vozes da terra
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VOZES DA TERRA
ALBERTO SALGADO HARRES
Projeto de Graduaccedilatildeo apresentado ao Curso de Artes Visuais Escultura pela Escola de
Belas Artes Universidade Federal do Rio de Janeiro
Orientador Floriano Romano
Rio de Janeiro RJ
Dezembro de 2018
Sumaacuterio 1 Resumo
2 Primeiro experimento
3 AEI - Arte Eletrocircnica Indiacutegena
4 O povo Pankararu
5 A Residecircncia
6 Exposiccedilatildeo
7 Miolo de Pote
8 Conclusatildeo
9 Agradecimentos
10 Bibliografia
Resumo
Vozes da Terra eacute um experimecircnto artiacutestico em curso que busca conectar a tecnologia
ancestral da ceracircmica indiacutegena com dispositivos sonoro-poeacuteticos Iniciado no atelier de
ceracircmica da UFRJ desdobrou-se para uma residecircncia artiacutestica numa aldeia indiacutegena
da etnia Pankararu atraveacutes do projeto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo e teve como resultado
final uma exposiccedilatildeo no MAM de SalvadorBA Esse texto busca descrever o processo
artiacutestico envolvendo todas as etapas de criaccedilatildeo e contextualizar o artefato poeacutetico
destacando seu aspecto poliacutetico-social para a memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
Primeiro experimento
Os primeiros esboccedilos e ideias para o que viria a ser o projeto Vozes da Terra surgem
no final de 2017 quando realizava uma pesquisa em dispositivos poeacutetico-sonoros
Nesse periacuteodo rondava na minha cabeccedila uma ideia de uma maacutequina esquizofrecircnica
que escutasse o entorno e o repetisse sem parar somando vozes ateacute o barulho
completo
A ideia dessa maacutequina foi caminhando para se tornar realidade No decorrer da
disciplina de ceracircmica da professora Kaacutetia Gorini na UFRJ-EBA com a intenccedilatildeo de
fazer um pote de ceracircmica veio-me em mente um dispositivo eletrocircnico sonoro
integrado ao pote talvez ele pudesse ser essa lsquocacircmara de ecorsquo que havia antes
vislumbrado Durante a modelagem do barro a Prof Kaacutetia Gorini mostrou-me um viacutedeo
que acompanhava uma indiacutegena na produccedilatildeo do artesanato de ceracircmica desde a
retirada do barro a sua preparaccedilatildeo modelagem secagem ateacute a queima A partir
dessa referecircncia tive o insight de conectar a tradiccedilatildeo da oralidade (caracteriacutestica dos
indiacutegenas brasileiros) com a proacutepria ceracircmica indiacutegena num dispositivo sonoro de
ecos Ao refletir acerca da fusatildeo entre esses fatores comecei a abordar as seguintes
questotildees como poderia um dispositivo eletrocircnico incorporar a dinacircmica da oralidade
subjetiva no seu proacuteprio procedimento De que forma eacute possiacutevel integrar a tecnologia
ancestral da ceracircmica com maacutequinas binaacuterias maacutequinas de som
Esses questionamentos levaram-me a ideia de desenvolver um pote de ceracircmica que
tivesse um microfone e um alto-falante acoplados dentro dele e que pudesse funcionar
como uma maacutequina de ecos potencializando a oralidade num sistema automatizado de
escuta das ondas sonoras projetadas para dentro do pote e de dentro deles serem
novamente reproduzidas
O Protoacutetipo
Paralelamente a moldagem do barro fiz uma pesquisa teacutecnica a fim de cumprir as
necessidades baacutesicas das funcionalidades de detecccedilatildeo escuta memorizaccedilatildeo e
reproduccedilatildeo sonora de maneira alternada e automatizada a partir de um computador
um microfone e um alto-falante Essa capacidade de escuta e reproduccedilatildeo sonora
dentro de um uacutenico objeto natildeo seria possiacutevel usando somente o efeito de Delay sonoro
pois geraria de imediato um efeito de microfonia no dispositivo Recorri entatildeo agrave
programaccedilatildeo modelando um software que fosse capaz de maneira automatizada e
alternada reproduzir e gravar sons emitidos dentro do pote
Na busca de algum coacutedigo de software livre que contemplasse essas capacidades
encontrei a biblioteca de coacutedigo chamada AUDITOK (Audio Tokenizer ) que denomina
um sistema de detecccedilatildeo de atividade sonora com a funcionalidade de escutar uma
entrada de aacuteudio e gravar trechos que excedam um determinado volume miacutenimo de
threshold Essa biblioteca possibilita configurar tempo miacutenimo de um trecho de aacuteudio
tempo maacuteximo de silecircncio tolerado durante um trecho aleacutem e etc ou seja Audiotok se
apresentou como um sistema flexiacutevel o suficiente para as funcionalidades necessaacuterias
para esse dispositivo
A biblioteca Auditok foi entatildeo configurada para seguir o fluxo como estaacute formulado
abaixo detecccedilatildeo aacuteudios salvando-os num banco de aacuteudios em formato WAV
O primeiro experimento foi realizado com um pote de ceracircmica modelado e queimado
no atelier de ceracircmica da UFRJ um laptop conectado num microfone simples e um
alto-falante em modo Bluetooth colocados dentro do pote
Posteriormente para esse sistema caber dentro do pote de ceracircmica foi necessaacuterio o
uso de um Raspberry Pi um microcomputador de baixo custo bastante popular para
projetos compactos e que necessitem de uma boa capacidade de processamento Foi
acoplado ao Raspberry Pi uma bateria de 5V para possibilitar tambeacutem a autonomia do
dispositivo por algumas horas sem a necessidade de um cabo de energia conectado
fisicamente no dispositivo Para a captaccedilatildeo de aacuteudio foi utilizado um microfone
Omnidirecional colocado na boca do pote depois de constatado que nesta posiccedilatildeo se
obtia a menor microfonia sem perder a qualidade de som que o formato do pote dava a
voz projetada dentro dele
Pote do primeiro protoacutetipo feito no ateliecircr de ceracircmica da EBAUFRJ fotografia do autor
AEI - Arte Eletrocircnica Indiacutegena
Algum tempo depois do primeiro experimento feito na UFRJ me veio a notiacutecia de uma
chamada aberta para projetos de residecircncia em aldeias indiacutegenas no nordeste do
Brasil chamado ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo promovida pela ONG Thydewaacute que tinha
como objetivo a produccedilatildeo colaborativa e cocriada entre indiacutegenas e artistas
A ONG Thydecircwaacute faz a cogestatildeo de 08 Pontos de Cultura Indiacutegena ndashPCI localizados no
coraccedilatildeo de 08 comunidades indiacutegenas diferentes quatro na Bahia duas em Alagoas
uma em Sergipe e uma em Pernambuco Esses PCIs funcionaratildeo como
LABORATOacuteRIOS cada um deles receberaacute em RESIDEcircNCIA ARTIacuteSTICA um ou vaacuterios
convidados [ref]
Vi nessa oportunidade uma maneira uacutenica de desdobrar o protoacutetipo realizado no
ateliecircr de ceracircmica da UFRJ e poder expandi-lo em uma comunidade indiacutegena onde a
tradiccedilatildeo oral ainda eacute essencial para a sobrevivecircncia e resistecircncia de praacuteticas culturais
milenares Sabendo da existecircncia de aldeias no nordeste com produccedilatildeo de ceracircmica
ainda em atividade enviei um email para Sebastian Gerlic curador do projeto
perguntando se alguma das aldeias listadas ainda contavam com a produccedilatildeo de
ceracircmica Na sua resposta ele me informou que dentre as aldeias contempladas no
projeto somente a etnia Pankararu em TacaratuPE mantia essa tradiccedilatildeo viva
Nesse momento com a possibilidade real do projeto natildeo ser soacute o
desenvolvimento de um artefato artesanal tecnoloacutegico mas de um experimento
social-etnograacutefico decidi entatildeo convidar o artista Andreacute Anastaacutecio para colaborar no
projeto da residecircncia Andreacute eacute um grande amigo com quem jaacute tenho colaborado desde
2013 junto aos Biocircnicos em diversas accedilotildees artiacutesticas lidando com tecnologia 1
1 Biocircnicos foi um grupo de estudos no campo da arte natureza e tecnologia originado no laboratoacuterio do NANO (Nuacutecleo de Arte e Novos Organismos) na EBA-UFRJ Formado por Caio Chacal Igor Abreu Andreacute Anastaacutecio Itajaci Amaral Jabal Murbach e Alberto Harres o grupo realizou diversas instalaccedilotildees nas ruas do Rio de Janeiro na contra-cultura digital e analoacutegica
natureza e poliacutetica Desenvolvemos esteacuteticas em conjunto que orbitavam exatamente o
eixo em que esse projeto estava se colocando Aleacutem disso considerei que sua
experiecircncia recente um trabalho de mediaccedilatildeo e direccedilatildeo artiacutestica num
documentaacuteriofilme em comunidades Quilombolas em Minas Gerais e no Maranhatildeo
iriam trazer um olhar jaacute aguccedilado nas dinacircmicas etnograacuteficas e relacionais desse
experimento Sua pesquisa em dispositivos sonoros e poeacuteticas de sonorizaccedilatildeo seriam
tambeacutem essenciais para o desenvolvimento do aspecto sonoro do dispositivo de
maneira potente
Com as informaccedilotildees passadas por Sebastian sobre os Pankararus e sua
produccedilatildeo de ceracircmica comeccedilamos entatildeo uma pesquisa aprofundada sobre esta etnia
Com o intuito de enviar uma proposta de residecircncia lidando com todas as
especificidades do povo Pankararu pesquisamos sua histoacuteria seus ritos escutamos
seus cantos E em meio dos cantos na internet tomamos conhecimento das Missotildees
Folcloacutericas de 1938 promovidas por Maacuterio de Andrade quando dirigiu a Biblioteca
Puacuteblica Municipal de Satildeo Paulo [12] Essa expediccedilatildeo e seu material coletado junto
com forte ressonacircncia na proacutepria obra de Maacuterio de Andrade foram um ponto de
referecircncia para pensarmos a preservaccedilatildeo da memoacuteria cultural atraveacutes da tecnologia
Nesse momento natildeo se tratava mais de um artefato tecnoloacutegico somente mas
de um objeto em contexto tendo implicaccedilotildees sociais para aleacutem das questotildees esteacuteticas
Nossa concepccedilatildeo se tornou entatildeo de um dispositivo atuando em prol da memoacuteria da
cultura oral indiacutegena um artefato de memoacuteria e difusatildeo fundindo a tecnologia da
ceracircmica pankararu com a tecnologia digital A conexatildeo terrena do siliacutecio dos
eletrocircnicos com o barro da ceracircmica ressoando em conjunto com as vozes indiacutegenas
A proposta enviada foi entatildeo a seguinte
A proposta do projeto tem a intenccedilatildeo de desenvolver artefatos eletrocircnicos sonoros que
possibilitem a escuta amplificaccedilatildeo e produccedilatildeo de memoacuteria na cultura indiacutegena Este
httpssimbinoisetumblrcom
artefato seraacute co-criado com indiacutegenas da Aldeia Brejo dos Padres e pretende mesclar a
tradiccedilatildeo ancestral Pankararu com tecnologias digitais de comunicaccedilatildeo e armazenamento
de informaccedilatildeo O dispositivo tecno-indiacutegena consiste em um mini-computador(raspberry
pi) com a capacidade de gravar aacuteudio para posteriormente armazenar e executar o
conteuacutedo automaticamente na web e em outro dispositivo emissor Esse sistema seraacute
acoplado e montado dentro de objetos de ceracircmica construiacutedo por mulheres indiacutegenas
Pankararu
Em um orifiacutecio modelado na escultura de barro do dispositivo os habitantes da aldeia
poderatildeo gravar cacircnticos tradicionais do Toreacute reclames sobre suas lutas e resistecircncias
por demarcaccedilatildeo de terras histoacuterias da tribo e demais mensagens que valorizem
fortaleccedilam e empoderem a aldeia Esse material armazenado na web iraacute compor um
banco de sonoridades Pankararu com acesso puacuteblico e tem por objetivo a preservaccedilatildeo
e salvaguarda da memoacuteria e patrimocircnio cultural da Aldeia As sonoridades gravadas
tambeacutem seratildeo transmitidas na web no formato web raacutedio tambeacutem de acesso puacuteblico e
tem o intuito de contribuir na difusatildeo amplificaccedilatildeo e transmissatildeo da cultura indiacutegena
Aleacutem da funccedilatildeo de guardar e propagar a cultura indiacutegena este vasilhame de
ceracircmica mistura de barro e siliacutecio poderaacute ser usado tambeacutem como emissor sonoro em
performances e itineracircncia em diversos espaccedilos Ao circular por outras Aldeias e
espaccedilos urbanosculturais a ceracircmica leva um pedaccedilo da terra dos Pankararus
preenchido por suas histoacuterias e cultura Temos a intenccedilatildeo tambeacutem de editar um manual
de montagem uso e manutenccedilatildeo do dispositivo para que ele possa ser livremente
replicado O projeto seraacute completamente open-source compartilhando saberes para
realizaccedilatildeo de uma tecnologia cidadatilde-aldeatilde
Alguns meses apoacutes enviarmos a nossa proposta para o projeto de residecircncia Arte
Eletrocircnica Indiacutegena recebemos a notiacutecia que nosso projeto foi aprovado Infelizmente
Andreacute Anastaacutecio co-autor do projeto natildeo poderia estar presencialmente na residecircncia
pois estaria se mudando para Lisboa no mesmo periacuteodo Por conta dessa ausecircncia
Sebastian curador do projeto nos indicou Ilana Majerowicz que estaria jaacute em
Pankararu no periacuteodo de residecircncia e jaacute havia feito alguns projetos junto com a
associaccedilatildeo das mulheres pankararu a AMIGP e seria uma oacutetima colaboradora e
mediadora nos conduzindo a diversas portas jaacute abertas em Pankararu
O Povo Pankararu
Alguns meses mais tarde recebemos a notiacutecia de que tivemos nosso projeto aprovado
mas antes de entrarmos nas questotildees da residecircncia eacute necessaacuterio falar um pouco mais
sobre o povo Pankararu
A reserva de Pankararu entre os municiacutepios de Tacaratu Jatobaacute e Petrolacircndia no
sertatildeo Pernambucano eacute de onde originaram diversos grupos indiacutegenas no Nordeste
com forte semelhanccedila cultural (Jeripancoacute Kantarureacute Kalancoacute Karuazu Katokin
Pankararu do Real Parque Pankaiwka etc) A cultura Pankararu tem forte conexatildeo e
intercacircmbio com diversos outros povos indiacutegenas que residem ao longo do Rio Satildeo
Francisco em Pernambuco [1]
Como a maioria dos povos indiacutegenas do Nordeste o contato com o homem branco se
deu no iniacutecio do periacuteodo colonial Os primeiros registros de contato dos colonos
portuguecircs com os indiacutegenas Pankararu datam do iniacutecio do seacutec XVII com as missotildees
dos padres oratorianos e capuchinhos que buscavam converter os povos indiacutegenas da
regiatildeo para o catolicismo
Eventualmente a maloca de Cana Brava desfeita e os missionaacuterios deslocaram-se em
direccedilatildeo agrave serra de Tacaratu para formar a aldeia que ficou conhecida como ldquoBrejo dos
Padresrdquo
Muita luta foi necessaacuteria para o reconhecimento de suas terras Os Pankararu
acreditam que o formato quadrado de sua reserva se deu pelo fato de ter sido doada
pelo entatildeo Imperador Pedro II
Os Pankararu falam somente o portuguecircs traccedilo comum entre as etnias do nordeste
com exceccedilatildeo dos Fulni-ocirc fruto da forte repressatildeo e perseguiccedilatildeo que ocorre desde os
primeiros contatos ateacute agora
Em seus rituais eacute caracteriacutestica a figura dos praiaacutes figuras cobertas por uma ldquofardardquo
como eles denominam feita de caroaacute uma planta regional do sertatildeo do qual eacute feita
uma espeacutecie de palha bem resistente Pode-se dizer que os praiaacutes satildeo os guardiotildees
dos pankararu contra os espiacuteritos malignos o fardamento dos praiaacutes eacute de uso exclusivo
dos homens e a diferenciaccedilatildeo de quem veste cada praiaacute depende de qual lsquotroncorsquo das
famiacutelias pankararu o homem pertence sendo portanto uma tradiccedilatildeo tambeacutem familiar
Fotografias do ritual ldquoTrecircs Rodasrdquo tirada durante a residecircncia fotografia do autor
A Ceracircmica Pankararu
A ceracircmica tem uma importacircncia especial na cultura Pankararu pois constituem como
elementos sagrados dentro dos seus rituais Nos pratos de barro eacute onde se oferece a
comida sagrada aos praiaacutes e aos participantes do ritual no terreiro e os potes de
ceracircmica satildeo usados para comportar a garapa de cana a ser bebida durante o ritual
Todos presentes compartilham da comida oferecida no ritual sendo necessaacuterio agraves
vezes mais de 100 200 pratos de barro para um ritual ocorrer Hoje em dia muitas
vezes jaacute se utilizam baldes pratos potes de plaacutestico substituindo os de barro na praacutetica
dos rituais perdendo um pouco dessa tradiccedilatildeo Isso ocorre devido ao aumento da
populaccedilatildeo indiacutegena na aldeia que natildeo eacute acompanhada de um crescimento tambeacutem da
produccedilatildeo de ceracircmica pankararu Hoje em dia somente algumas famiacutelias mantecircm a
tradiccedilatildeo da ceracircmica em Pankararu a falta de incentivo e infra-estrutura prejudica para
que essa cultura permaneccedila acessa Mas apesar das dificuldades a demanda interna
relativamente alta de pratos de ceracircmica por conta dessas praacuteticas nos rituais ajuda a
manter a produccedilatildeo de ceracircmica ativa natildeo dependendo somente da venda do
artesanato para fora da aldeia para se manter a tradiccedilatildeo viva
[Fot251] Coleccedilatildeo Etnograacutefica Carlos Estevatildeo de Oliveira [16]
A Residecircncia
A residecircncia artiacutestica ocorreu entre as 15 e 22 de junho de 2018 na aldeia Brejo dos
Padres no municiacutepio de Tacaratu PE Cada artista residente ficava hospedado na
casa de algueacutem na aldeia que participasse dos projetos culturais no meu caso fiquei
na casa de Geovam Araticum Pankararu (Geo) com sua esposa Rosacircngela e suas
duas filhas Geovam eacute um dos pankararus da nova geraccedilatildeo que puxam a tradiccedilatildeo
indiacutegena estaacute presente nos rituais cantando os toantes e na escola indiacutegena estadual
Carlos Estevatildeo ele trabalha como pedagogo ensinando as crianccedilas sobre as tradiccedilotildees
da cultura pankararu
Dia 1
Ao chegar no aeroporto de Paulo Afonso Patriacutecia Pankararu viria me buscar para me
levar para Pankararu e assim se deu Foi meu primeiro contato com um dos
pankararus logo ela me contou sobre a histoacuteria e situaccedilatildeo atual do seu povo os
conflitos existentes no momento entre os indiacutegenas e os posseiros e toda a
problemaacutetica decorrente disso
Cheguei agrave noite na aldeia Brejo dos Padres onde fui acolhido na casa de Geo e sua
famiacutelia laacute encontrei Ilana Majerowicz com quem faria a mediaccedilatildeo do projeto e outras
figuras que seriam atores importantes do experimento em Pankararu Fernando
