das Estrelas acolhe rezas guardo no coldre pedaços da lua que seriam do dragão

46

Cartão postal edifícios tão antigos desmembram moradores como plagas, vizinhos acoplam poemas nas janelas temperando a Augusta cinza não vejo mais tuas mãos no gradil não ouço mais as tuas narrativas turvas no céu carregado de vozes, de dentro da noite a solidão inevitável que São Paulo esvazia nos apartamentos nos cantos dos quartos, na soleira da porta, no vidro embaçado da sala redesenho teu nome, nas ruas tropeço nos solitários e espero a madrugada avançar

47

Vivo em uma cidade que é um ser vivo. Mutante.

Uma cabeça de cachorro autônoma, a ganhar vida

como se fosse contaminada por um agente quími-

co, que faz caminhar seres inanimados. Como vem

a ser desproporcionalmente grande, o seu corpo-

cabeça é esquartejado em partes, para que seja me-

lhor entendido. Fatalmente, falhamos nesse inten-

to. Ela é um organismo incompreensível em seu

dinamismo energético, que se estende de dentro

para fora, tanto quanto ao contrário — entropica-

mente. Não a compreendemos totalmente por-

que, enquanto a vemos crescer de um lado, a per-

cebemos necrosar outras frações, de outro.

plural avesso — crônica

CABEÇA DE CACHORRO

OBDULIO NUÑES ORTEGA

48

A terra existe, mas em sua maior parte é coberta

por asfalto, cimento, plástico, madeira morta e me-

tal. A minha cidade se espraia em retângulos, cír-

culos, pirâmides e figuras assimétricas, a se con-

substanciar em diferentes facetas — a se organizar

em cidadelas e favelas. A Natureza é um aconteci-

mento. Artificialmente, só se manifesta como dis-

túrbio, em nebulosidade e água, em muito ou pou-

co calor. A luz do sol a se reproduzir em espelhos,

a chuva a afogar as emoções. Desviamos as suas

veias e artérias, canalizamos o seu sangue e o en-

venenamos. Expomos os seus órgãos ao ar. Invadi-

mos as suas entranhas.

Percorremos caminhos artificiais para chegarmos a

cada célula de seu organismo. E, nós mesmos, so-

mos organismos menores, gregários, comensais e

autóctones. Estabelecemos relações de inquilinis-

mo e simbiose, predatismo e parasitismo. Todos os

seus organismos dependentes detêm, em algum

momento de suas vidas, algumas dessas prerrogati-

vas. Mas, com frequência, todos servimos como

substrato de sobrevivência ao monstro, que urra

em milhões de vozes enquanto nos consome. Cedo

ou tarde, deixaremos o seu solo mais fértil, em es-

camações e ossos. Inutilmente. Nem como adubo

serviremos...

plural avesso — crônica

49

Todavia, há o amor — ainda que coisificado pelo

organograma geral, que insiste em nos conduzir as

diretrizes... O amor é buscado como se fosse a me-

lhor fruta a ser adquirida nas feiras livres, o melhor

carro a ser conduzido pelas avenidas, a melhor

roupa a se vestir pelas calçadas da Paulista. Se to-

dos nós pudéssemos perceber que, mais do

que amor, há o amar — tão diferente em cada o-

lhar, em cada andar, em cada falar. Se fôssemos

capazes de nos entregar, nos identificar amados e

amantes. Se soubéssemos alcançar, ao amar, as nu-

vens por sobre as nuvens de fumaça das fábricas e

do vapor dos motores. Se pudéssemos beijar o sol

e devolver o calor de amar em igual proporção...

Então... e só então, escaparíamos de uma cidade

que nos aprisiona — e a refundaríamos mais do

que imensa, grandiosa em sua melhor tradução,

para além de esquinas e praças, parques e estádios,

shoppings e dancings. Ocuparíamos os logradou-

ros em danças loucas, avessas às regras, feito cri-

anças travessas. Amaríamos por sermos além do

que estamos ou temos. Seríamos felizes proprietá-

rios da felicidade, seguidores da alegria, a brincar.

Nos tornaríamos inimigos da violência e da soli-

dão, da fome e do ódio. Espalharíamos a virose do

abraço apertado, da dissensão apartada. Bandeiran-

tes de nova era, o que éramos se esqueceria. Matar,

não mais... Morrer, talvez, depois de amar de-

mais...

plural avesso — crônica

50

minha escrita... A Cidade

Minha mãe é uma Sherazade alencarina, coberta por

sete véus de chita. Sua prosa seduziria até o mais cis-

mado dos sultões, com mil causos de corta-bundas,

pernas-cabeludas e loiras do banheiro. É uma pobre

coitada, que se banha em águas de esmeralda. Mesmo

quando faminta. Mesmo quando abandonada. Mulher

de coração agigantado, acolhe boêmios, loucos e poe-

tas. Diverte-se com eles, não tem recato e se entrega

ao amor sem impor fronteiras. Delicada amante de to-

dos, com os mesmos peca e, junto a eles, reza. Santa

ou meretriz? Não sei. Sei apenas o quanto ela é mater-

na.

Contraditória, preguiçosa e cheia de excessos, não leva

direito a vida que leva. Sempre tão linda e festeira,

dança ao som do progresso até se esquecer de si mes-

ma. Não repara nas panelas vazias, ou não sabe como

repará-las. E assim permite, distraída, misérias avessas

aos seus naturais encantos.

plural avesso — crônica — Emerson Braga

Materna

51

Minha mãe amanhece acordada, não dorme nunca. Te-

me sonhar com escolas fechadas e hospitais abertos

para nada. Às vezes, chora escondida pelos caçulas so-

nolentos, amontoados sob a bênção de marquises sa-

cras, antes de serem apresentados a Deus pela justiça

dos homens de bem.

