vida entre grades
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Reportagem sobre as detentas do Conjunto Penal Feminino, de SalvadorTRANSCRIPT
36 SALVADOR DOMINGO 4/10/2015 37SALVADOR DOMINGO 4/10/2015
#381 / DOMINGO, 4 DE OUTUBRO DE 2015REVISTA SEMANAL DO GRUPO A TARDE
TERESA MESSEDER VINHOS COTIDIANO CINEMA BELÉM DO PARÁ MANGAIO «
Vida entreGRADES
O cotidiano no ConjuntoPenal Feminino (CPF), naMata Escura, onde cumprempena 144 mulheres
18 SALVADOR DOMINGO 4/10/2015 19SALVADOR DOMINGO 4/10/2015
Do outroLADOAcesso às celas
do Conjunto
Penal Feminino
de Salvador
Texto TATIANA MENDONÇA [email protected] FERNANDO VIVAS [email protected]
Entre as 144 detidas no CPF, 91 estavamenvolvidas com o tráfico de drogas. A maioriada população carcerária feminina no Brasil,63%, responde por venda de entorpecentes
Osorriso parece não encontrar jeito no rosto
de Suzana*. Quando algum deles escapole,
ela logo se arrepende, como se não fosse do
seu merecimento. Com os olhos baixos e
uma voz que quase não sai, diz que está ali
porque traficava drogas. E também por ho-
micídio. Não vê valia em se fazer de inocente. Em novembro
de 2014, foi condenada a 23 anos, seis meses e 29 dias de
prisão. Tem mais tempo de pena do que de vida. “Tento não
pensar muito nisso”.
QuandochegouaoConjuntoPenalFeminino(CPF),naMata
Escura, depois de apanhar por quatro dias seguidos na dele-
gacia, Suzana tinha 18 anos e uma história que todos ali já co-
nheciam dos programas sanguinolentos da televisão. A fama
fezcomquelogofossevivernoseguro, celadestinadaàspresas
enjeitadaspelasoutrasdetentas.Suzanaenvolveu-senoassas-
sinato de um adolescente e por isso era como se sua paga pre-
cisasse ser maior que a prisão.
Enquanto ouve as conversas, risadas e bate-bocas no pátio
18 SALVADOR DOMINGO 4/10/2015 19SALVADOR DOMINGO 4/10/2015
Do outroLADOAcesso às celas
do Conjunto
Penal Feminino
de Salvador
Texto TATIANA MENDONÇA [email protected] FERNANDO VIVAS [email protected]
Entre as 144 detidas no CPF, 91 estavamenvolvidas com o tráfico de drogas. A maioriada população carcerária feminina no Brasil,63%, responde por venda de entorpecentes
Osorriso parece não encontrar jeito no rosto
de Suzana*. Quando algum deles escapole,
ela logo se arrepende, como se não fosse do
seu merecimento. Com os olhos baixos e
uma voz que quase não sai, diz que está ali
porque traficava drogas. E também por ho-
micídio. Não vê valia em se fazer de inocente. Em novembro
de 2014, foi condenada a 23 anos, seis meses e 29 dias de
prisão. Tem mais tempo de pena do que de vida. “Tento não
pensar muito nisso”.
QuandochegouaoConjuntoPenalFeminino(CPF),naMata
Escura, depois de apanhar por quatro dias seguidos na dele-
gacia, Suzana tinha 18 anos e uma história que todos ali já co-
nheciam dos programas sanguinolentos da televisão. A fama
fezcomquelogofossevivernoseguro, celadestinadaàspresas
enjeitadaspelasoutrasdetentas.Suzanaenvolveu-senoassas-
sinato de um adolescente e por isso era como se sua paga pre-
cisasse ser maior que a prisão.
Enquanto ouve as conversas, risadas e bate-bocas no pátio
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do presídio, Suzana permanece trancafia-
da,protegida no seucastigo.Nasquartase
sextas, depois que as visitas vão embora,
podeaproveitarobanhodesol.Duashoras
por semana nos últimos quatro anos.