Monteiro dos Santos ou Fernandatildeo como eacute chamado uma das lideranccedilas da aldeia
Brejo dos Padres Ewerton e Antocircnio Neto ambos ativos no Ponto de Cultura Indiacutegena
aleacutem da esposa de Geo Rosacircngela e suas duas filhas pequenas
Nesse nosso primeiro encontro jaacute estabelecemos algumas metas do nosso projeto
irmos encontrar as ceramistas na aldeia Tapera mapearmos figuras importantes que
pudessem compartilhar diferentes conhecimentos sobre Pankararu conosco e tambeacutem
locais no qual esse experimento pudesse ocorrer na aldeia
Dia 2
Acordamos cedo no segundo dia e jaacute fomos para a aldeia Tapera para encontrarmos a
ceramista Luciene sobrinha de Mercinha que jaacute havia preparado um pote
especiacuteficamente para o nosso projeto Chegando laacute fizemos uma pequena entrevista
com ela pedimos para que nos contasse um pouco do seu processo como havia
aprendido a arte da ceracircmica e o que isso significava para ela Ela natildeo foi de muitas
palavras e nos disse simplismente que havia aprendido todo o processo da ceracircmica
vendo suas parentes mais velhas fazendo e repetia esse processo Nesse momento a
forma de comunicaccedilatildeo era ainda muito nova para mim sendo um pouco difiacutecil entender
o ritmo de diaacutelogo mais apropriado com os pankararu
Luciene jaacute havia preparado o pote especiacuteficamente para o projeto e parecia perfeito
para o dispositivo Era necessaacuteria uma boca grande o suficiente para poder entrar o
Raspbery Pi junto com o alto falante ao mesmo tempo que era necessaacuterio um buraco
na parte de baixo do pote para sair os cabos de energia e do mouse e teclado para o
Raspberry
Fiz alguns testes com o pote ali mesmo e o tudo funcionou Geo fez o primeiro canto
dentro do pote e escutamos pela primeira vez um toante pankararu entrar no pote e
depois ser tocado de dentro dele para escutarmos e foi um momento muito bonito
Embora o pote estivesse moldado ele precisava ainda secar e ir para a queima e aiacute
sim estaria pronto para ser colocado como dispositivo e jaacute que isso iria demorar ainda
alguns dias decidimos pegar alguns potes jaacute prontos que haviam disponiacuteveis para
seguirmos com o experimento enquanto o pote definitivo natildeo estivesse pronto
Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento
Fotografia de Ilana Majerowicz
Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute
Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos
documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua
luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia
ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote
natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa
naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote
pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo
indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no
Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns
testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara
qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira
criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote
Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor
Dia 3
No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac
produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles
haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia
Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas
viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas
Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde
ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas
tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro
lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa
tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e
ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos
noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer
mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia
mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu
As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo
liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu
toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem
vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio
tupinambaacutersquo esse simrdquo
A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio
das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso
das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A
cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e
antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria
expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir
da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo
iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e
a ldquoinduacutestria culturalrdquo
Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de
transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de
Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30
recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu
Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos
importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas
pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos
iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute
Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo
de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas
por essas flautas [3]
Dia 4
A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a
perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre
a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos
Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente
pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante
Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos
encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada
devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e
esposas no dia anterior da retirada
Fernando sobre os toantes
ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados
noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados
que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem
diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais
velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu
dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada
toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um
pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o
praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam
lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa
memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele
vem ensinarrdquo
A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do
sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e
como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os
encantados
Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras
Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando
era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos
Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz
Dia 5
Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo
nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele
Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo
Fotografia do autor
Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que
atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e
revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus
poemas para o dispositivo
A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os
pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se
repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que
segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura
destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em
detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu
somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos
mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse
ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos
debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e
sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu
vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que
manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade
desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura
Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas
externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em
seu entorno
Dia 6
No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso
projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana
antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois
queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do
dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a
uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico
Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa
de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na
casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma
entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a
tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo
que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se
do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia
de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de
Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo
consideradas as melhores regiatildeo
Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone
e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma
mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar
com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes
espalhados em difentes lugares longe de Pankararu
Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana
Majerowicz
Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia
que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz
de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos
imemoriais
Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita
Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu
Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos
uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente
presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da
cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem
diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma
mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees
metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro
que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem
era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de
ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto
haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc
Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da
sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos
Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou
claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o
dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos
esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos
um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de
que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela
aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus
remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu
somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo
como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo
da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita
da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela
cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta
Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e
assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira
Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles
pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa
mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram
esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que
haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria
a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as
vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos
imemoriais
Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca
havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira
vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute
justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para
cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do
canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os
pankararus
Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura
pankararu
ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a
nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender
que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no
sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente
possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem
neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses
cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a
memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes
aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo
Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da
direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz
Dia 7
No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o
experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a
predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato
com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote
mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia
de falar com pote
Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz
Dia 8
A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num
acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e
indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e
outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio
certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares
para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo
muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica
Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees
estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele
mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por
completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos
presentes nesse experimento
Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz
Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de
aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir
de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra
pankararu
A Exposiccedilatildeo
Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as
residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador
(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as
obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das
diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee
Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu
Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes
cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do
puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento
possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo
de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios
registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a
residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em
Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro
do pote
Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias
para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no
espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados
num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias
indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias
artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus
vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo
Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia
que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou
intacto em Salvador para ser exposto
Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que
aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar
colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com
aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros
indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo
toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora
um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as
diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes
em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e
terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas
indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o
dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e
atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu
Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a
experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a
cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que
interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta
daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes
camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do
museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os
natildeo-indiacutegenas
Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor
Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo
em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees
teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do
sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy
8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
For Today
httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
httpwwwvitruviusbeboek5h5htm
9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
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11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
Sumaacuterio 1 Resumo
2 Primeiro experimento
3 AEI - Arte Eletrocircnica Indiacutegena
4 O povo Pankararu
5 A Residecircncia
6 Exposiccedilatildeo
7 Miolo de Pote
8 Conclusatildeo
9 Agradecimentos
10 Bibliografia
Resumo
Vozes da Terra eacute um experimecircnto artiacutestico em curso que busca conectar a tecnologia
ancestral da ceracircmica indiacutegena com dispositivos sonoro-poeacuteticos Iniciado no atelier de
ceracircmica da UFRJ desdobrou-se para uma residecircncia artiacutestica numa aldeia indiacutegena
da etnia Pankararu atraveacutes do projeto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo e teve como resultado
final uma exposiccedilatildeo no MAM de SalvadorBA Esse texto busca descrever o processo
artiacutestico envolvendo todas as etapas de criaccedilatildeo e contextualizar o artefato poeacutetico
destacando seu aspecto poliacutetico-social para a memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
Primeiro experimento
Os primeiros esboccedilos e ideias para o que viria a ser o projeto Vozes da Terra surgem
no final de 2017 quando realizava uma pesquisa em dispositivos poeacutetico-sonoros