Dói vê-la envelhecer precocemente. Não pelo efeito do

tempo, mas por ser tão explorada. Muitos dos que lhe

prometeram um futuro suave machucaram suas costas

e feriram seu interior. Reduziram-na a uma criatura en-

ferma, ignorante e faminta. Jamais lhe presentearam

com a verdade. Estojos de maquiagem ela não quer

mais.

Minha mãe sorri, apesar de todas as adversidades que

lhe arrancam os dentes. E seu sorriso é como a chuva

depois de um longo dia de sol: desperta viço nos cora-

ções, apesar da aridez imposta como fortuna.

Sou filho de uma mãe tão bonita quanto Iracema. E,

ainda que maltratada, ela não se enverga diante da insí-

dia do espelho. Sou herdeiro de uma mulher-macho

com olhos de vista para o mar.

Minha mãe é índia, quilombola e jangadeira. É catado-

ra, repentista e rendeira. Minha mãe transcendeu a pró-

pria condição materna. Transformou-se em Fortaleza.

plural avesso — crônica — Emerson Braga

Fortaleza

52

Era uma vez, um baiano, cercado de novos caeta-

nos. Todos eles sonhavam de pés descalços antes

de serem despachados para Londres, serrana bela e

eles não serviam ao Grão da Bretanha, mas a ela.

Vestiram pele de carneiro para ser capa de long-

play e cantaram, até a Asa Branca, que bateu asas

do sertão.

Despedidos de sampa passaram frio medonho to-

mando chá com torradas na Down Street.

Pena, saudade e alguma coisa aconteceu, no cora-

ção deles e no meu: voltaram logo que puderam e

escreveram cantiguinhas de ninar milicos, porque

era a moda nas gafieiras e nos forrós, mesmo as-

sim, não deu certo.

Passaram-se anos, muitos anos, e papai noel não

veio. Morreu Adoniran, morreu Caymmi, morreu

Antonio Brasileiro e morreu até o Vanzolini.

O cara da Escola, no meio da avenida, ops, sufoca-

do na passarela gritou pra Globo: “não deixe o

samba morrer... não deixe o samba acabar...”

CAETANO LAGRASTA

ALGUMA COISA

acontece

53

plural avesso — coluna plural — Caetano Lagrasta

E, nem assim, foi possível consertar: o samba foi

se escorregando e precisava encontrar gente boa,

gente nova, gente musicada...

E, aconteceu:

Paulinho, Marisa com seus montes, Yamandú tam-

bém com sua viola e mais um punhado de forro-

zeiro dos bãos, retomaram a luta e não deixaram

“passar” os energúmenos cinzas (futuros camisas

negras) e suas idiossincrasias mais estúpidas.

Isso, conto agora, foi a coisa que acontece no meu

coração, quando cruzo a Paulista com a Consola-

ção nos dias de chuva, passeata ou verão.

Esperança acontece, acontecerá sempre na ... ale-

gria... alegria.

São Paulo, o melhor pedaço do Corinthians.

54

Akira yamasaki

herdei do meu avô um destino de silêncios

pedras e vazios e uns olhos inquietos de sonhos pousados longe

em remotos poentes

55

Akira e a poesia convivem há cerca de

quarenta anos, numa relação de amor e

conflito. Ainda jovem, se engajou no Mo-

vimento Popular de Arte de São Miguel

Paulista, cuja proposta era levar a arte para

as ruas, praças, favelas, associações e co-

munidades da periferia paulistana. Naque-

les tempos fazer arte na periferia de um

dos bairros mais pobres de São Paulo era

uma ação de resistência e um desafio teme-

rário.

Assim Akira descobriu que trabalhar a pa-

lavra é um ato de compromisso com a vi-

da, com a busca da liberdade e a valoriza-

ção do ser humano. Talvez por isso os pás-

saros sejam figuras recorrentes em seus

poemas escritos numa linguagem simples,

às vezes coloquial, como um ‘diário de bo-

bordo/de campo de batalha’.

Seus versos não são meras crônicas do co-

tidiano. Eles nos chacoalham, inquietam,

ferem como lâminas e trazem também uma

esperança resistente, colhida nas lições de

sobrevivência da galeria de pessoas e per-

sonagens presentes em seus versos. Ali

passam menores abandonados, marginais,

amigos, parentes, filhos, pássaros, jardins,

dores e amores, num grande mosaico.

56

eu desço do trem no jardim romano

cagado de medo subo altas horas a décio de toledo

imensa solidão pesa sobre mim ouço meus passos

na rua deserta na noite sem fim

em algumas casas na décio de toledo noturnos jardins espalham perfumes

de dália e jasmim

57

calam-se dormentes em seu descanso de pedras

deitados entre os jardins helena, noêmia e romano alastram-se adormecidos

em seu leito ferroviário em completa solidão e no silencio mais surdo

dormem como uma criança os jardins das oliveiras

e o itaim paulista completo dormem em silencio tão limpo que não sei mais a diferença

entre silencio e esquecimento

58

no sótão de mim em local acessível

ao sol da manhã ao vento da tarde improvisei um varal

onde diariamente seco após enxaguar antigas lembranças

no sótão de mim guardo claridades

afetos e confortos de toda uma vida que hoje distribuo

feito um penitente por mera conveniência ou pura necessidade

59

meu rosto tem infinitos nós como na voz de um ator

de teatro nô cada nó é a máscara de um pesadelo perverso

atos de dor e medo que passaram por mim

cada nó é a aparência do momento de uma perda sonhos e lemas fracassados

uns sobre os outros cada nó é o disfarce de um demônio à solta

na minha manhã meu rosto quer paz

mas o vento dos destinos nunca descansa

herdei do meu avô um destino de silêncios

pedras e vazios e uns olhos inquietos de sonhos pousados longe

em remotos poentes

60

61

Sábado especial: café com estilo no lançamento

do livro de poetas queridas, pela Scenarium Plural,

e, ao término, uma boa caminhada pela Paulista.

