vigilante na patinete
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Luiz Carlos CardosoTRANSCRIPT
Vigilante
na
patinete
Luiz Carlos Cardoso
Valfrido está sentado num pufe à boca de cena em seu escritório de empresário com um telefone móvel no ouvido, mais ouvindo que falando. Às vezes faz intervenções de quem acompanha a exposição do outro, “sim, sim”, “é mesmo?”, “jura?”. Está inquieto, mas esforça-se por disfarçar isso. O escritório, num arranjo que lembra assessoria de estilista modificada pelo dono, com estante, troféus e quadro de fotos (uma de lutador), tem uma ampla janela de vidro fixo que exibe o cenário futurístico de São Paulo, o rio Pinheiros, edifícios empresariais, a ponte.
Ele se levanta do pufe e vai à janela, sempre ouvindo e pouco falando, volta ao pufe e afinal se lança na ampla poltrona reclinável que lhe inspira às vezes dormir. Resiste a essa vontade contra a conveniência de mostrar interesse na conversa.
Valfrido
E Cleo? (Ouve.) E Júlio? (Ouve.) É impressionante. De onde você tira tudo isso, Sófia? Será paranormalidade junto com sua imaginação poderosa? Estou pasmo. Esses grandes voos da fantasia, Sófia, são impossíveis para mim. Sou pé no chão, mal consigo acompanhar! E Marco? (Ouve.) Sófia, você é uma bruxa! Marco, grande, forte e delicado. (Ouve, mas pisca uma luz no interfone e soa uma voz baixa que o chama:“seu Val?”.) Sófia, a secretária quer me falar, aguarde um momentinho, pode ser Bob. (Aciona o interfone.)
Voz da secretária, num sussurro
Seu Val, dona Numa aqui.
Valfrido
Aqui?! Numa?! Ela não vinha à tarde?
Voz
Está aqui, seu Val. Entrou no banheiro.
Valfrido
(Nota que o telefone está ligado e deixa vazar sua voz e a voz do interfone, quer desligar em pausa o telefone mas não sabe que botão apertar; afinal, abre uma gaveta da escrivaninha, joga nela o telefone e a fecha. Aciona o interfone e fala nele com o cuidado dispensável de um quase sussurro.)
Ana Lúcia?
Voz
Sim, seu Val.
Valfrido
Estou mudo aí?
Voz
Sim, seu Val. Numa no banheiro.
Valfrido
Ouça apenas.
Voz
Sim, seu Val.
Valfrido
Não diga “sim seu Val”, ouça apenas. Numa não pode entrar agora, estou falando com Sófia, não posso desligar na cara dela. Diga pra Numa que falo com Bob, do Chelsea. Explique quem é Bob e o que é Chelsea, valorize isso. Não mencione Sófia, pelo amor de Deus. Segure Numa aí, só um pouco, não deixe entrar. Entendeu?
Voz
Sim, seu... Oh, perdão, não, seu...
(Ele tira o dedo do interfone e faz menção de pegar o telefone móvel, mas não o acha, procura no chão e lembra-se de que o guardou na gaveta. Pega-o e fala nele.)
Valfrido
Sófia, é tu? Desculpe, um assunto urgente. E Marco Antônio, como ficou nisso? (Ouve.) Acho fascinante, admiro sua imaginação, seu dom mediúnico. Cleo é uma personagem magnífica, fico feliz que você seja ela agora. Ela é sensual, intrigante, poderosa, tudo o que uma mulher de grande personalidade, você, tem o direito de ser. Já nem sei se chamo você de Sófia ou de Cleo. Cleo, rainha do Nilo, ou Sófia, a feiticeira das biografias empolgantes? Sófia ou Cleo? (Ouve, mas é interrompido por um sinal de luz piscante que precede a voz de Ana Lúcia no interfone. Diz um rápido “um momentinho”, põe de novo o telefone móvel na gaveta que ficou aberta e a fecha.)
Voz (em quase sussurro)
Seu Val, dona Numa no banheiro. Mas pôs a cabeça fora e perguntou do senhor.
Valfrido
Vou olhar. (Ágil, vai da poltrona à porta, abre-a, olha, faz um sinal e volta à poltrona.) Distraia Numa mais um pouco, vou abreviar aqui. (Desliga o interfone e pega o telefone móvel na gaveta.) E a cobra? Teve uma cobra que picou Cleo na mama ou na mão, pois não? (Ouve.) Fascinante, Sófia, ouça. Bob, do Chelsea, o homem do futebol, chegou aqui, preciso atender. Que tal jantarmos na terça e você me conta tudo? Terça, combinados, mas confirmamos antes. Comece já a esboçar a aventura de Júlio e Cleo,
do jeito que você sabe, vamos falar disso. Sim, ligue ou te ligo terça de manhã. Até lá, Sófia, perdão, Cleo, parabéns pela revelação incrível, vai dar um livro incrível. Beijo, Sófia, Cleo meu amor, que lindo enredo, comece a pôr no papel, vislumbro um grande sucesso. (Desliga, está aliviadíssimo por isso. Suspira, feliz, e se espreguiça como quem quer dormir. Soa o interfone, com seu sinal de luz anterior e a voz de Ana Lúcia.)
Voz
Chefe, seu Eliseu chegou.
Valfrido
Mudo aí?
Voz
Yes.
Val
Numa aí?
Voz
Yes, saindo do banheiro. Deu a descarga.
Valfrido
Mande entrar Eliseu. Entretenha Numa, conte seus amores pra ela.
Voz
Não tenho, senhor. Yes, senhor.
Valfrido levanta-se para receber Eliseu, que entra carregando uma maleta. É um homem jovem, bonito e simples, claramente fora de seu ambiente.
Valfrido
Amigo Eliseu, fez boa viagem?
Eliseu
Viajei a noite inteira, seu Valfrido.
Val
(Cordial.) Por sua culpa! Era simples, ia a bê-agá, pegava o avião. Pagamos tudo, meu amigo, providenciamos a passagem.
Eliseu
Não gosto de avião, fico nervoso. Voei uma vez, me deu um troço aqui. (Na barriga.)
Val
Seu filho voará sem parar. É melhor ir gostando de avião.
Eliseu
Eu é que não vou com ele, fico nervoso. Ele é cabeça fresca, eu não.
Val
Seu filho vai passar mais tempo no ar que no gramado, pensou? Hoje cá, amanhã no Japão.
Eliseu
Não quero pensar, fico nervoso.
Val
Pegou táxi, não? (Ele faz que sim.) Ana Lúcia vai lhe reembolsar. Quanto foi?
Eliseu
Quarenta e oito.
Val (No interfone.)
Ana Lúcia, traga cinquenta reais para seu Eliseu. (Desliga.) O táxi lhe reembolsamos já, as passagens foram pagas e o que mais precisar cobrimos aqui. Você terá uma grana extra que lhe pagaremos hoje também. Bom assim?
Eliseu
Muito lhe agradeço. (Ana Lúcia entra, fecha a porta e entrega os 50 para Eliseu; vai sair, mas ele a chama e revira o bolso.) Foi 48, tem troco.
Val
Deixe disso, amigo Eliseu.
Eliseu
Comigo é assim. (Conta o troco em moedinhas que soma na palma da mão; enquanto isso, Valfrido e Ana Lúcia trocam sinais a respeito de Numa além-porta. Ela recebe as moedinhas e sai, cuidadosa ao abrir e fechar a porta. Valfrido a olha e vigia a porta.)
Val
Já cuidamos de tudo para você. Vai ficar num hotel ótimo, o melhor café da manhã de São Paulo, a melhor ducha quente. Cai água que nem cachoeira, chuá.
Eliseu
Disso eu gosto.
Val
Cuidado com o controle da ducha. Sei de um sujeito que entrou direto embaixo e se pelou todo, ui, ui. Tempere de fora, só entre depois.
Eliseu
Pode deixar. Sou mineiro, desconfiado.
Val
Cama com colchão pneumático, já pensou? (Faz gesto ondulatório.)
Eliseu
Não sei o que é.
Val
Logo saberá, não vai querer outra vida.
Eliseu
Gosto da minha vida.
Val
Frigobar, ou seja, geladeira no quarto do hotel. Beba o que quiser, coma o que houver, o que não houver peça pra copa e receberás. Recomendo o sanduíche de lombinho. O Escritório Valfrido, este, cobre tudo. Se quiser, encha o bucho sem sair da cama.
Eliseu
Vou beber, vou comer, com moderação.
Val
Quer mulher? Providenciamos mulher.
Eliseu
Tem mulher? (Olha em volta.)
Val
Tem tudo. Não é daqui, nem do hotel, pertence ao pacote vip externo, a depender da vontade do freguês. Você é vip. Quer? Mulher?
Eliseu
Gosto da que tenho.
Val
Mas você é viúvo.
Eliseu
Sou viúvo.
Val (Levando Eliseu à janela, mas parando no caminho para falar.)
Digo isso porque um rapaz que agenciamos exigia mulher, não vinha a São Paulo sem mulher pra ele. Não me cabe arrumar mulher pros outros, mas era um lutador do UFC, providenciamos mulher. Vai que ele dava com o pé na minha cara se ficasse sem mulher... Veja isto. Isto é São Paulo! O rio, a ponte, os cabos de aço da ponte, os prédios chanfrados. O rio até parece limpo.
Eliseu
Dá peixe?
Val
Periga dar. No Natal eles iluminam os cabos e fazem outras graças, águas coloridas cambiantes e saltitantes dançando hula-hula. Chamo meus sobrinhos pra ver daqui.
Eliseu (Olhando.)
Beleza, os prédios na água do rio. São Paulo! Estou em São Paulo!
Val
Você conhece São Paulo?
Eliseu
Vim uma vez, na mocidade.
Val (aponta)
Viu o guarda na patinete? Aquele?
Eliseu
Não vi. (Olha.) É uma patinete?
Val
Motorizada. O bicho fica nela, pra lá e pra cá. Que vidão, não dá um passo! Se chove, bota capa e capuz e continua deslizando.
Eliseu
Eh, São Paulo! Inventam cada coisa! Patinete pra guarda.
Val
Ano passado fui a Cingapura. Os prédios de Cingapura, meu amigo, a roda-gigante, maior do mundo, seu filho vai lá. Vê aquele, um pouco mais baixo? Nele você vai dormir, sobre um colchão de ar. Fiz questão de que de lá, de uma janela, você me visse.
Eliseu
Pra quê?
Val
Pra nada. Pra fazer tchauzinho. (Acenando.) Salve, Eliseu, tô aqui!
Eliseu
Eh, São Paulo!
Val
Você devia ter trazido sua nova mulher, Eliseu.
Eliseu (Olhando a paisagem e acenando também.)
Pois é.
Val
Quer uma de aluguel, pra aproveitar o colchão? Os casais navegam no colchão, uma delícia. Não é preciso iniciativa, o colchão inventa! Os lençóis alvíssimos te dão a sensação de que a mulher é só sua, que vocês se amam em lua de mel, é o amor! Te arrumo a mesma do lutador, ela aguenta porrada, ah, ah, ah. (Arrepende-se da piada.) Não supus que você dá porrada.
Eliseu
Bem me disseram que em São Paulo é fácil mulher. Não quero, fico nervoso.
Val
Você é que sabe. Mas também, o colchão é tão bom, que até sem mulher... Se mudar de ideia, avise pra alugar uma.
Eliseu
Eu trouxe a fita do garoto. (Caminha para a maleta que deixou na entrada.)
Val
A fita do garoto, maravilha. Ficou boa?
Eliseu
Muito boa. O garoto não dá bola fora.
Val
Com certeza. Tive referências dele. Excelentes referências, Eliseu.
Eliseu
É vocação, doutor Valfrido. Esse garoto foi um milagre que me aconteceu, pena que a mãe tenha morrido faz dois anos... Nem bem ele nasceu e já mexia as perninhas como um craque. Eu disse: “Vai ser craque!” Foi. (Tira da maleta a fita e acena com ela.) O senhor vai ver. Alguns podem falhar, meu menino, não.
Val
Vou apostar nele, Eliseu, não tenha dúvida. E ainda bem que sou eu. Nesse ramo como em todos há malandros, mas eu tenho uma tradição, eu tenho. (Ainda à janela.) Não é magnífica, São Paulo? No tempo de eu menino, São Paulo era o Viaduto do Chá, o Banco do Estado. Ai de mim, o Prédio Martinelli, em cima do bicho passou o zepelim. Este é São Paulo hoje. Não tarda e seu filho será o rei daqui, pensou? Ou o rei do Rio de Janeiro, de Belo Horizonte, o rei de Roma. Enfim, rei. (A porta abre fortemente empurrada e Numa entra, seguida pela secretária Ana Lúcia. Está possessa e agita a bolsa como quem vai agredir com ela. Eliseu, mais próximo, se assusta e recua.)
Numa (Para Valfrido.)
Quem pensa que eu sou? Que eu sou uma cretina que fica fora e tudo bem? Que eu só tenho que esperar e mijar? Eu tenho meus direitos, cara, eu bem que tenho. Se isto existe, eu ajudei a fazer isto, cara.
Val
Numa... querida?
Numa
Você ganhou muito dinheiro à custa de mim e agora eu fico lá, esperando como um poste? Qual é a sua, cara? Sou poste? Cachorrada é contigo, mije no poste. (Oferece-se como poste para isso.)
Val
Numa, querida, temos visita. Seu Eliseu é pai de um menino prodígio que eu vou agenciar colhendo as glórias do mundo. Ele viajou a noite inteira para estar aqui...
Numa
E eu? Eu vivi metade da vida para estar aqui, e estou na espera, lá. (Aponta a porta aberta para a sala de espera.)
Val
Você não estava agendada para agora...
Numa
Nunca precisei agendar. Agendar? Agora essa?
Val
Numa, querida...
Numa
Não diga “querida”! Não admito!
Val
Que posso dizer...?
Numa
Diga “Numa” apenas, apenas “Numa”, querida jamais!
Val
Acalme-se, Numa, temos visita. Seu Eliseu veio do coração de Minas, é pai de um prodígio, é um amigo...
Numa
Eu sou o quê? Eu que já fui tudo aqui? Me deixam lá, na espera... Horas! (Olha dramática para Eliseu, como se dele esperando resposta.)
Eliseu
Isso não se faz.
Numa
Horas! O senhor concorda?
Eliseu
Completamente. Quando cheguei, a senhora já estava, saiu do lavatório, voltou pro lavatório.
Val
Pegou-me de surpresa, fora da agenda...
Numa
Eu fiz a fortuna deste homem. (Aponta Valfrido.) Dei-lhe o melhor que eu tinha, a genialidade do meu pai, porque meu pai era gênio, e fico na espera. (Tem uma quebra na voz, como quem vai chorar. Aponta a recepção.)
Val
Numa, modere-se, peço-lhe.
Numa
E, não bastasse, dei-lhe meu amor...
Val
Numa!
Numa
Dei-lhe meu corpo...
Val
Numa!!!
Numa
Houve um tempo, senhor... senhor... Sua graça, por favor?
Eliseu
Eliseu, senhora. Eliseu Batista da Silva, seu criado.
Numa
Houve um tempo, seu Eliseu, em que eu não existia por mim, eu existia em função deste homem. Ele me comia todo dia, eu era dele. Comia-me aqui (indica o ambiente), ali (a poltrona reclinada) e ali (o tapete próximo à janela). Aqui (indica o traseiro). Penetrava-me como um garanhão aranhoso.
Val
Aranhoso?!
Numa
Era assim, seu Eliseu, todo dia ou noite. Agora me deixa lá enquanto fala com Sófia, a maluca das reencarnações, a Joana d’Arc do boquete. Porque eu bem sei que você falava com Sófia, Valfrido. (Olha para Eliseu.)
Eliseu
Não pode, ah não pode.
Val
Ela exagera, Eliseu. Ela aumenta pra lhe causar pena.
Ana Lúcia (que assistiu a tudo)
Seu Val, desculpe, não pude fazer...
Val
Tudo bem, Ana Lúcia, eu sei como as coisas são.
Numa (Ainda voltada para Eliseu.)
Um minotauro, penetrava-me à força na retaguarda, o senhor não imagina o que me fizeram nessa poltrona. Repugna-me olhá-la. E não era eu, era ele, coitada de mim. Meu pai genial cantou o amor, o amor corporal também, mas com torneios de linguagem, poesia e sentimento. (Apanha um livro em lugar de honra numa pequena estante, abre-o e declama.) “Ela, gazela, dele acercou-se. Despojando-se da peça íntima com agílima destreza e exibindo-se no despudor da púbis orvalhada, lhe disse fremente de paixão: toma-me!” O amor humano, seu Eliseu, corporal como é, pode ser belo, sublime e assim
se realiza nas palavras imortais de meu pai. (Revira o livro encadernado, mostrando-o.) É ou não é?
Eliseu
É o que eu sempre digo, dona Numa.
Numa (Indica Valfrido.)
Já esse, seu Eliseu, abusado que é, aprofundava-se. Às vezes, muitas vezes, nem a persiana baixava e São Paulo via o que ele fazia com a pobre de mim. Aqui!
Eliseu
São Paulo, o santo?
Numa
São Paulo, a cidade. (Gesto largo indicando a cidade.)
Eliseu
Não pode.
Val
Afianço-lhe, caro senhor, há exagero em tudo isso. Ela só não exagera na genialidade do pai. Não sou abusado, muito menos aranhoso. Aranhoso, benza Deus! Era um gênio, o pai, a nação o homenageia. Mas...
Eliseu
Vou-me embora. (Abre a maleta correndo um zíper rascante, enfia nela a fita e fecha o zíper.) Pego o ônibus do meio-dia.
Val
Como pega?! Nem conversamos ainda. O senhor tem um contrato para assinar...
Eliseu
Não assino.
Val
Paguei sua passagem, paguei seu táxi, hotel, adiei compromissos...
Eliseu
Eu lá vou botar meu menino na sua mão? Pro senhor enrabar ele?
Eliseu
Meu senhor, sou um empresário, não sou um monstro. Esta senhora herdou do pai genial a imaginação sem limites. Fizemos amor, sim, mas eu a amava, Eliseu. No passado, no passado. Eu a amava, amo ainda, quanto é possível amar uma tal criatura. Amava e amo o pai dela, a obra do pai. O pai morreu; porém, para mim, viverá sempre. Para o mundo viverá, deixou sua obra magnífica. (Pega o livro e o mostra, abre e lê.) “Fremente de paixão, toma-me.” Esse trecho é tão emocionante que o livro, aberto ao léu, abre nele. “Orvalhada!” (Demonstra a abertura do livro na página.) “Toma-me.” (Dá um passo na direção de Eliseu, que recua.) Já nosso amor, meu e desta senhora, esse ainda vive, só que morreu, não existe como realidade carnal pra nenhum de nós, que se há de fazer, é a vida... O pai genial, sim, sua obra vive, e viva que vive!
