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viragem revista do movimento METANOIA nº 50 - 51 maio - dezembro 2005 publicação quadrimestral vaticano II - 40 anos como estamos a formar criminosos sinais crónicas espírito santo irmão roger pobreza e exclusão social 8 euros

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viragemrevista do movimento METANOIA

nº 50 - 51 maio - dezembro 2005 publicação quadrimestral

vaticano II - 40 anos

como estamos a formar criminosos

sinais

crónicas

espírito santo irmãoroger

pobreza e exclusão social

8 euros

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REVISTA DO METANOIAMOVIMENTO CATÓLICO

DE PROFISSIONAIS

Nº 50 - 51Maio - Dezembro 2005

Preço: 8 euros

R. João de Freitas Branco, 121500-359 LISBOATel. 210 322 339

[email protected]

Proprietário e Editor António Matos Ferreira

Conselho EditorialAntónio Marujo,

António Matos Ferreira,Cláudia Alves, José Centeio, Júlio Martin,

Maria Adelaide P. Correia, Miguel Marujo, Nuno Alves,

Paulo Fontes, Rita Veiga

Autores e Colaboradores deste número

Ana Nunes, António Armando Sousa,António Marujo, Clara Lito, David Lito,Felícia Pires, Joan Chittister, JoaquimFranco, Manuela Silva, Maria Adelaide

P. Correia, Maria Arminda Silva, Maria de Carvalho Torres, Maria

Helena David, Nuno Caiado, NunoTeotónio Pereira, Paulo Fontes, Rita

Veiga, Rodrigo Coutinho, RogérioAlves, Rui Valente, Teresa Fidélis

Grafismo e paginaçãoAníbal Fernandes

Ilustrações Cláudia Alves

SecretariadoAna Carvalho

Impressão Grafis

Depósito legal nº 44272/91Registo nº 107 116

Tiragem: 500 exemplares

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viragemFicha de Assinatura

Nome

Morada

Código Postal

Endereço Eletrónico

Para Pagamento da assinatura envio cheque nº

sobre,

à ordem de Metanoia.

Assinatura anual: 10 Euros ( 3 números)

Assinatura de apoio: a partir de 15 Euros

(Este cupão pode ser fotocopiado)

Editorial02 Deus não pode dar-nos senão o seu amor

António MarujoLuta contra o crime04 Como estamos a formar criminosos

Nuno Caiado22 O Padre Américo equivocou-se?

Rogério Alves24 A intermediação da (in) segurança

Joaquim Franco26 Como (não) estamos a formar cidades

para as pessoasTeresa Fidélis

28 Crime e intervenções na toxicodependênciaRodrigo Coutinho

Pobreza e exclusão social31 Bairros sociais, os novos guetos

Nuno Teotónio Pereira32 Uma tarefa que nos cabe

Rui Valente33 Um imperativo de consciência

Felícia Pires34 Políticas públicas de combate à pobreza

Maria Helena David36 Exclusão, inclusão e opção preferencial pelos pobres

Paulo Fontes38 Os tempos do coração e o seu poder

de alterar os ritmos do tempoMaria Arminda Silva

Vaticano II - 40 anos39 Igreja e compromisso com o mundo

Manuela SilvaBíblia48 O Espírito Santo esconde-se dentro de nós

Ana Nunes50 Credo

Joan ChittisterCrónicas45 Partir em missão, aceitar crescer

Clara Lito46 Saudades

David Lito52 Uma iluminação do amor incondicional de Deus

Ana Nunes54 Sinais56 Caminhando sob o esplendor da Tua face

Maria Adelaide P. Correia

SUMÁRIO

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Estamos a formar criminosos? O título, assumi-do de forma provocadora, dá mote ao principaltema de fundo deste número da Viragem. Numestimulante trabalho de Nuno Caiado, queresulta, como o próprio indica, de umareflexão construída em duas décadas de traba-

lho na luta contra o crime, interrogam-se, de forma exausti-va, os modos como o sistema de justiça e a organizaçãosocial estão ou não a cumprir um objectivo central: o deincluir as pessoas e não, pelo contrário, o de as excluir.

O tema não tem deixado, infelizmente, de ser actual.Alguns aspectos da realidade portuguesa recente –megaprocessos que dão em muito pouco, métodos de inves-tigação judicial abusivos, violência contra os agentes polici-ais, abuso da prisão preventiva, violência excessiva exerci-da pelas forças de autoridade – são apenas aspectos superfi-ciais de uma realidade mais profunda: como comunidadeorganizada, não temos, em muitos aspectos, colocado aspessoas no centro.

Ao lermos o texto de Nuno Caiado, podemos ser levadosà tentação do desânimo perante a vastidão e complexidadedos problemas. Mas essa vastidão e complexidade fazemhoje parte do mundo em que vivemos. E, apesar delas, temossido capazes de inventar soluções para vários problemas,mesmo se por vezes nos parece que a imensidão dos proble-mas exigia muito mais celeridade. As questões ligadas aoambiente aí estão para mostrar que tudo tem relação com

tudo e que só uma forte vontade política e um grandeempenhamento pessoal podem ser decisivos para resolver osproblemas.

O mesmo se pode dizer das questões ligadas ao sistemade justiça e à sua relação com a organização social. Se hámatérias que dependem dos decisores políticos e dos agentesdo sistema, também há outras que têm a ver com o modocomo cada um de nós se situa na hora de promover umasociedade mais integradora, mais relacional e, por isso,menos violenta. Daí que, a par do texto de Nuno Caiado,surjam outras quatro abordagens a olhar o mesmo artigo apartir de diferentes prismas: um advogado, um psiquiatra,um jornalista e uma técnica de ordenamento e ambiente.Porque os problemas são complexos, há que saber olhá-los ereflecti-los a partir de diferentes abordagens. Este é o con-tributo da Viragem para uma discussão que o país temforçosamente que fazer.

Se os problemas são vastos, mais decisivo é que cada umdê o seu contributo para que a sociedade seja um pouco me-lhor. O que pode ser feito através do trabalho ou da formacomo cada pessoa está na vida. É nesta perspectiva quesurge mais um conjunto de textos deste número: algunsdeles, partem do que foi a Sessão de Estudos organizada emMarço de 2005, pelo Metanóia, sobre "Pobreza e ExclusãoSocial: Interrogação ao nosso modo de vida". Outros,trazem-nos testemunho de quem, no trabalho da empresa,criando uma instituição de acolhimento ou partindo durante

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EDITORIAL

Se há matérias que dependem dos decisores políticos, também há outras

que têm a ver com o modo como cada um de nós se situa na hora de promover

uma sociedade mais integradora, mais relacional e, por isso, menos violenta.

Porque os problemas são complexos, há que saber olhá-los e reflecti-los a partir

de diferentes abordagens. Mas perante essa complexidade, o amor é a atitude

fundamental. Na carta "Um Futuro de Paz", publicada por altura do encontro

de Lisboa, escrevia o irmão Roger, de Taizé: "Deus não cria o medo

nem a inquietude, Deus não pode dar-nos senão o seu amor."

Deus não pode dar-nos senão o seu amor»» António Marujo

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um tempo para trabalhar em países mais pobres do que onosso, se sente desafiado a construir uma parcela de mundomais saudável e fraterno.

2. Olhar para a realidade a partir dos olhos de quem sofreé uma atitude essencial do ser cristão, recordada de modofeliz pelo Concílio Vaticano II: "As alegrias e as esperanças,as tristezas e as angústias dos homens do nosso tempo,sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, sãotambém as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angús-tias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma ver-dadeiramente humana que não encontre eco no seucoração."

Esta bela formulação que abre a constituição "Gaudiumet Spes", sobre a Igreja no mundo actual, traduz e con-cretiza, para o nosso tempo, o mandamento do amor queJesus quis legar como a sua grande novidade.

Numa altura em que registamos os 40 anos passadossobre o encerramento do Concílio (trazidos a este número daViragem num artigo de Manuela Silva que nos desafia), éimportante recordar o novo olhar que o Vaticano II nostrouxe: o de um cristianismo mais límpido. Mas estamemória transporta consigo uma exigência: a de nos colo-carmos, enquanto cristãos, na busca do essencial.

A atitude essencial dos cristãos que o citado texto recor-da implica uma verdadeira atitude ecuménica: a possibili-dade de, para lá do que separa, encontrar a verdadeira fécapaz de unir e de levar a uma atitude fundamental. O ecu-menismo de hoje, no entanto, está ainda mais desafiado tam-bém por aquilo que se passa no interior das próprias comu-nidades: como se constroem pontes entre grupos e pessoasque encaram, por vezes de modo tão díspar, a sua condiçãode crente? A unidade da Igreja deve ser radicada não naperspectiva da unicidade mas no profundo amor pelas pes-soas, especialmente por aquelas que sofrem – esse manda-mento maior de Jesus.

Num momento em que se aguarda para muito breve apublicação da primeira encíclica do novo Papa (e com a ce-lebração anual da Semana pela Unidade dos Cristãos), deve-mos aprofundar o debate sobre o que se pretende do diálogoecuménico nessas diferentes perspectivas – entre igrejas eentre grupos dentro da mesma Igreja.

3. Neste tempo, deixaram-nos amigos e referências: oManuel Antero, de Guimarães, associado do Metanóia desdea primeira hora; Paul Ricoeur, filósofo da reconciliação; oirmão Roger, de Taizé.

Numa carta que escreveu à família de Ricoeur, quandoeste morreu, o irmão Roger recordava: "Desde há cerca de50 anos [Ricoeur] veio a Taizé várias vezes. Apreciámosmuito a sua vasta cultura, e a sua capacidade de exprimir osvalores do evangelho nas situações de hoje em dia. Ajudou--nos muitas vezes a reflectir. E mais de uma vez fui levadoa citar, nas cartas aos jovens, certas expressões fortes que eletinha formulado sobre temas importantes para nós, como o

sentido e a origem do mal. Um dia, disse-nos estas palavras:'Por mais radical que seja o mal, não é tão profundo como abondade'."

A bondade do coração era a marca de água deste profetada reconciliação que foi o irmão Roger. A sua morte violen-ta deixou-nos a perguntar sobre o sentido do mal na nossavida. Mas ela traduziu também, de um modo trágico, a con-fiança em que a sua vida se cumpriu. Até ao limite.Esperança, alegria, busca da felicidade, bondade, vida sim-ples, confiança e reconciliação, são sinónimos da vida doirmão Roger.

Na entrevista que tive oportunidade de lhe fazer para o"Público", em Dezembro de 2004, na véspera de iniciar oencontro da "peregrinação de confiança" em Lisboa, o irmãoRoger dizia: "Hoje, com os jovens, por vezes interrogamo-nos: existem realidades que tornem a vida bela e das quaispossamos dizer que trazem uma plenitude, uma alegria inte-rior? Sim, existem. E uma dessas realidades chama-se pre-cisamente confiança."

Nas suas últimas semanas de vida, o irmão Roger repetiacom frequência: "Em tudo, a paz do coração." Evocar estafigura que nos apaziguava o coração é evocar alguém queacreditava na superioridade e na possibilidade do bem. Eque, apesar disso, não deixava de mergulhar nas realidadesda miséria mais dramática, como na Índia ou no Bangladesh,ou da guerra mais trágica, como a dos massacres do Ruandaou do conflito dos Balcãs.

"A confiança em Deus não ignora os sofrimentos de tan-tos necessitados através do mundo", afirmava ele, na entre-vista citada. "Em vez de fugir das responsabilidades, a con-fiança possibilita manter-se de pé, onde as sociedadeshumanas são abaladas. Ela permite avançar mesmo quandosurge o fracasso."

Essa vida que traduzia a "iluminação do Amor incondi-cional de Deus e da certeza de que o Espírito de CristoRessuscitado, o Espírito Santo, ora permanentemente noscorações de todos os homens", como recorda o testemunhoda Ana Nunes, não deixou de nos desafiar ao amor. Mesmoperante problemas vastos como os enunciados neste númeroda Viragem, essa é sempre a atitude fundamental.

Na carta "Um Futuro de Paz", publicada por altura doencontro de Lisboa, escrevia o irmão Roger: "Deus não criao medo nem a inquietude, Deus não pode dar-nos senão oseu amor." v

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DEUS NÃO PODE DAR-NOS SENÃO O SEU AMOR

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1. Contracultura

Aminha geração, iniciada na vida activa nosanos 80, formou-se na luta pela soli-dariedade e igualização contra um “esta-blishment” injusto. Muitos foram os cami-nhos tomados, de acordo com opções dife-rentes e até antagónicas. Mas, para alguns,

não é ainda permitido o descanso do guerreiro, pois o actu-al patamar não é tranquilizador, apesar dos progressosalcançados e da aceitação de valores mais justos no fun-cionamento geral da sociedade. Com efeito, a par dessesprogressos, verificam-se perversões como a tendência àdiluição da autoridade, da responsabilidade individual ecolectiva, da noção de hierarquia orgânica e de valores (fac-tores absolutamente indispensáveis à vida colectiva) e aemergência dos seus resultados, como a indisciplina, a into-lerância e o autoritarismo. Estes resultados são tão perversosque vêm pôr em causa a democracia e o caldo cultural queos viu nascer e os permitiu.

O Presidente da República Jorge Sampaio reitera, emtodas as aberturas solenes do ano judicial e em tantas outrasocasiões, a noção de urgente necessidade de construção deuma cultura de rigor e de responsabilização, que saibaafrontar o “statu quo” resultante de décadas de atrasos estru-turais, equívocos, hesitações e adiamento de soluções, trans-formando a situação estabelecida a partir do seu interior.

Precisamos de uma contracultura de exigência e responsabi-lização sem concessões, que se poderá concretizar segundomúltiplas orientações.

Transporto uma certeza sobre a aplicabilidade dessa con-tracultura no campo da Justiça e das políticas criminais: semnunca trair os princípios da solidariedade e dos direitoshumanos, é urgente repensar sem complexos e pragmatica-mente o problema criminal de hoje e as respostas que neces-sitam ser dadas, a partir da realidade e não de doutrinas dopassado.

Quando pensamos a criminalidade moderna, deverão sertidas em conta as suas conexões:

* com a cultura hedonista de consumo e de facilidade,que são referências inultrapassáveis, a par da sobrevaloriza-ção das dimensões económicas em detrimento de valoresmorais positivos;

* com a vivência na cidade – o paradigma da organiza-ção espacial e cultural do Homem no início do novomilénio;

* com as políticas que, consoante a sua orientação,agravam ou desagravam o problema;

* e, por último, com a crise de legitimidade e a falênciados modelos de intervenção, sejam de polícia (p. ex.,William J. Bratton e William Andrews, “Aprender a SerPolícia”, em “Paradigma Urbano – As Cidades do NovoMilénio”, Quetzal Editores, 2001), sejam de Justiça, maugrado as tentativas de regeneração através da criação de

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LUTA CONTRA O CRIME

Notas de mais de 20 anos de trabalho no combate ao crime – uma tentativa

de visitar a extensa paisagem onde se produzem e reproduzem delinquentes,

modos de vidas e conceitos sobre a desviância, e factores judiciários condicionantes

Como estamos a formar criminosos»» Nuno Caiado »» associado do Metanóia; [email protected]

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alternativas (p. ex., Paulo Silva Fernandes, “O Direito Penalno Amanhecer do Século XXI…”, revista Sub Judicie, nº 19,Dez. 2001) ou de execução de penas (p. ex., The BrokenWindows Model, www.manhattan-institute.org/html/bro-ken_windows.htm, entre tantos e tantos outros nos EUAe Europa, desde os fins dos anos 90).

De seguida serão abordadas algumas destas questões.

2. A luta contra o crime, cepticismo e «what works»

Lutar contra o crime é uma agenda política que deveria terimplicações em todas as políticas sociais. A experiência demuitos anos de trabalho com delinquentes (expressão criti-cada por alguns autores que não prescindem da designaçãode “criminosos”) não nos mostra essa abrangência nem re-vela progressos da luta contra a criminalidade. Esta conti-nua a expandir-se, independentemente de alguns discursospolíticos que convocam não sei que estatísticas parademonstrar um certo abrandamento. Em consequência dahabituação ao fenómeno e a resultados desanimadores,poderemos tornar-nos indiferentes ao sofrimento das víti-mas, frustrados e cínicos em relação às dificuldades deinclusão dos delinquentes na normatividade social e cépti-cos face às possibilidades de sucesso nas acções do queentre nós convencionámos chamar “reinserção social” (dedelinquentes, já que semelhante conceito é aplicável a toxi-codependentes e outros). Como se os criminosos fossemtodos iguais, como se não houvesse muito a fazer com eles(nothing works), como se a droga fosse a culpada de tudo.Afinal, depois de tantos e tantos casos de criminosos detodas as idades, com e sem droga, resultados dolorosamenteescassos podem levar-nos à desilusão e à paralisia.

Mas de outras paragens mostram-nos que o sistema podefuncionar (what works) e que existem alternativas ao derro-tismo e ao cinismo. O conformismo, passivo ou crítico, nãoé uma fatalidade. Para uma luta consequente contra o crime,muitas das armas ultrapassam as políticas criminais; trata-sede políticas gerais, que não estão ao alcance imediato dostribunais e dos serviços de execução de penas. Mas nada nosimpede de as debater e reclamar, quer umas quer outras.

O controlo da criminalidade pressupõe políticas crimi-nais descomplexadas e agressivas e políticas sociais claras eabrangentes. As primeiras pressupõem uma penalogiaesclarecida e organização dos serviços do MinistérioPúblico, de polícia e de execução de penas, exigindo-lhesarticulação e colaboração. As segundas devem desenvolver--se com especial atenção à educação, ao ambiente urbano(isto é, o desenho das cidades, a arquitectura, os transportese as suas implicações nos comportamentos e nas relaçõessociais), à família, ao emprego e à segurança social comcritérios de equidade, mérito e operacionalidade. Adefinição destas políticas deve orientar-se pelo reconheci-mento das suas implicações na ordem urbana e na organiza-

ção social, contrariando o estilhaçamento de valores e aexclusão social. Para cumprir este desiderato, quaisquerdelas deverão ser pragmáticas, arrojadas e inventivas,servindo o presente e antevendo o futuro e, ao contrário doque é habitual, não indo a reboque da realidade.

3. Estratégicas políticas na luta contra o crime

Um assunto de polícia. No passado foi construída e alimen-tada pelos poderes a crença de que o crime era assunto depolícia. Ainda hoje num contexto de massificação do crimehá quem se filie nesta visão reducionista, empiricamentedesmentida, apenas clamando pela polícia para resolver oproblema da insegurança. É um erro infantil. Mas a tendên-cia contrária que por vezes se observa de que a polícia estádestituída de poder e nada pode fazer para travar o crime elevar à Justiça os criminosos, é uma contracrença igual-mente preocupante e infundada, que se encontra instaladaem muitos sectores, inclusive nas próprias polícias.

Errância e errado. Muitos consideram que as estratégiaspolíticas na luta contra o crime oscilam entre a errância e oerrado. Se é verdade que temos assistido a oscilações, oracanalizando energias para o tráfico de estupefacientes, orapara o crime económico, ora para outros crimes, é igual-mente certo que, aparentemente em nome de não compro-meter determinados equilíbrios, que seriam exacerbadospelos media, tem sido cometido um erro fatal: a desva-lorização da segurança das populações. Uma política crimi-nal deveria ser participada pelos operadores judiciários epelos meios académicos credenciados, mas sempre firme-mente dirigida por objectivos em que a segurança das pes-soas e a sua qualidade de vida sejam referênciasinamovíveis. Nesta perspectiva é essencial escutar e saberinterpretar os anseios da sociedade civil, não desvalorizandosistematicamente os seus sentimentos de insegurança (que,mesmo subjectiva, tem os seus fundamentos).

As hesitações históricas da política criminal e da Justiçatêm os resultados à vista, estudados e documentados em tra-balhos de inquestionável seriedade (p. ex., Justiça em Crise?Crises da Justiça, Publicações D. Quixote, colaborações deAntónio Cluny, Cardona Ferreira, Laborinho Lúcio, entremuitos outros). Também no Instituto de Reinserção Social(IRS), desde a sua criação, bem temos sentido o reflexodessas políticas hesitantes, por vezes sem rumo ou contra-ditórias.

O problema não é exclusivamente nacional: no livro--desabafo “Tolerância Zero”, o ex-magistrado francêsGeorge Fenech (Editorial Inquérito, 2001) demonstra exu-berantemente a tibieza e hesitação de políticas criminaisambíguas, marcadas por erros de estratégia e excesso decompromissos.

A insegurança. Eis o grande tema! Para grandes dificul-dades, grande demagogia: nada é mais irritante para aopinião pública do que a ideia sistemática de ver desva-

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COMO ESTAMOS A FORMAR CRIMINOSOS

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lorizados os seus sentimentos de insegurança, apelidando-osde “subjectivos” e denegando a crescente criminalidade evi-dente. Esta denegação é perigosa porque provoca expressõespor vezes inadequadas de intolerância ou violência (o que secompreende a gente frequentemente roubada ou ameaçada,com fracos recursos explicativos para o crime). Os princi-pais argumentos deste erro são:

primeiro, relacionar uma alegada segurança com onúmero (alegadamente baixo) de crimes cometidos;

segundo, Portugal terá um dos mais baixos índices decriminalidade da Europa.

Ora as estatísticas invocadas, das polícias e da Justiça,além de se cruzarem com dificuldade, servem sobretudo anecessidade de conhecimento da actividade de um sector enão o que lhe está na origem, pelo que podem ser facilmentemanipuladas. Há, pois, que saber interpretá-las, com a cons-ciência de que as cifras negras são em Portugal muito altas– apenas uma pequena minoria dos crimes tem registo poli-cial e destes muitos não vão a julgamento (conferir comEstatísticas da Justiça de qualquer ano).

Portanto, o que está em causa não é de todo o número decrimes ou ocorrências registadas, mas sim as condiçõesobjectivas e subjectivas que concorrem para o clima de inse-gurança sentido. Ou seja, tanto conta o número de crimesefectivamente cometidos (independentemente do registo)como a probabilidade sentida pelas pessoas de voltar a havernovos crimes, considerando as experiências anteriores, aocupação dos espaços por actividades directa ou indirecta-mente ligadas ao desvio e ao crime, e a percepção sobre asdificuldades de funcionamento dos sistemas repressivo ejudiciário no seu conjunto.

Neste sentido, é frequente ouvir aos poderes públicos –políticos ou organizações – a afirmação de que a insegu-rança é um factor psicológico e não real. Como se, por serpsicológico, pudesse deixar de ser real. Este discurso dedesvalorização sistemática da insegurança é um disparatetremendo porque hostiliza as populações que sentem a inse-gurança lançando-as, mais tarde ou mais cedo, contra quemo produz e contra as polícias e os tribunais. A prazo, osresultados serão mais insegurança e a questionação dademocracia como modo de vida colectivo.

Nas cidades, nos seus centros e nas suas zonas periféri-cas, ampliam-se os palcos das acções criminosas aparente-mente de pequeno significado. O clima de insegurança égerado primeiro pela frequência de ocorrências, depois pelasua gravidade e permanência e por fim por um clima deintimidação e suspeição inibidor de comportamentos sociaisanteriores (sair à noite, passear sem andar agarrado à mala,fazer certo percurso, etc.). Nestas situações é possível que jáexista descontrolo da situação por parte das polícias, difi-culdade de gestão dos tribunais a braços com um excesso delitigância para os seus meios, bem como dos serviços deexecução de penas.

A actividade criminal massificada e banalizada origina opróximo passo: a adopção de “vista grossa” perante os com-

portamentos delituosos tidos por menos graves, numa ati-tude de permissividade para que o sistema não entre em rup-tura. Sabendo que apenas uma ínfima parte dos crimes sãojulgados e destes alguns não têm pena, conclui-se que sãoainda menos os criminosos condenados. Ou seja, muitosdelinquentes poderão continuar a sua actividade criminal.

Alguns académicos indicam que a preocupação é aindaevitar que o crime extravase para os centros simbólicos dacidade. Mas a estratégia de aceitação de certos níveis dedesvio pelos poderes públicos é um incentivo a que os cri-minosos ganhem mais e mais latitude de actuação, em ter-ritório e género de actividade. Torna-se progressivamenteclaro para estes, qualquer que seja o seu padrão pessoal defuncionamento, que o sistema lhes dá a faculdade de conti-nuar a cometer crimes. O sistema não se interessa por eles,esses “outsiders”. As consequências das ambiguidades, datimidez e mesmo da inacção dos poderes legislativo e exe-cutivo face aos avanços da criminalidade repercutem-se nasacções policial e judiciária e na execução das penas, com oprevisível aproveitamento por parte dos agentes criminosos.Daqui decorre um clima instável mesmo em zonas centraisdas cidades, como por vezes se verifica na metrópole deLisboa. Para tal concorre igualmente a degradação de zonascentrais, entregues a si mesmas, sem politicas urbanas eesvaziadas de população viva e activa – as faixas qualifi-cadas e mais novas migraram e já não sentem atracção pelaszonas deprimidas.

A este panorama junta-se a manipulação política e o con-tributo dos media numa perspectiva selvagem de audiênciase venda de sangue e escândalos, não importa a que preçosocial. Por estas razões, não admira que os problemas da(in)segurança tenham estado no top das preocupações nassondagens da década de 90 e, em países como França, aindase mantenham na primeira linha das preocupações daopinião pública e da agenda política.

A ausência de políticas urbanas. As cidades, tal como nósas concebemos – local de concentração de pessoas,habitações e actividade económica, em particular comércionuma escala alargada –, desenvolveram-se desde a IdadeMédia. Hoje, no início do 3º milénio, tendencialmente todaa sociedade se organiza de acordo com essa matriz urbana,caracterizada agora pela intensa concentração de pessoas,edifícios e meios com valores e estilos de vida próprios. Éneste palco que se desenrolam as mais diversas tendênciasdos movimentos sociais e dos comportamentos humanos.Entre nós, as políticas sectoriais apresentam-se algo descon-certadas e sem eixos polarizadores, o que favorece as actu-ais assimetrias sócio-espaciais.

Muita da insegurança vivida pelas populações urbanas éresultado da ausência de uma estratégia de planeamento eordenamento dos poderes públicos para as cidades e a vidaurbana. Falta, em resumo, uma política urbana, que deveriaser abrangente e cooperante com as restantes. Políticaurbana significa gerir e cuidar da cidade como espaço desociabilidade, convívio, trabalho e produção, pelo que o

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COMO ESTAMOS A FORMAR CRIMINOSOS

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ordenamento e a manutenção dos espaços se tornam dra-maticamente vitais para as cidades. Quem não asseguraníveis elevados na gestão da quotidianeidade não assegurarácidades saudáveis e geradoras de sinais visíveis de segu-rança. A solução francesa de um Ministério da Cidade,encarregado de gizar políticas de ordenamento e segurançaem articulação com os ministérios tradicionais, poderá serum caminho. Não certamente o caminho que foi recente-mente percorrido em Portugal, em que o dito ministérioparecia ser um saco azul das autarquias semi-rurais.

Pensar. Para quem se interessar pela reflexão sobre ocrime e a cidade/o Estado, recomenda-se vivamente a leitu-ra de “O Cidadão, o Crime e o Estado” de Philippe Robert,com prefácio de Cândido da Agra, 2002, Editorial Notícias.

4. Crime e reacção

Explicar o crime. Nunca foi fácil explicar o crime. Nassociedades urbanas tornar-se-á, porventura, ainda mais difí-cil. Não é de estranhar que surjam por isso múltiplas expli-cações parcelares, plausíveis em certas ocorrências, masincapazes de fornecer uma compreensão global do fenó-meno. Um problema grave é a falta de compreensão dofenómeno criminal por parte da opinião pública, dos media,da comunidade técnica em geral e mesmo por parte dosoperadores judiciários. Entre estes, não é incomum recorrer

à pobreza, à exclusão social, ao desemprego e à inevitáveldroga para explicar o crime, e aquele crime em particular. Éum grande equívoco, é uma explicação que não explica eque nada ajuda a contrariar a criminalidade.

Para compreender as mentes criminosas e os fenómenosda criminalidade, temos que conhecer os ecossistemas ondenascem e se desenvolvem, ensaiando o cruzamento demuitos factores, reconhecendo com humildade as limitaçõesque caracterizam o conhecimento dos motivos últimos daviolação dos bens jurídicos que as nossas sociedades esta-belecem e que são generalizadamente aceites.

Por outro lado, não esqueçamos as correntes que rela-cionam o crime e os seus agentes com a identidade dassociedades: sem criminosos para estabelecer a diferença,não seríamos quem somos, como normalidade social, isto é,a sociedade precisa de estabelecer desvios para definir opadrão. É uma teoria sociológica interessante, mas, paraalém de pouco produtiva em termos preventivos (um pro-blema da sociologia?), é porventura datada, porque tinhaque ver com fenómenos criminais menos diversos e porregra controlados ou delimitados. Mas a banalização do crimee a sua pulverização transversal a toda a sociedade vem peri-gar a noção de crime delimitado. Delimitado a quê se, embo-ra com prevalências diferentes, está em toda a cidade, abrangee vítima todas os estratos sociais, em todas as idades?

