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1 VI SEMINÁRIO DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA GT 08 Novos pesquisadores na universidade e as condições de engajamento na produção científica Arte, Religião e Parentesco no Recôncavo da Bahia: Candomblé de Caboclo e Samba de Roda. Camillo César Alvarenga (PPGS/UFPB)

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VI SEMINÁRIO DO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RECÔNCAVO DA BAHIA

GT 08 – Novos pesquisadores na universidade e as condições de engajamento na

produção científica

Arte, Religião e Parentesco no Recôncavo da Bahia:

Candomblé de Caboclo e Samba de Roda.

Camillo César Alvarenga (PPGS/UFPB)

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ARTE, RELIGIÃO E PARENTESCO NO RECÔNCAVO DA BAHIA:

CANDOMBLÉ DE CABOCLO E SAMBA DE RODA1.

Camillo César Alvarenga

Resumo: Neste Estado de exceção, numa época de tantos fundamentalismos e intolerância

religiosa, é quando mais devemos trabalhar em favor das religiões afro-brasileiras, ao

fazermos notar que conosco caminham os ancestrais. Assim, procurei, com esta pesquisa,

pistas da experiência dos processos envolvidos na constituição da ancestralidade

ameríndia, ao narrar o reconhecimento de aspectos das transformações cosmológicas

implicadas nas formas sociológicas assumidas pela “relação afroindígena” (GOLDMAN,

2014) na região do Recôncavo baiano: o culto aos caboclos e o samba de roda. O trabalho

de campo foi realizado no período entre abril de 2015 e julho de 2016.O culto ao caboclo,

uma das variações do candomblé, e a expressão musical do samba de roda são encaradas

como formas sócio-culturais, religiosas e artísticas assumidas pelas transformações

afroindígenas e pelas implicações das relações entre arte, religião e parentesco inerentes às

religiões afro-brasileiras.

Palavras-chave: Rituais; Cosmologia ameríndia; Relação afroindígena; Música.

INTRODUÇÃO

"[...] Por milênios o homem foi caçador. Durante inúmeras perseguições ele

aprendeu a reconstituir as formas e movimentos das presas invisíveis, pelas

pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas de esterco, tufos de pelos, plumas

emaranhadas, odores estagnados. Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e

classificar pistas infinitesimais como fios de barba. Aprendeu a fazer

operações mentais complexas com rapidez fulminante, no interior de um denso

bosque ou numa clareira cheia de ciladas [...]. O caçador teria sido o primeiro

a narrar uma história porque era o único capaz de ler, nas pistas mudas (se

não imperceptíveis) deixadas pela presa, uma série coerente de eventos”

(GINSBURG, 1989, pp. 151-152)

Peço licença aos mais velhos, aos Encantados – exus, orixás e caboclos – peço licença, e

que o dono deste ilê (casa) me conceda voz e vez, para demonstrar certa forma de lógica

mais vernácula. Que o canto mais ancestral que ecoa nas esferas se corresponda com a

força cósmica das eras, e que possa, enfim, me permitir revelar os pensamentos: que as

portas se abram e que, em palavras, atravessem o caminho das estradas do Orun e do Ayê.

1 Trabalho apresentado no VI Seminário da Pós-Graduação em Ciências Sociais: Cultura, Desigualdade e

Desenvolvimento - realizado entre os dias 09, 10 e 11 de novembro de 2016, em Cachoeira, BA, Brasil. Este

texto é parte dos resultados de minha pesquisa de mestrado realizada junto ao Programa de Pós-Graduação

em Sociologia, no Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da Universidade Federal da Paraíba

(PPGS/CCHLA-UFPB), e contou com uma bolsa do CNPq entre os anos de 2014 a 2016. A pesquisa tinha

como tema as transformações cosmológicas e ontológicas ameríndias postas pelo complexo da “relação

afroindígena” na região do Recôncavo da Baía de Todos os Santos. A dissertação que deu origem a este

trabalho foi orientada pelo Prof. Dr. Marcos Ayala (PPGS/UFPB) e coorientada pela Profª. Drª. Francisca

Helena Marques (CECULT/UFRB).

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Este trabalho discute a experiência reflexiva e crítica da “relação afroindígena”,

estabelecida entre religião e música no contexto cultural da “Civilização Recôncavo”2. Ao

analisar, através da etnografia do culto aos caboclos no Terreiro de Caboclo Guarani de

Oxóssi, no Ilê Axé Alaketu Oyá Funan e no Raiz de Ayrá, respectivamente, casas de

candomblé da nação caboclo, da nação ketu e da nação nagô, localizadas em Cachoeira,

Muritiba e São Félix. Apresentam-se as relações de parentesco e religiosidade que

envolvem o candomblé de caboclo e a atual situação sociológica do Samba de Roda

Suerdieck.

A partir da hipótese de que esta relação afroindígena desdobra um complexo de

transformações étnicas e rituais, a partir de agenciamentos africanos e ameríndios, procura-

se demonstrar aspectos do instante empírico destas transformações a partir de nossa etapa

etnológica, através da construção sociológica de um mosaico composto por dados

qualitativos e sensíveis acessados em campo. Tanto as festas de candomblé de caboclo,

quanto uma apresentação pública ou até mesmo os ensaios do Samba de Roda Suerdieck,

expressam a agência dos ancestrais ameríndios, permitindo reconhecer uma linha de

continuidade e transmissão do conhecimento ancestral a partir dos agenciamentos

religiosos e musicais. A pesquisa aponta como esse saber religioso do terreiro (samba-de-

caboclo) é transmitido à sociedade mais ampla por meio do parentesco, das formas

musicais e práticas culturais vernaculares, como o samba de roda, para que,

consequentemente, se possa indicar a agência ancestral indígena presente na atualização e

agenciamento de conexões cosmológicas entre ameríndios e africanos no Recôncavo da

Bahia, região de notória contribuição para a emergência do candomblé de caboclo, bem

como do samba de roda em terras brasileiras.

Penso que esta leitura, mesmo em diversidade com nosso referencial teórico, contribuiu

para a realização neste trabalho, de um ponto de vista que possa considerar a música do

samba de roda enquanto uma prática cultural vernacular, o que tem como um dos pontos

de partida para o desenvolvimento deste argumento, a oposição direta à noção de “cultura

popular”. Visto que:

A história e a importância dessas músicas são constantemente desconsideradas

pelos escritores negros por dois motivos: porque ultrapassam os referenciais da

análise nacional ou etnocêntrica, com os quais temos muito facilmente nos

contentado, e porque falar a sério sobre a política e a estética das “culturas

2 Conceito sugerido por Lina Bo Bardi.

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vernaculares” negras exige um confronto embaraçoso com diferenças

intrarraciais substantivas, que tornam simplesmente insustentável o

essencialismo cômodo a partir do qual a maioria das apreciações críticas são

construídas. À medida que crescem essas subdivisões internas, o preço desse

embaraço tem sido um doloroso silêncio (GILROY, 2012, p.93).

Esta potência transita e investiga um percurso histórico que desenha uma situação

sociológica na qual se pode reconhecer os recursos de desenvolvimento, continuidade e

transformações de “tecnologias de acesso” (SANTOS, 2015) – como a mnemotécnica

ancestral e ritual (samba de caboclo) e o canto oriundo da memória oral em constantes

atualizações e oscilações cotidianas (samba de roda) – que possam ser observados através

dos esquemas de interpretação da religião, do parentesco e da arte. Segundo Laymert

Garcia Santos (2015): “Hoje, o que a gente considerava o sobrenatural indígena, o

xamanismo, é uma alta tecnologia de acesso a mundos virtuais, com lógicas que não são

ocidentais [...]”.