Nesse periacuteodo rondava na minha cabeccedila uma ideia de uma maacutequina esquizofrecircnica
que escutasse o entorno e o repetisse sem parar somando vozes ateacute o barulho
completo
A ideia dessa maacutequina foi caminhando para se tornar realidade No decorrer da
disciplina de ceracircmica da professora Kaacutetia Gorini na UFRJ-EBA com a intenccedilatildeo de
fazer um pote de ceracircmica veio-me em mente um dispositivo eletrocircnico sonoro
integrado ao pote talvez ele pudesse ser essa lsquocacircmara de ecorsquo que havia antes
vislumbrado Durante a modelagem do barro a Prof Kaacutetia Gorini mostrou-me um viacutedeo
que acompanhava uma indiacutegena na produccedilatildeo do artesanato de ceracircmica desde a
retirada do barro a sua preparaccedilatildeo modelagem secagem ateacute a queima A partir
dessa referecircncia tive o insight de conectar a tradiccedilatildeo da oralidade (caracteriacutestica dos
indiacutegenas brasileiros) com a proacutepria ceracircmica indiacutegena num dispositivo sonoro de
ecos Ao refletir acerca da fusatildeo entre esses fatores comecei a abordar as seguintes
questotildees como poderia um dispositivo eletrocircnico incorporar a dinacircmica da oralidade
subjetiva no seu proacuteprio procedimento De que forma eacute possiacutevel integrar a tecnologia
ancestral da ceracircmica com maacutequinas binaacuterias maacutequinas de som
Esses questionamentos levaram-me a ideia de desenvolver um pote de ceracircmica que
tivesse um microfone e um alto-falante acoplados dentro dele e que pudesse funcionar
como uma maacutequina de ecos potencializando a oralidade num sistema automatizado de
escuta das ondas sonoras projetadas para dentro do pote e de dentro deles serem
novamente reproduzidas
O Protoacutetipo
Paralelamente a moldagem do barro fiz uma pesquisa teacutecnica a fim de cumprir as
necessidades baacutesicas das funcionalidades de detecccedilatildeo escuta memorizaccedilatildeo e
reproduccedilatildeo sonora de maneira alternada e automatizada a partir de um computador
um microfone e um alto-falante Essa capacidade de escuta e reproduccedilatildeo sonora
dentro de um uacutenico objeto natildeo seria possiacutevel usando somente o efeito de Delay sonoro
pois geraria de imediato um efeito de microfonia no dispositivo Recorri entatildeo agrave
programaccedilatildeo modelando um software que fosse capaz de maneira automatizada e
alternada reproduzir e gravar sons emitidos dentro do pote
Na busca de algum coacutedigo de software livre que contemplasse essas capacidades
encontrei a biblioteca de coacutedigo chamada AUDITOK (Audio Tokenizer ) que denomina
um sistema de detecccedilatildeo de atividade sonora com a funcionalidade de escutar uma
entrada de aacuteudio e gravar trechos que excedam um determinado volume miacutenimo de
threshold Essa biblioteca possibilita configurar tempo miacutenimo de um trecho de aacuteudio
tempo maacuteximo de silecircncio tolerado durante um trecho aleacutem e etc ou seja Audiotok se
apresentou como um sistema flexiacutevel o suficiente para as funcionalidades necessaacuterias
para esse dispositivo
A biblioteca Auditok foi entatildeo configurada para seguir o fluxo como estaacute formulado
abaixo detecccedilatildeo aacuteudios salvando-os num banco de aacuteudios em formato WAV
O primeiro experimento foi realizado com um pote de ceracircmica modelado e queimado
no atelier de ceracircmica da UFRJ um laptop conectado num microfone simples e um
alto-falante em modo Bluetooth colocados dentro do pote
Posteriormente para esse sistema caber dentro do pote de ceracircmica foi necessaacuterio o
uso de um Raspberry Pi um microcomputador de baixo custo bastante popular para
projetos compactos e que necessitem de uma boa capacidade de processamento Foi
acoplado ao Raspberry Pi uma bateria de 5V para possibilitar tambeacutem a autonomia do
dispositivo por algumas horas sem a necessidade de um cabo de energia conectado
fisicamente no dispositivo Para a captaccedilatildeo de aacuteudio foi utilizado um microfone
Omnidirecional colocado na boca do pote depois de constatado que nesta posiccedilatildeo se
obtia a menor microfonia sem perder a qualidade de som que o formato do pote dava a
voz projetada dentro dele
Pote do primeiro protoacutetipo feito no ateliecircr de ceracircmica da EBAUFRJ fotografia do autor
AEI - Arte Eletrocircnica Indiacutegena
Algum tempo depois do primeiro experimento feito na UFRJ me veio a notiacutecia de uma
chamada aberta para projetos de residecircncia em aldeias indiacutegenas no nordeste do
Brasil chamado ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo promovida pela ONG Thydewaacute que tinha
como objetivo a produccedilatildeo colaborativa e cocriada entre indiacutegenas e artistas
A ONG Thydecircwaacute faz a cogestatildeo de 08 Pontos de Cultura Indiacutegena ndashPCI localizados no
coraccedilatildeo de 08 comunidades indiacutegenas diferentes quatro na Bahia duas em Alagoas
uma em Sergipe e uma em Pernambuco Esses PCIs funcionaratildeo como
LABORATOacuteRIOS cada um deles receberaacute em RESIDEcircNCIA ARTIacuteSTICA um ou vaacuterios
convidados [ref]
Vi nessa oportunidade uma maneira uacutenica de desdobrar o protoacutetipo realizado no
ateliecircr de ceracircmica da UFRJ e poder expandi-lo em uma comunidade indiacutegena onde a
tradiccedilatildeo oral ainda eacute essencial para a sobrevivecircncia e resistecircncia de praacuteticas culturais
milenares Sabendo da existecircncia de aldeias no nordeste com produccedilatildeo de ceracircmica
ainda em atividade enviei um email para Sebastian Gerlic curador do projeto
perguntando se alguma das aldeias listadas ainda contavam com a produccedilatildeo de
ceracircmica Na sua resposta ele me informou que dentre as aldeias contempladas no
projeto somente a etnia Pankararu em TacaratuPE mantia essa tradiccedilatildeo viva
Nesse momento com a possibilidade real do projeto natildeo ser soacute o
desenvolvimento de um artefato artesanal tecnoloacutegico mas de um experimento
social-etnograacutefico decidi entatildeo convidar o artista Andreacute Anastaacutecio para colaborar no
projeto da residecircncia Andreacute eacute um grande amigo com quem jaacute tenho colaborado desde
2013 junto aos Biocircnicos em diversas accedilotildees artiacutesticas lidando com tecnologia 1
1 Biocircnicos foi um grupo de estudos no campo da arte natureza e tecnologia originado no laboratoacuterio do NANO (Nuacutecleo de Arte e Novos Organismos) na EBA-UFRJ Formado por Caio Chacal Igor Abreu Andreacute Anastaacutecio Itajaci Amaral Jabal Murbach e Alberto Harres o grupo realizou diversas instalaccedilotildees nas ruas do Rio de Janeiro na contra-cultura digital e analoacutegica
natureza e poliacutetica Desenvolvemos esteacuteticas em conjunto que orbitavam exatamente o
eixo em que esse projeto estava se colocando Aleacutem disso considerei que sua
experiecircncia recente um trabalho de mediaccedilatildeo e direccedilatildeo artiacutestica num
documentaacuteriofilme em comunidades Quilombolas em Minas Gerais e no Maranhatildeo
iriam trazer um olhar jaacute aguccedilado nas dinacircmicas etnograacuteficas e relacionais desse
experimento Sua pesquisa em dispositivos sonoros e poeacuteticas de sonorizaccedilatildeo seriam
tambeacutem essenciais para o desenvolvimento do aspecto sonoro do dispositivo de
maneira potente
Com as informaccedilotildees passadas por Sebastian sobre os Pankararus e sua
produccedilatildeo de ceracircmica comeccedilamos entatildeo uma pesquisa aprofundada sobre esta etnia
Com o intuito de enviar uma proposta de residecircncia lidando com todas as
especificidades do povo Pankararu pesquisamos sua histoacuteria seus ritos escutamos
seus cantos E em meio dos cantos na internet tomamos conhecimento das Missotildees
Folcloacutericas de 1938 promovidas por Maacuterio de Andrade quando dirigiu a Biblioteca
Puacuteblica Municipal de Satildeo Paulo [12] Essa expediccedilatildeo e seu material coletado junto
com forte ressonacircncia na proacutepria obra de Maacuterio de Andrade foram um ponto de
referecircncia para pensarmos a preservaccedilatildeo da memoacuteria cultural atraveacutes da tecnologia
Nesse momento natildeo se tratava mais de um artefato tecnoloacutegico somente mas
de um objeto em contexto tendo implicaccedilotildees sociais para aleacutem das questotildees esteacuteticas
Nossa concepccedilatildeo se tornou entatildeo de um dispositivo atuando em prol da memoacuteria da
cultura oral indiacutegena um artefato de memoacuteria e difusatildeo fundindo a tecnologia da
ceracircmica pankararu com a tecnologia digital A conexatildeo terrena do siliacutecio dos
eletrocircnicos com o barro da ceracircmica ressoando em conjunto com as vozes indiacutegenas
A proposta enviada foi entatildeo a seguinte
A proposta do projeto tem a intenccedilatildeo de desenvolver artefatos eletrocircnicos sonoros que
possibilitem a escuta amplificaccedilatildeo e produccedilatildeo de memoacuteria na cultura indiacutegena Este
httpssimbinoisetumblrcom
artefato seraacute co-criado com indiacutegenas da Aldeia Brejo dos Padres e pretende mesclar a
tradiccedilatildeo ancestral Pankararu com tecnologias digitais de comunicaccedilatildeo e armazenamento
de informaccedilatildeo O dispositivo tecno-indiacutegena consiste em um mini-computador(raspberry
pi) com a capacidade de gravar aacuteudio para posteriormente armazenar e executar o
conteuacutedo automaticamente na web e em outro dispositivo emissor Esse sistema seraacute
acoplado e montado dentro de objetos de ceracircmica construiacutedo por mulheres indiacutegenas
Pankararu
Em um orifiacutecio modelado na escultura de barro do dispositivo os habitantes da aldeia
poderatildeo gravar cacircnticos tradicionais do Toreacute reclames sobre suas lutas e resistecircncias
por demarcaccedilatildeo de terras histoacuterias da tribo e demais mensagens que valorizem
fortaleccedilam e empoderem a aldeia Esse material armazenado na web iraacute compor um
banco de sonoridades Pankararu com acesso puacuteblico e tem por objetivo a preservaccedilatildeo
e salvaguarda da memoacuteria e patrimocircnio cultural da Aldeia As sonoridades gravadas
tambeacutem seratildeo transmitidas na web no formato web raacutedio tambeacutem de acesso puacuteblico e
tem o intuito de contribuir na difusatildeo amplificaccedilatildeo e transmissatildeo da cultura indiacutegena
Aleacutem da funccedilatildeo de guardar e propagar a cultura indiacutegena este vasilhame de
ceracircmica mistura de barro e siliacutecio poderaacute ser usado tambeacutem como emissor sonoro em
performances e itineracircncia em diversos espaccedilos Ao circular por outras Aldeias e
espaccedilos urbanosculturais a ceracircmica leva um pedaccedilo da terra dos Pankararus
preenchido por suas histoacuterias e cultura Temos a intenccedilatildeo tambeacutem de editar um manual
de montagem uso e manutenccedilatildeo do dispositivo para que ele possa ser livremente
replicado O projeto seraacute completamente open-source compartilhando saberes para
realizaccedilatildeo de uma tecnologia cidadatilde-aldeatilde
Alguns meses apoacutes enviarmos a nossa proposta para o projeto de residecircncia Arte
Eletrocircnica Indiacutegena recebemos a notiacutecia que nosso projeto foi aprovado Infelizmente
Andreacute Anastaacutecio co-autor do projeto natildeo poderia estar presencialmente na residecircncia
pois estaria se mudando para Lisboa no mesmo periacuteodo Por conta dessa ausecircncia
Sebastian curador do projeto nos indicou Ilana Majerowicz que estaria jaacute em
Pankararu no periacuteodo de residecircncia e jaacute havia feito alguns projetos junto com a
associaccedilatildeo das mulheres pankararu a AMIGP e seria uma oacutetima colaboradora e
mediadora nos conduzindo a diversas portas jaacute abertas em Pankararu
O Povo Pankararu
Alguns meses mais tarde recebemos a notiacutecia de que tivemos nosso projeto aprovado
mas antes de entrarmos nas questotildees da residecircncia eacute necessaacuterio falar um pouco mais
sobre o povo Pankararu
A reserva de Pankararu entre os municiacutepios de Tacaratu Jatobaacute e Petrolacircndia no
sertatildeo Pernambucano eacute de onde originaram diversos grupos indiacutegenas no Nordeste
com forte semelhanccedila cultural (Jeripancoacute Kantarureacute Kalancoacute Karuazu Katokin
Pankararu do Real Parque Pankaiwka etc) A cultura Pankararu tem forte conexatildeo e
intercacircmbio com diversos outros povos indiacutegenas que residem ao longo do Rio Satildeo
Francisco em Pernambuco [1]
Como a maioria dos povos indiacutegenas do Nordeste o contato com o homem branco se
deu no iniacutecio do periacuteodo colonial Os primeiros registros de contato dos colonos
portuguecircs com os indiacutegenas Pankararu datam do iniacutecio do seacutec XVII com as missotildees
dos padres oratorianos e capuchinhos que buscavam converter os povos indiacutegenas da
regiatildeo para o catolicismo
Eventualmente a maloca de Cana Brava desfeita e os missionaacuterios deslocaram-se em
direccedilatildeo agrave serra de Tacaratu para formar a aldeia que ficou conhecida como ldquoBrejo dos
Padresrdquo
Muita luta foi necessaacuteria para o reconhecimento de suas terras Os Pankararu
acreditam que o formato quadrado de sua reserva se deu pelo fato de ter sido doada
pelo entatildeo Imperador Pedro II
Os Pankararu falam somente o portuguecircs traccedilo comum entre as etnias do nordeste
com exceccedilatildeo dos Fulni-ocirc fruto da forte repressatildeo e perseguiccedilatildeo que ocorre desde os
primeiros contatos ateacute agora
Em seus rituais eacute caracteriacutestica a figura dos praiaacutes figuras cobertas por uma ldquofardardquo
como eles denominam feita de caroaacute uma planta regional do sertatildeo do qual eacute feita
uma espeacutecie de palha bem resistente Pode-se dizer que os praiaacutes satildeo os guardiotildees
dos pankararu contra os espiacuteritos malignos o fardamento dos praiaacutes eacute de uso exclusivo
dos homens e a diferenciaccedilatildeo de quem veste cada praiaacute depende de qual lsquotroncorsquo das
famiacutelias pankararu o homem pertence sendo portanto uma tradiccedilatildeo tambeacutem familiar
Fotografias do ritual ldquoTrecircs Rodasrdquo tirada durante a residecircncia fotografia do autor
A Ceracircmica Pankararu
A ceracircmica tem uma importacircncia especial na cultura Pankararu pois constituem como
elementos sagrados dentro dos seus rituais Nos pratos de barro eacute onde se oferece a
comida sagrada aos praiaacutes e aos participantes do ritual no terreiro e os potes de
ceracircmica satildeo usados para comportar a garapa de cana a ser bebida durante o ritual
Todos presentes compartilham da comida oferecida no ritual sendo necessaacuterio agraves
vezes mais de 100 200 pratos de barro para um ritual ocorrer Hoje em dia muitas
vezes jaacute se utilizam baldes pratos potes de plaacutestico substituindo os de barro na praacutetica
dos rituais perdendo um pouco dessa tradiccedilatildeo Isso ocorre devido ao aumento da
populaccedilatildeo indiacutegena na aldeia que natildeo eacute acompanhada de um crescimento tambeacutem da
produccedilatildeo de ceracircmica pankararu Hoje em dia somente algumas famiacutelias mantecircm a
tradiccedilatildeo da ceracircmica em Pankararu a falta de incentivo e infra-estrutura prejudica para
que essa cultura permaneccedila acessa Mas apesar das dificuldades a demanda interna
relativamente alta de pratos de ceracircmica por conta dessas praacuteticas nos rituais ajuda a
manter a produccedilatildeo de ceracircmica ativa natildeo dependendo somente da venda do
artesanato para fora da aldeia para se manter a tradiccedilatildeo viva
[Fot251] Coleccedilatildeo Etnograacutefica Carlos Estevatildeo de Oliveira [16]
A Residecircncia
A residecircncia artiacutestica ocorreu entre as 15 e 22 de junho de 2018 na aldeia Brejo dos
Padres no municiacutepio de Tacaratu PE Cada artista residente ficava hospedado na
casa de algueacutem na aldeia que participasse dos projetos culturais no meu caso fiquei
na casa de Geovam Araticum Pankararu (Geo) com sua esposa Rosacircngela e suas
duas filhas Geovam eacute um dos pankararus da nova geraccedilatildeo que puxam a tradiccedilatildeo
indiacutegena estaacute presente nos rituais cantando os toantes e na escola indiacutegena estadual
Carlos Estevatildeo ele trabalha como pedagogo ensinando as crianccedilas sobre as tradiccedilotildees
da cultura pankararu
Dia 1
Ao chegar no aeroporto de Paulo Afonso Patriacutecia Pankararu viria me buscar para me
levar para Pankararu e assim se deu Foi meu primeiro contato com um dos
pankararus logo ela me contou sobre a histoacuteria e situaccedilatildeo atual do seu povo os
conflitos existentes no momento entre os indiacutegenas e os posseiros e toda a
problemaacutetica decorrente disso
Cheguei agrave noite na aldeia Brejo dos Padres onde fui acolhido na casa de Geo e sua
famiacutelia laacute encontrei Ilana Majerowicz com quem faria a mediaccedilatildeo do projeto e outras
figuras que seriam atores importantes do experimento em Pankararu Fernando
Monteiro dos Santos ou Fernandatildeo como eacute chamado uma das lideranccedilas da aldeia
Brejo dos Padres Ewerton e Antocircnio Neto ambos ativos no Ponto de Cultura Indiacutegena
aleacutem da esposa de Geo Rosacircngela e suas duas filhas pequenas
Nesse nosso primeiro encontro jaacute estabelecemos algumas metas do nosso projeto
irmos encontrar as ceramistas na aldeia Tapera mapearmos figuras importantes que
pudessem compartilhar diferentes conhecimentos sobre Pankararu conosco e tambeacutem
locais no qual esse experimento pudesse ocorrer na aldeia
Dia 2
Acordamos cedo no segundo dia e jaacute fomos para a aldeia Tapera para encontrarmos a
ceramista Luciene sobrinha de Mercinha que jaacute havia preparado um pote
especiacuteficamente para o nosso projeto Chegando laacute fizemos uma pequena entrevista
com ela pedimos para que nos contasse um pouco do seu processo como havia
aprendido a arte da ceracircmica e o que isso significava para ela Ela natildeo foi de muitas
palavras e nos disse simplismente que havia aprendido todo o processo da ceracircmica
vendo suas parentes mais velhas fazendo e repetia esse processo Nesse momento a
forma de comunicaccedilatildeo era ainda muito nova para mim sendo um pouco difiacutecil entender
o ritmo de diaacutelogo mais apropriado com os pankararu
Luciene jaacute havia preparado o pote especiacuteficamente para o projeto e parecia perfeito