O mito da eliminação do crime. Outra tentação é a ideiado fim do crime, como se ele fosse algo de sujo acrescenta-

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COMO ESTAMOS A FORMAR CRIMINOSOS

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do às sociedades, limpas e sãs: uma “nódoa no pano”.Alguns políticos deslizam para a facilidade da promessa deeliminar o crime. Mas como, se a transgressão e o crime sãoalgo profundamente humano, inerente à espécie (como osimbólico episódio bíblico de Adão e Eva parece quererdemonstrar)? Sem entrar na polémica etiológica da trans-gressão animal, todas as sociedades humanas, das mais sim-ples às mais complexas, geram as suas formas próprias detransgressão e criminalidade. O crime é, afinal, uma “man-cha do pano”. As multicomplexas sociedades urbanas dehoje contêm uma maior potencialização de comportamentosdevido à extraordinária diversidade da estimulação, pelo quea promessa razoável dos políticos seria, mais modestamente,controlar o crime e reduzir a criminalidade. “Reduce crime”,o mote de hoje da moderna “probation” (a expressão que eminglês e francês consagra o trabalho social com delin-quentes) não é um acaso.

Um determinismo social. Uma das aquisições do séculoXX foi querer em todos os domínios alguma explicaçãocientífica para todos os fenómenos. Depois de se ter banidoa ideia de que o criminoso poderia ter feito um crime inde-pendentemente de uma causa compreensível, ao menos paraquem julga, avançou-se mais e caiu-se num certo determi-nismo social: o criminoso é um resultado das condiçõessociais. Nada mais verdadeiro, porque é evidente que todosos seres humanos são resultado do ambiente em que sedesenvolvem. Mas também nada é mais ineficaz quando setrata de estabelecer a culpa e a pena para esse criminoso,porque ignora a sua responsabilidade individual. Explicarum criminoso apenas como um resultado de certascondições sociais, sem ter atenção à sua vontade e determi-nação pessoal, é um tremendo erro, porque lhe retira aresponsabilidade individual, desumanizando-o a um pontoque deveria ser intolerável para qualquer sociedade. A culpaé sempre individual, porque perante um dilema é semprepossível fazer outras opções.

O determinismo social, por mais bondoso que pareça,constitui-se numa explicação que se contrai em desculpa,prejudicando uma saudável relação da sociedade com ocrime. Por outro lado, ignora as reacções de outros queestiveram sujeitos a condições semelhantes à dos criminosose que adoptaram comportamentos socialmente ajustados.Não será fácil introduzir esta sensibilidade na nossa culturafrancófila porque o eixo cultural que sustenta a responsabi-lidade individual é de matriz essencialmente saxónica.

A criminalização da pobreza. É igualmente injustoatribuir à pobreza a causa da criminalidade. Tal significacriminalizar a pobreza. Ora os pobres são já suficientementepenalizados pelas carências e dificuldades sociais que trans-portam, não necessitam de suportar mais um fardo. Seriaridículo e insustentável denegar a estreita conexão entre asproblemáticas da pobreza económica (no limite, a exclusãoeconómica) e a emergência da criminalidade. Mas, na eradas cidades, deve ser firmemente rejeitado o estabelecimen-to de relações causais imediatas entre as duas problemáticas.

Se assim fosse, como compreender a existência de crimi-nosos e de prisões na Escandinávia, onde a pobreza foi eli-minada?

A droga. Devido a um nível especialmente elevado detráfico e consumo de estupefacientes em Portugal, durante adécada de 80 e em grande parte na de 90, cristalizou-se acrença da conexão drogas-toxicodependências como o fac-tor explicativo de quase toda a criminalidade. Afinal nãoestavam (estão) as cadeias cheias de consumidores e trafi-cantes? A heroína é um conveniente ópio entorpecente.Adormece as consciências de quem a usa e os olhares inad-vertidos da opinião pública. Converte-se no próprio narcóti-co da opinião pública.

Aquela explicação, porém, tornou-se enjoativa, redutorae inoperacional para a correcta identificação do fenómenocriminal. É falsa a ideia, transformada em crença, que os tri-bunais e as prisões estão cheias de toxicodependentes delin-quentes, vítimas da sua dependência. O problema é maiscomplexo. Procurando simplificar, refira-se que confirman-do suspeitas e perplexidade, o professor Cândido da Agra(Universidade do Porto) já demonstrou que muitos crimi-nosos não são sequer consumidores de estupefacientes e queuma importante maioria dos delinquentes-toxicodepen-dentes já tinham manifestado comportamentos desviantes edelituosos muito antes de consumir drogas e de se tornardelas dependentes. Ou seja, delinquentes-toxicodependentesnão é sinónimo de toxicodependentes-delinquentes. Estessão uma minoria do universo da população reclusa, enquan-to que aqueles são muito mais significativos. Portanto, tráfi-co e consumo são crimes associados e instrumentais de per-sonalidades e actividades criminais. Se ao menos esta ideiasimples pudesse ser disseminada, muita crença e muito dis-parate poderia ser varrido das TV.

De resto, já havia crime antes da droga. Esta aparececomo factor associado, muitas vezes instrumental, ao com-portamento criminoso. De novo o que se pretende é recusara explicação causal imediata e tendencialmente única, enunca iludir a relação cometimento de crimes–uso e/ouabuso/dependência de drogas e seu tráfico, cuja existênciaestá sobejamente descrita e é verificável empiricamente.Resta retirar as correspondentes conclusões nos diagnósti-cos macro-sociais e nas avaliações individuais dos delin-quentes.

Nesta perspectiva, a abertura mercantil às drogas não sónão resolveria o problema do sofrimento pela dependênciados seus utilizadores, como tão-pouco solucionaria o pro-blema criminal do tráfico ilícito das substâncias, pois haverásempre centenas de alternativas igualmente tóxicas eperigosas para comercializar. Se as drogas, mesmo as ale-gadamente recreativas, são perigosas e se tornam instru-mentais para os delinquentes, qual o valor acrescentado quetraria a sua “liberalização” mercantil em termos de pre-venção criminal? Uma discussão serena e discernida sobreeste assunto na sua relação com a criminalidade nunca de-veria perder de vista alguns factos:

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as drogas, como o álcool e o tabaco, mesmo legais, per-manecem objecto de investimento criminal através de con-trabando e contrafacção;

é dos livros que a droga legal que é o álcool potencia emmuitas personalidades frágeis ou vulneráveis desinibiçõesou estados de falta de controlo que levam a actos desade-quados violentos que podem ter tradução penal – conduçãosob o efeito do álcool, homicídios, agressões, violênciadoméstica;

as drogas são proibidas porque o seu consumo é perigoso– e não o contrário, como os abolicionistas pretendem – (queas drogas serão perigosas porque proibidas).

Depois de uma liberalização da heroína, a droga – pro-blema até há pouco, outras viriam, como na verdade já estãoa vir – as drogas sintéticas que os filmes americanos hámuito nos anunciam. Esses outros estupefacientes já sãohoje e aqui um novo problema criminal (pelo tráfico e pelosefeitos do consumo e da dependência), pelo que, nesta linhade absurda inversão de valores, o destino seria progressiva-mente ir permitindo todos os psicotrópicos, todos os entor-pecentes, todos os desinibidores, todos os ácidos, todos osmilhares de drogas sintéticas de novos e devastadoresefeitos (de resto, já vendáveis pela internet), num trajectosem sucesso nem fim na luta contra o crime (e contra asdependências, pela saúde), numa louca cavalgada de abdi-cação do estabelecimento de fronteiras, de valoressaudáveis, da noção de perigoso e de regras de conviviali-

dade e sociabilidade (ver Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência, www.emcdda.org, e Organiza-ção Internacional de Controlo de Estupefacientes,www.incb.org).

Quereremos uma sociedade em que as drogas circulemlivremente, por alegada prevenção criminal, mas em quemuitos crimes permanecem associados ao seu uso e tráfico,independentemente de serem proibidas ou não? Algunsadmitirão, talvez em abstracto, essa sociedade “diabolizada”por esta perspectiva que dirão “catastrófica”; mas quererãoque os seus filhos estejam sujeitos à ausência de noção deproibido, de perigoso, de ilícito e de facilitação no acessoaos estupefacientes? Este será decerto um dos melhorescaminhos de uma educação para a transgressão, que culmi-nará para muitos na actividade criminosa.

Em jeito de P.S.: julgam alguns, ainda assim, que osproblemas sociais ficariam solucionados; mas que dirão osresponsáveis pelos serviços públicos de saúde da sobrecargade novas problemáticas e novos doentes provocados pelolivre acesso às drogas? eis um tema interessante. E tantomais quanto se sabe hoje, com sufocante clareza, quemudou, diversificando-se, o tipo de consumo de drogas. Daheroína e cocaína passou-se já para uma pluralidade, queserá crescente, de drogas chamadas “recreativas”, igual-mente prejudiciais à saúde.

O desemprego. Também só por si a questão laboral nãocolhe. Perplexos, assistimos à evolução económica e dos

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mercados ao ponto de, numa dada fase, o desemprego atin-gir níveis inexpressivos nas faixas da clientela típica dajustiça penal, sem que isso fizesse sequer estabilizar a curvaascendente da criminalidade. Antes pelo contrário, nesseperíodo, dos anos 80 aos anos 90, a evolução do crime, re-gistado ou não, foi muito preocupante, mau grado o temperode discursos oficiais ou de alguns académicos. Ou seja,passámos das vacas magras para tempos mais cómodos, mastal não parece ter tido impacto significativo na diminuiçãoda actividade criminosa e na personalidade e modo de vidade muitos delinquentes.

Outra perplexidade deriva de muitos delinquentes teremsituações laborais favoráveis, desmentindo a ideia social-mente aceite da prevalência de desempregados no cometi-mento de crimes. De novo, aqui não se pode negar ofavorecimento de condições socialmente adversas, como,por exemplo, um clima de recessão, para o incremento daactividade criminal. Mas já deveria ir longe a ideia redutorade nexo automático. Mandar trabalhar um delinquente coma esperança de que o trabalho o iniba de novos comporta-mentos ilícitos é uma perigosa ingenuidade que aindaencontramos na opinião pública, nos tribunais e nos profis-sionais da Justiça.

O racismo. Os fenómenos de imigração maciça dos anos70 até à actualidade transformou a paisagem humana dePortugal. Em Lisboa, coexistem inúmeras culturas dos paíseslusófonos africanos, de toda a África, do subcontinente indi-ano e da China, a que acresceu, durante os últimos 15 anos,uma vaga sem precedentes de imigrantes do Leste. Este“melting pot” à escala nacional é considerável e acarreta jáinúmeras dificuldades. O racismo é também um recursoexplicativo para alguma criminalidade. Sem lhe negar com-pletamente esse estatuto, seria preferível optar por expli-cações relacionadas com antagonismos de comportamentosculturais e diferenciação de atitudes com base em situaçõesde impreparação cultural e exclusão social, protagonizadaspor qualquer etnia (se é que o termo ainda é utilizável). Odesenraizamento, nomeadamente das chamadas “segundasgerações africanas”, também deveria ser considerado e pon-derado devidamente, sem complexos ou atitudes primárias.Isto porque a verdade é que existe um problema criminalmuito grave com uma minoria muito instável oriunda dessesector.

A resposta multiculturalista, muito em voga no final dosanos 90, não parece ter sido capaz de fornecer no terrenoresultados animadores. Como proceder à efectiva integraçãosem violar culturas? Pode a cultura de origem ser preserva-da sem violar a de acolhimento?

No início do século XXI, desenha-se finalmente napolítica europeia a consagração da ideia – até há pouco,politicamente incorrecta – de que é condição “sine qua non”para a integração plena dos nossos imigrantes o respeitopelos modos de vida quotidianos e as culturas dassociedades de acolhimento.

Os novos crimes 1. As transformações tipológicas da

actividade criminal são outro problema: elas não podem serinterpretadas devidamente pelo establishment porque esteusa, na sua avaliação, padrões do passado, eventualmenteúteis outrora, mas inoperacionais no presente. Aos crimesmeramente aquisitivos que visam o lucro juntam-se acçõesde carácter predador e provocador, por vezes com uma com-ponente lúdica e, cada vez mais frequentemente, com com-ponentes de violência gratuita contra pessoas e bens. De ummodo geral, estes tipos de delinquentes tornaram-se maisintimidadores e reactivos (maior agressividade e intimi-dação) às abordagens das polícias ou de outros represen-tantes do ordenamento social.

A expressão “gang” usada frequentemente nos mediatraduz outra novidade: uma criminalidade grupal.Oficialmente, não existem gangs, devido ao melindre políti-co e à possibilidade de pânico e alarme social.Tecnicamente, também não: o conceito pressupõe umquadro associativo orgânico, dotado de certa estabilidade,hierarquia, objectivos comuns e estratégia para os alcançar.Ou seja, um quadro conceptual de tipo Al Capone, oriundode uma realidade do passado, que não é operacionalizadopelos jovens criminosos dos nossos dias. Estes associam-seem bando, podendo ter lideranças e posições hierárquicas noseu interior, mas, de modo geral, a sua composição é fluidae inconsistente e orientam-se mais por objectivos imediatosdo que por acções programadas. Ao estilhaçamento de va-lores e regras na sociedade corresponde, naturalmente, umpadrão de comportamento criminal, igualmente estilhaçado,manobrado por impulso imediato. Poderá não haver gangs,mas há criminalidade de grupo.

Ao denegar em público esta realidade, hoje disseminadanas chamadas “zonas periféricas”, as autoridades parecemestar a usar conceitos ultrapassados, que em breve semostrarão claramente inadequados face aos resultadosesperados pelos cidadãos. Já a PIDE experimentava igualinsucesso quando tentava contrariar os movimentos estu-dantis do fim dos anos 60 e anos 70 recorrendo aos conhe-cimentos que possuía do funcionamento do aparelho do PCP– que a força motriz desses movimentos já não estava noPCP, estilhaçado em cisões e ultrapassado no terreno porinúmeras tendências.

A já referida massificação ou banalização do crime éainda um último factor a ter em conta e que é essencial paraa opinião pública, para o cidadão anónimo que vê a acumu-lação de episódios sem compreender a reacção do sistema.Perante este novo quadro criminal, por regra, o sistema man-tém as mesmas reacções paroquiais, enformadas pelo co-nhecimento de padrões criminais desactualizados e imbuí-das de preocupações de pedagogia que carecem de sentido,porque desprovidas de dimensões repressivas compreen-síveis pelo seu destinatário: o criminoso.

Os novos crimes 2. Admite-se que se possa fazer umaleitura destas perspectivas remetendo-nos para a cristaliza-ção de uma criminologia de classe – e, consequentemente,para uma reacção de classe ao crime e para uma Justiça de

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classe. Será um vício profissional ou um equívoco deanálise.

Todavia, a par desta possível remissão, devemos ponde-rar seriamente outros novos crimes, que não os atrás referi-dos. Aos crimes habitualmente cometidos pelas chamadas“classes desfavorecidas”, que historicamente alimentam asprisões e asilos, acrescem os crimes de natureza financeira eeconómica. Em geral, estes têm ecos mais simbólicos do quereais nas populações que não sentem directamente os seusefeitos, porque se processam a níveis elevados: burlas, con-trafacção, tráficos de influências, de pessoas e de bens, cor-rupção, branqueamento de dinheiro, entre outros. Mas, se,como se tem estudado, a grande criminalidade, não rarasvezes, necessita instrumentalmente da pequena e médiacriminalidade, então concluir-se-á que, de um modo ououtro, aquela se repercutirá em deferido no quotidiano doscidadãos. As criminalidades são, portanto, simbióticas.

Estes crimes serão novos na sua formulação e no modode concretização graças ao recurso às tecnologias, mas segu-ramente antigos nas perenes motivações de aquisição depoder(es) e dinheiro. Em regra, os seus autores são muitomais habilitados do ponto de vista social, cultural eeconómico para prosseguir os seus objectivos criminosos eevitar ou contornar o controlo social, policial e judicial. Oseu sucesso social e económico, traduzido em visuais defacilitismo, é um sinal enganador e perverso para muitos e,no limite, eles chegam a governar organizações como clubesdesportivos, ou mesmo países.

Os novos crimes 3. Julgo já se anteverem tímidos sinaisde problemas futuros. Sociedades multicomplexas deverãogerar em certos tipos de personalidades desajustamentosgraves que, noutras condições, não emergiriam – pelomenos de forma notória e alargada. Patologias que numenquadramento social restrito e menos estimulante do pontode vista visual seriam mais ou menos inertes ou confinadasa uma pequena comunidade (p. ex., o tolo da aldeia) sãoagora transportadas para extramuros com comportamentosdesajustados a evoluir para ilícitos e perigosos, sendo talnotório para grande número de pessoas.

O cinema e a TV há muito que nos dão exemplos fre-quentes de outras sociedades em que surgem comportamen-tos anómalos como os “serial killers” ou criminosos de ritu-al. Parece que os especialistas nunca se entenderão sobre sese trata de patologias ou meras perturbações da personali-dade, mas parece igualmente adquirido que se trata de fenó-menos exacerbados pelo estilo de vida moderno, pela cul-tura de massas dominada por fetiches visuais e necessidadede reconhecimento, independentemente dos motivos e dosmodos de o ter.

Os novos crimes 4. Os crimes das estradas são a provacabal da inexistência de uma consciência institucional ecolectiva sobre a progressão de certos tipos de crimes basea-dos no desrespeito e na desobediência.

Na base da espantosa tragédia que impunemente se per-petua em Portugal, estão certamente factores físicos, como a

falta de qualidade das estradas e da sinalização, mas sobre-tudo factores humanos – os comportamentos assumidospelos condutores:

* incompetência de muitos condutores, independente-mente do seu estatuto sócio-económico, decorrente da suailiteracia funcional, que leva a que não compreendam ascondições da estrada, do tráfego ou da viatura;

* a incivilidade e o desrespeito dos condutores, atitudesmanifestadas em comportamentos de risco, decorrentes deuma cultura de transgressão-que-não-faz-mal, ilimitada ediariamente consentida por complacentes polícias;

* o uso (e não apenas o abuso) do álcool e de estupefa-cientes.

Estacionar em locais proibidos, fazer manobrasperigosas, exceder gravemente o limite de velocidade, sãotransgressões e comportamentos de risco que se popu-larizaram, aparentemente sem que os prevaricadores soframpor isso significativas acções repressivas ou sejam alvo dequaisquer medidas educativas. Estes comportamentos trans-gressivos sem consequências para os seus autores facilitam,em muitos casos, a adopção de outros comportamentos maisgraves, com outro tipo de vítimas: prejuízos materiais degrande vulto, muitos feridos e mortos. Mas também estescomportamentos são olhados como fatalidades e não comoproblemas a resolver de modo decidido.

Estão igualmente em causa os comportamentos dosresponsáveis pela fiscalização da segurança rodoviária e asreacções dos tribunais.

A fiscalização é diminuta e suave, frequentemente deslo-cada do essencial, não havendo investigação qualificadasobre as causas dos acidentes e sobre as responsabilidadesdos autores. O consumo de álcool não é por regra investiga-do, enquanto a avaliação do uso de estupefacientes na con-dução é excepcional e não exaustiva.

Pelo lado das reacções judiciais, nota-se uma estranhatimidez e receio de usar os dispositivos legais disponíveispara perseguir e condenar adequadamente os culpados,quando identificados. Os tribunais recorrem à mera multa, àsimples suspensão da pena de prisão ou, ocasionalmente, àprisão. Ora a verdade é que, em geral, nenhuma destassoluções se apresenta adequada. O recurso a penas queincluam dimensões reparadoras e preventivas e que já seencontram ao dispor dos juízes, no papel e no terreno,mostrar-se-ia seguramente mais eficiente na repressão doscrimes rodoviários, contribuindo assim para evitar o pro-longamento da tragédia.

Os comportamentos de risco ao volante – os criminaliza-dos – têm campo aberto porque não têm consequências paraos seus autores: é possível tirar a vida a alguém e seguir oseu trajecto, talvez com uma pequena multa por excesso develocidade.

Os novos crimes 5. Os crimes de violência doméstica, osde natureza sexual e outros que lhes estão associados sãocategorias de crimes que têm vindo a ganhar algumaexpressão estatística nos últimos tempos. É consensual que

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não se trata forçosamente nem de novos tipos de crimes nemdo agravamento da sua frequência ou gravidade. Tudo levaa crer que se trata de práticas ilícitas que antes eram con-sentidas, mas que, pela visibilidade que vão adquirindo emfunção da tomada de consciência colectiva sobre o seudesvalor e gravidade, têm sido cada vez mais percebidascomo crimes sérios a enfrentar sem hesitação. Nalgunscasos, esses crimes têm visto as molduras penais serem jus-tamente agravadas, o que corresponde a essa tomada deconsciência e à necessidade sentida de corrigir o desvio.

No Reino Unido, Escandinávia, Holanda, EUA ouCanadá, as problemáticas dos “sex offenders” e da violênciadoméstica são, há muito tempo, recorrentes e permanentesno trabalho dos serviços penitenciários e de reinserçãosocial, que desenvolvem programas especialmente dirigidosa este tipo de delinquentes, visando evitar a reincidência.Também Espanha adoptou recentemente esta orientação,depois de tomar consciência que existem milhares de crimesgraves deste tipo, que sequentemente ficavam sem resposta,e preparou uma resposta integrada que recorre a dispositivosde vigilância electrónica

O mesmo acontece com crimes especiais de naturezasexual, como os de pedofilia, que assumem dimensõesinsuspeitadas, como o caso Casa Pia veio a revelar.

Em Portugal tem havido esforços de associações pri-vadas de apoio às vítimas para a reparação e prevençãodestes crimes. Trata-se do reconhecimento pelas sociedadesda gravidade e massificação destas formas de criminalidadee da necessidade de as contrariar.

Este fenómeno de vulgarização dos crimes que incluemsexo não deve ser apenas analisado do ponto de vista dosautores e suas motivações imediatas. Com frequência, pordetrás, movem-se interesses que não meramente particularesou de pequenas redes, mas indústrias poderosas de prosti-tuição e exploração de mulheres e menores, a uma escalainternacional que movimenta muito dinheiro e que se funda-menta, em boa parte, na lógica de mercado da oferta e daprocura. Procura que é fomentada por determinada oferta,gerando assim, mais e mais, comportamentos que, de outromodo, não passariam, possivelmente, de sentimentos recal-cados e passivos.

A hipoteca das finalidades da pena. No que concerne àsfinalidades das penas (interminável discussão!) o quadroacima descrito leva a que a ideia da ressocialização dosdelinquentes, consagrada no Código Penal, seja posta emcausa por operadores judiciários, albergados em doutrinasmais duras e concentradas exclusivamente nas vítimas,eleitas objectos únicos de atenção. As mais nobres finali-dades das penas (que na verdade ainda não estão consoli-dadas na prática judiciária, como qualquer juiz confirma àboca pequena), nomeadamente a preocupação humanista daressocialização, ficam hipotecadas a certos equívocos que aprópria legislação proporciona. Punição sem intervençãopedagógica adequada às necessidades criminogéneas evi-denciadas pelo agente ou pedagogia sem repressão são

opções que, isoladamente, estão inexoravelmente destinadasao falhanço. É neste binómio que assenta a funcionalidadedas penas. Se destruído ou anulado um dos seus termos, oconjunto perde validade e, consequentemente, as finalidadesdas penas não são atingidas. Encontramos exemplos diáriosdeste panorama na execução das penas de prisão e das nãoprivativas de liberdade.

Algumas vozes costumam reagir mal à ideia de os técni-cos envolvidos no trabalho social da Justiça serem execu-tores de penas e, portanto, terem também um papel com umacomponente repressora. Estão enganadas: o papel dessestécnicos é eminentemente educacional e não se concebe umatarefa educativa sem transmissão de referências, de ajuda, deprémio, de repressão ou negação e de penalização. Quandouma criança gatinha e se aproxima do perigo de uma toma-da eléctrica, qualquer pai minimamente competente lhe negao acesso e a penaliza se ela volta a tentar. O que custa, então,transpor este princípio para o plano do desempenho profis-sional? Educar recorrendo só a um dos termos do referidobinómio resulta esquizofrenizante, com maus resultados noobjecto a educar, seja uma criança ou um delinquente.Educação incorpora sempre os dois termos, que a “proba-tion” clássica adoptou: ajuda-assistência-apoio e super--visão-controlo-vigilância, concretizadas num mesmo gesto.Na execução de uma pena, não se ajuda à terça-feira numamatéria e se controla ao sábado noutra. Tudo se fazintegradamente, o mesmo gesto tem os dois sentidos.

Se é indesejável, porque injusta e ineficaz, uma políticacontra o crime assente exclusivamente no factor repressivoe se, por outro lado, já foi demonstrado que é igualmenteimpossível lutar contra a criminalidade através do trabalhosocial, importa então equacionar o compromisso, heterócli-to, de casar os dois factores. Portugal, com um nível dedesenvolvimento médio e entalado entre o Norte e o Sul,entre duas culturas, bem poderia tirar partido do melhor deambas, operacionalizando soluções talvez heterodoxas, masque imprimissem ajuda efectiva e efectivo controlo aosdelinquentes que mostrassem condições de regresso àsociedade.

Os delinquentes juvenis estão bem, obrigado.Dificuldades semelhantes se têm vindo a sentir com a novaLei Tutelar Educativa, o diploma que regula as reacçõesjudiciais à criminalidade juvenil (em vigor desde Jan. 2001).Trata-se de uma lei exigente a que subjaz uma matriz com-portamentalista, que substitui a totalmente obsoleta eanacrónica lei de 1978, de cariz proteccionista. Mas aindaassim transporta problemas graves: quando, por regra, seinviabiliza a acumulação de medidas tutelares educativas doelenco disponível e se impossibilita a progressão dasreacções face ao incumprimento de uma delas, inviabiliza-setambém a tarefa educativa. Na verdade, uma medida deacompanhamento educativo (note-se “educativo”) com umacolaboração nula ou um desempenho muito decepcionantedo menor não poderá ser revogada e substituída por um(então) necessário período de internamento. Os sinais assim

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dados ao delinquente juvenil são de que o sistema não seinteressa por ele e/ou de que não tem capacidade para lidarcom ele. Ambos são prejudiciais ao menor e à sociedade.

Prevenir. Se não é apenas com trabalho social que secombate o crime, é apenas com trabalho social, numaacepção vasta, que se previne o crime (com a consciência deque o aparecimento de delinquentes e de actividades crimi-nais é uma inevitabilidade).

É consensual que, para recuperarem da sua depressão, aszonas territoriais de exclusão social e cultural deverão teravultados investimentos compensatórios. Então, por umaquestão de economia de meios e de justiça social, o cami-nho mais indicado é impedir o aparecimento de tais zonas,evitar a manutenção prolongada das que existem, diluindo-as no tecido urbano. O que nos remete de novo para aspolíticas gerais e da cidade.

5. A sociedade urbana

Portugal suburbano. Portugal é cada vez mais um país sub-urbanizado a uma escala irracional, assimetricamente de-sor-ganizado entre litoral e interior. O facto de a soma do edifi-cado com o previsto para construção no total dos PDMaprovados corresponder ao triplo da população existente e ofacto de, segundo o último censo, nalguns concelhos subur-banos a população residente ter decrescido enquanto subia onúmero de fogos mostram bem o estado absurdo a que sechegou. Todavia, devemos considerar algo já irreversível: aexistência de uma importante área metropolitana, a deLisboa, com cerca de 1/3 dos habitantes do país, e de outrospólos urbanos de grande ou média dimensão no litoral. Ouseja, a maioria da população portuguesa encontra-se urba-nizada, em geral de modo substantivamente medíocre.

Façamos uma viagem nos interiores da extensa área me-tropolitana de Lisboa, de Setúbal a Vila Franca de Xira, deTorres Vedras a Alcochete, não só olhando, mas observandoa paisagem. O resultado é uma deprimente náusea: todo oterritório é uma catástrofe construída de raiz, toda a pai-sagem é caótica, raros são os espaços que não estão sujeitosà desumanidade da fealdade das construções, à indignidadedo desordenamento espacial, da confusão de funções, daprecariedade, do inacabado e do improviso, da sujidade e dolixo e entulho, das intermináveis obras, da trapalhice deestradas e ruas desajeitadas e sem manutenção, das redes detransportes públicos desarticulados, das barracas e casasabarracadas, dos bairros sociais, da ausência de planos depormenor, da má qualidade dos materiais... Neste cenário, aidentidade é dada pela poluição visual e pela desarticulação.Dúvidas, exagero? Para os incrédulos ou distraídos, sugiroum tour em qualquer dia ou hora, em que o observador useos óculos do turista acidental, despindo-se da roupagem detranseunte habitual. A acrescer a este quadro, tudo aquiloque os olhos não vêem de imediato: por exemplo, sanea-mento básico insuficiente.

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O quadro urbano português só não é pior porque a den-sidade populacional não é, em regra, muito alta. Porém, per-versamente, esta até traz outro tipo de inconvenientes, comoa falta de continuidade urbanística, qual tecido incompletoque não foi cerzido, a que acresce a ausência de centros sig-nificativos nas novas urbanizações, relegadas para acondição secundária de inóspitos e desqualificados dor-mitórios.

Os programas governamentais Polis e Proqual, que sepropõem recuperar algo do lamaçal suburbano (repare-se nadramática conotação do prefixo), são o reconhecimentodesta desgraça nacional, parecendo não fazer mais, quandofazem, do que solucionar numa escala micro problemasmacro. Aparentemente, não têm a força regeneradoranecessária para se impor como referências para novasdinâmicas estruturantes para o futuro.