Entre as mulheres presas de Salvador,
ela é ao mesmo tempo exceção e regra.
Carrega a pecha de ter cometido um crime
contra a vida, raridade para o sexo femi-
nino, e também o clichê de ter traficado
drogas, serviço em que começou menina,
aos 10 anos. Das 144 detidas no CPF, 91
respondemportráfico.Asituaçãoserepete
em outras penitenciárias brasileiras. A
maioria das encarceradas (63%) está atrás
das grades por causa da venda de entor-
pecentes. Entre os homens, esse percen-
tual cai para 25%.
O tráfico de drogas tem pena de reclu-
são de cinco a 15 anos e equipara-se ao de
crime hediondo. Por isso, elas ficam mais
tempo no regime fechado e não têm direi-
to ao indulto. A defensora pública Fabíola
Pacheco acredita que essa situação precisa
mudar. “Essa mulher não oferece periculo-
sidade. Quando é presa, há consequências
para toda a família”.
O país tem hoje mais de 37 mil presas,
quinta maior população carcerária femini-
na do mundo. Esse número segue crescen-
do num ritmo superior ao dos homens –
256%contra130%,entre2000e2012.Luz
Marina, que dirige o CPF há cinco anos,
acompanhou esse aumento de perto.
A Penitenciária Feminina de Salvador,
como o CPF era chamado, foi inaugurada
em 8 de março de 1990, para fazer parte
das comemorações pelo Dia Internacional
da Mulher. Pouco mais de um mês depois,
Luz dava ali seu primeiro plantão como
agente penitenciária. Na época, o lugar ti-
nha cerca de 30 internas. Pelas suas me-
mórias, a maioria estava presa por crimes
passionais, loucuras de ciúme. “Hoje, elas
«Mulher é difícil. Tem TPM, tem asensibilidade aflorada... Age maispela emoção do que pela razão»
estão na associação criminosa, atrás de lucro fácil”.
A contar pelas histórias que circulam ali, duas décadas se pas-
saram e o amor permanece cúmplice em dezenas de crimes, es-
pecialmente o do tráfico. Muitas mulheres começam a vender dro-
gas para ajudar companheiros ou familiares, ocupando cargos su-
balternos nas organizações. “Digo sempre para elas que aqui não
tem nenhuma Fernandinha Beira-Mar”, provoca Luz, como se ra-
lhasse por terem caído por papéis tão coadjuvantes.
Há dois anos, Amanda, 23, veste o mesmo conjunto: uma ca-
misa larga laranja, uma bermuda larga laranja, um chinelinho nos
pés. Quando foi presa, trabalhava numa loja de roupas e fazia su-
pletivo. Nas horas vagas, ajudava o marido, que era traficante. “Eu
era envolvida, estava com ele. Era conveniente”.
Quando o juiz deu a sentença, Amanda foi condenada e seu ho-
mem, absolvido. Até hoje não entende. Nunca tinha se sentido tão
sozinha, desamparada e desvalida como na primeira noite em que
passou no CPF. A distância física virou também a decisão de se se-
parar dele. “Hoje a gente é dois estranhos um pro outro”.
Na contagem regressiva para sair da prisão – faltava apenas um
mês –, Amanda pensa que talvez tenha sido bom tudo isso que
passou. “Estava privada da vida, e agora estou liberta”.
PIPER CHAPMANA alegria de Amanda contrastava com o estranhamento perpé-
tuo de Lorena, 28, fisioterapeuta, que da sua cela espiava a con-
versa. Era impossível olhar para ela, branquinha, loirinha, magri-
nha,enãopensaremPiperChapman,apersonagembem-nascida
que é presa por tráfico na série Orange is the new black, do Netflix.
A história de como Lorena chegou ao CPF também parece ficção.
Ela estava passeando com o namorado em Salvador, para rever
a família, quando ele foi preso. Rumou angustiada à delegacia,
para saber o que tinha acontecido, e lá descobriu que também ha-
via um mandado de prisão em seu nome por tráfico de drogas e
associação criminosa. Não voltou mais para casa.