Numa
Viva que vive, porque lhe dá lucro.
Val
Porque enriquece o país espiritualmente. É o que não canso de dizer.
Numa
Meu pai foi, é Carlos Augusto Montalvo, seu Eliseu. Mineiro como o senhor, como João Guimarães Rosa.
Eliseu
Já ouvi falar de João Rosa, mas ouvi também de Augusto Montalvo, orgulhos de Minas. É nome de rua, não na minha cidade.
Val (Indica Numa.)
Augusto Montalvo, um grande escritor, pai de Numância Montalvo, esta senhora, paulista mas mineira de sangue. Ela, filha única de Montalvo até segunda ordem, ela própria é escritora, ganhou prêmios. Escreveu “Borbulhas n’alma”, que esteve por uma semana na lista dos mais vendidos da Veja.
Numa
Duas semanas!
Val
Duas semanas.
Numa
E na lista ficaria se não tivesse esse título horrível, que você escolheu, você impôs.
Val
Peguei uma frase do livro.
Numa
Uma frase é uma frase, está no contexto. Não servia pra título.
Val
Ademais, ene apóstrofo, “n’alma”, é criativo pra burro.
Numa
É uma merda.
Val
A maldita mídia, que o PT faz bem de esculhambar, implicou com o título. A mídia!
Numa
Fiquei sendo a mulher das borbulhas. Recebi um e-mail desenhado, eu borbulhosa! Borbulhoso é tu!
Val
Quem liga para piadas da mídia? Da mídia eletrônica? Vale a eternidade. E, caro Eliseu, “Borbulhas n’alma” é eterno, como a obra do pai desta senhora, Montalvo. (Inclina na estante outro livro, sem tirar.)
Numa
Jamais chegarei perto da eternidade de meu pai. E é justo, ele era gênio. Comparar-me a meu pai é diminuir meu pai, não admito!
Eliseu
Augusto Montalvo, sim, conheço o nome. Mesmo eu que sou do futebol ouvi falar.
Val
Todos ouviram falar. Fui amigo do pai dela, tenho quilos de fotos com ele, de manuscritos, bilhetes a mim endereçados, guardei, são relíquias. “Caro Valfrido, escrevo-lhe da Velha Albion.” Trabalhei em favor de Augusto Montalvo, orgulho-me
disso. Sou um empresário e agente literário respeitado até em Nova York. E meu orgulho maior, profissional e humano, é ter contribuído para a fama e glória do pai desta senhora, seu Eliseu.
Numa
Seu orgulho é ter comido a filha de Augusto Montalvo...
Val
Não.
Numa
...com borbulhas n’alma e náldegas.
Val
Nada disso. É ter publicado a obra genial de Montalvo em mais de noventa países.
Numa
E embolsado a receita de oitenta.
Val
Ele é nome de rua... de rua, não, de um viaduto na Romênia, seu Eliseu. Esqueci como se diz “viaduto” em romeno, mas tenho fotos do Viaduto Augusto Montalvo, na Romênia. No viaduto começou um amor num livro de Montalvo, em meio às brumas do entardecer romeno, e a Romênia por isso o fez patrono do viaduto. O rapaz brasileiro na história de Montalvo não falava romeno e ainda assim brotou viçoso o amor pela linda romeninha. Boa vontade romena com o Brasil de Montalvo, o viaduto. Homenagem.
Numa
Ele roubou meu pai.
Eliseu
Jamais roubei seu pai.
Numa
Vendeu livros pro governo e embolsou. Toda biblioteca pública do Brasil tem a obra completa de Augusto Montalvo, mas a família passa fome. Vendeu livros pro exterior e nunca prestou contas justas, prestou contas fajutadas.
Val
É uma infâmia e calúnia, isso. A família é rica. O pai dela é uma glória nacional, traduzido para 54 línguas: cinco, quatro. Graças a mim! Tem Montalvo em língua quíchua, em esquimó! Só não ganhou o Nobel porque morreu antes. Não foi pra Academia Brasileira porque esnobou a Academia, se recusou a fazer visitas pedinchando voto. Soberbo Montalvo! Queria ser aclamado sem curvar-se jamais: “Vinde a mim os pequeninos!”. Como eu prejudicaria uma tal instituição humana, Augusto Montalvo? Instituição nacional, Augusto Montalvo? Como eu poderia? (Põe o dedo numa foto na parede, de grupo de pessoas.) Este senhor. Felicito-me de cá constar, em sua excelsa companhia, Augusto Montalvo. Este.
Numa
Prejudicar foi o que fez, além de comer Numância Montalvo, esta. (Põe o dedo na vagina.)
Valfrido
Eu articulei as traduções, cobrei os direitos autorais, que fluem sem cessar e lhe são repassados. Direitos autorais de paisinhos mesquinhos, ditaduras orientais que escondem a grana, árabes beduínos do deserto, fui atrás, pagaram. Pagaram com meu suor no Saara, meu risco de morte no lombo de um camelo.
Numa
E embolsou.
Val
Nem você jamais me acusou. Acusa agora, que o fluxo diminuiu, depois de tornar rica a família Montalvo. Você faz compras em Miami e espicha pra Quinta Avenida. Sua mãezinha viúva viaja com a amiga pra Europa todo semestre, e paga a passagem da amiga, a hospedagem, o perfume de Milão caríssimo. Me acusam agora, quando eu estou aflito, agoniado, as dívidas crescem, abro essa porta e invade-me o fedor do perfume de Milão, a conta. Agora acusam.
Numa
Não tinha provas, pra sonegar você é competente. E pra me enrabar aí, foi competente. (A poltrona.)
Eliseu
Os senhores lavam a roupa suja.
Val
Cheirando a perfume de Milão.
Eliseu
Não quero saber, vou-me embora pra minha terrinha e minha casinha. Não me acostumo com a gente daqui. (Pega a maleta de novo.)
Val
Eliseu, meu amigo, você não conhece São Paulo, a cidade. Não conhece os artistas de São Paulo, os intelectuais, os prósperos, sua fauna humana metida a besta, sua burguesia com seus carrões. Essas pessoas aqui, vou lhe ser sincero, são... cínicas. Exageradas, gozadoras, entende? Elas falam coisas em que não acreditam, falam por falar, para causar impressão. Xingam-se, depois vão beber cerveja. Eu amei esta senhora, oh, como a amei! Ela até me traiu uma vez e eu perdoei.
Numa
Valfrido, para com a roupa suja.
Val
Eu a amava. Oh, céus, a amava demais. Porque ela cá está, com esse jeito mandão de presidenta da República, mas sabe ser mulher, bem que sabe, quando quer. Sussurrou-me no ouvidinho ternos gemidos sensuais, ui, ui, mais, mais.
Numa
Não desça a baixarias, infame. Não seja mau-caráter além do que já é.
Val
Ela gosta das baixarias, por isso as digo, mais, mais, ui, ui, no rabinho, amiguinho. Eu quis casar com ela, já era casado, sou casado, meio separado. Fizemos amor aqui, confesso, três ou quatro vezes...
Numa
Trezentas. Não diminua nas trepadas como diminuiu nos livros vendidos.
Val
Fizemos para celebrar o ambiente, dar sorte. Este é um escritório que precisa da sorte contra o azar, porque aposta em talentos e os talentos são... furtivos, esquivos. Publiquei um outro sujeito que vendeu a primeira edição em duas semanas e encalhou a segunda edição, até hoje, tá lá encalhada no depósito, ele teimou em ser esotérico em tempos de evangélico, ou o contrário. E o sujeito me joga na cara que não vendo seu esoterismo.
Eliseu
O senhor devia publicar as vidas dos grandes craques do futebol.
Val
Craque não tem vida, tem gols. Faz muitos anos já, amigo Eliseu, não aqui, mas no centro velho de São Paulo, subia-se pela escada no último andar, apostamos em Augusto Montalvo, mineiro como o senhor. Escrevia ótimas histórias de um jeito complicado, entre o alfabético e o escalafobético. Inventava palavras. Cultivava impulsos místicos de sensualidade, seus acasalados trepavam rezando. (Faz a mímica disso.)
Numa
Cafajeste, respeite meu pai, não deboche das suas trepadas transcendentais!
Val
Dentais, ele mordia. Daria certo, Augusto Montalvo? Pois não é que deu? Então prosperamos e Augusto Montalvo mais ainda, comprou sítio, apartamento de cobertura, viajava todo ano pra Jamaica. De minha parte comprei este escritório no novo cartão-postal de São Paulo. Eu estava no auge do amor pela filha única de Augusto Montalvo, a filha querida Numância, homenagem à Espanha e a Cervantes. Oh, por ela eu abandonaria meu lar, eu... Faria qualquer coisa desatinada. Fiz isso, desatinado: fizemos amor aqui, eu e Numância, Numa, esta. Aqui. E acolá, no colchão pneumático. (Gesticula ondulante para a janela.) Os amantes acreditam nessas coisas, que o local em que se exerceu o ato do amor se... se sacramenta.
Numa
Sacramenta, pois, pois.
Val
Sacramenta, exatamente.
Numa
Excrementa. Você peida aí. (A poltrona.)
Eliseu
Os senhores antes se arranjavam sem mim, continuem. (Pega a maleta.) Volto pra lá.
Val
Como volta? Acabou de chegar!
Eliseu
Ontem fui fazer barba e cabelo na minha terrinha, ia viajar, sabe o que o barbeiro Heliodoro me disse? Ele disse, “muito cuidado, Eliseu amigo, se o home lá te oferecer tudo, prometer o mundo e o fundo, abre o olho. Ele pode te engrupir, cai fora”.
Val
É natural que as pessoas desconfiem. Mas você logo vai ver, Eliseu, que nos negócios bem-feitos todos ganham, não é preciso que um passe a perna no outro. Todos compram sítio, todas fazem compra na Quinta Avenida, as viúvas se perfumam em Milão. Seu menino prodígio será prodigiosamente rico e você também, podes crer.
Eliseu
Meu barbeiro disse mais, ele é ladino. Disse, “se quiserem te dar mulher pra passar a noite, é batata: estão engrupindo você. As putas de São Paulo ajudam os negócios”.
Val
São Paulo não tem putas, tem mulheres sensuais.
Numa
Obrigada pelo que me toca. Seu Eliseu, reconheço que eu estava exagerando. Eu não recomendo para nenhuma mulher que ame este homem, é um amante cruel. Mas não é um negociante tão ladrão assim. Eu vigiei ele e meu pai ficou rico, é verdade. Não ricoooooo, mas rico. Não tão rico quanto o gênio dele merecia, faltou o Nobel, mas rico. Se o senhor quiser, me dê procuração e eu vigio as contas do seu filho para o senhor.
Eliseu (Para Val.)
O senhor concorda?
Val
Se eu concordar, amigo Eliseu, você vai pensar que esta nossa briga de antigos amantes é um truque combinado. Vai pensar que somos amantes ainda e estamos fingindo uma briga pra “engrupir” você. O seu barbeiro Heliodoro vai confirmar isso, aumentar, e você mais raiva sentirá de mim.
Eliseu
Não penso uma coisa dessas, patrão.
Val
Não pensa porque você é uma pessoa boa. Ainda assim poderia pensar, você está entrando num mundo perigoso, Eliseu, o mundo dos negócios e do dinheiro. Quero lhe dizer que eu concordo, sim, com esta senhora Numância conferindo as contas, todas as
contas. Não tenho o que esconder, ganhamos unânimes com isso. Aceito a fiscalização e vou pagar um pró-labore para dona Numância checar as contas, está bem assim? Tudo passará por ela, se o senhor quiser. Ela sabe fazer contas, contava o dindim do pai e me enchia o saco por centavos. Mas só se o senhor quiser, dona Numância não está aqui para se meter nesse negócio. O negócio dela é o bastardo, não é o prodígio seu filho, e do bastardo trataremos às quatro da tarde, não agora. (Para Numa.) O bastardo, dona Numância, não o prodígio. Às quatro, como a senhora está agendada.
Numa
Do bastardo cuidaremos.
Eliseu
Pode ser.
Val
Pode ser o quê, Eliseu?
Eliseu
Ela pode ajudar nas contas e ganhar algum nisso. Confio nela.
Val
Mas... mas com ela é o bastardo!
Numa (para Eliseu)
Obrigada, o senhor é um amor. Dispenso o pró-labore, faço de graça. E saiba que quando faço de graça, faço bem! Gostei do senhor, seu Eliseu. Alguma coisa no senhor é limpa, autêntica. Nem entendi o que o seu filho faz, mas gostei. Por acaso é um menino prodígio da música, toca violão, canta? Música e violão é coisa de vagabundo mas dá dinheiro, se for uma bosta sertaneja.
Eliseu
Meu filho joga bola, dona Numa. Tem o dom da bola. Vai ser o melhor do mundo daqui uns anos.
Val
É um craque da bola. Um virtuose do século 21, com a vantagem de que não escarra sangue como o pianista Chopin. E é fácil de entender nas habilidades machas, sem as firulas de linguagem inventadas pelo gênio seu pai que atrapalham nas traduções. Os livros atrasavam nas traduções! Da China ligaram pra mim: o que é isto que Mister Montalvo escreveu? Eu lá sabia? Botem a chatice que quiserem.
Numa
Santa ignorância! Um gênio, ele, montado num asno, tu.
Val
O garoto faz firulas compreensíveis, não as afrescalhadas de Augusto Montalvo. (Controla uma bola imaginária com pés e pernas.)
Numa
Você nunca entendeu meu pai. Entendia o dindim que ele trazia, ele mesmo disse. Disse que você não leu dez páginas de cada livro dele, no português dele, não no chinês. Cinco páginas!
Val
Cinco páginas eu li, sim senhora. Dez, já não juro...
Numa
Leu cinco da obra completa.
Val
Mais! Eu lia as sacanagens. Ele era sacana em muitas páginas.
Eliseu
Mas meu menino é um gênio, todos dizem. O senhor disse.
Val
Um gênio, sem dúvida.
Numa
Um gênio?!
Val
Sim, querida, um gênio. Seu pai tem sucessor, o filho de Eliseu, treze aninhos.
Numa
Já não basta a ironia de me chamar “querida”?
Val
E eu terei a honra de promover um gênio depois que o outro virou nome de rua. Nunca supus que teria novo gênio na mão, agora tenho, o menino de Eliseu, gênio do pé.
Numa
Um gênio à altura do seu entendimento. (Faz a caricatura de uma firula do futebol.)
Eliseu
Fazem piadas com meu filho? Dão risada dele ser o que é? Dele não ser doutor? Pois ele é um craque. Ele um dia vai ter multidões gritando seu nome, herói da pátria na Copa, desfilar em carro de bombeiro. (Pega de novo a maleta que tinha largado.)
Val
Certamente que sim e ainda bem! De uns tempos pra cá, apanhamos sem dó na Copa. Nossos rapazes descem em Cumbica e só a família e a tevê esperam! Mas veja, amigo, o gênio já não é tudo. Seu menino... Jáquisson, não?
Eliseu
Jáquisson, sim.
Val
...Seu menino tem treze anos e quatro meses, na fase aguda do crescimento. É urgente trabalhar seu corpo, sem esquecer sua alma.
Eliseu
A alma vai bem, ele reza. Já não tem mãe, mas vigio isso.
Val
A alma e o espírito, falo da cabeça dele.
Eliseu
É boa cabeça! Cabeceia muito bem.
Val
Não basta a cabeça boa para os combates comuns, esses de todos os meninos. Ele terá combates especiais, fora do campo de batalha do futebol. Oxalá fosse apenas no campo. Ele vai lidar com a fama que cai no colo, o dinheiro que cai, as mulheres. Sim, as mulheres, e não serei eu arrumando mulheres pra ele, avise seu barbeiro. As mulheres vêm por si aos garotos de fama. Eles deitam na cama pra dormir, elas estão debaixo da cama. E logo engravidam por artes do prodígio seu filho, as marias-chuteiras.
Eliseu
E vêm meus netos da pouca-vergonha, as bebidas, as drogas, as más companhias da bandidagem, já sei. O barbeiro disse.
Val
Mesmo um gênio de outro tipo, gênio das palavras obscuras e piedosas trepadas, Augusto Montalvo, deu de beber depois da fama, fumou e cheirou o que pôde e desandou com mulheres. Era adulto, velhusco, superinteligente, gênio, e caiu na rede das mulheres. Até das jamaicanas! As mulheres são a desgraça dos homens bons. Não é mesmo, Numância?
Numa (Irritada.)
Não precisa pôr meu pai na gandaia.
Val
Você contou isso na biografia dele! Você! (Pega outro livro na estante e o exibe.) “Augusto Montalvo, meu pai”. Subtítulo: “Um gênio na contramão”. Autoria: “Numância Montalvo”.
Numa
Eu posso contar, eu conto com amor, você conta pra esculachar.
Val
E os dentes, Eliseu? É preciso cuidar dos dentes de Jáquisson.
Eliseu
O que tem, os dentes dele? Estão todos lá.
Val
Podem ter focos de bactérias. Descobriu-se cárie no canino.
Eliseu
Como sabe? Aparece na foto?
Val
Tenho minhas fontes, e fotos. Você não sabe, investiguei seu menino. Teve sarampo aos oito, escarlatina aos onze. Caxumba que desceu.
Eliseu
Desceu mas não ficou broxa. Sarou total. Já põe nas coxas das coleguinhas, me contou, e põe rijo. Com o maior respeito do cabaço delas.
Val
Eu sei, eu bem sei.
Eliseu
Como assim? Espiou ele? Como espiou?
Val
Mandei espiar. Não, claro, as encoxadas rijas. Mandei espiar, porque o organismo dele tem que ver com os meus negócios. E para isso há um custo. Estou investindo no seu menino faz quatro meses, Eliseu. Pus dinheiro aí que você nem faz ideia. Essa fita que você trouxe, a bem dizer não precisava. Um “olheiro” meu andou por lá, em Formiga, filmando o menino de dentro do carro, no bate-bola da quarta-feira. Sentou na beira do campo, o “olheiro”, coçava o saco. Não era o saco, era uma câmera ligada. Não perceberam em Formiga.
Eliseu
Como não? O barbeiro sabe. Ninguém coça o saco com um dedo só.
Val
Desconfiaram.
Eliseu
Truque demais em riba do menino. Vai que sequestram ele...
Val
Foi uma espionagem a favor do espionado. Fizemos um check-up do seu garoto antes de chamar você aqui. E ele mesmo não soube. Examinamos a urina dele, a saliva. Colhemos a urina no vestiário. A saliva no gramado. Os jogadores têm a mania de cuspir no campo, o seu cuspiu.