Então, uma amiga e eu resolvemos parar em algum

lugar para um lanche. Lembrei que mais à frente,

na esquina com a Consolação, ficava o Riviera.

Bons anos se foram desde a época da faculdade em

que eu frequentava esse bar, destacado polo etílico

revolucionário da juventude paulistana. Mas como

aqui não se faz revolução, o lugar passou mesmo

foi por uma reforma... Estrago daqueles! [eu que

ainda não havia ido lá para me decepcionar] Sim,

choca!

O RIVI [JÁ] ERA!

VIRGINIA FINZETTO

62

Entramos... O pé direito alto maravilhoso, com sua

original e larga coluna central, a parede de tijolos de

vidro e a escadaria com corrimão de metal permanece-

ram. Já o salão do bar ganhou pompa e luxo, mas per-

deu o aconchego que ainda persiste em minha memó-

ria. Cadê as simpáticas mesinhas, o balcão lateral, a

urgência de uma blitz da vigilância sanitária aos ba-

nheiros, o rosto familiar dos garçons (não mais sóbrios

do que nós)? Cadê o meu chapa Juvenal? Enfim...

“meu, que droga”. Perdeu o clima.

Bem, já que eu estava ali, resolvi conferir o cardá-

pio. Logo de cara fomos avisadas que só o bar estava

funcionando, o andar superior onde fica o restaurante,

e onde ficaram muitas das minhas lágrimas e garga-

lhadas, abriria só mais tarde. Tudo bem, eu pensei,

dando-me conta aos poucos da frieza daquele balcão-

ameba ao redor da coluna maculando o que para mim

havia sido palco de tanto calor. Enfim... Nem quis su-

bir para não me aborrecer ainda mais. Quem não co-

nheceu o Riviera do final da década de 1970, não pode

avaliar o tamanho do meu disappointment.

Sentamos nas altas banquetas e o gato-bartender

trouxe o menu. Fui direto para a lista de sanduíches,

crente que alguma coisa original deveria ter resistido

ao tempo, e pedi animada:

— Vou querer um Royal!

63

De súbito, o simpático moço me traz para a realida-

de mostrando que NADA permanece com o passar do

tempo:

— Ahh!.... Eu sabia que a SENHORA ia fazer esse

pedido...

E em seguida veio com a história do “gato subiu no

telhado”:

— Olha, ele tá um pouquiiinho diferente, mas a

SENHORA vai gostar!

“Caramba, por que essa moçadinha insiste em for-

mas de tratamento tão do milênio passado?”, — pen-

sei. Mas respondi conformada:

— Ahã... Tá bom, vai... Vou experimentar.

Final do banquete, para resumir: a conta e a pesqui-

sa de opinião.

— A SENHORA gostou? É parecido com o lanche

que costumava pedir?

Eu paro por alguns instantes e, sendo gentilmente

honesta, prossigo:

— Sinceramente? Em nada. Aliás, não só não é pa-

recido com o original que eu amava como ainda é co-

piado de outro sanduíche famoso do Ponto Chic. A ú-

nica coisa que permaneceu foi o nome: Royal. Por que

vocês não atualizam então para... Royal Chic?!

[alguns breves e constrangedores minutos de silêncio

antes de eu retomar a fala]. Mas... adorei! (estava gos-

64

toso mesmo) — disse finalizando com um sorriso simpático.

Ufa! Ele sorriu também, mas virou as costas e saiu de fino.

Tudo bem que eu não sou mais a mesma e ainda me cha-

mo Virginia, e até por isso eu deveria dar um desconto. Mas

aquela porta sendo aberta escancaradamente a cada cliente

que entrava, fazendo uma corrente de ar que deixava tudo

ainda mais polar, não perdoo não! Nem o preço (caro... mui-

to!).

Outro dia estava no Parque Estadual Alberto

Löfgren, na Zona Norte de São Paulo, ou como é mais

conhecido, o Horto Florestal. Como ele é próximo de

casa, sempre fazemos uma pequena trilha até lá em

vez de irmos pela avenida com suas ocas de concreto

cercadas por árvores de fios e a manada de cavalos de

aço soltando fumaça sem parar.

Sentado na grama fresca e verdinha, o sol brilhante

aquecendo e dourando a pele e uma brisa suave que

mais parecia o carinho que tenho recebido de todos ul-

timamente. Rindo com os amigos, contando besteiras,

falando coisas sérias e observando tudo em volta, me

senti no meio da cena de um filme perfeito.

PARA ONDE VAI O SEU GUARDA-CHUVA???

JOAKIM ANTÔNIO

65

66

Uma criança chegou perto de nós e nos lançou um

sorriso tão grande, que quebraria o gelo até de um ice-

berg, e nesse instante, em conjunto, todos sorriram!

Havia capoeiristas se exercitando, eram hora baila-

rinos, outra, acrobatas, não caíam na grama e sim pou-

savam, pois naquele momento eles voavam.