Há quatro meses, foi transferida para o CPF. Chora quando lem-
bra que lhe puseram algemas e farda. “Nunca trafiquei. Me re-
lacionei com uma pessoa que fazia essas
coisas”. Parece impossível que Lorena não
soubesse como seu namorado ganhava a
vida, mas certamente desconhecia a im-
portância que ele tinha naquela rede.
Quando chegou ao presídio, as outras de-
tentas aapontavam e ela não entendia por
quê.Sócomotempodescobriuqueaquela
indicação era para dizer que já tinham tra-
balhado com ele. Era a mulher do patrão.
Por ter curso universitário, Lorena mora
numa cela especial, mais espaçosa e are-
jada. Só come o que a mãe traz de casa, lê
livros, assiste à televisão. Ela ainda não sa-
beporquantotempovaiviveromartíriode
um cadeado a afastando do mundo. É que,
como a maioria das mulheres presas no
CPF, seu caso ainda não foi julgado. Outras
95 “processadas”, como são chamadas,
esperam dia após dia uma sentença.
É assim com Rosângela, 66, e Sara, 34,
mãe e filha. Há oito meses, elas dividem a
mesma cela no CPF. Foram presas por cau-
sa de uma escuta telefônica. Não foi fla-
grante, repetem à exaustão, como uma
maneira de dizer que são inocentes. “Todo
mundo sabe que a gente trabalha numa
barraca na feira de Cachoeira”. O outro fi-
lho de Rosângela também está preso, mas
esse tem envolvimento com o tráfico, ela
diz não ter como esconder.
Na prisão, viraram evangélicas e bus-
cam ter amizade com as colegas cristãs.
“Aqui tem muita fofoca, deslealdade, intri-
ga, porque uma tem mais merenda, por-
que a outra tem mais visita”, conta Sara.Acima, Rosângela* e Sara*, mãe e filha presas. E a oficina de escrita e leitura
Luz Marina, diretora do Conjunto Penal Feminino
ENTRE 2000 E2012, o número demulheres presas noBrasil cresceu
256%,contra
130% entre oshomens.A maioria das 37mil presasresponde pelocrime de tráfico dedrogas –
63%. Para oshomens, essenúmero cai para25%.
EM SALVADOR, asituação se repete.Das 144encarceradas noConjunto PenalFeminino (CPF),
91 foram parar lápor causa dotráfico. O segundocrime maiscometido éroubo, com
17 casos.Apenas três estãopresas porhomicídio.
20 SALVADOR DOMINGO 4/10/2015 21SALVADOR DOMINGO 4/10/2015
do presídio, Suzana permanece trancafia-
da,protegida no seucastigo.Nasquartase
sextas, depois que as visitas vão embora,
podeaproveitarobanhodesol.Duashoras
por semana nos últimos quatro anos.
Entre as mulheres presas de Salvador,
ela é ao mesmo tempo exceção e regra.
Carrega a pecha de ter cometido um crime
contra a vida, raridade para o sexo femi-
nino, e também o clichê de ter traficado
drogas, serviço em que começou menina,
aos 10 anos. Das 144 detidas no CPF, 91
respondemportráfico.Asituaçãoserepete
em outras penitenciárias brasileiras. A
maioria das encarceradas (63%) está atrás
das grades por causa da venda de entor-
pecentes. Entre os homens, esse percen-
tual cai para 25%.
O tráfico de drogas tem pena de reclu-
são de cinco a 15 anos e equipara-se ao de
crime hediondo. Por isso, elas ficam mais
tempo no regime fechado e não têm direi-
to ao indulto. A defensora pública Fabíola
Pacheco acredita que essa situação precisa
mudar. “Essa mulher não oferece periculo-
sidade. Quando é presa, há consequências
para toda a família”.
O país tem hoje mais de 37 mil presas,
quinta maior população carcerária femini-
na do mundo. Esse número segue crescen-
do num ritmo superior ao dos homens –
256%contra130%,entre2000e2012.Luz
Marina, que dirige o CPF há cinco anos,
acompanhou esse aumento de perto.
