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Morfologia do Conto Maravilhoso Vladimir I. Propp (Forense Universitária)

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  • Morfologia do Conto Maravilhoso

    Vladimir I. Propp (Forense Universitria)

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    Ttulo: Morfologia do Conto MaravilhosoAutor: Vladimir I. ProppEditora: CopyMarket.com, 2001

    SumrioVladimir I. Propp

    Resumo................................................................................................................................................... I

    Notas Bibliogrficas e de Organizao............................................................................................. II

    Prefcio Edio Brasileira...................................................................................................................... 01

    Prefcio.................................................................................................................................................... 07

    1. Para um Histrico do Problema ................................................................................................. 08

    2. Mtodo e Material......................................................................................................................... 16

    3. Funes dos Personagens............................................................................................................ 19

    4. A Assimilao. Os Casos da Dupla Significao Morfolgica da mesma Funo............ 39

    5. Alguns outros Elementos do Conto Maravilhoso.................................................................. 41

    6. Distribuio das Funes entre os Personagens................................................................... 45

    7. Meios de Incluso de Novos Personagens no Decorrer da Ao...................................... 48

    8. Sobre os Atributos dos Personagens e sua Significao...................................................... 50

    9. O Conto como Totalidade...................................................................................................... 52

    10. Concluso.................................................................................................................................. 66

    Apndice I: Dados para a Tabulao dos Contos................................................................... 67

    Apndice II: Outros Exemplos de Anlise............................................................................... 74

    Apndice III: Esquemas e Observaes sobre Eles................................................................ 81

    Apndice IV: Lista de Abreviaturas.......................................................................................... 86

    O Estudo Tipolgico - Estrutural do Conto Maravilhoso, por E. M. Meletnski ........... 92

    A Estrutura e a Forma - Reflexes sobre uma Obra de Vladimir Propp, por Claude Lvi-Strauss 113

    Estudo Estrutural e Histrico do Conto de Magia, por V. I. Propp.................................... 128

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    Ttulo: Morfologia do Conto MaravilhosoAutor: Vladimir I. ProppEditora: CopyMarket.com, 2001

    ResumoVladimir I. Propp

    O livro do folclorista russo V. I. Propp, Morfologia do Conto Maravilhoso, teve um destino bem estranho. Publicadoem 1928, suscitou alguma repercusso nos meios especializados soviticos, mas pouco depois saa praticamentede circulao, devido ao combate ao assim chamado Formalismo Russo, entre cujos representantes Propp erasempre includo. No Ocidente, o livro no chegou a ser muito conhecido, embora alguns estudiosos sereferissem a ele. Roman Jakobson, por exemplo, nunca deixou de salientar a importncia dos estudosproppianos.

    No entanto, houve uma reviravolta completa em 1958, quando saiu uma traduo inglesa do livro. Passou-se,ento, a perceber claramente que o estudo de Propp, embora concentrado num corpus de cem contos de magiarussos e sem nenhuma pretenso explcita de extrapolar essas concluses para outros gneros, dava explicaocabal a um fato que perturbava os folcloristas: a ocorrncia dos mesmos esquemas narrativos em povos quedificilmente poderiam ter mantido contato entre si.

    Na dcada de 1960, o estudo de Propp esteve no centro de preocupao de toda uma corrente de estudiosos danarrativa, que procuraram descobrir normas gerais a partir dele. O livro tornou-se para muitos quase uma cartilhae suscitou polmicas violentas, s quais o autor assistiu de longe, certamente surpreendido com este ressuscitarestranho de sua obra.

    Criticado por Lvi-Strauss como um "formalista" que teria pressupostos tericos diferentes daqueles quesubjazem s abordagens estruturais, Propp reagiu com um artigo em que expunha a sua perplexidade. Nopresente volume, esto includos o estudo de Propp, o artigo de Lvi-Strauss, a resposta do folclorista russo e umtrabalho do etnlogo sovitico E. M. Meletnski, no qual se analisa a importncia da contribuio proppiana.

    Evidentemente, a relevncia do trabalho de Propp transcende, e de muito, as polmicas de momento, que foramto freqentes nos anos de 1960. Ele requer um estudo permanente e abre caminhos novos, quer para ainvestigao dos contos populares, quer para a reflexo sobre a narrativa em geral. Ademais, esse estudo tem dese valer de elementos recentes, pois muitos materiais sobre o assunto s foram divulgados nos ltimos anos.Assim, o texto da resposta de Propp a Lvi-Strauss apareceu em traduo italiana em 1966, acompanhando umaedio da Morfologia, mas o original russo, utilizado para o presente volume, foi publicado somente em 1976,numa coletnea pstuma de trabalhos de Propp.

    Passada a turbulncia dos anos de 1960, quando ocorreu a assimilao macia da Morfologia no Ocidente, suapresena torna-se cada vez mais importante para o desenvolvimento de estudos sem conta.

    Capa: Juarez Quirino da Silva

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    Ttulo: Morfologia do Conto MaravilhosoAutor: Vladimir I. ProppEditora: CopyMarket.com, 2001

    Notas Bibliogrficas e de OrganizaoVladimir I. Propp

    Os textos russos do presente volume foram traduzidos do original. A Morfologia do Conto Maravilhoso (Morfolguiaskzki) de V. I. Propp baseia-se na segunda edio sovitica, publicada em 1969, pela Editora Naka (Cincia) deMoscou, da Academia de Cincias da URSS. Nessa edio foi includo o trabalho de E. M. Meletnski, O estudotipolgico-estrutural do conto maravilhoso (Strukturno-tipologutcheskoie izutchnie skzki), igualmente traduzidopara o presente volume.

    A polmica Propp-Lvi-Strauss foi iniciada com o estudo do antroplogo francs sobre o livro fundamental dePropp. Esse trabalho aparece aqui, na traduo de Lcia Pessa da Silveira, cedida Editora ForenseUniversitria pela Editora Tempo Brasileiro. A resposta de Propp, Estudo estrutural e histrico do conto demagia (Struktrnoie i istortcheskoie izutchnie volchbnoi skzki), apareceu pela primeira vez no original, no livropstumo de V. I. Propp, Folclore e Realidade (Folklor i dieistvtielnost), publicado igualmente pela editora Naka,Moscou, 1976, de onde foi traduzido para esta edio.

    De Organizao

    1 - Foram suprimidas, na traduo, as comparaes entre edies russas. Por este motivo, eliminaram-se vriasnotas e o Apndice V do original.

    2 - Ficaram assinalados com colchetes os acrscimos ao texto original, que se tornaram necessrios.

    3 - Os signos convencionais tiveram de ser modificados, devido diferena de alfabeto. De modo geral,seguiram-se as normas j adotadas nas edies ocidentais.

    4 - As notas da tradutora do russo so dadas em rodap, e as do autor no final do trabalho, com exceo dasindispensveis compreenso da seqncia. Na traduo do ensaio de E. M. Meletnski, seguiu-se a norma doautor: notas explicativas em rodap e bibliogrficas no fim.

    5 - A edio do ensaio de Lvi-Strauss, cuja traduo foi cedida pela Editora Tempo Brasileiro, segue ascaractersticas da referida publicao.

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    Ttulo: Morfologia do Conto MaravilhosoAutor: Vladimir I. ProppEditora: CopyMarket.com, 2001

    Prefcio Edio BrasileiraVladimir I. Propp

    O importante folclorista sovitico B. N. Putilov, que trabalhou em colaborao e conviveu bastante com V. I.Propp (1895-1970), escreveu h poucos anos que a cincia contempornea ainda estava longe de ter assimiladoplenamente a obra de seu colega1. primeira vista, parece uma afirmao paradoxal, pois bem poucos nomesestiveram to em evidncia a partir da dcada de 1960, nos campos do folclore e da teoria da narrativa. Mas, narealidade, esta fama sbita, que lhe adveio nos ltimos anos de vida, ficou marcada por uma srie de equvocos.Nem por isto, porm, a sua obra inovadora deixou de exercer uma influncia fecunda em numerosos estudos,tanto na Unio Sovitica quanto no Ocidente.

    No vou estender-me agora sobre o seu livro fundamental, Morfologia do Conto Maravilhoso, pois o leitor encontrar nestemesmo volume o excelente ensaio em que E. M. Meletnski analisa o impacto que esta obra causou na cincia moderna.Nesse ensaio, o famoso etnlogo sovitico ressalta a amplitude dos estudos proppianos no Ocidente e chega a contrast-la com o nmero relativamente reduzido de estudos soviticos especficos sobre o assunto. Esta passagem pode causarestranheza ao leitor ocidental, mas preciso observar que o ensaio de Meletnski foi publicado em 1969, acompanhandoa segunda edio da referida obra de Propp, que realmente a recolocou em circulao mais ampla na URSS (a primeiraedio de 1928). Num outro estudo do mesmo Meletnski, publicado em 1974, e que j est traduzido para oPortugus2, verifica-se que nesses poucos anos a situao mudou consideravelmente, sendo aprecivel atualmente oacervo de estudos soviticos que procuram trilhar os caminhos indicados por V. I. Propp.

    Por que ento aquele atraso? No nos esqueamos de que a atividade cientfica do grande folclorista ficoumarcada por dois estigmas: sua proximidade do assim chamado Formalismo Russo e a clareza com que sempredefiniu sua aceitao das posies defendidas pelo lingista N. I. Marr e de sua "teoria estadial".

    Depois da virtual proibio do Formalismo Russo, em 1930, os estudiosos que dele fizeram parte ficaram quase todosafastados do trabalho terico de carter mais geral, dedicando-se freqentemente a campos especficos dos estudosliterrios, isto quando no renegaram as posies anteriormente defendidas. Propp, no entanto, prosseguiu no seu grandeestudo Razes Histricas do Conto de Magia3 que na realidade forma uma espcie de dilogia com a Morfologia do ContoMaravilhoso. Alis, no texto deste, h uma referncia explcita ao fato de se tratar de uma etapa preliminar de um vastotrabalho. Assim, depois de definir claramente o objetivo de estudo, Propp situa-o no fluxo da Histria.

    Por um lado, ele se mantm deste modo fiel metodologia dos "formalistas russos" na fase mais madura do movimento:as famosas teses de Jakobson e Tinianov, publicadas no mesmo ano que a Morfologia, preconizavam o estudo imanente doobjeto, para em seguida se aprofundar a relao da "srie literria" com as demais "sries histricas".4

    Mas, ao mesmo tempo que bem evidente a sua ligao com os "formalistas" (realmente, s podemos escreveresta palavra entre aspas, pois na fase madura do movimento, que corresponde justamente poca de publicaoda Morfologia, eles se voltavam claramente contra a velha diviso da obra em forma e contedo), salta igualmenteaos olhos a sua aceitao dos princpios de N. I. Marr.