para o dispositivo Era necessaacuteria uma boca grande o suficiente para poder entrar o
Raspbery Pi junto com o alto falante ao mesmo tempo que era necessaacuterio um buraco
na parte de baixo do pote para sair os cabos de energia e do mouse e teclado para o
Raspberry
Fiz alguns testes com o pote ali mesmo e o tudo funcionou Geo fez o primeiro canto
dentro do pote e escutamos pela primeira vez um toante pankararu entrar no pote e
depois ser tocado de dentro dele para escutarmos e foi um momento muito bonito
Embora o pote estivesse moldado ele precisava ainda secar e ir para a queima e aiacute
sim estaria pronto para ser colocado como dispositivo e jaacute que isso iria demorar ainda
alguns dias decidimos pegar alguns potes jaacute prontos que haviam disponiacuteveis para
seguirmos com o experimento enquanto o pote definitivo natildeo estivesse pronto
Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento
Fotografia de Ilana Majerowicz
Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute
Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos
documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua
luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia
ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote
natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa
naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote
pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo
indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no
Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns
testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara
qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira
criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote
Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor
Dia 3
No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac
produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles
haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia
Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas
viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas
Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde
ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas
tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro
lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa
tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e
ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos
noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer
mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia
mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu
As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo
liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu
toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem
vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio
tupinambaacutersquo esse simrdquo
A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio
das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso
das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A
cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e
antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria
expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir
da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo
iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e
a ldquoinduacutestria culturalrdquo
Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de
transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de
Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30
recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu
Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos
importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas
pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos
iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute
Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo
de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas
por essas flautas [3]
Dia 4
A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a
perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre
a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos
Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente
pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante
Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos
encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada
devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e
esposas no dia anterior da retirada
Fernando sobre os toantes
ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados
noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados
que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem
diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais
velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu
dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada
toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um
pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o
praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam
lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa
memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele
vem ensinarrdquo
A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do
sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e
como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os
encantados
Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras
Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando
era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos
Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz
Dia 5
Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo
nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele
Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo
Fotografia do autor
Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que
atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e
revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus
poemas para o dispositivo
A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os
pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se
repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que
segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura
destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em
detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu
somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos
mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse
ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos
debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e
sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu
vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que
manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade
desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura
Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas
externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em
seu entorno
Dia 6
No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso
projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana
antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois
queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do
dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a
uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico
Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa
de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na
casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma
entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a
tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo
que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se
do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia
de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de
Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo
consideradas as melhores regiatildeo
Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone
e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma
mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar
com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes
espalhados em difentes lugares longe de Pankararu
Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana
Majerowicz
Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia
que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz
de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos
imemoriais
Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita
Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu
Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos
uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente
presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da
cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem
diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma
mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees
metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro
que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem
era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de
ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto
haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc
Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da
sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos
Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou
claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o
dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos
esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos
um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de
que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela
aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus
remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu
somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo
como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo
da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita
da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela
cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta
Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e
assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira
Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles
pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa
mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram
esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que
haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria
a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as
vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos
imemoriais
Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca
havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira
vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute
justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para
cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do
canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os
pankararus
Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura
pankararu
ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a
nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender
que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no
sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente
possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem
neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses
cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a
memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes
aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo
Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da
direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz
Dia 7
No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o
experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a
predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato
com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote
mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia
de falar com pote
Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz
Dia 8
A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num
acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e
indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e
outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio
certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares
para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo
muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica
Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees
estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele
mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por
completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos
presentes nesse experimento
Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz
Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de
aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir
de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra
pankararu
A Exposiccedilatildeo
Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as
residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador
(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as
obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das
diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee
Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu
Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes
cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do
puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento
possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo
de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios
registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a
residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em
Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro
do pote
Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias
para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no
espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados
num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias
indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias
artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus
vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo
Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia
que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou
intacto em Salvador para ser exposto
Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que
aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar
colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com
aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros
indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo
toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora
um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as
diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes
em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e
terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas
indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o
dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e
atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu
Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a
experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a
cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que
interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta
daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes
camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do
museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os
natildeo-indiacutegenas
Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor
Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo
em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees
teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do
sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy
8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
For Today
httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
httpwwwvitruviusbeboek5h5htm
9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
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11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
Resumo
Vozes da Terra eacute um experimecircnto artiacutestico em curso que busca conectar a tecnologia
ancestral da ceracircmica indiacutegena com dispositivos sonoro-poeacuteticos Iniciado no atelier de
ceracircmica da UFRJ desdobrou-se para uma residecircncia artiacutestica numa aldeia indiacutegena
da etnia Pankararu atraveacutes do projeto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo e teve como resultado
final uma exposiccedilatildeo no MAM de SalvadorBA Esse texto busca descrever o processo
artiacutestico envolvendo todas as etapas de criaccedilatildeo e contextualizar o artefato poeacutetico
destacando seu aspecto poliacutetico-social para a memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
Primeiro experimento
Os primeiros esboccedilos e ideias para o que viria a ser o projeto Vozes da Terra surgem
no final de 2017 quando realizava uma pesquisa em dispositivos poeacutetico-sonoros
Nesse periacuteodo rondava na minha cabeccedila uma ideia de uma maacutequina esquizofrecircnica
que escutasse o entorno e o repetisse sem parar somando vozes ateacute o barulho
completo
A ideia dessa maacutequina foi caminhando para se tornar realidade No decorrer da
disciplina de ceracircmica da professora Kaacutetia Gorini na UFRJ-EBA com a intenccedilatildeo de
fazer um pote de ceracircmica veio-me em mente um dispositivo eletrocircnico sonoro
integrado ao pote talvez ele pudesse ser essa lsquocacircmara de ecorsquo que havia antes
vislumbrado Durante a modelagem do barro a Prof Kaacutetia Gorini mostrou-me um viacutedeo
que acompanhava uma indiacutegena na produccedilatildeo do artesanato de ceracircmica desde a
retirada do barro a sua preparaccedilatildeo modelagem secagem ateacute a queima A partir
dessa referecircncia tive o insight de conectar a tradiccedilatildeo da oralidade (caracteriacutestica dos
indiacutegenas brasileiros) com a proacutepria ceracircmica indiacutegena num dispositivo sonoro de
ecos Ao refletir acerca da fusatildeo entre esses fatores comecei a abordar as seguintes
questotildees como poderia um dispositivo eletrocircnico incorporar a dinacircmica da oralidade
subjetiva no seu proacuteprio procedimento De que forma eacute possiacutevel integrar a tecnologia
ancestral da ceracircmica com maacutequinas binaacuterias maacutequinas de som
Esses questionamentos levaram-me a ideia de desenvolver um pote de ceracircmica que
tivesse um microfone e um alto-falante acoplados dentro dele e que pudesse funcionar
como uma maacutequina de ecos potencializando a oralidade num sistema automatizado de