A Penitenciária Feminina de Salvador,
como o CPF era chamado, foi inaugurada
em 8 de março de 1990, para fazer parte
das comemorações pelo Dia Internacional
da Mulher. Pouco mais de um mês depois,
Luz dava ali seu primeiro plantão como
agente penitenciária. Na época, o lugar ti-
nha cerca de 30 internas. Pelas suas me-
mórias, a maioria estava presa por crimes
passionais, loucuras de ciúme. “Hoje, elas
«Mulher é difícil. Tem TPM, tem asensibilidade aflorada... Age maispela emoção do que pela razão»
estão na associação criminosa, atrás de lucro fácil”.
A contar pelas histórias que circulam ali, duas décadas se pas-
saram e o amor permanece cúmplice em dezenas de crimes, es-
pecialmente o do tráfico. Muitas mulheres começam a vender dro-
gas para ajudar companheiros ou familiares, ocupando cargos su-
balternos nas organizações. “Digo sempre para elas que aqui não
tem nenhuma Fernandinha Beira-Mar”, provoca Luz, como se ra-
lhasse por terem caído por papéis tão coadjuvantes.
Há dois anos, Amanda, 23, veste o mesmo conjunto: uma ca-
misa larga laranja, uma bermuda larga laranja, um chinelinho nos
pés. Quando foi presa, trabalhava numa loja de roupas e fazia su-
pletivo. Nas horas vagas, ajudava o marido, que era traficante. “Eu
era envolvida, estava com ele. Era conveniente”.
Quando o juiz deu a sentença, Amanda foi condenada e seu ho-
mem, absolvido. Até hoje não entende. Nunca tinha se sentido tão
sozinha, desamparada e desvalida como na primeira noite em que
passou no CPF. A distância física virou também a decisão de se se-
parar dele. “Hoje a gente é dois estranhos um pro outro”.
Na contagem regressiva para sair da prisão – faltava apenas um
mês –, Amanda pensa que talvez tenha sido bom tudo isso que
passou. “Estava privada da vida, e agora estou liberta”.
PIPER CHAPMANA alegria de Amanda contrastava com o estranhamento perpé-
tuo de Lorena, 28, fisioterapeuta, que da sua cela espiava a con-
versa. Era impossível olhar para ela, branquinha, loirinha, magri-
nha,enãopensaremPiperChapman,apersonagembem-nascida
que é presa por tráfico na série Orange is the new black, do Netflix.
A história de como Lorena chegou ao CPF também parece ficção.
Ela estava passeando com o namorado em Salvador, para rever
a família, quando ele foi preso. Rumou angustiada à delegacia,
para saber o que tinha acontecido, e lá descobriu que também ha-
via um mandado de prisão em seu nome por tráfico de drogas e
associação criminosa. Não voltou mais para casa.
Há quatro meses, foi transferida para o CPF. Chora quando lem-
bra que lhe puseram algemas e farda. “Nunca trafiquei. Me re-
lacionei com uma pessoa que fazia essas
coisas”. Parece impossível que Lorena não
soubesse como seu namorado ganhava a
vida, mas certamente desconhecia a im-
portância que ele tinha naquela rede.
Quando chegou ao presídio, as outras de-
tentas aapontavam e ela não entendia por
quê.Sócomotempodescobriuqueaquela
indicação era para dizer que já tinham tra-
balhado com ele. Era a mulher do patrão.
Por ter curso universitário, Lorena mora
numa cela especial, mais espaçosa e are-
jada. Só come o que a mãe traz de casa, lê
livros, assiste à televisão. Ela ainda não sa-
beporquantotempovaiviveromartíriode
um cadeado a afastando do mundo. É que,
como a maioria das mulheres presas no
CPF, seu caso ainda não foi julgado. Outras
95 “processadas”, como são chamadas,
esperam dia após dia uma sentença.