Ao se compor o processo de definição desta chave interpretativa, orienta-se pelo elemento

musical e como este deve se destacar na narrativa etnográfica. Intenciona-se,

sociologicamente, a partir da reconstrução etnológica, recuperar o instante perdido do

encontro, da troca e do contato entre o pesquisador e os sujeitos da pesquisa no contexto

do fenômeno observado. Para tanto, o trabalho vale-se da etnologia enquanto linguagem

na mediação entre sociologia e antropologia, porque o que havia no Recôncavo da Bahia,

eram ameríndios, antes de africanos e europeus.

Os tupinambás entraram em guerra e expulsaram tapuias e aymorés da região do Vale do

Paraguaçu no século XV, antes da chegada dos ocidentais e dos primeiros africanos, os

bantus, da região etnográfica Congo-Angola. Sem falar na referência ao Caboclo das festas

cívicas da Independência da Bahia, como o desfile e cortejo tanto em Salvador, quanto nas

cidades de Cachoeira e São Félix no Recôncavo baiano, aliado ao fato de que este caboclo

reverenciado em praça pública é, também, o mesmo que recebe oferendas e sacrifícios

ritualísticos em uma das casas de candomblé dessas cidades.

Consideram-se também circunstâncias específicas, como no caso do bairro do Caquende,

em Cachoeira, que revela o poder e interesse de um determinado grupo social ameríndio,

visto que “[...] a nosso ver no lugar denominado Caquende, onde em épocas passadas

existia referida redução indígena. Os índios ocupavam as funções de canoeiros,

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lavadeiras, pescadores e artesões como ceramista, por exemplo [...]” (NASCIMENTO,

2010, p. 44). Encontra-se ainda nesta mesma região do alto curso do rio Paraguaçu,

correspondente hoje em dia às cidades de Cachoeira e São Félix, a sugestão de que se

deu neste local a origem do Candomblé de Caboclo. Todos estes aspectos correspondem

à força destes sujeitos, tanto histórica, quanto cosmologicamente.

Segundo Luís Cláudio Nascimento (2010, p. 139), em seu livro Bitedô: onde moram os

nagôs, ao compartilhar uma entrevista realizada com a já falecida Gaiaku Luísa,

importante sacerdotisa do candomblé jeje baiano, o autor comenta que:

Gaiaku Luísa me informou que antes de começar as obrigações rituais no Seja

Hundê colocavam-se frutas, vinho e fumo de corda ao longo da cerca

demarcatória da roça, que era um presente para os índios e que no final das

obrigações principais faziam-se oferendas que eram colocadas sobre grandes

rochas numa parte do riacho do Caquende.

Logo, num ambiente tão marcado e identificado pela herança africana como o Recôncavo

baiano, o dado de origem indígena inequívoco é confirmado e, a partir de suas atualizações

na modernidade, pode-se fazer aqui esta narrativa sociológica da “relação afroindígena”

(GOLDMAN, 2014), que se apresenta em função das análises etnográficas que procuram

demonstrar a validade da hipótese do reconhecimento da ancestralidade ameríndia, através

das interpelações e intercalações entre o samba-de-caboclo no samba de roda.

E, principalmente, ao notar o samba de roda, artístico e estético, como variação e uma

manifestação sócio-cultural do samba de caboclo, xamânico e ritual, a presente pesquisa

indica aspectos das transformações étnicas e rituais de caráter ancestral e cosmológico

caracterizados pelas relações afroindígenas, à luz do contemporâneo, no que, a partir da

investigação e do trabalho de campo, diz respeito às intersecções entre arte e parentesco

no contexto das religiões afro-brasileiras.

Nesse sentido, o trabalho etnográfico e as reflexões teóricas americanistas tanto da

etnologia ameríndia, quanto da antropologia dos grupos afro-brasileiros, ativam o gatilho

disparado pelos dispositivos do genocídio ameríndio e da diáspora africana, tomados

enquanto constituintes das narrativas cosmológicas ancestrais em atualização na

modernidade ocidental, em especial, para os estados latino-americanos formados pelos

sentidos da colonização mouro-judaica com origens na península ibérica.

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O que acarreta o questionamento da Modernidade frente à cosmologia afroindígena dos

caboclos. As presenças destas cosmologias em sociedades complexas e culturas

contemporâneas são indícios das linhas que contornam os agenciamentos e as

transformações étnicas e rituais. Em suma, o que se pode fazer é uma etnologia de nós

mesmos, de nossa própria sociedade. A etnografia é, então, uma ciência narrativa, ars

sociológica desta tão exótica “colonial mentality”, vista à luz dos fenômenos musicais e

religiosos do samba de roda e do candomblé de caboclo no universo ancestral do

Recôncavo da Bahia.

APONTAMENTOS SOBRE A FORMAÇÃO DO CANDOMBLÉ

Neste momento do trabalho, busca-se a decodificação da religiosidade que se dá a partir

do reconhecimento da estabilização dos calundus por volta dos séculos XVIII e XIX. Estas

práticas operavam por meio do “complexo ventura-desventura” (NASCIMENTO, 2007;

PARÉS, 2006) através da atuação de médiuns e prática de adivinhações3. Sobre a formação

do candomblé, Bonciani (2008, p.313-314) diz o seguinte sobre a obra de Parés

Os “jejes” não se deixam fixar em uma nação, etnia, tradição, ou matriz africana.

A historicidade dessa identidade deve ser analisada na longa duração do

colonialismo ou na particularidade de suas apropriações históricas. Quando

Parés se debruça sistematicamente sobre essas dinâmicas históricas,

particularmente as políticas, ameaça romper com a naturalização da identidade

e da matriz africana. Mas seu ponto de partida, o nagocentrismo, e o ponto de

chegada, o candomblé jeje, dependem da construção dessa etnicidade. A

ambivalência em relação ao termo “jeje” representa o problema central do livro

e das relações entre as ciências humanas e as sociedades afro-ameríndias4:

como descolonizar a relação com as sociedades negras e suas manifestações

culturais, econômicas e políticas?

Então, para compreender essa configuração, não só a afroindígena, mas, também, as

relações estabelecidas entre as Ciências Sociais e Humanas e estas sociedades no

contemporâneo, a observação dos espaços sagrados “plantados” na costa oriental atlântica

da América do Sul seja de origem nagô ou jeje – a partir dos anos mil e setecentos com

maior intensidade para o segundo e dos anos mil e oitocentos para o primeiro grupo –

requer uma sociologia profunda e de longa duração, tendo em vista a caracterização das

“raízes” dadas no sentido rizomático, e não como centro ou base de alguma árvore, que

3Para ver mais ver: HALLOY, Arnaud. Dans l’intimité des orixás: corps, rituel et apprentissage religieux

dans une famille-de-saint de Recife (Brésil). Tese defendida na École des Hautes Études en Sciences Sociales

e na Université Libre de Bruxelles, 2005; SERRA, Ordep. Na trilha das crianças: os erês num terreiro angola.

Dissertação de Mestrado, Brasília, Universidade de Brasília.1978. 4 Grifo nosso.

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não existe, imaginária. O rizoma é caracterizado através da etnologia para pensar a

construção étnica afroindígena num fluxo temporal de devires a partir do século XV

alcançando o século XIX, após a chegada dos iorubas, e assim o estabelecimento das

tendências de estabilização da memória, da oralidade e da religião da cultura negra no

mundo contemporâneo.

Tanto os iorubas com o culto aos orixás, quanto os jeje e jeje-mahi com o culto dos voduns,

contribuem a seus modos para formação e organização do candomblé nos terreiros da

Bahia e Maranhão. Por meio de uma etnografia seletiva, em busca do sentido linguístico e

étnico-ritual da gênese e constituição da ancestralidade afroindígena, identificam-se sinais

diacríticos da etnicidade construídos no contato-contraste entre afro-americanos e

ameríndios. Tais populações relacionando-se de maneira que não se perdem nem se

fundem, mas sim se adquirem novas feições através das heterofundações afroindígena.