E não nos iludamos com a similitude discursiva: as mes-mas palavras na União Europeia ou em Portugal não corres-pondem a realidades semelhantes: tal como a sobrelotaçãode uma prisão inglesa não significa o mesmo que asobrelotação de uma prisão portuguesa, o nível dedegradação anunciado na Europa em nada se compara coma realidade portuguesa do ambiente urbano, que é entre nósimensamente mais dramático, o que é uma dolorosa evidên-cia ao comparar a pujança de Créteil (periferia de Paris) oua frescura de Colindale (arredores de Londres) com a tris-teza deprimente de Rio de Mouro ou com a mediocridadeacimentada de Setúbal. De resto, constrói-se melhor emBadajoz que no centro de Lisboa.

Falar da ganância dos construtores civis não é suficiente.Previamente, há uma ausência de sentido a dar às cidadespor parte dos poderes públicos, em especial das câmarasmunicipais, acantonadas no seu território e sem autoridadesmetropolitanas ordenadoras. Deparamo-nos com a ilusão dadispensabilidade do planeamento com a consequentedesqualificação da vida urbana atirada para um nível muitobaixo, evitável se se conseguisse reunir cinco aspectos fun-damentais.

Primeiro, a instituição de um verdadeiro órgão de coor-denação intermunicipal ou sub-regional. Segundo, poder eautoridade democráticos (duas coisas distintas), fortes, deci-didos e competentes. Terceiro, um plano para a cidade enunca o PDM autárquico (quem serve? quem o conhece?),mas uma ideia, uma concepção para o grande conjuntourbano e suas actividades produtivas e de lazer. Quarto, umordenamento legal que protegesse o ecossistema urbano e asua qualidade de vida como um bem jurídico. Quinto, aindependência económica e funcional das autarquias face àconstrução civil, cancro brutal que já matou em todo o ladoa vitalidade do poder local, originando, como é notório,novas formas de criminalidade.

A tudo isto soma-se a incongruência dos mercados dearrendamento para comércio e habitação, que nenhum go-verno teve a coragem de enfrentar. A paralisia destes merca-dos retira a possibilidade de se fazer alguma justiça relativa

e se normalizar a presença das autarquias e do Estado cen-tral, que se vêem forçados, porque poucos têm capacidadepara o fazer, a reabilitar às suas custas uma parte ínfima doparque edificado carenciado de obras.

A cidade física. A cidade é a tradução organizativa eestética do paradigma urbano ou, no caso português, subur-bano. Se não existir ordem nos espaços, e cuidado nos por-menores que distinguem uma cidade moderna de um meroconglomerado de casas e actividades, alguma coisa vai cor-rer mal. Em Portugal, está a correr mal.

Um dos factores mais preocupantes é a confusão deactividades e funções: encontramos uma confusa mistura deruralidade com oficinas, fábricas e sobretudo fabriquetas detodos os tipos, e uma habitação infame e desqualificada, semqualquer respeito pelo meio ambiente natural nem noção deconstrução de um ecossistema urbano qualificado. A identi-dade dessas zonas é indefinida, como o são as hierarquias devalores subjacentes, tornando disfuncional o organismo vivoque é a cidade. Por exemplo, o que é válido no mundo ruralnão o é no universo urbano. Para não falar nas dificuldadesde gestão do desordenamento do território quanto às infra--estruturas necessárias à vida colectiva (saneamento, teleco-municações, saúde), das respostas dos serviços, das polícias,dos bombeiros, dos correios, dos transportes e da instalaçãodo comércio indispensável à vida das comunidades. Todasas relações e todos os comportamentos humanos são condi-cionados pela falta de qualidade do comércio, dos serviços eda habitação.

Do ponto de vista simbólico, há importantes factos aconsiderar. A estruturação desconexa do tecido suburbanotem provocado a erosão e desertificação dos objectos-sím-bolos da dignidade das cidades, outrora estruturantes, comoo mobiliário urbano de todo o tipo, hoje convertido em fan-caria (“A importância dos candeeiros e das cabinas telefóni-cas”, Roger Scruton, Paradigma Urbano). No caso por-tuguês, o problema é mais dramático, porque quase todo otecido suburbanizado apresenta um muito baixo nível dequalificação, da organização espacial às construções, dosarruamentos e dos passeios aos espaços públicos, passandopelos equipamentos – quando existem. Note-se, dramatica-mente, que hoje há menos carências de equipamentos eserviços em alguns bairros sociais do que noutros ditos“integrados” ou consolidados.

Da desorganizada e feia paisagem suburbana, tendem adesaparecer ruas ou edifícios emblemáticos – teatros monu-mentais, igrejas, museus e outros –, para a paisagem setornar inexpressiva do ponto de vista estético, destituída deautoridade simbólica ou de referências. Quando vivi emsubúrbios, ao chamar a polícia, dizia o nome de um arrua-mento por ela desconhecido, “junto ao prédio da farmácia”– e o resultado era sempre desanimador. O significado cívi-co e a autoridade associável a milhares de objectos ou locaisreferenciais outrora perenes, mas hoje precários, contribuipara um sentimento de insegurança. Onde nos sentiremosmais seguros: num ambiente pleno de referências dadas pela

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solidez visual de marcos urbanos ou num local anódino eanónimo onde tudo é indistinguível?

A representação simbólica da cidade passa a ser feita poroutros objectos, perfis de ruas e de espaços que não inspiramautoridade nem dignidade. Está criado um pressuposto paraa insegurança. Subjectivamente, esta decorre da cidade físi-ca. O que é reforçado pela ausência de uma adequada ecuidadosa gestão da quotidianeidade, entre nós generaliza-da. Sinais explícitos ou implícitos de que a administraçãonão se interessa pelos administrados ou não tem capacidadepara manter a civilidade dos locais são os “graffiti”, a suji-dade, o abandono, zonas expectáveis e deprimidas, sinaliza-ção de má qualidade, degradada ou inexistente, desordena-mento, fealdade, passeios descuidados e pavimentaçãodegradada ou por terminar, avarias na iluminação pública eequipamentos danificados por reparar, ruas inacabadas – oque deixa campo livre à emergência de comportamentosdesadequados e criminais. Da desordem do espaço decorre adesordem dos comportamentos, estacionamento abusivo,“incivilidades”, crimes rodoviários e outros, a que acrescepoliciamento negligente e meramente reactivo. Negar estasevidências só será possível para quem desconheça a reali-dade ou tenha padrões ainda não devidamente urbanizados.

Exclusão social exclusão da responsabilidade sociedade criminógenea?

Sendo difícil explicar o crime, talvez seja nas cidadesque se torna um pouco mais claro que o fenómeno resulta dainfeliz conjugação de múltiplos factores, de natureza sociale individual. A formidável suburbanização da área metro-politana de Lisboa continua a produzir zonas encerradas emsi mesmas, guetos, sem perspectivas nem referênciassaudáveis e positivas, partilhadas pela generalidade dasociedade. Enquanto encontramos uns com demarcaçõesbem visíveis (clandestinos, barracas ou casas abarracadas),outros enfermam de “apartheid” cultural e de modos de vida,quais invisíveis muros, bairros antigos desvitalizados, bair-ros sociais estigmatizados ou subúrbios de implantaçãorecente, por vezes já deprimidos e em acelerada degradaçãoambiental e relacional. Tanto uns como os outrosenclausuram os seus habitantes em privações materiais e deperspectivas de futuro, em valores e em responsabilidade.São demasiados os bairros nestas condições, onde habitammuitos milhares de pessoas! A notícia (“Público”,30/Jan/2002, pág. 50) de que, num bairro da Amadora, per-sistem há anos as amas clandestinas, perante a indiferençados responsáveis, é um microscópico exemplo revelador dodesinvestimento na qualificação dos espaços e das pessoas.Quem se surpreenderá com os resultados? Quem semeiaventos não semeia tempestades?

Nestes lugares, a exclusão social é mais do que um riscopermanente, é uma quasecerteza que decorre da incapaci-dade das autoridades e das comunidades de assegurar osmecanismos necessários a um estilo e padrões de vida comvalores positivos, perspectivas e ordem. Disto depaupera-dos, muitos dos habitantes dessas comunidades ficam igual-

mente desprovidos de responsabilidade pessoal e colectiva,aderindo a modos de vida delituosos.

A exclusão social, em qualquer das suas variantes, acar-reta sempre a exclusão da integridade humana e da respon-sabilidade, talvez o mais grave e primário caminho de facil-itação para uma carreira criminal. Nestes contextos, a for-mação e o desenvolvimento das personalidades de muitosjovens faz-se em condições de grande fragilidade, que nãoajudam às identificações morais e comportamentaisnecessárias à integração social. Seremos então umasociedade criminogénea, em que as condições sociais deexistência de muitos dos seus cidadãos e comunidades nãosão adequadamente integradoras?

Eis, portanto, as circunstâncias para o crime campear emcertas zonas: valores referenciais perdidos ou não adquiri-dos no plano pessoal e degradação da estrutura física orde-nadora. Não nos devemos surpreender com estes resultados,mas apenas indignar-nos pelo que lhe está na origem, e acti-vamente reclamar a sua alteração.

Seria, porém, um erro considerar que a sociedade cri-minogénea se resume às consequências da exclusão social.Tal não explicaria toda a criminalidade. A instauração deuma sociedade pautada por valores (alguns conservadoreseuropeus falam em “degenerescência civilizacional”) deexacerbado hedonismo, de violência como modo de re-solução da conflitualidade, do lucro, da necessidade desobrevivência através da afirmação pela posse, e onde osmecanismos tecnológicos massificados permitem o que ou-trora nem sequer se fantasiava resulta igualmente num estí-mulo permanente orientado para ter mais e ser mais. Termais bens, ser mais poderoso, dentro do universo a que sepertence, tentando alcançar o patamar seguinte ou, se pos-sível, galgando vários de uma vez.

Os crimes económicos (cuja gama é muito ampla), certotipo de tráfico de estupefacientes e contrabando e a maiorparte dos crimes informáticos inserem-se nesta lógica delucro e de ascensão social por modos ilícitos.

Combater o crime na cidade. O americano MyronMagnet escreve, no prefácio do contestado e já citadoParadigma Urbano – as cidades do novo milénio, que (nosEUA) aos governos pouco mais resta na sua gestão do quegarantir a segurança aos cidadãos. Numa perspectiva maiseuropeia, não seria difícil traduzir estas competências porpolíticas sociais que, da economia à Educação, passandopela Justiça, esta como pilar do Estado, pelo menos tal comoo concebemos e conhecemos, garantam oportunidades eresponsabilidades, favorecendo uma economia mais forte,uma Educação mais qualificada e credenciadora e umaJustiça mais eficaz. Como garantir essa segurança, comocombater a criminalidade urbana? O livro propõe um ali-ciante programa, quanto mais não seja para descomplexadadiscussão. Claramente posicionados politicamente, muitosdos textos que o compõem não me merecem concordância ealguns chegam a ser repulsivos. Mas outros são inspiradorespela consistência do argumentário e pelos resultados que

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dizem ter obtido na aplicação das suas teses. A discussão sobre o “vidro partido” (Fixing Broken

Windows: Restoring Order and Reducing Crime in OurCommunities, George Kelling and Catherine Coles,Touchstone, 1998) tornou-se um novo paradigma de acção eum poderoso símbolo: se um vidro partido algures não forsubstituído, logo existirão outros e o ambiente degradar-se--á, o que será entendido como uma demissão dos poderespúblicos, favorecendo comportamentos desadequados e ocometimento de crimes, progressivamente mais graves.

Qualquer cidadão partilha este sentimento de adesão àdegradação: não é difícil deitar lixo para o chão se este jáestiver sujo. E tal como lixo arrasta mais lixo, violênciaprovoca mais violência e crime atrai mais crime. Portanto, énecessário que as autoridades estejam atentas, reagindosempre “repondo o vidro”, seja ele matéria da gestão dacidade, seja da ordem ou da justiça, envolvendo serviços depolícia, da administração, de execução das penas e de tri-bunais. Combater o crime na cidade é, portanto, um progra-ma de profunda articulação/entrosamento entre entidades,com a participação dos cidadãos.

Os psicanalistas têm mostrado como as personalidadesmais frágeis podem ser afectadas pela desestruturação doespaço envolvente, bem como a dificuldade da reconstruçãopessoal em ambientes desestruturados. Uma cela prisionalou um quarto de um menor num centro educativo que seapresente em mau estado e desarrumado não favorece aorganização do eu; mas, pelo contrário, quando as condiçõesexternas melhoram, torna-se mais viável a recuperação doseu ocupante. Do mesmo modo se podem pensar os ambi-entes urbanos. Um ecossistema devidamente planeado eadequadamente mantido, usufruído pelas populações nassuas actividades quotidianas, é inibidor de muitos compor-tamentos criminais.

Combater o crime nas cidades começa por evitar-se con-cepções de cidade excessivamente estratificada e por adop-tar-se uma liderança forte para uma gestão adequada, com aconsciência de que não haverá gestão ou policiamento quesejam, só por si, contentores. O essencial é uma sociedadeonde a exclusão social não tenha lugar e onde coexistam osvalores da cidadania, do respeito, da ordem e da plurali-dade.

6. A Produção legislativa

O intervalo entre a realidade e os pensadores. Atrevo-me adizer que uma das questões mais pertinentes na luta contra ocrime é a da produção legislativa. Muitos não hesitam em aclassificar publicamente de “deplorável” (ManuelVillaverde Cabral, “A Injustiça em Portugal”, no já citadoJustiça em Crise?…). À boca pequena, porém, muitosresponsáveis e aplicadores/executores da lei usam termosmais expressivos e menos publicáveis. O meu balanço, apósmais de 20 anos de serviço na execução de penas, é hoje

mais sintónico do que eu gostaria com o que desde sempreouvi da generalidade dos magistrados: o processo de pro-dução legislativa, pautado por nobres ideais progressistas, élevado a cabo com ausência de pragmatismo e excesso dedoutrina, com um notável exagero de formalismo e degarantias processuais, com dificuldades de fazer interagir oplano dos princípios com a realidade e os agentes no terreno– as polícias, as magistraturas, os agentes de execução daspenas, os advogados, etc. O intervalo entre os doutri-nadores-legisladores e a realidade vivida, indispensável auma salutar criatividade, é, por norma, excessivo e descre-dibiliza os ideais enformadores das leis. Também os com-promissos na elaboração das leis são motivos de distorçãodas ideias iniciais: enquanto que na Lei Tutelar Educativa senotam disfuncionalidades cuja origem poderá estar no difí-cil casamento entre proteccionismo e a tendência respon-sabilizadora, no âmbito penal, um caso notório foi o lamen-tável episódio de 2001-2002 da (in)definição da taxa dealcoolémia na condução, em clara cedência a algo que nuncadeveria ser protegido (o direito a conduzir sob o efeito deálcool).

Jurisdição penal. A complexidade parece ser um “must”da produção legislativa. Lei que não seja complexa pareceminorar os seus autores. Por isso se encontram todos osdias incongruências entre leis, quando não no própriodiploma. O efectivo excesso de garantias processuais exis-tente no processo penal permanece imune, na prática, econtinua a ser usado grosseiramente para travar a acçãopunitiva do Estado, através de manobras, todas elas previs-tas na lei.

E que dizer da complicação do processo penal português,cujo diagrama é mais complexo que os diagramas das redesde metro de Londres ou Paris? Ou a complicação dadefinição de competências territoriais e funcionais em casosde especial complexidade? Ou da proliferação de diplomas?

Por outro lado, as revisões da legislação penal, tidas porprogressistas, não foram tão longe quanto necessário.Assinale-se que a pena de prisão continua a ser o paradigmada pena, à qual as outras se submetem. As outras penas sãoalternativas à prisão ou não detentivas, quer dizer que a suaexistência não têm autonomia própria, referenciam-se sem-pre à prisão. Teria sido libertador que a pena de trabalhocomunitário se afirmasse por si mesma, e que fosse a prisãoa alternativa ao seu eventual insucesso. Como teria sidojusto que não fosse necessário passar por vários estádios atése chegar (diz a jurisprudência dominante) ao trabalhocomunitário, ou ainda que se prescindisse do bizarro con-ceito do consentimento para a aplicação de uma pena –questão já resolvida sem crises filosóficas ou queixas dopúblico por países reconhecidamente bárbaros e atrasadosem matéria penal como os da Escandinávia ou o ReinoUnido.

Subindo a escala das molduras penais, encontramos umadificuldade muito menos sentida nos países de tradiçãosaxónica: a inflexibilidade das reacções penais. Entre nós,

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não é possível combinar sanções, dotando uma decisão judi-cial das componentes ressocializadoras adequadas ao casoconcreto. O delinquente é condenado a isto ou àquilo, epronto. Poderia o legislador português ter recorrido, querdizer, ter-se inspirado no sistema inglês das “combinationorders”. Estas permitem ao tribunal, perante as necessi-dades, previamente identificadas, de ressocialização apre-sentadas pelo condenado, fazer uma combinação de elemen-tos punitivos. Assim, o tribunal pode escolher a junção detrabalho comunitário de 300 horas com a frequência de umprograma sob supervisão intensiva, ou com a limitação daliberdade em locais adequados para o efeito (residênciasgeridas pelos serviços de “probation”). O julgador não ficalimitado ao pronto-a-vestir dos códigos, pode ele mesmoconstruir a melhor solução para cada caso.

Para quem imagina que os tribunais são entidades real-mente com poder efectivo, recomenda-se o estudo dosTribunais de Execução das Penas (os que, entre outrasmatérias, controlam a concessão e execução da liberdadecondicional), que estão esvaziados de competências paraagir adequadamente, mesmo quando se verificam reiteradosincumprimentos dos pressupostos da concessão da liberdadecondicional. Na verdade, esta é praticamente intocável, sósendo revogada excepcionalmente, o que lhe diminui ocarácter pedagógico de medida de flexibilização da pena deprisão e de transição vigiada da reclusão para a liberdadeplena. O mesmo se poderá dizer dos tribunais da conde-

nação: estes, depois de devidamente informados, hesitam narevogação da Suspensão da Execução da Pena de Prisão,mesmo que os deveres ou regras de conduta estejam a serobviamente incumpridos.

Ainda nesta matéria, subsistem as reservas em accionarmeios de prova relativos à verificação efectiva do não con-sumo de estupefacientes – eis outro exemplo de desade-quação na execução de penas probatórias que incluam obri-gação de tratamento à toxicodependência. Para quemdesconhece, assinale-se que, no julgamento, o condenadoaceitou livremente o tratamento médico.

Por último, não se pode deixar de fazer uma referência àintricada questão das competências do Ministério Público emsede de investigação criminal. Todas as posições em presençatêm virtudes e defeitos, mas é insustentável continuar a assis-tir a uma luta surda e sem fim à vista sobre a condução doinquérito judicial e as suas implicações na investigação poli-cial; ou seja, à discussão sobre a autonomia das polícias (emespecial na PJ) na investigação criminal e a sua tutela peloMinistério Público nesta matéria, tendo como pano de fundoa manifesta falta de meios, de competência, de vontade e deimaginação dos seus magistrados, para efectivamente realizaresta sua missão estatutária. Independentemente das posiçõesinstitucionais (de teor politico) ou sindicais (de estafadogénero corporativo) que se conhecem, é urgente que hajadefinitivo esclarecimento sobre a matéria e disciplina nashierarquias policiais e do Ministério Público.

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Jurisdição tutelar educativa. Com a Lei TutelarEducativa o problema é diferente, mas tem resultados idên-ticos ao fornecer sinais paradoxais aos menores. Por umlado, é montado um processo de grande formalismo, mas,por outro, surgem inesperados problemas na fase de inquéri-to e na aplicação e execução das medidas.

Um dos grandes constrangimentos está grandiosamenteconsagrado no bloqueio que os artº 52º e 53º fazem à acçãopolicial e ao exercício da justiça pelos tribunais. Nos seustermos, ao cometer factos qualificados como crime particu-lar ou semi-público pela lei penal, o menor só sentirá aacção da Justiça se o queixoso/vítima quiser prosseguir como processo (à semelhança da lei penal), o que manifesta-mente não sucede com frequência (agravando a tendência dalei penal). Ora esta benevolência, que se traduz filosofica-mente em não querer sujeitar os menores àquilo a que ospenalmente imputáveis também não se sujeitam, não é com-patível com o que se conhece dos padrões de funcionamen-to da criminalidade juvenil (p. ex., Delinquências Juvenis,Jorge Negreiros, Editorial Notícias, 2001). Ninguém seadmirará de que os pequenos delinquentes se sintam favore-cidos na sua actividade criminosa e se sintam à vontade paraprogredir na sua escalada. Se, nas primeiras experiências,não sentiram reacções de contenção por parte do sistema,que, ainda por cima, lhes deu sinais de inexplicável tolerân-cia (ou desinteresse?), criando uma percepção deimpunidade e, portanto, de incentivo ao comportamentodelituoso, porque não continuar? A unanimidade em tornodesta posição só será quebrada por algum observadordesatento.

A tendência que a lei consagra para o sistemáticoarquivamento precoce do processo judicial poderá fun-cionar do mesmo modo. O que deveria ser excepção quan-do, manifestamente, se tratasse de uma ocorrência isoladasem prejuízo significativo para terceiros e sem necessi-dades de educação para o direito, torna-se frequente.Também a não acumulação de medidas tutelares educativaspara os delinquentes juvenis parece ser excessivamentecondicionadora (artº 19º, nº1). Mas o constrangimento maissignificativo é a impossibilidade de usar o internamentocomo recurso face ao incumprimento de qualquer outramedida, o que reforça o sentimento de impunidade pelomenor e de frustração para os operadores judiciários e, aprazo, para o público.

Não se preconizam internamentos generalizados, mas,sim, o recurso pedagógico quando outras medidas falham(ver entrevista do juiz espanhol Emílio Calatayud,“Expresso”, 05/Jan/2002). Na verdade, talvez como reacçãoao escabroso estado dos tribunais de menores na década de90, o dispositivo está preparado para funcionar preventiva-mente mais como defesa imediata do sistema do que comoprevenção mediata e pedagógica ao cometimento de maiscrimes. Na verdade, no cumprimento da lei não é fácil tercondições para que um menor reconheça força às polícias epoderes aos tribunais.

7. A presença policial

Os modelos de polícia são um resultado político, isto é, apresença policial é aquilo que o poder político entende deverser. Mesmo após uma (demasiado tímida) desmilitarizaçãoparcial das polícias de segurança pública nos anos 90, omodelo vigente em Portugal parece ser híbrido, o que talvezconfirme as dificuldades e as hesitações das políticas. Ouseja, a PSP passou a ter uma Direcção Nacional, e não umComando Geral de tipo militar, mas manteve no topo osmesmos oficiais de origem castrense, formalmente recicla-dos em intendentes, enquanto a GNR viu inalterado até hojeo seu estatuto militarizado. Esta ambiguidade favorece acoexistência de traços de vários modelos (Modelos dePoliciamento, Paulo Valente Gomes, Infância e Juventude,IRS, 2001): um de matriz napoleónica centralizada (natradição portuguesa, à semelhança da administração pública,das universidades e até de muitas empresas), autoritária ereactiva; um outro, onde emergem experiências de policia-mento preventivo, de proximidade e de iniciativa.Paralelamente, mas com polémica em muitos sectores, PSPe GNR ganharam o óbvio, a investigação criminal da peque-na criminalidade, enquanto que à PJ fica reservada a inves-tigação relativa aos crimes mais graves. Neste quadro,porém, não deixa de ser preocupante a evidenteimpreparação tecnológica e humana da PSP e da GNR noterreno, mau grado o esforço individual de muitos.

A eficácia das polícias tem sido posta em causa nas últi-mas décadas devido às transformações operadas nas cidadese nos contextos económicos e culturais. Enquanto é possí-vel reconhecer importantes melhorias nas polícias, ocidadão comum encontra também lentidão de procedimen-tos, burocracia, desorganização de recursos, atraso tec-nológico e incapacidade cultural. Mesmo tratando-se de umdesempenho eminentemente reactivo, estas característicasmantêm-se. Demoras no atendimento do 112, 20 minutospara chegar a uma ocorrência num domingo de manhã nocentro de Lisboa, investigação criminal insuficiente e incon-sequente ou ausência dos locais mais perigosos de Lisboa,revelados pelo estudo de vitimização elaborado pelaUniversidade Católica Portuguesa (2001), fechar as portasdo posto às 22h (?!), centrais telefónicas que não comuni-cam com esquadras, um comando metropolitano da PSP deLisboa que apenas abrange uma pequena parte da metrópole,presença da GNR nos territórios naturais da PSP e vice--versa, com as consequentes descontinuidades territoriais eefectiva desarticulação operacional entre as várias polícias,são sinais e factos insustentáveis. A leitura de “Esta (não) éa Minha Polícia”, de Alberto Costa (Editorial Notícias,2002) ajuda a perceber as resistências dos próprios apare-lhos policiais à mudança, bem como o desinvestimento e adificuldade de gestão estratégica que nortearam as políticasno sector durante anos e anos e que se reflectem nas carên-cias de meios operacionais e na impreparação dos quadros eagentes.

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As necessidades de segurança nas cidades são imensas.Não se pode pedir à PSP e à GNR que deixem de ser reacti-vas, mas devemos exigir-lhes capacidade de prevenção e ini-ciativa, centrando-se nos problemas quotidianos da pro-tecção das pessoas e bens, bem como nas causas concretasque fundamentam os sentimentos de insegurança, detendosistematicamente os criminosos, cruzando informações etrabalhando dados estatísticos. Só assim será possíveldesmontar redes formais ou informais, sossegando as popu-lações mais ou menos inquietas.

Uma polícia com carácter fortemente preventivo devedotar-se de uma cultura mais sofisticada em organização eprodutividade internas, compreendendo as formas de crimi-nalidade e não incorrendo em compromissos para manter aordem e tranquilidades públicas, mesmo que só esteja emcausa uma “incivilidade”. Seguramente que, com ela, outrase outras virão, até ao domínio do espaço pelos criminosos.Para enfrentar esta tendência, a polícia deveria adoptar a“broken windows policing”, ou seja, um policiamento quesistematicamente não ignora a chamada pequena criminali-dade e dirige esforços importantes contra ela, de modo agarantir cidades com qualidade de vida. A experiência estácomprovada nos EUA, onde os estudos mostram que não ésó a economia florescente e a diminuição do uso de drogasque faz decrescer o crime, mas também a persistência eassertividade policial contra certa criminalidade habitual-mente desvalorizada. Visitando Nova Iorque, é possível

perceber o que dizem os roteiros quando referem policia-mento 24h/dia: a toda a hora encontramos polícia nas ruas,numa atitude não agressiva. O cidadão respira confiança e,portanto, segurança.

A resposta da polícia não deverá ser uniforme, mas sem-pre proporcional à gravidade do crime, suas circunstâncias efrequência. O que a distingue substantivamente das reacçõestradicionais é que se procura que à transgressão seja sempreoferecida uma resposta do sistema, de modo a que não seinstale um sentimento de indiferença e impunidade. A inves-tigação criminal que decorre destes casos, conhecidos que sãoos laços instrumentais da pequena à grande criminalidade, ésempre benéfica se bem aproveitada. A detenção de uns levaa outros e o desmantelamento das redes torna-se realidade.

Mas para que tal possa acontecer são necessários trêsimportantes investimentos:

* desde logo, a transformação das polícias em organiza-ções modernas, flexíveis e não burocratizadas; tal implicanecessariamente a finalização de processo civilista da PSP etransformação da GNR numa verdadeira polícia civil, já queo quadro conceptual militar não se adequa às necessidadesde investigação, aos equipamentos e à flexibilidade no ter-reno;

* um segundo de natureza tecnológica, colocando ao dis-por das organizações policiais sofisticados dispositivos deinteligência, logística, telecomunicações e tratamentoestatístico de dados;

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* e, terceiro, motivação que garanta a mobilização deesforços para um objectivo comum: combater o crime, pre-venindo e, simultaneamente, detendo o maior número pos-sível de delinquentes, e desmantelar redes criminosas – afi-nal a missão das polícias.

Quanto à PJ, a única palavra é investir na modernizaçãodos quadros e meios, diversificando e injectando intensiva-mente tecnologia e motivação.

8. Cultura judiciária

Eis outro tema infinito e que é cruzado por inúmeros fac-tores, desde a já referida produção das leis até à formação emotivação dos magistrados (a começar, porque o queremser), passando por condições físicas de funcionamento, entremuitas outras. Centremo-nos em apenas algumas questões.

Serviço. A noção de “serviço” está arredada de muitostribunais – independentemente do que digam as autoridadesou os sindicatos corporativos. O público experimenta-odiariamente, nas esperas e no modo como é tratado. A anti-ga ética de fazer a justiça em nome do povo e as noçõestradicionais de serviço na administração necessitam desegundo fôlego e de profunda reflexão sobre o modo comopodem ser reinventadas na acção da Justiça.

Havendo serviço não haveria narcísicas decisões emprocessos de simples furtos, com 20 ou mais páginas dehieróglifos, com citações em francês e referências àjurisprudência da escola alemã, retiradas de manuais emespanhol.