Por onde você andasse ou olhasse, todos riam e se

divertiam, alguns dormiam, outros namoravam, surgi-

am cestas de frutas, sorvetes, doces, biscoitos, balões

maiores que seus pequenos donos e carrinhos de mão

que eram verdadeiras Ferraris, tamanha a alegria de

seus navegantes.

67

Me vi cercado, cercado pela natureza alegre e vi-

brante da floresta incrustada no meio dessa selva de

pedra que é São Paulo. Vi a todos cercados, cercados

pela alegria espontânea que brotava de dentro de todos

e era sentida no ar. Ali, cada um estava no seu mundo

mágico.

No Horto Florestal, aprendi a observar a vida com

cuidado e a meditar, então desde a infância, minha se-

gunda casa é lá.

68

Houve um tempo, Caberê, em que havia cine-

mas de rua em São Paulo. Cinemas enormes, gran-

des salões dedicados às massas ávidas de filmes

movimentados, enormes e agitados. Onde até mes-

mo passavam filmes mais ‘sérios’, de arte

(atualmente conhecidos como ‘filmes para o

Oscar’...), mas estes tinham seu circuito próprio (e

era realmente um circuito com várias salinhas de

cineclube para cinéfilos). Mas vou falar dos cine-

mas do centro.

TUAS OFICINAS DE FLORESTAS

teus deuses da chuva

Tempos de eu moço e o cartaz de

Van Damme em São Paulo...

CLAUDINEI VIEIRA

69

Houve um tempo em que havia artistas plásti-

cos contratados para pintarem os cartazes dos fil-

mes em exibição. O que hoje se faz com alguns

cliques de photoshop (aliás, ainda se usa photo-

shop ou já existe aplicativo que o desbancou?).

Faixas, placas, cartazes pequenos colocados estra-

tegicamente na entrada do cinema ou cartazes gi-

gantes na fachada. Artistas sim, afobados e apres-

sados para produzir o máximo de telas, no mais

curto prazo e recebendo uma merreca miserável

para isso, imagino

Houve um tempo em que os mendigos passea-

vam pelas frentes dos cinemas, indiferentes aos

cartazes, observadores de possíveis esmolas ou de

lugares para se escorar ou dormir à noite. Quando

o lixo se acumulava nas esquinas e em cada poste,

e sempre se falava da decadência do centro da ci-

dade, da decadência das pessoas, da decadência da

humanidade, principalmente a paulistana. Lembra

disso, Caberê?

Mas, menino moço e ingênuo, eu não sabia na-

da disso, não observava, dos tempos quando des-

cobri o cinema, suas emoções, e seus cartazes, em

especial um cartaz.

70

Estrelava Jean-Claude Van Damme que contra-

cenava consigo mesmo, isto é, ele fazia o papel de

irmãos gêmeos, um policial e um bandido, separa-

dos na infância, e que acabam se reencontrando e

se juntando contra bandidões realmente malvados.

Bueno, antes de tudo, antes sequer de comprar o

bilhete de entrada, lembro de ficar extático durante

um bom tempo, olhando para o cartaz: Van Dam-

me, obviamente, replicado, um de frente para o ou-

tro. E nenhuma das duas figuras parecia o Van

Damme. Na verdade, elas sequer se pareciam entre

si!

E fiquei assim, entre divertido e intrigado, final-

mente consciente de que havia uma pessoa que ha-

via pintado (manualmente, manufaturalmente)

aquela arte, se esforçado e (mesmo que fracassado

em suas intenções figurativas), era real, tinha havi-

do suor, dedicação. E percebi os mendigos, Cabe-

rê, a sujeira, aquele ar de incômodo, um certo des-

caso com as pessoas.

Naquele dia, muita coisa fez sentido para mim,

meu amigo. Mesmo que até hoje eu não o tenha,

talvez, entendido de verdade. Houve aquele tempo.

Que, na verdade, é sempre o de agora, não é mes-

mo? Mudam-se os cartazes, as palavras, os photo-

shops, artistas desaparecem, pessoas desaparecem,

idades desaparecem. Mas os tempos são sempre os

de agora.

71

72

minha escrita... A Cidade

Backup de a cidade

moderna

ANSELMO VASCONCELLOS

Ontem foi o rio que desapareceu. Nenhum vestígio...

apenas pó. Nem as pedras que entretinham o baile das

trutas nas corredeiras das águas. Nada.

A cada dia que estou aqui nesta cidade, uma parte es-

vanece. Hoje acordei no chão onde havia a casa de mi-

nha avó. A Vila Bonsucesso, com suas 25 casas, desapa-

receu... e há apenas um vestígio da cal que ungia as pa-

redes. Na casa 9, da tia da menina Beta, restou um azul

da janela. Nem sabia que cores têm sombras. Aqui tem,

como no olhar da menina portuguesa, branca e presa.

Nem flertar podia, a Beta desaparecida.

73

As árvores foram as primeiras a ir embora. O que

estou dizendo? Não... elas também desapareceram e,

com elas, o vento que todos conhecíamos. Amigo anti-

go da região. Vinha correndo lá das montanhas do

campo... agora transparente, sem elas. Como se um

pintor apagasse da tela seus detalhes de composição.

Um deus que desfaz a cria como nos embates mitoló-

gicos, onde o que mais aprendemos é a natureza da

vaidade. A vaidade vem dos céus. Aprendi com as con-

versas — em voz baixa — das velhas do ex-lugar.