Eliseu
Craque cospe.
Val
Recolhemos, examinamos.
Eliseu
Ele nunca precisou se dopar.
Val
Não pensamos em doping. Queríamos uma checagem completa, saber do sangue bom ou ruim dele.
Eliseu
Se fosse ruim?
Val
Nada feito.
Eliseu
Se não fosse bom de bola, um craque?
Val
Não chamavam. Nem pisavam em Formiga.
Eliseu
Vou embora. (Pega a maleta.) Não quero meu garoto espiado.
Val
Espiado ele continuará sendo, é o destino dele. Vão xeretar cocaína em todo mijo de pós-jogo. Mas a fase inicial passou. Seu garoto foi aprovado, parabéns, você está aqui. Pagaremos os dentes, ele tem uma panela no canino.
Eliseu
Devo agradecer?
Val
Seria justo agradecer. São milhões de pais querendo filho craque Brasil afora e você aqui. Fique feliz, homem. Já lidei com um pai que queria o filho famoso e o filho era escrofuloso, pulmão fraco, nada feito. Com seu filho aprovado, obturado, tratado, treinado, logo você dará gorjetas gordas ao barbeiro.
Eliseu
O garoto quis vir junto, não deixei. O barbeiro disse pra não trazer.
Numa
Muito bem! Ele só pisa aqui com contrato assinado e “luvas” pagas.
Eliseu
Como a senhora sabe?
Numa
Sei também que foi ideia do barbeiro.
Eliseu
E foi. Então eu não trouxe ele. O senhor já tem o contrato aí?
Val
Está aqui, amigo Eliseu. Quer ler e assinar?
Eliseu
Vou ler no hotel, se o senhor não se importa. Assinar, amanhã.
Numa
Vai ler no telefone para o barbeiro.
Val
Eliseu pode ler pra quem quiser, é um papel honesto, bom para ambas as partes. (Pega da mesa o contrato e o estende a Eliseu.) Leve, leia no hotel, converse à vontade no interurbano, o Escritório Valfrido Lopes, este, paga tudo. Esgote o frigobar, tem um suquinho de uva com teor alcoólico. Temos firmas a reconhecer, você fica em São Paulo até depois de amanhã.
Eliseu (Pega o contrato, abre a maleta, guarda-o e tira outra vez a fita.)
Obrigado, patrão. Queria que vissem meu filho assim mesmo.
Val
Veremos já. Seu filho é o artista, vamos apreciar a sua arte que há de encantar o mundo. Mas ele tem treze anos, demora uns três até dar frutos. Nesses três, só vou ter despesas com ele e não são poucas. Considere isso ao ler o contrato. (Enquanto fala, cuida de ligar o televisor para pôr a fita, no que se revela incapaz e é ajudado por Ana Lúcia que vem da outra sala; ela é muito mais eficiente.)
Numa
Avise o barbeiro.
Eliseu
Eu não sou uma mula manca que depende do barbeiro. Heliodoro é meu amigo, mas eu tenho raciocínio. (Bate na testa.)
Faz-se um silêncio rápido, como se Numa e Val pensassem no que ouviram. Val bate palmas.
Val
Assim é que se fala, amigo Eliseu. É o que eu lhe dizia, os cínicos da capital. Eles se provocam, se cutucam, mas não levam as coisas a sério. Reaja a eles, responda à altura.
Eliseu
Vou reagir.
Val
Outra coisa, Jáquisson vai ter que falar línguas, inglês é fundamental, italiano, espanhol... russo, russo é importante.
Eliseu
O garoto não é de estudo, não. Negócio dele é a bola e eu aprovo. Se estuda, penso que tá doente.
Val
Tá doente. Lhe arranjamos uma namorada inglesa, depois uma italiana e assim vai. Russa, conheço uma Liudmila de Moscou. Nada de estudo. Aprende em cima do colchão pneumático, blá, blá, blá, babucha, cabucha, xoxótski, esporretóski.
Numa
Seu russo, pelo visto, é pior que seu inglês.
Eliseu
Não sei, não. Mulheres? Acabam com o gás do garoto.
Numa (Para Val.)
Não tem vergonha de passar suas putas eslavas pra um garoto?
Val (Para Eliseu.)
Eliseu, amigo, vê como é São Paulo? Esta moça graciosa, meiga às vezes, diz coisas monstruosas em que ela mesma não acredita. Liudmila é uma russinha também meiga mas nunca cruel, filha do meu amigo russo Alexei, boníssimo, cultíssimo, fala seis línguas. Ela, Liudmila, aprendeu inglês em Oxford, é uma graça de garota virginal. Pensei numa amizade, num primeiro amor de pegar na mãozinha, de fazer coraçãozinho quando marca gol. (Faz coraçãozinho comemorando.)
Numa
Um amorzinho neste valhacoito ininterruptus?
Eliseu
Melhor deixar o garoto fazer suas escolhas.
Val
Aí é que está. Garotos comuns fazem escolhas na vizinhança. Seu garoto não é comum. Se ele pode namorar e aprender russo, por que não? Se bem que não se manda um jovem craque pra Rússia, faz frio danado lá e a Rússia é a Sibéria das glórias futebolísticas. O paraíso é a Espanha, a Itália... (Entoa uma tarantella, até dança. A instalação da fita está concluída e as imagens, que o público não vê, começam a aparecer. A secretária Ana Lúcia havia voltado para seu posto na sala de espera, mas entra apressada e vem sussurrar no ouvido de Valfrido.)
Eliseu (Os olhos fixos na tela.)
Jáquisson, esse. Meu garoto. Eu joguei e não era mau. Mas Jáquisson! Deus faz uns milagres que não entendo. Tenho outro, Ericsson, quinze anos, é bom aluno na escola, não é craque.
Val
Gente boa, tenho que me ausentar uns minutos. Vou ao telefone na sala de espera. Continuem vendo, já volto. Ana Lúcia, senta aqui, veja enquanto eu atendo. (Sai.)
Eliseu (Ofendido.)
Se o dono do negócio não assiste, melhor é parar de ver e esperar.
Numa
Também acho. Podemos fazer pausa enquanto o dono telefona.
Ana Lúcia
Eu posso apertar “pausa”, mas é capaz que demore.
Numa
É ligação internacional?
Ana Lúcia
Não.
Numa
É Sófia?
Ana Lúcia
Não sei.
Numa (Convicta.)
É Sófia. Na verdade, é Sofia. Quando ela decidiu ser autora, por inveja de mim que já era, mudou o nome de Sofia para Sófia. Certamente por sugestão do agente literário, Valfrido Lopes, esse, que inventou “Borbulhas n’alma”. Pode? Era Sofia, como toda Sofia honesta, eslava de avó materna, virou Sófia, capital sei lá de onde. Eu nasci Numância, província heroica, meu pai gênio assim quis e conservei. Mas deu sorte Sófia, ela ganhou milhões, continua ganhando. De vez em quando descobre que foi alguém em vida passada. Vai dormir Sófia, acorda Joana d’Arc. Recorda pormenores “dessa” alguém. Escreve, molha o lápis na... Deixa pra lá. Começou indo dormir Sófia e acordando Maria Madalena. Arranjou um amante fogoso na sua vida de Madalena, Jesus, tudo com palavrinhas pias para não provocar fúrias bíblicas. “Ai, amor, segura a rigidez que vou ter um clímax.” O divino amor humano. É Sófia, não é, moça?
Ana Lúcia
Não sei mesmo, ela não disse o nome.
Numa
Não precisava dizer, você conhece a voz dela. Mas ela disse, sim, o nome. Ela sempre diz, tem orgulho do nome Sófia, benza Deus. Eu não me orgulho de ser Numância, nem de ser Numa, prova de amor à Espanha e a Cervantes, que se há de fazer? Bem, me orgulho um pouco, “Numância” enche a boca.
Eliseu
Em Formiga tem uma mulher que chama Hermengarda. Chamam ela de Espingarda.
Numa
Temos um problema. Quando ela se põe a ligar para Valfrido é que lhe baixou o santo e ela descobriu ter sido mais uma alguém na vida passada. Conta isso para Valfrido, que a ouve babando de admiração: “Oh, Sófia, que ideia espantosa!”. Ela ganhou milhões como Maria Madalena, ganhou muito menos como Mata Hari e bem pouco como Joana d’Arc, quem mandou encarnar numa virgem? Não tinha fodas para apimentar a autobiografia. Ainda assim inventou duas, com um campônio que lhe tirou sangue virgem e com um general, fogosa Joana, a donzela de Orleans, não trepou com o rei porque o rei era bicha. Ela, Sófia, sempre ganhou direitos autorais muito mais que eu, que tenho aspirações de continuar a glória do meu pai, nada menos que tudo isso. Enfim, esperemos o dono do negócio, Valfrido. (Grita na direção da porta.) Valfrido, ó Valfrido, estamos te esperando! Abrevia o papo! (Faz-se um silêncio.)
Eliseu
A senhora é uma mulher forte. Gosto de mulheres fortes.
Numa
Oh, obrigada. Muito obrigada mesmo. Faz tempo que não me elogiam gostoso. O senhor é um amor. (Fazem um silêncio de intenções caladas.)
Eliseu
A senhora é mulher da cidade grande que não aceita ser passada pra trás. Admiro.
Numa
O senhor perdeu a mulher. Como é isso, para o senhor?
Eliseu
Doeu, começa a doer menos. Um menino estuda, o outro é bom de bola, Jáquisson.
Numa
O senhor tem uma... namorada?
Eliseu (Depois de hesitar.)
Vou na zona.
Numa
Que horror! (Faz-se um silêncio constrangido.)
Eliseu
É, no meretrício. (Outro silêncio.) Já ia na mocidade, viuvei, voltei.
Numa
O senhor é fiel.
Ana Lúcia
Acho certo, isso. Se uma pessoa tem um amor e... e morre a pessoa que ela ama, ela procura alguém que é só o amor físico. Porque o outro, o grande amor, esse morreu. Estou muito errada?
Numa
Você é romântica! E seu Eliseu também.
Ana Lúcia
Sou mesmo.
Eliseu
Marivalda é meu amor da zona. Já pensei em comer a viúva minha vizinha, boa mulher, forte, coxonas, mas fiquei com a puta Marivalda. Não é só meter e pagar, com perdão da palavra. Molhar o biscoito. De todos os clientes, ela prefere eu. De todas as putas, eu prefiro ela. É limpinha. Às vezes chamo ela Mari, às vezes chamo ela Valda. Mari... Valda.
Numa
Romântico. Assim fode uma puta que são duas, limpinhas ambas, ao preço de uma.
Eliseu, inclinado, pensa no comentário, quando Valfrido entra distraído, pegando o fim da fala, e senta na sua poltrona para ver o filme. Surpreende-se de não haver filme.
Val
E então?
Numa
Interrompemos, na sua espera.
Val
Ah, sim, vamos em frente. (Ana Lúcia aciona o controle religando a fita.)
Numa
Em quem Sófia reencarnou desta vez?
Val
(Depois de outro movimento de surpresa.) Em Cleo. Cleópatra.
Numa
Cleópatra fatalmente chegaria.
Val
Você tem livros sobre Cleópatra e César? E Marco Antônio? Já esgotei o que sabia, preciso saber mais. Falei da cobra picando o seio de Cleo.
Numa
Falou dela embrulhada no tapete?
Val
Não.
Numa
Da dança pela cabeça do Batista?
Val
É Salomé. O que você sabe da vida sexual de Marco?
Numa
Tudo é possível nesse departamento.
Val
Tanto melhor, tudo é possível, tudo se inventa. Bem, veremos. (Aponta a tela.) É Jáquisson! Mas que belo garoto! Que cavalo! Eliseu, amigo, esse menino tem mesmo treze anos? Não é “gato”, não? Já me veio um que disse ter quinze e tinha vinte e um.
Eliseu
Treze anos e quatro meses, provo com o registro original. Meu garoto não é uma mentira, é uma realidade.
Val
Eu sei disso, perguntei por perguntar. Grande garoto!
Eliseu
É um filme caseiro, o barbeiro que fez. Aí ele mostra uns truques com a bola, qualquer um faz, Robinho, Ronaldinho...
Val
Maradona, Neymar, Messi, Cristiano... Essa cambada.
Eliseu
Isso aí.
Val
Nossa! É difícil. Repare a coordenação dos pés, Numa. Coisa de circo.
Numa
Eu teria que treinar um mês.
Eliseu
Você teria que nascer de novo, na pele de um crioulo magrinho e esperto, pra chegar perto disso. Ana Lúcia, repete a cena, por favor, volta um pouco. (Ela faz.) Esta jovem, maravilhosa por si, é de uma habilidade incrível. Todo aparelhinho, todo aparelhão, ela domina, faz gato-sapato. Consertou o ar-condicionado! Numa, Eliseu meu amigo, nós somos uns dromedários, uns dinossauros, o mundo é dos muito jovens. Veja seu filho com a bola, veja Ana Lúcia com os controles dessa joça. Os jovens são esplêndidos!
Numa
Você é um deslumbrado, Valfrido.
Val
Sou mesmo. Os jovens me empolgam. Donde esse rapaz tirou a habilidade? Você jogava bola, Eliseu?
Eliseu
Era beque. Isso aí é o famoso “elástico”, criado pelo Rivelino. (Faz o movimento do “elástico”.)
Val
Repare, Numa, que a bola parece colada à chuteira do menino.
Numa
Estou vendo.
Val
Volte um pouco, repita o elástico, Aninha. (Ela repete, acionando o controle da fita.) Se ele fosse um manipulador de cartas de baralho, todos diriam que é um truque, e não é. Nossas mãos são naturalmente hábeis, exceto as minhas, são hábeis as de Aninha. Mas ser hábil com os pés! Dar aos pés a magia de mãos. (Faz movimentos de “elástico”, num quase ameaço a Numa que se encolhe no resguardo da canela.)
Numa
Menas, menas. Segure a euforia, homem. Tenho veias varicosas.
O telefone toca e Ana Lúcia vai com rapidez atender na sala de espera passando pela porta que continuou aberta e fechando-a.
Eliseu
Vejam isso. Na região inteira, nas cidades vizinhas, só um veterano controla a bola assim, com o lado da chuteira e os dois pés. Mas o veterano não é rápido, fica longe. Jáquisson faz isso como se... sei lá. (De repente, num entusiasmo, ele bate palmas e Val e Numa batem solidários, ela com alguma ironia.)
Val
Bravo, bravo!
Eliseu (à tevê)
Deus te abençoe.
A porta abre e Ana Lúcia aparece sinalizando que é telefonema para Valfrido. Ele entende ser de novo Sófia e tem uma reação de impaciência logo disfarçada.
Val (Para Numa, mas com os olhos fixos na tela.)
Me conte, depressa, como é Cleópatra embrulhada no tapete.
Numa
Quando o romano Júlio César espera no Egito a chegada da rainha do Egito que ele ainda não conhece, eis que essa, Cleópatra, surge das dobras de um tapete. Maravilhosa, divina, carregada das joias de Liz Taylor.
Val
Sófia pintará isso com cores vivas, sinuosas, felinas, Cleópatra a surgir das dobras.
Numa
Não tenha dúvida. Ela escreve a lápis e molha a ponta do lápis na xoxota lúbrica.
Eliseu
Benza Deus, essa gente de São Paulo diz cada coisa! Xoxota lubrificada!
Numa (Sensual.)
O senhor gostou? (Pisca os olhos com faceirice.)
Eliseu
Putaria da boa. Com Marivalda, eu molho o biscoito. Mas Marivalda nunca disse coisa assim.
Numa
Marivalda é limpinha até de boca.
Eliseu
Ela é, escova o dente, faz bochecho...
Numa
Molha seu biscoito com sabor Listerine.
Val
Vou atender lá (na recepção), mas continuem vendo, depois eu repito, vou ver tudo, Eliseu. Infelizmente não sei quanto demoro agora, Sófia precisa da minha audiência para entusiasmar-se e criar. Assim ela criou o bestseller de 2003, O divino amor humano de Maria Madalena. (Vai saindo.)
Numa
Escrito a lápis.
Val
A lápis. (Passa para a recepção e fecha a porta.)
Numa
Ela é desses autores que precisam falar do que vão fazer, para quem ouve boquiabrir-se: “Mas que genial, nunca ninguém criou algo assim”. E o seu boquiaberto preferido é Valfrido, embora ele saiba que é tudo um cocô e se ria por dentro das cretinices dela. Mas ela vendeu 120 mil exemplares do divino amor humano. Meu amor apenas humano não vendeu mil...
Eliseu (Depois de pegar o controle e desligar a tevê, aborrecido mas não revoltado.)
Que tristeza! Dentro do ônibus, nesta madrugada, eu vim pensando no seu Valfrido que via as jogadas do Jáquisson e babava: é a maior promessa do futebol mundial. O ônibus
no escuro, só eu acordado, eu via meu Jáquisson na tela adiante, comigo seu Valfrido vendo o Jáquisson. Nada de tela nem de seu Valfrido tinha, tudo sonho meu. Agora aqui, a tela aí, ele não vê meu Jáquisson! Como posso amarrar esse homem e fazer ele ver meu Jáquisson?
Ana Lúcia
Ele vai ver tudo, seu Eliseu, vai amar. Ele até já sabe como é o Jáquisson, fala sempre sem parar no Jáquisson, Jáquisson isso, Jáquisson aquilo. Diz que Pelé foi a maravilha de um século e Jáquisson vai ser a maravilha do outro século.
Eliseu
Fala isso, seu Valfrido?
Ana Lúcia
Todo dia, a toda hora. Eu mesma já conheço o Jáquisson, de tanto que ele fala e até mostra foto, fita. Ele quer apostar tudo no Jáquisson. Jáquisson é um menino de ouro, ele diz.
Numa
Cuidado, garota. Você supervaloriza o produto que seu patrão ainda não comprou.
Ana Lúcia
Estou louca para ver Jáquisson, seu Eliseu. Vou contar pros meus filhos que vi Jáquisson começando, quando eu tiver filhos. Vou ligar, posso?
Eliseu (Reanimado.)
Pode, sim, menina, você é muito gentil. (Para Numa.) Menina de ouro, ela.
Numa cruza os braços, crítica, proibindo-se dizer o que pensa e apenas levantando as sobrancelhas. Ana Lúcia liga a tevê de novo.
Eliseu
Foi um jogo em Formiga. Veio o time da cidade vizinha e são adultos, como veem. Jáquisson entrou no segundo tempo, filmei a partir daí. São pedaços do jogo, só pra pegar o Jáquisson nele. Estava dois a zero pro visitante quando comecei. Lógico que filmei mais o Jáquisson que o jogo, que fiz uns cortes, eu e o barbeiro. (Aponta.) Meu garoto!