Tem-se então uma etnicidade multidimensional, onde singularidades ancestrais e míticas

se correspondem em multiplicidades de línguas, linguagens e rituais.

Nesse sentido, que se marque uma crítica aos missionários e administradores coloniais na

América e na África por suas classificações genéricas. Se hoje as definições teóricas ou

empíricas sobre os grupos se objetivam em função do porto de embarcação, território

linguístico ou práticas culturais, estas são apenas sintomas da pluralidade e

heterogeneidade étnica, ainda mais quando se observa no presente, a atualização desta

etnicidade numa região etnográfica afroindígena, como o Recôncavo baiano.

O contexto da diáspora se dá, em virtude das ações do reino do Daomé, atual república do

Benin, em guerras por escravos contra Oyó do reino de Ketu, durante o século XVI até

1860, tal é a origem do período histórico da vinda dos africanos escravizados para o Brasil

pelo tráfico luso-afro-baiano. Até o início do século XIX, no Recôncavo baiano os jeje em

contato com os nagôs estabilizam o candomblé como se conhece hoje na Bahia.

O que leva a institucionalização do candomblé em suas tradições e rituais. A partir da cura

e da adivinhação, os calundus dos anos mil e setecentos e mil e oitocentos são compostos

pelo complexo fortuna-infortúnio/ventura-desventura, como também apontam estudos

sobre a África Centro Ocidental (PARÉS, 2006, 2013; NASCIMENTO, 2007).

A iniciação, a hierarquia sacerdotal, calendários e idiomas rituais, estabilização de espaços

sagrados, politeísmo centralizado pelo culto num mesmo templo, o “caráter eclesial ou

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conventual”, tudo isso se consolida entre os séculos XVIII e XIX. Os rituais se tornam

formas de objetivar as características ancestrais diretamente ligadas com as “nações de

candomblé”, que por sua vez ao representar determinada modalidade de rito atuam na

atualização das potências dos povos que compõem as “nações” ou etnias africanas e

ameríndias.

O conceito de nação, que está na base da construção das identidades e

etnicidades afro-ameríndias, é um fato colonial, mesmo que utilize elementos

autóctones para a definição das mesmas. A perspectiva relacional,

multidimensional ou dialógica utilizada [...] pode encobrir esse fato. As

“nações” deveriam estimular ou criar antagonismos entre os diferentes grupos

autóctones, abrindo caminho para as mediações europeias. O destaque das

semelhanças lingüístico-culturais entre povos tão diversos, homogeneizados

pelo culto aos voduns e pela generalização gbe-falantes, e a construção de uma

trajetória histórica linear, das migrações de Oduduwa até a Bahia, permitem uma

naturalização da identidade, sua territorialização e a legitimação de mediações

políticas, econômicas e culturais por meio de determinadas lideranças. Os

processos de domínio podem ser dialéticos, mas não dialógicos. A motivação do

termo jeje é político-econômica e é nessa chave que o conceito pode ser

desconstruído. Mesmo relativizando o termo jeje, Parés acaba por adotá-lo,

resignificando-o e reinventando-o (BONCIANI, 2008, p. 310).

Na tentativa de rediscutir o binômio jeje-nagô, “questionando a tradicional interpretação

vigente nos estudos afro-baianos que têm privilegiado o polo nagô” (PARÉS, 2006, p.

157), não se pode esquecer as disputas entre a França e a Inglaterra pela influência colonial

sobre o Rio de Janeiro, Bahia e África Central.

Durante o século XVIII os ingleses apoiaram os comerciantes baianos e o rei do

Daomé, muitas vezes em detrimento de Portugal. A partir do século XIX, a

Inglaterra favoreceu a centralização política no Rio de Janeiro e as elites

econômicas do sudeste brasileiro. Os baianos se opuseram a esse projeto de

independência e a política de combate ao tráfico de escravos acirrou a posição

anti-britânica. Ora, a disputa colonial franco-inglesa fortaleceu o antagonismo

entre nagôs (iorubá-falantes, cultuadores dos orixás e o Benim), e jejes (gbe-

falantes, cultuadores dos voduns e a Nigéria). Há, portanto, na Bahia, a rejeição

ao vínculo jeje britânico e a valorização do vínculo nagô francês. Esse

nagocentrismo foi reafirmado nos momentos de embate entre o nacionalismo

brasileiro e o regionalismo baiano: final do século XIX (fim legal da escravidão

e advento da República); entre as décadas de 30 e 50 do século XX; e durante a

ditadura militar (BONCIANI, 2008, p.312).

No contexto das transformações atuais, Parés (2007, p. 204) observa que a etimologia dos

mesmos “parece refletir hibridismos étnicos havidos na fundação dos terreiros”. Nesse

sentido, Bonciani destaca que compõem o quadro de heterofundação: “a migração de certas

lideranças e a criação de novos terreiros no sul do Brasil; a busca pela pureza africana e as

viagens para iniciação na África; o predomínio de líderes brancos, principalmente

homossexuais; a alteração em aspectos litúrgicos; o problema da terra” (BONCIANI, 2008,

p.313).

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(…) a diferente origem étnica e afiliação religiosa dos agentes sociais

responsáveis pela transferência transatlântica estaria na base de certas

variações regionais brasileiras. Esse fato vem salientar que, mesmo dentro da

tradição jeje, havia já uma heterogeneidade de práticas religiosas, até agora

pouco conhecida” (PARÉS, 2006, p. 355)

Os gbe-falantes e os ioruba-falantes compõem as linhas que contornam a formação da

etnicidade de parte dos povos afro-americanos, a partir da sedimentação dos cultos aos

voduns e aos orixás em articulações associativas e dissociativas da ancestralidade em

função das relações de poder no contexto da colonização do Atlântico. O cruzamento

crítico de bases documentais e fontes da experiência etnográfica com a teoria sociológica,

abre espaço para uma perspectiva relacional e multidimensional das camadas de

transformações étnicas que levaram à invenção do candomblé.

Seja a tentativa de definir a gênese das nações a partir do embarque, de África, ou da área

geográfica antes ocupada, as referências de troncos linguísticos ainda são as melhores

saídas para compreender o fenômeno da diáspora afro-atlântica. Como no caso de pensar

a relação e influência no complexo afro-indígena da situação dos povos adjas-ewe do grupo

gbe-falante, nos quais gbe significa língua para um conjunto de povos do norte do Togo

atual, da República do Benin e do sudoeste da Nigéria, que chama de voduns as divindades

que cultuam (BONCIANI, 2008, p. 310). O etnônimo idjê ou o topônimo adjadché que

caracterizava os adjas, foi transfigurado por comerciantes baianos em jeje.