É assim com Rosângela, 66, e Sara, 34,
mãe e filha. Há oito meses, elas dividem a
mesma cela no CPF. Foram presas por cau-
sa de uma escuta telefônica. Não foi fla-
grante, repetem à exaustão, como uma
maneira de dizer que são inocentes. “Todo
mundo sabe que a gente trabalha numa
barraca na feira de Cachoeira”. O outro fi-
lho de Rosângela também está preso, mas
esse tem envolvimento com o tráfico, ela
diz não ter como esconder.
Na prisão, viraram evangélicas e bus-
cam ter amizade com as colegas cristãs.
“Aqui tem muita fofoca, deslealdade, intri-
ga, porque uma tem mais merenda, por-
que a outra tem mais visita”, conta Sara.Acima, Rosângela* e Sara*, mãe e filha presas. E a oficina de escrita e leitura
Luz Marina, diretora do Conjunto Penal Feminino
ENTRE 2000 E2012, o número demulheres presas noBrasil cresceu
256%,contra
130% entre oshomens.A maioria das 37mil presasresponde pelocrime de tráfico dedrogas –
63%. Para oshomens, essenúmero cai para25%.
EM SALVADOR, asituação se repete.Das 144encarceradas noConjunto PenalFeminino (CPF),
91 foram parar lápor causa dotráfico. O segundocrime maiscometido éroubo, com
17 casos.Apenas três estãopresas porhomicídio.
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A última briga foi por causa do orelhão.
Com um único aparelho em vez de dois, o
tempopara falar comafamília foi reduzido
de sete para quatro minutos, e nem todo
mundo adaptou-se a cumprir o acordo.
Verdadeiramente, o CPF não sofre de mo-
notonia. Quase todo dia Luz desce do seu
escritório para resolver alguma pendenga
no pátio. “Mulher é difícil. Tem TPM, tem a
sensibilidade aflorada... Age mais pela
emoção do que pela razão”.
Luz não tem que lidar com as temidas
facções – “no masculino, é fato” –, mas em
25 anos já teve de enfrentar duas rebe-
liões. A última foi em 2012. Por quatro ho-
ras, as presas fizeram duas visitas e um
agente de reféns para pedir melhorias na
alimentação e rapidez no andamento dos
processos judiciais. O CPF tem capacidade
para abrigar 132 mulheres. Em cada cela, há duas “comarcas”, co-
mo as camas de cimento são chamadas. Algumas presas dormem
no chão. Se seus processos fossem agilizados, uma das reivindi-
cações do motim, talvez o problema da superlotação diminuísse.
PRISÃO DOMICILIARA Penitenciária Feminina de Salvador virou Conjunto Penal Fe-
mininoem2005,paramarcarquealihaviamulherescumprindoos
três regimes: fechado, semiaberto e aberto. Como a estrutura era
uma só, na prática não havia distinção, nem progressão. Todas pa-
gavam com a pena mais gravosa. Uma visita do juiz de execuções
penais acabou com a arbitrariedade. As detentas apenadas com o
semiaberto ou aberto passaram a ser beneficiadas com a prisão
domiciliar. Como não há tornozeleiras eletrônicas – e naturalmen-
te há o risco de fuga –, elas precisam se apresentar a cada dois
meses ao juiz.
AlgumasacabamvoltandoparaoCPF,comoaconteceucomMi-
chele,24.Ospoliciais chegaramnacasaondeestava,emMorrode
SãoPaulo,eencontraramdinheirograúdo(R$1.800)edrogamiú-
da (39 g de maconha). Grávida de sete meses, Michele diz que foi
tudo armado. Que quer que seu filho nasça morto se tiver algum
envolvimento nessa história. De noite não dorme por causa das
muriçocas e dos pensamentos de como vai ser na hora de parir, se
alguém vai escutar sua dor. E tem a pior parte, a de imaginar se
separar do seu bebê quando ele completar seis meses. Reza para
Jeová para que antes disso esteja livre.
Há pouco mais de uma década, as crianças ficavam presas com
a mãe no CPF até estarem maiores, com seis anos. Acabavam in-
ternalizando o comportamento das detentas. Eram as primeiras a
correr para as cela quando soavam os apitos da tranca, tiravam
logo as roupinhas quando se anunciava o “baculejo”, revista pela
qual as internas volta e meia têm de passar. A situação mudou em
1999, também por determinação judicial.