    1B. N. Putilov, prefcio ao livro Folklor e dieistvtielnost (Folclore e realidade), Editora "Naka" (Cincia), Moscou, 1976(coletnea pstuma de ensaios de V. I. Propp), p. 15.2 Vide I. M. Meletnski, "Tipologia estrutural e folclore", traduo de Aurora Fornoni Bernardini, in Boris Schnaidemian (org.),Semitica russa, Editora Perspectiva, So Paulo, 1979.3 Istortcheskie krni volchbnoi skzki, Leningrado, 1946. Foi traduzido para o italiano e publicado em 1949, existindo novaedio: Le radice storiche de racconti di fate, Boringhieri, Turim, 1972.4 Existem tradues para vrias lnguas. Traduo brasileira: J. Tynianov e R. Jakobson, "Os problemas dos estudos literrios e

    lingsticos", in Dionsio de Oliveira Toledo (org.), Teoria da literatura - formalistas russos, Editora Globo, Porto Alegre, 1971.

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    Este seria atacado postumamente pelo prprio Stlin, em seus dois famosos trabalhos sobre Lingstica, que encerraramem 1950 um prolongado debate entre marristas e antimarristas: os primeiros caam em desgraa, os segundos passavams posies de mando nas instituies que lidavam com problemas de linguagem. Esta descrio pode parecer simplista eat simplria, mas, vista a distncia, a prpria realidade das instituies cientficas oficiais da poca tem algo desimplificado e empobrecido, em contraste com a riqueza dos trabalhos ento realizados. E a interveno de Stlin,embora fundamentalmente correta, conforme j tive ocasio de escrever5, pois era muito acertado estabelecer que adiviso dos fatos sociais em fatos da infra e da superestrutura no podia abranger a lngua (consumada a transferncia daposse dos meios de produo, ela se mantinha fundamentalmente a mesma), estava eivada de uma viso utilitarista daHistria e da funo que a lngua exerceria nesta.

    No cabe aqui discutir a obra e o papel desempenhado por N. I. Marr, tarefa alis muito ingrata, pois seu nome"suscita at hoje dios acirrados, prevenes, ressentimentos, de modo que a polmica velha de quase trinta anoscontinua pesando no que se publica na Unio Sovitica e dificultando a divulgao de trabalhos muitoimportantes"6. Ele via uma relao muito ntima entre o desenvolvimento da lngua e o estdio de evoluo dasociedade. E outros estudiosos procuraram ento vincular essa teoria aos fatos da cultura em geral Propp foicertamente um dos que mais se dedicaram a esta tarefa. No entanto, veja-se como ele encarava o problema demodo muito mais sutil do que a viso corrente nas caricaturas do mtodo de Marr, freqentes na bibliografiasovitica. Assim, escrevia em 1946: "No Ocidente predomina at hoje o princpio do simples estudo cronolgico,e no do estadial. Um material da Antigidade clssica ser considerado ali mais antigo do que o material anotadoem nosso dias. No entanto, do ponto de vista estadial, um material da Antigidade clssica pode refletir umestdio relativamente tardio do Estado agrcola, e um texto contemporneo, relaes totmicas muito maisprimevas. evidente que todo estdio deve ter sua estrutura social, sua ideologia, sua criao artstica. Mas ocaso est em que o folclore, tal como outras manifestaes da cultura espiritual, no registra de imediato amudana ocorrida e conserva por muito tempo, nas novas condies, as velhas formas. Visto que todo povosempre passa por alguns estdios de seu desenvolvimento, e todos eles encontram reflexo no folclore,depositam-se nele, o folclore de todo povo sempre poliestadial, e isto constitui uma de suas caractersticas. Oproblema da cincia consiste em decompor as camadas deste conglomerado complexo, e deste modo conhec-lo eexplic-lo"7. Parece haver a certa injustia de Propp em relao a alguns estudos ocidentais. Mas de um ponto devista mais global, ele tem certamente razo. Semelhantes formulaes permitem ver que no haviaincompatibilidade entre o apego dos "formalistas" russos anlise imanente dos textos e a abordagem "estadial"preconizada por V. I. Propp. Assim, quando ele se lanou empresa da coleta de material para a sua Morfologia(data de 1926 a sua primeira comunicao sobre estes trabalhos), via j com muita clareza onde pretendia chegar.

    O xito retumbante deste seu estudo tem qualquer coisa de ovo de Colombo.

    Durante muito tempo, os folcloristas se defrontaram com o fato da semelhana entre os esquemas narrativos dospovos mais diversos, entre os quais dificilmente se encontrariam vestgios de contato. Como lembra Jakobson,"no folclore como na lngua, apenas uma parte das similaridades pode ser explicada em termos de patrimniocomum ou de difuso (temas migratrios)"8. E j num livro publicado em 1910, o nosso Joo Ribeiro escrevia:No h infinita riqueza na imaginao dos povos. As idias essenciais so pouco numerosas. Um inventriocuidadoso de todos os contos e novelas redu-los a alguns tipos fundamentais, a mau grado da infinita variedadeque se antolha na literatura.9

    Atualmente, no acho correto falar em imaginao escassa, com referncia literatura popular, ela tem a suariqueza especfica, no obstante a constncia de um padro narrativo. Mas no difcil encontrar, mesmo hojeem dia, estudiosos da literatura que subscreveriam sem vacilar a afirmao de Joo Ribeiro. Em todo caso, deve-se destacar a argcia com que ele percebia um problema fundamental dos estudos folclricos.

    5 Cf. Boris Schnaiderman, "Semitica na URSS Uma busca dos elos perdidos", in ob. cit. (nota 2).6 Boris Schnaiderman, ob. cit., p. 15.7 V. I. Propp, Spetzfica Folklora (O especfico do folclore), in ob.cit. (nota 1), p. 30. Existe traduo italiana in Vladimir I. Propp,Edipo alla luce del folclore, Einaudi, Turim, 1975.8 Apud Haroldo de Campos, Morfologia do Macunama, Perspectiva, So Paulo, 1973, p. 19.9 Joo Ribeiro, "Uma frmula potica", in O Fabordo, Edies de Ouro, Rio de Janeiro, 1967, p. 375.

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    No trabalho de E. M. Meletnski se encontraro referncias a precursores de Propp, mas realmente nenhum delesconseguiu decifrar com tanta clareza e fora de convico em que consistia a constncia que outros j haviam detectado.

    A prpria "fortuna crtica" de seu livro fundamental daria para escrever um romance. Tendo trabalhado comcem contos de magia e muito cioso de frisar seu apego ao material emprico, sua cautela de no generalizarabruptamente as concluses a outros campos, chamou a obra de Morfolguia volchbnoi skzki, isto , "Morfologiado conto de magia", mas editores no mundo inteiro tm os seus caprichos, e o livro saiu em 1928 com o ttuloencurtado para Morfolguia skzki, que em portugus corresponde aproximadamente a "Morfologia do contomaravilhoso". De incio, teve boa receptividade, mas parece no ter ultrapassado um crculo estreito deestudiosos. Durante anos e anos, era praticamente desconhecido no Ocidente, no obstante referncias elogiosasque lhe faziam uns poucos, entre os quais Roman Jakobson.

    Em 1958, porm, apareceu uma traduo inglesa do livro10 e foi o ponto do partida para uma verdadeira onda deestudos ocidentais que tomavam esta obra, como ponto de partida. O impacto por ela causado no se limitou aofolclore. A teoria da narrativa apossou-se dela at com certa fria, e na dcada de 1960 seu nome era corrente emestudos sobre o romance, o conto etc.

    Haveria exorbitncia na extenso do mtodo proppiano do folclore para o estudo literrio? Vejamos o que pensavasobre esse tema o criador do mtodo, que escreveu quase quarenta anos depois da edio original: " bem possvelque o mtodo de anlise das narrativas segundo as funes das personagens se revele til tambm para os gnerosnarrativos no s do folclore, mas tambm da literatura. Todavia, os mtodos propostos neste volume antes doaparecimento do estruturalismo, bem como os mtodos dos estruturalistas, que almejam o estudo objetivo e exatoda literatura, possuem tambm seus limites de aplicao. Eles so possveis e fecundos no caso de uma repetio emampla escala. o que ocorre na lngua, o que ocorre no folclore. Mas quando a arte se torna campo de ao deum gnio irrepetvel, o uso dos mtodos exatos dar resultados positivos somente se o estudo das repeties foracompanhado pelo estudo daquele algo nico para o qual at agora olhamos como a manifestao de um milagreincognoscvel. Seja qual for a rubrica sob a qual inscrevamos a Divina Comdia ou as tragdias de Shakespeare, ognio de Dante e o de Shakespeare no se repetem e sua anlise no pode ser reduzida aos mtodos exatos. E se,no incio deste artigo, colocamos em relevo as afinidades entre as leis estudadas pelas cincias exatas e aquelas dascincias humanas, gostaramos de concluir lembrando sua diferena fundamental e especfica.11

    Isto foi escrito no decorrer da maior voga, sobretudo em Frana, das aplicaes do mtodo de Propp ao estudoda narrativa em geral. Soava na realidade como uma advertncia, mas ao mesmo tempo, no fechava o caminhopara a aplicao do mtodo proppiano narrativa em geral. Apenas, quem se abalanasse a semelhante aplicao,deveria ter em mente os seus limites.

    O trecho transcrito por mim figura tambm, em traduo do autor, na obra que parece ser a aplicao maisminuciosa e, ao mesmo tempo, muito arrojada e criativa, do mtodo de Propp a um livro brasileiro: trata-se daMorfologia do Macunama de Haroldo de Campos. Eis como ele o comenta: " parte o que h nessas reticnciasproppianas de uma romntica 'teoria do gnio' e de uma crociana idealizao da unicidade e irrepetibididade daobra de arte, inefabilizada em 'milagre incognoscvel', no deixa tambm de haver em suas ponderaes umajudiciosa advertncia contra o fascnio do mtodo (miragem asctica de alguns estruturalistas com tendncia actaros, que, em ltimo tempo, acabam por desembaraar-se do 'pesadelo da literatura', como de um incmodo'cadver no armrio' a perturbar, constantemente, a pureza e o absolutismo das construes metodolgicas); deoutra parte, contra a 'paixo infeliz' das hiperformalizaes para matemticas e logsticas, freqentemente deescasso rendimento heurstico quando confrontadas com textos concretos.

    10 V. Propp, Morphology of the Folktale, traduo de Laurence Scott, edio da Universidade de Indiana, Bloomington, 1958.11 ltimo pargrafo da traduo, includa neste volume, do ensaio com que Propp respondeu ao estudo de Lvi-Strauss sobreMorfologia do Conto Maravilhoso (Estudo estrutural e histrico do conto de magia"). O ensaio saiu primeiramente em italiano nolivro Morfologia della fiaba, organizado por Gian Luigi Bravo, Einaudi, Turim, 1966. O original russo foi publicado somente em1976, na coletnea de ensaios de Propp j citada.