A região que sofreu influência do reino do Daomé, a partir do século XVIII, com a

consolidação e centralização política dos iorubas, em seu nacionalismo cultural encontram-

se condições para o reconhecimento de uma transfiguração de formas de culto entre os

iorubas e gbe, o que se expressa sob a forma de consequências na atualização do candomblé

no Brasil. Como aponta Deoscóredes dos Santos (apud RISÉRIO, 2007) – Mestre Didi –

em sua História de um Terreiro Nagô,

Para que atualmente, mesmo em Salvador-Bahia, um terreiro de orixá seja

‘puro’, cultuando exclusivamente os orixás, é preciso que ele seja fechado e

reaberto novamente [...] Mesmo aqueles que se consideram de nação Nagô ou

Ketu, estão permeados por Obaluayê, Nanã, Oxumaré, e mesmo Legbá ou

Elegbará, todos fortemente associados a nação jeje, sem falar de assentamentos

da nação Grunci [a própria fundadora do Axé Opô Afonjá, Eugênia Ana dos

Santos, Obá Biyi, não era nagô, mas grunci] e de tradicionais terreiros que

cultuam caboclos – donos da terra - , nos quais muitos de seus filhos e filhas,

independentemente de seu orixá, têm um caboclo que se manifesta (RISÉRIO,

2007, p. 220)

Na Bahia dos séculos XVIII e XIX, os africanos e afro-americanos exercitam a etnicidade

sob multivariadas formas e dimensões, como através das subnações: savalus, agonlins,

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mundubis, entre outras. Segundo Risério (2007, p.221), “também na sociedade dos eguns,

onde, em meio aos grandes ancestrais do povo iorubaiano, volta e meia aparece um antepassado

caboclo, Babá Iaô, cantando em português e exibindo um diadema de penas em suas danças

coloridas”. Nesse sentido o conceito de nação precisa ser sempre explorado e reconsiderado,

principalmente se for contextualizar essa noção com a ideia de “nação” no plano do estado-

nacional do Ocidente. As “nações” de origem africana estão em correlações com as práticas

sociais em dinâmicas associativas onde “a ‘nação’ inventada se transforma em ‘nação’

vivida” (BONCIANI, 2008).

O interesse sobre o trabalho de Parés nos parece evidente, visto que, o autor ao considerar

o binômio “assimilação/resistência”, nos permite operar a sugestão de um outro binômio

desta vez complementar: emancipação/autonomia. Já que, se o mesmo aponta estreitas

relações entre os povos de terreiro, e nos é sabido que quer sejam jeje ou ioruba, estes

possuíam envolvimento com intelectuais, a polícia, o exército além de serem também

comunidades de voto a partir de certo momento da república. Permite-nos seguir na

exposição do pensando do autor, que coloca dois momentos marcantes, que podemos aqui

chamar atenção de certa forma acerca da cultura afro-ameríndia, primeiro com Vargas e o

Estado Novo, nos anos 30 e em seguida nos anos 70, durante a ditadura militar e a partir

da figura de Antônio Carlos Magalhães.

O que nos parece bem curioso é que os picos de emancipação da cultura ameríndia e afro-

americana ocorrem nos regimes de exceção, enquanto Parés afirma: “No contexto dos

africanos e afrodescendentes no Brasil, o campo da religião, das crenças e das práticas

rituais associadas ao mundo invisível parece ter sido o domínio por excelência da

resistência cultural” (PARÉS, 2006, p. 95).

Estas inovações, interpretadas como “sincretismo”, têm sido objecto da suspeita

de muitos antropólogos da tradição afro-brasilianista, que sempre valorizaram

as “tradições” baseadas na iniciação, essencialmente a tradição ketu, das grandes

casas de candomblé de Salvador da Bahia. Como descreveu Boyer (1996), nas

últimas décadas o prestígio destas casas e a sua ortodoxia têm vindo a impor-se

à diversidade das práticas baseadas no “dom” dos médiuns. De facto, este

movimento anti-sincretismo está a gerar transformações históricas na prática das

religiões afro-brasileiras. Liderado pela mãe-de-santo do Ilé Axé Opô Afonja,

Mãe Stella, este movimento promoveu uma reforma nas práticas do culto

baseada na renúncia ao culto dos espíritos não considerados africanos (como os

caboclos) nas casas de candomblé ketu, além da restrição do culto católico nos

terreiros e da retirada das imagens católicas das casas dos santos (Bacelar e

Cardoso, 1999; Santos, M. S., 1995; Santos, 1987) (SANSI, 2009, p.141-142).

Ou seja, parece que nessa chave de leitura historiográfica não se percebem os regimes de

agência e visibilidade que essa própria história constrói. Se na relação África-Brasil, desde

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o final do século XIX, o nagôcentrismo da tradição nagô-ketu na cultura negra se mostra

hegemônico face à tradição jeje – como se pode observar na distância e diferença dos

estudos sobre os orixás e voduns –, isso se deve não só ao agenciamento de uma construção

hegemônica do nacionalismo cultural ioruba (Cf. MATORY, 1998), quanto da

participação de intelectuais sejam acadêmicos ou do mundo negro.

As irmandades católicas e os batuques também influenciaram a estabilização do

candomblé no Brasil, tanto na Bahia quanto em Pernambuco. A organização social e ritual

afro-ameríndia foi se complexificando com o avançar da modernidade. De formações

familiares com relações de parentesco co-sanguíneo às congregações (extra) ou para-

familiares formadas por “afinidade potencial”, além de uma sensível ampliação e

heterofundação das divindades cultuadas e como aponta Bonciani (2008, p. 311) por meio

da “estabilidade espacial e do calendário litúrgico e pela consolidação do complexo

assento-ebó”.

Marcio Goldman (2011) entre outros aspectos comenta que as casas de cultos religiosos

(os terreiros) formaram ilhas, “nichos de resistência”, linhas de fuga da modernidade (e

ainda sim dentro desta), como recurso à invenção do candomblé, coetânea a modernização

latino-americana. Então, a pesquisa etnográfica permite à leitura sociológica crítica do

candomblé – em especial o bantu-nagô – em geral com origens e que atualizam tradições

Congo-Angola e Yorubá.

Nesse sentido, a manifestação das cosmopolíticas dos ancestrais afroindígenas se

corporificam nos grupos sociais em territórios de contato – e o Recôncavo, assim como a

Amazônia, é cenário privilegiado para a observação de tais agenciamentos. O

reconhecimento da expressão de uma forma de racionalidade específica, distinta do

ocidental, se apresenta nos “processos de interação, captura e fuga” (cf. Lima e Sztutman,

2014) estimulados pelos movimentos coloniais. De tal maneira, destacadamente,

reconhecemos contornos da “relação afroindígena”, cujas formas de pensamento se

identificam pela condição de possibilidade do trabalho de campo que é, também, trabalho

de “santo”, ou melhor, de caboclo.

Nesse sentido, num impulso “para dentro” do campo, em direção ao interior do candomblé,

forma religiosa afro-atlântica na qual, através da qual e junto com a qual perpetua-se o

culto aos caboclos, constata-se que, a partir da realidade exterior ao fenômeno, ou seja,

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“para fora” do terreno do terreiro, se dá a extrapolação dos padrões e formas estabelecidas

como “clássicas” para a realização do culto aos ancestrais e divindades africanas. E,

extrapola-se ainda mais a leitura e compreensão dos rituais tipicamente afro-americanos,

nas suas variações de vetores de sentido acerca da alteridade afroindígena radical. Ou seja,

cosmológica e ontológica, em seus modos de se relacionar entre si e com o universo de seu

cosmos mítico contido na cosmologia dos caboclos, aliados ao “sistema” das religiões afro-

brasileiras dos cultos aos orixás e voduns africanos.

Por meio da crítica da possibilidade de perceber e aceitar o “devir afroindígena”, como

condição para a constituição do meio ambiente sociocultural e cosmopolítico da diáspora

afro-atlântica no Recôncavo baiano, é que, esse “devir”, reforça e aprofunda o alcance do

reconhecimento desta ontologia que se funda a partir da ancestralidade, seja ela

compartilhada ou isolada pelas consequências da colonização, no que tange ameríndios e

africanos.

No entanto, se a luta ideológica pelo reconhecimento racial dos negros, enquanto

afrodescendentes, em geral, dificulta a emergência da também ascendência indígena

ameríndia, então: como compreender o problema da continuidade entre esses vetores de

formação da ontologia – e por que não dizer da personalidade do ser brasileiro ou afro-

brasileiro ou índio – sem incorrer nos extremismos etnocêntricos, na fixação da

mestiçagem ou, até mesmo, da democracia racial?