escuta das ondas sonoras projetadas para dentro do pote e de dentro deles serem
novamente reproduzidas
O Protoacutetipo
Paralelamente a moldagem do barro fiz uma pesquisa teacutecnica a fim de cumprir as
necessidades baacutesicas das funcionalidades de detecccedilatildeo escuta memorizaccedilatildeo e
reproduccedilatildeo sonora de maneira alternada e automatizada a partir de um computador
um microfone e um alto-falante Essa capacidade de escuta e reproduccedilatildeo sonora
dentro de um uacutenico objeto natildeo seria possiacutevel usando somente o efeito de Delay sonoro
pois geraria de imediato um efeito de microfonia no dispositivo Recorri entatildeo agrave
programaccedilatildeo modelando um software que fosse capaz de maneira automatizada e
alternada reproduzir e gravar sons emitidos dentro do pote
Na busca de algum coacutedigo de software livre que contemplasse essas capacidades
encontrei a biblioteca de coacutedigo chamada AUDITOK (Audio Tokenizer ) que denomina
um sistema de detecccedilatildeo de atividade sonora com a funcionalidade de escutar uma
entrada de aacuteudio e gravar trechos que excedam um determinado volume miacutenimo de
threshold Essa biblioteca possibilita configurar tempo miacutenimo de um trecho de aacuteudio
tempo maacuteximo de silecircncio tolerado durante um trecho aleacutem e etc ou seja Audiotok se
apresentou como um sistema flexiacutevel o suficiente para as funcionalidades necessaacuterias
para esse dispositivo
A biblioteca Auditok foi entatildeo configurada para seguir o fluxo como estaacute formulado
abaixo detecccedilatildeo aacuteudios salvando-os num banco de aacuteudios em formato WAV
O primeiro experimento foi realizado com um pote de ceracircmica modelado e queimado
no atelier de ceracircmica da UFRJ um laptop conectado num microfone simples e um
alto-falante em modo Bluetooth colocados dentro do pote
Posteriormente para esse sistema caber dentro do pote de ceracircmica foi necessaacuterio o
uso de um Raspberry Pi um microcomputador de baixo custo bastante popular para
projetos compactos e que necessitem de uma boa capacidade de processamento Foi
acoplado ao Raspberry Pi uma bateria de 5V para possibilitar tambeacutem a autonomia do
dispositivo por algumas horas sem a necessidade de um cabo de energia conectado
fisicamente no dispositivo Para a captaccedilatildeo de aacuteudio foi utilizado um microfone
Omnidirecional colocado na boca do pote depois de constatado que nesta posiccedilatildeo se
obtia a menor microfonia sem perder a qualidade de som que o formato do pote dava a
voz projetada dentro dele
Pote do primeiro protoacutetipo feito no ateliecircr de ceracircmica da EBAUFRJ fotografia do autor
AEI - Arte Eletrocircnica Indiacutegena
Algum tempo depois do primeiro experimento feito na UFRJ me veio a notiacutecia de uma
chamada aberta para projetos de residecircncia em aldeias indiacutegenas no nordeste do
Brasil chamado ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo promovida pela ONG Thydewaacute que tinha
como objetivo a produccedilatildeo colaborativa e cocriada entre indiacutegenas e artistas
A ONG Thydecircwaacute faz a cogestatildeo de 08 Pontos de Cultura Indiacutegena ndashPCI localizados no
coraccedilatildeo de 08 comunidades indiacutegenas diferentes quatro na Bahia duas em Alagoas
uma em Sergipe e uma em Pernambuco Esses PCIs funcionaratildeo como
LABORATOacuteRIOS cada um deles receberaacute em RESIDEcircNCIA ARTIacuteSTICA um ou vaacuterios
convidados [ref]
Vi nessa oportunidade uma maneira uacutenica de desdobrar o protoacutetipo realizado no
ateliecircr de ceracircmica da UFRJ e poder expandi-lo em uma comunidade indiacutegena onde a
tradiccedilatildeo oral ainda eacute essencial para a sobrevivecircncia e resistecircncia de praacuteticas culturais
milenares Sabendo da existecircncia de aldeias no nordeste com produccedilatildeo de ceracircmica
ainda em atividade enviei um email para Sebastian Gerlic curador do projeto
perguntando se alguma das aldeias listadas ainda contavam com a produccedilatildeo de
ceracircmica Na sua resposta ele me informou que dentre as aldeias contempladas no
projeto somente a etnia Pankararu em TacaratuPE mantia essa tradiccedilatildeo viva
Nesse momento com a possibilidade real do projeto natildeo ser soacute o
desenvolvimento de um artefato artesanal tecnoloacutegico mas de um experimento
social-etnograacutefico decidi entatildeo convidar o artista Andreacute Anastaacutecio para colaborar no
projeto da residecircncia Andreacute eacute um grande amigo com quem jaacute tenho colaborado desde
2013 junto aos Biocircnicos em diversas accedilotildees artiacutesticas lidando com tecnologia 1
1 Biocircnicos foi um grupo de estudos no campo da arte natureza e tecnologia originado no laboratoacuterio do NANO (Nuacutecleo de Arte e Novos Organismos) na EBA-UFRJ Formado por Caio Chacal Igor Abreu Andreacute Anastaacutecio Itajaci Amaral Jabal Murbach e Alberto Harres o grupo realizou diversas instalaccedilotildees nas ruas do Rio de Janeiro na contra-cultura digital e analoacutegica
natureza e poliacutetica Desenvolvemos esteacuteticas em conjunto que orbitavam exatamente o
eixo em que esse projeto estava se colocando Aleacutem disso considerei que sua
experiecircncia recente um trabalho de mediaccedilatildeo e direccedilatildeo artiacutestica num
documentaacuteriofilme em comunidades Quilombolas em Minas Gerais e no Maranhatildeo
iriam trazer um olhar jaacute aguccedilado nas dinacircmicas etnograacuteficas e relacionais desse
experimento Sua pesquisa em dispositivos sonoros e poeacuteticas de sonorizaccedilatildeo seriam
tambeacutem essenciais para o desenvolvimento do aspecto sonoro do dispositivo de
maneira potente
Com as informaccedilotildees passadas por Sebastian sobre os Pankararus e sua
produccedilatildeo de ceracircmica comeccedilamos entatildeo uma pesquisa aprofundada sobre esta etnia
Com o intuito de enviar uma proposta de residecircncia lidando com todas as
especificidades do povo Pankararu pesquisamos sua histoacuteria seus ritos escutamos
seus cantos E em meio dos cantos na internet tomamos conhecimento das Missotildees
Folcloacutericas de 1938 promovidas por Maacuterio de Andrade quando dirigiu a Biblioteca
Puacuteblica Municipal de Satildeo Paulo [12] Essa expediccedilatildeo e seu material coletado junto
com forte ressonacircncia na proacutepria obra de Maacuterio de Andrade foram um ponto de
referecircncia para pensarmos a preservaccedilatildeo da memoacuteria cultural atraveacutes da tecnologia
Nesse momento natildeo se tratava mais de um artefato tecnoloacutegico somente mas
de um objeto em contexto tendo implicaccedilotildees sociais para aleacutem das questotildees esteacuteticas
Nossa concepccedilatildeo se tornou entatildeo de um dispositivo atuando em prol da memoacuteria da
cultura oral indiacutegena um artefato de memoacuteria e difusatildeo fundindo a tecnologia da
ceracircmica pankararu com a tecnologia digital A conexatildeo terrena do siliacutecio dos
eletrocircnicos com o barro da ceracircmica ressoando em conjunto com as vozes indiacutegenas
A proposta enviada foi entatildeo a seguinte
A proposta do projeto tem a intenccedilatildeo de desenvolver artefatos eletrocircnicos sonoros que
possibilitem a escuta amplificaccedilatildeo e produccedilatildeo de memoacuteria na cultura indiacutegena Este
httpssimbinoisetumblrcom
artefato seraacute co-criado com indiacutegenas da Aldeia Brejo dos Padres e pretende mesclar a
tradiccedilatildeo ancestral Pankararu com tecnologias digitais de comunicaccedilatildeo e armazenamento
de informaccedilatildeo O dispositivo tecno-indiacutegena consiste em um mini-computador(raspberry
pi) com a capacidade de gravar aacuteudio para posteriormente armazenar e executar o
conteuacutedo automaticamente na web e em outro dispositivo emissor Esse sistema seraacute
acoplado e montado dentro de objetos de ceracircmica construiacutedo por mulheres indiacutegenas
Pankararu
Em um orifiacutecio modelado na escultura de barro do dispositivo os habitantes da aldeia
poderatildeo gravar cacircnticos tradicionais do Toreacute reclames sobre suas lutas e resistecircncias
por demarcaccedilatildeo de terras histoacuterias da tribo e demais mensagens que valorizem
fortaleccedilam e empoderem a aldeia Esse material armazenado na web iraacute compor um
banco de sonoridades Pankararu com acesso puacuteblico e tem por objetivo a preservaccedilatildeo
e salvaguarda da memoacuteria e patrimocircnio cultural da Aldeia As sonoridades gravadas
tambeacutem seratildeo transmitidas na web no formato web raacutedio tambeacutem de acesso puacuteblico e
tem o intuito de contribuir na difusatildeo amplificaccedilatildeo e transmissatildeo da cultura indiacutegena
Aleacutem da funccedilatildeo de guardar e propagar a cultura indiacutegena este vasilhame de
ceracircmica mistura de barro e siliacutecio poderaacute ser usado tambeacutem como emissor sonoro em
performances e itineracircncia em diversos espaccedilos Ao circular por outras Aldeias e
espaccedilos urbanosculturais a ceracircmica leva um pedaccedilo da terra dos Pankararus
preenchido por suas histoacuterias e cultura Temos a intenccedilatildeo tambeacutem de editar um manual
de montagem uso e manutenccedilatildeo do dispositivo para que ele possa ser livremente
replicado O projeto seraacute completamente open-source compartilhando saberes para
realizaccedilatildeo de uma tecnologia cidadatilde-aldeatilde
Alguns meses apoacutes enviarmos a nossa proposta para o projeto de residecircncia Arte
Eletrocircnica Indiacutegena recebemos a notiacutecia que nosso projeto foi aprovado Infelizmente
Andreacute Anastaacutecio co-autor do projeto natildeo poderia estar presencialmente na residecircncia
pois estaria se mudando para Lisboa no mesmo periacuteodo Por conta dessa ausecircncia
Sebastian curador do projeto nos indicou Ilana Majerowicz que estaria jaacute em
Pankararu no periacuteodo de residecircncia e jaacute havia feito alguns projetos junto com a
associaccedilatildeo das mulheres pankararu a AMIGP e seria uma oacutetima colaboradora e
mediadora nos conduzindo a diversas portas jaacute abertas em Pankararu
O Povo Pankararu
Alguns meses mais tarde recebemos a notiacutecia de que tivemos nosso projeto aprovado
mas antes de entrarmos nas questotildees da residecircncia eacute necessaacuterio falar um pouco mais
sobre o povo Pankararu
A reserva de Pankararu entre os municiacutepios de Tacaratu Jatobaacute e Petrolacircndia no
sertatildeo Pernambucano eacute de onde originaram diversos grupos indiacutegenas no Nordeste
com forte semelhanccedila cultural (Jeripancoacute Kantarureacute Kalancoacute Karuazu Katokin
Pankararu do Real Parque Pankaiwka etc) A cultura Pankararu tem forte conexatildeo e
intercacircmbio com diversos outros povos indiacutegenas que residem ao longo do Rio Satildeo
Francisco em Pernambuco [1]
Como a maioria dos povos indiacutegenas do Nordeste o contato com o homem branco se
deu no iniacutecio do periacuteodo colonial Os primeiros registros de contato dos colonos
portuguecircs com os indiacutegenas Pankararu datam do iniacutecio do seacutec XVII com as missotildees
dos padres oratorianos e capuchinhos que buscavam converter os povos indiacutegenas da
regiatildeo para o catolicismo
Eventualmente a maloca de Cana Brava desfeita e os missionaacuterios deslocaram-se em
direccedilatildeo agrave serra de Tacaratu para formar a aldeia que ficou conhecida como ldquoBrejo dos
Padresrdquo
Muita luta foi necessaacuteria para o reconhecimento de suas terras Os Pankararu
acreditam que o formato quadrado de sua reserva se deu pelo fato de ter sido doada
pelo entatildeo Imperador Pedro II
Os Pankararu falam somente o portuguecircs traccedilo comum entre as etnias do nordeste
com exceccedilatildeo dos Fulni-ocirc fruto da forte repressatildeo e perseguiccedilatildeo que ocorre desde os
primeiros contatos ateacute agora
Em seus rituais eacute caracteriacutestica a figura dos praiaacutes figuras cobertas por uma ldquofardardquo
como eles denominam feita de caroaacute uma planta regional do sertatildeo do qual eacute feita
uma espeacutecie de palha bem resistente Pode-se dizer que os praiaacutes satildeo os guardiotildees
dos pankararu contra os espiacuteritos malignos o fardamento dos praiaacutes eacute de uso exclusivo
dos homens e a diferenciaccedilatildeo de quem veste cada praiaacute depende de qual lsquotroncorsquo das
famiacutelias pankararu o homem pertence sendo portanto uma tradiccedilatildeo tambeacutem familiar
Fotografias do ritual ldquoTrecircs Rodasrdquo tirada durante a residecircncia fotografia do autor
A Ceracircmica Pankararu
A ceracircmica tem uma importacircncia especial na cultura Pankararu pois constituem como
elementos sagrados dentro dos seus rituais Nos pratos de barro eacute onde se oferece a
comida sagrada aos praiaacutes e aos participantes do ritual no terreiro e os potes de
ceracircmica satildeo usados para comportar a garapa de cana a ser bebida durante o ritual
Todos presentes compartilham da comida oferecida no ritual sendo necessaacuterio agraves
vezes mais de 100 200 pratos de barro para um ritual ocorrer Hoje em dia muitas
vezes jaacute se utilizam baldes pratos potes de plaacutestico substituindo os de barro na praacutetica
dos rituais perdendo um pouco dessa tradiccedilatildeo Isso ocorre devido ao aumento da
populaccedilatildeo indiacutegena na aldeia que natildeo eacute acompanhada de um crescimento tambeacutem da
produccedilatildeo de ceracircmica pankararu Hoje em dia somente algumas famiacutelias mantecircm a
tradiccedilatildeo da ceracircmica em Pankararu a falta de incentivo e infra-estrutura prejudica para
que essa cultura permaneccedila acessa Mas apesar das dificuldades a demanda interna
relativamente alta de pratos de ceracircmica por conta dessas praacuteticas nos rituais ajuda a
manter a produccedilatildeo de ceracircmica ativa natildeo dependendo somente da venda do
artesanato para fora da aldeia para se manter a tradiccedilatildeo viva
[Fot251] Coleccedilatildeo Etnograacutefica Carlos Estevatildeo de Oliveira [16]
A Residecircncia
A residecircncia artiacutestica ocorreu entre as 15 e 22 de junho de 2018 na aldeia Brejo dos
Padres no municiacutepio de Tacaratu PE Cada artista residente ficava hospedado na
casa de algueacutem na aldeia que participasse dos projetos culturais no meu caso fiquei
na casa de Geovam Araticum Pankararu (Geo) com sua esposa Rosacircngela e suas
duas filhas Geovam eacute um dos pankararus da nova geraccedilatildeo que puxam a tradiccedilatildeo
indiacutegena estaacute presente nos rituais cantando os toantes e na escola indiacutegena estadual
Carlos Estevatildeo ele trabalha como pedagogo ensinando as crianccedilas sobre as tradiccedilotildees
da cultura pankararu
Dia 1
Ao chegar no aeroporto de Paulo Afonso Patriacutecia Pankararu viria me buscar para me
levar para Pankararu e assim se deu Foi meu primeiro contato com um dos
pankararus logo ela me contou sobre a histoacuteria e situaccedilatildeo atual do seu povo os
conflitos existentes no momento entre os indiacutegenas e os posseiros e toda a
problemaacutetica decorrente disso
Cheguei agrave noite na aldeia Brejo dos Padres onde fui acolhido na casa de Geo e sua
famiacutelia laacute encontrei Ilana Majerowicz com quem faria a mediaccedilatildeo do projeto e outras
figuras que seriam atores importantes do experimento em Pankararu Fernando
Monteiro dos Santos ou Fernandatildeo como eacute chamado uma das lideranccedilas da aldeia
Brejo dos Padres Ewerton e Antocircnio Neto ambos ativos no Ponto de Cultura Indiacutegena
aleacutem da esposa de Geo Rosacircngela e suas duas filhas pequenas
Nesse nosso primeiro encontro jaacute estabelecemos algumas metas do nosso projeto
irmos encontrar as ceramistas na aldeia Tapera mapearmos figuras importantes que
pudessem compartilhar diferentes conhecimentos sobre Pankararu conosco e tambeacutem
locais no qual esse experimento pudesse ocorrer na aldeia
Dia 2
Acordamos cedo no segundo dia e jaacute fomos para a aldeia Tapera para encontrarmos a
ceramista Luciene sobrinha de Mercinha que jaacute havia preparado um pote
especiacuteficamente para o nosso projeto Chegando laacute fizemos uma pequena entrevista
com ela pedimos para que nos contasse um pouco do seu processo como havia
aprendido a arte da ceracircmica e o que isso significava para ela Ela natildeo foi de muitas
palavras e nos disse simplismente que havia aprendido todo o processo da ceracircmica
vendo suas parentes mais velhas fazendo e repetia esse processo Nesse momento a
forma de comunicaccedilatildeo era ainda muito nova para mim sendo um pouco difiacutecil entender
o ritmo de diaacutelogo mais apropriado com os pankararu
Luciene jaacute havia preparado o pote especiacuteficamente para o projeto e parecia perfeito
para o dispositivo Era necessaacuteria uma boca grande o suficiente para poder entrar o
Raspbery Pi junto com o alto falante ao mesmo tempo que era necessaacuterio um buraco
na parte de baixo do pote para sair os cabos de energia e do mouse e teclado para o
Raspberry
Fiz alguns testes com o pote ali mesmo e o tudo funcionou Geo fez o primeiro canto
dentro do pote e escutamos pela primeira vez um toante pankararu entrar no pote e
depois ser tocado de dentro dele para escutarmos e foi um momento muito bonito
Embora o pote estivesse moldado ele precisava ainda secar e ir para a queima e aiacute
sim estaria pronto para ser colocado como dispositivo e jaacute que isso iria demorar ainda
alguns dias decidimos pegar alguns potes jaacute prontos que haviam disponiacuteveis para
seguirmos com o experimento enquanto o pote definitivo natildeo estivesse pronto
Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento
Fotografia de Ilana Majerowicz
Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute
Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos
documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua
luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia
ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote
natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa
naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote
pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo
indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no
Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns
testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara
qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira
criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote
Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor
Dia 3
No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac
produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles
haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia
Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas
viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas
Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde
ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas
tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro
lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa
tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e
ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos
noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer
mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia
mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu
As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo
liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu
toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem
vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio
tupinambaacutersquo esse simrdquo
A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio
das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso
das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A
cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e
antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria
expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir
da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo
iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e
a ldquoinduacutestria culturalrdquo
Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de
transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de
Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30
recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu
Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos
importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas
pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos
iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute
Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo
de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas
por essas flautas [3]
Dia 4
A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a
perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre
a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos
Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente
pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante
Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos
encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada
devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e
esposas no dia anterior da retirada
Fernando sobre os toantes
ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados
noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados
que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem
diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais
velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu
dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada
toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um
pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o
praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam
lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa
memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele
vem ensinarrdquo
A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do
sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e
como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os
encantados
Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras
Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando
era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos
Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz
Dia 5
Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo
nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele
Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo
Fotografia do autor
Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que
atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e
revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus
poemas para o dispositivo
A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os
pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se
repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que
segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura
destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em
detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu
somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos
mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse
ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos
debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e
sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu
vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que
manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade
desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura
Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas
externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em
seu entorno
Dia 6
No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso
projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana
antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois
queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do
dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a
uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico
Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa
de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na
casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma
entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a
tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo
que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se
do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia
de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de
Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo
consideradas as melhores regiatildeo
Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone
e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma
mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar
com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes
espalhados em difentes lugares longe de Pankararu
Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana
Majerowicz
Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia
que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz
de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos
imemoriais
Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita
Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu
Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos
uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente
presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da
cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem
diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma
mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees
metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro
que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem
era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de
ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto
haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc
Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da
sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos
Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou
claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o
dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos
esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos
um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de
que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela
aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus
remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu
somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo
como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo
da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita
da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela
cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta
Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e
assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira
Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles
pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa
mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram
esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que
haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria
a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as
vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos
imemoriais
Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca
havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira
vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute
justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para
cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do
canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os
pankararus
Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura
pankararu
ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a
nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender
que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no
sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente
possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem
neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses
cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a
memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes
aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo
Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da
direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz
Dia 7
No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o
experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a
predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato
com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote
mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia
de falar com pote
Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz
Dia 8
A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num
acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e
indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e
outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio
certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares
para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo
muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica
Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees
estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele
mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por
completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos
presentes nesse experimento
Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz
Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de
aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir
de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra
pankararu
A Exposiccedilatildeo
Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as
residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador
(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as
obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das
diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee
Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu
Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes
cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do
puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento
possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo
de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios
registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a
residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em
Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro
do pote
Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias
para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no
espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados
num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias
indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias
artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus
vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo
Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia
que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou
intacto em Salvador para ser exposto
Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que
aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar
colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com
aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros
indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo
toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora
um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as
diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes
em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e
terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas
indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o
dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e
atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu
Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a
experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a
cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que
interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta
daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes
camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do
museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os
natildeo-indiacutegenas
Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor
Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo
em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees
teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do
sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy
8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
For Today
httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
httpwwwvitruviusbeboek5h5htm
9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
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11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
Primeiro experimento
Os primeiros esboccedilos e ideias para o que viria a ser o projeto Vozes da Terra surgem
no final de 2017 quando realizava uma pesquisa em dispositivos poeacutetico-sonoros
Nesse periacuteodo rondava na minha cabeccedila uma ideia de uma maacutequina esquizofrecircnica
que escutasse o entorno e o repetisse sem parar somando vozes ateacute o barulho
completo
A ideia dessa maacutequina foi caminhando para se tornar realidade No decorrer da
disciplina de ceracircmica da professora Kaacutetia Gorini na UFRJ-EBA com a intenccedilatildeo de
fazer um pote de ceracircmica veio-me em mente um dispositivo eletrocircnico sonoro
integrado ao pote talvez ele pudesse ser essa lsquocacircmara de ecorsquo que havia antes
vislumbrado Durante a modelagem do barro a Prof Kaacutetia Gorini mostrou-me um viacutedeo
que acompanhava uma indiacutegena na produccedilatildeo do artesanato de ceracircmica desde a
retirada do barro a sua preparaccedilatildeo modelagem secagem ateacute a queima A partir
dessa referecircncia tive o insight de conectar a tradiccedilatildeo da oralidade (caracteriacutestica dos
indiacutegenas brasileiros) com a proacutepria ceracircmica indiacutegena num dispositivo sonoro de
ecos Ao refletir acerca da fusatildeo entre esses fatores comecei a abordar as seguintes
questotildees como poderia um dispositivo eletrocircnico incorporar a dinacircmica da oralidade
subjetiva no seu proacuteprio procedimento De que forma eacute possiacutevel integrar a tecnologia
ancestral da ceracircmica com maacutequinas binaacuterias maacutequinas de som
Esses questionamentos levaram-me a ideia de desenvolver um pote de ceracircmica que
tivesse um microfone e um alto-falante acoplados dentro dele e que pudesse funcionar
como uma maacutequina de ecos potencializando a oralidade num sistema automatizado de
escuta das ondas sonoras projetadas para dentro do pote e de dentro deles serem
novamente reproduzidas
O Protoacutetipo
Paralelamente a moldagem do barro fiz uma pesquisa teacutecnica a fim de cumprir as
necessidades baacutesicas das funcionalidades de detecccedilatildeo escuta memorizaccedilatildeo e
reproduccedilatildeo sonora de maneira alternada e automatizada a partir de um computador
um microfone e um alto-falante Essa capacidade de escuta e reproduccedilatildeo sonora
dentro de um uacutenico objeto natildeo seria possiacutevel usando somente o efeito de Delay sonoro
pois geraria de imediato um efeito de microfonia no dispositivo Recorri entatildeo agrave
programaccedilatildeo modelando um software que fosse capaz de maneira automatizada e
alternada reproduzir e gravar sons emitidos dentro do pote
Na busca de algum coacutedigo de software livre que contemplasse essas capacidades
encontrei a biblioteca de coacutedigo chamada AUDITOK (Audio Tokenizer ) que denomina
um sistema de detecccedilatildeo de atividade sonora com a funcionalidade de escutar uma
entrada de aacuteudio e gravar trechos que excedam um determinado volume miacutenimo de
threshold Essa biblioteca possibilita configurar tempo miacutenimo de um trecho de aacuteudio
tempo maacuteximo de silecircncio tolerado durante um trecho aleacutem e etc ou seja Audiotok se
apresentou como um sistema flexiacutevel o suficiente para as funcionalidades necessaacuterias
para esse dispositivo
A biblioteca Auditok foi entatildeo configurada para seguir o fluxo como estaacute formulado
abaixo detecccedilatildeo aacuteudios salvando-os num banco de aacuteudios em formato WAV
O primeiro experimento foi realizado com um pote de ceracircmica modelado e queimado
no atelier de ceracircmica da UFRJ um laptop conectado num microfone simples e um
alto-falante em modo Bluetooth colocados dentro do pote
Posteriormente para esse sistema caber dentro do pote de ceracircmica foi necessaacuterio o
uso de um Raspberry Pi um microcomputador de baixo custo bastante popular para
projetos compactos e que necessitem de uma boa capacidade de processamento Foi
acoplado ao Raspberry Pi uma bateria de 5V para possibilitar tambeacutem a autonomia do
dispositivo por algumas horas sem a necessidade de um cabo de energia conectado