Onde havia, suponho, o antigo prédio da Biblioteca

Pública, encontrei um único livro. Grosso, capa dura e

letras de esmaecido e falho dourado. Um livro em

braile. Me faz pensar com os dedos e entender com to-

ques. Ainda não sei sobre o que diz a história. Sou ce-

go desse ler. Seguro o livro entre os braços e caminho

— na falta de história, de ruas, de esquinas... dos becos

sem saída. Onde achava sempre o melhor a se fazer.

Nada se vê da cidade moderna que tinha orgulho de

sua famosa ponte de vidro. Restaram cacos espalhados

ao longo do nada, como a indicar um labirinto no vazi-

o. Nele, ninguém perde o que não há de se perder.

74

Onde estava o circo que visitava a cidade? Não sei di-

zer... já que, na terra, há rastros claros e recentes de sa-

patos grandes — como aqueles que os palhaços trajam.

Nem uma lantejoula perdida para me dar certeza do que

intuo... nada. Conforto há em saber que circos somem,

mesmo. É seu mistério itinerante. Circo é um marimbon-

do. Não se sabe de onde veio, não se sabe para onde vai

— dizia a tia da Beta, que eu amava precoce. Beta, meu

doce da solidão no banheiro. No barulho do desejo, era o

nome que eu dizia de olhos fechados e mão ocupada, pa-

ra fazer desaparecer o incontível tesão.

Eu canto: Da Fonte dos Viajantes restou minha sede e

nisso sim insiste a verdade. Vou me embora deste deser-

to, deste desertão, deste sertão... não sei se estou na saí-

da, não restou nenhuma indicação. Então, pousa um

pássaro escuro e solitário. Seus olhos são grandes amare-

los. Parado... observa, alternando a direção para onde

aponta o bico. Ele me vê. Nos olhamos... o coração dis-

para. Ele fecha os olhos. Também fecho os meus. Um

instante no escuro da retina... Finalmente, nossa vez de

desaparecer nesta única página.

75

CAETANO LAGRASTA

literatura brasileira

O despertador alemão era uma caixinha de músi-

ca e tocava o tema do filme: “o terceiro homem”.

Escorregou pelo apartamento e entrou no bonde.

Estava atrasado. A Faculdade por dentro era um ma-

rasmo, só fervilhava por fora, naqueles tempos de

cavalos nas ruas e correrias aos tiros. Quase ninguém

ia às aulas: ele não tinha nada que fazer em casa e,

logo depois do almoço, tinha que ir para a Reparti-

ção... preferia ficar por ali, na pastelaria, conversan-

do sobre política — conversa fiada de gente que ia

arrumar o país e o mundo. Uma chatice. Preparava-

se para dar um pulo na Rua Direita e depois no Lar-

go São Bento, quando alguém o chamou.

Resolveram entrar numa aula. Para ele, o curso se

resumia em ler durante as aulas e ir para o trabalho.

Conversas de pátio, uma mijada e só.

76

Um professor patético falava de propriedade lite-

rária; direitos autorais. Ficou interessado, mas o tra-

tamento que esperava era mais literário que jurídico:

um desperdício. Encontrara o professor em algum ci-

nema, num filme que chamavam ‘de arte’ — o que

não queria dizer absolutamente nada. A aula resvalou

em Kafka e na desobediência de Max Brod, que não

lhe cumpriu a última vontade, ou seja, queimar todos

os escritos inéditos, mas foi só um momento. Logo

voltou a falar de dois irmãos franceses que escreve-

ram uma velhíssima porra de obra, e não se conse-

guia distinguir onde começava um e terminava o ou-

tro. Depois, avançou, com cara de santo medieval,

nos editores, na obra conjunta e otras cositas más, de

arrepiar. De sua carteira, enquanto amassava o terno

recém-estreado (afinal, era o primeiro da família a

ingressar numa universidade), lia Kerouac, com vo-

racidade. O sujeito era louco, mas vivera cada linha

do seu maldito livro. Aquilo, sim, é que era vida: ex-

citava, assustava, mas, no fim, o deixava com um le-

ve sabor de impotência. Como não conhecia a vida,

ficou a aula inteira oscilando, com cara de idiota, en-

tre um sentimento mortal de susto e um remexer in-

cessante na carteira, que rangia e provocava olhares

de reprovação de algumas coleguinhas das primeiras

filas. A garota que estava ao seu lado era muito feia,

77

mas lhe deu ganas de a ela se declarar, aos berros, só

para causar alguma comoção, um burburinho que

fosse, para mostrar sua rebeldia; escapar à mesmice

de uma vida obscura.

O bigode do gordinho continuava a soltar blás e

blás e blás, dando por encerrada a aula, bem antes do

seu tempo. Percebeu que o suor lhe manchava os so-

vacos e o paletó quase inteiro. Ele também sentia o

suor escorrendo-lhe pelo corpo, enquanto se retirava

da sala: maldito Kerouac, pensou.

O amigo perguntou se ainda ia continuar na cida-

de.

— Vou. Dá tempo de tomarmos uma, no Carva-

lho?

— Topo. — disse-lhe o amigo.

No caminho, ia bengalando o guarda-chuva, com

vontade de comentar Kerouac, mas sentia um vazio

que, com certeza, ia acabar em depressão.

— Vê duas batidas e um sanduíche de aliche com

salsa.

Foram para um canto e começaram a bebericar. A

cachaça era da boa e ele já fumara dois cigarros.

Puxou mais um e perguntou ao amigo se ia mais

uma.

— Se chegamos até aqui, seria desonesto voltar.