É com a intenção de fazer rolar as pedras cheias de limo por baixo dessas pontes, que a

apresentação da frequência ameríndia – contemporânea ou ancestral – se atualiza por

visualizar atravessamentos que atingem inequivocamente as linhas que contornam e

constituem a expressão local, mais africana, que é o candomblé. No Recôncavo baiano – e

creio não ser “diferente” em outros contextos de contato – a senda da reciprocidade e da

presença (visitas das vozes das entidades ameríndias que frequentam os corpos e assentos

dos egbés5), é consequência respectiva da colonização e da diáspora africana. Tal como se

dá nas terras do baixo sul da região, às margens do rio Paraguaçu, em especial nas cidades

de Cachoeira, São Félix e Muritiba, que constituem nossa área geográfica e humana de

investigação.

5Corpos materiais e imateriais dos terreiros de candomblé.

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Ainda assim, nos restam mais questões que respostas. Seria possível encontrar solução para

a questão: há candomblé sem caboclo? Se sim, seria preciso uma investigação por demais

pormenorizada a cada casa, e, a cada filha e filho de santo, para saber se algum deles recebe

ou não caboclo, e se a casa de que faz parte, festeja ou não cultos em reverência e louvor

a entidade, entre outros aspectos a serem, necessariamente, observados.

Se não, aí é que teríamos ainda mais dificuldade, por que como se sabe e já ficou por

demais provado que a inclinação do índio sul americano à inconstância de sua alma

selvagem, nós teríamos então uma tarefa quase impossível de estabilizar o que não se deixa

governar, nem controlar dentro de sistemas e formas estruturalmente predefinidas – como

se diz no candomblé, quando da festa de caboclo: “quem tem, pega”, como que derivado

de uma inconstância cosmológica – o que, por si só, explica ter-se a necessidade de se

estabelecer uma experiência própria de manifestação e expressão do ancestral encantado,

e como bem notamos, a exigência de sua música própria que é o samba, com todas as

características que lhe são inerentes desde as saudações aos atabaques, também usados no

culto aos orixás, como a viola e o equipamento percussivo presente nas apresentações dos

sambas de roda, abundantes pela região.

Observou-se – nas casas investigadas: um terreiro de culto de caboclo, um terreiro ketu e

um nagô/vodum – que ocorrem variações da imaginação conceitual acerca do rito e da

própria imaginação ritual acerca do mito em torno do Caboclo. Ou seja, se a transformação

na prática entre o culto aos orixás e o culto ao caboclo, se revela na ordem da ontologia

destas entidades ancestrais – emergem diferenças muito sensíveis, a saber, os caboclos,

quando incorporados em seus cavalos ou aparelhos, dançam de olhos abertos os caboclos

e falam em português, enquanto os orixás dançam de olhos fechados e não falam numa

linguagem articulada, nem mesmo idiomas africanos. Logo, os padrões de atualização dos

encantados ameríndios em desvio, ou divergência imposta frente aos orixás e voduns,

revela as propriedades endógenas ao fenômeno, demonstrando a sua natureza cosmológica

particular, das experiências de gestão da alteridade no contexto das religiões afro-

brasileira.

Nesse sentido, este trabalho desenvolve uma teoria sociológica da cosmologia

afroindígena, baseada nas narrativas que se desdobram nas letras dos sambas – linguagem

vernácula dos encantes – que os caboclos “trazem” de Aruanda e que ensejam: genealogias,

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experiências cotidianas e modos de viver, que fazem reconhecer de forma inalienável o

elemento do elo indissociável da unidade fundamental afroindígena em sua relação própria

e seu devir de ontologias ancestrais sob formas de agenciamentos cosmopolíticos – do

parentesco, da religião e da música – como base e fundo empírico constituinte das formas

sociais e culturais no Recôncavo da Bahia.

O culto aos caboclos, propriedade fundamental das relações afroindígenas, evoca

diretamente os dados cosmopolíticos da ontologia da ancestralidade ameríndia, ao

caracterizar-se pelas experiências que denotam o parentesco e validam o reconhecimento

da ancestralidade como potência ontológica inscrita no devir das contribuições indígenas

(africana e ameríndia) como um possível virtual que se atualiza em escalas e gradações de

sentido próprias, expressas pelo ritual do candomblé e pela música do samba de caboclo e

de roda.

Esta teoria, que por ora, aqui, se desenvolve, reconhece o culto de caboclo como núcleo

irredutível da continuidade sócio-cosmológica das agências ameríndias no contemporâneo,

principalmente, em contextos nos quais sua presença material, territorial, cultural, e

humana é dada como “extinta”. O que indica a força cosmopolítica de reinvindações de

autoridade e anterioridade do território ocupado pelos seus descendentes e que dialoga,

diretamente, com a atual situação vivida por diversos grupos representados pelos

encantados em seus rituais como os Tupinambás ou Aymorés.

Deriva-se aqui, do fundamento ontológico da ancestralidade, a operação do princípio da

reciprocidade, da cura – intrusão direta no corpo humano contemporâneo –, da música,

máscara sonora da agência por meio da arte, e da dádiva – quando é chamado a fazer

trabalhos para os humanos – recebendo em troca festas e reverências a altura dos orixás

africanos, como presentes, assentos, arreios – todo um corpus de “tecnologias de acesso”

– além de elementos consumidos in loco. Desde os sacrifícios animais para fundamentar e

alimentar o comércio espiritual desta economia cosmológica específica baseada no axé,

quanto as frutas e vegetais, além do licor da jurema, do tabaco e das bebidas como o vinho

e cerveja que é ingerida na temperatura ambiente.

Cultores de uma ecologia moral e uma ética ancestral, os caboclos definem-se por preceitos

e valores ligados a guerra, a família e a personalidade insubmissa necessária à luta no

contexto do mundo colonial de onde emergem, seja da época da catequização jesuítica de

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ameríndios ou durante a escravidão de africanos. Através da experiência de atualização das

vozes e dos corpos ancestral e moderno, em função do corpo humano contemporâneo

(mediação, intermediador), nesse sentido, o interlocutor desta teoria é uma entidade de

alcance multidimensional, em graus de níveis cósmicos – Terra e Aruanda – e

socioculturais – religião e arte. Além de representar uma potência de atualização de

presentes contemporâneos através da ativação mnemônica do ancestral ameríndio em

contextos diversos como rituais religiosos ou artísticos e culturais.

Este trabalho quer fazer reconhecer teórica e criticamente, um interlocutor – mediador da

ancestralidade – “em seus próprios termos”, ou seja, em seus próprios discursos – nas letras

de samba evocados durante os cultos. O que indica, entre a ontologia e a cosmologia, uma

narrativa sociológica capaz de constituir o sujeito de pesquisa em sua agência, enquanto

construto da prática e constituinte de formas socioculturais mais amplas, como no caso da

íntima relação dos caboclos com o samba de roda na região do Recôncavo baiano.

O que caracteriza, em força e intensidade, sua atuação cosmopolítica de compartilhamento

de perspectivas e níveis cósmicos dos mundos, tornando-os comuns aos/entre humanos e

não-humanos. Diferentemente dos orixás, os caboclos cantam e dançam em português e de

olhos abertos, dialogam com os sacerdotes do culto e com as pessoas presentes nas festas,

que se consultam na intenção de receber ajuda, sob a forma de conselhos ou cura, por meio

de medicinas naturais, como banhos de ervas e chás, além de realizarem trabalhos de

expulsão de eguns e exus.