A organização. A organização não é o ponto forte dosportugueses. É mesmo conhecido um cartaz da UE que, aocaracterizar os vários povos, nos apresenta como “os desor-ganizados”. Os tribunais não fogem à regra, com admi-nistrador ou sem ele. Não é só o desrespeito, mas também adesorganização, que explica esperas de seis horas por teste-munhas, certamente indisponíveis para voltar a colaborarcom a Justiça. As secretarias judiciais ou alguém por elas jádeveriam ter uma organização que evitasse a sabotagem daLei Tutelar Educativa em aspectos tão fulcrais na luta con-tra a criminalidade juvenil como a junção de vários proces-sos relativos a vários factos praticados pelo mesmo menor,dando assim aos magistrados uma visão mais realista do seucomportamento criminal, em vez de apreciar apenas umcaso de cada vez.

Um outro exemplo de desorganização são as vetustasférias judiciais – esses períodos de privilégio em que o paísjudicial pára fazendo de conta que não pára –, que deviamser reduzidas ou eliminadas e instituída uma cultura de pro-dutividade (já Boaventura Sousa Santos escreveu sobre oassunto na revista Visão). Contudo, todas as corporaçõesjudiciárias as vieram defender, em nome de absurdos como“nas férias trabalha-se mais” e indizíveis disparates seme-lhantes. Na verdade, o que está em causa é basicamente aparalisia dos tribunais, cujas rotinas indispensáveis ao fun-

cionamento da Justiça ficam hipotecadas várias vezes aoano.

Qualificação das magistraturas. Falar do nível médio dosmagistrados é sempre um problema. A aritmética aqui nãoajuda. Encontram-se excelentes profissionais nos tribunais,como se encontram outros que nunca deveriam lá estar. Maso problema começa por ser genético: como se chega a ma-gistrado, que formação existe; mais tarde, inexiste avaliaçãoe responsabilização individual, e não é assegurada a espe-cialização nem garantida a actualização de conhecimentosjurídicos e outros respeitantes à profissão. Assim se impedea cristalização mental que generalizadamente se encontranos tribunais, mesmo nas novas gerações.

Simultaneamente, talvez por perverso paradoxo, detecta--se desde há algum tempo que alguns sectores das magis-traturas parecem ceder à tentação de serem tomados porcomportamentos menos convencionais, abandonando asregras de sobriedade e de referência institucional que devemser apanágio das magistraturas. A prazo, tal não ajudará àseriedade exigida à Justiça.

Neste âmbito, não é demais insistir na necessidade deevoluir das actuais para apreciações mais substantivas decarácter avaliativo e responsabilizador.

Segunda hipótese ou responsabilidade e rigor? O con-fronto dos criminosos com a lei não é tão frequente quantoseria desejável. Por isso, os contactos devem ser significa-tivos. As potencialidades da legislação devem seraproveitadas para reprimir e educar os criminosos e não paralhes “dar uma segunda hipótese”. A política das segundas,quintas e sétimas hipóteses, traduzidas em multas sucessivasque as famílias penosamente pagam e que os infractores nãosentem como penalizações à sua conduta ilícita, seguidas depenas de prisão suspensas por um ano, percebidas aindacomo verdadeiras isenções da pena pela generalidade dosagentes criminais, já produziu efeitos conhecidos edesagradáveis para o público e também para os julgadores.

A cultura de responsabilidade e rigor nos tribunais, cer-tamente entre muitos outros factores de ordem ideológica,técnica e de organização, implica criar jurisprudência deressocialização à primeira tentativa, quando ainda se afigu-ra possível a recuperação do delinquente. Outras seseguirão, se necessário, sempre sem abdicar dos princípioshumanistas que definem os nossos códigos penal e deprocesso penal. Nada na lei obriga os tribunais a adoptaremreacções frouxas, segundo princípios falsamente gradualis-tas, que mais não são que álibis de desresponsabilizaçãocolectiva.

Não haverá responsabilidade e rigor enquanto se inter-pretar de modo ingénuo e comodista a realidade tendo comoprincípio geral evitar novos processos, fazê-los abortar omais rapidamente possível (sem investigação decente) ouencerrando casos para a estatística; tão-pouco enquanto seignorar as hipóteses ressocializadoras e preventivas que asleis penais e tutelar educativa contêm; ou ainda enquanto sedesaproveitam recursos. Exemplos? Eis alguns imediatos:

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COMO ESTAMOS A FORMAR CRIMINOSOS

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* a incompreensão generalizada das categorias progres-sivas de reacção no âmbito da suspensão da pena de prisão(artº 51º e seguintes do Código Penal), também aplicáveis naliberdade condicional, levando a que delinquentes com fra-cas necessidades de ressocialização sejam sujeitos a regimesde supervisão mais intensivos do que os aplicados a outrosque, cometendo crimes mais graves e com maiores necessi-dades de ajuda e controlo, estão sujeitos a graus de acom-panhamento muito inferiores ou mesmo nulos;

* desprezo pelo trabalho comunitário como pena, pordiscordância pessoal da solução, embora se apliquem mi-lhares de multas cuja finalidade ressocializadora está porcompreender (e não é por orientação economicista!);

* a ostensiva ignorância da vigilância electrónica comométodo eficaz de controlo associado à medida de coacção(que antecede o julgamento) de obrigação de permanênciana habitação, a que se pode sujeitar o arguido como alterna-tiva à prisão preventiva – chega-se a afirmar pública,impúdica e impunemente que qualquer um se exime a essecontrolo;

* no âmbito da Lei Tutelar Educativa, a inexistência depresença activa de advogados;

* ainda neste âmbito, o simulacro de investigação crimi-nal representado pela audição do menor e das testemunhasou familiares, não recorrendo às polícias, tornando a leiinconsequente e criando potenciais problemas em termos deliberdades e garantias;

* ou ainda o manifesto desinteresse por programas decontenção criminal destinados a problemáticas específicas.

Neste campo, um outro resultado indirecto é a perda deoportunidade de obter informação e de a cruzar com outrosdados e, consequentemente, oportunidades de proceder anovas acusações ou de instaurar novos processos. Mas, paraisso, o Ministério Público teria que assumir a sua respon-sabilidade legal de conduzir, efectivamente, a investigaçãocriminal, quer na Lei Tutelar Educativa quer na jurisdiçãopenal. Conversa complicada, que se prende com o estatu-to, missão e meios do Ministério Público (uma outra con-versa).

Jan.-Fev. 2002, revisto em Maio 2005 para publicação na revista VIRAGEM

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COMO ESTAMOS A FORMAR CRIMINOSOS

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Aleitura do texto de Nuno Caiado trouxe-me àmemória uma pequena obra de Carlo M.Cipolla, publicada em Portugal no ano de1993 pela Celta Editora, intitulada “AllegroMa Non Troppo”. Nessa obra o autor desen-volve um pequeno estudo sobre as leis fun-

damentais da estupidez humana, formulando, entre outras, aconclusão seguinte: “A probabilidade de uma certa pessoa serestúpida é independente de qualquer outra característicadessa mesma pessoa” (pág. 52). Com isto quer significar,basicamente, que há estúpidos entre os ricos na mesma per-centagem que entre os remediados e os pobres, entre os cul-tos em igual dose que nos ignaros, e por aí adiante. Dizmesmo, a dado passo, que “uma fracção de laureados com oPrémio Nobel é constituída por estúpidos” (pág. 54). Omesmo se passa com os criminosos. O texto em análise nãodeixa dúvidas a esse respeito. Não se pode identificar umaorigem que explique a existência de crimes e, sobretudo, ados seus autores.

Os mais diversos tipos de pessoas, das mais diversasidades, condições económicas e estratos sociais cometecrimes. E cada vez há mais crimes. Àqueles que são os tradi-cionais, e que se ancoram no simples pensamento humanosem necessidade de cultura jurídica, vulgo os crimes contra avida, a integridade física, os bens patrimoniais e por aí fora,juntaram-se outros mais sofisticados, perpetrados contra omeio ambiente, as empresas, as regras do mercado, num

painel crescente de tipos de ilícitos que fazem com que asnormas penais sejam, actualmente, de banda larga. Largademais, como se começa a perceber.

O crime deixou de ser a consagração jurídica de umaconduta intuitivamente rejeitada por todos, para se transfor-mar num produto de elaboração jurídica, mais complicada,mais inacessível, mais discutível – e, por tudo isso, menosclara. Toda a gente percebe que matar é crime. Já se podediscutir se a emissão de um cheque sem provisão é umcrime, também. A noção de “ilícito criminal” afastou-se dasua origem ontológica e, por isso, consensual, para se aven-turar em construções sofisticadas, que visam acompanhar aprópria sofisticação da sociedade, exigindo dos órgãos deinvestigação criminal e dos tribunais uma crescente espe-cialização e uma sôfrega, embora justificada, necessidade demeios.

Uma coisa, porém, é certa: o crime continua a ser umacoisa má e, como coisa má que é, precisa de ser prevenido ecombatido. E o primeiro combate faz-se na prevenção.Refiro-me, em concreto, à prevenção feita à base do policia-mento, da presença assídua e eficiente das polícias na rua.Esta prevenção, ainda que destinada sobretudo aos crimesmais visíveis, é essencial, pela importância que esta catego-ria de delitos tem. Sem segurança nas ruas, não há liberdade,nem há exercício de cidadania. Não podemos ter medo de oafirmar, nem de o exigir junto de quem nos governa. Digoisto por sentir que há uma corrente, que se designaria agora

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LUTA CONTRA O CRIME

O crime continua a ser uma coisa má e, como coisa má que é, precisa de ser

prevenido e combatido. E o primeiro combate faz-se na prevenção. Refiro-me,

em concreto, à prevenção feita à base do policiamento, da presença assídua

e eficiente das polícias na rua. Há uma batalha dura que temos de vencer,

que é a batalha da Educação e da responsabilização individual de nós próprios

e dos nossos filhos. Porque todos nós somos agentes sociais activos e a sociedade é,

acreditem, aquilo que fizermos dela. Aqui ninguém está antecipadamente absolvido.

O Padre Américo equivocou-se?»» Rogério Alves »» bastonário da Ordem dos Advogados

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por “politicamente correcta”, que manifesta uma estranhaalergia à constatação da realidade, recusando-se a admitir oequívoco do Padre Américo. Por boas ou más razões, comculpa ou sem ela, o que não falta são rapazes maus. E essestêm de ser objecto da necessária punição, adequada à suaculpa, como decorre do nosso Código Penal.

Não podemos considerar Portugal um país particular-mente perigoso, apesar das habituais fintas das estatísticas deque o texto de Nuno Caiado dá testemunho. Mas, sem embar-go dessa feliz constatação, é imperativo de cidadania impediro progresso e o florescimento de fenómenos de criminalidadedispersa e organizada, que, gradualmente, vêm dando sinaisde vida. A Constituição da República Portuguesa estabeleceum direito universal à segurança (artº 27º/1), num preceitoque não pode ser letra morta. As discussões sobre a origemdos factores de insegurança, não podem inibir a repressãodestes fenómenos, no quadro da política criminal definidapelos órgãos de soberania, imposta, aqui sim em letra quasemorta, pelo art. 219º/1 da Constituição.

Por vezes, enleamo-nos aqui, como em muitas outrascoisas, numa dialéctica entorpecente, entre os que reclamampor reformas de fundo que extingam os reais (ou virtuais)alicerces da criminalidade, que se analisariam num combateà exclusão social, à pobreza, ao racismo e às demais formasde marginalidade, e os que reclamam por mais policiamento,melhor vigilância e maior propensão à repressão de quempratica os crimes. Pois bem, ambas as intervenções sãoessenciais. Há que erradicar todos os viveiros onde medra acriminalidade, mas, em simultâneo, garantir a segurança daspessoas e dos seus bens. Onde há antítese, tem de passar ahaver síntese, concretizada num programa global de gover-nação, sem peias e sem complexos, do qual a dita políticacriminal faz parte.

Depois, temos o nosso sistema judicial. A par de um le-gislador lesto, capaz de acrescentar crimes ao catálogo auma velocidade imprudente, dentro e (cada vez mais) forado Código Penal e de avançar, por exemplo, com uma ambi-ciosa Lei Tutelar Educativa, temos um sistema antiquado,rígido, estereotipado e ritualizado, que ficou estático demaisquando a vida cá fora continuava, como continua, a mexer.Mas entendamo-nos. Não é por causa do excesso de garan-tias, que não passa de uma ficção. É por causa do excesso decomplicações, de actos inúteis, e por uma confrangedorafalta de flexibilidade, tão própria do direito anglo-saxónico,mas tão proscrita pela nossa lei. Fico sempre arrepiadoquando ouço falar do tal excesso de garantias e, sincera-mente, gostaria um dia de ver explicada esta misteriosaasserção. Felizmente que o dr. Jorge Sampaio, que foi emtempos adepto desta teoria, a deixou cair. Mas não é omomento de falar nisso.

Refiro-me ao momento da aplicação da pena. A soluçãoanda evidenciada na introdução do Código Penal quando, adado passo, se refere: “Um dos princípios basilares do diplo-ma reside na compreensão de que toda a pena tem de tercomo suporte axiológico-normativo uma culpa concreta.”

Mais adiante acrescenta-se: “A esta luz não será, pois, difí-cil de ver que também a tónica da prevenção especial sópode ganhar sentido e eficácia se houver uma participaçãoreal, dialogante e efectiva do delinquente. E esta só se con-segue fazendo apelo à sua total autonomia, liberdade eresponsabilidade. É, na verdade, da conjugação do papelinterveniente das instâncias auxiliares da execução daspenas privativas de liberdade e do responsável e autónomoempenhamento do delinquente que se poderão encontrar osmeios necessários a evitar a reincidência.” Ao momento daaplicação da pena adiciona-se o da sua execução. A respeitodesta, Nuno Caiado faz o diagnóstico cruel da realidade.Não é por acaso que os tribunais de execução de penas sãoconsiderados como parente pobre do sistema judicial. Seriamesmo interessante inventariar de entre as agora chamadas“profissões judiciárias”, quem os conhece com o detalhemínimo aceitável. Tudo isto tem de se reflectir na execuçãoda pena e nas suas vicissitudes. As esperanças redentoras doCódigo Penal não se firmaram. Já agora, e a talhe de foice,quero referir que uma das preocupações da Comissão deDireitos Humanos da Ordem dos Advogados consiste emassegurar que a assistência jurídica se alastre aos reclusoscondenados, os quais, muitas vezes, com o fim do patrocíniojudiciário ou da defesa oficiosa, ficam numa situação deabandono intolerável.

Mas regresso à aplicação da pena, onde as estatísticasnão enganam. Todos os sucedâneos à pena de prisão, paraalém da consagrada multa, têm aplicação reduzidíssima esão praticamente desconhecidos em juízo e fora dele. Acomunidade não os conhece nem os reconhece, consideran-do, de facto, que as penas se expiam pelo sacrifício da liber-dade (a prisão) ou do dinheiro (a multa e indemnização).Faltam as condições, faltam os meios, faltam o hábito e ainclinação da jurisprudência. Um segredo de justiça quetorna o processo opaco na origem e uma instrução cada vezmais exígua e arbitrária não facilitam qualquer tipo de con-sensualidade e procura comum de uma sanção adequada.Mesmo o tímido instituto a suspensão provisória do proces-so (artº 281º do Código Penal Português) se entende vigorar,apenas, até ao final da instrução. No processo penal por-tuguês não há lugar para a busca comum da sanção, envol-vendo os assistentes e os arguidos. Nada disso. Temos a ce-lebrada rigidez, acompanhada, como assinala Nuno Caiado– embora, faça-se justiça, cada vez menos –, de longas elaboriosas sentenças de 20 folhas, onde se deveria escrevernão mais de 20 linhas, como, uma vez mais, se faz lá porfora. Sempre a forma a mandar no conteúdo, no país da faltade meios. Quando poderão vir os meios agora em plenaditadura do défice?

Gostaria de concluir com uma palavra final. Há umabatalha dura que temos de vencer, que é a batalha daEducação e da responsabilização individual de nós própriose dos nossos filhos. Porque todos nós somos agentes sociaisactivos e a sociedade é, acreditem, aquilo que fizermos dela.Aqui ninguém está antecipadamente absolvido. v

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O PADRE AMÉRICO EQUIVOCOU-SE?

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Aliberdade individual como supra valorinquestionável lançou no quotidiano umamista sensação de plural conforto e, aomesmo tempo, de uma partilha incerta dotempo e do espaço. A contracultura é tam-bém um imenso conjunto de pequenos ter-

ritórios de conquista, uma vitória efémera do contraponto. É a contracultura também como a cultura do contra. Não

por ser genuinamente contra seja o que for, mas porque con-traria o domínio do absoluto. Preenche a necessidade doindivíduo contemporâneo, carente da sua individualidade.

É neste patamar de uma aparente reflexão sociológica queencontro, em análise pessoal, traços comuns a uma reflexãojornalística sobre o texto Como estamos a formar criminosos.

Curiosamente, o autor não aprofunda o peso daComunicação Social, nomeadamente da televisão, no fenó-meno da criminalidade e da insegurança, mas será esta acarga que mais pesa no prato da balança.

A justiça, como a política, tem a legitimidade inegávelde uma sociedade estruturada, mas na construção diária devalores e factos é a Comunicação Social que tem a dianteira.

Obviamente nenhuma destas vertentes é estanque ousobrevive isolada. O país e o mundo que todos os diasentram em cada casa pelo olhar dos media é uma recons-trução, ou seja, resulta do somatório de factores racionais eemotivos que compõem o todo, desde o protagonista dofacto, ao tratamento desse mesmo facto na intermediação,

resultando numa imagem que pode estar mais ou menospróxima do acontecimento, mas sempre dependente de umpercurso atribulado.

A criminalidade e a insegurança, como temas de fortecomponente emotiva, são de procura privilegiada pelosmedia. O tratamento mediático dos fenómenos - a recons-trução -, determina depois a construção da imagem geral.

A realidade, como acontece com o valor inquestionávelda liberdade individual, passa a ser cada vez mais plural, ouseja, relativa. Não há uma realidade – essa procura é traba-lho dos mecanismos de justiça -, há várias realidades comocorolário de um processo cheio de vicissitudes.

Aos candidatos a jornalistas conta-se por vezes a históriado acidente visto de vários ângulos. Duas pessoas, sérias eíntegras, podem ver num mesmo acidente, acidentes dife-rentes consoante a posição em que se encontram e as li-gações “afectivas” com o acontecimento.

A testemunha não vê apenas o acidente. Acumula umaglomerado de estímulos à volta do acidente, e constrói oseu acidente. Ou seja, reconstrói o acontecimento e impõe asua realidade. Naturalmente a pesquisa cuidada fará comque a construção feita pela testemunha se aproxime da rea-lidade do acontecimento. Esta é a lição. Há que encarar oacontecimento com a humildade de uma única perspectiva,para procurar as outras perspectivas.

Em questões tão sensíveis como o crime e a segurança passa--se o mesmo. Veja-se o complexo exemplo do processo Casa Pia.

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LUTA CONTRA O CRIME

A co-responsabilidade é essencial. Não para encontrar atenuantes e relativizar

comportamentos, mas para que os vários intervenientes actuem previsivelmente.

Não é incomum recorrer à pobreza, à exclusão social, ao desemprego e à inevitável

droga para explicar o crime, e aquele crime em particular. É um perigoso equívoco

se esta avaliação for desprovida da compreensão do fenómeno e das circunstâncias.

E, tantas vezes, as doutrinas judiciais e penais são instrumentos na mão

de um poder político desprovido dos adequados mecanismos de intervenção social.

A intermediação da (in)segurança»» Joaquim Franco »» jornalista da SIC

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O desfecho judicial está longe, mas a intermediaçãodo caso já multiplicou realidades e sentenças.Independentemente da decisão final, vai manter-se ainfluência de muitas intermediações que foram determinan-do opiniões.

A massificação ou banalização do crime, como qualqueroutro acontecimento sujeito à intermediação, é uma conse-quência inevitável. Porque o cidadão anónimo vê o proces-so de acumulação de episódios em tempo de verdades rela-tivas e individuais, adverso à imposição da verdade absolu-ta do acontecimento.

Nuno Caiado conclui que é essencial escutar e saberinterpretar os anseios da sociedade civil, não desvalorizan-do sistematicamente os seus sentimentos de insegurança(que mesmo subjectiva tem os seus fundamentos), mas éimportante regular essa escuta com a intermediação dosfenómenos feita no terreno, com todos os seus defeitos e vir-tudes, pelos mecanismos da Comunicação Social, ponderan-do o risco de haver um desfasamento entre as conclusões deuma auscultação individual e a imagem massificada. Umchoque que pode acentuar a banalização dos fenómenos, poraumentar a incerteza - “afinal, em que ficamos?”.

O paradigma da instabilidade nos centros urbanos resultatambém da intermediação. Os media, escreve Nuno Caiado,limitam-se a alardear crimes e questões circundantes, quefizeram com que a (in)segurança se tenha constituído e man-tido na primeira das preocupações do pú-blico.

Alardear um crime é o primeiro passo da intermediação,mas o crime, como outros acontecimentos, é o resultado deuma espiral de intervenções. É já uma consequência.

A compreensão desta co-responsabilidade é essencial.Não para encontrar atenuantes e relativizar comportamen-tos, mas para que os vários intervenientes actuem previ-sivelmente. Não é incomum recorrer à pobreza, à exclusãosocial, ao desemprego e à inevitável droga para explicar ocrime, e aquele crime em particular. É um perigoso equívo-co se esta avaliação for desprovida da compreensão do fenó-meno e das circunstâncias.

E, tantas vezes, as doutrinas judiciais e penais são instru-mentos na mão de um poder político desprovido dos ade-quados mecanismos de intervenção social.

Se, ao nível das estruturas do Estado, do poder político,não há uma consequência prática da compreensão integraldo fenómeno, que dizer da sociedade de base, moldadaparcelarmente e em micro culturas de reacção ao status cul-tural dominante... v

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A INTERMEDIAÇÃO DA (IN)SEGURANÇA

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Oartigo de Nuno Caiado faz pensar e reflectiracerca da responsabilidade individual, ecolectiva, sobre o processo de planeamentoterritorial e gestão das nossas cidades. Ascidades são produtos sociais, o resultado dedecisões humanas sobre o território e como

as relacionamos com ele em termos sociais económicos eambientais. A cidade, enquanto colectividade urbana, deixafrequentemente escapar do seu controlo movimentos quenascem dentro dela própria, como o crime, ou movimentosresultantes de fenómenos exteriores à cidade, como a glo-balização.

A relação entre crime e planeamento urbano tem sidoalvo de inúmeros estudos. Os crimes (e a sua tipologia)estão relacionados com as características dos espaços e daforma como eles se interrelacionam na cidade. O fenómenode violência urbana é um ciclo que se alimenta a si próprio.As estruturas sociais e físicas das cidades têm vindo a dete-riorar-se e a tornar, frequentemente, desumana a vida nosaglomerados. Parece não haver território comum, língua,identidade, vida económica e cultura. Isto leva a uma cres-cente perda de identidade para aqueles que vivem na cidadee à marginalização de alguns grupos. A violência urbana temvárias formas – a destruição da geosfera (através dapoluição e da transformação do solo), a destruição da bios-fera (através da eliminação de espécies, perda da biodiversi-dade e perturbação dos ciclos bio geofísicos) e a destruição

da esfera humana (através do crime, terrorismo, conflitosétnicos e guerra). Quebrar o ciclo de violência requer que-brar algumas ligações no ciclo, nomeadamente, através dainformação da população sobre o fenómeno e sobre os fac-tores desencadeantes.

Em 2003, em Lisboa, foi adoptada pelo ConselhoEuropeu de Urbanistas uma nova versão da Carta de Atenasque pretende traduzir a visão daquele Conselho sobre ascidades europeias para o século XXI. Setenta anos após aprimeira versão, influenciada por Le Corbusier, o seu con-teúdo assenta agora numa visão de cidade centrada noprincípio da “conectividade” social, económica e ambiental,e nos princípios da sustentabilidade. Esta versão visa actua-lizar a linguagem sobre a “construção” de cidade e pro-mover a integração de novos conhecimentos no discurso, nométodo e na prática de formar cidades. São referidos aspec-tos como (i) a importância da multi-funcionalidade dosespaços do tecido urbano, em contraponto com as antigasestratégias de zonamento mono-funcional; (ii) a necessidadedo envolvimento das comunidades nos processos de tomadade decisão e, (iii) a relevância da inserção social e dorespeito pela crescente diversidade cultural. O seu conteúdopode ser considerado consensual mas a implementação sis-temática dos princípios, contudo, envolverá diferenças sig-nificativas de vontade, esforço e disciplina por parte dosdiversos agentes da cidade. Dependerá também da capaci-dade de aprendermos com os erros do passado e da revisão

26 viragem

LUTA CONTRA O CRIME

A potenciação do papel do planeamento do território na prevenção do crime

e na melhoria da qualidade de vida dos nossos bairros e cidades,

passa por assumirmos plenamente essas responsabilidades e esses poderes.

Embora não sendo invulneráveis às influências do meio envolvente, hoje temos

mais consciência das alternativas de actuação. Os desafios da sociedade moderna,

sustentável e justa, não são já compatíveis com a deposição das responsabilidades

individuais na esfera de actuação das instituições do Estado.

Os cidadãos são também parte desse mesmo Estado.

Como (não) estamos a formarcidades para as pessoas, com as pessoas»» Teresa Fidélis »» Professora no Departamento de Ambiente e Ordenamento da Universidade de Aveiro

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de muitos objectivos e processos de desenvolvimentourbanos.

Apesar das potencialidades do planeamento territorialpara a prevenção do crime, a verdade é que as questões soci-ais e do crime têm sido pouco mais do que superficialmenteintegradas na agenda do processo político e de planeamentopromovido pelas autarquias. A prevenção do crime atravésdo planeamento urbano e ambiental ultrapassa a tradicionalestratégia de segregação de espaços, da construção de con-domínios fechados, da legibilidade urbana, da iluminação eda diferenciação de espaços sócio-territoriais. Pelo con-trário, a teoria e a prática recente apontam para a necessi-dade de (i) promover a multi-funcionalidade dos territóriose dos grupos sociais, (ii) integrar as políticas públicas comincidência na cidade e (iii) elaborar planos urbanísticos come para as pessoas. Aponta também para a necessidade depromover processos participativos e que incentivem maiorintegração social e inter-geracional no espaço urbano, quan-do se pondera a luta contra o crime. É verdade que perspec-tivar o futuro das cidades constitui um exercício complexo econtraditório, envolvendo objectivos divergentes. O planea-mento territorial pode, contudo, proporcionar um contributorelevante na gestão de conflitos, negociação e mediação.

Em Portugal, não temos sido capazes de criar uma estru-tura de políticas, planos e programas de acção integrada,coerente e eficaz, no espaço urbano. Para além do enquadra-mento legislativo em matéria de elaboração de planos terri-toriais e urbanísticos, a prática generalizada e sistemática daformulação de políticas urbanas ao nível local, e a sua dis-cussão com as respectivas comunidades, constitui, ainda,uma área pouco explorada em Portugal. Os momentos deter-minantes para a concepção de políticas urbanas surgemassociados aos processos de elaboração de planos estratégi-cos das cidades e de Planos Directores Municipais (PDM),mas carecem ainda de um potencial de participação alarga-da e consequente. Não menos importantes, são as fases deelaboração dos programas preparados no âmbito daseleições autárquicas. A forte “politização”, e consequentefragmentação do debate, reduz, contudo, a relevância queestes exercícios podem ter sobre as políticas urbanas.Adicionalmente, os PDMs, na sua grande maioria, conti-nuam a reduzir-se ao papel de regulamentos essencialmentedominados por questões de natureza geométrica evolumétrica.

Os Planos Municipais de Ordenamento do Território(PMOTs) destinam-se a organizar e estruturar a relaçãoentre o espaço público/privado, racionalizando o uso do soloe valorizando o espaço público. Deveriam, consequente-mente, ser iniciados (e/ou revistos) a partir de um debatecolectivo sobre as dimensões sociais, ambientais e económi-cas, e sobre os objectivos de qualificação ambicionados pelacomunidade a que se destinam. Deveriam também ser acom-panhados por processos de decisão transparentes e funda-mentados. Quantos de nós acompanhamos os processos deelaboração e de revisão dos planos de ordenamento na nossa

cidade ou bairro?! Mais do que reforços legislativos, pre-cisamos de responsabilidade dos técnicos e dos decisoresmas, também, dos cidadãos de cada colectividade urbana.

O Programa Polis foi proposto com o objectivo de pro-mover a re-qualificação urbana e a valorização ambiental e,nessa qualidade, merece destaque no âmbito desta temática.Na prática, contudo (e independentemente do elevado méri-to dos projectos que o estão a consubstanciar), incide ape-nas em partes de cidades exercendo um fraco efeito multi-plicador sobre a cidade como um todo. Também pelo factode os próprios processos de elaboração dos planos urbanosdo Programa Polis não se terem diferenciado das práticashabituais de planear em Portugal (tradicionalmentefechadas ao envolvimento do público em fases iniciais doplano urbano), não contribuiu para inovar a forma e oprocesso de definir objectivos e estratégias de intervençãonas cidades.