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    Entendo que entre mtodo e obra a analisar h uma frutuosa correlao dialtica: a obra prope o mtodo de suaabordagem, corno a pesquisa metodolgica em si mesma pode acabar pondo sugerindo a obra que lhe sejaadequada."12

    O pensamento de Propp quanto s relaes entre folclore e literatura fica mais claro na base de outros trabalhos,que, por ocasio da publicao do livro de Haroldo de Campos, no estavam sequer reunidos em livro, na lnguaoriginal. Por mais que Propp fale no "irrepetvel" e no "milagre" da grande obra literria, ao mesmo tempo ele vuma relao ntima entre o folclore e a literatura, conforme se pode constatar, entre outros, no trabalho "dipo luz do folclore13 no qual as variantes folclricas da estria so dadas justamente como um aos meios decomprovar o que h de comum entre a obra teatral e essas variantes, o que permitiria destacar o que h nela de"nico", de "irrepetvel", tarefa a que ele no se entrega ali, permanecendo estritamente no campo do folclore.Em "O especfico do folclore", ao mesmo tempo que insiste nesta especificidade, chega a afirmar: "... vemosque entre o folclore e a literatura no s existe ntima ligao, mas que o folclore, como tal, um fenmeno denatureza literria. Ele uma das formas da criao potica".14

    Embora por ocasio da publicao de Morfologia do Macunama, Haroldo de Campos no pudesse terconhecimento dos trabalhos de Propp a que me referi h pouco, o seu pensamento aproxima-se muito do queafirma ali o folclorista sovitico. E trabalhando com Macunama, v em Mrio de Andrade o grande mrito de tersabido unir a riqueza da criao literria com o apego ao cnone do conto popular.

    "No caso do Macunama, a pertinncia do mtodo de Propp se impe como hiptese de trabalho. Embora setrate de uma obra de inveno literria (e de singular e marcante inveno), tem como substrato basilar o cnonda fbula, que Mrio, como estudioso do folclore, depreendeu maravilha (seno teoricamente, na prtica do seutexto). uma obra em que o rasgo de inveno, imprevisto, emerge de um inventrio previsvel, porque hauridoem fonte fbula: o lendrio recolhido por Koch-Grnberg, sobretudo, que, como se demonstrar, oferecegrandes semelhanas estruturais com o 'conto de magia' russo. Esse inventrio previsvel, ademais, funcionandocomo cdigo de informao (mensagem esttica marioandradina, gera, s por isso, uma nova surpresa, umaoriginalidade suplementar: o inusitado de se reintroduzir na escritura romanesca esse modo de articulaorelegado periferia da literatura, ao 'primitivismo' da fabulao oral (tcnica de 'rebarbarizao' do literrio cujaimportncia os formalistas russos se empenharam em realar). Como lembra Thomas Mann no Dr. Faustus, svezes o muito novo e o extremamente antigo, o arcaico mesmo, reencontram-se em termos de vanguarda. Essereencontro confere originalidade muito especial ao projeto de Mrio de Andrade, para muitos at uma chocanteoriginalidade, pois ainda hoje no faltam os que consideram o Macunama um projeto falido."15

    Em outras passagens do livro, Haroldo de Campos v Macunama como uma das obras da trilogia constituda porMemria Sentimentais de Joo Miramar, Macunama e Serafim Ponte Grande, aproximando assim Mrio de Oswald deAndrade, no obstante as famosas brigas entre ambos. Segundo Haroldo, a "lgica do pensamento fabular", deque Mrio tinha plena conscincia, conforme se constata por algumas de suas cartas, que lhe teria permitidosuperar o "psicologismo" de outras obras suas, pelas quais o ensasta e poeta no demonstra nenhuma simpatia.

    verdade que Morfologia do Macunama uma obra muito rica e multiforme, mas sua tese principal j est contidanas primeiras pginas, onde se volta contra a noo muito corrente quando o livro foi escrito, e que persistiu emalguns crticos, de que Macunama seria um grande malogro. O mtodo Proppiano no permitiu a Haroldo deCampos mostrar a lgica peculiar da obra, e todo seu trabalho resulta numa lcida exaltao da "rapsdia"marioandradina. Evidentemente, outras abordagens, outros caminhos seguidos com pertincia, podem mostraroutros aspectos importantes da obra, pois toda metalinguagem tem sempre necessariamente algo de limitadoquando se defronta com obras da grandeza de Macunama. Mas, nessa limitao relativa, aponta trilhas muitas,vezes insuspeitadas, sobretudo quando manejada com arrojo e, paradoxalmente, mesmo com certo pathospotico, como o caso de Morfologia do Macunama.

    12 Haroldo de Campos, ob. cit., p. 64.13 In V. I. Propp, Folclore e Realidade. Traduo italiana in Vladimir Ja. Propp, dipo alla luce del folclore.14 V. I. Propp "O especfico do folclore", p. 20.15 Haroldo de Campos, ob. cit., p. 65.

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    verdade que nem todos so da mesma opinio em relao ao livro de Haroldo de Campos. Em O Tupi e oAlade, Gilda de Mello e Souza baseia no fato de que muitos estudiosos importantes do folclore vem nele umfenmeno semelhante ao da langue (no sentido de Saussure), enquanto a literatura seria um fato da parole, e chegaa escrever: "... reduzindo o livro simblico, alusivo e inextricavelmente ancorado no universo ideolgico doescritor a 'um complexo de normas estabelecidas e estmulos', a 'um esqueleto de tradies' que a criaoindividual se limitara a ornamentar e unificar mais ou menos, Haroldo de Campos acabou reduzindo um fatoadmirvel de parole banalidade da langue".16 Ora, neste caso, aceitando a formulao notvel de Jakobson eBogatirv sobre o assunto, num trabalho de 1929 (o nome do segundo, o grande folclorista Piotr Bogatirv, omitido pela autora), prefiro alinhar esta formulao sobre langue, parole e folclore com o que diz Haroldo deCampos, citado por Gilda de Mello e Souza: "Mrio de Andrade no seu projeto aboliu, por assim dizer (ou pelomenos suspendeu at o limite do possvel) essa diferena estrutural fundamental, incorporando-a como regra deseu jogo literrio (...). Da a ambigidade fascinante do seu livro, que ao mesmo tempo contesta e atesta, artificiale annimo, 'fato de parole' e 'fato de langue.17 Esta formulao est plenamente de acordo com o que Proppafirma em "O especfico do folclore" (repito: trabalho que Haroldo de Campos no poderia ter conhecido aoescrever seu livro): "... geneticamente, o folclore deve ser aproximado no da literatura, mas da lngua, quetambm no foi inventada por ningum e no tem autor nem autores. Ela surge e se modifica de modoabsolutamente conforme a leis e independente da vontade dos homens, em toda parte onde, para isto, nodesenvolvimento histrico dos povos, criam-se as condies correspondentes" (p. 22). No entanto, um poucoantes, na p. 20, se l: ". . . o folclore possui uma potica absolutamente peculiar e especfica, diferente da poticadas obras literrias. O estudo dessa potica desvendar belezas artsticas extraordinrias, existentes no folclore".

    O ressurgir do livro de Propp foi suscitando polmicas pelo mundo afora.

    Pesquisadores os mais diversos procuram aplicar o esquema de Propp a lendas das respectivas populaes,enquanto outros contestavam estes trabalhos como "extrapolao indevida". Tornou-se particularmente famosaa discusso Propp-Lvi-Strauss, cujos textos o leitor encontrar neste livro, bem como uma anlise das posiesde ambos, no estudo de Meletnski, igualmente includo a. Alis, j existe sobre esta polmica uma vastssimabibliografia. E o prprio livro de Haroldo de Campos, Morfologia do Macunama, trata dela com certa mincia.

    No cabe, portanto, estender-me aqui sobre este assunto.18 Em todo caso mais uma vez, no consigo deixar emsilncio a observao de Lvi-Strauss de que certos defeitos por ele atribudos ao livro de Propp se deveriam aofato de que este "no era etnlogo". Eis, por exemplo, como B. N. Putilov v o essencial da contribuio dePropp, em seu conjunto: "Para desvendar o mistrio deste ou daquele enredo ou motivo folclrico (e s vezes doprprio gnero), indispensvel, em primeiro lugar, encontrar o substrato etnogrfico que jaz junto sua fonte,em segundo, esclarecer o sistema de representaes com ele ligadas, e, em terceiro, acompanhar o caminho daseqncia, conforme a leis, de transformao deste substrato num fato do folclore.

    V. I. Propp dominava esta metodologia perfeio. Ele ergueu a arte da anlise folclrica na base do'etnografismo' a uma altura excepcional. Ele conseguiu desvendar muitos mistrios existentes no folclore detodos os povos. Graas aos trabalhos de V. I. Propp, o princpio do 'etnografismo' tornou-se a pedra angular dametodologia moderna das pesquisas histrico-genticas do folclore".19

    Para compreender melhor o fato de que a Morfologia do Conto Maravilho, constitua parte de um plano de trabalho bem maisvasto, importante o ensaio "Transformaes dos contos de magia" publicado tambm em 1928 e do qual existetraduo para vrias lnguas, inclusive o portugus.20 E ao mesmo tempo, preciso sublinhar mais uma vez o papel dePropp como adepto das concepes de N.I.Marr, o que o aproxima com freqncia do pensamento do grupo de MikhailBakhtin.. Veja-se, por exemplo, uma formulao que se assemelha a outras do livro Marxismo e Filosofia da Linguagem, de

    16 Gilda de Mello e Souza, O tupi e o alade -- Uma interpretao de Macunama, Livraria Duas Cidades, So Paulo, 1979, p. 50.

    17 Haroldo de Campos, apud Gilda de Mello e Souza, ob. cit., p. 48.18 Tanto mais que j tratei desse tema especificamente em "Macunama e um dilogo entre surdos", in Projees: Rssia l Brasil lltlia, Perspectiva, So Paulo, 1978 (primeira publicao em O Estado de So Paulo, 1974).19 B. N. Putilov, ob. cit., p. 10.20 Transformatzii'volchbnikh skazok, Potica IV, Leningrado, 1928. Traduo brasileira "As transformaes dos contostantsticos", in Dionsio de Oliveira Toledo, ob. cit. (nota 4).

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    V. N. Volochinov (segundo muitos, o verdadeiro autor seria M. Bakhtin): "O folclore uma cincia ideolgica. Seusmtodos e objetivos se determinam pela viso de mundo da poca respectiva e refletem esta viso."21

    Depois que os adeptos de N. I. Marr deixaram de ser perseguidos com a mesma intensidade, V. I. Proppconseguiu publicar duas obras fundamentais: O Epos Herico Russo e As Festas Agrrias Russas.22

    Por mais que ele estivesse cioso do seu papel de folclorista emprico, evidente que isto se ligava, por um lado, auma preocupao filolgica e, por outro, a uma paixo pela literatura.

    preciso observar que se dedicou a vida inteira a estudos de lingstica do alemo. Alis, depois que concluiu aFaculdade de Histria e Filologia de Petrogrado, em 1918, foi professor de lngua alem. E em sua bibliografia figuramvrios trabalhos especficos neste campo, mesmo em perodos em que se dedicou intensamente a estudos de folclore.

    No trabalho j citado de B. N. Putilov, chama-se a ateno para a extrema habilidade com que Propp compunhaos seus trabalhos cientficos, utilizando com freqncia procedimentos mais caractersticos da fico, inclusive o"suspense". Putilov chega a ver neles algo da tcnica da novela policial (p. 14).