Ana Lúcia
Ele é grande pra idade, mas se vê que é um menino entre adultos.
Eliseu
Isso mesmo. Grande, mas treze anos. Começa a ir gente nos jogos pra ver ele, nem tanto os jogos. “Jáquisson, Jáquisson!”, já tem torcida se organizando.
Ana Lúcia
Upa! Ele enganou dois!
Eliseu
Repare que um ficou rindo, aquele ali.
Ana Lúcia
Envergonhado.
Eliseu
É que Jáquisson puxou a bola e os dois quase deram de cara um no outro. Ele faz isso, puxa a bola que nem gato, rap. (Faz gesto.) Eu já quis ser becão com ele, ele puxou, caí de bunda no chão. Rap!
Numa
Rap! (Faz gesto.)
Ana Lúcia
Que esperto que ele é! Pensa rápido.
Eliseu
Ele é direitista mas chuta igual com os dois, ele cabeceia tão forte que parece um chute, pá-pum, cabeça dura!, marcou gol de cabeça de fora da área! Tem um pulo de jogador de vôlei, voa. Não é egoísta, passa a bola pra quem vem melhor sapecar. Ele joga sem bola, atrai o marcador e um companheiro entra, pocotó! Na maciota. Não sei de onde meu garoto tirou isso, ele vê “co” rabo d’olho, eu becão no aperto chutava pro mato.
Numa
A raça humana é assim. Meu pai foi um gênio, eu acreditei herdar dele, ele dizia de mim “que garota, sou eu melhorado!”. Meus vórtices, meus abismos existenciais! Mas... ninguém vai como deve nas minhas profundidades. Nem Valfrido.
Ana Lúcia
Meu pai é comum, minha mãe comum. Eu sou comum e sou feliz.
Eliseu
Você não é comum! Eu que sou eu, um becão, já te amo. (Aponta a tela.) Vejam, atenção! (Faz-se um silêncio atento.)
Ana Lúcia
(Para a tela.) Vai, Jáquisson, vai, ele tá indo, é gooooool! É gol do Jáquisson!
Numa (Entre solidária, indiferente e sarcástica, arremessando as pernas abertas.)
Goooooool!
Eliseu
Viram? Ele só encobriu. Um toquinho por cima. Pra que força? (Gesticula o lance.)
Ana Lúcia
Quantos ele vai fazer assim? Quantos, no mundo inteiro? E eu, eu vi o primeiro... (Pega o controle.) Posso ver de novo?
Eliseu
Por mim, quantas quiser.
Numa (Soberba.)
Por mim...
Ana Lúcia repete e vibra outra vez, para orgulho de Eliseu. Numa se recolhe num silêncio, mas de repente se levanta e vai à porta fechada que dá para a recepção. Fica um tempo parada ali, assuntando, até abre ligeiramente a porta, enquanto Eliseu e Ana continuam em suas vibrações de torcida. Numa enfim volta a seu lugar. Está irritada.
Eliseu
Um jogador do outro time disse assim do Jáquisson depois do jogo: não dá pra marcar ele, é o diabo em pessoa. Diabo legal, claro, porque o garoto é infernal.
Ana Lúcia
Vou dizer uma coisa boba, não entendo de futebol. Ele é um anjo, um anjo da bola e do bem. Disse ruim?
Eliseu
Deus que me perdoe, mas nem sei se chamar meu filho de diabo ou de anjo faz diferença. Fico feliz do mesmo jeito.
Numa
É falso, é tudo falso.
Eliseu
Falso, a senhora diz? O que é falso? Treze anos, sim senhora!
Numa
Está na cara que é falso, isso aí. O senhor nem deve ser o autor da falsidade. O senhor é pai, pai consente e cala, até acredita. O barbeiro foi o autor.
Eliseu
Heliodoro? É um homem honrado. É tão bom barbeiro, que dá conselhos médicos.
Numa
Armaram isso tudo. O garoto, seu filho, “dibra” fantoches, uns sujeitos que se deixam “dibrar”. Eles nem são pernas de pau, são fingidores, fingem que são enganados pela habilidade do seu filho. Fingem tão completamente... Isso é teatro, não é futebol. É balé do terceiro sexo. Eu aí, que nunca chutei bola, seria campeã mundial feminina. Até masculina. Olha lá, “dibrou” de novo, faz-me rir!
Eliseu
Como se atreve, dona? Meu filho é uma enganação?
Numa
Seu filho não sei o que é. Mas essa filmagem é uma fraude. Eu tenho cara de otária? Os dois do outro time trombaram um no outro. Quem são eles? Oscarito e Grande Otelo? O Gordo e o Magro? Tiririca e Sapopemba?
Eliseu
A senhora sabe o grau de dificuldade de um elástico? (Faz a mímica do elástico.)
Numa
Deve ser fácil na frente de uma vassoura. (Aponta a tela.) Vassouras são esses.
Eliseu
Vassoura, meu filho?!
Numa
Vassouras, os outros. Seu filho é o bonitão da patuscada.
Eliseu
Não dá pra discutir assim. Nunca fui tão ofendido.
Ana Lúcia
Seu Eliseu, por favor... Seu filho...
A porta abre e Valfrido entra.
Val
O que se passa aqui?
Numa
Passa-se fraude.
Eliseu
Vou embora. (Para Numa.) A senhora é uma cadela. (Sai, deixando o paletó e tudo o mais para trás. Ouve-se que bate a porta de fora.)
Val
Numa, o que é que você aprontou?
Numa
Ele me chamou de cadela!
Val
Aninha, por que ele chamou ela de cadela?
Ana Lúcia
Gênio, seu Val. Os dois têm gênio, minha mãe diz.
Val
Gênio é o pai dela e o filho dele.
Numa
Nunca, nem você, seu grosso, nos nossos melhores dias, me chamou de cadela.
Val
Falha minha.
Numa
Estou estupefacta. E muito chocada. “Cadela!” Há coisas que se dizem, eu digo, e coisas que nunca se dizem. “Cadela!”
Val
Já investi enormemente nesse menino, joguei nele uma grana que nem tenho. Ele é a maior descoberta desde o seu pai. E isto! Esperem aqui, deixei Sófia pendurada no telefone. Sófia, e o bastardo, são minhas esperanças agora que o craque... (Está indo à recepção, mas para na porta e olha para Numa.) Cadela. (Sai e fecha a porta.)
Numa
Chocada.
Ana Lúcia
Uma coisa que eu aprendi trabalhando aqui é não ficar chocada.
Numa
Humilhou-me, o caipira. “Cadela!”
Ana Lúcia
Mas a senhora diz que o menino, tão jeitoso, não é jeitoso. Não pode!
Numa
É modo de dizer, ora essa.
Ana Lúcia
“Cadela” também é modo.
Numa
Você acha que, no fundo, ele me ama?
Ana Lúcia
Ele quem?
Numa
O caipira de Formiga, Eliseu, esse.
Ana Lúcia
Eu não entendo de amor.
Numa
Tão bonitinha e ignorantinha...
Ana Lúcia
Ele é um pouco assustado com a senhora. Quando a senhora olhava o jogo, ele olhava a senhora com o rabo d’olho, como um cãozinho olha o dono.
Numa
Você entende de amor. Gostei disso, do cãozinho. Explica a “cadela”. Assim? (Olha como cãozinho, a língua pendente.)
Ana Lúcia
Quase assim.
Numa
Você gosta de observar as pessoas, não?
Ana Lúcia
Minha mãe gosta. Em todos ela prega aqueles “zoião”.
Numa
Quero que observe meu irmão. Você faz isso?
Ana Lúcia
Seu irmão?
Numa
O bastardo.
Ana Lúcia
É irmão mesmo?
Numa
Irmão torto. Quer ver uma foto? (Tira do bolso uma foto pequena.)
Ana Lúcia (Delicada, em voz baixa.)
É torto?
Numa
É bastardo.
Ana Lúcia (Mesmo tom, baixo.)
Bastardo é palavrão?
Numa
Não é, mas evite falar “bastardo” para o próprio, ele pensa que é filho da puta – e bem que é filho disso, minha mãezinha acha. Chama-se Martim, olha ele. (Mostra a foto.) Que lhe parece?
Ana Lúcia
Quase não dá pra ver, está longe. Simpático.
Numa
Foi tirada na rua, sem ele perceber.
Ana Lúcia
Bonitinho.
Numa
Ele vem aqui.
Ana Lúcia
Eu sei. Ele ligou hoje cedo. Queria saber que ônibus pegava, expliquei direitinho. É mesmo seu irmão?
Numa
Por quê? Jovem demais pra meu irmão?
Ana Lúcia
Na minha cabeça, irmão seu não pega ônibus. Vem de carro.
Numa
Bem pensado. Mas irmão bastardo vem de ônibus e volta a pé. Pense nisso pra saber o que é bastardo.
Ana Lúcia
Tem dicionário aqui. Eu sei o que é bastardo.
Numa
Foi ao dicionário.
(A porta abre e Valfrido entra apressado.)
Val
Aninha, a Dona Luísa. Corra lá.
Ana Lúcia
A padaria?
Val
Corra lá. Pelas rotas de fuga deste prédio, o destino de um faminto é a Dona Luísa. Eliseu tem fome, viajou de ônibus...
Ana Lúcia
Bastardo!
Numa
Não. Esse é filho da puta mesmo.
Val
Tem fome, o bom homem, não lhe servimos nem cafezinho. Traga o bicho pra cá.
Ana Lúcia
Estou indo. E se ele não estiver?
Val
Procure no bar da pinga, duzentos metros adiante na outra calçada. Mas ache esse homem, urgente, traga de volta. Olhe na praça aí, pergunte pros guardas de patinete, são dois, se não viram um mineiro assim-assim indo pra que lado. Dona Numância, enquanto isso, nos fará o favor de escafeder-se.
Numa
Daqui não saio.
Val
Volte às três ou quatro pra reunião com o tarado, o bastardo. Escafeda-se, você põe louco o homem.
Numa
Fraudador. Produtor de filmes falsificados. Picareta. Cadela é a mãe dele.
Val
Não vou discutir isso. Aninha, corra lá.
Ana Lúcia
Estou correndo. Que digo pra ele?
Val
Diga que o aguardo, que sinto muito, que dona Numa é uma cadela com falta de macho. Cadela, não, uma neurótica sem macho.
Ana Lúcia
Ai, isso eu não digo, não.
Numa
Pode dizer, é a verdade.
Val
Corra, antes que ele se mande pra rodoviária na raiva.
Numa
O bicho do mato não tem celular?
Val
Ele tem, não deu o número.
Numa
O barbeiro disse pra não dar.
Ana Lúcia
Adeus. (Vai sair, mas Numa a segura.)
Numa
Eu vou. Pode deixar que eu pego esse homem.
Val
Você?!
Numa
Vou pedir-lhe perdão, ajoelhar-me, dizer que seu filho é o Mozart do pé na bola. “Seu Eliseu, volte, esta desgraçada se arrepende.” Bem pianinho de Mozart.
Val
Você?!
Numa
E se não funcionar trago ele a laço, na chincha, que nem boi fugido. Cadela que sou, mordo-lhe a bunda. Sei onde é a Dona Luísa. (Para Ana Lúcia.) Deixa comigo, garota, vá se depilar pro meu irmão torto. (Corre, sai, ouve-se a porta adiante bater.)
Ana Lúcia
Que faço, seu Val?
Val
Vá se depilar, querida.
Ana Lúcia
Depilada estou. Faço natação na Associação Cristã dos Moços.
Val
Então, é aguardar. Numa o traz, na chincha. Uma vez ela me apanhou num bar, me arrastou pra um hotel fuleiro em que o travesseiro cheirava a prepúcio de jumento. Mas não vamos lavar a roupa.
Ana Lúcia
Prepúcio é palavrão?
Val
Aquele era. Quero o seguinte de você e é uma boa missão. Eliseu voltando, arrastado por Numa ou de vontade própria, você vai com ele de táxi almoçar na Churrascaria Montana. Tudo pago pelo Escritório de Empreendimentos Valfrido Lopes, este. Ele está faminto, viajou a noite inteira sem dormir, tomou cafezinho na rodoviária. Por isso tem impulsos de boi brabo. Um rodízio de carnes cura. É fundamental que beba vinho, mas habituês de puteiro bebem litros de cerveja na espera da vez.
Ana Lúcia
Puteiro eu sei que é palavrão.
Val
No interior não é, não era no tempo de meu pai freguês. Puteiro é instituição municipal com serviço sanitário. Não importa. Importa é que ele beba o que lhe é do gosto beber. E coma, e coma toneladas de carne em rodízio. “Maminha, patrão?” Manda maminha. “Picanha?” “Linguiça?” Ele está impertinente por fome e sono. Na Montana eles têm uns pasteizinhos deste tamanho que dão no antepasto, deliciosos, experimente você. Liberam ar quando mordidos, pof. Adorei os pasteizinhos. Não levo eu mesmo Eliseu e você porque tenho de falar com Bob do Chelsea. Você vai lá de táxi com Eliseu?
Ana Lúcia
Se ele não voltar?
Val
Ele volta. Deixou tudo, paletó, fita, mala, o contrato na mala. Um mineiro não abandona a escova de dentes.
Ana Lúcia
Tenho firmas a reconhecer. O contrato da cantora...
Val
Amanhã.
Ana Lúcia
Pago como, na churrascaria?
Val (Que já mexia num porta-cartões e puxa um.)
Cá está. (Tecla o telefone e escuta.) Saul, grande Saul, é Valfrido Lopes que fala. Estou enviando aí uma menina linda, Ana Lúcia, minha secretária, mais um cliente meu. Quero que você em pessoa cuide deles. Aninha um dia vai pra novela da Globo, linda que é. E o cliente, um caipira desconfiado, é muito importante para a minha firma. Por favor, estenda o tapete vermelho pra eles, sirva o melhor vinho... o melhor, não, é muito caro. Dê cerveja, a mais forte. Deve ser viciado na pior nacional, ele é que sabe. Aquele pastelzinho que vocês só dão um por cliente de tira-gosto, ainda dão? Dê três pro caipira e, pra Ana... (Para Ana Lúcia.) Quantos?
Ana Lúcia
Dois.
Val
Três pra Ana. Ponha tudo na conta do Escritório Valfrido Lopes e trate o caipira como um príncipe, a Aninha todos babam por ela, princesa é pouco. Ó-quei? Saul, conto com você, esse cliente é muito, muito importante para mim, abraço. (Desliga.) É o gerente meu amigo, me fornece pasteizinhos extras. Falei no pastelzinho e estou louco por um, por três. Ai, aquele pastel! Mas vou para o outro lado encontrar Bob...
Ana Lúcia
Como um pelo senhor. Como três.
Val
Você é um doce de pessoa, um pastelzinho. Você foi Cleópatra na outra geração, não Sófia. Sófia foi Mata Hari, mata rato. Mas Eliseu, quando chega? Terá mesmo o caipira ido embora, maldita Numância, que veio a puta sádica fazer aqui de manhãzinha se devia vir à tarde, para o bastardo? Puta é palavrão.
Ana Lúcia
Faz tempo.
Val
Tenho um receio cá comigo, no peito meu. Numa quer me roubar o garoto. Por que veio cedo? Saberia já do garoto? Ela sondou você, Aninha?
Ana Lúcia
Nem sonhou de sondar, chefe. Fala do bastardo e basta.
Val
Nada basta para essa mulher e receio que estenda as garras para o menino do Eliseu. Bota ele aí mais um pouco, quero ver. Sei que ele é bom, será o novo Ronaldinho, Pato ou Ganso, nesse nível. Numa não entende de futebol, é uma literata esnobe. Escreve sobre paixões insolúveis, a heroína trepa com um e sonha com outro, onde já se viu? Onde já não se viu? É uma palpiteira boca-suja. O caipira a chamou de “cadela” e tanto valeu, cadela e caipira encachorrados. Por favor, Aninha, não conte pra sua mãe do que rola aqui, ela vai pensar que isto é um puteiro. Sem serviço sanitário.
Ana Lúcia
Tudo bem, seu Val. Se eu contar dos palavrões no meu doce lar, o senhor também pensa que o puteiro é lá. (Ana Lúcia já religou a fita e os dois olham. Faz-se um silêncio.)
Val
Epa! Mas esse jogo é mesmo combinado. Os adversários são molengas.
Ana Lúcia
Comeram muito pastelzinho.
Val
E beberam pinga. Olha o moleirão. Chuta, cara, ou Jáquisson vai te engrupir. (Presta atenção na fita.) Não tem importância, o rapaz se mexe como gente grande! Veja o controle de bola. O toque com o ombro, a bola na nuca... Você controla a bola com o ombro? (“Controla”.)
Ana Lúcia
Nem pensar.
Val
Nem eu. Veja, a finta... o elástico... a bola entre as pernas. Goooooool! De pé esquerdo, o pé menos hábil... mas os dois são hábeis. Aninha, congele isso, deixe na imagem de Jáquisson goleador, um pouco pra trás, assim. Aí, para. Quero ficar com a melhor impressão, esse menino é Mozart congelado. Jáquisson no ar, vai cabecear. (Imobiliza-se.) Grande garoto, glória próxima e máxima do melhor futebol do mundo, o brasileiro! Por que não volta o caipira, por que Numa não volta? Essa mulher terrível quer me roubar o Mozart!
Ana Lúcia
Ela, de verdade mesmo, é uma mulher em busca do amor, seu Val. Eliseu é um homem bonito e nada tolo, é viúvo...
Val
Continue com a imagem, Aninha, quero ver mais Jáquisson. (Ela continua.) E Numa vai casar com ele e morar em Formiga?
Ana Lúcia
Não, ele vai se mudar pra Sampa e morar com Numa mais Jáquisson, mais o outro filho.
Val
Faz sentido.
Ana Lúcia
Então, é uma história de amor.
Val
Numa vai ficar em casa, substituindo a puta de Formiga, cozinhando pro seu homem?
Ana Lúcia
Jáquisson vai ganhar muito dinheiro. Vão comer pastelzinho todo dia.
Val
Não pode, ele engorda. Vai ganhar, ai, ganhar dinheiro e Numa vai administrar. Numa vai negociar com a cúpula do Barça, essa mulher não tem limites. Em Barcelona ela vendeu livros do pai, punha um pacote em cada loja levado no seu sovaco sensual. Mas ganhar com Jáquisson, só daqui a cinco anos; Jáquisson é um diamante bruto, cariado. Um amor de Numa não dura cinco anos, com despesas no caminho. É só lhe faltar tostão e ela tem faniquito. Vai estragar o menino. Fazer o coitado ler suas borbulhas n’alma. Craque que leia a prosa de Numa nunca acerta o gol. Também não pode ler o genial pai dela, faz gol contra. Faz filho na bandeirinha. Bem antes dos três anos Eliseu terá caído fora, chamado o barbeiro pra procurador de Jáquisson e a puta de Formiga pras fissuras de argola de pai e filho, afinal a puta são duas. Aninha, não conte em casa.