Elas não podiam mais ficar lá, mas tampouco tinham para onde
ir. Sensibilizada com o caso, a Pastoral Carcerária, ação da Igreja
Católica, resolveu cuidar dos filhos das presidiárias até que pudes-
sem tê-los de volta. Hoje, a Casa Nova Semente, comandada pela
irmã italiana Adele Pezone, toma conta de 28 crianças e adoles-
centes. Para manter o vínculo com as mulheres que as pariram e
também com os pais encarcerados, elas são levadas para visitá-los
umavezporsemanaesempreestãopresentesnasdatasespeciais,
como o Dia das Mães e o Natal.
A hora mais triste é a de pegar os bebês no CPF. É Adele mesmo
quem vai. Em meio a um choro generalizado, ela alteia a voz e
arruma força para dizer: “Se não me der, eu não pego”. Juliana*
chegou assim um dia à Nova Semente e hoje está com 15 anos.
Estuda, joga futebol, participa de um grupo de formação cidadã.
“Quero ser a diferença, e não a diferente”.
Quando deixa de lado o discurso, conta que a mãe já morreu, e
o pai, e a avó. Não chora, nem estremece a voz. Adormeceu suas
dores, envelheceu antes da hora. Está tentando convencer a irmã
Adele a emancipá-la. “Aqui é meu único chão, a base a quem devo
tudo que sou. Mas quero ter minha vida, a minha liberdade”.
ABANDONOÀ parte a visita eventual dos filhos e de suas próprias mães, as
mulheres costumam ser abandonadas nos cárceres. O cadastro de
pessoas autorizadas no CPF não passa muito dos 60 nomes. É raro
que entre eles esteja o de namorados e maridos. Na teoria, quem
vem de fora não precisa mais passar por revistas íntimas. O CPF
utiliza um banquinho com detectores de metais. É preciso apenas
torcer para que ele não esteja quebrado.
Do lado de dentro das grades, a carência vai regando outros
Filhos de detentas na creche Nova Semente, que funciona ao lado do conjunto penal
Abandono: no cárcere, maridos e namorados desaparecem
A MAIORIA DASDETIDAS EMSALVADOR –
66% – está emprisão provisória.Elas ainda esperamuma decisão final daJustiça.
51% daspresidiárias sãojovens, têm até 30anos.
94% são pardasou negras e
70% nãoterminaram oensino fundamental.
Fontes: SistemaNacional deInformaçõesPenitenciárias(Infopen) / ConjuntoPenal Feminino (CPF)
22 SALVADOR DOMINGO 4/10/2015 23SALVADOR DOMINGO 4/10/2015
A última briga foi por causa do orelhão.
Com um único aparelho em vez de dois, o
tempopara falar comafamília foi reduzido
de sete para quatro minutos, e nem todo
mundo adaptou-se a cumprir o acordo.
Verdadeiramente, o CPF não sofre de mo-
notonia. Quase todo dia Luz desce do seu
escritório para resolver alguma pendenga
no pátio. “Mulher é difícil. Tem TPM, tem a
sensibilidade aflorada... Age mais pela
emoção do que pela razão”.
Luz não tem que lidar com as temidas
facções – “no masculino, é fato” –, mas em
25 anos já teve de enfrentar duas rebe-
liões. A última foi em 2012. Por quatro ho-
ras, as presas fizeram duas visitas e um
agente de reféns para pedir melhorias na
alimentação e rapidez no andamento dos
processos judiciais. O CPF tem capacidade
para abrigar 132 mulheres. Em cada cela, há duas “comarcas”, co-
mo as camas de cimento são chamadas. Algumas presas dormem
no chão. Se seus processos fossem agilizados, uma das reivindi-
cações do motim, talvez o problema da superlotação diminuísse.