— respondeu-lhe o amigo. O que você vai fazer com

esse curso?

— Itamaraty, talvez. Não sei. Acho que gostaria

mais de uma ciência exata, matemática, sei lá... No

exato, se você inventa, você se fode.

Falaram mais um pouco de literatura e, especial-

mente, de Salinger e sua família de loucos. A conver-

sa foi morrendo, acabara a excitação. Zonzeira e de-

pressão — ele as sentia — avançavam a passos lar-

gos. Andaram alguns quarteirões, sem procurar as-

sunto. Despediram-se numa esquina da Praça da Sé.

Comeu um misto quente e foi trabalhar. A Repar-

tição continuava lá... com suas luzes frias e paredes

verdes: como um hospital. Igual àquele pronto so-

corro em que chegara inconsciente após libações car-

navalescas. Lá, como cá, tudo fedia a mofo e bosta

de barata.

Seu chefe era inexpressivo, sempre afogueado nu-

ma maçaroca de papéis, pastas, grampos e outras

merdas do gênero. Tinha momentos em que o baru-

lho dos carimbos e o tátátá das máquinas de escrever

ensurdeciam, e o chefe mostrava que sua verdadeira

cara era uma besta medíocre, cuja mocidade havia

sido perdida num emaranhado de decisões burocráti-

cas e inúteis, nada obstante sua escrivaninha fosse

um primor: absolutamente ordenada.

78

Um homem negro servia o café, com vagar, como

se estivesse catando algodão ou cortando cana. Era o

mais fraco, logo, era aquele de que todos tiravam

uma ‘casquinha’:

— Ô fulano, este café está frio! — gritava uma

das velhas maquiadas.

— Ó fulano, você se esqueceu de servir dona Si-

crana. — apontava o chefe. O contínuo negro cami-

nhava paciente até ela, que sorria agradecida para o

chefe, certa de que — na sua idade — ninguém ia se

importar com seu sorriso desdentado e sua cabeleira

amarelada... ambos desejosos de tinta ou dentadura.

Ele continuou no seu canto, remoendo a conversa

literária, a influência de Pound, Fitzgerald e Salin-

ger, fora os beat, ‘na estrada’, como Kerouac: “O

velho estava a berrar. Mas a mãe, triste, gorda e

morena prevaleceu, como sempre sucede entre os

grandes povos felás do mundo”... — Tivera longa

conversa noturna com sua mulher e ficara incomoda-

do por algo que sua mãe lhe dissera, dias antes, pois

achava sua mulher triste e lhe recriminara o compor-

tamento asfixiante, deixando-o em dúvida.

— Por que você não para de cortar barbantes? —

perguntou a viúva à negra.

Esta a olhou e sorriu, talvez deixando de falar coi-

sas que preferiu calar. A velha continuou sua conver-

79

sa estúpida e sem sentido, enquanto a negra levantou

-se e deu uma cusparada — deixando a saliva escor-

rer até o cesto de lixo. Aquela cuspida, não sabe por

quê, ele considerou muito razoável e cheia de senti-

do: um verdadeiro grito de liberdade, uma solene mi-

jada na viúva.

Considerou-se um descendente felá, mesmo sa-

bendo que não conseguira se libertar, sequer, de sua

gorda, morena e triste mãe. Continuava parado, pas-

mado, irredutível, na sua posição de idiota, insatis-

feito — mas cheio de si, de ré e de dó...

Voltou para casa, acalentado pelo sacolejar do

bonde e, enquanto fingia dormir, espiava os rostos

pálidos e tristes dos passageiros.

Comeu pouco, ajudou a tirar a mesa, sentando-se

no escritório. Escritório? Um pequeno vão, um tabi-

que, sob as escadas?

No dia seguinte: greve, aulas suspensas. Milicada

na rua, deputados berrando nas rádios: “cassa, pren-

de, mata!”. De início, achou genial: se durasse bas-

tante tempo, poderia descansar e não precisaria le-

vantar tão cedo, nem as Repartições dariam expedi-

ente. Uma maravilha! À tarde, foi passear pela cida-

de, e as ruas estavam repletas de povo, de estudantes

e guardas civis. Enquanto caminhava, sentia-se orgu-

lhoso, útil! Quem o visse, pensaria que participava

80

do movimento. À sua frente, à sua volta, todos cami-

nhavam como se tivessem um objetivo imediato:

gritavam palavras de ordem, às quais ele também

respondia. A coisa estava legal, os carros e os bondes

parados, no meio da rua, enquanto passavam ambu-

lâncias e ‘fuscas’ cheios de policiais. Ao seu lado,

um rapaz carregando um livro foi derrubado, levan-

do cacetadas e chutes. O livro voou longe, enquanto

ele a tudo assistia inerte. O rapaz continuou sendo

pisado e esmurrado no chão, até ficar quieto, sem

reação.

Quis chorar, mas não saiu nada, só um soluço. Pe-

gou o livro: ‘O triste fim de Policarpo Quaresma’, do

Lima Barreto, sentindo-se um pequeno burguês aco-

vardado.

81

122

Tatiana Kielberman

minha escrita... A Cidade

Faz pouco tempo desde que aprendi a degustar de fato

a cidade que habito — e que, inevitavelmente, também

mora em mim. A princípio, apenas me via residindo

em um prédio qualquer de suas ruas, pois foi aqui que

nasci e, do meu ponto de vista, não havia outra opção

plausível para onde eu pudesse me mudar.