    H indicaes23 sobre um vasto trabalho que Propp deixou indito, denominado Teoria do Cmico. A divulgaodeste livro certamente permitir compreender melhor a posio de Propp em relao aos trabalhos de MikhaillBakhtin e de seu grupo, do qual evidentemente o aproximam preocupaes comuns. Assim, na coletnea que jcitei mais de uma vez, figura o trabalho "O riso ritual no folclore (a propsito do conto Niesmiiana)".24 Ora, muito conhecida a preocupao bakhtiniana com o cmico popular. Esperemos, pois, novas publicaes daUnio Sovitica a fim de precisar melhor o que h de prximo ou talvez de divergente entre os dois pensadores.

    Reunindo no presente livro no s a Morfologia do Conto Maravilhoso, mas tambm materiais com ela relacionados,procuramos divulgar um pouco da vasta e importante contribuio de Propp, penetrar um pouco no seu mundo,cuja importncia o Ocidente avalia desde fins da dcada de 1950, mas cujo conhecimento global tem sido toprejudicado pela insuficincia de materiais.

    BORIS SCHNAIDERMAN

    21 V. I. Propp, "O especfico do folclore", p. 16.22 Rski guerottcheski epos, Leningrado, 1955, e Rskie agrrnie przdiki, 1963.23 A. A. Gorelov, Pmiati V.I. Propp (Em memria de V. I. Propp), Rski Folklor (O folclore russo), Vol. XIII Editora "Naka"Cincia), 1972, p. 256.24 Ritulni smiekh v folklore (po pvodu skzki o Niesmianie). O nome prprio significa: Aquela que jamais riu. Traduo italianado ensaio: II riso rituale nel folclore. A propsito della fiaba di Nesmejana, in Edipo alla luce del folclore.

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    Ttulo: Morfologia do Conto MaravilhosoAutor: Vladimir I. ProppEditora: CopyMarket.com, 2001

    PrefcioVladimir I. Propp

    A morfologia ainda deve ser legitimada como cincia particular, tendo por objetivo principal aquilo que em outras cincias tratadoapenas ocasionalmente e de passagem, recolhendo o que nelas se encontra disperso e estabelecendo um novo ponto de vista que permitafcil e comodamente examinar as coisas da natureza. Os fenmenos dos quais se ocupa so da maior importncia; as operaesmentais, por meio das quais compara os fenmenos, so conformes natureza humana e lhe so agradveis, de modo que talexperincia, mesmo se resultasse malograda, reuniria utilidade e beleza.

    GOETHE

    A palavra morfologia significa o estudo das formas. Em botnica, por morfologia entende-se o estudo das partes queconstituem urna planta e das relaes entre essas partes e o todo: em outras palavras, o estudo da textura de uma planta.

    Ningum havia pensado ainda na possibilidade da noo e da designao morfologia do conto maravilhoso. Entretanto,no mbito do conto popular, folclrico, o estudo das formas e o estabelecimento das leis que regem suadisposio possvel com a mesma preciso da morfologia das formaes orgnicas.

    Se no se pode aplicar esta afirmao ao conto maravilhoso em geral, em toda a amplitude do vocbulo, pode-seaplic-la certamente aos denominados contos de magia "no sentido exato desta palavra". O presente trabalhoest dedicado apenas a este ltimo tipo de conto.

    A experincia aqui apresentada o resultado de um trabalho bastante minucioso, pois este tipo de pesquisa exigedo investigador considervel pacincia. Contudo, procuramos encontrar uma forma de exposio que noaborreces demasiadamente o leitor, simplificando e abreviando sempre que possvel.

    Este trabalho passou por trs fases. Tratava-se primeiramente de um vasto estudo com grande quantidade de tabelas, deesquemas, de anlises. A publicao de uma tal obra era praticamente impossvel, em vista de seu enorme volume.Procuramos reduzi-la, tendo por objetivo um mnimo de volume com um mximo de contedo. Mas esta exposioreduzida, condensada, mostrou-se inadequada para o leitor comum: ela lembrava uma gramtica ou um manual deharmonia. Foi preciso mudar novamente a forma de exposio. Existem, naturalmente, coisas cuja exposio no podeser popularizada, e elas esto presentes nesta obra. Mas acreditamos que a forma atual do trabalho seja acessvel a todointeressado em contos maravilhosos, desde que ele concorde em seguir- nos por um labirinto de fantstica diversificao,cuja maravilhosa uniformidade lhe ser revelada no final.

    No interesse de uma exposio mais vvida e sucinta, renunciamos a muitas coisas que seriam certamente apreciadaspelos especialistas. Na sua primeira verso, esta obra abrangia, alm das partes que sero abaixo apresentadas, um estudodo frtil campo dos atributos dos personagens enquanto tais; examinava detalhadamente os problemas da metamorfose,i.e., das transformaes do conto maravilhoso; inclua grandes tabelas comparativas (restando delas aqui apenas os ttulosno apndice) e vinha precedida de um ensaio metodolgico mais rigoroso. Tnhamos em vista apresentar no s umestudo da estrutura morfolgica do conto maravilhoso, como tambm um estudo de sua estrutura lgica totalmentepeculiar e que fornecia as bases para um estudo histrico desse conto. A prpria exposio era tambm mais detalhada.Os elementos que agora aparecem de uma maneira isolada, eram submetidos a comparaes e exames minuciosos.Entretanto, precisamente o destaque dos elementos que constitui o eixo de todo este trabalho, e o que determina asconcluses. O leitor atento completar por si mesmo esses esboos.

    Esta segunda edio se diferencia da primeira por algumas pequenas correes e pela explanao mais detalhada dealgumas partes. Referncias bibliogrficas insuficientes ou antiquadas foram suprimidas. As referncias coletnea deAfanssiev, dadas na edio anterior Revoluo, foram atualizadas. No final do livro h uma tabela da correspondnciade numerao entre essas duas edies.*

    * Tabela suprimida nesta traduo. (N. T.)

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    Ttulo: Morfologia do Conto MaravilhosoAutor: Vladimir I. ProppEditora: CopyMarket.com, 2001

    1. Para um Histrico do ProblemaVladimir I. Propp

    A histria da cincia torna sempre um aspecto muito importante no ponto em que nos encontramos. verdade que estimamos nossosprecursores, e, at certo ponto, agradecemos pelo servio que nos prestaram. Mas ningum gosta de consider-los mrtires, levados poruma inclinao irresistvel a situaes perigosas e, s vezes, quase que sem sada; e todavia encontra-se freqentemente mais seriedadenos antepassados que nos deram os fundamentos de nossa existncia, do que nos descendentes que desperdiaram esta herana.

    GOETHE

    No primeiro tero de nosso sculo, a relao das publicaes cientficas dedicadas ao conto maravilhoso no era muitovasta. Alm do fato de que pouco se editava sobre o tema, as bibliografias apresentam o seguinte aspecto: erampublicados principalmente textos, numerosos trabalhos sobre um assunto e, particular, e as obras de carter geral eramrelativamente escassas. As que existiam apresentavam, na maioria dos casos, um carter de diletantismo filosficodesprovidas de rigor cientfico. Lembravam os trabalhos dos eruditos filsofos da natureza do sculo passado, e o querealmente faltava eram observaes, anlises e concluses precisas. Eis como o professor M. Spernski descrevia asituao: "Sem deter-se em concluses estabelecidas, o estudo cientfico da tradio popular prossegue suas pesquisasjulgando que o material j reunido ainda insuficiente para uma construo geral. Assim a cincia volta recompilaodo material e ao seu estudo, trabalhando em proveito das futuras geraes; mas, como sero os estudos gerais, equando estaremos em condio de realiz-los, sobre isso nada sabemos".1

    Qual a causa desta fraqueza, deste beco sem sada em que estava enterra a cincia do conto maravilhoso dos anos vinte?

    Segundo Spernski, a causa era a insuficincia do material. Mas j se passaram muitos anos desde que essas linhasforam escritas. Durante esse tempo apareceu a obra fundamental de I. Bolte e G. Polivka intitulada Anotaes sobreos contos dos Irmos Grimm.2 Cada conto dessa coletnea seguido de variantes recolhidas em todo o mundo. Oltimo volume termina com uma bibliografia das fontes, isto , uma lista de todas as colees e das demais obrasque continham contos e que os autores conheciam. Esta lista contm mais de mil e duzentos ttulos. Claro estque dela constam alguns textos breves e sem grande importncia, mas h tambm coletneas bem volumosas,como As mil e uma noites ou a coletnea de, Afanssiev, que inclui quase seiscentos textos. Mas isto no tudo.Existe uma imensa quantidade de contos que ainda no foram publicados; outros nem sequer entraram eminventrio. Esses textos se encontram nos arquivos de diversos estabelecimentos e em poder de particulares.Algumas destas colees so acessveis aos especialistas, e por isso o material de Bolte e Polivka pode serampliado em alguns casos. Sendo assim, qual o nmero total de contos que temos nossa disposio? Almdisso, existe realmente um grande nmero de pesquisadores que conhea ao menos o material impresso?

    Vemos assim que, dadas as circunstncias, no se pode dizer na verdade que "o material reunido ainda no suficiente". O problema, portanto, no reside na quantidade de material, mas nos mtodos de estudo.

    Enquanto as cincias fsico-matemticas possuem uma classificao harmoniosa, uma terminologia unificada e que adotada em congressos especializados, um mtodo aperfeioado por geraes e geraes de mestres, entre ns nada dissoexiste. O material heterogneo e variegado de que so constitudos os contos maravilhosos responsvel pela grandedificuldade na obteno de preciso e clareza na resoluo dos problemas relacionados com o assunto. No nos estamospropondo neste ensaio um histrico abrangente sobre o estudo dos contos, e nem isto possvel num curto captulo deintroduo. Alm disso, no to necessrio, levando-se em considerao que j foi feito diversas vezes. Simplesmente,

    1 M. Spernski, Rskaia stnaia slovesnost (=A literatura oral russa), Moscou, 1917, p. 400.2 J. Bolte, G. Polivka, Anmerkungen zu der Kinder - und Hausmrchen der Brder Grimm, tomos I-III, Leipzig, 1913,1915, 1918.

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    esforar-nos-emos em projetar uma luz crtica sobre o que sevem tentando fazer para a resoluo de certos problemasfundamentais, e levar o leitor a penetrar no campo delimitado por estas questes.

    No cabe dvida que os fenmenos e os objetos que nos rodeiam podem ser estudados, quer do ponto de vistade sua composio e construo, quer do ponto de vista de sua origem ou dos processos e alteraes a que sosubmetidos. H outra evidncia que no necessita de demonstrao: no se pode falar da origem de umfenmeno, seja ele qual for, antes de descrev-lo.

    Entretanto, o estudo do conto maravilhoso era abordado sobretudo atravs de uma perspectiva gentica, e, na maioriados casos, sem a menor tentativa de uma prvia descrio sistemtica. Por enquanto, no falaremos do estudohistrico dos contos maravilhosos e nos limitaremos sua descrio, porque falar da gnese sem dar uma atenoespecial ao problema da descrio, como geralmente costuma ser feito, completamente intil. evidente que, antesde elucidar a questo da origem do conto maravilhoso, deve-se saber em primeiro lugar o que conto.