Ana Lúcia
Numa é muito esperta, seu Val.
Val
Ela é. Você também é, Aninha. Bobo na história sou eu. (Aponta o televisor.) E os adversários cabeças de bagre de Jáquisson. Que devo fazer, querida?
Ana Lúcia
Fica na sua, seu Val. O senhor é que entende do negócio, ninguém mais.
Val
Não entendo tanto. Meu negócio é a literatura. Mas a literatura, hoje... Os livros vão acabar. Serão escritos por famosos de outras áreas, o cantor, a atriz, o big brother do ano, a socialite, o estuprador. O sujeito que fez o caminho de Santiago pulando num pé só. O barbeiro de Formiga, a puta de Formiga, Jáquisson, o craque de Formiga. Só vai me restar Sófia, mas Sófia... há limites para reencarnar. Sófia já não reencarna bem. O bastardo talvez me salve, mas é irmão de Numa e em Numa não confio, maldita Numa. Nenhum Montalvo se salva nem me salva, o velho fauno, então, o pior, um escroto. Comia a camareira. Montalvão! (Está junto à foto na parede e põe o dedo em Montalvo, depois fecha o punho como se fosse lhe dar murro.) Eu preciso do prodígio, Jáquisson. Um garoto de ouro, goleador, é mina de ouro para vinte anos. Eu queria ser pai do prodígio. Não sou pai, desse nem Montalvão é. Então tenho de ser agente, ele tem de ser meu, Aninha. Desliga a joça, não aguento ver Jáquisson pensando que não vai ser meu.
Ana Lúcia
Ele vai ser. (Toca o telefone. Ana Lúcia olha para Valfrido e ele lhe faz sinal.)
Val
Se for Sófia, saí pra encontrar Bob. (Ela atende.)
Ana Lúcia
Escritório Valfrido Lopes. Ah, sim... Tudo bem, eu digo pra ele, pode deixar... Certo, eu digo... Às quatro horas, isso... Eu digo, obrigada, dona Numa. (Desliga.) Dona Numa achou seu Eliseu. Ela vai almoçar com ele. Num vegetariano chique, ela disse. Ela vai pagar tudo; pagar tudo, não, vai trazer a conta, para o senhor não se preocupar. Às quatro estará aqui para o bastardo, ela disse. Ela leva seu Eliseu para o hotel, disse.
Val
Pastelzinho ele não come, mas... Maldita Numa. Não se vai com um caipira pra vegetariano, vai-se pra comer carne. Caipira é carnívoro. Em Formiga, sabe o que os formiguenses apreciam? Pés de galinha cozidos, comi lá. Liga pro Bob, suspende o encontro, tive uma emergência, diga. Vamos nós à Churrascaria Montana, já, você é a princesa minha convidada. Oh, Aninha, você é tão maravilhosa. Já eu... o colchão de ar não é para mim, minha inevitável decadência... Resta-me o pastelzinho acolchoado do ar que se expele quando se morde, pof. (Enquanto falava, ele caminhou para a janela e olha de lá para baixo.) Sabe o que eu seria na vida, se me fosse dado recomeçar? Eu seria vigilante em patinete motorizada, como aquele. (Faz a mímica de andar em patinete.) Que vidão, pra lá e pra cá numa patinete! Tudo evolui no mundo, até a função de vigilante. Eu não evoluo, persigo a vã literatura. Desliga a joça, querida, a habilidade
de Jáquisson me incomoda, odeio Jáquisson, vá pra puta que te pariu, Jáquisson. E a boa mulher que o pariu já morreu, que monstro eu sou... E Numa acolá, a cadela e seu cão. Sou um fracasso, um fracasso. Desligue a joça.
Ana Lúcia (Desligando.)
O senhor ainda tem muita lenha pra queimar, seu Val.
(Valfrido continua “na patinete”. Fim do primeiro ato.)
SEGUNDO ATO
No mesmo cenário, Valfrido dorme na poltrona reclinável. A maleta de Eliseu com seu paletó arrumado em cima está num canto visível para o público. Toca a campainha da sala de espera cuja porta está aberta, mas Valfrido continua dormindo pesado. Toca pela segunda vez e só na terceira ele acorda, agitado. Grita “um momentinho” e levanta-se de má vontade. Sai de cena, ouve-se que abre a porta de fora e logo volta com Numa.
Val
Ana Lúcia já chega. Dispensei Bob do Chelsea, fui comer com Aninha. Comi demais, deve ser ansiedade.
Numa
Você sempre foi guloso.
Val
Não sou mais, só que hoje... E Eliseu?
Numa
Dorme no hotel. Almoçamos também, levei ele pro hotel, pus ele na cama, serviço completo.
Val
Completo como?
Numa
A triste criatura não tinha dormido na viagem. Só um desmaio, ele disse, e nesse sonhou com o filho no avião, o avião caindo no mar.
Val
Ele precisava disso, forrar o estômago e um bom sono. Tomou banho, vestiu pijama?
Numa
Vestiu pijama sem banho, caiu na cama como um boi cansado.
Val
Trazido na chincha. Não estaria o pijama nessa maleta? (Aponta com ar de esperto.)
Numa
Uma de duas: ou o hotel fornece pijama ou o pus na cama pelado. Embriagados que estávamos com bolinho de espinafre, nem sei o que mais rolou.
Val
Ah, claro. Falemos do seu irmão.
Numa
Deus meu, não é que eu tenho um irmão?! Até agora a ideia não me entrou aqui. (Na cabeça.)
Val
Daqui a pouco ele entra aqui. (No ambiente.)
Numa
Um irmão! Na escola me perguntavam se eu tinha irmão, não tinha. Na vida me perguntam, nunca tive, sou filha única. Agora não sou mais.
Val
Como vai ser, ele entrando aqui? Cairão nos braços?
Numa
O que me aconselha, querido?
Val
Não sei. A bastardia tardia nunca esteve nas minhas cogitações.
Numa
Na minha até que esteve e mesmo assim estou perplexa. Meu irmão! Pra minha mãezinha viúva sobrou um filho que não é dela, vai ter que gostar dele mesmo assim.
Val
Ter que engoli-lo.
Numa
Pois é.
Val
Dividir a herança.
Numa
Você não disse que vai multiplicar?
Val
Multiplicar e dividir.
Numa
Não importa, eu assumo. Tenho um irmão e ele é bem-vindo! Não se renega um irmão.
Val
Está certo. Caiam nos braços.
Numa
Ele está chegando. (Ela se volta para a porta como se chegasse mesmo e abre os braços.)
Val
Ainda não. Deixe comigo a exposição do caso, sou o advogado e agente. É uma situação de encontro de irmãos, mas é negócio também. De negócios cuido eu.
Numa
Tive uma ideia.
Val
Suas ideias me fazem tremer.
Numa
Ele não vai se sentar aqui, olhar para esta mulher qualquer, ouvir a história e olhar de novo para esta mulher sua irmã. É tudo... chinfrim. Suburbano. Não!
Val
Não?
Numa
Ele vai entrar, você fala com ele como agente e advogado, conta a história, faz a espantosa revelação. Ele é bastardo e o bastardo tem uma irmã. Então, tã, tã, tã, tã, tã, entra a irmã. (Aponta a porta.)
Val
Legal. Nada suburbano.
Numa
Depende de como se faça. Se nessa porta estiver uma dama intensa... Representado como merece, será... (Procura a palavra.) Empolgante. Eletrizante.
Val
Tanto assim?
Numa
Mais do que você supõe. Você nunca foi homem de imaginação. Você é calculista, as paixões imortais que meu pai descrevia batiam em você como cifras a arrecadar, apenas. Dindim. O amor impossível de Hermínia e Haroldo, a obsessão de Ismênia, a louca ambição de Doralice, oh, o que isso tinha que ver com você, meu querido? A inveja de Bartolomeu, que não podia suportar a prosperidade de seu cunhado, o distúrbio de personalidade de Escragnole perdido na selva da Jamaica...
Val (Corta.)
Seja breve, seu pai produziu personagens demais. Um fruto real das paixões do seu pai chega aí, é o que importa. (Toca a campainha na outra sala.)
Numa (Em sobressalto.)
Onde me escondo? Quero a aparição empolgante. “Meu irmão!” “Minha irmã!”
Val (Aponta.)
Lá, debaixo da mesa de Aninha. Meta-se lá. Se Aninha chegar, evite tomar chute.
Numa
É ridículo, não assumo decúbito dorsal, seja o que isso for. (Empina a bunda.)
Val
Não mesmo?
Numa
Vou para o banheiro, seu grosso, é mais prático.
Val
Pensei que você amava complicações. Seu pai amava. (Toca outra vez a campainha.)
Numa (Aponta.)
Não feche essa porta, só encoste. Vou ouvir o momento exato de entrar. “Meu irmão!” (Sai, silenciosa e ágil. Valfrido vai atender, ouve-se que saúda cordial e ele volta com Eliseu.)
Val
Um passarinho me contou que você foi para a cama e dormiu como um anjo.
Eliseu
Fui pra cama, não dormi. Não sei o que é que eu tenho. Me virei pra cá, pra lá, não dormi, e olhe que o colchão é bom mesmo. Tive um pesadelo rápido, meu menino quebrava a perna atropelado por trem, liguei pra ele, está tudo bem. O que é que eu tenho?, me diga.
Val
Bolinho de espinafre. Isso dá um agito tormentoso.
Val
Nada. Como um monte de pé de galinha frita e não atormento.
Val
O agito dos fatos novos mexeu com sua cabeça. São Paulo!
Eliseu
Bobagem, não sou disso.
Val
Não será... o amor?
Eliseu
Acho que é a falta do pijama. Sem pijama nunca durmo.
Val
Com certeza, pijama. (Numa entra da mesma forma ágil.)
Numa
Querido, caiu da cama?
Eliseu
Sonhei que Jáquisson quebrou a perna.
Numa
Terrível desgraça!
Eliseu
Liguei, não era nada. Pijama.
Val
Pijama.
Numa
Meu bastardo está chegando aí. Quando a campainha tocar, corro pro banheiro.
Eliseu
A senhora... você tem bastardo?
Numa
Irmão bastardo. Não confundir com são-bernardo, que é cão.
Eliseu
Sei o que é bastardo. Meu Jáquisson é meu mesmo, sem-duvidamente.
Val
Claro que é, você foi beque. (A campainha toca, os três assustam.)
Numa
Volto lá, para o decúbito. (Empina a bunda e corre na ponta dos pés para fora.)
Val
Ela pensa que “decúbito” veio de cu, pode?
Eliseu
Não veio?
Val
Que eu saiba, existe o dorsal e o ventral. Só se for o decúbito ventral, de ventre pra baixo e cu pra cima. O bastardo chega aí, mas não se diz bastardo ao próprio, é uma palavra feiazinha. (A campainha toca outra vez.) Aninha não é, ela tem a chave. Não sendo Aninha, é o bastardo e ele é bem-vindo. (Apressa-se a atender. Ouve-se que abre
a porta e faz festa.) Martim, não? Martim Francisco? Martim Afonso de Sousa? Martim Lutero? Muito prazer, Martim. (Entram, Valfrido com a mão no ombro do rapaz.)
Martim
Só Martim Honorato, doutor. Na minha família, todo mundo tem nome curto.
Val
Melhor assim. Não sou doutor, sou agente cultural e empresário. Deixe lhe apresentar este amigo Eliseu. Ele vem de Formiga, Minas Gerais, e tem um filho mais novo que você, treze aninhos.
Martim
Muito prazer, seu Eliseu.
Eliseu
O prazer é todo meu. Tenho dois filhos.
Val (Para Martim.)
Um desses, Jáquisson, será famoso no mundo inteiro. Joga futebol.
Eliseu
Ele é bom, é muito bom, gênio, mas nunca se sabe se será famoso. A gente põe e Deus dispõe.
Val
Ele tem o dom.
Eliseu (Para Martim.)
O senhor joga futebol?
Martim
Já joguei e já parei. Não tenho o dom.
Eliseu
Que pena.
Val
As pessoas nascem com dons diferentes e mesmo sem dom nenhum. Eu, na falta de um dom, virei agente de quem o tenha. Você, Martim, tem algum? Pinta? Toca piano? Canta? Gosta sertanejo?
Martim
Não senhor. Tenho até vergonha de dizer, mas escrevi umas poesias.
Val
Disse poesias? Poesias de amor?
Martim
De amor, de dor, de rancor, de estupor.
Val
Ora vejam, respondeu rimando.
Martim
Desculpe.
Val
Você sabe por que lhe chamei aqui?
Martim
Não faço ideia. A mensagem dizia que é muito do meu interesse.
Val
Passei um traço embaixo de muito. Muito do seu interesse.
Martim
Seria...? Não faço ideia.
Val
Um emprego? Pretendo lhe oferecer um emprego?
Martim
Bem, tive essa esperança. Preciso ajudar em casa. Não sei se tenho... o preparo... o jeito... o conhecimento...
Val
Domina o Power Point, o sistema Windows?
Martim
Assim, assim...
Val
Tudo bem, sou cretino nisso, quis lembrar mais um nome do assunto e nenhum me ocorreu depois de Windows. Sentemos todos, para conversar com calma.
Eliseu (Diplomático.)
Eu vou dar um passeio por aí, volto daqui a pouco. Tomar um café na Dona Luísa.
Val
Não, não, Eliseu meu amigo. Fique conosco. Aninha logo chega, foi buscar uns papéis, daqui a pouco encomenda pastéis. Um lanche pra nós. Participe da conversa com o Martim, será um prazer para todos.
Eliseu
Se é assim... Não atrapalho mesmo?
Val
É assim, você até ajuda, pois tem um filho. Vai gostar do assunto, envolve jovens, o futuro brilhante, um pouco do mesmo jeito que o seu filho.
Eliseu
Eu fico, então.
Sentam-se à mesa, Valfrido na sua poltrona.
Val
Poesias, você é poeta! “Ai que saudades da aurora da vida.” Conheci um poeta, era da Academia Paulista, santo homem. Não se pode poetar e ser um egoísta, um estroina. A poesia exige sensibilidade, a capacidade de captar o oculto dos sentimentos humanos.
Martim
Não sei se tenho isso. Inscrevi meus poeminhas num concurso e não é que ganhei prêmio?
Val
Ganhou dinheiro?
Martim
Dinheiro, não, ganhei publicação numa antologia.
Val
Isso é ótimo.
Martim
Por acaso, seu Valfrido, o senhor, ligado a livros, eu soube, me chamou tendo em vista o concurso, o prêmio? Saiu no jornal.
Val
Eu não sabia do prêmio. Mas acredite, jovem, sei mais coisas de você do que você pode imaginar. Mais coisas do que você mesmo sabe de você. Diga-me, o que foi esse curativo na base do seu pescoço que vejo deste ângulo? Não precisa dizer se for... íntimo. Um chupão de amor.
Martim
Isto? (Puxa a camisa mostrando um pequeno xis de esparadrapo.) Não foi nada, uma pessoa me atingiu, eu sentado no ônibus. Pediu mil desculpas, escorregou com uma brecada, chave na mão, queria pagar o curativo. Quase já sarou.
Val
Pediu desculpas, quis pagar. A metrópole brutal tem gestos não esperados. Outro dia cheguei no meu carro e encontrei um cartão no vidro da frente. O sujeito ao manobrar tinha encostado no meu e se prontificava a indenizar, pode? Indenizar uma raspadinha que ninguém viu acontecer. Que ninguém vê no carro já antes amassado, nem eu vi! O sujeito foi educado.
Eliseu
Em Formiga tem pessoas muito boas. Seu Fausto, o médico Santomauro...
Val
Vivemos dizendo que o mundo está perdido, e está. Mas sobram uns lampejos de bondade, fiapos da antiga gentileza. Outro dia um moleque me disse “por obséquio”, ora vejam, “por obséquio”. Meu jovem Martim, teria eu, agente literário, chamado você aqui não para lhe oferecer emprego, sim para agenciar seu livro de poesias? Publicar, divulgar? Fazer lobby para ganhar o Prêmio Jabuti?
Martim
O senhor leu o livro?
Val
Poderia ler?
Martim
Algum jurado do concurso dar cópia...
Val
Não li, estou sabendo do livro por você. A dificuldade, meu jovem, é que, se eu publicar poesia neste país de analfabetos e insensíveis... sabe o que farei na miséria implacável? O que farei a partir dessa janela de sétimo andar? Saltar-me-ei. (Faz o gesto de saltar de cabeça para baixo.)
Martim
Não pensei em nada disso, seu Valfrido, só que não entendo...
Val
Vai entender, logo você entende. Não leve a mal eu falar assim da sua arte poética, sou ignorante disso. Sou prosaico, não sou poético. Fiz questão de segurar Eliseu aqui conosco porque ele é correto e julgará a pureza de alma com que lhe falo, rapaz. Antes, me conte do seu pai. (Ele se levantou e anda pela sala, fazendo com que os outros se virem sentados.)
Martim
Que tem o meu pai?
Val
É um bom homem? Você ama seu pai? (Ele está na porta quase fechada e espia por ela, acenando escondido para Numa.)
Martim
O senhor...? Não entendo.
Val
Não leve a mal, não procure adivinhar minha intenção, apenas responda.
Martim
Se amo...? Certamente, é meu pai. Até beijo ele ao dizer “boa noite”.
Val
É um serralheiro, não?
Martim
Que há de mal com serralheiro?
Val
Nada. Respeito todas as profissões, em especial as que fazem coisas. Acho admirável que pedreiros se juntem e ergam prédios. Há uma rua, não longe, ali, em que eu passava
e tinha um vão. Um terrenão vermelhão, uns matos. Fiquei sem passar por ela, não calhou mais de ir por essa rua. Muito bem: passei nesta semana e havia um edifício espelhado em azul com heliponto no cocuruto. Ali, onde ontem era um chão batido, ninho de noias da madrugada, espelha-se a energia telúrica de Sampa, oh, também sou poeta. Um belo edifício. Admiro.
Martim
Meu pai é serralheiro, sim.
Val
Que você ama.
Martim
É meu pai.
Val
E ama sua mãe.
Martim
Que jogo é esse?
Val
Jogo nenhum.
Eliseu (explodindo)
Não suporto isso. Fico nervoso. Moço, você é bastardo.
(Faz-se um silêncio de busca de entendimento.)
Martim
Sou...?
Val
A palavra é forte e rica de rimas. Você, por exemplo, é um bardo bastardo. Mas reaja, rapaz, não se deixe abater por rótulos. Você de fato é bastardo, tudo bem porém, gente ilustre foi ou é. Lorde Byron...