As formas de colonização ibérica, sustentadas no ponto de vista da escravidão e baseadas

na perspectiva da catequização, apresentam-se enquanto resultante e consequente relativas,

a partir da “assemblage”, ou ainda, por meio de uma constituição rizomática de uma cultura

euro judaico-cristã-afroindígena. Assim, uma complexa paisagem sonora emerge na Costa

Atlântica da América do Sul, em observação sociológica através dos cultos de caboclos,

existentes na região do Recôncavo da Baía de Todos Santos, e, em especial, do Samba de

Roda Suerdieck, da cidade de Cachoeira - Ba. O trabalho etnográfico caracteriza-se pelo

catálogo das nuanças das expressões religiosas e culturais, através de registros

fonográficos das frequências acústicas das manifestações e captação audiovisual da

memória coletiva dos grupos em regimes xamânicos e artísticos.

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O OUTRO MUNDO QUE É POSSÍVEL: O PLANO ANCESTRAL DO RITO

Como ensina B. Albert, no Postscriptum, (KOPENAWA, ALBERT, 2015, p.512) “quando

o eu é um outro” a etnografia nasce como “confissões” (LÉVI-STRAUSS, 1973, p. 48) do

“vivido e do observado” (TILLION, 2009, p. 276). Desde uma época, meados da primeira

década dos anos 00, na qual me encontrei com a distinção entre as velhas convenções

positivistas e as formas do desenvolvimento de tecnologias de acesso ao conhecimento da

experiência social, que é então, segundo a lógica etnográfica que aqui se expõe,

conhecimento do outro, constitui-se a busca por um modo de compreender o

relacionamento das relações humanas com o imponderável.

De maneira que, distante dos “excessos introspectivos”, comuns aos empreendimentos

teórico-conceituais da ciência moderna aplicada na desconstrução das realidades nativas

em substituição, pode-se, em contrapartida, desenvolver-se uma sociologia das relações

afroindígenas que, através de uma “teoria da imaginação” – e não através de um “cansativo

falatório crítico-narcisista” – não silencia os sujeitos da pesquisa e suas vozes. Vozes que

são os canais interlocutores às tecnologias de acesso buscadas neste trabalho.

Depois da apresentação de um itinerário etnológico, no qual as etapas do real são

antecedentes etnográficos, torna-se possível e plausível essa narrativa sociológica dos

móveis das circunstâncias eco-políticas e tecnologias de acesso à ancestralidade ameríndia,

tão interditada no contemporâneo, sob as formas do registro e redação dos fragmentos de

um tempo.

Ao construir empiricamente o problema da atualização da ancestralidade ameríndia no

Recôncavo da Bahia, quer-se, ao superar a indiferença, incidir sobre os viveres de uma

experiência, na qual a aventura das descobertas, mediada pela força do desenraizamento –

seja no caso ameríndio ou africano – expõe mais que as viagens em cada temporalidade,

seja mítica, ancestral ou moderna, colonial, mas as intercalam. A incursão nos Candomblés

de Caboclo, com intenção de investigar as transformações das formas de alteridade radical

– cosmológica ou ontológica –, se realiza sob a ótica de que, os encontros, as trocas, os

contatos, os choques, os contratos e os conflitos, são os pontos de partida.

Logo, a leitura das formas sociológicas da relação afroindígena – como o candomblé de

caboclo e o samba de roda – elabora as implicações da confrontação das cosmologias,

frente ao regime da agência/ação social da ancestralidade. Num plano epistemológico,

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reconhece-se que este regime de alteridade faz notar o descentramento do sujeito histórico

ocidental em direção aos índios sul americanos e afrodescendentes – vetores de

intensidades que conformam a relação afroindígena. Visto que

As narrativas de contato e mudança cultural têm sido estruturadas por uma

dicotomia onipresente: absorção pelo outro ou resistência ao outro. [...] Mas, e

se a identidade for concebida, não como uma fronteira a ser defendida, e sim

como um nexo de relações e transações no qual o sujeito está ativamente

comprometido? A narrativa ou narrativas da interação devem, nesse caso,

tornar-se mais complexas, menos lineares e teleológicas. O que muda quando o

sujeito da ‘história’ não é mais ocidental? Como se apresentam as narrativas de

contato, resistência ou assimilação do ponto de vista de grupos para os quais é a

troca, não a identidade, o valor fundamental a ser afirmado? (CLIFFORD, 1988,

p. 344 apud VIVEIROS DE CASTRO, 2013, p. 196).

Os seres, os saberes que sustentam a ontologia em reconhecimento, indicam um caminho

em direção à uma epistemologia que leve em conta a universalidade, apresentando assim,

uma, senão a maior das antinomias da Modernidade – a construção da diferença entre o

“eu” e o “outro” – sob a compreensão de que, a experiência social, depende de uma

interrelação de perspectivas, ou, até mesmo, sua intercalação.

Como pode-se observar, as relações afroindígenas envolvem o culto aos caboclos sob as

formas da religião, da arte e do parentesco ligadas à ancestralidade ameríndia, à identidade

étnica negra e às relações de contato-contraste cultural na interpretação de aspectos dos

desdobramentos da diáspora africana via atlântico sul, no alto curso do rio Paraguaçu na

região do Recôncavo da Baía de Todos os Santos.

O culto aos caboclos pode ter se estabelecido por meio da constituição de formas variantes

da religiosidade ameríndia em função das transformações inerentes à constituição das

religiões afro-brasileiras. Nos casos que apresento neste trabalho, observei aspectos do

padrão de culto aos ancestrais da nação angola, com o “descentramento” das entidades

africanas, para a emergência da expressão dos ancestrais ameríndios. Ainda que mantendo

cargos e funcionamento similar ao culto de matriz africana, como por exemplo, as funções

de ogã e equede, bem como a exigência ritual do padê. As formas hierárquicas também

correspondem ao rito africano.

No entanto, muito no culto aos caboclos, pouco se parece com as “estruturas” formais do

rito nagô ou ketu, como podemos ver na cerimônia do Terreiro de Caboclo Guarani de

Oxóssi, onde apesar de conter elementos afro-rituais, diferencia-se da dada forma como se

atualizam os caracteres tradicionais das práticas religiosas de matriz africana.

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O destinatário do ritual, o ancestral ameríndio e não o deus africano; a iniciação possui

uma diferença fundamental, a saber, para o sujeito portador da capacidade de atualização

da ancestralidade ameríndia, em geral, não há necessidade do rito de “raspar” ou “fazer o

santo”, como no candomblé para os adeptos que incorporam o orixá. Ou seja, observa-se

a não feitura do “borí” para a incorporação do caboclo.

Quanto ao “assentamento” do caboclo, este se realiza na parte externa do terreiro, isso quer

dizer fora do barracão, ainda que nas festas públicas sejam paramentadas cabanas de palha

nas quais se monta um altar com as imagens dos caboclos e parte das oferendas a eles

oferecidas, já que em um outro espaço, esse altar específico seja feito com outros elementos

do sacrífico destinado aos ancestrais ameríndios – “Ali são colocados os objetos sagrados

pertencentes ao culto e na época das obrigações, todo ritual é concentrado naquele

ambiente”. Ao mesmo tempo o “assentamento” também pode ser feito em “pés de árvore”

em função da “escolha do caboclo chefe da casa” (RIBEIRO, 1983, p.62).

Sobre “matança” para os caboclos, rito privado que acompanhei em uma das casas, esta

etapa do culto tem um caráter de vivificação do aspecto “canibal” e antropofágico ligado

a comensalidade presente tanto nas músicas cantadas durante o rito, quanto no ato dos

caboclos se alimentarem através da incorporação. Para os ancestrais ameríndios, que não

comem sal ou azeite de dendê, sacrificam-se animais, preparam-se pratos como aboboras

com mel e tabaco. Neste ritual também se faz reverência ao orixá Tempo, conhecido

também como Irôko.