    Visto que os contos maravilhosos so extremamente variados, claro que no se pode estud-los de imediato emtoda a sua dimenso; devemos dividir o material em vrias partes, ou seja, classific-lo. Uma classificao exata um dos primeiros passos da descrio cientfica. Da exatido da classificado depende a exatido do estudoposterior. Mas, mesmo que a classificao esteja situada na base de todo estudo, ela prpria deve ser o resultadode um exame preliminar profundo. Acontece, porm, que observamos justamente o contrrio: a maior parte dospesquisadores comea pela classificao introduzindo-a de fora no material, quando, de fato, deveria deduzi-la apartir dele. Como veremos adiante, os classificadores transgridem constantemente as regras mais simples dadiviso. Esta uma das causas do beco sem sada de que fala Spernski.

    Detenhamo-nos em alguns exemplos.

    A diviso mais habitual dos contos maravilhosos a que distingue os contos de contedo miraculoso, os contosde costumes e os contos sobre animais3 . A primeira vista, parece tratar-se de uma diviso coerente. Mas logo,quase sem querer, vem a questo: os contos sobre animais no contm algo de miraculoso, por vezes em graubastante elevado? E, vice-versa, no possuem os animais um papel importante nos contos miraculosos? Podeeste indcio ser considerado suficientemente preciso? Afanssiev, por exemplo, insere a histria do pescador e dopeixinho nos contos de animais. Tem ele razo? E, caso no a tenha, por que no? Veremos adiante que o contomaravilhoso atribui com muita facilidade as mesmas aes aos homens, aos objetos e aos animais. Esta regra seobserva sobretudo nos assim chamados contos de magia mas se encontra tambm nos contos maravilhosos emgeral. Neste sentido, um dos exemplos mais conhecidos o do conto sobre a distribuio da colheita ("Eu,Micha, colherei a parte de cima, e voc as razes"). Na Rssia o enganado um urso, enquanto que no Ocidente o diabo; por conseguinte, este conto, com a introduo da variante ocidental, fica excludo por completo doscontos de animais. Onde, pois, situ-lo? evidente que no se trata de um conto de costumes, visto que: segundoquais costumes seria a colheita repartida desta forma? Mas tampouco um conto de tema rniraculoso. Portanto,este conto simplesmente no se enquadra na classificao proposta.

    Nem por isso deixaremos de afirmar que esta classificao correta em princpio. Os pesquisadores deixaram-selevar pela intuio, e as palavras que usaram no corresponderam ao que na realidade percebiam. poucoprovvel que algum cometa o erro de situar a histria do pssaro-de-fogo e a do lobo cinzento entre os contosde animais. Resulta-nos igualmente claro que tambm Afanssiev cometeu um erro em relao ao conto dopeixinho de ouro. Mas, se percebemos este fato no porque nos contos apaream ou no animais, mas simporque os contos de magia possuem uma construo absolutamente peculiar, que se percebe de imediato e quedetermina esta categoria mesmo sem tomarmos conscincia do fato. Todo pesquisador, ao declarar que faz aclassificao segundo um esquema proposto, est na realidade procedendo de outra forma. Mas justamente aocontradizer-se que ele procede corretamente. Sendo assim, se a diviso est baseada inconscientemente naconstruo do conto, construo esta que ainda no foi estudada e nem sequer definida, a classificao do contomaravilhoso deve ser assentada em outras bases. preciso transform-la num sistema de indcios formais,estruturais, como acontece nas demais cincias. E, para isto, necessrio estudar esses indcios.

    3 Esta classificao, proposta por V. F. Milles, coincide em sua essncia com a classificao da escola mitolgica (contosmticos, de animais, de costumes).

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    Mas estamos indo muito depressa. A situao acima descrita permaneceu obscura at nossos dias. As novastentativas no trouxeram, substancialmente, nenhuma melhora. Assim, por exemplo, Wundt, em sua conhecidaobra Psicologia dos Povos4, prope a seguinte diviso:

    1. Contos-fbulas mitolgicos (Mythologische Fabelmrchen);

    2. Contos de feitiaria puros (Reine Zaubermrchen);

    3. Contos e fbulas biolgicas (Biologische Mrchen und Fabeln);

    4. Fbulas puras de animais (Reine Tierfabeln);

    5. Contos "sobre a origem" (Abstammungsmrchen);

    6. Contos e fbulas humorsticos (Scherzmrchen und Scherzfabeln);

    7. Fbulas morais (Moralische Fabeln).

    Esta classificao muito mais rica que as anteriores, mais tambm ela suscita objees. A fbula (termo queaparece na definio de cinco dos sete grupos) uma categoria formal. No fica claro o que Wundt entendia porfbula. A palavra "humorstico" absolutamente inaceitvel, pois o mesmo conto pode ser tratado de formaherica ou de forma cmica. Tambm cabe aqui perguntar qual a diferena entre a "fbula pura de animais" e a"fbula moral". At que ponto no so tambm "morais" as "fbulas puras", e vice-versa?

    As classificaes examinadas referem-se diviso dos contos segundo certas categorias. Existe tambm umadiviso dos contos maravilhosos de acordo com seus enredos.

    Se j encontramos dificuldades quando se trata da diviso por categorias, com a diviso por enredos encontramo-nos no caos completo; e isso sem mencionar o fato de que uma noo to complexa e vaga como a de enredo ouno contestada em absoluto, ou ento contestada, na obra de cada autor, sua maneira. Antecipando-nos umpouco, podemos dizer que a diviso dos contos de magia segundo o enredo , em essncia, absolutamenteimpossvel. Ela tambm deve ser revista da mesma forma que a diviso por categorias. Os contos maravilhosospossuem uma particularidade: as partes constituintes de um conto podem ser transportadas para outro semnenhuma alterao. Esta lei de permutabilidade ser estudada adiante mais detalhadamente; no momento, limitar-nos-emos a indicar que, por exemplo, Baba-Iag* aparece nos contos os mais diversos e nos mais variadosenredos. Este trao uma particularidade especfica do conto popular. No entanto, apesar desta particularidade,o enredo geralmente se determina da seguinte maneira: toma-se uma parte qualquer do conto (com freqnciauma parte casual, que simplesmente salta aos olhos); acrescenta-se a palavra "sobre" e est pronta a definio.Assim, o conto onde h uma luta com um drago se chamar "sobre a luta com o drago"; um conto em queaparece Kochchi, ser um conto "sobre Kochchi" etc., no havendo, portanto, nenhum princpio na escolhados elementos determinantes. Se recordarmos agora a lei da permutabilidade, ser logicamente difcil evitar umaconfuso, ou, explicando melhor, uma diviso cruzada, e esta classificao altera sempre a essncia do materialestudado. A isto tambm acrescentamos que o princpio fundamental da diviso no seguido, isto , transgride-se mais uma lei elementarssima da lgica. Tal situao perdura at nossos dias.

    Ilustraremos esta situao com dois exemplos.

    R. M. Volkov, professor em Odessa, publicou em 1924 uma obra sobre o conto maravilhoso.5 Nas primeiras pginasde seu livro, Volkov declara que o conto fantstico pode apresentar quinze enredos. Esses enredos so os seguintes:

    1. Sobre os inocentes perseguidos;

    2. Sobre o heri tolo;

    3. Sobre os trs irmos;

    4 W. Wundt, Vlkerpsychologie, tomo II, Leipzig, 1960, parte I, p. 346.

    * No folclore russo, velha dotada de poderes mgicos. (N.T.)5 R. M. Volkov, Skazka, Rozisknia po siujetoslojniu nardnoi skzki, tomo I. Skazka velikorskaia, ukrinskaia, bielorskaia. (=O conto. Pesquisas sobre a formao do enredo no conto popular, tomo I. O conto russo, ucraniano, bielorusso). Editora Estatalda Ucrnia (Odessa), 1924.

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    4. Sobre os que lutam contra drages;

    5. Sobre a procura de uma noiva;

    6. Sobre a donzela sbia;

    7. Sobre encantados e enfeitiados;

    8. Sobre o possuidor de um talism;

    9. Sobre o possuidor de objetos encantados;

    10. Sobre a mulher infiel, etc. etc.

    No nos diz, entretanto, como estes enredos foram estabelecidos. Se atentarmos no princpio da diviso, teremoso seguinte: a primeira subdiviso definida pelo n da intriga (veremos adiante o que, de fato, constitui o n daintriga) a segunda pelo carter do protagonista, a terceira pelo nmero de protagonistas, a quarta por um dosmomentos do desenrolar da ao etc. Conseqentemente, no h nenhum princpio que coordene a diviso emgeral. Deriva disso um verdadeiro caos. No existem contos em que os trs irmos (terceira subdiviso) saem procura de noivas (quinta subdiviso)? Ser que o dono de um talism nunca se serve dele para castigar a mulherinfiel? Podemos afirmar que esta no uma classificao cientfica no verdadeiro sentido da palavra; no passa deum indicador convencional, e de valor bastante duvidoso. Poderia ser comparada, sequer de longe, sclassificaes das plantas e dos animais efetuadas no segundo as aparncias, mas somente aps um estudoprvio, acurado e prolongado, do material?

    Tratando da questo da classificao por enredos, no podemos deixar de mencionar o elenco de contos de AnttiAarne.6 Aarne um dos fundadores da chamada escola finlandesa. No este o lugar adequado para avaliarmosde medo consistente esta corrente. Lembraremos apenas que entre suas publicaes cientficas existe um nmerorelevante de artigos e notas acerca das variantes deste ou daquele enredo. Estas variantes, s vezes, provm dasfontes mais inesperadas. Acumulam-se gradualmente, e no so submetidas a uma elaborao sistemtica. Aorientao desta corrente reside, em linhas gerais, justamente nisso. Seus representantes recolhem e comparam asvariantes de cada enredo no mundo inteiro; o material agrupa-se geo-etnograficamente segundo um sistemapreviamente elaborado; em seguida, tiram-se concluses sobre a construo fundamental, a difuso e a origemdos enredos. Mas este procedimento tambm merece uma srie de crticas. Como veremos adiante, os enredos(e, em especial, os de contos de feitiaria) esto ligados por uni parentesco bem prximo. No se podedeterminar onde termina um enredo com suas variantes e onde comea outro, a no ser depois de um estudoprofundo dos enredos dos contos e de uma definio correta do princpio que coordena a seleo dos enredos edas variantes. Isto, porm, no acontece. Tampouco levada em considerao a permutabilidade dos elementos.Os trabalhos desta escola se baseiam numa premissa inconsciente, segundo a qual cada um dos enredos umtodo orgnico, que pode ser destacado de uma srie de outros enredos e estudado isoladamente.