Martim
Eu sei o que é um bastardo.
Val
Não é o que muitos supõem, um filho da mãe. Bastardo inglório.
Martim
O que sabem os senhores de mim que eu mesmo não sei?
Eliseu
Não sei porra nenhuma.
Val
Bem... É melhor dizer tudo sem rodeios. Seu pai serralheiro... Ele faz grades, portões de ferro, mas não fez você. Não é seu pai. Cá no segredo de nós três, bem entendido. Poupe-me, não dê com o pé na minha cara.
Martim
Tem certeza?
Val
Absoluta. Imploro pela sua compreensão.
Martim
Como sabem disso pessoas que não são da família?
Val
Pessoas da família sabem disso. Você é que não sabe dessas pessoas nem da família. Por exemplo, você tem uma irmã...
Martim
Nunca tive uma irmã.
Val
Agora tem. Agora é informado de que sempre teve. Neste preciso momento, é informado. (Dá um tapa na mesa, a porta abre e entra Ana Lúcia com uns papéis na mão. Ela dá poucos passos e vê Martim. Fica paralisada e ele também. Há um congelamento, no qual Ana Lúcia e Martim se encaram, com a súbita revelação de um amor à primeira vista. Sorriem um para o outro enquanto soa “para eles” uma música. Ao fim desse interregno não realista, em que os demais se apagam, cessa o encanto e Martim fica embaraçado.)
Martim (Aponta Ana Lúcia.)
É...? É minha irmã?
Val (oportunista)
Você a aceita como irmã? (Martim balança a cabeça meio aceitando, meio não.) Pois não é. É Aninha, a secretária faz-tudo da empresa. Consertou o ar-condicionado. Ela me traz papéis para assinar, que foi buscar na casa de espetáculos. Sou o agente de uma cantora que tem voz simpática e pernas sensuais. Faz sucesso com as duas, as duas pernas. (Ana Lúcia lhe apresenta os papéis, que ele assina. Enquanto assina, Ana e Martim“se namoram” com olhares tímidos. Ela recebe os papéis e se retira encantada. Ele permanece alheio aos demais, tocado.)
Eliseu
Fiz bem de não trazer Jáquisson. O garoto precisa cuidar de jogar bola.
Val
Ouça, meu amigo. Falemos sério. Você já sofreu o primeiro choque, precisa se preparar para o segundo.
Martim (ainda alheio)
Qual é?
Val
Sua mãe, num dia que já vai longe, viu um homem e, da mesma forma que você neste instante mágico, encantou-se com ele. O amor, meu jovem, é uma coisa inesperada e maravilhosa, oh, eu também amei. De repente soa uma música no céu dos amantes, é o amor.
Martim
Ela fez isso? Amou o homem?
Val
Esses assuntos são delicados, mas... Ela fez isso. Hoje não há dúvida que fez. Eu sei detalhes desse encontro fatal, fatal para o coração feminino. Sua mãe era lindíssima então e casada com seu pai serralheiro. Tenho uma foto, não pergunte como tenho. (Mostra a foto que retira da agenda na mesa.) Reconhece sua mãe? (Martim olha e faz que sim com a cabeça.) Posso mostrar para nosso compadre Eliseu?
Martim
Nesta altura minha mãe já... Pode mostrar, gosto do seu Eliseu.
Val
Você não precisa ter cuidado nas questões em que pessoas veem escândalo. Esta é uma história de amor. Foi narrada em forma de ficção, com troca de nomes e lugares. Talvez cause horror a você, não devia causar se você é um poeta. Ela, a história de amor, já foi traduzida para duas dúzias de idiomas. Duas dúzias! É o amor de Anselmo por Maria
Clara em Paixão outonal, o famoso romance do seu pai. Seu pai é um famoso romancista. Você, você Martim, é personagem de romance também com nome alterado, faz quase quinze anos.
Martim
Um romance de infidelidade e filho natural, com outros nomes... tudo bem. Uma revelação que destrói a vida real de um casal, sua honra, é diferente.
Val
Você é jovem, tem da honra uma ideia... juvenil. Comece aceitando esta verdade que não pode ser horrível: seu pai não é um honrado serralheiro. É um escritor, um artista, gênio da narrativa, dos amores impossíveis. Sua genética, moço, é preciosa. Seu pai é nome de rua em sete cidades do Brasil e numa ponte da Ucrânia. Melhor dizendo, num viaduto da Romênia.
Martim
Ele sabe disso?
Val
Ele quem?
Martim
Meu pai.
Val
Ele morreu.
Martim
Meu pai serralheiro.
Val
Esse? Não conheço seu pai, nunca vi. Ou por outra, vi no fundo da serralheria, lhe pedi orçamento. Não sei se sabe. Quase com certeza sabe.
Martim
Minha mãe?
Val
Se ela sabe?
Martim
Sim.
Val
Martim, Martim, você é um poeta, sua mãe é romântica. (Até aí Valfrido não virou a foto para Eliseu e este não se aguenta de vontade de ver, a ponto de não acompanhar a conversa. Enfim Valfrido entrega a foto a Eliseu, que se lança na contemplação com uma voracidade que logo reprime, arrependido.) Não veja as coisas como os simples as veem, veja como são, ou foram. E foram... uma paixão de outono de seu pai, uma coisa bonita.
Martim
Meu pai teria sido... Augusto Montalvo?
Val
Nada menos que esse. Você, por instinto filial e genética herdada, sabe de Montalvo. Já deve ter lido seus livros. É o que identifico como... “o chamado do sangue”.
Martim
Nunca li Montalvo. Não abri um sequer.
Val
Seu nome, Martim, foi Montalvo que escolheu para você. Não escolheu Honorato.
Martim
Como sabe?
Val
Está escrito no “Diário Secreto”.
Martim
Que “Diário Secreto”?
Val
O “Diário Secreto” de Augusto Montalvo. (Para Eliseu, que olha ainda a foto.) E então, que tal lhe parece a mãe do nosso amigo?
Eliseu
Com todo o respeito, bela.
Val
Leia a dedicatória. (Para Martim.) Você não se importa que se leia, não? É decente.
Martim
Não me importo, mas gostaria de ler antes. (Valfrido tira a foto da mão de Eliseu, mostra o verso dela para Martim, que a lê depressa, diz “não me importo” e a foto volta para Eliseu.)
Eliseu (lê alto)
“Querido...” (Olha em volta.) Está escrito aqui.
Val
Obviamente.
Eliseu
“Hei de amar-te para toda a eternidade. Abraça-me. Guarda-me. Tua Lisandra.” (Envergonhado, ele aponta o verso da foto para frisar que apenas leu.)
Val
Lisandra não é sua mãe, pois não?
Martim
Minha mãe é Iracema Honorato.
Val
Mas a foto, a letra, a assinatura “Lisandra” são de Iracema Honorato, pois não?
Martim
São.
Val
Isso está explicado no “Diário Secreto”. Lisandra era o nome que a inesgotável fantasia de Montalvo criou para Iracema, uma fantasia de Alencar. Lisandra é a bela personagem do romance de Montalvo Sonata agônica, que, contando todas as línguas em que saiu, passou de meio milhão de exemplares vendidos, genial Montalvo, tenho muita saudade dele. (Põe de novo o dedo na foto à parede.) Lisandra é sua mãe, na vida real Iracema. (Põe o dedo na foto de Iracema.)
Martim
No guarda-roupa da minha mãe, no alto e no fundo, está um exemplar de Sonata agônica.
Val
Tem dedicatória? Leu?
Martim
Nunca li. Nunca abri.
Val
Filho ingrato! Vou-lhe explicar agora por que o chamei aqui. Não se trata de um emprego, nem de publicar suas poesias. É muito maior que tudo isso, sem desfazer das poesias que podem ser geniais também. Mas aguarde um instante. (Chama.) Aninha! (Ana Lúcia aparece no ato.)
Ana Lúcia
Pois não, chefe.
Val
Chefe é índio. Diga, por favor, a alguém em questão que daqui a pouco lhe caberá baixar como uma entidade de pai de santo. É só.
Ana Lúcia
Na hora exata, patrão, a entidade baixará. (Olha, luminosa, para Martim e sai.)
Val
Chamei Aninha porque, evidentemente, ela fica feliz de vir. Amo essa garota como um pai. Respeito a entidade “pai” e o sentimento dos jovens. (Retomando o assunto.) É muito mais do que um emprego, meu rapaz. Você tem uma irmã. Essa irmã achou, guardado no cofre de uma biblioteca pública entre manuscritos de Rui Barbosa, sabe o quê?
Martim
O “Diário Secreto” de Augusto Montalvo.
Val
Como assim? Já lhe informaram?
Martim
Deduzi.
Val
Para o filho de um serralheiro, é promissor.
Martim
O senhor discrimina os trabalhadores manuais.
Val
Não discrimino, homenageio. Mas acho que para o filho de um escritor genial está de acordo. O “Diário Secreto” em questão traz uma cláusula de próprio punho de Montalvo. Segundo essa, só poderá ser publicado cinquenta anos depois de morto seu autor. Acredito, porém, que para o bem da glória póstuma de Montalvo, e para a fortuna de seus herdeiros...
Martim
E de seu agente...
Val
Por favor, não me interrompa. Estou coordenando as ideias. Eliseu amigo, me acompanha?
Eliseu
Perfeitamente, doutor. Sou um trabalhador manual, alfaiate, pai de um trabalhador pernal, Jáquisson, mas não sou burro.
Val
O burro sou eu, coordeno ideias com esforço. Cinquenta anos, vejam só, era a cláusula de Montalvo. Ora, faz apenas doze anos que ele morreu. Sua irmã, meu rapaz, sua astuta, digna, solerte irmã fez a cláusula de Montalvo... tornar-se letra morta. Em favor da glória de Montalvo, vejam bem, a cláusula... Abaixo os cinquenta anos. Que acham disso?
Eliseu
Quer dizer, estava escrito “só daqui a cinquenta anos” e não está mais.
Val
Exatamente.
Eliseu
Passou pra vinte? Pra cento e vinte?
Val
Passou pra nenhum ano. Ou pra doze, que é o tempo de Montalvo morto. Não existe cláusula. Sumiu a cláusula. O que acham?
Eliseu
Como sumiu?
Val
Sumiu. Tudo que é cláusula desmancha no ar. Bola de sabão.
Eliseu
Profanação.
Martim
Maldição. Abominação.
Val
Você insiste nas rimas em ão, mas os poetas morrem de fome. Há um grande interesse, mundial, pelo diário íntimo de Montalvo. Estão inconfidências ali, ele refere esposas virtuosas que não o eram, fala mal de imortais da Academia que ainda não morreram. Conta escândalos monetários de intelectuais que aderiram ao governo...
Eliseu
Qual governo?
Val
O governo do tempo dele, mas intelectuais que aderem são de todos os tempos. Alguns detalhes será preciso “limar”, editar no diário de Montalvo.
Eliseu
Sumir com o bicho, como os cinquenta anos, eh, eh.
Val
Eliseu amigo, você aprende depressa, daqui a pouco vai pro governo. Seu barbeiro é candidato a prefeito? Quanto ao interesse de tudo o mais no diário... trinta e quatro países já manifestaram intenção de traduzir. Trinta e quatro, três, quatro! Para o Brasil, prevê-se uma edição inicial de 40 mil exemplares! Prevê-se ceder para filmagem, com Wagner Moura como o jovem Montalvo! Montalvo ainda não calvo. Fazendo filho na Jamaica antes de fazer em Sampa, com perdão do que lhe compete, meu jovem.
Martim
Compete-me a glória secundária da bastardia.
Val
É isso aí! Da bastardia paulistana, a glória! Até aparecer outro, incansável Montalvo.
Eliseu
Meu Jáquisson vai acabar esquecido, com tantos jovens gloriosos.
Val
Jamais! Filho poeta de escritor não se compara a filho craque de beque. Craque é craque, fim de papo. O pai dele foi gênio, mas o pai beque de Jáquisson gerou um craque! Outro patamar. (Faz gesto de patamar alto, craque, ao lado de um baixo. Até exagera no patamar alto, ficando na ponta dos pés e descendo o baixo.) Nosso Jáquisson é um investimento a médio prazo para cultivar já. Está com uma panela no dente, com ossos frágeis para a missão que lhe cabe, honrar a pátria. Mas é craque e craque é craque.
Eliseu
Ossos frágeis?! O garoto é um cavalo!
Val
Precisa ser cavalo de raça. Meu haras cuidará disso.
Eliseu
Ossos frágeis! (Vai com ímpeto ao televisor, aperta um botão.) Seu Martim, venha cá, por favor. (Martim se surpreende, mas levanta e vai, olha a tela.) Seu Martim, se tem um cavalo aí, qual o de raça?
Martim (Põe o dedo na tela como se põe numa foto.) Este. (Eliseu fica orgulhoso.)
Val (À parte, sem olhar para o televisor e cioso de que Eliseu não ouça.) Pudera, os outros são pangarés.
Eliseu (Para Martim.) Repara no toquinho sutil com a lateral da chuteira, vou voltar pra você ver. (Mexe no controle, com grande habilidade.) Hein?
Val
Esse homem, de tanto ver o filho, é mais hábil em controle remoto que Aninha.
Martim
É craque, é craque. Que toquinho!
Eliseu
Treze anos! Com cinco já fazia isso, eu ensinei.
Martim
Craque!
Val
Senhores, a reunião desviou. É a literatura nacional que está em pauta, não a Copa de catorze. Voltemos à mesa, por favor. (Eliseu desliga e volta rápido, Martim também.) A questão é a seguinte: o “Diário Secreto” de Montalvo, que sua filha única Numância descobriu, tem episódios fascinantes de viagens, imaginem que ele foi assaltado na Jamaica também!, mas em grande parte é um livro literário, um livro sobre livros, escritores de livros, pensamentos elevados, teorias, estéticas, fortunas críticas. Chatices. Vaidades pra quem é do ramo. Receamos, eu e a filha Numância, que não seja um livro sequer para o público admirador de Montalvo, esse gosta das suas histórias de paixão no outono, amores etéreos com fodas gozosas no inverno da Suíça, no inferno do Congo Belga, no grande sertão veredas de Minas. Tem fofocas, quem ilustre comeu quem casada com outro ilustre, mas no estilo sutil de Montalvo que não excita o grande público. Excita as minorias letradas, predispostas para a infidelidade montalviana.
Eliseu
O vereador comeu a mulher do presidente da câmara.
Val
Isso aí, isso empolga o formigueiro. Mas os casos contados por Montalvo... Trepadas de intelectuais, que sempre broxam e tornam afirmativas as broxadas, orgulham-se da língua ágil e do dedo firme. É fofoca para poucos, faz livro para poucos. O “Diário Secreto” só se torna um livro para muitos e aí, sim, para multidões, quando fala... (Faz uma pausa que quer ser meio triste e meio alegre.) ...no amor de Montalvo por sua mãe, meu jovem. (Indica a foto de Iracema na mesa e a de Montalvo na parede.)
Martim
Eu já esperava que iam pôr minha mãe no meio.
Val
É o ponto central do livro. Porque foi um amor abissal, um trepidar agônico de emoções, nas palavras mágicas de Montalvo. Temos, eu e Numância, tentado manter esse ponto em segredo, mas a imprensa descobriu, ligam perguntando. Ligaram da Turquia: quem é a dama oculta de mister Montalvo? O jornalismo se pôs em campo: Montalvo teve um amor secreto, um amor frutificado em bastardo?
Eliseu (Para Martim, num impulso.)
É tu.
Val
É tu, mas com todo o respeito e admiração. É um love affair que coroa a trajetória passional de seu pai, o engrandece como figura humana e coração sofrido.
Eliseu
Ele pagava pensão?
Val
Certamente, não.
Eliseu
Grande sacana.
Val
Aí entra o nobre caráter da sua mãe, rapaz. Ela rejeitou tudo, quis apenas o fruto de seu amor, você. Sublime mulher! Quem fará a amante de Wagner Moura no filme de Montalvo? Ou melhor, a amante de Montalvo no filme de Wagner Moura?
Eliseu
Grande sacana. (Explicita, para Martim.) Teu pai, não tua mãe. Teu pai o escritor torto.
Martim
Assim também penso, seu Eliseu.
Val
Não pense! Pode-se dizer que esse amor impossível apressou a morte de Montalvo. Ele continuou amando sua mãe, rapaz, e morreu desse amor antes do Nobel. Se ajudou com dinheiro, talvez sim. Mas o fato agora é que pode ajudar e muito. Sua única filha, Numância, está disposta a reconhecer você como irmão, a dividir com você os direitos do “Diário Secreto”, não muito, três por cento, mas será uma ajuda. Basta que você, no momento azado, declare para a imprensa convocada por mim: “Sou o filho de Augusto Montalvo”.
Martim
O filho bastardo.
Val
Bastardo não se usa mais. Um lorde fazia filho na ama de leite, bastardo. Karl Marx, o santo maior dos comunas, fez bastardo na empregada. Perdão, nenhuma semelhança de empregada com sua...
Martim
Nenhuma?
Val
Alguma... Foi mal... Quero dizer, bastardo é palavra da velha aristocracia, a aristocracia morreu. No Brasil era o filho da escrava que o usineiro emprenhou. Bem, foi mal... Esqueça “bastardo”. Pense no dinheiro que você vai ganhar, um dindim bem bom.
Martim
Bom quanto?
Val
Não se sabe ainda, depende do sucesso lusófono, nos países de língua portuguesa, das edições do diário. Depende das traduções nos muitos países. De Wagner Moura aceitar o papel. Mas eu diria que é dinheiro pra lhe pagar estudos, lhe dar carro, casa, viagem anual pra Jamaica, onde teu pai fez teu mano e sofreu um assalto na periferia. Vais visitá-lo, teu mano. Esse não é preciso reconhecer, fique tranquilo, cale-se, esqueça teu jamaicano. Melhor não pisar na Jamaica, te assaltam.
Eliseu (Para Martim.)
Grande sacana teu pai.
Val
Eu lhe pediria, se possível, Eliseu, que não conte esses boatos ao barbeiro, ele vai ficar tricotando com todo freguês, jamais entenderá o coração genial e tortuoso de Montalvo.
Eliseu
Tortuoso pra fazer filho torto. (Para Martim.) Com perdão de ti, meu jovem. (Martim entorta-se todo.)
Martim (ainda torto)
Mesmo assim, que certeza pode existir de que sou filho de Montalvo e não de João Honorato?
Val
A certeza está aí, na maneira como você se faz torto e pergunta. Um serralheiro não perguntaria, serralheiro pensa reto, é reto e sólido como a grade de um xilindró. Você, com verve e síntese filosófica, faz-se torto e pergunta. Montalvo, homem de imaginação e pai de tortos, esse perguntaria, porque era tortuoso e genial. Não Honorato.