As oferendas aos caboclos, condição do ritual no esquema da lógica da reciprocidade das

trocas do culto, tem lugar nas matas, em especial, ou em locais próprios como nascentes

de rios, cachoeiras ou pedras específicas reconhecidas como portais de acesso ao mundo

dos ancestrais. Nos casos que investigamos, o rio Paraguaçu para o terreiro Raiz de Ayrá,

e a cachoeira de Belém para o Guarani de Oxóssi, sobre o qual, aliás, foi realizada uma das

descobertas da pesquisa acerca de um registro fotográfico deste momento, feito alguns

anos atrás, desconhecido até então pelos próprios membros do terreiro. Nesse sentido, em

geral, a divinização da natureza, sob a forma de uma “ecologia simbólica” (Cf. P. Descola,

2006), é exemplo da agência destes e nestes espaços onde se realizam as prestações e

contraprestações às vindas a Terra dos encantes presentes nas festas das casas.

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As marcas das imagens de índios e boiadeiros, animais como cobras e gaviões, bem como

no caso específico dos terreiros estudados, nota-se além de velas, balaios e pratos como o

moqueado de “cansanção”, no Guarani de Oxóssi, mas também em outros terreiros, há

ocorrência da bandeira nacional brasileira, o que remete a menção à natureza orgânica local

das terras americanas, como território de partida e retorno dos encantados de e para outros

níveis cósmicos como Aruanda ou as aldeias no mar.

Sobre as formas e forças femininas no panteão dos encantes ameríndios – mesmo sem se

diferenciar sob o contorno do ritmo e práticas e expressões corporais e comunicação como

no caso dos ancestrais africanos – no nosso caso empírico, é possível comentar que durante

meu trabalho de campo em 2015, no Guarani de Oxóssi, a cabocla Jurema, a mesma do

diálogo com o Tupinambá supracitado – abordou-me acerca do registro que eu fazia da

festa com um dispositivo eletrônico. Recordo-me que esta cabocla, veio até mim e disse:

– Está fazendo a matança de seu pai Oxóssi, não é?

É claro que esta proposição da encante merece mais explicações do que todas essas páginas

sejam capazes de dar. Mas sou capaz de dizer que, quando esta vinha em minha direção,

eu desliguei o dispositivo. O que deixa evidente a postura das entidades diante do trabalho

de campo do investigador, o trabalho é não só percebido como reconhecido como espécie

de comércio espiritual que encontra lugar na economia cosmológica do culto. Por outro

lado, a menção feita por Jurema a Oxóssi, nesse caso o orixá africano, que ela identificou

como “meu pai” espiritual, ou seja, dono de minha cabeça, àquela altura podia ser

confirmada pelos búzios jogados por Mãe Filhinha de Iemanjá, a quem me consultei antes

de ir à João Pessoa para começar o mestrado, quando da ocasião de minha primeira

consulta ao Ifá, levando perguntas sobre o futuro de minha decisão de deixar minha terra

e curioso de saber se daria tudo certo.

Quase dois anos depois desta consulta eu voltaria a fazer uma nova, desta vez com Mãe

Lúcia, atual zeladora da casa de Mãe Filhinha, onde a mesma me disse que Ossain era meu

santo de cabeça, já que a conta que me dera Mãe Filhinha, que era da nação nagô-vodun,

na nação ketu, de Mãe Lúcia, representava Ossain. Orixá saudado no culto de caboclo em

diversas cantigas sob o nome Katendê. Narro este episódio, para ilustrar as relações de

parentesco cosmológico entre os encantes e ancestrais e, também, o reconhecimento entre

caboclos e orixás presentes na manifestação do encantado ameríndio que, eu então estava,

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em busca do encontro e compreensão. Distinguem-se ainda caboclo e orixá, pela ausência,

no caso do primeiro, e presença do Erê – espirito infantil – nos iniciados que incorporam

as entidades africanas.

Há detalhes sobre a abertura das festas de caboclo que valem ser melhor considerados.

Além do padê – rito principiatório de ofertas a Exú e exus – e do ritual de incensar

realizados nas três casas estudadas, no entanto, a partir daí, curiosamente cada casa toma

rumos próprios em cada caso. No Guarani de Oxóssi, no bairro do Rosarinho, há tanto xirê

como nas outras duas casas, mas assim como no Raiz de Ayrá, diferentemente do Oyá

Funan, há uma espécie de sessão de invocação dos espíritos sob a forma de uma “mesa”

marcada por rezas e ladainhas com traços do catolicismo português. Em seguida, as filhas

e filhos de santo, que vão receber os caboclos ou caboclas, se reúnem e fazem preces

iniciáticas para a chegada dos encantes. Igualmente, a cena da reunião em torno da mesa

se repete no terreiro nagô-vodum Raiz de Ayrá, em São Félix, onde ao invés de apenas os

“rodantes”, Mãe Mariá de Oxum, convoca toda a sua família de santo e também o público

da festa para rezarem preces aos caboclos ao modo dos rituais de espiritismo kardecista.

As observações de Ribeiro (1983, p. 63) são muito semelhantes.

Observamos em algumas casas-de-candomblé, pertencentes às diversas

ramificações de “nações” africanas, que, antes de iniciarem a festa-de-caboclo

propriamente dita, abrem o terreiro, fazendo o rosário na nação de angola, para

depois cantar para a chamada dos "donos das homenagens". Não sabemos qual

a razão desse procedimento, porque, apesar do caboclo haver se ligado bastante

ao angoleiro, não implica que a sua festa seja obrigatoriamente feita dentro dos

preceitos daquela "nação" africana. No candomblé-de-caboclo existem cânticos

referentes a Exu e aos Inquices dentro das normas estabelecidas para um culto

diferente dos demais, e não justifica a inclusão de outros numa língua que não é

usada pelos indígenas. Devemos levar em consideração a única coisa que conduz

a ter-se que cantar para os Santos, que é justamente a maneira educada dos

caboclos em fazerem a saudação formal aos orixás, porém dentro da estrutura

de seu próprio culto, não sendo, portanto, obrigados a seguir os preceitos

africanos. Geralmente, nas "casas" onde o culto é exclusivo de caboclo,

costuma-se cantar, no início da função, três cantigas para cada entidade, com

palavras usadas na linguagem comum, que podem ser em português,

entregando-se posteriormente o comando aos "donos da festa", que, por si

mesmos, se incumbem de fazer a animação de acordo com as suas preferências.

Os caboclos cantam e dançam ao mesmo tempo com um repertório inesgotável,

pois jamais ouvimos a repetição das mesmas cantigas, num mesmo local,

durante o decorrer de uma festa.

Além disso, o que parece mesmo distintivo e marcante no rito é a força e presença

característica do ritmo do samba-de-caboclo. No caso do culto, em geral, apenas alguns

momentos lembram as linhas rítmicas do candomblé angola, mas tem-se em fundamento:

a introdução dos sambas desencadeados para invocá-los. Com a chegada dos encantes, as

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saudações aos orixás africanos são levadas à tona tanto por caboclos, quanto pelas cantigas

entoadas pelos agentes da festa, que revelam os graus e intensidades da relação

afroindígena implicada na manifestação. Ainda que os caboclos também cantem para

orixás e inquices como Katendê, Oxóssi, Ogum ou, até mesmo, Zambi, a complexidade

das formas de embarcar nas águas do culto é marcada também ora pelo hino nacional e da

cidade de Cachoeira no culto do Guarani de Oxóssi, ora pelo hino ao Senhor do Bonfim,

no caso do Raiz de Ayrá. Ademais, a participação do público é bem intensa.