É bem provável que São Paulo seja mesmo este anfitri-

ão distante ao tomarmos um primeiro contato com as

paredes imaginárias que lhe envolvem. Mas, nem por

isso é isento de se mostrar acolhedor conforme os anos

passam — e assim nos apaixonamos por sua paisagem,

cada vez mais.

A cidade que acena

para mim lá fora

123

Eu gosto da diversidade que o cenário da “terra da ga-

roa” me concede. Aprecio cada uma de suas marcas re-

gistradas, os cartões de visita e as imprevisibilidades

envolvidas em seu ritmo. Penso que comecei a me tor-

nar mais amiga de São Paulo ao deixar de ter medo do

que a cidade poderia me oferecer. Não foi um processo

fácil. Praticamente um reconhecimento de terreno —

absurdamente necessário.

Hoje, defendo seu nome com unhas e dentes. Morar

aqui já não se configura mais como uma falta de

opção, mas sim pura escolha. Entre pressas, agitos,

multidões e vida sem fim, eu sigo preenchendo os es-

paços paulistas — e sei que há muito mais ainda a ser

desvendado.

Talvez este seja apenas o breve início de uma deliciosa

e inesperada história de amor…

São Paulo

“Não aguento mais ser chamado de pau rodado

Já tomo licor de pequi, já danço o Siriri

Como bagre ensopado

Sou devoto de São Benedito

Até já danço o rasqueado

Sou devoto de São Benedito

Até já danço o rasqueado

Adoro banho de rio, vou direto pra Chapada

Na noite cuiabana tomo todas bem gelada

Sou viciado no bozó, pescaria e cururu

Tomo pinga com amargo

Como cabeça de pau

Eá, Eá, Eá, só não nasci em Cuiabá

Mas no que eu cresci

Meu bom Jesus mandou buscar”.

(Pescuma e Pineto)

CARTA AO AVESSO

DA CIDADE

84

Não nasci aqui, mas de fato talvez tenha nascido.

Ou nasci lá... o nascer verdadeiro foi em outro Estado, e

talvez possa ter inventado — eu explico — essa miragem

do lugar da minha infância. Mas, quando cheguei aqui e

me deparei com ruas circundadas por palmeiras centená-

rias e ipês floridos... duvidei do que via, e passei a

"inventar" minha cidade de morar.

O cheiro do quintal e suas mangueiras a cantar fru-

tos para o vento... Os pés de cajus a servir de comida pa-

ra os pássaros pareciam desenhados na minha memória.

O pomar era no fundo da casa da vizinha... meu próprio

quintal e calçada afora, dentro do espaço por onde passa-

va.

O linguajar do povo em sua melodiosa prece... as i-

grejas a desejar a fé nos infinitos terços nos dias da se-

mana. O rio que dá o nome à cidade... a abraça até avan-

çar rumo ao Pantanal... circunda os bairros e dá alimento

aos moradores.

85

86

As ruas antigas contrastam com o moderno. Ali, on-

de cato poesia, descubro o avesso desse lugar que amo...

adoro essa rotina radiante de dia de sol e seu calor abun-

dante que colore meu quintal... minha rua — meu lugar.

Mas, amar essa cidade gera conflito... porque ela

mudou tanto e, ainda assim, continua igual.

Antigamente, era tranquilo descrever meu amor por

ela... na calçada onde as famílias sentavam para contar

seus velhos causos. Meus olhos avistavam a vida na le-

veza do vento que batia nas folhas da mangueira, que me

traziam sombra e aconchego.

Eu não entendo mais esse lugar como antes... e, tal-

vez, você perceba que é isso o que me encanta. Já não há

mais cadeiras nas calçadas e nem a criançada a brincar

de pipa, bolinha de gude e pique-esconde. Tudo se tor-

nou tão distante das vilas, e os prédios se multiplicaram

aos meus olhos. Sinto falta dos lugares feitos para mim...

onde me encontrava em poesia e rabiscava nos muros os

meus primeiros poemas de amor... falava da cor que se

diversificava em vários tons da cidade-verde... do fruto

doce — um presente — que nasce no meu quintal. Do

sol abrasador que me aquecia... e de que eu, insatisfeita,

sempre reclamava.

Eu sempre amei esse pedaço de chão e, ao mesmo

tempo, senti raiva... quando as ruas se abriram para mim,

me envolvendo com as folhagens das palmeiras que la-

87

deavam os caminhos por onde eu passava. E eu, menina,

corria solta pela vida... sonhando com a cidade sendo

notícia no mundo — senhora de si — com suas cores re-

desenhando o amor que eu sentia.

Vestida de festa, enchia de poesia as vielas. Serena-

va nas madrugadas frias... umedecia nas tardes de calor.

Reclamava, reclamava e, mesmo assim, longe da-

qui, queria existir nela... porque sempre amei desbravar

rotas novas... desvendar os lugares secretos. Comer e be-

ber da fonte do rio... na essência pura da alma cuiabana

que tenho.

Eu sei que tudo isso está aqui ainda, mas aquela

menina... que aprendeu a desvendar o amor que sentia

pela sua cidade, cresceu. E o amor... infinito, cresceu

junto comigo, na mesma intensidade do sol que abrasa

— e torna especial e único — meu lugar. Com o tempo,

me transformei em arrogante, pelo simples fato de poder

possuir as ruas, e dançar sob os ipês dos parques, porque

queria o melhor lugar para viver. Mostrar ao mundo a

beleza que cada canto continha.

Andei por aí e, nos becos, descobri que a força da

cidade não é mais a ingenuidade de menina. A cidade

cresceu também e tomou proporção de gigante. Seu ta-

manho é efêmero, porque guarda a singeleza do seu lin-

guajar. Ela se tornou maior do que podia aguentar e, ain-

da assim, permanece intacta na simplicidade.