Martim
O senhor diminui João Honorato. Para depor Honorato como pai e eleger outro pai.
Val
Elogiar retidão é diminuir? Exalto Honorato, sua férrea retidão. (Pausa.) Você foi ferido num ônibus. Quando isso?
Martim
Na quarta da semana passada.
Val
Com o sanguinho daí, mínimo sanguinho, meia gota, comprovou-se que seu DNA é o de Numância, sua irmã. Batata, comprovou-se, ninguém discute DNA.
Martim
(Põe a mão no pequeno curativo do pescoço.) Não sou apanhado de surpresa. Sua frase mal começou e percebi meu DNA que o senhor extraiu, mandou extrair. (Puxa a camisa para mostrar o esparadrapo.)
Val
Você é rápido na percepção porque seu DNA é espertíssimo, de Montalvo.
Martim
Na percepção, talvez. Percebi, antes, que o senhor é mafioso. (Exibe o curativo.)
Val
Mafioso, eu? Faz sentido. Na minha profissão, como na política, na militância associativa dos engenheiros e médicos, na República das Letras com suas distinções..., no Vaticano com a escolha do papa, a invenção de santos... Na boa sociedade dos cidadãos, enfim, como não ser mafioso? Se não for, seu concorrente, que é, te passa a perna. Sou mafioso por aí. O que não se pode, ou não se deve, é ser mafioso de três-oitão na mão. Mafioso do bem, isso pode. Lamento não ter sido mafioso a tempo de seu pai ganhar o Nobel.
Eliseu
Mafioso do bem?!
Val
Os barbeiros já sabem que... é da vida. Pergunte ao barbeiro. Não, não pergunte, deixe pra lá esse barbeiro.
Martim
Quer dizer que, comprovado por DNA, sou filho de Montalvo e irmão de Numância? E irmão de um jamaicano bastardo como eu, mas esquece?
Val
Você, mais certo que eu mesmo sou filho do meu pai, porque me caem os cabelos aos quarenta e oito como nele caíram, você é irmão biológico de Numância Montalvo. (Dá um tapa de mãos espalmadas na mesa e aponta. A porta abre inteira e Numa está nela.) Esta.
Numa tem um relance de grande dama, mas domina-se e torna-se “normal”. Fixa Martim e vem vindo devagar. Ana Lúcia aparece na porta e dali assiste. Eliseu levanta-se, solenizado.
Numa (aponta)
Meu irmão, suponho.
Val
Ele mesmo.
Numa
Sou Numância Montalvo, como está?
Martim
Estou bem. Me feriram no pescoço, não me degolaram. Ainda.
Numa
Bem-vindo à família, Martim Montalvo.
Martim
Martim Honorato, senhora.
Numa
O que é um nome, Montecchio?
Martim
Não sei as frases, senhora Montalvo. Venho de um lar de serralheiro.
Numa
Tanto melhor, tem grades. Vejo que você herdou a beleza da sua mãe e a inteligência do seu pai. (Ela cai nos braços dele que se levantou, ele fica embaraçado.)
Martim
Até o ano passado eu trabalhava num supermercado, pesava bananas, dona Numância.
Numa
Veja como é a vida. Agora é um Montalvo!
Martim
Na semana passada fui alvo! (Mostra o esparadrapo.)
Eliseu
Montalvo, alvo. Ele aprecia rimas, é poeta. E o nome Montalvo ajuda.
Numa
É poeta, bem sei. Ouvi atrás da porta.
Martim
Poeta iniciante, dona Numância. De rimas pobres e pobres versos.
Numa
Por falar em atrás da porta, Valfrido, você demorou demais pra me dar a deixa.
Val
As coisas foram se engatando...
Numa
Fiz dois xixis no banheiro. Aninha está de prova.
Val
Seus xixis são sempre dramáticos.
Ana Lúcia
Fez. E Sófia ligou duas vezes, seu Val.
Numa
Meu irmão! (Abraça Martim outra vez.) Eu nunca tive um irmão, agora tenho.
Eliseu
Tem dois. Mas esqueça.
Val
Vejam só, é Eliseu se apaulistando.
Numa
Meu irmão! A todos sairei dizendo, ao mundo proclamarei: meu irmão!
Val
Essa proclamação ela bolou atrás da porta.
Numa
Não preciso bolar, as palavras me brotam, sou Montalvo. Borbulham em mim, ai de mim.
Martim
Faltam-me palavras. Serei Montalvo?
Val
O rapaz também incorpora seu papel. A mim não faltam palavras, mas sou raso.
Eliseu
Meu filho sem dúvida é Silva, eu fui beque.
Ana Lúcia
Seu Val, o telefone toca de novo na minha mesa, o que digo?
Val
Será Cleópatra? Diga que apunhalam este César. Não, não diga, minha única certeza é Sófia.
Ana Lúcia (que atende no escritório, pelo interfone)
É Bob, do Chelsea.
Val
Pergunte se é urgente. Se não é, em seguida lhe ligo.
Ana Lúcia (depois de falar baixo ao telefone e desligar)
Não é urgente. Ele quer saber de Jáquisson.
Val (para Eliseu)
É Bob do Chelsea, quer saber de Jáquisson. Quer levar Jáquisson, mas só entrego esse menino de dente tratado, vitamina tomada e inglês básico.
Eliseu
Confio no senhor, sou grato pelo interesse do time. Mas o senhor mal viu meu menino na fita...
Val
Atenção, todos. Meu caro Montalvo, senhora Montalvo, Ana Lúcia, todos convocados para ver Jáquisson do Chelsea. Ana Lúcia, ligue pra Dona Luísa, peça um lanche completo para... (Conta.) cinco, eles entregam. Enquanto não chega o lanche, vemos Jáquisson. (Ana Lúcia vai ligar na sala de espera.)
Eliseu
Senti firmeza.
Val (para Martim)
Você tem pressa? Ainda falamos de você.
Martim
Pressa nenhuma, preciso pensar.
Val
Pense, pense enquanto vemos Jáquisson. Quer ver Jáquisson?
Martim
Já vi, é muito bom. Vejo mais.
Val
Oh, a juventude! Dei de ficar melancólico vendo a juventude. Ana Lúcia, por exemplo, não é uma linda garota?
Martim
Linda.
Numa
Da minha parte, faço o que posso.
Val (para Numa)
Você é linda também, à sua sábia maneira.
Numa
Ou seja, não tão jovem.
Val
Não tão, admito, mas inteligente, experiente, culta, autora de uma obra.
Numa
Eu queria ter dezoito...
Val
Quem não? (Para Ana Lúcia que volta da outra sala.) Ana Lúcia, todos concordamos que você é linda, comande o show de Jáquisson. Mas antes silencie os telefones, vamos ver Jáquisson. (Ela, hábil, desliga o telefone e liga o televisor usando o controle. Todos se acomodam à frente do aparelho, ficando nítido que Numa e Eliseu, assim como Ana e Martim, formam casais em aproximação afetiva.) Este menino é alta aposta minha nos próximos anos. Quero um craque pra ganhar a Copa.
Numa
E ganhar muito dinheiro.
Val
Ganhar o dinheiro que ele valer. Talvez perder dinheiro, é risco. São centenas de garotos por aí, muitos os procurados, poucos os escolhidos. Ele é hábil, mas o futebol está no sangue dos meninos brasileiros e nem todos, hábeis como são, se revelam craques. (Olhando.) Jáquisson, é esse. Treze anos, jeitão de quinze. Nada de “gato”, não, Eliseu?
Eliseu
Nada de “gato”. Tenho a certidão e a cópia do escrito original no cartório, selo e tudo. (Olhando.) Já quero avisar, essa filmagem foi coisa do barbeiro. Mandou os outros fazer corpo mole, não fui eu que mandei, Jáquisson nem sabia.
Numa
Eliseu, querido, já sabemos disso e está certo. O que importa é o Jáquisson, que esperto que ele é! Martim, irmão querido, ele não é esperto?
Martim
Muito esperto. Tem visão lateral, leva a bola colada no pé! O jogo de corpo, a jinga! Craque!
Eliseu
Este rapaz entende também.
Martim
Entendo de dar palpite, não sei fazer. Um craque se vê num toque da bola, Jáquisson é craque.
Eliseu
Obrigado, gosto deste rapaz.
Ana Lúcia (Entusiasmada.)
Também gosto.
Numa
De que rapaz?
Ana Lúcia (Embaraçada.)
Jáquisson... Martim...
Val
Todos são gostáveis. Todos maravilhosos.
Numa
Você fala como empresário?
Val
Como empresário, como cidadão... (Olhando a tela.) Lá vai Jáquisson, vai marcar... é goooooool!!!
Os outros, menos Eliseu
Goooool!!!!
Eliseu
Obrigado, esse é Jáquisson. Gostaria que vissem o menino brincando com a bola, mais adiante.
Val
Ana Lúcia, por favor, ponha o menino e a bola, adiante. (Ela faz isso, procurando senpre com habilidade o trecho na fita, que o público nunca vê.) Aí está, o menino e a bola, eles apenas. O que o menino faz com a bola.
Eliseu
Jáquisson e suas mágicas. Ele sempre fez isso, pegava uma bola de borracha aos oito anos e ficava tenteando ela. Aí eu vi que ninguém era habilidoso como ele, nem os marmanjos do Clube Atlético. A bola era mais amiga de Jáquisson, mais...
Val
Mais submissa aos pés... às pernas... aos ombros... ao peito, à cabeça de Jáquisson. Grande garoto!
Eliseu
Esse é ele agora, cresceu, e cresceu a capacidade de fazer mágica.
Numa
A bola é amante dele!
Ana Lúcia (romântica)
Isso mesmo! A bola e ele... (Olha para Martim.) ...se amam.
Eliseu (comovido)
Se amavam, ele pequenino. Dormia com a bola. Minha Maria Zélia dizia: “Que bicho picou Jaquissonzinho? Ele não larga a bola nem pra dormir!” Era a vocação da bola. (Sempre olhando a tela, Eliseu controla uma bola inexistente com os pés, as coxas, o peito, os ombros e a cabeça, até que a passa para Martim, que também a controla e passa para Valfrido, este para Ana Lúcia, esta para Numa, que faz um rápido controle e dá um chutão para a janela encerrando a mímica com um som de vidros estilhaçados.) Obrigado, gente, por gostarem da arte do meu filho. Maria Zélia, no céu, agradece. (Está comovido e feliz.)
Val
Obrigado a você, Eliseu, e a Maria Zélia no céu. Jáquisson vai dar muitas alegrias a todos nós.
Eliseu
Onde está o contrato? Quero assinar. Se todos amam meu filho, eu assino já.
Val
Você guardou na mala, meu amigo, continua aí. (Eliseu, rápido, tira o contrato da mala e o assina na mesa. Valfrido, também ágil, vira as páginas do papel para mais assinaturas e rubricas de Eliseu. O contrato assinado fica na mesa e eles se abraçam.)
Val
Amigo, agora somos mais que amigos, somos sócios no Projeto Jáquisson, para a glória pessoal do menino e a Copa do Mundo brasileira. Felicidades para todos nós, viva o Brasil!
Os outros, menos Numa
Viva! (O grupo confraterniza, Ana Lúcia sai e volta depressa com o lanche, assim aumentando a alegria geral. Serve-se o lanche.)
Val (a xícara de café em punho)
É um dia para não esquecer, o dia em que o Projeto Jáquisson pegou fogo, no melhor sentido. Me recorda o dia remoto quando Augusto Montalvo assinou o primeiro contrato, no centro velho de Sampa. Montalvo, um gênio para jamais se esquecer! Rapaz, e nosso assunto do grande escritor seu pai? O Projeto Martim Montalvo?
Martim
Pois é, o Projeto Martim Montalvo.
Val
Preocupa você saber-se filho de outro? De repente, eis que alguém, eu, lhe chega e lhe diz: “Sabe seu pai? Não é seu pai”. Para você soa... terrível?
Martim
Deve soar?
Val
Em princípio é intrigante... Mas veja bem... Seu pai, seu verdadeiro pai, é um artista mundial, foi. Nada contra o pai que você... se acostumou a ter, mas... Compreende? A genética!
Martim
Como o senhor acha que isso vai soar para o pai... não genético? Não artista? O falso pai?
Val
Por favor, não diga falso. É possível que seu bom pai adotivo... já saiba disso. De não ser o biológico.
Martim
O senhor investigou?
Val
Certamente que não. Não me meto na vida alheia... a esse ponto.
Martim
A ponto de me tirar sangue...?
Val
Fui voto vencido. Me disseram que era necessário o DNA. É a vida moderna, rapaz. Hoje em dia, toda menina de favela que engravida, e elas engravidam a cada minuto, providencia-se DNA.
Martim
Atacando no pescoço?
Val
Fui voto vencido.
Numa
Eu é que decidi pelo ataque no pescoço. Mas também, Valfrido, você não tinha que tocar no assunto. Precisávamos do seu sangue, mano Martim, e você nunca ia ao dentista. Vai ver que teu canino também... Te atacamos no pescoço, culpa minha, assumo. Mas foi um ataque delicado, com um tubinho sem risco de tétano. Desinfetado.
Martim
Meu pai, o pai que ainda consta como meu, não pode saber que não é meu pai.
Val
Como assim?
Martim
Não pode saber. Seria humilhante.
Val
Acho complicado evitar que... Como evitar?
Martim
Sou seu único filho. E esse... não sou dele. (Para Numa.) Que fazer?
Numa
É complicado.
Val
Ouça, rapaz, é um caso embaraçoso. Seu pai não sabe que o filho único não é filho. Vai ver, sabe, mas suponhamos que não. Terá de saber. Mesmo porque essa novidade... é a sensação da situação, se posso dizer assim. Está aí o lado vendedor da coisa, o espetáculo, embora esteja o ruim. Sou pai também, avalio o drama. Mas, veja, a nova situação trará dinheiro, ótimo dinheiro, para você, sua mãe e até, veja bem, para o pai que não é pai!... (Olha em torno, estranhando a pausa dos demais.) Trará uma contribuição para a literatura nacional.
Martim
Um vazio, também. O vazio de um pai que não é. Por cima disso, a vergonha pública de não ser, que vira livro, vira notícia.
Val
Vergonha pública... Seu pai não é interessado na vergonha pública. Não vai perder fregueses das grades porque não fez o filho. Se for preciso, lhe encomendo grades pra privacidade dele mesmo, pago bem! Vergonha dos vizinhos? Com a grana que isso traz ele muda de casa, de bairro, de país. De vizinho, para vizinho melhor. Nos bairros ricos ninguém oculta a vergonha, ninguém liga para isso, cada qual se contenta em saber de si. Os bastardos aí abundam, abundam os chifrudos, abundam os que dão a bunda. Mude-se, seu pai. Amigo Eliseu, por acaso seu filho jogador do Chelsea, a grana a jorrar das torneiras, você vai continuar lá, pra ir na zona na sexta-feira?
Eliseu
Com grana vou na terça também.
Martim
Meu pai, o serralheiro, está doente. Não vai viver muito. Enquanto viver, não pode saber dessa... vergonha. Para ele, será vergonha mesmo sem vizinho. Uma tristeza imensa. Do seu jeito rústico, ele ama minha mãe e o filho que tem. (Olha comovido para Ana Lúcia.) Ele pode saber?
Ana Lúcia
Não, ele não pode.
Val
Aninha, querida, pra quem você trabalha? Você trabalha contra mim?
Ana Lúcia
Perdão, seu Val.
Val (Para Martim.)
Essa doença do seu... padrasto. Não fui informado dela, desculpe. Investiguei o que pude, mas doença do padrasto... Nem me ocorreu que padrasto adoece.
Martim
Quando fiz dezoito anos (não cheguei aos dezenove ainda, o senhor sabe), quando fiz dezoito minha mãe me chamou para dizer que sou filho de Montalvo. Meu pai, o serralheiro, não estava em casa e ainda assim ela saiu comigo para a praça, contou-me lá longe falando baixo. Me lembrei então, sim, disso me lembro, que um dia viajei só com ela para Santos e ali, à beira-mar, um homem falou conosco, nos levou para tomar sorvete, levou a um parque de diversão. Na roda-gigante, eu, minha mãe e esse homem,
o mar diante de nós. Como me lembro! Era gentil com ela, gentil comigo, o homem. Eu teria... seis anos ou menos. Me lembro que minha mãe num certo momento chorou sem que eu soubesse por quê. E o homem, ora vejam, o homem chorou também me abraçando. Eu nunca tinha visto um homem chorar, aquilo me marcou muito. Minha mãe, na volta da viagem, me recomendou jamais falar desse homem que chorava. Jamais falei, se bem que... Teria ela falado ao pai de sempre, Honorato, que era pai de nunca? Falo eu agora, aqui, pela primeira vez e última. Não me apanharam de surpresa, vocês, eu já sabia de Montalvo que chorou agarrado comigo e na presença de minha mãe. Tenho o queixo dele, os olhos dele, ela mesma que diz. (Põe o dedo na foto de Montalvo à parede.)
Numa
Tem meus olhos, meu queixo, oh, meu irmão.
Val (Para Numa.)
Já não há dúvida a respeito. (Para Martim.) Tem certeza que seu padrasto continua sem saber disso?
Martim
Não tenho certeza de nada. Meu dever é apenas que, por meu intermédio, ele nunca saiba.
Val
Quantos anos de vida restam a... ao bom homem?
Martim
Ficou sabendo da doença faz dois anos, tratou-se. Terá dois? Três, ainda trabalha.
Val
Por que não dez, doze, vinte? Se tiver dinheiro, nos melhores hospitais particulares... Vive-se mais.
Martim
Minha mãe e eu já decidimos: ele vai morrer pensando que sou seu único filho. Se agora souber da verdade, morrerá como quem nunca teve filho e viveu enganado. Na ignorância desse amor traidor que o senhor louva.
Val (Impaciente, irritado.)
Aninha, ajude a prolongar a vida desse homem. Diga a seu amor, este, que a verdade vale mais que a mentira. Pai é quem cria.
Ana Lúcia
Não posso, seu Val.
Val
Numa, você é a irmã guardiã. Aconselhe seu irmão. As memórias secretas de Montalvo sem essa revelação ficam sem “gancho”, perdem a força no país e no exterior. Publicar o livro sem a história do...
Numa
Do bastardo.
Val
... do fruto de um amor, é menos, é menos e é pouco. Me ajude, meu amor. Martim bem que poderia, numa entrevista para a Globo, contar o episódio de Santos, da roda-gigante olhando o mar. Nem você contou isso na biografia. (Toca no livro, na estante.)
Numa
Escaparam do meu controle os amores desse safado.