    Por outro lado, a diviso perfeitamente objetiva dos enredos e a seleo das variantes no constituem uma fciltarefa. Os enredos dos contos maravilhosos esto estreitamente ligados uns aos outros, to entrelaados que estaquesto precisa ser tratada de modo especial antes da prpria diviso por enredos. Se no for feito esse estudo, opesquisador atuar de acordo com seu gosto pessoal, e a diviso objetiva dos contos resultar simplesmenteimpossvel. Detenhamo-nos em um exemplo. Entre as variantes do conto Frau Holle, Bolte e Polivka citam oconto de Afanssiev intitulado Baba-Iaga.7 H referncias a uma srie de outros contos maravilhosos bastantevariados, com este mesmo enredo. Eles citam todas as variantes russas at ento conhecidas, incluindo aquelasem que Baba-Iag foi substituda por um drago ou por camundongos. Mas, por outro lado, falta o contoMorozko.* Por qu? Tambm nele encontramos a enteada expulsa de casa, o regresso ao lar com presentes, bem

    6 A. Aarne, Verzeichnis der Mrchentypen. Folklore Fellows Communications, n 3, Helsinki, 1911. Este ndice foi traduzido ereeditado em vrias ocasies. ltima edio: The Types of the Folktale. A Classification and Bibliography. Antti Aarne'sVerzeichnis der Mrchentypen (FFC, n 3). Transiated and enlarged by S. Thom- pson, Folklore Fellows Communications, n184, Helsinki, 1964. (Traduo russa: N.P. Andreiev, ndice dos enredos do conto maravilhoso segundo o sistema de A. Aarne,Leningrado, 1929.)7 Os nmeros grifados que daremos de agora em diante correspondem aos contos da ltima edio da coletnea de Afanssiev:Nardnie rskie skzki A. N. Afanssieva. (= Os contos populares russos de Afanssicv), tomos I-III, Moscou, 1958.* Derivado de "moroz", em russo: frio intenso. Personificao folclrica do Inverno. (N.T.)

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    como a expulso da prpria filha e seu castigo. Alm disso, "Frau Holle" e "Morozko" so ambos personificaodo Inverno, mas no conto alemo a personificao feminina e no conto russo masculina. Mas, pelo visto,Morozko acabou fixando-se, subjetivamente, pela fora artstica deste conto, como determinado enredoindependente, que pode ter suas prprias variantes. Vemos, assim, que no existem critrios absolutamenteobjetivos para o estabelecimento de uma diviso entre dois enredos. Onde um pesquisador v um enredo novo,outro ver uma variante, e vice-versa. Apresentamos um exemplo bem simples, mas medida que o material depesquisa aumenta e se amplia, as dificuldades se multiplicam.

    De qualquer maneira, os mtodos desta escola exigem que se elabore, antes de tudo, um elenco de enredos, eesta foi a tarefa empreendida por Aarne.

    Sua lista entrou no uso internacional e prestou enorme servio no campo do estudo do conto maravilhoso:graas ao ndice de Aarne tornou-se possvel numerar os contos. Aarne denomina os enredos de tipos e cada tipoest numerado. Esta designao curta e convencional dos contos maravilhosos realmente cmoda (neste casoespecfico, remete-se ao nmero do ndice).

    Mas, paralelamente a seus mritos, o ndice possui tambm uma srie de defeitos essenciais: quanto classificao, no est isento dos mesmos erros de Volkov. As divises fundamentais so as seguintes:

    1. Contos de animais;

    2. Contos maravilhosos propriamente ditos; e

    3. Anedotas.

    Reconhecemos facilmente os velhos procedimentos apesar de sua nova formulao. ( um tanto estranho que oscontos de animais no sejam reconhecidos como contos maravilhosos propriamente ditos.) Em seguida, temosvontade de perguntar se possumos um estudo bastante exato da noo de anedota para poder utiliz-la comabsoluta tranqilidade (cf. as fbulas em Wundt). No entraremos em todos os detalhes desta classificao e nosdeteremos nos contos de feitiaria que constituem uma subclasse. Assinalemos que a introduo de subclasses um mrito de Aarne, porque a diviso em gneros, espcies e subespcies no havia sido elaborada antes dele. Oscontos de feitiaria se subdividem, segundo Aarne, nas seguintes categorias: 1) o inimigo mgico; 2) o esposo (aesposa) mgico; 3) a tarefa mgica; 4) o auxiliar mgico; 5) o objeto mgico; 6) a fora ou o conhecimentomgico; 7) outros motivos mgicos. Quanto a esta classificao, poderamos repetir quase que palavra porpalavra as objees formuladas classificao de Volkov. O que fazer, por exemplo, com os contos nos quais atarefa mgica se realiza graas a um auxiliar mgico, o que acontece com muita freqncia, ou com aqueles nos quaisa esposa mgica justamente o auxiliar mgico?

    E certo que Aarne no tentou fazer uma classificao verdadeiramente cientfica; seu ndice importante como guiaprtico, e como tal de extraordinria relevncia. Mas essa lista de Aarne perigosa por outros motivos. D idias falsassobre o essencial. De fato, no existe uma diviso ntida dos contos em tipos e ela, com freqncia, puramente fictcia.Se existem tipos, no esto no nvel em que Aarne os situou, mas no das particularidades estruturais dos contos que seassemelham entre si; mais tarde voltaremos a este assunto. Da proximidade dos enredos e da impossibilidade de traarentre eles um limite totalmente objetivo decorre que, ao procurar enquadrar-se um texto neste ou naquele tipo, no sesabe que nmero escolher. A correspondncia entre um tipo e o texto a ser definido no passa, em geral, de umaaproximao. Dos cento e vinte e cinco contos apresentados na coleo de A. I. Nikforov, apenas vinte e cinco (i.e.,20%) se relacionam com os tipos de modo aproximado e convencional, o que indicado pelo autor entre parnteses.8Mas o que aconteceria se diferentes pesquisadores relacionassem o mesmo conto com tipos diferentes? Por outro lado,ao serem definidos os tipos por este ou aquele momento expressivo e no pela estrutura dos contos, visto que umahistria pode conter vrios momentos desse tipo, acontece que se acaba por relacionar o mesmo conto com vrios tipos(at cinco, no caso de um deles), o que no significa de modo algum que o texto dado seja composto por cinco enredos.Tal processo de determinao no , no fundo, mais do que uma definio segundo as partes constituintes. Para um certogrupo de contos, Aarne chega a afastar-se de seus princpios: de modo inesperado e um tanto inconseqente, passa dadiviso por enredos diviso por motivos. assim que determina uma de suas subclasses, grupo que denomina "sobre o

    8 A. I. Nikforov, Skzotchnie materili Zaonjia sbrannie v 1926 godu (= Contos maravilhosos da regio do lago Onega,recolhidos em 1926). Comisso de compilao de contos maravilhosos em 1926. Relatrio dos trabalhos, Leningrado, 1927

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    diabo estpido". Mas esta incoerncia representa, mais uma vez, o bom caminho que a intuio indica. Tentaremosmostrar adiante que o mtodo adequado de pesquisa o estudo dos fragmentos mais curtos que constituem o conto.

    Vemos, assim, que a classificao dos contos maravilhosos no chegou a constituir pleno xito. E, contudo, aclassificao uma das primeiras e principais etapas da investigao. Basta lembrar a importncia que teve para a Botnicaa primeira classificao cientfica de Lineu. Esta nossa cincia, porm, encontra-se no perodo anterior a Lineu.

    Passemos a outra parte muito importante do estudo do conto maravilhoso: sua descrio propriamente dita.Podemos observar o seguinte panorama: freqentemente, os pesquisadores que lidam com problemas dadescrio no se preocupam com a classificao (Vesselvski). Por outro lado, os que se dedicam classificao,nem sempre descrevem os contos minuciosamente, contentando-se apenas em estudar alguns de seus aspectos(Wundt). Se um pesquisador se ocupa de ambos os aspectos, no deve colocar a classificao aps a descrio: adescrio deve enquadrar-se nos limites de uma classificao prvia.

    A. N. Vesselvski disse muito pouco sobre a descrio do conto maravilhoso; mas o que disse de enormeimportncia. Vesselvski entende o enredo como um complexo de motivos. Um motivo pode relacionar-se comenredos diferentes.9 ("Uma srie de motivos um enredo. O motivo se amplia at o enredo." "Os enredosvariam: alguns motivos invadem enredos, ou enredos combinam-se entre si." "Por enredo entendo o tema, noqual se interpenetram diferentes situaes - os motivos.") Para Vesselvski o motivo primrio, o enredosecundrio. O enredo um ato de criao, de conjuno. Da decorre para ns a necessidade de estudar notanto segundo os enredos, mas, antes de tudo, segundo os motivos.

    Se a cincia do conto maravilhoso tivesse seguido mais o conselho de Vesselvski: "Separar o problema dos motivosdo problema dos enredos10 (o grifo de Vesselvski), muitos pontos obscuros j teriam desaparecido.11

    Mas o estudo de Vesselvski sobre os motivos e os enredos no passa de um princpio geral. A explicao concretaque d ao termo motivo j no aplicvel hoje em dia. Segundo ele, o motivo uma unidade indecomponvel danarrao. ("Por motivo, entendo a unidade mais simples da narrao." "A marca do motivo seu esquematismoimagtico e uno; so assim os elementos indecomponveisda mitologia inferior e do conto maravilhoso.)12 Mas osmotivos que cita como exemplo podem ser decompostos. Se o motivo uma totalidade lgica, cada frase do contomaravilhoso constitui um motivo ("o pai tem trs filhos" e um motivo; "a enteada sai de casa" um motivo; "Ivan lutacom drago" tambm um motivo e assim por diante). Estaria tudo bem se os motivos, na realidade, no sedesdobrassem, pois isto permitiria construir um elenco de motivos. Mas tomemos o seguinte motivo: "o drago raptaa filha do rei (o exemplo no de Vesselvski). Este motivo desdobra-se em quatro elementos, dos quais cada um,isoladamente, pode variar. O drago pode ser substitudo por Kochchi, por um turbilho, o diabo, um falco ou umfeiticeiro O rapto pode ser trocado por vampirismo, ou por diferentes aes que no conto maravilhoso produzemdesaparecimento. A filha pode ser substituda pela irm, a noiva, a mulher, a me. O rei pode dar lugar ao filho do rei,a um campons, a um pope. Deste modo, apesar de Vesselvski, vemo-nos obrigados afirmar que o motivo no uno, nem indivisvel. A unidade elementar e indivisvel, como tal, no constitui um todo lgico ou artstico.Concordando com Vesselvski que na descrio a parte deve vir antes do todo (segundo Vesselvki, este motivo primrio em relao ao enredo tambm pela sua origem), deveremos em seguida resolver o problema: isolar oselementos primrios de modo diferente de Vesselvski.