A inovação do desenvolvimento urbano requererá que oconceito de inovação seja também operacionalizado nodomínio dos processos políticos locais. Sendo a inovaçãoum processo social transversal, ele deve ser pensado aonível dos processos de formulação, implementação e moni-torização de políticas públicas urbanas. Num país que sepretende moderno, as políticas públicas não podem já limi-tar-se a conjuntos de boas intenções traduzidas apenas emobjectivos muito genéricos. O ciclo de decisões associadoao processo político terá pois que ser concluído. Terá, tam-bém, que integrar metas claramente definidas, princípios dequalidade, programação, implementação e avaliação. Amonitorização e avaliação das políticas públicas permitirãoa identificação e análise das “boas” e das “más” práticas e,consequentemente, a adopção dos melhores caminhos parapromover o desenvolvimento socialmente sustentável nascidades.

Contrapondo algum do pessimismo de Nuno Caiado,David Harvey, no seu trabalho “Spaces of Hope”, acreditaque no actual momento da história, independentemente dossucessos e insucessos atingidos nas diversas colectividadesurbanas, temos a responsabilidade de experimentar algumoptimismo intelectual por forma a abrir caminhos e formasde pensar que têm permanecido silenciosas. A evolução dasociedade permite-nos, hoje, ter um vasto conjunto deresponsabilidades individuais e colectivas e de poder detransformação do que nos rodeia. Neste sentido, apotenciação do papel do planeamento do território na pre-venção do crime e na melhoria da qualidade de vida dosnossos bairros e cidades, passa por assumirmos plena-mente essas responsabilidades e esses poderes. Emboranão sendo invulneráveis às influências do meio envol-vente, hoje temos mais consciência das alternativas deactuação. Os desafios da sociedade moderna, sustentável ejusta, não são já compatíveis com a deposição das respon-sabilidades individuais na esfera de actuação das institui-ções do Estado. Os cidadãos são também parte dessemesmo Estado. v

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COMO (NÃO) ESTAMOS A FORMAR CIDADES PARA AS PESSOAS, COM AS PESSOAS

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Nuno Caiado dá-nos a sua visão do “estado daarte” da luta contra o crime em Portugal noque concerne ao objectivo da redução donúmero de pessoas que cometem crimes ouque reincidem no crime. O autor fundamen-ta uma apreciação muito desencantada da

situação colocando especial ênfase no laxismo, na permis-sividade e na falta de rigor que diz existir nas medidas apli-cadas às pessoas que praticam crimes (o que explicaria, emseu entender, a perpetuação no crime e até o “contágio” aoutras pessoas), a par do subinvestimento na organização danossa sociedade e nas condições de vida das pessoas aosseus vários níveis (sociais, culturais, cívicos, educacionais,urbanísticos, etc.).

À parte concordância ou discordância com determinadospontos de vista, existe neste texto algo que me agrada par-ticularmente – sentir que se trata de uma reflexão baseadanuma matriz impregnada por vinte anos de uma vida profis-sional profundamente vivida e sentida. Talvez isso expliquetambém o “afã” com que tenta abordar todos os factores efenómenos que, de uma ou outra forma, possam ter relevân-cia na análise “da extensa paisagem exterior às casas da exe-cução das penas e medidas”.

Como profissional que trabalha também com uma popu-lação das margens da sociedade – sou médico psiquiatra doInstituto da Droga e da Toxicodependência (IDT) e igual-mente com vinte anos de prática clínica –, reconheci-me na

emoção indignada do autor pela ausência de estratégias con-sistentes e adequadas à dimensão e aos contornos do fenó-meno crime, pela similitude existente com as políticas deintervenção em toxicodependência.

Mas esta similitude também me provocou uma interro-gação: porque é que isto acontece com estes dois fenó-menos? Desde logo, as duas populações assemelham-se, aolançar um desafio tremendo ao paradigma da reciprocidade“dar e receber” como a forma mais habitual de relação entreas pessoas. Acresce que, na sociedade actual, este paradig-ma tem evoluído para um extremado “eu só dou se receber”,pelo que as contrapartidas se constituíram como condição“sine qua non” para a aceitação do outro. Ora, estas popu-lações problemáticas “não dão nada, só tiram”, pelo que amaioria das pessoas as rejeita liminarmente.

Existem ainda outros dois aspectos importantes que tor-nam estas pessoas (pessoas que cometem crimes, pessoasque se drogam ou que acumulam ambos os comportamen-tos) muito semelhantes aos olhos de grande parte dasociedade: (1) praticam actos inaceitáveis e (2) praticam-nosvoluntariamente porque ou são “más” ou são “fracas”, ouambas as coisas. Assim, o (des)investimento da sociedadeem relação a estes fenómenos e aos seus “actores” será tam-bém semelhante e igualmente rejeitante.

Ao não aceitar como sua parte integrante este tipo depessoas (“não são como nós, por isso não fazem parte denós”) e os fenómenos que as contextualizam, a maioria da

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LUTA CONTRA O CRIME

Quer o crime quer o uso ou abuso de substâncias psicoactivas (com ou sem crime)

são parte integrante da condição humana. Sendo fenómenos cuja dimensão também

depende muito da forma como nos posicionamos perante eles, seria mais eficaz,

por conduzir a um envolvimento maior e mais precoce de todos, se a sociedade

os olhasse sobretudo como “parte dela” em vez de os considerar apenas “contra ela”.

Crime e intervenções na toxicodependência»» Rodrigo Coutinho »» médico psiquiatra; trabalha no Instituto da Droga e da Toxicodependência

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sociedade portuguesa balança entre o distanciamento ou apena face a estas pessoas e o sentimento de insuportabili-dade face às mesmas. Esta incapacidade de incorporaçãodestes fenómenos não lhe permite ir muito mais além do queé descrito por Nuno Caiado – pouco investimento em atacaros problemas de fundo e utilização de medidas parcelares nasua contenção.

Desta forma, são mais as circunstâncias e os contextosdo momento que definem os olhares e, consequentemente,as opções nas medidas que se tomam: radicalizadas quandoa sua existência se torna insuportável; brandas quando pre-dominam o distanciamento ou a pena.

Apesar de esta incapacidade de aceitar a existênciadestes fenómenos como algo de inerente à(s) própria(s)dinâmica(s) da nossa sociedade fazer com que andemossempre atrás dos problemas, ao longo dos últimos anos temsido possível alterar alguns olhares mais negativos sobre otoxicodependente, havendo uma maior percepção da com-ponente doença inerente às pessoas que estão nestacondição. Isto permitiu também uma evolução sócio-políti-ca importantíssima, que se traduziu na descriminalizaçãodos consumos e consequente possibilidade de privilegiar otratamento em detrimento da prisão.

No entanto, quando se trata de consumidores que come-tem crimes, ainda é praticamente insignificante o recurso apenas alternativas e as respostas dentro do sistema prisionalsão claramente insuficientes, seja a nível do tratamento sejaa nível da redução de riscos. Se atendermos a que uma per-centagem significativa de pessoas detidas nas nossas prisões(mais de 50 por cento) são consumidores problemáticos desubstâncias psicoactivas, é estranho que esta questão nãotenha ainda sido objecto de uma estratégia de intervençãoestruturada, englobando todos os estabelecimentos prisio-nais.

A partir da minha experiência de trabalho na organizaçãode serviços na área da toxicodependência, foi sendo cadavez mais claro que o conjunto de respostas criado para rea-gir ao produto destes fenómenos só se torna realmente efi-caz quando constituído num trabalho em rede. Na experiên-cia da minha prática clínica, face a situações onde existecruzamento entre toxicodependência e crime, confronto-memuitas vezes com a inexistência de uma rede que integre asmedidas a aplicar nestes casos.

Nesta perspectiva, para além das medidas de fundo anível do repensar o tecido urbano e social que Nuno Caiadobem sistematiza, a articulação em rede das medidas uti-lizadas na contenção de ambos os fenómenos é condiçãoindispensável para as tornar compreensíveis para os diver-sos intervenientes e poder dar-lhes a continuidade, a sus-tentabilidade e a consistência que possa ajudar a reverter olaxismo, a permissividade e a falta de rigor que, de algumaforma, contribuem justamente para o sentimento de NunoCaiado, de que estamos, de algum modo, a perpetuar e/ou areproduzir criminosos (ou toxicodependentes). É frequente,por exemplo, a libertação, sem articulação prévia com os

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INTERVENÇÕES NA TOXICODEPENDÊNCIA

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serviços do IDT, de detidos que se encontravam em progra-ma de tratamento dentro do Estabelecimento Prisional,provocando uma descontinuidade do acompanhamento efacilitando a recaída e o retorno a actividades delinquentes.

Quer o crime quer a toxicodependência (com ou semcrime) são o produto de múltiplos factores de natureza indi-vidual e social. Numa breve análise sobre o fenómeno datoxicodependência podemos dizer que, aparentemente, asituação actual ao nível da iniciação do consumo das subs-tâncias psicoactivas “tradicionais”, nomeadamente heroína(com ou sem outras drogas), está em declínio junto dospotenciais consumidores mais novos, pelo que a degradaçãoacelerada provocada por estes consumos problemáticos etodas as suas consequências tem diminuído nas camadasmais jovens. No entanto, existem muitos indicadores quedemonstram a existência ainda de um grande número de to-xicodependentes cuja droga principal é a heroína e que semantém afastado das redes de tratamento, nomeadamentenas grandes áreas urbanas e suburbanas. Estas contêm, porsi só, características que tanto intensificam a dimensão dofenómeno como possibilitam a sua perpetuação, pelo que“produzem” um elevado número de toxicodependentes, commuitos deles a atingirem estados de desorganização pessoale social que lhes retiram motivação e/ou capacidades paraprocurarem ajuda.

Calcula-se que, na região da Grande Lisboa, haverácerca de 10 mil a 15 mil toxicodependentes nesta situação eque têm ou sentem necessidade de ajuda, mas, por diversosmotivos, não podem, não querem ou não conseguem recor-rer aos Centros de Atendimento a Toxicodependentes(CAT), Comunidades Terapêuticas (CT) ou a outros serviçosde saúde ou sociais. Ao longo dos anos, o défice crónico derespostas face à dimensão do fenómeno, aliado a um quadrode respostas com modelos de intervenção pouco diversifica-dos, tem levado à perpetuação nos consumos de um conjun-to importante de toxicodependentes, gerando uma popu-lação mais doente, excluída e envelhecida e a partir da qualse vai constituindo grande parte dos toxicodependentes derua. Muita desta população é portadora de doenças trans-missíveis e, na sua maioria, apresenta uma psicopatologiamarcada, pelo que se torna imprescindível ir ao seu encon-tro quer por imperativo de saúde pessoal quer de saúdepública. É, portanto, esta população toxicodependente,menos organizada pessoal e socialmente, com grandes difi-culdades em procurar tratamento ou em se tratar e onde seinclui um conjunto importante de pessoas física e psiquica-mente muito doentes e/ou envelhecidas que constitui actual-mente, ao nível das estratégias de intervenção, o grandedesafio dos serviços do IDT.

Mas outro desafio se nos coloca ao existir um novo pa-radigma na área do uso e/ou abuso de substâncias psicoacti-vas. Durante muito tempo a heroína ocupou a dianteira damotivação dos pedidos de tratamento (90 por cento doscasos), mas, como atrás foi dito, esta vem diminuindo nosúltimos anos, dando lugar a um aumento significativo do

consumo de outras substâncias psicoactivas, nomeadamentecocaína, cannabis, LSD, drogas de síntese (ecstasy) e álcool,e que se traduzem nalgumas especificidades, quer na formados consumos, quer nas suas consequências, quer na per-cepção que os próprios consumidores têm do seu uso.

Sob este último aspecto, por exemplo, a quase totalidadedas pessoas que usam e/ou abusam destas substâncias nãoconsidera que tenha algum problema e muito menos que sejadoente. Torna-se, portanto, evidente que os dispositivos e asestratégias de intervenção tradicionais não colhem juntodesta nova realidade, pelo que teremos de pôr em práticaformas de abordagem adaptadas a essa mesma realidade.

Quer o crime quer o uso ou abuso de substâncias psi-coactivas (com ou sem crime) são parte integrante dacondição humana. Sendo fenómenos cuja dimensão tambémdepende muito da forma como nos posicionamos peranteeles, seria mais eficaz, por conduzir a um envolvimentomaior e mais precoce de todos, se a sociedade os olhassesobretudo como “parte dela” em vez de os considerar apenas“contra ela”. v

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INTERVENÇÕES NA TOXICODEPENDÊNCIA

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1Como já foi comprovado relativamente ao‘arrastão’ de Carcavelos, a comunicação socialtem por vezes um desempenho criticável,provocando o medo e a fobia racista na popu-lação. Em relação às ameaças que certos bair-ros problemáticos podem representar, há uma

perversa atribuição de culpas: as principais vítimas não sãoas que ocasionalmente possam ser prejudicadas na sua vidanormal. As grandes vítimas são as condenadas, pela suacondição social ou étnica, a viverem à margem dasociedade: estigmatizados, relegados para os subúrbios, ca-rentes de todo o tipo de apoios e direitos, desde os educa-tivos e familiares aos sanitários e aos laborais – e até decidadania. São essas as principais vítimas duma situação quenão faz manchetes na imprensa nem aparece nos telejornais.

2A existência de bairros sociais ou eticamente segre-gados é um facto com consequências negativas,fazendo-nos lembrar os tempos das Mourarias e dasJudiarias. Para os integrar são necessárias algumascondições: políticas públicas transversais, articulandoGoverno e autarquias, que assegurem redes de

equipamento (creches, escolas, centros de saúde e de apoio a idosos,espaços de recreio, etc); interacção com a população,apoiando/dinamizando associações e moradores, ONG, clubesdesportivos, instituições de solidariedade social, etc.; combate a todasas formas de estigmatização e segregação social e étnica.

No entanto, cada caso é um caso, sobretudo porque seenfrenta uma difícil contradição: por um lado, a necessi-dade, geralmente sentida pelas populações, de defender asua coesão étnico-cultural e de vizinhança: por outro, olha-do para o futuro, a necessidade de integrar as novas geraçõesem contextos mais alargados de cidadania e de práticas devida.

Vejamos três casos paradigmáticos que apontam parasoluções diferentes.

a) Casal Ventoso. Aqui, a decisão corajosa de JoãoSoares foi riscar este bairro do mapa, procedendo à sua totaldemolição, construindo novas habitações em prédios seme-lhantes aos da população’normal’ e também alguns equipa-

mentos essenciais. Houve sacrifícios e também efeitossecundários, como a emigração para outras zonas do nar-cotráfico.

b) Cova da Moura. Neste caso a população rejeita asolução anterior, pois implicaria a destruição do enormeesforço que tem feito na construção e melhoramento cons-tante das ‘suas’ casas. E também para defender a sua fortís-sima identidade. Haverá, sim, que rasgar vias de penetraçãoe espaços de transição com equipamentos, para que se insiranos tecidos urbanos envolventes.

c) Chelas/Marvila. Tratando-se de bairros de realoja-mento que prolongam os antigos guetos. Haverá que inseri-los em malhas urbanas ‘normais’, construindo nos espaçosque os separam habitações para camadas solventes da popu-lação – também e sempre com os necessários equipamentos.Nenhum promotor imobiliário estaria nisso interessado,mesmo que os terrenos, que são geralmente propriedademunicipal, fossem vendidos a baixo preço. A população‘normal’ não iria compara ou alugar casas com vizinhançasindesejáveis. Mas para isso é que serviria a EPUL [EmpresaPública de Urbanização de Lisboa] e não para negócioscomo o Parque Mayer.

3. A cultura tem nestes processos um papel fundamental,como é o caso apontado no questionário, integrado num tra-balho de muitos anos da Associação Moinho da Juventude.Mas há outros exemplos, como os excelentes festivais rea-lizados em Chelas sob o lema Marvila, Capital do Nada. v

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SEGREGAÇÃO

Bairros sociais, os novos guetos»» Nuno Teotónio Pereira »» resposta a um inquérito sobre o tema dos bairros sociais, publicado no “Jornal de Letras”, de 20/07/2005

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Lembrei-me deste poema durante a sessão deestudos do Metanóia sobre “Pobreza e exclusãosocial”, realizada no Porto em Março de 2005.Este é um tema recorrente entre católicos,sobretudo entre os que se move(ra)m nos movi-mentos da Acção Católica. Tentámos perceber

os conceitos e os mecanismos que gerem a pobreza e aexclusão social. Andámos entre o possível e a procura doideal. Questionámos as nossas vidas, as nossas escolhas – dodia-a-dia e de estilo(s) de vida, a nossa intervenção na cons-trução da sociedade em que vivemos… Sugerimos pro-postas de acções, pessoais e/ou colectivas.

É neste ponto que a canção, que tantas vezes cantámos,me vem à lembrança. Acho que podemos fazer mais. Nãotemos tempo para ficar em terra. Tenho para mim que este éum dos tais caminhos que se faz caminhando. Não há inícionem fim predeterminados.

O que também sabemos é que há muita gente que já ini-ciou o seu caminho. E nós, por onde começamos? Para aju-

dar, parece-me importante que exista alguma coisa que dêvisibilidade a estes caminhos que já foram iniciados.Proponho, até porque o que é tecnológico está na moda, umportal de ajuda: um sítio onde as várias organizações, movi-mentos, etc. pudessem mostrar as suas actividades, mas,sobretudo, que servisse para anunciar o que necessitam.Serviriam estes anúncios para combater a nossa inércia e seralavanca das nossas vontades. E nós, que temos a obrigaçãode avançar, teríamos o desafio à nossa frente, um caminhopara caminhar.

Se o Estado tem um papel relevante na luta contra apobreza e exclusão, as empresas não se podem descartardesta responsabilidade. A visão de curto prazo presente emtantas empresas deste país, governadas por uns “patosbravos” à procura do lucro imediato e onde vale tudo, temde ter um fim. E por duas razões principais: porque não éaceitável socialmente, e porque uma visão de curto prazotraz resultados de curto prazo (como tantas situações na vidaempresarial de Portugal podem exemplificar). Começa ahaver uma pressão para que se transformem as empresas emorganizações socialmente responsáveis – existe inclusiveuma norma que define requisitos de uma organização social-mente responsável (SA 8000), pela qual já temos algumasempresas certificadas em Portugal.

Influenciar as organizações onde estamos, de forma aincluir nos seus valores a responsabilidade social, é umpapel que nos cabe. v

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POBREZA E EXCLUSÃO SOCIAL

Se o Estado tem um papel relevante na luta contra a pobreza e exclusão,

as empresas não se podem descartar desta responsabilidade.

Influenciar as organizações onde estamos, de forma a incluir

nos seus valores a responsabilidade social, é um papel que nos cabe.

Uma tarefaque nos cabe»» Rui Valente »» gestor de sistemas de informação; texto redigido a partir da participação na Sessão de Estudos “Pobreza e Exclusão Social: Interrogação ao nosso modo

de vida”, realizada no Porto a 19 e 20 de Março de 2005

Quem vê as ondasQuem vê as ondas do mar Não fica em terraNão fica em terra a olharTem Deus que o manda avançar

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Partilho aqui o que tem sido o sentir e viver a minharelação com as questões da pobreza e exclusãosocial que é, entre muitas outras coisas, um desafiopermanente a mim própria.É ir descobrindo oDeus de Jesus Cristo, pobre e humilde, nos outrose caminhar. Cultivar a confiança, a atenção, o

respeito, a relação na diferença.Desejar que a coerência e a autenticidade façam parte do ca-

minho.Experimentar as incertezas e as surpresas da realidade, quando

nos parece termos certezas.Aceitar os erros, reconhecê-los e estarmos abertos a novas ten-

tativas.Mudar o olhar que temos e com ele fazermos nascer novas

possibilidades de relação e acção.Ter consciência que a fraternidade não se constrói por decreto,

nasce no coração de cada um.Lidar com rupturas e conflitos, por vezes com dificuldade em

compreender os ritmos da própria mudança ou da não mudança.

Acolher e aprender com a sabedoria dos licenciados da vida,os idosos.

Meter mãos à obra, mas não nos substituirmos aos outros.Continuar a acreditar, quando parece que já nada faz sentido, e

rezar.Investir na escuta activa, valorizar a pessoa com os seus pro-

blemas.Caminhar na busca da verdade e da liberdade, ter coragem de

correr riscos e arriscar ser excluído.São Paulo dizia que muitas vezes era levado a fazer o que não

queria, angustiando-se por não fazer o que queria.Estar numa atitude de alerta aos sinais da realidade e fazer uma

leitura de Fé.Conviver com a tensão e o conflito na esperança de ser luz.Ter o sentido da urgência e o sentido da continuidade.Escolher linguagens que os pobres entendam. Interrogar a finalidade e a utilidade de estudos sobre pobreza,

com o desejo que alimentem políticas e projectos, que não ignoremos direitos dos pobres.

Como diz Roque Amaro, “evitar a pobreza de espírito de umapolítica sem afectos”.

Saber que a pobreza gera imagens que não são controláveis poraqueles que desejam ou querem livrar-se delas.

Lidar com a ausência e insuficiência de respostas a pessoascom condições económicas de sobrevivência. Que escolhaspodem fazer?

Pensar no valor mensal dos lares de iniciativa privada – 2175euros/mês – e no valor da reforma de muitos idosos – 200euros/mês.

Sentir necessidade de reinventar instituições que se inter-roguem sobre os modos de agir.

Reconhecer aquilo que de bom está feito e dar-lhe con-tinuidade, não estar sempre a partir do zero.

Construir a cultura da co-responsabilização global e agir aonível da responsabilidade de cada um.

Experimentar os valores da democracia, mesmo quando nãodão muito jeito.

Ser persistente, quando a atitude justa parece não ser outrasenão desistir.

Ser paciente, lidar e compreender as regras, as normas, os pro-cedimentos e, depois, diz o ditado “quando a esmola chega o pobreestá morto”. E a noção de tempo útil? Será que não tem sentido?

Exigir que os poderes instituídos valorizem as questões dapobreza e dos pobres e não sejam a prioridade de circunstância:“Tudo depende do que interessa em cada momento”, dizia o

meu professor.Crer no sentido da cooperação, trabalhar uns com os outros,

respeitar as experiências, criar laços, ser comunhão, “a inclusãocontra a exclusão”, diz o Jorge Wemans, servir o bem comum.

São Francisco dizia: “Começar por fazer o que é necessário,depois o que é possível, de repente está-se a fazer o impossível.”.

Deixo-vos estes sentires soltos e que parecem desligados:“Nunca saberemos fazer bem as ligações da nossa vida, são umacontecimento misterioso”, diz frei Bento Domingues.

São o convite à mudança de prioridades, a uma escolha dainter-relação e de equilíbrio dos modos ser e ter, aqui e agora,porque “o mundo é novo em cada momento”, diz AnselmoBorges.

Sinto um imperativo de consciência e de cristã: continuar aaprofundar a construção de um mundo diferente.

Como diz Sá Vieira no seu poema:Vem!Que o teu grito é um sino/conviteQue tange, que dobra,No teu campanário,A avisar que o Amor não pode extinguir-se,Que ele é preciso,Que ele é urgente,Na construção de um Mundo,ActualE Diferente Março de 2005v

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POBREZA E EXCLUSÃO SOCIAL

Um imperativo de consciência»» Felícia Pires »» Assistente social; texto redigido a partir da participação na Sessão de Estudos “Pobreza e Exclusão Social: Interrogação ao nosso modo de vida”,

realizada no Porto a 19 e 20 de Março de 2005

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POBREZA E EXCLUSÃO SOCIAL

Motivação Luís CapuchaModerador Joaquim Azevedo

Odebate iniciou-se com a proposta de JoaquimAzevedo deste se centrar em três aspectos, a quea Conceição Rangel acrescentou um quarto:situação da pobreza e exclusão social; políticaspúblicas de combate à exclusão e pobreza; inter-venção da sociedade civil, ONGs, voluntariado,

etc.; interpelações ao nosso modo de vida.

1. Situação da pobreza e exclusão social

O problema da inclusão é mais complexo do que o da pobreza. Porexemplo, não conseguimos ter uma escola inclusiva, o que faz comque uma das principais instituições responsáveis por aplicar políti-cas sociais se torne parte do problema.

A luta contra a pobreza é necessária como factor de coesãosocial. No entanto, neste campo, há uma sensação de derrota aoreconhecer que a situação relativamente à UE é pior agora do quehá 20 anos. Contudo, não há que ser pessimista, pois Portugal temevoluído, embora de forma arrítmica e diferenciada entre sectores.As famílias têm feito um esforço de modernização claramentemaior que o Estado e este maior do que as empresas e os gruposprofissionais. Mas depois vieram acusar as famílias de consumis-mo e elas estão agora em dificuldades.

As razões para a actual distribuição de países ricos e países

pobres são de natureza cultural, mais do que económica. Do pontode vista ideológico, há quem goste de ter pobres, pessoas e países.

Há de facto uma questão ideológica: ao falar de políticas nãodá jeito falar dos pobres. Qual a eficiência real dos serviços públi-cos? Muitas vezes parece que a relação custo/benefício é muitofraca. Temos gasto milhões em tecnologias mas a produtividadebaixou porque não se investiu em qualificar as pessoas em simultâ-neo. Por exemplo, nas escolas já há um investimento apreciável,mas a desarticulação conduz a um desperdício de recursos. Não épossível mudar a Educação enquanto a formação de professoresfor só norteada pela progressão na carreira, sem ser baseada naprática pedagógica e nos projectos de escola. O médico de famíliacomo figura de saúde pública não existe. Seria um direito e à par-tida não se deveria nada ao médico, mas a comercialização dosdireitos minou este conceito.

2. Políticas públicas de combate à exclusão

Nota-se uma deriva tecnicista nas políticas públicas, sendo que naEducação há uma fuga para a frente com uma formatação técnicacomplicada que evita o exercício da cidadania.

Uma pergunta que pode orientar políticas educativas é comoorganizar a Escola para acolher os que mais precisam. Sabe-se queao melhorar a Escola para esses, se melhora para todos. E, noentanto, experiências concretas nessa linha têm afugentado asclasses médias.

Não é líquido que, no Portugal actual, o lema “menos Estado,

As políticas públicas no combate à exclusão e à pobreza: potencialidade e limites.

Critérios, objectivos e meios. A iniciativa e o lugar na sociedade civil,

as organizações não-governamentais (ONGs), o voluntariado, as acções

de solidariedade. As condições para a sua eficácia.

Políticas públicas de combateà pobreza e sociedade civil»» Maria Helena David »» associada do Metanóia; texto de síntese do grupo de trabalho sobre o tema, na Sessão de Estudos “Pobreza e Exclusão Social:

Interrogação ao nosso modo de vida”, realizada no Porto a 19 e 20 de Março de 2005

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melhor Estado” seja virtuoso.Um dos factores mais gravosos é a falta de coordenação das

políticas públicas. As intervenções são verticais e sem colabo-ração. Isto é particularmente evidente na problemática das criançasem risco.

O efeito da regionalização, nos termos em que foi feita, defacto acentuou a cisão entre o poder central e o poder local e,no que respeita às políticas sociais, só se multiplicou onúmero de “terreiros do paço”. É importante re-articular osdiversos níveis, no respeito pelo princípio da subsidiariedade,permitindo focar os diferentes níveis de intervenção. Deve-seintervir junto do Estado num plano nacional mas também nasrelações de proximidade e nas autarquias planeando políticasde desenvolvimento sustentável. Nesse contexto, é importantedeixar florescer as pequenas acções que já poderiam ser criativas epróximas das realidades, mas produzindo sinergias em vez deterem intervenções sem continuidade.

Embora haja muitos estudos que mostram como as políticassociais favorecem a produtividade - pela redução das doenças, peloaumento da motivação, etc. -, esta ideia não passou ainda para aopinião pública, que continua a associar produtividade a maiorselecção quer na escola, quer no mercado e na sociedade.

As medidas a tomar devem ser simples e claras, para poderemfuncionar como contrato que obrigue os participantes. Princípiosgerais ou políticas complexas não têm este efeito de convenci-mento da opinião pública.

Há quem não esteja interessado em políticas de inclusão.Portugal tem os indicadores de solidariedade mais baixos daEuropa e tem a maior diferença entre ricos e pobres. Por exemplo,a proposta de Manuela Silva de imposto social sobre os espec-táculos esbarrou em desculpas. Bruto da Costa teve que apresentara tese sobre a pobreza em Inglaterra porque em Portugal não foiaceite, como não foi aceite pela Universidade Católica uma pro-posta de um curso sobre Política Social. De facto, em Portugal,nem a Teologia se preocupa muito com a questão social.

Aopção pelos pobres ficou fora de moda. Não terá sido em vãoque se viveu há 30 anos a opção preferencial pelos pobres, embo-ra agora seja difícil passar a outros essas ideias, que parecem estara perder a luta com a mentalidade do consumismo.

3. Sociedade civil, ONGs, voluntariado, etc.

Não parece viável que o Estado sozinho consiga inverter a situação.Sente-se muito a falta de técnicos de mediação para criar

dinâmicas nos vários territórios, gente que saia dos gabinetes e sejacapaz de mobilizar, fazendo com que as pessoas percebam e sin-tam o que se propõe e tenham espaço para colaborar.