PRISÃO DOMICILIARA Penitenciária Feminina de Salvador virou Conjunto Penal Fe-
mininoem2005,paramarcarquealihaviamulherescumprindoos
três regimes: fechado, semiaberto e aberto. Como a estrutura era
uma só, na prática não havia distinção, nem progressão. Todas pa-
gavam com a pena mais gravosa. Uma visita do juiz de execuções
penais acabou com a arbitrariedade. As detentas apenadas com o
semiaberto ou aberto passaram a ser beneficiadas com a prisão
domiciliar. Como não há tornozeleiras eletrônicas – e naturalmen-
te há o risco de fuga –, elas precisam se apresentar a cada dois
meses ao juiz.
AlgumasacabamvoltandoparaoCPF,comoaconteceucomMi-
chele,24.Ospoliciais chegaramnacasaondeestava,emMorrode
SãoPaulo,eencontraramdinheirograúdo(R$1.800)edrogamiú-
da (39 g de maconha). Grávida de sete meses, Michele diz que foi
tudo armado. Que quer que seu filho nasça morto se tiver algum
envolvimento nessa história. De noite não dorme por causa das
muriçocas e dos pensamentos de como vai ser na hora de parir, se
alguém vai escutar sua dor. E tem a pior parte, a de imaginar se
separar do seu bebê quando ele completar seis meses. Reza para
Jeová para que antes disso esteja livre.
Há pouco mais de uma década, as crianças ficavam presas com
a mãe no CPF até estarem maiores, com seis anos. Acabavam in-
ternalizando o comportamento das detentas. Eram as primeiras a
correr para as cela quando soavam os apitos da tranca, tiravam
logo as roupinhas quando se anunciava o “baculejo”, revista pela
qual as internas volta e meia têm de passar. A situação mudou em
1999, também por determinação judicial.
Elas não podiam mais ficar lá, mas tampouco tinham para onde
ir. Sensibilizada com o caso, a Pastoral Carcerária, ação da Igreja
Católica, resolveu cuidar dos filhos das presidiárias até que pudes-
sem tê-los de volta. Hoje, a Casa Nova Semente, comandada pela
irmã italiana Adele Pezone, toma conta de 28 crianças e adoles-
centes. Para manter o vínculo com as mulheres que as pariram e
também com os pais encarcerados, elas são levadas para visitá-los
umavezporsemanaesempreestãopresentesnasdatasespeciais,
como o Dia das Mães e o Natal.
A hora mais triste é a de pegar os bebês no CPF. É Adele mesmo
quem vai. Em meio a um choro generalizado, ela alteia a voz e
arruma força para dizer: “Se não me der, eu não pego”. Juliana*
chegou assim um dia à Nova Semente e hoje está com 15 anos.
Estuda, joga futebol, participa de um grupo de formação cidadã.
“Quero ser a diferença, e não a diferente”.
Quando deixa de lado o discurso, conta que a mãe já morreu, e
o pai, e a avó. Não chora, nem estremece a voz. Adormeceu suas
dores, envelheceu antes da hora. Está tentando convencer a irmã
Adele a emancipá-la. “Aqui é meu único chão, a base a quem devo
tudo que sou. Mas quero ter minha vida, a minha liberdade”.
ABANDONOÀ parte a visita eventual dos filhos e de suas próprias mães, as
mulheres costumam ser abandonadas nos cárceres. O cadastro de
pessoas autorizadas no CPF não passa muito dos 60 nomes. É raro
que entre eles esteja o de namorados e maridos. Na teoria, quem
vem de fora não precisa mais passar por revistas íntimas. O CPF
utiliza um banquinho com detectores de metais. É preciso apenas
torcer para que ele não esteja quebrado.
Do lado de dentro das grades, a carência vai regando outros
Filhos de detentas na creche Nova Semente, que funciona ao lado do conjunto penal
Abandono: no cárcere, maridos e namorados desaparecem
A MAIORIA DASDETIDAS EMSALVADOR –
66% – está emprisão provisória.Elas ainda esperamuma decisão final daJustiça.
51% daspresidiárias sãojovens, têm até 30anos.
94% são pardasou negras e
70% nãoterminaram oensino fundamental.