    Onde fracassou Vesselvski fracassaram tambm outros pesquisadores. Podemos citar os trabalhos de J. Bdier13como exemplo de um procedimento metodolgico muito valioso. A importncia do mtodo de Bdier reside nofato de ter sido o primeiro a reconhecer que existe no conto maravilhoso uma certa relao entre as grandezasconstantes e as grandezas variveis. Bdier tentou expressar isto de forma esquemtica. Denominou elementos sgrandezas constantes, essenciais, e os designou com a letra Omega ( ). As demais grandezas, variveis, foram 9 A. N. Vesselvski, Potika siuitov (= Potica dos enredos), Obras reunidas, srie I (Potika, tomo II, fase. I, S. Petersburgo,1913, p. 1-133).10 Idem ibidem.11 Volkov cometeu um erro imperdovel: "O enredo do conto maravilhoso aquela unidade constante, aquele nico ponto departida possvel para o estudo desses contos." (R.M. Volkov, Skazka, p. 5). Ns respondemos, porm, que o enredo no umaunidade, mas um complexo; no constante, mas varivel; tom-lo como ponto de partida para o estudo do conto maravilhoso totalmente impossvel.12 A. N. Vesseivski, Potika siuitoy (= Potica dos enredos), p. 11, 3.13 J. Bdier, Les Fabliaux, Paris, 1893.

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    designadas com letras latinas. De modo que o esquema de um conto + a + b + c, o de outro + b+ c+ n, eo de outro ainda + l + m + n etc. Mas esta idia, correta em sua essncia, choca-se com a impossibilidade dedefinir exatamente este mega. Continua sem explicao o que, de fato, representam objetivamente os elementosde Bdier14 e como destac-los.

    De um modo geral, os pesquisadores no se tem ocupado muito dos problemas apresentados pela descrio do contomaravilhoso, preferindo consider-lo como um todo acabado, concludo. Somente em nossos dias difunde-se cada vezmais a idia da necessidade de uma descrio exata do conto maravilhoso, embora j se venha falando h muito tempodas formas desse conto. Na realidade, enquanto se descrevem os minerais, as plantas, os animais (e se descrevem eclassificam justamente de acordo com a sua construo), enquanto j est descrita toda uma srie de gneros literrios (afbula, a ode, o drama etc.), o conto maravilhoso continua a ser estudado sem essa descrio. V. B. Chklvskidemonstrou a que absurdo pode chegar o estudo gentico do conto maravilhoso, caso no nos detivermos em suasformas.15 Ele cita como exemplo o conhecido conto em que se mede a terra utilizando uma pele. Ao heri do conto permitido ficar com tanta terra quanto possa abarcar com uma pele de boi. Cortando a pele em tiras, ele cerca mais terrado que era esperada pela parte enganada. V. F. Miller e outros tentaram encontrar neste conto traos de um ato jurdico.Chklvski escreve: "Ocorre que a parte enganada - e em todas as variantes do conto se trata de um embuste - noprotesta contra esse roubo de terras porque a terra era geralmente medida desta forma. Isto nos leva a um absurdo. Se, nomomento em que se supe que aconteceu esta ao, existia o costume de medir terras "rodeando-as com uma tira", e eraconhecido tanto pelo vendedor como pelo comprador, no s no h embuste como tampouco existe sequer umenredo, j que o vendedor saberia de antemo o que se passaria". Deste modo, levar o conto at a realidade histrica semexaminar as particularidades da narrao como tal, conduz a concluses errneas apesar da imensa erudio dospesquisadores.

    Os procedimentos de Vesselvski e de Bdier pertencem a um passado mais ou menos longnquos. Apesar deestes cientistas terem trabalhado sobretudo como historiadores do folclore, seus procedimentos de estudo formalconstituam realizaes novas, em essncia corretas, mas que no foram aplicadas nem elaboradas por ningum.Atualmente, a necessidade de estudar as formas do conto maravilhoso no suscita objees.

    O estudo da estrutura de todos os aspectos do conto maravilhoso a condio prvia absolutamenteindispensvel para seu estudo histrico. O estudo das leis formais pressupe o estudo das leis histricas.

    Mas o nico estudo que pode responder a estas condies o que descobre as leis da construo, e no o queapresenta um catlogo superficial dos procedimentos formais da arte do conto maravilhoso. O livro j citado deVolkov prope o seguinte meio de descrio: primeiramente se desdobra os contos em motivos. So consideradosmotivos tanto as qualidades dos heris ("dois cunhados inteligentes, o terceiro imbecil"), como sua quantidade ("trsirmos"); os atos dos protagonistas ("ltima vontade do pai - que os filhos velem seu tmulo aps a sua morte -respeitada s pelo imbecil"); os objetos ("a Isb sobre ps de galinha", "os talisms") etc. A cada um destes motivoscorresponde um signo convencional, uma letra e um algarismo, ou uma letra e dois algarismos.

    Os motivos mais ou menos semelhantes apresentam a mesma letra com algarismos diferentes. Mas pergunta-seento: se formos de fato conseqentes e designarmos deste modo absolutamente todo contedo do contomaravilhoso, quantos motivos teremos? Volkov apresenta cerca de 250 designaes (no h um lista exata). evidente que muitos motivos foram deixados de lado e que Volkov fez uma seleo, mas no sabemos qual ocritrio seguido. Tendo isolado os motivos desta forma, Volkov transcreve os contos maravilhosos, traduzindomecanicamente os motivos em signos e comparando os esquemas. Os contos que se assemelham do,naturalmente, esquemas semelhantes. As transcries ocupam todo o livro. A nica concluso que se podetirar de semelhante transcrio a afirmao de que os contos semelhantes se assemelham, o que no serve paranada, nem leva a parte alguma.

    Sabemos qual a natureza dos problemas estudados pela cincia. No leitor pouco preparado poderia surgir umapergunta: no se ocupa a cincia com abstraes absolutamente inteis na realidade? Que um motivo seja ou no

    14 Cf. S.F. Oldenburg, "Fabliaux vosttchnovo proiskhojdnia" (Fabliaux de origem oriental), Jurnal Ministerstva nardnovoprosvechchnia (Revista do Ministrio de Instruo Pblica), CCCXLV, 1903, n 4, fasc. II, p. 217-238 (onde se encontraruma exposio mais detalhada dos procedimentos de Bdicr).15 V. Chklvski, O terii przi (= Sobre a teoria da prosa), Moscou-Leningrado, 1925, p. 24 e seg.

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    desdobrvel, no exatamente igual? Que importa saber como isolar os elementos fundamentais, como classificar oscontos, se devem ser estudados por meio dos motivos ou dos enredos? Deseja-se involuntariamente que apaream certasperguntas mais concretas, mais tangveis, perguntas mais chegadas a qualquer pessoa que simplesmente gosta do contomaravilhoso. Mas tal exigncia est baseada num erro. Vejamos uma analogia. Pode-se falar da vida de uma lngua semsaber nada das partes do discurso, isto , de certos grupos de palavras colocados segundo as leis de suas transformaes?Uma lngua viva um fato concreto, a gramtica seu suporte abstrato. Tais substratos se encontram na base denumerosos fenmenos da existncia, e justamente sobre eles que se concentra a ateno da cincia. Nenhum fatoconcreto pode ser esclarecido sem que se estudem antes estas bases abstratas. A cincia no se limitou s questes queaqui abordamos. Falamos somente dos problemas relacionados com a morfologia. No abordamos em particular oimenso campo das investigaes histricas. Estas podem ser aparentemente mais interessantes do que as investigaesmorfolgicas, e tem-se trabalhado muito neste setor. Mas a questo geral de saber de onde surgiram os contosmaravilhosos no est resolvida na sua totalidade, ainda que existam leis que regem seu nascimento e seudesenvolvimento, mas que ainda aguardam uma formulao mais elaborada. Em compensao, certas questesespecficas foram mais estudadas. Seria intil uma enumerao de nomes e de obras. Mas afirmamos que enquanto noexistir uma elaborao morfolgica correta no poder haver uma elaborao histrica correta. Se no soubermosdecompor um conto maravilhoso em suas partes constituintes, no poderemos estabelecer nenhuma comparao exata.E se no soubermos comparar como poderemos projetar uma luz, por exemplo, sobre as relaes indo-egpcias, ousobre as relaes da fbula grega com a fbula indiana etc.? Se no soubermos comparar os contos maravilhosos entre si,como estudar os laos existentes entre o conto e a religio, como comparar os contos e os mitos? Finalmente, assimcomo todos os rios vo para o mar, todos os problemas do estudo dos contos maravilhosos devem conduzir no final soluo desse problema essencial at hoje no resolvido, o da semelhana entre os contos do mundo inteiro. Comoexplicar que a histria da princesa-r se assemelhe na Rssia, Alemanha, Frana, ndia, entre os peles-vermelhas daAmrica e na Nova Zelndia, quando no se pode provar historicamente nenhum contato entre esses povos? Estasemelhana no poder ser explicada se tivermos uma imagem inexata de sua natureza. O historiador sem experincia emproblemas morfolgicos no ver a semelhana onde ela existir realmente; deixar de lado coincidncias muitoimportantes, e que lhe passaro desapercebidas; e, pelo contrrio, onde acreditou haver uma semelhana, poder serdesiludido pelo especialista em morfologia, que provar que os fenmenos comparados so totalmente heterogneos.

    Vemos, deste modo, quantas coisas dependem do estudo das formas. No renunciaremos a este trabalho analticometiculoso, quase braal, complicado ainda mais pelo fato de que se comea de um ngulo formal e abstrato. Estetrabalho braal e "desinteressante" na realidade o caminho para as construes gerais e "interessantes".

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    Ttulo: Morfologia do Conto MaravilhosoAutor: Vladimir I. ProppEditora: CopyMarket.com, 2001

    2. Mtodo e MaterialVladimir I. Propp

    Eu estava absolutamente convencido de que o tipo geral, fundado em transformaes, passa atravs de todas as substncias orgnicase pode ser, facilmente observado em todas as partes num corte mediano qualquer.

    GOETHE

    Tentaremos, em primeiro lugar, definir a nossa tarefa.

    Como j observamos no prefcio, esta obra est dedicada aos contos de magia. A existncia dos contos de magiacomo categoria particular ser admitida como hiptese de trabalho indispensvel. Por conto de magiaentenderemos, por enquanto, os que esto classificados no ndice de Aarne e Thompson entre os nmeros 300 e749. Esta definio preliminar artificial, e adiante teremos ocasio de dar outra mais correta, baseada nasprprias concluses obtidas. Empreenderemos a comparao entre os enredos destes contos. Para isto,isolaremos as partes constituintes dos contos de magia segundo procedimentos particulares (cf. adiante), aps oque compararemos os contos segundo suas prprias partes constituintes. Obteremos como resultado umamorfologia, isto , uma descrio do conto maravilhoso segundo as partes que o constituem, e as relaes destaspartes entre si e com o conjunto.

    Quais os mtodos que permitem obter uma descrio exata do conto maravilhoso?

    Comparemos os seguintes casos:

    1. O rei d uma guia ao destemido. A guia o leva para outro reino (171);

    2. O velho d um cavalo a Sutchenko. O cavalo o leva para outro reino (132);

    3. O feiticeiro d a Ivan um barquinho. O barquinho o leva para outro reino (138);

    4. A filha do czar d a Ivan um anel. Moos que surgem do anel levam Ivan para outro reino(156) etc.

    Nos casos citados encontramos grandezas constantes e grandezas variveis. O que muda so os nomes (e, comeles, os atributos) dos personagens; o que no muda so suas aes, ou funes. Da a concluso de que o contomaravilhoso atribui freqentemente aes iguais a personagens diferentes. Isto nos permite estudar os contos apartir das funes dos personagens.