4. Interpelações ao nosso modo de vida

Nem sempre é evidente qual o melhor enquadramento para aintervenção pessoal. Qual o “território” onde intervir? Nasgrandes cidades, por exemplo, a freguesia da residência não éo espaço natural de agrupamento das pessoas. Muitos sentem--se mais implicados no local onde exercem a actividade

profissional, embora votem na freguesia da residência.A atitude dominante é a da não responsabilização e medo das

consequências. Há que inverter isto porque não pode ser só oEstado a ser responsabilizado. Tem que haver predisposição doscidadãos para, por exemplo, se poder criar um grupo de voluntaria-do. Há muitos problemas que nem se tenta resolver por falta devontade e que estão ao alcance dos órgãos de decisão intermédiose locais. A geração do 25 de Abril desistiu ou está já do lado doindividualismo, não valorizando o serviço dos outros.

Mesmo em comunidades estigmatizadas, muitas vezes semgrande fundamento, há caminhos de desenvolvimento e é possí-vel evitar o “destino” de exclusão. Confirmando esta ideia dealgum optimismo, reconhecem-se avanços nos últimos 20 anos,por exemplo na compreensão das pessoas com necessidades espe-ciais e na criação de condições que permitam o seu desenvolvi-mento, como é o caso dos surdos que já chegam frequentemente àUniversidade pela maior divulgação da linguagem gestual.

Fechamo-nos em círculos pequenos desconhecendo outra rea-lidade para além da nossa e assim temos dificuldade em traduzirem acções quotidianas os princípios em que estamos de acordo.

Todos somos corresponsáveis pela situação, embora em dife-rentes graus. Mas, se houver coragem, há espaços de intervençãoe de criação de cadeias de acções positivas.

É importante repensar os direitos na perspectiva dos pobres,garantir que os direitos não são atropelados, mesmo que afectemos nossos privilégios ou os nossos hábitos.

5. Propostas

Na impossibilidade de atacar todos os problemas em simultâneo,sugeriu-se estabelecer como prioridade de intervenção as criançasaté aos três anos, sabendo-se como é determinante esta fase dodesenvolvimento, articulando em torno destas os vários esforços:no apoio às suas famílias, na generalização e reforço da rede deinfantários, etc.

É preciso reinventar as políticas sociais, tomando como pontode partida o território de intervenção, em vez da especialidade ouda tutela dessa política intervenção. Assim será possível ter umabase sólida para integrar a intervenção dos actores públicos e pri-vados. E há que não ter medo de trazer a política às políticas soci-ais, a qual tem estado demasiado escondida atrás de fachadas téc-nicas. A articulação Estado / ONGs / parceiros sociais permitiriacriar uma política de cidade. Para esta articulação ser eficaz, asdiversas instituições têm que ser representadas por agentes compoder de decisão e não meros “pombos-correios”.

Para estabelecer uma cultura de transparência e de planeamen-to é importante que todos os projectos, desde os fundos estruturaisaté às intervenções de cada ONG, sejam acompanhados de medi-das de avaliação.

É importante fazer um trabalho de informação dos resultadosou falta deles relativamente a cada projecto de intervenção e divul-gar a crítica de cada política social, através dos meios de comuni-cação ao nosso alcance. Por exemplo, analisar os efeitos reais dasprivatizações de serviços básicos. E dar visibilidade ao que de bomacontece. v

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POLÍTICAS PÚBLICAS E SOCIEDADE CIVIL

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POBREZA E EXCLUSÃO SOCIAL

Motivação Luís FernandesModeradoraAlfreda Foncesa

1. Como olhamos a realidade?

1.1. Perante uma realidade que, em termos de exclusão social e depobreza, nos surge, frequentemente, como avassaladora, pergunta-mo-nos sobre a existência, o tipo e a eficácia das práticas e redessociais, insistimos na necessidade de urgência de uma resposta dasociedade, experimentamos um mal-estar… que nos deve inter-rogar sobre o lugar donde, e o modo como, olhamos a realidade. – Que inquietações nos assaltam, que motivações nos conduzem?Por que nos importamos com os “excluídos” e os “pobres”?Porque nos incomodam? Porque nos metem medo ou, até, susci-tam nojo? Porque nos sentimos ameaçados? – O problema da pobreza não é dos pobres! Assim sendo, quesociedade queremos? Uma sociedade que reduza as formas maisgritantes de exclusão ou uma sociedade inclusiva? A exclusãosurge inevitável e até aparece como necessária? (A prisão, por ex.,surge articulada com uma política de reinserção? Por hipótese:estaríamos disponíveis para dar emprego a um ex-recluso?) 1.2. Na observação da realidade, olhando a nossa relação com osoutros, evidencia-se uma diversidade de atitudes possíveis:– Importância de aceitar a tensão entre a atitude de “não desistên-cia” e a consciência de que “não se é omnipotente”.– Na vida, é fundamental saber reconhecer os outros como pessoascapazes de escolhas. Isto implica, por exemplo, a nível profissio-

nal, a partilha do saber ou do poder, sem querer impor aos queestão diante de nós – pacientes, educandos, alunos, pais,… – asescolhas que consideramos melhores para eles.– Trata-se de colocar o outro como referência no horizonte daminha prática profissional, reconhecendo os direitos daqueles comquem me relaciono ou que de mim dependem, sujeitos capazes deresponsabilidade no que às suas vidas diz respeito. Esta questãotem implicações concretas: por exemplo, aceitar que uma pessoaportadora de uma doença genética queira ter filhos; ou, no limite,reconhecer que possa haver quem prefira viver na rua ou em iti-nerância a submeter-se a formas de vida disciplinada por outrostraçada, obrigando a repensar os modos de intervenção social.– Na nossa sociedade, onde a competição surge como o grandeparadigma de afirmação pessoal e social, é fundamental cultivar aatitude de as pessoas se conhecerem a si mesmas e às outras, nassuas reais capacidades e competências. O que remete para os fun-damentos da própria sociedade e o modo como se desenvolve ahierarquização social. Uma sociedade que tenha no centro a pes-soa levará a que a diversificação de funções não seja sinónimo decrescente hierarquização, injustiça e exclusão social.– Essa outra atitude só é possível se fundada numa atitude de amore confiança. A referência antropológica a uma “civilização doamor” ganha toda a sua pertinência.

2. Pessoa, sociedade e Estado

2.1. O problema da exclusão social não é de hoje. Historicamente,

A cultura da exclusão e da inclusão. Hierarquias sociais e formas de dominação.

Os modelos e os ‘estilos de vida’. A opção preferencial pelos pobres. Os limites

da institucionalização das respostas para idosos, crianças em risco, etc. As inclusões

mais difíceis – presos alguns toxicodependentes, doentes mentais, sem abrigo,…

Exclusão, inclusão e opçãopreferencial pelos pobres»» Paulo Fontes »» associado do Metanóia; texto de síntese do grupo de trabalho sobre o tema, na Sessão de Estudos “Pobreza e Exclusão Social: Interrogação ao nosso

modo de vida”, realizada no Porto a 19 e 20 de Março de 2005

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houve sociedades com formas tão ou mais gritantes de exclusão eexploração humana, como a escravatura. E, se não há sociedadesperfeitas, estas sempre geram vítimas. A questão é, portanto, a daconsciência social acerca das diversas formas de exclusão, mar-ginalização ou domínio existentes em cada sociedade. 2.2. Numa cultura de contestação social como a contemporâneacorremos o risco de instrumentalização das questões da exclusão,de estas não serem tomadas pelo que representam, mas como pre-texto de uma atitude contestatária. 2.3. A economia surge como instância determinante na estrutu-ração da sociedade e das relações entre as pessoas. Nos paísespobres assiste-se à constituição de verdadeiros “exércitos de reser-va mundial de mão-de-obra”, barata e desqualificada, enquantonos países mais ricos só muito parcial e lentamente se faz a inte-gração, na esfera económica, de actividades de relevância social:cuidar dos idosos ou dos deficientes, por exemplo. Isto recolocaem causa o modo como se avalia a utilidade social e o valoreconómico de determinadas actividades, que não podem estar sub-metidas à lógica da simples avaliação e concentração financeira. 2.4. Verifica-se que a integração social das pessoas se faz sobretu-do pelo consumo e não pela produção, contribuindo assim para adesvalorização do trabalho enquanto tal (cf. “Laborem Exercens”).A economia tende, assim, a subestimar nos cálculos de produtivi-dade, actividades que têm grande relevância humana e social. 2.5. O problema do Estado social não é tanto ou tão só o da suacrise, mas o da sua debilidade histórica em Portugal, porque cons-tituído mais tardia e limitadamente do que aconteceu noutros paí-ses europeus, e financeiramente enfraquecido por uma culturasocial pouco responsabilizadora. Urge aprofundar o que significaexactamente “melhor Estado”.2.6. Sem desconhecer e criticando até o risco social da “subsidio--dependência” – que afasta os cidadãos da responsabilização pes-soal e social –, colocamo-nos como horizonte de mudançanecessária: passar de uma “sociedade de assistência” a uma“sociedade de inclusão”. Há neste aspecto uma clara dimensãopolítica que implica com as nossas escolhas acerca do que, e domodo como estamos dispostos a renunciar ou partilhar certos bens,em favor de uma distribuição mais justa dos recursos disponíveis. 2.7. Todas as questões acerca do figurino de sociedade que dese-jamos, remetem-nos para a necessidade de maior atenção aos quevivem qualquer forma de pobreza ou exclusão, mas também parauma interrogação fundamental: até que ponto toleramos (con)vivercom algum grau de “marginalidade” e de que modo aceitamoslidar com a experiência do “insucesso”? A ideia de uma sociedadeconstruída com base no valor do “sucesso” acarreta sempre, comoreverso da medalha, a existência social do insucesso. Nesta medi-da, a construção de uma sociedade de maior justiça e de inclusãoobriga a um outro olhar sobre nós próprios e o mundo: Jesus Cristonão se relacionou com “os excluídos” ou “os marginais”, Jesuslidou com pessoas que na sociedade de então eram excluídas oucolocadas à margem; e “bem-aventurou” os pobres…

3. Algumas respostas a nível social

– Aprofundar a reflexão acerca dos paradigmas de sociedade,

procurando equacionar questões como: diferenciação social diver-sa de hierarquização social; realização pessoal em vez de “nor-malização” social; estruturação social e exercício do poder distin-to de formas de domínio a nível pessoal ou nas relações sociais.– É necessária maior imaginação social para se ultrapassar umavisão assistencialista, sublinhando-se a importância de políticassociais baseadas na valorização.– Afirmar a centralidade da educação como forma de proporcionarmaior igualdade de oportunidades e facilitar o acesso de todos aoexercício da cidadania activa, com prioridade à educação pré-esco-lar, mas também à educação de adultos.– Atender aos limites da chamada “cultura de projecto”, onde asiniciativas começam e terminam mas não têm continuidade nemgeram práticas sociais sustentáveis. Daí a urgência de se privile-giar formas de intervenção social “em rede”.– Enquanto profissionais ou técnicos de determinadas áreas e sec-tores de intervenção na sociedade, sentimos como prioritária amudança de atitudes, se necessário “remando contra a maré”. Éimportante a capacidade de ir à raiz dos problemas e ajudar a gerarrespostas que coloquem o valor da cidadania no centro das práti-cas sociais, dirigindo-se às pessoas concretas a que se destinam osserviços, as iniciativas ou as intervenções sociais. – Melhores políticas de inclusão vão conduzir, seguramente, ànecessidade de uma mais justa distribuição da riqueza e uma maiorpartilha de recursos. Até que ponto estamos dispostos a perderrecursos, se e quando necessário?

4. Como cristãos e como Igreja

4.1. Como cristãos, reforçámos a convicção de que é importanteprosseguir este trabalho de reflexão partilhada acerca das questõessuscitadas, em ordem ao desenvolvimento de um pensamentomais enraizado e mais próximo das reais necessidades dos homense mulheres nossos contemporâneos, em ordem à construção deuma sociedade de justiça e de paz, assente nos valores da liberdadee da caridade, uma sociedade mais inclusiva de todos, na diversi-dade de condições e formas de vida.4.2. Partilhámos situações de vida, empenhamentos e dificuldadesencontradas em face de realidades humanas e sociais muito adver-sas e, por vezes, mesmo gritantes (abandono e acolhimento de crianças, famílias inteiras que se encontram nas prisões portugue-sas devido ao consumo e tráfico de droga, por exemplo). Nestaperspectiva, sentimos a importância de valorizar e recuperar atradição profética na denúncia de situações de grave sofrimento,devido às mais diversas formas de injustiça, conduzindo, porvezes, a novas formas de escravatura humana.4.3. Fizemos a experiência da escuta, por vezes com espanto eadmiração, de histórias de vida tão marcadas pelo sofrimento, mas,por outro lado, também pela generosidade da entrega de alguns aoserviço de outros de quem aceitaram tornar-se próximos. O ateliêconstituiu, assim, um tempo forte de acolhimento e de silêncio nointerior de cada um, em que a poesia de um dos testemunhos apre-sentados contribuiu para transfigurar, em tempo de oração, naprocura de identificação com a paixão, morte e ressurreição deJesus Cristo. v

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OPÇÃO PREFERENCIAL PELOS POBRES

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POBREZA E EXCLUSÃO SOCIAL

Respondi ao apelo e fui. Tratava-se de uma ado-lescente em risco. … era urgente fazer algumacoisa. Por graça grande de Deus a quem ousochamar Pai, as situações de desamor e aban-dono familiar tocam-me de forma muito pecu-liar. Não obstante, que poderia eu fazer e

porquê meter-me numa situação totalmente desconhecida edistante de todos os meus espaços vitais? Tentei argumentardesculpando-me com boas razões. Perante a insistência,recolhi e actualizei alguns contactos e dirigi-me ao local daentrevista, a cerca de 50 quilómetros.

À medida que a assistente social me foi descrevendo o

percurso da vida da Maria, fui-me apercebendo da gravidadeda situação e, em dado momento, surpreendi-me comovidae com grande dificuldade em apaziguar o turbilhão de senti-mentos que brigavam dentro de mim: compaixão, desespero,impotência, injustiça. O contraste entre o amontoado edureza de experiências vividas pela Maria e os seus tenrosquinze anos, deixava-me cada vez mais submergida no pesodo sem saída e da impotência de nada poder fazer. Os mi-nutos começaram a ser muito mais longos e densos! Eternos,se calhar!

A dado momento ousei perguntar: – Onde está a Maria? Num abrir e fechar de portas, vejo surgir uma jovem de

olhar inquieto, vivo e penetrante, como que tentando sobre-por-se à vergonha estampada naquele corpo franzino. Doseu rosto irradiava uma indizível expressão de doçura que asmarcas bem visíveis dos maus tratos, abandono e sofrimen-to, ainda não conseguiram apagar. A psicóloga diz-lhe:

– Maria, esta é (…) que nós contactamos para ver se tepode ajudar.

Olhando para mim com uma expressão indescritível,surpreendeu-me totalmente com um abraço e dois beijinhos,que a memória do coração jamais poderá esquecer, e disse--me:

– Eu sou a Maria. Sentou-se, quase em frente a mim, com um ar obser-

vador e expectante. Com dificuldade quebrei o sem palavrasda surpresa e disse-lhe:

– A dra. (…) deu-me a conhecer um bocadinho da tuahistória, o teu desejo de retomar a escola e a necessidade deencontrares um espaço para concretizares essa vontade demudança. Gostava muito de poder ajudar-te. Conheçoalguns colégios. Poderias vir passar alguns fins-de-semana aminha casa. Poderia apoiar-te nos estudos…

O brilho daquele olhar e a doçura daquele rosto foram-seapagando e ainda hoje me dói a força das lágrimas entrecor-tadas pelas palavras com que a Maria me interrompeu:

– Por favor não me leve para um colégio, peço-lhe.Leve-me para sua casa. Dê-me uma oportunidade. Eu queroter uma família, deixe-me experimentar a sua casa.

Deixo ao leitor a delicada tarefa de recriar a longa ebonita história, pedaços de vida, que aconteceu em tão curtoespaço de tempo. Nesse mesmo dia, 9/11/2004, a Maria veiocomigo e permanece em minha casa. Cinco meses de ges-tação é um tempo muito curto para poder dizer o que querque seja desta nova família. Sinto-a ainda numa fase em-brionária. Mas se me é permitida a comparação, penso quenão haverá mães mais babadas do que nós. E isto da ges-tação partilhada tem dado muito de si. Tem sido uma expe-riência muito bonita e muito positiva. No dia 11/11/2004 foio primeiro dia de aulas da Maria neste ano lectivo e após trêsanos de abandono escolar. Não obstante isso, o entusiasmo efelicidade com que ela vai redescobrindo e se vai dandoprovas das suas capacidades é algo que dá cor e enche dealegria o nosso quotidiano. Na avaliação de final do 2ºperíodo teve apenas um nível 2 e é a terceira melhor classi-ficada da sua turma. Com a recuperação positiva do seuauto-conceito vê-se crescer a sua auto-estima.

Como vai continuar e onde irá desembocar este proces-so? Não sabemos e tentamos que isso não nos preocupe. Onosso objectivo muito claro tem a ver com o aqui e o agorae vai-se concretizando na oportunidade de acolher o desafiode assentar, em cada dia, um tijolinho a esta construção devida nova cujo alicerce está antes de nós e cujo acabamentonos transcende.

3 de Abril de 2005

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Os tempos do coração e o seu poder de alterar os ritmos do tempo»» Maria Arminda Silva »» fundadora e responsável da Fundação Arbusto

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40 ANOS DO VATICANO II

Decorrem estas jornadas no ano em que se ce-lebra o 40º aniversário do início do últimoconcílio ecuménico, o Vaticano II [os 40anos do encerramento assinalaram-se em 8de Dezembro de 2005]. Era o dia 11 deOutubro de 1962 quando o Papa João XXIII

abria um novo concílio na presença de cerca de dois mil equinhentos bispos de todo o mundo, o que desde logo indi-ciava a dimensão universal da Igreja Católica.

Eleito aos 77 anos, em Outubro de 1958, três mesesdepois, em 25 de Janeiro de 1959, João XXIII anunciava,para surpresa de muitos que viam nele um Papa de transição,a convocatória de um novo concílio.

A partir de então foi como que uma lufada de ar fresco(alguns chegaram a temer constipações e pneumonias!) queentrou na Igreja espalhada pelos vários continentes.

Era essa, aliás, a intenção do Papa João XXIII, como oexprimiu em diversa ocasiões.

Este “espírito de juventude” e entusiasmo animou aIgreja, mas com o decurso do tempo foi perdendo impacto.Hoje, estão ainda hoje por cumprir as rotas traçadas peloVaticano II, mas já outros e novos desafios se colocam.

João XXIII sentia que era necessário renovar a Igreja,compaginá-la com as linguagens e os desafios do mundocontemporâneo, redefinir e aprofundar as relações da Igrejacom a sociedade, encetar diálogos com outras religiões eculturas. Em suma, o Vaticano II quis ser um “aggiornamen-

to”, um concílio pastoral, voltado para o compromisso daIgreja com o mundo e com o diálogo com a cultura contem-porânea.

Não foi esta a única faceta do Vaticano II, mas foi, segu-ramente, uma das suas vertentes mais inovadoras e portado-ras de mudança e de futuro.

De uma Igreja auto-suficiente, fechada sobre si mesma,caminhou-se para um paradigma eclesial de reconhecimen-to e respeito pela laicidade do mundo e apostou-se numa ati-tude pastoral ao serviço das pessoas e das sociedades.

Decorridos 40 anos sobre o Concílio, e apesar da práticaeclesial estar ainda muito distante da doutrina conciliar,parece-nos que as rotas então traçadas eram as esperadas.Mas não era assim no início da década de sessenta.

Cabe recordar, por exemplo, o laborioso processo dedebate e as sucessivas reformulações e emendas que foinecessário fazer nos documentos preliminares até àaprovação final da constituição “Gaudium et Spes” (GS), odocumento conciliar que mais directamente se ocupa dasrelações da Igreja com o mundo.

Não estamos aqui para fazer a arqueologia do concílioVaticano II, mas creio que é útil recordar estes factos para entrar-mos mais profundamente no tema que nos foi proposto para areflexão de hoje – a Igreja e o compromisso com o mundo.

Vou abordar o tema em três vertentes:– O que nos diz a GS a propósito da relação da Igreja

com o mundo;

Na relação da Igreja com o mundo, não basta a palavra para anunciar o evangelho.

A cultura contemporânea desconfia dos argumentos de autoridade e exige razões

de credibilidade. Estas passam por a Igreja se apresentar como serva e pobre.

As comunidades cristãs são a expressão visível desta realidade sempre

que se colocam do lado das vítimas, dos mais fracos e empobrecidos,

emprestando-lhes vez e voz, acolhendo-os e servindo-os com zelo

em suas necessidades.

Igreja e compromissocom o mundo»» Manuela Silva »» economista; texto da intervenção nas Jornadas Pastorais da diocese de Évora, em 23 de Novembro de 2002

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– Os desafios da sociedade contemporânea a que oscristãos devem responder, dentro do espírito do VaticanoII;

– As reformas que, presentemente, é necessário operar naIgreja Católica para que esta seja fiel à sua missão de anun-ciar o Evangelho a todas as gentes, tendo em conta asmutações em curso nas sociedades e as novas realidades emque o evangelho do Senhor Jesus deve encarnar.

O compromisso da Igreja com o mundo, segundo a doutrina conciliar

Começo por recordar a estrutura do documento “Gaudium etSpes”.

O título sugere, desde logo, uma opção de partilha, deassunção da vivência humana em si mesma, de reconheci-mento do seu valor próprio: as alegrias e as esperanças …

O documento compõe-se de duas partes. Na primeira,definem-se os princípios orientadores da visão cristã acercado ser humano, da sua dignidade e da acção humana edefine-se a missão da Igreja. Na segunda parte, aConstituição passa em revista as diferentes esferas da vidahumana em sociedade: a família, a cultura, a economia, apolítica, a paz entre os povos.

Da doutrina conciliar, gostaria de destacar como traves-mestras as seguintes:

Uma visão muito positiva do ser humano e do valor dasua actividade no mundo.

Diz-se que o ser humano é o “centro e o vértice” de todasas coisas (nº47) ou também que o ser humano é o “princípio,o sujeito e o fim de todas as instituições sociais (nº 48) e detoda a vida económica e social (nº 63).

Uma perspectiva solidária da Igreja com a humanidadena sua caminhada temporal donde decorre a ilacção de quea Igreja se deve interessar por tudo o que é verdadeiramentehumano (nº45) e deve cultivar uma atenção permanente aossinais dos tempos (nº47).

É neste quadro que os cristãos devem inscrever a suaacção e o seu compromisso com o mundo, realizando a suadupla condição de baptisados e portanto membros da Igrejae de membros da comunidade humana a que por cidadaniatambém pertencem. Os cristãos estão, assim, vocacionados auma dupla condição, a de cidadãos da cidade terrestre e a decidadãos da cidade celeste.

A GS insiste sobre a necessidade de um compromissosocial dos cristãos e traça, seguidamente, algumas direc-trizes que devem inspirar esses compromissos:

- reconhecer e respeitar a justa autonomia das realidadesterrenas (nº36);

- desempenhar a sua actividade quotidiana com empe-nho e responsabilização, vendo nela o prolongamento daacção criadora de Deus (nº54);

- tomar a iniciativa de responder positivamente aosdesafios do tempo presente e assumir as responsabilidadespróprias da sua condição.

O compromisso dos cristãos face aos desafios da sociedade contemporânea

Não é demais repetir que a sociedade contemporânea co-nhece mutações muito profundas e que estas se processam aritmo vertiginoso; por isso faz todo o sentido prestar a má-xima atenção aos sinais dos tempos e aprender a discernir aías “sementes” do Reino ou, ao invés, os obstáculos que seerguem contra ele.

Tendo em conta a realidade em que nos inserimos, pensoque o compromisso dos cristãos se há de orientar, generica-mente, pelo empenho em contribuir para um maior desen-volvimento das nossas sociedades e para a partilha equitati-va dos benefícios.

Todo o cristão ou cristã, qualquer que seja a sua idade,condição social, situação de vida, está vinculado/a ao anún-cio do Reino. Este anúncio faz-se pela palavra, mas passaigualmente por acções concretas que apressem a vinda doReino e o tornem visível e apetecível aos olhos dos outros.

Desdobrarei esta preocupação em três grandes áreas--chave para o nosso futuro colectivo, como domínios maisinterpeladores para o empenhamento dos cristãos:

a) A defesa e concretização dos direitos humanos.Ainda sob o efeito traumatizante de uma guerra mundial

e a paisagem de destruição e de vítimas que aquela deixouatrás de si, os responsáveis políticos dos vários países doMundo foram capazes de acordar num conjunto de direitoshumanos básicos que, de então para cá, não deixaram de serafirmados e ampliados.

Contudo, a uma tal Declaração de Direitos que reco-nhece a dignidade da pessoa humana, o respeito pela vida, asalvaguarda da liberdade individual, a igualdade e a partici-pação, para citar apenas alguns dos direitos básicos, estálonge de corresponder um exercício efectivo dos mesmos.

Hoje, como ontem, em muitas partes do mundo, e àsvezes à nossa própria porta ou dentro das paredes das nossascasas, continuam a ser espezinhados esses direitos funda-mentais.

Os cristãos e as cristãs devem empenhar-se quer nadenúncia dos atropelos destes direitos, quer no seu aprofun-damento, quer ainda na criação de mecanismos e no desen-volvimento de iniciativas que conduzam à sua concretizaçãomais cabal.

b) A prática da justiçaA prática da justiça é uma preocupação que atravessa

toda a Revelação, condição exigida por Deus aos homens emulheres como sinal da sua fidelidade à Aliança. O profetaMiqueias, por exemplo, ao falar do culto verdadeiro, nãohesita em dizer numa bela síntese: “Já te foi revelado, óhomem, o que é bom, o que o Senhor espera de ti; nada maisdo que praticar a justiça, amar a verdade e caminharhumildemente diante do teu Deus.” (Mq 6,8)

A este propósito, podemos igualmente recordar a pas-

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IGREJA E MUNDO

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sagem do evangelho de Mateus em que Jesus, também aoreferir-se ao culto prestado a Deus, lembra que se alguémchegar ao altar com a sua oferta mas aí se recordar que ou-trem tem alguma coisa contra si deve ir primeiro reconciliar--se com o seu irmão ou seja repôr a justiça e só depois virfazer a sua oferta a Deus (cf. Mt 5,23-24).

Ora, temos de reconhecer que vivemos numa sociedadeprofundamente injusta e que a injustiça reinante ultrapassade longe as relações individuais para revestir carácter insti-tucional e estrutural.

Veja-se, por exemplo, o que se está a passar no mundodas relações laborais (trabalhadores que não são devida-mente remunerados, trabalhadores a quem se exigemhorários e ritmos de trabalho stressantes e incompatíveiscom uma conciliação sadia da vida profissional com a vidafamiliar, abuso no recurso a empregos de precariedade e semgarantias mínimas, desemprego, etc); ou no campo da orga-nização das economias nacionais, cada vez mais depen-dentes dos interesses do capital financeiro internacionalditados pela globalização neo-liberal reinante; ou nasrelações económicas internacionais em que os maispoderosos se conluem para impor aos mais fracos regraslesivas do seu desenvolvimento, como sucede com frequên-cia no âmbito das negociações ao nível da OrganizaçãoMundial do Comércio.

Por vezes, são as próprias instituições que estão feridasde injustiças gritantes. O fenómeno da corrupção que atra-

vessa instituições várias é uma verdadeira chaga social dosnossos dias.

A luta por maior justiça social nos vários domínios exigedos cristãos um compromisso sério e consequente, que passapor uma conversão do olhar ou seja a maneira de ver a rea-lidade e de a interpretar. Importa aprender a estar do lado dasvítimas da injustiça, ser capaz de se compadecer das suassituações, ousar mobilizar todos os recursos para fazer recuaros muros da injustiça, ser capaz de ultrapassar as fronteirasdos pressupostos ideológicos ao serviço dos poderosos e quesustentam o status quo fazendo crer na sua inevitabilidade.

Confesso, com mágoa, que, na nossa sociedade, a maio-ria dos cristãos passa ao lado destas problemáticas e não temsobre elas uma postura singular que faça a diferença dosseus concidadãos que não têm fé. Penso, por exemplo,naquilo que sucede com a exploração do trabalho dos imi-grantes, a complacência com que se aceita o trabalho infan-til, a exploração sexual das mulheres e das crianças porvezes vítimas de tráfico humano, a permissividade na par-ticipação de negócios menos lícitos, a fuga generalizada aosimpostos, a corrupção activa e passiva nos serviços públicosou na gestão das empresas, etc.

Às vezes com má consciência e com o argumento pseu-do desculpabilizante de que “todos fazem assim”; outrasvezes nem isso, pois já criaram divisórias artificiais mas só-lidas entre a sua fé ou religiosidade e a sua vida profana,como se de duas realidades se se tratasse. Cristãos nos

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IGREJA E MUNDO

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domingos ou em momentos especiais, mas pagãos nosrestantes dias da semana ou no desenrolar dos seus quotidi-anos.

c) O reforço da solidariedade humana – uma exigên-cia do amor cristão

Um dos efeitos mais negativos e desestruturadores destaglobalização neo-liberal em que vivemos é o enfraqueci-mento e, no limite, a perda de solidariedade humana. É umatrajectória que vem de longe, mas que, nos nossos dias, seexprime por um individualismo exacerbado (o “salve-sequem puder”…) que conhecemos em tantas situações comincidência bem visível nas escolas e seu modo de funciona-mento, no trabalho, na política e na própria família.