Os caboclos quando em Terra, nos terreiros, como observamos, saúdam as pessoas na

sessão. A mãe de santo, os ogans e os atabaques, além dos presentes, em geral, chamando-

os de “senhor”, “senhora” ou “cumpadre”, e cumprimentam saudando com um abraço e as

exortações, ou ajoelham-se e estendem o braço em pedido de cumprimento. Os convivas

retribuem as danças e cantigas dos caboclos com saudações como “xêtro maromba – xêtro

na vizaura – maromba xêtro” ou “Okê Caboclo, Okê”, entre outras. Os encantes também

oferecem bebidas como a jurema, além de vinhos e cerveja.

Antes de chegar aos limites deste trabalho, cabe notar que, em nossa etnografia no Ilê Axé

Alaketu Oyá Funan, os caboclos – Raio de Sol e outros – me tomaram como portador do

petum, me fazendo incessantes pedidos durante toda a festa de que arrumasse para eles “o

de fumar”, por que eles queriam “fazer fumaça” no terreiro. Jocélio Teles dos Santos

chama atenção para um detalhe que a nosso ver só reforça o reconhecimento da relação

afroindígena investigada. Santos (2005), indica o fato de que alguns caboclos fumam como

em antigas tribos do Zaire – localidade da região etnográfica Congo-Angola de onde

vieram os bantus – colocando a ponta do charuto em brasa na boca e tragando a fumaça de

forma impressionante. Além de fumarem e oferecerem charuto durante as festas, os

caboclos utilizam ritualmente o tabaco que, como sabemos, é elemento nativo da América

e princípio fundamental do xamanismo ameríndio. Por exemplo, quando no seu ato de

tragar e expelir a fumaça sobre os convidados, esta é uma agência de cura e transmissão

de fluídos positivos que purgam a vida material e espiritual dos convidados de maus

fluídos.

O reconhecimento das transformações afroindígenas da ancestralidade ameríndia e a sua

orientação para a elaboração de uma ontologia – expressão do ser ameríndio – se constitui

no rito, à luz da interpretação narrativa sociológica das relações cosmológicas do culto aos

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caboclos. Passando agora ao desfecho de nossas conclusões, reforça-se para este trecho as

considerações sobre a linguagem da arte musical, já que é nas músicas – o samba tomado

aqui, enquanto linguagem do ancestral e idioma ritual – onde reside nosso maior fascínio,

por serem estas, expressões de um “repertório inesgotável”, que ao nosso ver compõe o

corpus mitológico dessa cosmologia dos caboclos que, aqui, se delineia.

A ontologia dos caboclos é a da ancestralidade ameríndia. No caso do caboclo Tupinambá,

do terreiro Guarani de Oxóssi, incorporado por Valmir Pereira, que me disse incorporar

um ancestral ameríndio de “origem amazônica”. Assim, como a falecida mãe de santo do

terreiro em questão, Mãe Madalena, que disse o mesmo sobre seu caboclo em depoimento

a R. Sansi (2009).

A fala do caboclo Tupinambá de Valmir é, impressionantemente, anterior ao domínio do

português e, o mais surpreendente, é que a tradução de suas cantigas só é alcançada pelos

mais velhos da casa, por exemplo: D. Odete, iniciada nas religiões dos orixás, (também

citada por Sansi). Ela compreende a letra que o caboclo está “puxando” e, arregimenta o

coro da casa, para responder as salvas lançadas pelo caboclo no terreiro. O que dota nosso

registro e transcrição dos sambas de caboclo de valor, através da percepção de que, em

geral, trabalha-se para a documentação desta memória ancestral, ao passo que muitos dos

presentes ou jovens praticantes do culto, em alguns casos, pouco sabem ou conseguiriam,

por vezes, atribuir sentido, por exemplo, àquela fala desarticulada sob a forma de um

português inacabado.

Neste momento, ao esboçar mais uma consideração, o trabalho infere que o caboclo, se

não no plano cosmológico, mas no mundo social das “identidades” é um índio interditado

ao “direito” de ser visto e reconhecido como índio, ou, ao menos, como descendente do

ameríndio nativo. Ao mesmo tempo em que se torna negro, já que todo ameríndio

despossuído de sua ancestralidade indígena e sem sua terra, sua língua, seus ritos, é

inserido no sistema capitalista como um pobre, e, nessa lógica, todo pobre não-branco é

negro – de tal modo, que no plano social interditado ao reconhecimento de sua ontologia-

ancestralidade-identidade ameríndia, é só no plano cosmológico – ou como queremos

mostrar através da cosmopolítica dos ancestrais – é que essa condição se realiza e atualiza.

Ser índio/caboclo significa recompor, a partir do parentesco, da solidariedade e das formas

de religiosidade ameríndias – e afroindígenas como no caso do culto aos caboclos aqui

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estudado – a atualização de uma comunidade ancestral, um núcleo de sociabilidade

ecológico e político, ante as formas estabelecidas pelos esquemas, simplificações e

equívocos intencionais do discurso celebratório da colonização e da mestiçagem que

reforça o logos lusocêntrico da história social brasileira.

É claro que toda descrição deve ser vista e tomada como uma referência, um exemplo das

variantes encontradas, não como expressão de uma normatividade ordinária. E neste

trabalho em especial, no qual se buscou observar as variações do culto em três casas,

procurou-se apresentar um panorama de como o culto acontece e não determinar, a partir

da crítica propriamente etnográfica, como esses cultos se organizam.

Os ritmos dos atabaques, soando um samba ancestral, ativam na atmosfera os dados do

mito e os fatos do rito. Atualizado nos adornos miméticos utilizados na confecção corporal

do encante, uns, a partir de penas e plumas coloridas acompanhadas de folhas, cocares,

flechas, cabaças, bem como no caso dos encantes das terras e tribos do sertão, o couro dos

coletes, chapéus e outros atributos. A manifestação dos ancestrais é revestida por trajes e

versos que encenam as trajetórias do ameríndio em suas relações com a natureza e com os

outros.

Os agenciamentos de cânticos e danças que, por vezes, partem do próprio caboclo em

direção ao público dos rituais ao compor de improviso ou através de letras já conhecidas

da audiência, geralmente trazem variações, além dos sotaques6, que são mensagens diretas

a alguém no recinto. Eu mesmo recebi um. Na Solene de Boiadeiro, em São Félix, o

caboclo Tomba Morro, ao tomar de minha mão o charuto que eu tragava, após tê-lo

recebido de um outro caboclo, que me havia sido passado por um de meus interlocutores

no trabalho de campo, na festa do Raiz de Ayrá. Tomba-Morro, então, a fumar o charuto

que de minhas mãos tomou, começou a cantar [ ... ].

Em uma visita, posterior a festa, que fiz ao terreiro, conversei sobre o acontecido com um

dos membros da casa, o axogum Tacum Lecy de Oxóssi, me disse ele que não era um

“sotaque” clássico, com mensagem original, já que a canção entoada pelo caboclo já era

conhecida, mas pela especificidade da experiência, não se poderia negar que houve um

direcionamento e sentido visado, com endereço certo, para a fala cantada pelo encante.

6 Segundo Marques (2003): “Samba crítico e provocativo endereçado a alguém presente na tocata. É comum

no candomblé de caboclo quando então passa a ser chamado cantiga de sotaque” (MARQUES, 2003, p. 85).

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Narra João Antônio – “Dois Raimundos e um Lourival” – as propriedades do magnésio e

dos sais minerais das águas sagradas do rio Paraguaçu

“Parece meio dia e são duas da tarde.

[...]

Come um couro de atabaques no batuque distante descendo as ladeiras...”

[...]

“O rio de águas pretas dá peixe bom”.

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