Fontes: SistemaNacional deInformaçõesPenitenciárias(Infopen) / ConjuntoPenal Feminino (CPF)
24 SALVADOR DOMINGO 4/10/2015 25SALVADOR DOMINGO 4/10/2015
afetos. Até mesmo no seguro se pode arrumar uma namorada,
como aconteceu com Suzana. “A maioria na cadeia namora”.
A agonia maior ali, que ganha até da ruindade da comida, é a
falta de trabalho. Só 35 detentas têm ocupação – são responsáveis
pela manutenção do Conjunto. Neste cenário, parece piada falar
em ressocialização. Outras 61 presas estudam nas turmas da al-
fabetização à oitava série. Há ainda os cursos mantidos por vo-
luntários,comoodecantocoletivoeaprimoramentovocal,dapro-
fessora Acenísia de Azevedo, e a oficina de escrita e leitura, coman-
dada por Denise Carrascosa, com apoio de Saulo Moreira, Patrícia
Freitas, Luciane Aparecida e Luana Soledade.
Denise iniciou a oficina, batizada de Corpos Indóceis e Mentes
Livres, em 2011. Antes, já tinha tentado dar aulas no CPF de tai chi
chuan, mas a coisa não deu muito certo. Atraiu-se de tal modo pela
“crueza” daquela “periferia da periferia” que não saiu mais. “É um
desejo de experimentar esse abismo entre nossas experiências so-
ciais e é também uma posição política. Não é mais o momento do
intelectual asséptico”.
Desde então a oficina acontece anualmente, de março a setem-
bro. O trabalho acabou se desdobrando num livro com poesias das
participantes e em uma biblioteca. Os títulos mais procurados são
os que tratam do Código de Processo Penal, mas os romances tam-
bém são concorridos. A depender do número de páginas, são oito,
13 ou 30 dias para devolução do empréstimo.
As oito galerias do CPF são identificadas
pelas letrasdoalfabeto,eemcadaumade-
las há oito celas. Numa tarde de sexta-fei-
ra, uma agente penitenciária subiu as es-
cadas que levam à galeria C com uma mis-
são que lhe dava gosto. Como se estivesse
num programa de auditório da TV, anun-
cioucomvozempostada:“TâniaeDaniele,
escutem bem aqui. O alvará não chegou.
Não tô com nenhum alvará na mão. Mas
pode ser que chegue amanhã ou segunda.
Vou tirar vocês pra fazerem uma oração”.
Elas saem tremendo, chorando um cho-
ro gutural, gritando por Deus como se es-
tivessem falando de frente para ele. “Com
a força da alma que vocês têm, rezem. E eu
também não vou ver vocês mais. Vocês fo-
ram umas das poucas que nunca deram
trabalho.Venhapracá,donaLuz.Orembo-
nito para ela”. Sem aguentar aquele sus-
pense, Luz faz a revelação: “Podem come-
morar que o alvará chegou”.
Depois de um ano e cinco meses, que
em vida dão 515 dias, Tânia e Daniele, 20
anos, amigas de infância, estavam livres.
Nãosabiamsepulavamdealegriaouajoe-
lhavam para agradecer. As outras presas
batiam os portões, cantavam, berravam
aleluias, se abraçavam numa despedida
em que não cabiam tristezas.
Depois de um ano e cinco meses, que
em vida dão 515 dias, Tânia e Daniele, 20
anos, amigas de infância, foram absolvi-
das da acusação de extorsão mediante se-
questro. Saíram levando seus colchões de
espuma e uns ventiladores brancos. Quan-
do passaram o portão, um homem disse
que não dava um mês para que voltassem.
Elas não ouviram, ou estavam felizes de-
mais para dar atenção àquela ruindade.
Jogaramoscolchõesnolixo,deramosven-
tiladores para o primeiro que encontraram
e correram para ligar para a mãe no ore-
lhão de minutos não contados. «
Após o parto,
na prisão, as
detentas ficam
com os filhos só
até os seis meses
* Os nomes daspresas e daadolescente sãoinventados.