    Ser preciso determinar em que medida estas funes representam realmente as grandezas constantes, repetidas,do conto maravilhoso. A colocao de todos os demais problemas depender da resposta a esta primeirapergunta: quantas funes pode englobar um conto maravilhoso?

    Nosso estudo mostrar que a repetio das funes surpreendente. Assim, tanto Baba-Iag como Morozko, ourso, o esprito da floresta ou a cabea da gua pem prova a enteada e a recompensam. Prosseguindo comestas observaes, pode-se estabelecer que os personagens do conto maravilhoso, por mais diferentes que sejam,realizam freqentemente as mesmas aes. O meio em si, pelo qual se realiza uma funo, pode variar: trata-se deuma grandeza varivel. Morozko atua de modo diferente de Baba-Iag, mas a funo, enquanto tal, umagrandeza constante. No estudo do conto maravilhoso o que realmente importa saber o que fazem ospersonagens. Quem faz algo e como isso feito, j so perguntas para um estudo complementar.

    As funes dos personagens representam as partes constituintes que podem tomar o lugar dos motivos deVesselvski, ou dos elementos de Bdier. Lembremos que a repetio de funes por personagens diferentes foiobservada h bastante tempo pelos historiadores das religies nos mitos e nas crenas, mas no peloshistoriadores do conto maravilhoso. Assim como as propriedades e funes dos deuses se deslocam de uns para

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    outros, chegando finalmente at os santos do cristianismo, as funes de certos personagens dos contosmaravilhosos se transferem para outros personagens. Antecipando, podemos dizer que existem bem poucasfunes, enquanto que os personagens so numerosssimos. Isto explica o duplo aspecto do conto maravilhoso:de um lado, sua extraordinria diversidade, seu carter variegado; de outro, sua uniformidade, no menosextraordinria, e sua repetibilidade.

    Sendo assim, as funes dos personagens representam as partes fundamentais do conto maravilhoso, e devemosdestac-las em primeiro lugar.

    Para destacar as funes preciso, primeiro, defini-las. Esta definio deve ser o resultado de dois pontos devista. Em primeiro lugar, no se deve nunca levar em conta o personagem que executa a ao. Na maioria doscasos, a definio se designar por meio de um substantivo que expressa ao (proibio, interrogatrio, fugaetc.). Em segundo lugar, a ao no pode ser definida fora de seu lugar no decorrer do relato. Deve-se tomar emconsiderao o significado que possui uma dada funo no desenrolar da ao.

    Deste modo, se Ivan se casa com a princesa, trata-se de algo totalmente diverso do casamento do pai com aviva, me de duas filhas. Outro exemplo: se, num caso, o heri recebe do pai a quantia de 100 rublos e com elescompra para si um gato adivinho, e, em outro caso, o heri recebe dinheiro como recompensa por uma faanhaque acaba de realizar, e nesse momento o conto termina - encontramo-nos perante elementos morfolgicosdiferentes, apesar da identidade de ao (o presente em dinheiro). Deduzimos assim que procedimentos idnticospodem ter significados diferentes e vice-versa. Por funo, compreende-se o procedimento de um personagem, definido doponto de vista de sua importncia para o desenrolar da ao.

    As observaes apresentadas podem ser formuladas brevemente nos seguintes termos:

    I. Os elementos constantes, permanentes, do conto maravilhoso so as funes dos personagens, independentemente da maneira pelaqual eles as executam. Essas funes formam as partes constituintes bsicas do conto.

    II. O nmero de funes dos contos de magia conhecidos limitado.

    Isoladas as funes, eis que se apresenta outra questo: em que agrupamento, e em que seqncia se encontramestas funes? Em primeiro lugar, falemos sobre a seqncia. Existe a opinio de que esta ordem casual. DizVesselvski: "A escolha e a disposio das tarefas e dos encontros (exemplos de motivos V. P.) ... j pressupemdeterminada liberdade.1 Chklvski expressou esta idia de modo ainda mais incisivo: "No se, compreendeabsolutamente por que, nos emprstimos, deve-se conservar a ordem casual dos motivos (grifo de Chklvski. V.P.). As testemunhas nos depoimentos mostram que justamente a seqncia dos acontecimentos o que mais sedeforma."2 Esta referncia a depoimentos de testemunhas no feliz. Se as testemunhas alteram a seqncia, orelato delas incoerente, mas a seqncia dos acontecimentos tem suas leis, como tambm tem suas leis anarrativa literria. O roubo no pode ser efetuado antes de se arrombar a porta. No que diz respeito ao contomaravilhoso, este possui suas leis absolutamente particulares e especficas. A seqncia dos elementos, comoveremos adiante, rigorosamente idntica. A liberdade neste terreno limitada por regras bastante rgidas, e quepodem ser determinadas com preciso. Chegamos terceira tese fundamental de nosso trabalho, sujeita adesenvolvimento e demonstrao ulteriores:

    III. A seqncia das funes sempre idntica.

    necessrio mencionar que a lei citada refere-se somente ao folclore. No so uma peculiaridade de gnero doconto maravilhoso como tal. Os contos criados artificialmente no se submetem a elas.

    No que concerne ao agrupamento, antes de tudo, necessrio dizer que nem todos os contos maravilhososapresentam todas as funes. Mas isto no modifica de forma alguma a lei da seqncia. A ausncia de algumasfunes no muda a disposio das demais. Voltaremos a deter-nos neste fenmeno; examinemos agora oagrupamento das funes, no sentido prprio da palavra. O simples fato de apresentar tal questo suscita asuposio seguinte: uma vez isoladas as funes, ser possvel verificar quais os contos que apresentam funesidnticas. Tais contos com funes idnticas podero ser considerados do mesmo tipo. Sobre esta base ser

    1 A. N. Vesselvski, Potika siujtop, p. 3.2 V. Chklvski, O terii przi, p. 23

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    possvel elaborar posteriormente um ndice de tipos, construdo no sobre indcios de enredos um tanto vagos eincertos, mas sobre indcios estruturais exatos. Isto parece ser realmente possvel. Mas se continuarmos acomparar os tipos estruturais entre si, encontraremos a seguinte observao, completamente inesperada: asfunes no podem ser distribudas segundo eixos que se excluam mutuamente. Este fenmeno aparecer emtoda sua concretude no captulo seguinte e no ltimo. Enquanto isso, podemos explic-lo da seguinte forma: sedesignarmos com a letra A a funo que se encontra sempre em primeiro lugar, e pela letra B a funo (caso elaexista) que sempre a segue, todas as funes conhecidas no conto maravilhoso se colocaro de acordo com umrelato nico, nenhuma delas sair da srie, nem iro excluir-se ou contradizer-se mutuamente. No se poderiaprever, de modo algum, semelhante concluso. Certamente, era de se esperar que onde estivesse a funo A, nopoderia existir outras funes, pertencentes a outros relatos. Espervamos descobrir vrios eixos, mas deparamoscom um eixo nico para todos os contos de magia. Todos so de um nico tipo, e as combinaes de quefalamos acima constituem seus subtipos. primeira vista, esta concluso pode parecer absurda, at mesmoextravagante, mas ela pode ser verificada de forma absolutamente precisa. Esta monotipia representa, de fato, umproblema muito complexo, no qual ainda teremos de nos deter. Trata-se, sem dvida, de um fenmeno quesuscita toda uma srie de indagaes.

    Chegamos assim quarta tese bsica de nosso trabalho:

    IV. Todos os contos de magia so monotpicos quanto construo.

    Procedamos agora demonstrao dessas teses, e a seu desenvolvimento mais detalhado. preciso lembrar aqui queo estudo do conto maravilhoso deve ser conduzido (e realmente isso foi feito em nosso trabalho) de modorigorosamente dedutivo, isto , indo do material s concluses. Mas a exposio pode seguir o rumo inverso, pois mais fcil acompanhar seu desenvolvimento se o leitor conhecer de antemo as bases gerais deste trabalho.

    Contudo, antes de iniciar a elaborao, preciso resolver uma questo: sobre que material pode ser realizada estaelaborao? primeira vista, parece que se deveria reunir todo o material existente a esse respeito. Isso, porm,no necessrio. Como estudamos os contos maravilhosos a partir das funes dos personagens, podemos parara insero do material no momento em que percebermos que os novos contos no trazem nenhuma novafuno. natural que o material de controle examinado pelos pesquisadores deve ser considervel, mas no necessrio utiliz-lo todo no trabalho. Somos da opinio que cem contos com enredos diferentes constituem ummaterial mais do que suficiente. No momento em que se constata a inexistncia de novas funes, o morfologistapode fazer ponto final e o estudo seguir posteriormente novas diretrizes (composio de ndices, sistematizaocompleta, estudo histrico, estudo do conjunto dos procedimentos literrios etc.). Mas se o material pode serlimitado quantitativamente, isto no significa que ele possa ser escolhido de acordo com o gosto pessoal de cadaum. Ele deve se impor de fora. Tomemos a coletnea de Afanssiev, e iniciemos o estudo dos contosmaravilhosos pelo nmero 50 (que segundo o plano de Afanssiev o primeiro conto de magia de suacoletnea), continuando at o nmero 151. Certamente, esta limitao do material trar inmeras objees, mas justificada teoricamente. Para justific-la mais amplamente, deveramos perguntar em que medida se repetem osfenmenos ligados ao conto maravilhoso. Caso a repetio seja grande, poderemos sem dvida nos contentarcom um material limitado; j o mesmo no acontece caso a repetio seja pequena. A repetio das partesconstituintes fundamentais do conto maravilhoso, como veremos adiante, supera qualquer expectativa. Porconseguinte, teoricamente possvel limitar-se a um material modesto. Esta limitao se justifica na prtica pelofato de que a utilizao de uma grande quantidade de material aumentaria excessivamente o volume deste livro. Eo problema, repetimos, no reside na quantidade do material, mas na qualidade de sua elaborao. Nossomaterial constitudo de cem contos. O resto material de controle, de grande importncia para o pesquisador,mas desprovido de interesse mais geral.

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    Ttulo: Morfologia do Conto MaravilhosoAutor: Vladimir I. ProppEditora: CopyMarket.com, 2001

    3. Funes dos PersonagensVladimir I. Propp

    Neste captulo enumeraremos as funes dos personagens na ordem ditada pelos prprios contos maravilhosos.

    Para cada funo daremos: 1) breve descrio de sua essncia, 2) definio reduzida numa palavra, 3) seu signoconvencional. (A introduo de signos permitir comparar de modo esquemtico a construo dos contos.) Emseguida, apresentaremos exemplos. A maior parte dos exemplos no esgotam nosso material; servem apenascomo amostras. Os exemplos esto dispostos segundo grupos conhecidos, e os grupos se relacionam com adefinio, da mesma forma que as espcies com o gnero. O trabalho fundamental consiste em isolar os gneros. Oestudo das espcies no pode ser incl