88

Já fui para outros lugares, outros amores... sempre

voltei, por vezes insatisfeita, mas com a sensação de que

só aqui poderia chamá-la de lar... porto seguro.

Ali, entre a ponte que dividia lugares... que guarda

meus desejos mais secretos e que, para ninguém desco-

brir, o vento levou. Aqui, debaixo das árvores que cedem

à sombra fresca durante o calor... e nas calçadas onde

cresci, sentindo o aroma doce do cerrado... busco justifi-

cativas para tudo o que sinto.

Ainda me encanta a diversidade... os mil jeitos. A

mansidão com que me abraça, mas eu odeio a falta de

regras, a desigualdade, a falta de respeito, de solidarieda-

de que existe. Pode ser que eu me engane ao ver nascer

uma flor debaixo de tanto concreto... onde as escadarias

me levam aos lugares de fé, ao acreditar ser possível que

esse lugar continue o mesmo... e mude. Que os encantos

aconteçam nas manhãs em que vejo pássaros tão varia-

dos voando no céu cinzento, e pense que ainda é a meni-

na simples que me encantou.

Mariana Gouveia

89

Arlequim

O que somos por detrás das máscaras

Opostos

Linhas mudas em expressões frias

Algum sentir fálico, a emaranhar dedos em agonia.

Mentes inquietantes, traçando rotas em fuga.

Somos um misto vago:

Amores eruditos, ímpares, egocêntricos e odiosos

Corações postos em vidros e tampados á vácuo.

Peças vis, em um tabuleiro a esmo,

nesse caótico jogo de nada.

Sabemos por praxe, de onde saímos...

Porém, ilusória é a sensação de ida

Singulares, somos aprisionados...

Ente, pele e ataraxia.

No temor de pedi-lo e na glória de tê-lo...

No gozo de prová-lo e na dor de perdê-lo...

No contato desfeito e no rumor já mudo...

No prazer que passou...Nesse nada que é tudo:

O passado!... a lembrança... a saudade... o desejo...

90

Pierrot

Tendenciosas, essas tais vivencias humanas

São sobre tudo

Pontos inoculáveis de vista.

Há de serem sãos — resignados ou estrategistas.

Equacionam-se sob moldes.

Seguem afinco seus dogmas,

Alicerçados em punhos

Malditos são os poetas

Vão ao inferno de si...

E voltam mais imortais que nunca.

Não sei porque o olhar dessa estranha criatura

era cheio de horror...e cheio de doçura!

Menotti del Picchia

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Colombina

Deixem-me amar em pluralidade!

Quão desgosto cabe, sob essas mãos possessivas e vis?

Sem dúbia escolha, métrica ou fatalidade

Hão de me querer avulsa, esculpida em argila

A premissa em suas tenras entranhas,

O saciar indescritível ao tempo

A poesia riscada entre a dor, o sonho

...e o desejo a pulsar seus corações.

Deixem-me lasciva, singular...impar.

Deixem-me...

A fonte imperfeita, Colombina.

Quando tenho Arlequim, quero Pierrot

tristonho, pois um dá-me o prazer, o outro dá-me o sonho!

Menotti del Picchia

plural avesso — poesia

Escrevo contra o reflexo da janela de uma lumino-

sidade que entra pela casa. Onde moro vai além de

uma casa. As pessoas passam com os mesmos as-

suntos interiores. Não de decoração ou delas mes-

mas. Assuntos da cidade pequena. Tantas vezes

contestada, mas o lugar que volto.

Obviedades nunca foram presentes em minha es-

crita. Vou quebrar o vidro e abrir a Torá sagrada,

onde letras e números podem somar um significa-

do ou evocar um deus.

Escrevo onde uma criança brinca gritando de es-

corregar. Há uma alegria incontida em todo escor-

regador amarelo, vermelho e azul. O de madeira é

triste. Sempre acho toda madeira quis ser pranchão

de surfista iniciante. Assim, em protesto contra o

tempo se ferem, lascam e perdem o viço que con-

vidava ao riso.

AVESSO E COSTURADO

ERRADO

ADEN LEONARDO

92

Eu escrevo ali. Num parque de clube bom. Vez ou

outra um menino chora porque está sozinho, por-

que o sorvete caiu no chão. Ou porque sua mãe

disse “vamos”.

Escrevo na estrada de volta para casa. Onde essa

mesma mãe reclama das roupas sujas de areia. Do

mato sujo do parquinho. Como o cloro acaba com

as roupas! Meu cabelo emaranhado de quem rara-

mente saiu da piscina, pinga sonhos no estofado de

couro bege do carro.

“Mãe, couro bege é tão...

parece geladeira da vovó”.

E como todas as mães, a atenção já dispersou. Mi-

nha escrita voa do pensamento matriarcal para u-

ma janela. Foi porque a barragem encheu com a

chuva de ontem. Uns passarinhos cantaram pelo

caminho. Minha escrita às vezes voa de onde es-

tou.

Fujo pela noite e não sigo regras. Noite exige escu-

ridão de todos. Para me defender da noite escrevo

lanças e coisas de morrer, de matar, de não dizer.

Quando escrevo num beco de tijolos sujos é por-

que minha alma estava dentro de um barco triste,

deixando ondas me baterem.

Se sou um avesso, emendado de partes erradas, por

quase obviedade, escrevo.

93

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Próxima Edição — junho Inéditos & Dispersos