Dir-se-ia que perdemos a memória dos laços profundosque nos unem aos outros seres humanos e a toda a criação enos fechamos num autismo esterilizante de que éemblemática a actual moda urbana do condomínio fechado.

As condições objectivas em que decorrem muitas vidasconcretas favorecem a insolidariedade. Refiro-me,nomeadamente, ao estilo de vida urbana, ao tempo gasto nostransportes, à precariedade do emprego, à insegurança, àsdificuldades de toda a ordem com que os mais jovensdeparam para poder traçar projectos e trajectórias de futuro.

Mas, será que os cristãos/as cristãs se vão deixar engolirpor esta corrente de individualismo e suas manifestações decompetitividade agressiva e extrema, se vão resignar a estavaga de materialismo grosseiro que identifica o desejo coma inflação da posse das coisas materiais, que confundedesenvolvimento com consumismo irresponsável, que colo-ca o lucro imediato do capital no centro da organização daseconomias?

Gostaria de poder responder pela negativa, pois a fideli-dade ao evangelho vai exactamente no sentido contrário aoda mundividência reinante.

O mandamento novo de Jesus é o do amor recíproco.“Dou-vos um mandamento novo: que vos ameis uns aos ou-tros, como eu vos amei” (Jo 13,34; Jo15,12) ou, então,noutra passagem, “Nisto conhecereis que sois meus discípu-los, se vos amardes uns aos outros” (Jo 13,35). Assim oentenderam as comunidades cristãs primitivas como nos dãotestemunho os Actos dos Apóstolos ou as Cartas de Paulo ede João.

Hoje, mais do que nunca, precisamos de gestos proféti-cos de ruptura explícita com algumas das ideias dominantes,precisamos de atitudes e empreendimentos que venham emreforço e aprofundamento da solidariedade – solidariedadecom aqueles e aquelas que nos são próximos (familiares eamigos, vizinhos, concidadãos) mas também com os povosmais distantes desta aldeia global onde uma globalizaçãofinanceira de cariz neoliberal vai engrossando as massas depobres e excluídos.

Há iniciativas interessantes que vão nesta linha e muitoscristãos estão envolvidos neles. Refiro, por exemplo, aslojas de comércio justo, os bancos de crédito para pobres, o

perdão da dívida externa dos países mais pobres, as lutas poracordos de comércio internacional com maior justiça para ospaíses em desenvolvimento ou as acções com vista a con-seguir alguma forma de governância democrática e de regu-lação à escala mundial.

d) A busca de maior igualdade e participaçãoOs cientistas sociais e os analistas políticos vêm

chamando a atenção para o progressivo agravamento dasdesigualdades na repartição da riqueza e do rendimento e doacesso ao bem-estar, tanto à escala mundial como no inte-rior dos vários países.

É uma situação que merece ser denunciada por ser injus-ta, por constituir um forte bloqueio a um desenvolvimentohumano sustentável a prazo e por ser uma ameaça para apaz. É que onde existe grande desigualdade acumulam-setensões e conflitos e, potencialmente, criam-se condiçõespara a violência e para a guerra.

As mulheres e os homens cristãos não podem ficar alhea-dos destas problemáticas já que o seu compromisso passapor levar o evangelho também a estes domínios.

À primeira vista, poderá parecer que se trata de questõesdemasiado distantes e complexas para motivar o empe-nhamento da generalidade dos cristãos. Sucede, porém, queos esforços para corrigir as desigualdades gritantes que hojeconhecemos começam à nossa porta ou talvez mesmo den-tro da nossa própria casa. Dou alguns exemplos: a igualdadeentre homens e mulheres no que se refere à partilha das tare-fas e responsabilidades domésticas, da educação dos filhos,do cuidado com os membros idosos, doentes ou deficientes;a igualdade de oportunidades na educação e na recuperaçãodos menos capazes, como preocupação assumida pelos edu-cadores cristãos; a igualdade na repartição do trabalho, nosníveis de remuneração praticados, nas relações laborais, nanão discriminação no trabalho em função do sexo, danacionalidade ou outros factores; a paridade entre mulherese homens na participação nos cargos políticos, na gover-nação, na representação, etc.

e) A superação da violência e a promoção de uma cul-tura de paz

Nesta exemplificação de áreas-chave onde a acção doscristãos se deverá fazer sentir de modo particular, não queroomitir a atenção que deverá merecer o empenhamento nocombate à violência e na prevenção das suas causas, noapoio às vítimas, na educação para a superação pacífica dosconflitos e para a construção da paz.

Nós, hoje, dispomos de muito maior informação acercada extensão e da complexidade do fenómeno da violência edas suas múltiplas manifestações. Levantaram-se os véusque, durante séculos, encobriram a violência doméstica, de-signadamente a violência física sobre as mulheres e sobre ascrianças. São assustadores os indicadores que nos dão a co-nhecer a extensão deste fenómeno no nosso País e nos reve-lam como ele abrange meios sociais diversos, não sendo

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apanágio, como até há pouco se julgava, dos meios sociaismenos favorecidos e de baixo nível de instrução.

Por outro lado, as estatísticas da criminalidade revelamigualmente um agravamento da delinquência e suasexpressões violentas, a exigir reflexão sobre as respectivascausas e a disponibilidade de meios de prevenção adequa-dos.

Nas periferias dos centros urbanos, a violência assumeproporções preocupantes a formação de gangs organizados eredes mafiosas que deles se aproveitam, o que constitui umaameaça ao estado de direito e à autoridade democrática.

Estes e outros exemplos deveriam merecer maioratenção por parte dos cristãos e suas comunidades e deve-riam, sobretudo levar a uma reflexão séria acerca das causasque estão na génese destes fenómenos.

Não será o nosso modelo de sociedade, demasiadamentecompetitivo e excluente que está gerando conflitualidade e,no limite, violência?

Não é a vida stressante de muitos pais e mães que estáprejudicando a atenção, o carinho e a compreensão devidosaos seus filhos e a favorecer comportamentos demasiadoagressivos e egoístas desde a mais tenra idade?

Não será uma televisão conduzida pela obsessão da con-corrência, que investe na violência, no sexo, no dinheirofácil dos concursos como meios de fixação das audiênciasque induzem ao desrespeito pelos valores mais básicos dadignidade humana?

Não serão os comportamentos demasiado ostensivos dosmais ricos e de certas classes dirigentes (carros de topo degama, iates, moradias luxuosas, viagens sumptuosas) quesuscitam aspirações de mais ter a qualquer preço?

Não será o dinheiro fácil da droga, do jogo ou da cor-rupção associados às dificuldades de encontrar empregoestável e remunerador que leva, sobretudo os mais jovens, aadoptarem comportamentos de violência?

Um relatório recente veio demonstrar que, entre nós, aviolência está ainda muito associada ao consumo de drogase de álcool e deu a saber que há cada vez mais jovens queprecocemente são apanhados nestas teias.

Estas situações são-nos próximas e familiares em algunscasos. Como enfrentá-las?

Não podemos igualmente silenciar a escalada de violên-cia a que se assiste à escala mundial: os milhões de refugia-dos que vivem precariamente nos campos, as vítimas dasguerras e dos atentados, o bilião e meio de pessoas quesofrem de pobreza extrema. São vozes que clamam porjustiça e paz!

A violência é uma realidade a que não podemos fechar osolhos, nem tão pouco ficar pela mera curiosidade dos factosconsiderando-os como inevitáveis. É uma problemática quetem de entrar nas nossas consciências, converter o nossoolhar, mobilizar as nossas energias, suscitar o nosso maiorempenhamento como cristãos. É que a busca da justiça e dapaz são dimensões intrínsecas da nossa fé em Jesus Cristo ena sua Palavra de Salvação.

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IGREJA E MUNDO

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As necessárias reformas da Igreja para um maior compromisso no mundo

Até agora falei dos desafios com que deparam as mulheres eos homens cristãos que querem ser coerentes com a sua féem Jesus Cristo e assumem a sua missão de anunciar o evan-gelho na sociedade a que pertencem.

Mas não basta ficar por esta perspectiva de uma meraresponsabilidade pessoal. É a Igreja no seu todo que tem deassumir também estes desafios, procurar responder-lhes comfidelidade ao Evangelho e bem assim formar os cristãos paraeles estarem à altura de viver a sua fé no meio do mundo,servindo as pessoas e as sociedades.

Ora, a Igreja católica enquanto corpo e instituição temtido dificuldade em dialogar com a cultura contemporânea eem estabelecer com as instituições socio-políticas o distan-ciamento necessário para as poder criticar tanto nas suasmanifestações como nos seus fundamentos. É certo queexiste um pensamento social católico que desde Leão XIIItem vindo a ser desenvolvido e a que o Papa João Paulo IIaliás dedicou particular atenção e empenho pessoal.Contudo, as comunidades cristãs e mesmo os seus pres-bíteros e animadores mais dedicados ignoram a DoutrinaSocial da Igreja (DSI) ou dela têm um conhecimentodemasiado vago. Raramente assistimos a um real empenhoem traduzir aquilo que são directrizes e linhas orientadorasda DSI para o quotidiano das situações em que se vive, acomeçar pelas próprias estruturas paroquiais e diocesanas eseus respectivos serviços.

A meu ver, é fundamental que nos planos de catequeseaos vários níveis, nos programas de formação de leigos, reli-giosos e seminaristas, se inclua um bom conhecimento daDSI e se ensine a fazer a sua aplicação às realidades concre-tas em que se vive.

Na relação da Igreja com o mundo, não basta a palavrapara anunciar o evangelho. A cultura contemporâneadesconfia dos argumentos de autoridade e exige razões decredibilidade. Estas passam por a Igreja se apresentar, defacto, como “serva e pobre”, para usar a expressão de YvesCongar, um teólogo eminente do Vaticano II.

As comunidades cristãs são a expressão visível destarealidade sempre que:

* sabem colocar-se, oportunamente, do lado das vítimas,dos mais fracos e empobrecidos, emprestando-lhes vez evoz, acolhendo-os e servindo-os com zelo em suas necessi-dades;

* criam novos ministérios de resposta às necessidadesque surgem no seu seio, suscitando soluções inovadoras, fra-ternas e solidárias;

* colocam os seus recursos, designadamente os espaçosde que dispõem, ao serviço da sociedade que deles carece ecooperam activamente e sem preconceitos com os projectosde desenvolvimento que solicitam a sua parceria;

* são capazes de celebrar a existência e fazer festa, eapontam caminhos de sentido de vida e de futuro, dando a

todos e nas linguagens que lhes são compreensíveis asrazões da sua esperança;

* estabelecem entre os seus membros (e também com aspessoas de fora) laços de solidariedade, de comunhão e deentreajuda fraterna onde brilha a luz do mandamento novodo amor recíproco.

O compromisso da Igreja com o mundo contemporâneoreclama reformas profundas também no interior da própriaIgreja. Sente-se mesmo um certo mal-estar em muitas comu-nidades cristãs relativamente ao modo como a Igreja estáorganizada, ao modo como se tomam decisões, à excessivaclericalização, à linguagem e ausência de diálogo interno ecom as novas realidades terrestres. Deste mal-estar dá contao abandono da prática dominical.

É neste contexto que são cada vez mais as vozes que, nointerior da Igreja Católica, reclamam um novo concílio parase debruçar sobre o futuro da Igreja. De entre as questõesque se deseja ver abordar no novo concílio, cabe destacar asseguintes:

* a efectiva desclericalização da Igreja, na linha aliás doConcílio Vaticano II, com reflexos nos processos de tomadade decisões, no plano do magistério e do governo;

* uma estrutura interna mais participativa e dialoganteonde os leigos assumam maior participação e responsabili-dade;

* uma maior formação teológica de todos os baptizados;* uma maior abertura da Igreja ao mundo e seus proble-

mas e maior compromisso com a justiça e a paz;* o reconhecimento de um são pluralismo intra-eclesial e

ecuménico;* uma Igreja realmente inclusiva, mais laical e aberta ao

feminino.

Novembro 2002

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CRÓNICA

No dia 30 de Outubro de2004 cheguei a Cuamba, a segunda cidade mais importante daprovíncia do Niassa, em Moçambique. Depois de um ano de for-mação no âmbito da organização não-governamental Leigos parao Desenvolvimento e depois de ouvir muitos relatos sobre a vidaem missão, finalmente ia poder vivê-la na primeira pessoa! Estavaà espera de um ano cheio de experiências diferentes e cheio denovidades… não estava enganada.

A missão que me foi confiada foi a de dar aulas de Portuguêsna escola pré-universitária à 12ª classe e a de ser directorapedagógica desta mesma escola. Mas rapidamente me apercebique não era só isso que me era pedido. É um pouco desta expe-riência que vou tentar transmitir...

Professora Clara É assim que me tratam na escola. Sim, real-mente é esta uma das minhas funções... a de ser professora dePortuguês da 12ªAe da 12ªB. Duas turmas da secção de Letras quetêm muita vontade de aprender e que lutam por saber mais, apesardas dificuldades na língua (uma vez que a língua materna, para amaioria, é o macua) e das dificuldades do acesso à informação (emCuamba existem duas bibliotecas, ambas da responsabilidade dosLeigos para o Desenvolvimento, mas continua a ser insuficiente,se considerarmos a quantidade de estudantes e as poucas possibi-lidades que têm). No início foi um grande desafio ensinar estesestudantes, pois a minha exigência ainda estava nivelada pelo ensi-no em Portugal. Conclusão: fim do primeiro trimestre, notas muitobaixas e alguma frustração... mas com algumas estratégias de recu-peração este problema foi ultrapassado.

O mais impressionante é que a maioria dos alunos, apesar detodas as dificuldades, não desistem e acreditam num futuro me-lhor. Agora continua a ser um desafio ensinar estes alunos, mas umbom desafio!

PedagógicaAlguns tratam-me desta forma... confesso que não gosto muitodeste “título”. Em compensação, gosto muito do trabalho a eleinerente. À partida é muito burocrático: trata-se de organizar o iní-cio do ano lectivo, fazer horários, preparar os conselhos de notas,organizar os exames, pensar em actividades extra-curriculares etratar de tudo o que se relaciona com os alunos e professores. Agrande luta é que estes últimos sintam que a escola também édeles, pois todos eles são moçambicanos e são eles que cá vão ficarquando nós nos formos embora. E “vacani vacani” (o mesmo édizer: aos poucos) lá vão colaborando. No entanto, também elesestão muito sobrecarregados, cá existe muita falta de professores,por isso têm de assegurar aulas na escola secundária, na nossaescola e, alguns, na universidade.

Mana Clara ou Mana Catequista Além do trabalho naescola tenho a pastoral, na paróquia de S. Miguel: dou catequesea um grupo de adolescentes que está no primeiro ano depreparação para o crisma e colaboro no chamado grupo dos“vocacionados”, rapazes e raparigas que querem ser padres efreiras. Em relação a este último, tenho muitas dúvidas: aqui noNiassa ser padre ou freira ainda traz algum estatuto e condiçõesde vida melhores do que aquelas em que estas pessoas vivem.Assim, ainda há um grande trabalho a fazer no sentido de ajudarestes jovens a perceber o que realmente querem... Estarão eles nogrupo por vocação?

Também sou a mana Clara para as crianças que nos batem àporta todos os dias a pedir para fazer desenhos, apanhar manga oumaçanica.

Clara No fundo, mais do que professora, pedagógica, mana oucatequista eu sou a Clara. E sou a Clara especialmente na minhacomunidade: as duas Anas, a Paula, a Inês e a Isabel. É com elasque, depois de um dia cheio de actividades, encontro espaço parapartilhar as minhas alegrias, as minhas frustrações, as minhas tris-tezas e as minhas descobertas. Também com elas tenho aprendidoe crescido muito.

Enfim, este tem sido um ano em que tenho recebido muito daminha comunidade, dos alunos, dos colegas professores e dos ou-tros missionários.

Se me perguntassem o que é partir em missão responderia queé aceitar um desafio que Deus nos coloca. O que implica aceitarmudar, aceitar receber o que os outros têm para nos dar... aceitarcrescer! v

Partir em missão,aceitar crescer

Clara Litovoluntária dos Leigos para o Desenvolvimento em Cuamba (Niassa, Moçambique)

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CRÓNICA

Só espero que as saudades daqueles olhares, daquelas épicas refeições,

dos abraços tão quentes, dos sorrisos, enfim, daquilo que me deu

cada uma daquelas crianças o outro prato da balança, sejam o despertador

que me faça acordar cada dia e recordar que os sonhos se podem fazer realidade...

Poderemos fazer parte dela?

SaudadesDavid Marques Litovoluntário da Nutrehogar no Panamá

Quase no final do meucurso de Medicina, decidi que havia uma experiência que queriaviver. Este momento, concretamente as férias de Verão que faziama ponte do quinto para o sexto ano, apresentava-se talvez como aderradeira oportunidade para uma experiência deste tipo: um inter-cambio clínico (uma espécie de estágio) num país menos desen-volvido que qualquer país europeu. O destino que me calhou, maisou menos por sorte, foi o Panamá.

Deste, pouco sabia a não ser que tinha um canal – o célebreCanal do Panamá construído já no século XX.

Como qualquer bom turista, estava decidido a conhecer oPanamá como a palma da minha mão (além do ambiente hospita-lar, claro). Comecei a pesquisa na internet para ver o que encon-trava. Mas como este meio de pesquisa, tão eficaz, é um poço semfundo, decidi também investigar se existiria alguma ONG de apoiohumanitário no ramo da saúde (sou particularmente sensível ao tra-balho deste tipo de organizações e tinha vontade de conhecer deperto alguma, que operasse por aquelas bandas). E, encontrei uma:Nutrehogar (www.nutrehogar.org).

Reli agora o meu diário e transcrevo o mais significativo dasmúltiplas vivências que, ao longo da minha estadia, fui partilhan-do, via correio electrónico, com amigos e familiares:

Panamá, 4 de Agosto de 2005“... A Nutrehogar é uma ONG criada em 1988, por Rómulo

Emiliani, um padre católico do Panamá, que se dedicou à pre-venção e tratamento da desnutrição infantil.

Segundo estatística desta organização: - Uma de cada três crianças pobres está desnutrida- Mais de metade das crianças indígenas estão desnutridas- Os níveis de desnutrição oscilam entre os 0 e os 72% em San

Blás (uma das províncias do Panamá).Esta ONG, pela sua boa gestão e visão de futuro, tem dado fru-

tos palpáveis, caminha, não só para eliminar os malefícios dadesnutrição, como também para possibilitar às populações for-mação e informação no sentido de evitá-la!

Contam com três tipos de centros nutricionais:- os mais pequenos são aqueles em que voluntários distribuem

bolachas nutricionais para todas as crianças e grávidas.- os intermédios são centros multifacetados que contam não só

com um refeitório que serve duas refeições caloricamente equili-bradas por dia, como também formação em costura para as mu-lheres, e formação agrícola e de criação de animais aos homens.

Todas estas actividades visam fazer desses centros instalaçõesindependentes e supervisionadas pela comissão nacional daNutrehogar. Assim, as peças confeccionadas pelas mulheres, sãovendidas para obtenção de fundos; os animais e vegetais obtidospelo trabalho dos homens é aplicado numa nutrição equilibrada evenda dos excedentes.

Também nestes centros existe uma pequena unidade de esti-mulação precoce, que é importante para o desenvolvimento dascrianças/bebés!

- os maiores são centros de reabilitação nutricional querecebem crianças entre os 0 e os 5 anos com desnutrição severa econtam com pediatras voluntários, enfermagem, nutricionistas, etc.

Além da prestação de serviços correspondentes a cada grupoprofissional também há um serviço de estimulação precoce. (...)

Não sabem o quão bem fui recebido por todos os que lá tra-balham. O pediatra que lá estava no momento a fazer voluntaria-do, como sabia que eu era estudante de Medicina, fez-me umaintrodução clínico-prática, logo ali, sobre a desnutrição e os méto-dos de avaliação e renutrição (foi mesmo simpático!).

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A nutricionista fez-me uma visita guiada pela parte do inter-namento e pôs-me logo a trabalhar (estive a apoiar nos almoçosdos meninos que, por serem tão pequenos, necessitam de umaajuda para lhes enfiar umas colheradas na boca – crianças comfome não só de comida, mas também de afecto e estimulação, lin-dos!). Realmente, pode-se ser eficiente se há vontade. O principalflagelo é a falta dela (da vontade)!

Bom... “converti-me”! Foi apenas uma hora mas a falta depessoal e o muito trabalho que há para fazer contaram com maisum voluntário... Mas só uma hora? Não podia ser... Não preciseide reflectir muito para chegar à conclusão de que o meu lugar éali. No hospital, tudo o que tenho aprendido é patologia que tam-bém existe na Europa (salvo raras excepções), e aquilo que medeixam fazer não varia muito do que me deixam fazer (em termosde procedimentos) em Espanha ou em Portugal. Felizmente, nãoexistem centros de desnutrição em Portugal nem na Europa peloque a experiência que posso obter neste centro do Panamá serámuito mais importante que a hospitalar. (...)

Deixo o hospital na semana que vem, e entro a tempo inteirona Nutrehogar, onde estarei nas próximas duas semanas. Comisto, espero alimentar muito bem também a minha consciência (enão só a barriga dos meninos) de que ainda há muita pobreza nomundo e que está ao nosso alcance fazer-nos mais pobres,humildemente, para que outros, que têm menos que nós, tenhamiguais oportunidades.

Gostaria de reforçar a ideia de que esta não é uma organiza-ção que deixa a “papinha” aos pobres, mas participa activamenteno seu desenvolvimento, no sentido da sua autonomia e melhoriadas condições de vida. Por isso faz-me ainda mais sentido parti-cipar nela... quem sabe como experiência prévia a uma outraacção quando já esteja formado! (...)

Desde a minha chegada talvez tenha sido o dia mais impor-tante. Por isso sinto-me contente: sei que há Alguém que me dáuma oportunidade de crescer um pouco mais...”

14 de Agosto de 2005“... Não imaginam como fui bem recebido no primeiro dia de

voluntariado na Nutrehogar! Tem sido uma experiência realmentegratificante. Quando escrevi sobre esta associação, a minha irmãrespondeu-me e, entre outras palavras que me deixou, escreveu oseguinte: “Dá-te muito a essas crianças! Tenho a certeza que vaisreceber muuuiiito mais!” E, não podia ser mais verdade: trata-sede crianças desnutridas, é certo! Mas não só desnutridas de ali-mentos... também desnutridas de afectos, de carinho, em suma, deamor! (...)

Além disso, sendo a desnutrição uma forma de maltrato, estesmeninos entre os 0 e os 5 anos vêm marcados por uma históriapessoal muito sofrida. Além dos desnutridos há ainda “casos soci-ais” como três meninos com paralisia cerebral cujos pais os aban-donaram e que são residentes fixos – até melhor solução!

O trabalho é sempre muito. Pela minha parte, reparto-me nasmúltiplas funções dos auxiliares e educadoras, tomando contadeles, levando-os ao parque, indo às consultas pediátricas, defisioterapia, terapia da fala, terapia ocupacional, dando de comer,vestindo, dando banhos, etc.

Apesar de ser uma das associações mais abonadas doPanamá, contando com muitos apoios públicos e privados, fazemfalta muitas coisas: o mais curioso é que nem todos podem tertodos os dias fraldas de papel pelo que lhes pomos fraldas de pano.

Cada minuto com eles é um presente que me sinto receber.Mas, sem dúvida o melhor presente durou cerca de 2 horas quan-do consegui que dois bebés dormissem a sesta nos meus braçosdepois de me terem convencido (com o seu choro) a resgatá-losdas suas camas de grades, que se encontram junto a outras dez...Claro que eu também passei pelas brasas... Todo um presente,toda uma experiência! (...)

Por fim, escrevi um resumo daquilo que senti/vivi naNutrehogar e que serviu para registar no meu diário, mas tambémpara oferecer a todos os que me proporcionaram esta experiência.

20 de Agosto de 2005: “Entrei na Nutrehogar e encontrei aquilo que já imaginava:

meninos barrigudos pela desnutrição. Descobri que cada uma das barrigas está cheia de muitos sen-

timentos tristes: solidão, abandono, carência de carinho, de amor,de afecto. O mais curioso é que não é preciso ser médico parasabê-lo: apenas olhar e escutar os olhos de cada uma das criançasque por ali deambulam e, se tocarmos as barrigas, conseguimossentir a história do sofrimento de cada uma delas...

Não foi preciso muito tempo para perceber também que ali serealiza uma grande obra que pode fazer, e faz realmente, a dife-rença: na Nutrehogar alimentam-se as crianças... mas, como“nem só de pão vive o homem”, nesta instituição conseguem-seesvaziar as barriguitas da solidão e abandono e enchê-las commuito amor e carinho... Por isso, não faz falta dinheiro, apenas umolhar, um abraço, um beijinho.

Obrigado Nutrehogar por me ensinarem estas coisas.”

Talvez, depois de tudo isto, com a distância dita “terapêutica”de dois meses, fiquem algumas perguntas no ar...

Ante o sofrimento daqueles que estão à distância de um ecrãde televisão (sim, normalmente vemo-lo na televisão, não é sufi-cientemente próximo?) confundimos o filme do canal acima ouabaixo do nosso zapping compulsivo e esquecemos que há pessoasque vivem mesmo mal.

Tenho reflectido (e lido) bastante acerca disto e chego à con-clusão que este olvido geral não é mais que um processo fisio-lógico inerente ao ser humano, que lhe permite manter a homeos-tase dos seus sentimentos e continuar a sonhar.

Os fotogramas gravados na minha retina lembram-me aquelassequelas da desnutrição e evocam o sofrimento vivido por umterço das crianças pobres do Panamá.

Só espero que as SAUDADES daqueles olhares, daquelas épi-cas refeições, dos abraços tão quentes, dos sorrisos, enfim, daqui-lo que me deu cada uma daquelas crianças, sejam o despertadorque me faça acordar cada dia e recordar que os sonhos se podemfazer realidade... poderemos fazer parte dela?

Outubro de 2005

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MISSÃO COM A NUTREHOGAR

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BÍBLIA

O Espírito Santo esconde-se dentro de nós, nas nossas próprias experiências

e fala-nos na nossa própria língua, numa linguagem familiar, todos os dias,

e não na linguagem dos anjos. O Espírito Santo fala-nos na nossa linguagem

própria, a língua da nossa cultura, das nossas experiências quotidianas.

O Espírito Santoesconde-se dentro de nós»» Ana Nunes »» apontamentos e tradução livre, a partir da reflexão bíblica do irmão Rob, de Taizé, em 23 de Agosto de 2005, na manhã do funeral do Irmão Roger,

no decurso normal do programa de mais uma semana.

(Tema de reflexão da semana: Actos dos Apóstolos; temado dia: o Pentecostes; leitura: Act. 2, 1 – 14)

OPentecostes foi o maior acontecimento dahistória da Igreja. O Pentecostes é como um“hall” de entrada para Deus. Um portal queencontramos na história de Cristo. A chega-da do dia de Pentecostes é como que umcompletar de algo há muito iniciado. Em

grego, este dia não era considerado acidental, mas o princí-pio de algo muito decisivo. O Pentecostes é como um com-pletar de tudo o que já acontecera. Como um acorde final deuma sinfonia de Beethoven que ainda se continua a ouvir.

No Pentecostes surgem línguas de fogo sobre osApóstolos. De algum modo, faz lembrar o que aconteceu noMonte Sinai, quando Deus dá os dez mandamentos. Mas nomonte Sinai há sinais de violência (Ex 19 e 20). OPentecostes é qualquer coisa muito nova. Temos uma novaespécie de sinais. Sinais interiores. No Sinai, enquanto sãodados os dez mandamentos, há trovões, chamas, retinir detrombeta e o monte fumegante. Mas no Pentecostes, é oEspírito Santo que desce sobre os Apóstolos. Os manda-mentos eram exteriores, escritos em pedra; mas agora é oEspírito Santo que os realiza no interior dos homens, é oAmor de Deus.

Nunca mais serão mandamentos impostos de fora. AliásJeremias já tinha anunciado isso em Jer. 31, 31 – 33:

“Imprimirei a Minha lei, gravá-la-ei nos vossos corações”.Os Apóstolos consciencializaram que a lei de Deus é a

lei do Espírito Santo. Não é uma lei do exterior, mas oEspírito de Deus que se torna a fonte da nossa acção. Act. 2,4 “Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram afalar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava quese exprimissem.” O Espírito Santo manifesta-se em algoconcreto: o falar de diferentes línguas.

Lembremo-nos da história da torre de Babel. Os homensqueriam chegar a Deus pelos seus próprios meios. Isto é umailusão. Não podemos chegar a Deus pela nossa força. O pro-jecto de Deus é diferente: pelo Espírito Santo é Deus quenos atinge, que vem a nós. É um movimento de cima parabaixo. Deus vem para nós e não somos nós que vamos paraEle.

Quando a multidão ouviu aquele som poderoso, “umsom comparável ao de forte rajada de vento”, ficou junta eestupefacta, pois cada pessoa ouvia os Apóstolos falar nasua própria língua (Act. 2, 5 – 11). Não é certo que falassem,cada um, diferentes línguas. Aquando da Torre de Babel, aspessoas falavam uma mesma língua e depois deixaram de seentender. Os Apóstolos, agora com o Espírito Santo,falavam diferentes línguas e as pessoas ouviam-nos na suaprópria língua.