Val
É um lindo momento, santifica o adultério. O mar foi entidade mítica na obra de Montalvo, o mar ignoto, ele escreveu, o mar grego, das sereias de Ulisses.
Martim
A ida a Santos, vejo agora, foi uma traição a mais de minha mãe a meu pai serralheiro. Ela chorou então, ele chorou, mas também se chora nas traições, eu presumo. Ali, entre os traidores, eu, filho de vários e de ninguém...
Numa
Já me decidi: enquanto o padrasto viver, não se fala no assunto. Martim é meu irmão e o que é bom para ele é bom para mim. Suspendemos as memórias secretas por dois, três, dez anos, vinte. Nós, os Montalvos, somos éticos e humanistas. De acordo, Martim Montalvo?
Martim
De acordo, Numância Montalvo.
Val (Explodindo.)
Éticos, humanistas? O pai fez um filho fora do casamento, vai ver que dois ou três, se eu for fundo descubro que até Aninha é filha dele, nunca pagou pensão, deu um dinheirinho por fora. A filha Numância, que sempre soube desse irmão, só quis ver o irmão, reconhecer sua existência quando achou os diários secretos, para lançar, traduzir,
dar entrevista na televisão. Pôr em evidência seus livrinhos esquecidos, as borbulhas n’alma. Faturar. Grana, grana! Éticos? Ora!
Numa
Meus livrinhos esquecidos?! É isso que ouvi?
Val (já arrependido)
Você tem o dom de me pôr fora de mim.
Numa
Livrinhos esquecidos?!
Val
Modo de dizer.
Valfrido anda agitado para o lado da janela. Numa vai à mesa, pega o contrato e o rasga, impiedosa.
Numa
Fim de caso.
Val (Corre de volta.)
O que você fez, marvada?
Numa
Eliseu, você não vai entregar seu filho pra este canalha, vai?
Eliseu
Se é canalha...
Val
Certamente que não sou, Eliseu. Sou um agente, um empresário. O sucesso do seu filho será meu sucesso, será dele, seu, de todos no barco. E assim o sucesso de Martim. Ele vai levar o padrasto pro Sírio Libanês, tirar do SUS, é o que ele pode querer, o que eu quero. No Sírio Libanês não se morre, no Einstein, Einstein é gênio, não deixa morrer. Vale o mesmo para você, Eliseu amigo. Quero seu filho no Chelsea, no Barça, não no Formiga Futebol Clube.
Numa
Ele quer fazer dos moços uns escravos. Quer a mocidade enchendo a burra dele, Martim, Jáquisson, Aninha...
Val
Aninha, você me conhece. Tenho tratado você com respeito e você é linda. Eu exploro os jovens?
Ana Lúcia
O senhor me trata muito bem e com respeito.
Val
Veja, Eliseu. Às vezes atraso o pagamento da coitadinha, mas pago. Sou um empresário, quero o sucesso, sem deixar de reconhecer os meus deveres e as virgindades.
Numa
Eu é que sei.
Val
Nunca te conheci virgem. (Para Eliseu.) Tivemos um caso, eu e Numância. Pois lhe juro, ao menos da minha parte, era amor.
Numa
Sacanagem. Me estraçalhava aí por cobiça de empresário. Eu gemia, era terror. (Indica a poltrona.)
Val
A praça embaixo ouvia e sabia que não era terror. Era amor que acabou. Os amores acabam. Tudo na vida acaba, a vida mesmo, até no Sírio. Mas enquanto durou foi amor e foi bom, com os percalços que esta marvada sempre apresenta. Eu a amo ainda, Eliseu, ela sabe ser maravilhosa quando quer, não é Montalvo por acaso. O pai dela falou do amor, a filha falou, vivia-se uma atmosfera de amor. Mas... acabou, e ela, que já não me ama, insiste em punir-me pelo que foi e não é mais para nós ambos. Pode? E rasgou o contrato. (Faz pausa esperando que respondam, ninguém responde.) Deixei aí, para não parecer que tinha ânsia de guardar. Ela vai e rasga! Fazemos outro.
Numa
Eliseu, querido, tenho contatos em muitos meios e planos para Jáquisson. Conheço a Europa, a Itália, já esse grosso mal fala a língua pátria. Não assine nada. Amanhã sigo com você para Formiga, quero conhecer Jáquisson e visitar o seu barbeiro.
Val (sarcástico)
Fazer a barba?
Numa
Traçar um plano, sempre em acordo com as partes interessadas. Eu não conspiro no silêncio.
Val
Não conspira? (Para Martim.) Sabe quem teve a ideia e bolou o ataque ao seu pescoço? (Aponta.) Ela. E era tu, o irmão dela. Eu hesitava nesse ato de vampiro, ela exigiu.
Martim (Para Numa.)
Verdade?
Numa
Deus sabe as precauções que tomei, as recomendações que fiz, “cuidado com esse menino de ouro”. Acompanhei pessoalmente a desinfetação do tubo perfurante.
Val (Aponta de novo.)
Ela. Te corta o pinto pra não aumentar os herdeiros.
Numa
Mandei que ensaiassem antes em mim. (Mostra um esparadrapo no pescoço.) Que me sangrassem antes, irmã de sangue que sou tua.
Martim
Lhe sou grato por isso.
Val
Vampira!
Numa
E me arrependi, e chorei na expectativa.
Martim
Eu te compreendo, mana.
Val
Não tem jeito, é um Montalvo também. Eliseu, meu amigo, como ficamos?
Eliseu
O senhor me perdoe, fico com dona Numa. Ela vai levar o garoto pro Barça, direto. Gosto mais do Barça, não consigo falar “Xéu-si” se não está escrito “Xéu-si”.
Val
Levar direto? Não vai tapar o buraco no canino dele?
Numa
Se houver buraco, fecharemos.
Val
Não vai pesquisar as sequelas da caxumba?
Eliseu
Sarou total, não se fala mais nisso, puta que pariu!
Val
Ela mal sabe o que é uma bola, sabe bulhufas de futebol, borbulhas.
Numa
Pare com as borbulhas!
Val
Aninha, presumo que você... Você fica com o pai que não é pai de Martim. Fica assim, Aninha?
Ana Lúcia
Fico com Martim, se ele me aceitar, chefe.
Val
Martim pobre ou Martim rico?
Ana Lúcia
Martim, ponto.
Val
Tome tento, menina, ele é Montalvo. Os Montalvos traem até no alto da roda-gigante.
Martim
Adeus, seu Valfrido. Penso que o senhor não é má pessoa, mas...
Val
Ando cansado do que os Montalvos pensam de mim. Seu pai me torrou o saco anos, até morrer antes do Nobel, sua irmã é isso aí. Da sua família, aprecio sua mãe, que soube amar e calar-se.
Numa
Ele aprecia as mulheres que se calam, porque se calam.
Martim (para Ana Lúcia)
Você vem comigo?
Ana Lúcia
Se você me quer...
Val
Mais uma boca para o serralheiro alimentar, pobrezinho.
Martim
Eu tenho meu ganho, doutor.
Val
Auxiliar de serralheiro.
Martim
Melhor que isso, sou Montalvo.
Val
Poeta.
Martim (para Eliseu)
Adeus, seu Eliseu. Vou torcer muito para o Jáquisson.
Eliseu
Vocês precisam se conhecer, ser amigos. Vocês têm um futuro.
Val (para Martim)
Você vai ser o Macarrão desse Bruno.
Numa (para Eliseu)
Cuidaremos de fazer Martim e Jáquisson parceiros na glória, querido.
Val
Quando Jáquisson for à Romênia, que mande uma foto no Viaduto Augusto Montalvo. Esqueci, eu sabia dizer em romeno... “Montalvo”, em romeno, é tão melhor...
Eliseu (Para Numa.)
Assim será.
Val (Para Martim, apontando Aninha.)
Escute, rapaz, ela te amou à primeira vista porque já sabia que você é um Montalvo. Se você entrasse aqui Honorato e saísse Honorato, não te amaria.
Ana Lúcia
Seu Val! Seu mau! Amei por ele apenas, seu Val.
Val
Aninha, querida, sei disso, me permita argumentar em desespero de causa.
Ana Lúcia
Adeus, seu Val. Desculpe por tudo. Nunca vou esquecer do senhor.
Val
Me ligue para acertarmos as contas, Aninha. Alguns assuntos meus, você é que conhece, não eu. Alguns? A bem dizer, todos. Teremos de falar, você queira ou não.
Ana Lúcia
Vou ligar, seu Val. Vou ter saudade.
Val
Tenha, tenha. (Eles saem.) Que será de mim sem ela? Até o ar condicionado começa a falhar, sinto um abafamento... Ela sabe de tudo aqui mais que eu. Não sei desligar essa joça. (A tevê.)
Numa
Você gosta das impossibilidades fingidas.
Val
Amigo Eliseu, sou órfão de pai e mãe. E esse rapaz, que tem dois pais e duas mães, Numância se nomeou a segunda, leva minha Aninha. Como fico?
Numa
Não se atreva a usar Aninha para o rapaz ficar contra mim.
Eliseu (Para Numa.)
Não pense tanto mal de seu Valfrido. Ele sofre.
Numa
Ele se faz de sofrido, eu conheço a peça.
Val
É inútil me defender, amigo Eliseu. Mulheres encontram prazer no ódio novo que nasceu do amor velho.
Numa (terna, para Eliseu)
Por que, se eu tenho um amor novo?
Val
Ela viajou muito com o pai na mocidade, para as cidades do mundo onde os livros eram lançados... por mim. Quer viajar agora com o pai de Jáquisson nos jogos de Jáquisson, “vai, Jáquisson, chuta”. No Catar.
Numa
Vá te catar.
Val
Você é vulgar, você é.
Numa
Sou o que fizeram de mim.
Eliseu (para Numa)
Eu até que gosto do seu Valfrido.
Numa (para Eliseu)
Não goste. Ele faz ironias com seu filho, querido. Nosso filho.
Val
É intriga, Eliseu. Tenho o maior respeito por seu filho, sei o que ele vai significar para a pátria!
Numa
Quero viajar! Para longe dos fracassados que daqui não saem, aqui se amortalham.
Eliseu
Tanta raiva pode ser amor.
Val
Abra o olho, homem. Agora é a você que ela ama e um dia desamará. Apresente ela pro barbeiro, ouça o barbeiro.
(Numa se atira nos braços de Eliseu, beijam-se longamente.)
Val
Se quiserem, saio e deixo a poltrona.
Eliseu (para Numa)
Você beija legal.
Numa
Melhor que Mari? Melhor que Valda?
Eliseu
Melhor que tudo na vida.
Val
Com exceção de um gol de Jáquisson.
Numa
Querido, vamos para o hotel. Querido, tenho pressa.
Eliseu
Vamos. O senhor quer que desligue a joça? (O televisor.)
Val
Não, pode deixar, puxo a tomada. Enquanto isso, vejo Jáquisson. O senhor quer a fita?
Eliseu
Não, pode ficar. (Dá um passo.) Sinceramente, seu Valfrido, eu gostei do senhor.
Val
É justo, lhe arranjei mulher em Sampa.
(Eliseu e Numa vão saindo abraçados, muito encantados um com outro. Ele leva o paletó e, de passagem, bate no ombro de Val para significar “adeus”. Numa fecha a porta depois que passam. Val fica paralisado, olhando para a porta. Que, de repente, se abre, Numa entra colada nela e a fecha.)
Numa (com ternura)
Ele frequenta putas.
Val (enfezado)
Em Minas, em São Paulo?
Numa
Devo exigir camisinha?
Val
Está aí uma questão que eu...
Numa
Se você disser que não devo... Se você disser, querido... Querido, diga.
Val
Recuso-me a dizer. Cada um sabe de si.
Numa (Com a mão na dele.)
Agora ou nunca, meu amor. (Ele separa as mãos e se põe a assobiar e batucar na mesa, como se alegrinho.) Diga para mim “não vá”. Por favor.
Val
Digo. Use camisinha.
Numa (ofendida)
Não vou usar, canalha. Vou te passar gonorreia.
Val (Assobia curto e se balança meio dançando.)
Foda-se.
Ela abre a porta, sai e bate a porta. Ele fica paralisado um instante, depois vê a maleta num canto, corre pegá-la e vai gritando antes de abrir a porta: “Eliseu, Eliseu!”. Ouve-se que abriu a outra porta, já no corredor do prédio, e ali grita: “Eliseu, o pijama. Amigo, não esqueça o pijama”. Ouve-se Eliseu mais longe: “Obrigado”. Volta, deixando aberta a porta do escritório, e se lança na poltrona pensativo. Logo se levanta, senta-se à mesinha e toma um gole de café. Começa a arrumar a tralha do lanche mas para, enjoado. Vai à janela, olhando por ela com indiferença até que se fixa em algo lá embaixo, que acompanha com interesse. Faz a mímica do vigilante na patinete motorizada. Ana Lúcia aparece na porta que ficou aberta, e chora. Ele surpreende-se, mas, minucioso, “desce” da patinete para falar-lhe.
Ana Lúcia
Seu Val, é o amor da minha vida e eu queria ir. Mas não consigo ir, deixando o senhor assim. Martim vai respeitar seu pai de sempre e continuar pobre. Eu vou respeitar meu patrão, o senhor, e renunciar a meu amor. Voltei para o senhor, seu Val.
Val
Voltou mesmo?
Ana Lúcia
Voltei para ficar, se o senhor me aceita.
Val
Aceito.
Ana Lúcia
Então fico.
Val
Então vá. Mantenho seu emprego por seis meses. Passe uma vez por semana, a papelada me atrapalha. Continuo te pagando igual. E atrasando, claro.
Ana Lúcia
Não posso ficar, seu Val. Se fico, traio o meu amor, sei o que o senhor espera de mim, que convença Martim a assumir o pai novo.
Val
Não é pai novo, é pai morto.
Ana Lúcia
Se vou embora, prejudico o senhor, perdão (chora).
Val
Dilemas, querida. A vida é assim, repleta de dilemas. Quem não tem dilemas, não tem a vida. Considere-se demitida para efeito de conservar seu amor. Seja feliz com ele. Se não for feliz, volte pra mim. Nada espero de você contrário a seu amor. Só lhe peço que passe aqui por seis meses, enquanto procuro outra. Não será fácil, depois de você tudo é menos. Seja profissional, lhe peço.
Ana Lúcia
Como ser, sem trair meu amor?
Val
O tempo resolve. Ele te espera, não? (Ela faz que sim.) Então vá, corra, pare de chorar.
Ana Lúcia
Não vou como agente do senhor, vou por amor. Só serei fiel a esse amor.
Val
Claro, querida. O amor é patrão maior.
Ana Lúcia
Adeus.
Val
Até logo.
Ana Lúcia
Até. (Vai sair, hesitante.)
Val (Em sussurro para ela.)
Aninha, de repente o rapaz pensa melhor. Ele sendo Montalvo e poeta, que tal estrear com seu livro de poemas? O Escritório Valfrido Lopes patrocina, publica, divulga, ganha o Jabuti, talvez na categoria Revelação, basta que o filho de Montalvo assuma a paternidade. A filiaridade. Mas, falando com ele, ponha a coisa pianinho, querida, considere os sonhos literários do autor seu amor, não os meus negócios, é lixo. O Brasil tá precisado de poesia...
Ana Lúcia
Adeus, seu Val. Adoro o senhor, é tão... sei lá. (Sai e fecha a porta. Ele, quase alegre, ensaia um batuque e sambinha. O interfone toca, Valfrido o aciona e a voz de Ana Lúcia soa profissional como antes.)
Voz
Seu Val, dona Sófia está aqui.
Val
Sófia, aqui?! Em pessoa? Pois que entre Sófia. Ana Lúcia, estimo ouvir sua voz.
Voz (Doce.)
Ó-quei, seu Val. (Desliga. A porta abre e Sófia aparece. É a mesma atriz que fez Numância, caracterizada como Elizabeth Taylor em “Cleópatra”.)
Sófia (Na porta.)
Alea jacta est. Cuidado com os idos de março.
Val
Mato a cobra e mostro o pau.
Sófia
O telefone não responde nunca. Não quer mais falar comigo?
Val
Sófia, meu amor, tivemos uma reunião de cúpula. Na reunião, um lanche. Todos se foram. (Beijam-se no rosto.) Você está linda.
Sófia
É meu novo look. Gostou?
Val
Magnífica! Liz Taylor no esplendor.
Sófia
Cleo no esplendor. Eu quis surpreender você. Surpreendi?
Val
Estou sem palavras. O café tem um resto de calor, você toma?
Sófia
Tudo o que tenha calor eu aceito.
Val
São deliciosas estas broinhas, você quer?
Sófia
Tudo o que é delicioso eu quero.
Val (servindo o café e as broas e ambos sentando de mãos dadas.)
Sófia! Não nos vemos faz tempo!
Sófia
Você me esqueceu, mando-lhe e-mails lindos, com cascatas, Wonderful World e letras pingando, você não responde.
Val
Abro todos, me encanto. Chorei com os cãezinhos amestrados, repassei o Buda que traz dinheiro. Enviei para dezenas o abaixo-assinado: nada de apedrejar a mulher árabe! Mas a vida, Sófia, os negócios me esmagam. Eu queria ser um vigilante na patinete, você viu na praça? Tem dois. Gosto de ficar olhando eles. Houve um tempo em que eu queria ser guarda urbano montado em cavalo cagando na rua, o cavalo, hoje ambiciono a patinete que não caga. (“Monta” na patinete.) Sua amiga Numância esteve aqui. Estiveram o pai do prodígio e o filho do gênio, dia cheio.
Sófia
Você ama Numância, a das borbulhas n’alma. Confesse: você só ama Numância!
Val
Odeio Numância. (“Passeia” com a patinete.)
Sófia
Se você me odiasse como odeia Numância, eu seria feliz!
Val
Não me fale de Numância. Quero esquecer Numância, e não porque um dia a amei. Realmente a amei, perdão, Sófia. Esquecer Numância para não ter que matá-la, estrangulá-la. (“Desce” da patinete e agarra o pescoço de Sófia, num misto de ódio e desejo.)
Sófia
Mata-me. Sou Numância.
Val
Aonde será?
Sófia
Aí (indica a poltrona). Aí fomos felizes. Oh Júlio César, sou eu desdobrando-me do tapete, oh Marco António, guapo rapaz, oh víbora que me pica o seio, pica-me. Oh, Valfrido, Valfrido Lopes meu amor.
Val
Maldita Numância.
Sófia
Sófia, Sófia. (Beijam-se.) Cleópatra.
Val
Bendita Cleópatra. (Beijam-se.)
Sófia
Ama-me. Mata-me. Na poltrona fomos felizes.
(Passam para a poltrona, numa mistura de amor e homicídio dele. Fim.)
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