Qual o significado disto? Em primeiro lugar: Deus amaa diversidade. Esquecer isso é não perceber o versículo 11:“judeus, prosélitos, cretenses e árabes ouvíamo-los anunciar

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nas nossas línguas as maravilhas de Deus”. Ouviam falarnas suas próprias línguas as maravilhas de Deus. Ou seja: alíngua do louvor a Deus.

Algo de semelhante é relatado no início do Evangelho deS. Lucas, quando o anjo anuncia a Maria que há-de conce-ber Jesus: “O Espírito Santo virá sobre ti...” (Lc. 1, 35) – éo Pentecostes de Maria. E quando, posteriormente, Mariavisita santa Isabel, brota-lhe o hino Magnificat. É umaoração inspirada pelo Espírito Santo. Não é uma oração depedidos, é de louvor pelas maravilhas de Deus.

Acontece o mesmo com os discípulos. As suas palavrassão de agradecimento pelas graças de Deus.

Act. 2, 12: “Estavam todos assombrados...” O espantosignifica mais do que as palavras podem dizer. Muitas vezesa nossa expressão de admiração fala mais do que as própriaspalavras e é essa expressão de admiração que toca oscorações dos nossos amigos tornando-os curiosos e interes-sados sobre o que nos impressiona, seja um livro, um filme,ou outra vivência. Esta é a primeira acção do Espírito Santo:o espanto, o louvor pelas maravilhas de Deus.

A segunda acção vemo-la no versículo 14. Pedro falapara a multidão em voz alta. Isto é uma completa novidade,pois, anteriormente, ele, com os outros, estava cheio demedo. Levantou-se pela primeira vez do seu medo. Os dis-cípulos, naquela altura, corriam o risco de se tornarem umgrupo pequeno e fechado de Jesus Cristo. Mas, com oEspírito Santo, vemos que o seu medo desapareceu.

Reconhecemos a acção do Espírito Santo na nossa vidae na dos outros quando o medo desaparece e o nosso coraçãofica aberto para o amor dos outros. Desaparece o medo maisprofundo da existência, por exemplo, o de sermos julgadose desprezados, não amados, pelos outros.

Os discípulos mudaram mesmo e, contudo, nãomudaram de identidade. Mudaram, ficando eles mesmos.Act. 4, 13 “Ao verem o desassombro de Pedro e de João epercebendo que eram homens iletrados e plebeus, ficaramespantados.” As autoridades queriam saber mais sobreCristo e quando os viram ficaram espantados com a sua co-ragem e admirados porque Pedro e João eram muito incultose com certeza dificilmente esconderiam o que eram. Erampescadores da Galileia nos seus actos. Mudaram, sendo osmesmos.

Isto diz-nos algo de importante para a acção do EspíritoSanto na nossa vida. O Espírito Santo esconde-se dentro denós, nas nossas próprias experiências e fala-nos na nossaprópria língua, numa linguagem familiar, todos os dias, enão na linguagem dos anjos. O Espírito Santo fala-nos nanossa linguagem própria, a língua da nossa cultura, das nos-sas experiências quotidianas. Toma a nossa vida e o nossocarácter como são e atravessa-os. É como um sopro quepassa por tudo. É como um passageiro clandestino que seesconde dentro de nós. Sopra através das nossas vidas. Nãotem cara. Nunca diz Eu. Mas esconde-se atrás de nós.

No Salmo 1, versículo 3, os crentes são comparados àsárvores que se plantam à beira da água e que dão fruto. O

problema é quando somos macieiras e queremos dar laran-jas. A água não muda uma laranjeira em macieira, mas ali-menta as duas. O Espírito Santo é como a corrente da águaque nos alimenta e faz dar fruto verdadeiro de nós. Mas nãonos substitui.

Não nos muda noutras pessoas, ou a identidade, mastorna-nos férteis.

Podemos sentir que é o próprio Espírito Santo que fruti-fica. Ele pode trabalhar uma pequena crença, uma pequenafé. Pode trabalhar uma pequena possibilidade. Às vezespode parecer-nos confuso que Deus não nos mude ou quenão nos retire certos defeitos. O Espírito Santo não só podecoexistir com a nossa fraqueza, como a trabalha. v

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ESPÍRITO SANTO

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PROFISSÃO DE FÉ

CredoJoan Chittister

in “Ce que je crois”, Editions Bellarmin, 2002

(edição francesa de “In Search of Belief”, Publications Liguori, Mo., USA);

tradução de Maria de Carvalho Torres

Creio em um só Deusque nos criou a todas e a todose cuja divindade impregna toda a vidade sagrado.

Creio nas múltiplas revelaçõesdeste Deusque vive em cada coração humano, que se exprime em todas as culturase se encontra em todas as sabedorias do mundo.

Creio que Jesus Cristo,o filho único de Deus,é o rosto de Deusna Terraem quem podemos ver melhora justiça divinaa misericórdia divinaa compaixão divinaà qual somos chamados.

Creio em Cristo que é um com o Criador,que nos mostra a presença de Deusem tudo o que existe e desperta em nós o sagrado.

Creio em Jesus, o Cristoque nos conduz à plenitudeda estatura humana, à qual fomos chamadosantes do começo da Históriae por que todas as outras coisas foram feitas.

Por Cristotornamo-nos seres novoschamados a ultrapassar os limitesdo nosso ser imperfeitoe elevados à plenitude da vida.

Pelo poder do Espírito Santonasceu da Virgem Maria,alma purae coração íntegro –sinal para as gerações vindourasdo lugar eminente da feminilidade no desígnio de Deus para a salvação da humanidade.

Cresceu como nós crescemos conheceu as idades da vida.Viveu como nós vivemos, sujeito às pressões do male centrado no bem.Ele não rompeu com o mundoao qual estava ligadoNão pecou.Nunca se afastou do pensamento de Deus.Indicou-nos a Via, viveu-a por nóssofreu-a morreu por elapara que pudéssemos vivercom um coração novo,segundo uma mentalidade novae com uma força nova

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apesar de todas as mortesa que somos sujeitos todos os dias.Por nossa causa e da verdade eterna, foi perseguido,atormentadoe executadopor aquelesque eram os seus próprios deusese não respeitavam o sagradoem ninguém.

Ele sofreu para que pudéssemos compreenderque o espírito em nósnão pode ser mortoqualquer que seja o preço que tenhamos de pagarpara permanecer fiéis ao espírito de Deus.

Morreumas não está mortoporque vive em nós ainda hoje.

“Ao terceiro dia”, no sepulcro,Ele ressuscitounaqueles que deixava atrás de sie também em cada um e cada uma de nóspara viver nos corações que não hão-de sucumbirperante os inimigos da vida.

Ele mudou a vida todapara todas e para todos nós, daí em diante.

Subiu à vida de Deuse aí espera a nossa própria ascensãoà vida para além da vida.

Ele aí espera julga o que foie o que serásegundo os seus valores e, em nome da virtude eterna,para o tempo em que toda a vidaserá reunida em Deus, plenitude de vida e de luz,fundada na verdade.

Creio no Espírito SantoO sopro de Deus sobre a Terraque sem cessar propõe a visão de Cristoàs almas ainda nas trevas,que dá a vidamesmo aos corações ainda cegos.

Ele infunde a energiaaos espíritos ainda toscos, isoladosà procura e confusos.

O Espírito falouao coração humanopelos profetasE dá um sentido novoà Palavraatravés da História.

Creio na Igreja unasanta e universal.Cimentada pela santidade da criaçãoe pela santidade dos corações para sempre fiéis.

Reconheço a necessidadede ser libertada dos constrangimentos da minha vida agitadae de receber o perdãopor causa da minha fraqueza.

Procuro a vida eternasob formas que nem sonhoe tenho a convicçãode que a criação continua a criarneste mundoe em nóspara sempre.

Ámen.

Ámen à criação, ao Deus que é vida, à coragem; à espe-rança, ao espírito de verdade, à natureza, à felicidade, à inte-gridade, ao lugar das mulheres no plano de Deus, a Cristo quenos chama a ultrapassar os nossos limites, ao perdão, a tudo oque faz da vida o primeiro passo na expansão do nossocoração nas dimensões de Deus.

Ámen. Ámen. Ámen. Podemos com certeza acreditar emtudo isto.

Tal como Deus fez. v

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CREDO

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CRÓNICA

Sim, eu só poderia estar em Taizé durante as exéquias do irmão Roger.

Tinha que estar presente, agradecendo a sua contínua iluminação do Amor

incondicional de Deus e da certeza de que o Espírito de Cristo Ressuscitado,

o Espírito Santo, ora permanentemente nos corações de todos os homens.

Agradecendo o apelo à reconciliação dos cristãos e à simplificação das nossas vidas,

com vista a uma partilha dos nossos bens e dos nossos dons únicos.

Uma iluminação do amorincondicional de Deus»» Ana Nunes

Vou a Taizé, ao funeral do irmão Roger.”Este impulso invadiu-me de forma concretae inamovível, de mão dada com a luminosaconsciência do quanto a minha vida rece-bera do fundador da Comunidade de Taizée da sua mensagem, mal soube da sua ines-

perada e violenta morte em 16 de Agosto.Fui educada catolicamente desde a infância, prosseguin-

do o meu crescimento pela catequese e por um grupo juve-nil paroquial no qual a minha fé amadureceu, sem grandessobressaltos. Casei e, como o meu marido fizera o mesmopercurso, na nova paróquia fomos chamados a orientar umgrupo juvenil em tudo semelhante àquele em quecrescêramos. Deus era uma certeza, um apoio, um Pai, atransmitir. Há muito que deixara de o ver como um Deuscastigador, como o sentira na infância, mas era, ainda, umser distante. Amava-nos, claro, mas sentia principalmente asua omnipotência, a sua força.

Em 1995, a vida tranquila que levávamos terminousubitamente com a morte do meu marido. Não me zangueicom Deus, e até sentia que Ele me acompanhava em tudo,enquanto eu me ocupava a procurar um sentido para o quevivia. Mas Deus não era propriamente sentido como um serde Amor. Lembro bem a resposta amarga que dei a umamigo, padre, ao preocupar-se em me lembrar que eu deve-ria confiar sempre em Deus: “Claro! E que mais resta? Qualé a alternativa?!” Portanto, era Deus porque sim, porque não

havia mais nada. Desesperadamente.Então, em 1998, soube da organização, numa paróquia

próxima, de uma ida a Taizé (nome que acordava em mimvagos relatos quase míticos, lidos na minha juventude, sobreum local de oração, alegria e paz) e senti que eu não podiadeixar de ir.

E foi o ponto de viragem. Só naquela semana, em Taizé,nas belíssimas orações cantadas três vezes ao dia, contendoo essencial da nossa fé, a fonte, e também nas reflexõesbíblicas e nos momentos de partilha com pessoas de dife-rentes nacionalidades e vivências, é que senti, verdadeira-mente, que Deus é, acima de tudo, Amor. Que podemosperder tudo, mas teremos sempre o Seu Amor. Que está sem-pre ao nosso lado, façamos nós o que fizermos, sempre aoferecer o seu Amor e, até, sofrendo connosco nos momen-tos de provação. Também senti profundamente que Deusnunca nos castiga, nunca é o autor do mal que nos atinge.Ele só pode amar.

Pela primeira vez, eu sentia tudo isto de dentro, no maisíntimo de mim, como um fulgurante raio de luz a inundar--me por completo. Esta interiorização veio a revelar-se ilu-minação e conforto permanentes nos difíceis anos que seseguiram, marcados pela progressiva degradação mental efísica dos meus pais e de uma tia.

No Verão de 2004, tive de novo a possibilidade de viverem Taizé uma semana em comunidade. E tudo o que ali vivifoi um completar de uma caminhada de reconstrução inicia-

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da, nesse ano, a partir de uma vivência marcante, da qualvinha ressuscitando, precisamente, após o encontro inespe-rado com um dos livros do irmão Roger: O Seu Amor É UmFogo.

Sim, eu só poderia estar em Taizé durante as exéquias doirmão Roger. Tinha que estar presente, agradecendo a suacontínua iluminação do Amor incondicional de Deus e dacerteza de que o Espírito de Cristo Ressuscitado, o EspíritoSanto, ora permanentemente nos corações de todos os homens.Agradecendo o apelo à reconciliação dos cristãos e à sim-plificação das nossas vidas, com vista a uma partilha dosnossos bens e dos nossos dons únicos.

Do indizível que lá vivi nos dias 22 e 23 de Agosto,muito pouco posso transmitir.

A paz visível em todos os rostos e quase tocável, naIgreja da Reconciliação, na santa serenidade desprendida docorpo do irmão Roger, repousando em singela brancura devestes e mortalha, enquadrado pela luminosidade suave,alaranjada, de múltiplas flamas, destacando-se, à sua cabe-ceira, alegres girassóis, uma grande vela branca e uma belaimagem do ícone de Cristo abraçando S. Ménas, símbolo daamizade de Cristo e da amizade em geral.

O ambiente cantante de oração penetrando-nos oscorações e as almas de esperança e confiança e exprimindoo nosso louvor por uma tal vida, tão entregue à transmissãoda Boa Nova.

A permanente tranquilidade dos irmãos assegurando acontinuidade do programa semanal.

A simplicidade, a beleza genuína, o essencial, na missado funeral. O cântico inicial Dieu ne peut que donner sonamour, notre Dieu est tendresse (“Deus só pode dar o SeuAmor, o nosso Deus é ternura.”). A abertura do irmão Aloïsrelembrando as palavras do irmão Roger: “Deus está unidoa todos os seres humanos, sem excepção (…) O irmão Rogervoltava constantemente a este valor do Evangelho que é abondade do coração. Não é uma palavra vazia, mas umaforça capaz de transformar o mundo, porque Deus trabalhaatravés dela. Em face do mal, a bondade do coração é umarealidade vulnerável. Mas a vida de entrega do irmão Rogeré um sinal de que a paz de Deus terá para cada homem ecada mulher a última palavra sobre a nossa terra. Uma vezque o irmão Roger não desejava que se pronunciassemmuitas palavras nas igrejas, gostava de terminar com umaoração: Deus de bondade, nós confiamos ao teu perdãoLumini?a Solcan que, num acto doente, pôs fim à vida donosso irmão Roger. Com Cristo sobre a cruz, dizemos-te:perdoa-lhe, Pai, porque ela não sabe o que fez.”

A chuva, como que o pranto de Deus e dos anjos, em dorpelo Seu amigo, como cantámos na missa, no salmo 116 – “Édolorosa aos olhos do Senhor a morte dos Seus amigos” –caindo toda a manhã, interrompendo-se apenas durante amissa – havia milhares de pessoas ao ar livre – e prosseguindodurante todo o dia. Chuva fecundante, que germine nas nossasvidas, em obras reveladoras da mensagem do irmão Roger.

O cortejo dos irmãos carregando a urna em madeira sim-

ples, unicamente adornada com a imagem do ícone de Cristocom o seu amigo Ménas. Vultos brancos sob a chuva,frágeis, sós, por entre a multidão, em direcção ao humildecemitério da pequenina aldeia de Taizé, na França interior eprofunda.

A urna depositada na campa aberta, possibilitando,depois, que cada um, silenciosa e pungentemente, asper-gisse, sobre ela, água benta, num último adeus ao que évisível, inscrevendo no seu coração a Amizade de Cristo.

As palavras do irmão Rob, no final da reflexão bíblica damanhã do dia 23, recordando uma das mais significativasmensagens de pêsames recebidas, da Comunidade daGrande Chartreuse (Cartuxa, mosteiro de contemplação):“As circunstâncias dramáticas da morte do irmão Roger sãomeramente exteriores, mostram claramente a grande vulne-rabilidade do irmão Roger pela qual de preferência Deuspode entrar em nós, a qual o irmão Roger sempre valorizou,como uma janela de entrada para Deus.”

A minha oração constante de agradecimento, pessoal eem nome de todos os que levei no coração, e de pedido peloapoio do irmão Roger na nossa necessidade contínua deabertura ao Amor do Senhor, principalmente partindo dasnossas fragilidades.

1 de Setembro de 2005

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UMA ILUMINAÇÃO DO AMOR INCONDICIONAL DE DEUS

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SINAIS

Comércio Justo(in “Transformar”, Julho/Setembro 2005)

Há milhões de pessoas que vivem na mais estri-ta pobreza. Trabalham nos campos, produzem– mas não sobrevivem. São esmagadas pelalógica do lucro dos países ricos do Norte quesubsidiam escandalosamente os seus agricul-tores, o seu comércio, as suas marcas. Ao con-trário do que se poderia imaginar, os pobres dosul não precisam de caridade mas de justiça erespeito. A ideia do comércio justo assenta pre-cisamente na defesa da dignidade da pessoahumana.

(...) Instituições reguladoras como aOrganização Mundial do Comércio, o FundoMonetário Internacional, o Banco Mundial,têm defendido sempre, como solução para estedrama, a aposta em políticas liberalizadoraspara a economia dos países pobres. Com isso,pretende-se a abertura dos mercados, a reno-vação de barreiras alfandegárias e a privatiza-ção de serviços.

Mas... falsa abertura dos mercados:Em muitos países onde o drama da fome

tem uma expressão mais visível, como é o casode África, esta liberalização conduziria, muitoprovavelmente, ao agravamento do problema.A questão explica-se quase num parágrafo:como seria possível, aos países pobres, compe-tirem num mercado livre e aberto se a sua agri-cultura, por exemplo, não é subsidiada? Apolítica Agrícola Comum, que representa cercade 40% do orçamento comunitário europeu,favorece um grupo restrito de países, de que sedestaca a França.

É muito difícil que um pobre agricultor doSul, que viva no sudeste asiático, em África ouna América Latina, consiga competir com aqui-lo que é produzido em França. Liberalizando aseconomias, os países pobres teriam que abrir osseus mercados aos produtos mas baratos (sub-sidiados) vindos do estrangeiro, não tendoqualquer hipótese de competirem com eles empé de igualdade. Com a liberalização que foiproposta, os países ricos teriam ainda mercadosmais largos para a expansão dos seus produtos– e os agricultores dos países pobres veriamainda mais acentuada a incapacidade de sobre-vivência. Mais de 80% das exportações mundi-ais são produzidas por apenas uma dezena denações.

Movimento ComércioJusto

A alternativa a este drama foi esboçada já nosanos sessenta, mas o resultado ainda é algoinsípido.

O Movimento Comércio Justo, que nasceupor ocasião da 1ª conferência da ONU sobreComércio e Desenvolvimento (Genebra, 1964)tem procurado lutar em três frentes: extinguin-do a política dos subsídios na agricultura; con-tribuindo para maior acessibilidade dos produ-tos dos países pobres ao mercado internacional,e criando uma rede de parcerias entre os produ-tores das países desfavorecidos do Sul doGlobo e as Organizações Não Governamentaisque assegurem redes de distribuição para oescoamento dos produtos em lojas especia-lizadas. A isto chama-se “Comércio Justo”.

Afirma-se o valor ético desses produtos,que significam também uma mais-valia em ter-mos ecológicos.

Já existem cerca de 3000 lojas destas em18 países europeus. Em Portugal há 11 associa-ções dedicadas ao Comércio Justo, em cerca de10 lojas.

Em Lisboa:“Mercearia do Mundo”, a 10ª a abrir as

portas em Portugal, na Rua de S. José, nº17. O“Quiosque do Mundo” fica junto da Igreja doCampo Grande.

Paraíso, XXXI,108

(Jorge Luis Borges, in “Poemas escolhidos”, ed.Publicações Dom Quixote, 2003; tradução deRuy Belo)

Deodoro Sículo refere a história de um deusdespedaçado e disperso; quem, ao andar pelocrepúsculo ou ao traçar uma data do seu passa-do, não sentiu alguma vez que se perdera umacoisa infinita?Os homens perderam uma cara, uma carairrecuperável, e todos queriam ser aquele pere-grino (sonhado no empíreo, sob a Rosa) que emRoma vê o sudário da Verónica e murmura comfé: Jesus Cristo, meu Deus, Deus verdadeiro,era esta, afinal, a tua cara?Encontra-se num caminho uma cara de pedra euma inscrição que diz: O verdadeiro Retrato daSanta Cara do Deus de Jaén; se realmentesoubéssemos como foi, seria nossa a chave dasparábolas e saberíamos se o filho do carpinteirofoi também o filho de Deus.Paulo viu-o na forma de uma luz que o der-rubou; João, como o sol quando resplandece nasua força; Teresa de Jesus, muitas vezes, ba-nhado em luz tranquila e nunca conseguiu pre-cisar a cor dos olhos. Perdemos esses traços, como se pode perder umnúmero mágico, feito de cifras habituais; comose perde para sempre uma imagem no calei-doscópio. Podemos vê-los e ignorá-los. O perfilde um judeu no subterrâneo é talvez o de Cristo;as mãos que nos dão umas moedas a um posti-go talvez repitam aquelas que uns soldados, umdia, cravaram na cruz. Talvez um traço da cara crucificada assome emcada espelho; talvez a cara tenha morrido, setenha desvanecido, para que deus seja todos.Quem sabe se esta noite não a veremos noslabirintos do sonho e não o venhamos a saberamanhã. v

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SINAIS

A experiência de Deus

(resumo de “L’ Expérience de Dieu”, RaimonPanikkar, pág. 148 e ss.)

Este comentário vai incidir na experiência sub-jacente aos caminhos dos que querem avançarno sentido da abertura à experiência de Deuspelo caminho do amor: o desejo do coração deprocurar encher-se: Deus vivido como Tu. Amaioria das espiritualidades abraâmicas vão poreste caminho e Deus é o Tu a Quem se dirigemtodas as orações. Não se pode dizer com rigorque se faz experiência de Deus como Tu. Aexperiência é pessoal; o Tu não. Mas posso fazer a experiência de Deus fazendoa experiência de mim mesmo como um tu deDeus, quando me descubro como Seu – querdizer, quando sinto que sou Teu. DescubroDeus não como um Tu a Quem me dirijo, mascomo um Eu que se dirige a mim. Vivo, então,como um tu de Deus. A experiência de Deus é tão pessoal porquecada um de nós não é senão essa experiênciamesma de Deus em mim, na qual me descubro,precisamente como o tu desse Eu que mechama: “Tu és Meu Filho”( Mc 1,11; Luc 3,22),“Eu engendrei-te hoje” (Sal 2,7; Act 13,33).Sinto que, quando Deus me diz: “Tu és”, éporque em verdade sou um tu, e Deus o ÚnicoEu. A palavra com que Cristo abençoa Pedro émuito significativa: “Quem é que as pessoasdizem que Eu sou? E, para vós, Quem sou?”(Mt. 16, 13-15). Pedro responde: “Tu és oMessias, Filho do Deus Vivo.” Cristo, então,abençoa Pedro porque ele disse a única palavraque O revela: “Tu”, “Tu és”.

O sabor esquecidodo Evangelho

(Texto de capa para o anúncio dos Encontros doLumiar, das Monjas Dominicanas, 2004/2005)

A Palavra é fonte. Traduzir, comentar, anunciarnão devia nunca impedir o fluxo livre da fonte.A fonte deve ser permanentemente limpa detudo o que a entulha, a obstrui ou a polui. É àfonte que temos sempre que voltar; ela temsempre algo a revelar; ela é sempre pura, livre,sempre viva, nascimento perpétuo.A riqueza e o poder acabam por nos arrastarpara longe da fonte como um povo no exílio. SóDeus nos conduz. Para continuar o caminho,não podemos esquecer a fonte. Busquemos osabor esquecido dessa água viva que é oEVANGELHO.

Ouvi, vós queesmagais o pobre

(Profeta Amós 8, 4-7)

Ouvi isto, vós que esmagais o pobre, e fazeisperecer os desvalidos da terra dizendo:“Quando passará a Lua Nova, para vendermos onosso trigo; e o sábado para abrirmos os nossosceleiros, jogando com os preços, falseando abalança para defraudar? Compraremos osnecessitados por dinheiro, e o pobre por um parde sandálias; e venderemos até os desperdíciosdo nosso trigo. O Senhor jurou contra a soberbade Jacob: Não esquecerei jamais nenhumadestas obras!!

O espanto

(in “Ao encontro de Espinosa”, de AntónioDamásio)

“Ao descrever os seus próprios sentimentosreligiosos – “os sentimentos religiosos dasmentes mais profundas” – Einstein disse quetais sentimentos “(…) tomam a forma de umespanto extasiante face à harmonia da lei natu-ral, que revela uma inteligência de tal superio-ridade que, comparado com ela, todo o pensa-mento sistemático e todas as acções dos sereshumanos se transformam numa reflexão per-feitamente insignificativa. “ Em palavras degrande beleza, Einstein descreveu este senti-mento como “… uma espécie de alegria intoxi-cada e de espanto face à beleza e grandiosidadedeste mundo, um mundo sobre o qual o homempode apenas construir uma noção superficial.(…) Creio que este sentimento que Einsteinchamou cósmico é um parente próximo do‘amor intellectualis’ de Espinosa. (…)

Os seus passossilenciosos

(in “L’offrande lyrique”, texto XLV, deRabindranath Tagore, a partir da versão france-sa de André Gide)

Não ouviste os seus passos silenciosos? Ele vem, vem, vem para sempre.A cada momento, em cada época, em cada dia, emcada noite Ele vem, vem, vem para sempre.Cantei cânticos diferentes, com músicas diferentes,Mas cada nota e todas elas proclamavam: Ele vem, vem, vem para sempre.Nos dias olorosos e mágicos de Abril, pelos caminhos da floresta, Ele vem, vem, vem para sempre.Na angústia tempestuosa das noites de Julho, sobre o carro das nuvens, Ele vem, vem, vem para sempre.De um trabalho a outro trabalho, o Seu passo dulcifica-os no meu coração; quando me alegro, sinto o toque dourado do Seupé. v

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CAMINHANDO SOB O ESPLENDOR DA TUA FACE

ós deixamo-nos dominar pela ilusãoempedernida de que o Fogo-Princípio-do-Ser sai das profundezas da Terra, e que asua chama cresce progressivamente, ao longo do rasto brilhante da Vida.Tu, Senhor, fizeste-me compreender que esta visão é falsa: No princípio, havia oPoder inteligente, amoroso e activo. Havia o Verbo, soberanamente capaz desujeitar o formar toda a Matéria que virá a nascer.Assim, não é da nossa noite que rompe gradualmente a luz – é a luz preexistenteque, pacientemente, infalivelmente, elimina as nossas sombras.As criaturas, em si mesmas, são sombra e vazio. Vós sois, meu Deus, a própria basee a estabilidade do meio eterno, sem duração nem espaço, no qual, gradualmente, onosso universo emerge e se completa. (...)Espírito ardente, Fogo fundamental e pessoal, dignai-vos voltar sempre a descer e adar alma à frágil película de matéria nova de que se vai envolver hoje o mundo.Verbo luminoso, Poder ardente, Vós modelais o Múltiplo, para lhe insuflar Vida.Baixai sobre nós as vossas Mãos omnipotentes. Que elas se misturem com a uni-versalidade e a profundidade presente e passada de todas as coisas, atingindo-nosno que há de mais vasto e mais interior, em nós e à nossa volta.Com as vossas Mãos invencíveis, preparai, segundo uma adaptação suprema, e paraa grande obra que Vós desejais, o esforço terrestre que vos apresento neste momen-to, concentrado no meu coração. Reformulai esse esforço, rectificai-o, refundi-o atéàs Suas origens Vós que sabeis porque é que todas as criaturas não podem nascersenão nos ramos duma interminável evolução.Pronunciai então, através da minha voz, a dupla e eficaz palavra sem a qual nada seconstrói, quer na nossa sabedoria quer na nossa experiência e com a qual tudo seagita e abre, a perder de vista nas nossas especulações e na nossa prática doUniverso.Sobre toda a vida que vai germinar e crescer, florescer e amadurecer neste dia,repeti Senhor: “Isto é o Meu Corpo”.E sobre toda a morte que avança para rasgar, murchar e cortar dai a Vossa ordemsuprema (e mistério da Fé por excelência): “Isto é o Meu Sangue”.

Teilhard de Chardin, in “La Messe sur le Monde”, 1965

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NMaria Adelaide P. Correia

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Não há tambores. Há um forçado silêncio. Há ignorânciae claridade apagada que o medo melhor define!Aquilo que sabem nunca foi escrito e jamais falado…Lá vão seguros, inseguros. Não dão as mãos para não cair,mas dão os corações uns aos outros e a esperança!

Não há tambores, não há clarins. Há sussurros. Há medo.Há heroísmo. Em certas ocasiões um som ligeiro,terrível, diabólico, répteis e bocas de fogo.

A paisagem é como as suas almas desconhecida,Presença desconhecida, pressentida: panode palco continuamente a subir e a descer.A paisagem é quase ignóbil, sempre adversa,como as palavras que do estômago lhe sobemaos lábios, mas que nunca serão ditas…

O silêncio do calor e da saudade. O silêncioda morte futura. O quebrado silêncio da surpresa.

Há homens heróis que cumprem as ordens!Há uma brisa imaginada que lhe cicia o amor…

António Salvado, Equador, Sul