fisicamente no dispositivo Para a captaccedilatildeo de aacuteudio foi utilizado um microfone
Omnidirecional colocado na boca do pote depois de constatado que nesta posiccedilatildeo se
obtia a menor microfonia sem perder a qualidade de som que o formato do pote dava a
voz projetada dentro dele
Pote do primeiro protoacutetipo feito no ateliecircr de ceracircmica da EBAUFRJ fotografia do autor
AEI - Arte Eletrocircnica Indiacutegena
Algum tempo depois do primeiro experimento feito na UFRJ me veio a notiacutecia de uma
chamada aberta para projetos de residecircncia em aldeias indiacutegenas no nordeste do
Brasil chamado ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo promovida pela ONG Thydewaacute que tinha
como objetivo a produccedilatildeo colaborativa e cocriada entre indiacutegenas e artistas
A ONG Thydecircwaacute faz a cogestatildeo de 08 Pontos de Cultura Indiacutegena ndashPCI localizados no
coraccedilatildeo de 08 comunidades indiacutegenas diferentes quatro na Bahia duas em Alagoas
uma em Sergipe e uma em Pernambuco Esses PCIs funcionaratildeo como
LABORATOacuteRIOS cada um deles receberaacute em RESIDEcircNCIA ARTIacuteSTICA um ou vaacuterios
convidados [ref]
Vi nessa oportunidade uma maneira uacutenica de desdobrar o protoacutetipo realizado no
ateliecircr de ceracircmica da UFRJ e poder expandi-lo em uma comunidade indiacutegena onde a
tradiccedilatildeo oral ainda eacute essencial para a sobrevivecircncia e resistecircncia de praacuteticas culturais
milenares Sabendo da existecircncia de aldeias no nordeste com produccedilatildeo de ceracircmica
ainda em atividade enviei um email para Sebastian Gerlic curador do projeto
perguntando se alguma das aldeias listadas ainda contavam com a produccedilatildeo de
ceracircmica Na sua resposta ele me informou que dentre as aldeias contempladas no
projeto somente a etnia Pankararu em TacaratuPE mantia essa tradiccedilatildeo viva
Nesse momento com a possibilidade real do projeto natildeo ser soacute o
desenvolvimento de um artefato artesanal tecnoloacutegico mas de um experimento
social-etnograacutefico decidi entatildeo convidar o artista Andreacute Anastaacutecio para colaborar no
projeto da residecircncia Andreacute eacute um grande amigo com quem jaacute tenho colaborado desde
2013 junto aos Biocircnicos em diversas accedilotildees artiacutesticas lidando com tecnologia 1
1 Biocircnicos foi um grupo de estudos no campo da arte natureza e tecnologia originado no laboratoacuterio do NANO (Nuacutecleo de Arte e Novos Organismos) na EBA-UFRJ Formado por Caio Chacal Igor Abreu Andreacute Anastaacutecio Itajaci Amaral Jabal Murbach e Alberto Harres o grupo realizou diversas instalaccedilotildees nas ruas do Rio de Janeiro na contra-cultura digital e analoacutegica
natureza e poliacutetica Desenvolvemos esteacuteticas em conjunto que orbitavam exatamente o
eixo em que esse projeto estava se colocando Aleacutem disso considerei que sua
experiecircncia recente um trabalho de mediaccedilatildeo e direccedilatildeo artiacutestica num
documentaacuteriofilme em comunidades Quilombolas em Minas Gerais e no Maranhatildeo
iriam trazer um olhar jaacute aguccedilado nas dinacircmicas etnograacuteficas e relacionais desse
experimento Sua pesquisa em dispositivos sonoros e poeacuteticas de sonorizaccedilatildeo seriam
tambeacutem essenciais para o desenvolvimento do aspecto sonoro do dispositivo de
maneira potente
Com as informaccedilotildees passadas por Sebastian sobre os Pankararus e sua
produccedilatildeo de ceracircmica comeccedilamos entatildeo uma pesquisa aprofundada sobre esta etnia
Com o intuito de enviar uma proposta de residecircncia lidando com todas as
especificidades do povo Pankararu pesquisamos sua histoacuteria seus ritos escutamos
seus cantos E em meio dos cantos na internet tomamos conhecimento das Missotildees
Folcloacutericas de 1938 promovidas por Maacuterio de Andrade quando dirigiu a Biblioteca
Puacuteblica Municipal de Satildeo Paulo [12] Essa expediccedilatildeo e seu material coletado junto
com forte ressonacircncia na proacutepria obra de Maacuterio de Andrade foram um ponto de
referecircncia para pensarmos a preservaccedilatildeo da memoacuteria cultural atraveacutes da tecnologia
Nesse momento natildeo se tratava mais de um artefato tecnoloacutegico somente mas
de um objeto em contexto tendo implicaccedilotildees sociais para aleacutem das questotildees esteacuteticas
Nossa concepccedilatildeo se tornou entatildeo de um dispositivo atuando em prol da memoacuteria da
cultura oral indiacutegena um artefato de memoacuteria e difusatildeo fundindo a tecnologia da
ceracircmica pankararu com a tecnologia digital A conexatildeo terrena do siliacutecio dos
eletrocircnicos com o barro da ceracircmica ressoando em conjunto com as vozes indiacutegenas
A proposta enviada foi entatildeo a seguinte
A proposta do projeto tem a intenccedilatildeo de desenvolver artefatos eletrocircnicos sonoros que
possibilitem a escuta amplificaccedilatildeo e produccedilatildeo de memoacuteria na cultura indiacutegena Este
httpssimbinoisetumblrcom
artefato seraacute co-criado com indiacutegenas da Aldeia Brejo dos Padres e pretende mesclar a
tradiccedilatildeo ancestral Pankararu com tecnologias digitais de comunicaccedilatildeo e armazenamento
de informaccedilatildeo O dispositivo tecno-indiacutegena consiste em um mini-computador(raspberry
pi) com a capacidade de gravar aacuteudio para posteriormente armazenar e executar o
conteuacutedo automaticamente na web e em outro dispositivo emissor Esse sistema seraacute
acoplado e montado dentro de objetos de ceracircmica construiacutedo por mulheres indiacutegenas
Pankararu
Em um orifiacutecio modelado na escultura de barro do dispositivo os habitantes da aldeia
poderatildeo gravar cacircnticos tradicionais do Toreacute reclames sobre suas lutas e resistecircncias
por demarcaccedilatildeo de terras histoacuterias da tribo e demais mensagens que valorizem
fortaleccedilam e empoderem a aldeia Esse material armazenado na web iraacute compor um
banco de sonoridades Pankararu com acesso puacuteblico e tem por objetivo a preservaccedilatildeo
e salvaguarda da memoacuteria e patrimocircnio cultural da Aldeia As sonoridades gravadas
tambeacutem seratildeo transmitidas na web no formato web raacutedio tambeacutem de acesso puacuteblico e
tem o intuito de contribuir na difusatildeo amplificaccedilatildeo e transmissatildeo da cultura indiacutegena
Aleacutem da funccedilatildeo de guardar e propagar a cultura indiacutegena este vasilhame de
ceracircmica mistura de barro e siliacutecio poderaacute ser usado tambeacutem como emissor sonoro em
performances e itineracircncia em diversos espaccedilos Ao circular por outras Aldeias e
espaccedilos urbanosculturais a ceracircmica leva um pedaccedilo da terra dos Pankararus
preenchido por suas histoacuterias e cultura Temos a intenccedilatildeo tambeacutem de editar um manual
de montagem uso e manutenccedilatildeo do dispositivo para que ele possa ser livremente
replicado O projeto seraacute completamente open-source compartilhando saberes para
realizaccedilatildeo de uma tecnologia cidadatilde-aldeatilde
Alguns meses apoacutes enviarmos a nossa proposta para o projeto de residecircncia Arte
Eletrocircnica Indiacutegena recebemos a notiacutecia que nosso projeto foi aprovado Infelizmente
Andreacute Anastaacutecio co-autor do projeto natildeo poderia estar presencialmente na residecircncia
pois estaria se mudando para Lisboa no mesmo periacuteodo Por conta dessa ausecircncia
Sebastian curador do projeto nos indicou Ilana Majerowicz que estaria jaacute em
Pankararu no periacuteodo de residecircncia e jaacute havia feito alguns projetos junto com a
associaccedilatildeo das mulheres pankararu a AMIGP e seria uma oacutetima colaboradora e
mediadora nos conduzindo a diversas portas jaacute abertas em Pankararu
O Povo Pankararu
Alguns meses mais tarde recebemos a notiacutecia de que tivemos nosso projeto aprovado
mas antes de entrarmos nas questotildees da residecircncia eacute necessaacuterio falar um pouco mais
sobre o povo Pankararu
A reserva de Pankararu entre os municiacutepios de Tacaratu Jatobaacute e Petrolacircndia no
sertatildeo Pernambucano eacute de onde originaram diversos grupos indiacutegenas no Nordeste
com forte semelhanccedila cultural (Jeripancoacute Kantarureacute Kalancoacute Karuazu Katokin
Pankararu do Real Parque Pankaiwka etc) A cultura Pankararu tem forte conexatildeo e
intercacircmbio com diversos outros povos indiacutegenas que residem ao longo do Rio Satildeo
Francisco em Pernambuco [1]
Como a maioria dos povos indiacutegenas do Nordeste o contato com o homem branco se
deu no iniacutecio do periacuteodo colonial Os primeiros registros de contato dos colonos
portuguecircs com os indiacutegenas Pankararu datam do iniacutecio do seacutec XVII com as missotildees
dos padres oratorianos e capuchinhos que buscavam converter os povos indiacutegenas da
regiatildeo para o catolicismo
Eventualmente a maloca de Cana Brava desfeita e os missionaacuterios deslocaram-se em
direccedilatildeo agrave serra de Tacaratu para formar a aldeia que ficou conhecida como ldquoBrejo dos
Padresrdquo
Muita luta foi necessaacuteria para o reconhecimento de suas terras Os Pankararu
acreditam que o formato quadrado de sua reserva se deu pelo fato de ter sido doada
pelo entatildeo Imperador Pedro II
Os Pankararu falam somente o portuguecircs traccedilo comum entre as etnias do nordeste
com exceccedilatildeo dos Fulni-ocirc fruto da forte repressatildeo e perseguiccedilatildeo que ocorre desde os
primeiros contatos ateacute agora
Em seus rituais eacute caracteriacutestica a figura dos praiaacutes figuras cobertas por uma ldquofardardquo
como eles denominam feita de caroaacute uma planta regional do sertatildeo do qual eacute feita
uma espeacutecie de palha bem resistente Pode-se dizer que os praiaacutes satildeo os guardiotildees
dos pankararu contra os espiacuteritos malignos o fardamento dos praiaacutes eacute de uso exclusivo
dos homens e a diferenciaccedilatildeo de quem veste cada praiaacute depende de qual lsquotroncorsquo das
famiacutelias pankararu o homem pertence sendo portanto uma tradiccedilatildeo tambeacutem familiar
Fotografias do ritual ldquoTrecircs Rodasrdquo tirada durante a residecircncia fotografia do autor
A Ceracircmica Pankararu
A ceracircmica tem uma importacircncia especial na cultura Pankararu pois constituem como
elementos sagrados dentro dos seus rituais Nos pratos de barro eacute onde se oferece a
comida sagrada aos praiaacutes e aos participantes do ritual no terreiro e os potes de
ceracircmica satildeo usados para comportar a garapa de cana a ser bebida durante o ritual
Todos presentes compartilham da comida oferecida no ritual sendo necessaacuterio agraves
vezes mais de 100 200 pratos de barro para um ritual ocorrer Hoje em dia muitas
vezes jaacute se utilizam baldes pratos potes de plaacutestico substituindo os de barro na praacutetica
dos rituais perdendo um pouco dessa tradiccedilatildeo Isso ocorre devido ao aumento da
populaccedilatildeo indiacutegena na aldeia que natildeo eacute acompanhada de um crescimento tambeacutem da
produccedilatildeo de ceracircmica pankararu Hoje em dia somente algumas famiacutelias mantecircm a
tradiccedilatildeo da ceracircmica em Pankararu a falta de incentivo e infra-estrutura prejudica para
que essa cultura permaneccedila acessa Mas apesar das dificuldades a demanda interna
relativamente alta de pratos de ceracircmica por conta dessas praacuteticas nos rituais ajuda a
manter a produccedilatildeo de ceracircmica ativa natildeo dependendo somente da venda do
artesanato para fora da aldeia para se manter a tradiccedilatildeo viva
[Fot251] Coleccedilatildeo Etnograacutefica Carlos Estevatildeo de Oliveira [16]
A Residecircncia
A residecircncia artiacutestica ocorreu entre as 15 e 22 de junho de 2018 na aldeia Brejo dos
Padres no municiacutepio de Tacaratu PE Cada artista residente ficava hospedado na
casa de algueacutem na aldeia que participasse dos projetos culturais no meu caso fiquei
na casa de Geovam Araticum Pankararu (Geo) com sua esposa Rosacircngela e suas
duas filhas Geovam eacute um dos pankararus da nova geraccedilatildeo que puxam a tradiccedilatildeo
indiacutegena estaacute presente nos rituais cantando os toantes e na escola indiacutegena estadual
Carlos Estevatildeo ele trabalha como pedagogo ensinando as crianccedilas sobre as tradiccedilotildees
da cultura pankararu
Dia 1
Ao chegar no aeroporto de Paulo Afonso Patriacutecia Pankararu viria me buscar para me
levar para Pankararu e assim se deu Foi meu primeiro contato com um dos
pankararus logo ela me contou sobre a histoacuteria e situaccedilatildeo atual do seu povo os
conflitos existentes no momento entre os indiacutegenas e os posseiros e toda a
problemaacutetica decorrente disso
Cheguei agrave noite na aldeia Brejo dos Padres onde fui acolhido na casa de Geo e sua
famiacutelia laacute encontrei Ilana Majerowicz com quem faria a mediaccedilatildeo do projeto e outras
figuras que seriam atores importantes do experimento em Pankararu Fernando
Monteiro dos Santos ou Fernandatildeo como eacute chamado uma das lideranccedilas da aldeia
Brejo dos Padres Ewerton e Antocircnio Neto ambos ativos no Ponto de Cultura Indiacutegena
aleacutem da esposa de Geo Rosacircngela e suas duas filhas pequenas
Nesse nosso primeiro encontro jaacute estabelecemos algumas metas do nosso projeto
irmos encontrar as ceramistas na aldeia Tapera mapearmos figuras importantes que
pudessem compartilhar diferentes conhecimentos sobre Pankararu conosco e tambeacutem
locais no qual esse experimento pudesse ocorrer na aldeia
Dia 2
Acordamos cedo no segundo dia e jaacute fomos para a aldeia Tapera para encontrarmos a
ceramista Luciene sobrinha de Mercinha que jaacute havia preparado um pote
especiacuteficamente para o nosso projeto Chegando laacute fizemos uma pequena entrevista
com ela pedimos para que nos contasse um pouco do seu processo como havia
aprendido a arte da ceracircmica e o que isso significava para ela Ela natildeo foi de muitas
palavras e nos disse simplismente que havia aprendido todo o processo da ceracircmica
vendo suas parentes mais velhas fazendo e repetia esse processo Nesse momento a
forma de comunicaccedilatildeo era ainda muito nova para mim sendo um pouco difiacutecil entender
o ritmo de diaacutelogo mais apropriado com os pankararu
Luciene jaacute havia preparado o pote especiacuteficamente para o projeto e parecia perfeito
para o dispositivo Era necessaacuteria uma boca grande o suficiente para poder entrar o
Raspbery Pi junto com o alto falante ao mesmo tempo que era necessaacuterio um buraco
na parte de baixo do pote para sair os cabos de energia e do mouse e teclado para o
Raspberry
Fiz alguns testes com o pote ali mesmo e o tudo funcionou Geo fez o primeiro canto
dentro do pote e escutamos pela primeira vez um toante pankararu entrar no pote e
depois ser tocado de dentro dele para escutarmos e foi um momento muito bonito
Embora o pote estivesse moldado ele precisava ainda secar e ir para a queima e aiacute
sim estaria pronto para ser colocado como dispositivo e jaacute que isso iria demorar ainda
alguns dias decidimos pegar alguns potes jaacute prontos que haviam disponiacuteveis para
seguirmos com o experimento enquanto o pote definitivo natildeo estivesse pronto
Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento
Fotografia de Ilana Majerowicz
Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute
Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos
documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua
luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia
ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote
natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa
naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote
pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo
indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no
Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns
testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara
qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira
criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote
Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor
Dia 3
No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac
produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles
haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia
Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas
viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas
Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde
ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas
tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro
lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa
tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e
ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos
noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer
mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia
mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu
As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo
liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu
toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem
vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio
tupinambaacutersquo esse simrdquo
A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio
das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso
das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A
cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e
antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria
expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir
da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo
iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e
a ldquoinduacutestria culturalrdquo
Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de
transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de
Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30
recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu
Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos
importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas
pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos
iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute
Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo
de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas
por essas flautas [3]
Dia 4
A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a
perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre
a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos
Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente
pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante
Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos
encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada
devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e
esposas no dia anterior da retirada
Fernando sobre os toantes
ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados
noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados
que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem
diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais
velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu
dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada
toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um
pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o
praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam
lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa
memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele
vem ensinarrdquo
A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do
sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e
como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os
encantados
Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras
Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando
era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos
Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz
Dia 5
Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo
nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele
Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo
Fotografia do autor
Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que
atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e
revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus
poemas para o dispositivo
A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os
pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se
repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que
segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura
destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em
detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu
somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos
mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse
ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos
debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e
sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu
vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que
manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade
desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura
Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas
externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em
seu entorno
Dia 6
No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso
projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana
antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois
queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do
dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a
uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico
Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa
de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na
casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma
entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a
tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo
que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se
do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia
de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de
Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo
consideradas as melhores regiatildeo
Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone
e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma
mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar
com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes
espalhados em difentes lugares longe de Pankararu
Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana
Majerowicz
Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia
que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz
de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos
imemoriais
Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita
Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu
Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos
uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente
presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da
cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem
diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma
mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees
metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro
que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem
era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de
ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto
haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc
Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da
sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos
Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou
claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o
dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos
esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos
um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de
que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela
aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus
remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu
somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo
como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo
da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita
da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela
cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta
Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e
assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira
Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles
pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa
mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram
esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que
haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria
a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as
vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos
imemoriais
Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca
havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira
vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute
justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para
cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do
canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os
pankararus
Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura
pankararu
ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a
nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender
que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no
sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente
possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem
neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses
cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a
memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes
aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo
Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da
direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz
Dia 7
No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o
experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a
predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato
com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote
mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia
de falar com pote
Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz
Dia 8
A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num
acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e
indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e
outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio
certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares
para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo
muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica
Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees
estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele
mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por
completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos
presentes nesse experimento
Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz
Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de
aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir
de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra
pankararu
A Exposiccedilatildeo
Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as
residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador
(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as
obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das
diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee
Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu
Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes
cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do
puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento
possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo
de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios
registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a
residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em
Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro
do pote
Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias
para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no
espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados
num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias
indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias
artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus
vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo
Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia
que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou
intacto em Salvador para ser exposto
Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que
aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar
colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com
aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros
indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo
toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora
um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as
diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes
em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e
terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas
indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o
dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e
atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu
Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a
experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a
cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que
interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta
daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes
camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do
museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os
natildeo-indiacutegenas
Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor
Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo
em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees
teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do
sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy
8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
For Today
httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
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la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
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+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris
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ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one
pageampqampf=false
11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
Esses questionamentos levaram-me a ideia de desenvolver um pote de ceracircmica que
tivesse um microfone e um alto-falante acoplados dentro dele e que pudesse funcionar
como uma maacutequina de ecos potencializando a oralidade num sistema automatizado de
escuta das ondas sonoras projetadas para dentro do pote e de dentro deles serem
novamente reproduzidas
O Protoacutetipo
Paralelamente a moldagem do barro fiz uma pesquisa teacutecnica a fim de cumprir as
necessidades baacutesicas das funcionalidades de detecccedilatildeo escuta memorizaccedilatildeo e
reproduccedilatildeo sonora de maneira alternada e automatizada a partir de um computador
um microfone e um alto-falante Essa capacidade de escuta e reproduccedilatildeo sonora
dentro de um uacutenico objeto natildeo seria possiacutevel usando somente o efeito de Delay sonoro
pois geraria de imediato um efeito de microfonia no dispositivo Recorri entatildeo agrave
programaccedilatildeo modelando um software que fosse capaz de maneira automatizada e
alternada reproduzir e gravar sons emitidos dentro do pote
Na busca de algum coacutedigo de software livre que contemplasse essas capacidades
encontrei a biblioteca de coacutedigo chamada AUDITOK (Audio Tokenizer ) que denomina
um sistema de detecccedilatildeo de atividade sonora com a funcionalidade de escutar uma
entrada de aacuteudio e gravar trechos que excedam um determinado volume miacutenimo de
threshold Essa biblioteca possibilita configurar tempo miacutenimo de um trecho de aacuteudio
tempo maacuteximo de silecircncio tolerado durante um trecho aleacutem e etc ou seja Audiotok se
apresentou como um sistema flexiacutevel o suficiente para as funcionalidades necessaacuterias
para esse dispositivo
A biblioteca Auditok foi entatildeo configurada para seguir o fluxo como estaacute formulado
abaixo detecccedilatildeo aacuteudios salvando-os num banco de aacuteudios em formato WAV
O primeiro experimento foi realizado com um pote de ceracircmica modelado e queimado
no atelier de ceracircmica da UFRJ um laptop conectado num microfone simples e um
alto-falante em modo Bluetooth colocados dentro do pote
Posteriormente para esse sistema caber dentro do pote de ceracircmica foi necessaacuterio o
uso de um Raspberry Pi um microcomputador de baixo custo bastante popular para
projetos compactos e que necessitem de uma boa capacidade de processamento Foi
acoplado ao Raspberry Pi uma bateria de 5V para possibilitar tambeacutem a autonomia do
dispositivo por algumas horas sem a necessidade de um cabo de energia conectado
fisicamente no dispositivo Para a captaccedilatildeo de aacuteudio foi utilizado um microfone
Omnidirecional colocado na boca do pote depois de constatado que nesta posiccedilatildeo se
obtia a menor microfonia sem perder a qualidade de som que o formato do pote dava a
voz projetada dentro dele
Pote do primeiro protoacutetipo feito no ateliecircr de ceracircmica da EBAUFRJ fotografia do autor
AEI - Arte Eletrocircnica Indiacutegena
Algum tempo depois do primeiro experimento feito na UFRJ me veio a notiacutecia de uma
chamada aberta para projetos de residecircncia em aldeias indiacutegenas no nordeste do
Brasil chamado ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo promovida pela ONG Thydewaacute que tinha
como objetivo a produccedilatildeo colaborativa e cocriada entre indiacutegenas e artistas
A ONG Thydecircwaacute faz a cogestatildeo de 08 Pontos de Cultura Indiacutegena ndashPCI localizados no
coraccedilatildeo de 08 comunidades indiacutegenas diferentes quatro na Bahia duas em Alagoas
uma em Sergipe e uma em Pernambuco Esses PCIs funcionaratildeo como
LABORATOacuteRIOS cada um deles receberaacute em RESIDEcircNCIA ARTIacuteSTICA um ou vaacuterios
convidados [ref]
Vi nessa oportunidade uma maneira uacutenica de desdobrar o protoacutetipo realizado no
ateliecircr de ceracircmica da UFRJ e poder expandi-lo em uma comunidade indiacutegena onde a
tradiccedilatildeo oral ainda eacute essencial para a sobrevivecircncia e resistecircncia de praacuteticas culturais
milenares Sabendo da existecircncia de aldeias no nordeste com produccedilatildeo de ceracircmica
ainda em atividade enviei um email para Sebastian Gerlic curador do projeto
perguntando se alguma das aldeias listadas ainda contavam com a produccedilatildeo de
ceracircmica Na sua resposta ele me informou que dentre as aldeias contempladas no
projeto somente a etnia Pankararu em TacaratuPE mantia essa tradiccedilatildeo viva
Nesse momento com a possibilidade real do projeto natildeo ser soacute o
desenvolvimento de um artefato artesanal tecnoloacutegico mas de um experimento
social-etnograacutefico decidi entatildeo convidar o artista Andreacute Anastaacutecio para colaborar no
projeto da residecircncia Andreacute eacute um grande amigo com quem jaacute tenho colaborado desde
2013 junto aos Biocircnicos em diversas accedilotildees artiacutesticas lidando com tecnologia 1
1 Biocircnicos foi um grupo de estudos no campo da arte natureza e tecnologia originado no laboratoacuterio do NANO (Nuacutecleo de Arte e Novos Organismos) na EBA-UFRJ Formado por Caio Chacal Igor Abreu Andreacute Anastaacutecio Itajaci Amaral Jabal Murbach e Alberto Harres o grupo realizou diversas instalaccedilotildees nas ruas do Rio de Janeiro na contra-cultura digital e analoacutegica
natureza e poliacutetica Desenvolvemos esteacuteticas em conjunto que orbitavam exatamente o
eixo em que esse projeto estava se colocando Aleacutem disso considerei que sua
experiecircncia recente um trabalho de mediaccedilatildeo e direccedilatildeo artiacutestica num
documentaacuteriofilme em comunidades Quilombolas em Minas Gerais e no Maranhatildeo
iriam trazer um olhar jaacute aguccedilado nas dinacircmicas etnograacuteficas e relacionais desse
experimento Sua pesquisa em dispositivos sonoros e poeacuteticas de sonorizaccedilatildeo seriam
tambeacutem essenciais para o desenvolvimento do aspecto sonoro do dispositivo de
maneira potente
Com as informaccedilotildees passadas por Sebastian sobre os Pankararus e sua
produccedilatildeo de ceracircmica comeccedilamos entatildeo uma pesquisa aprofundada sobre esta etnia
Com o intuito de enviar uma proposta de residecircncia lidando com todas as
especificidades do povo Pankararu pesquisamos sua histoacuteria seus ritos escutamos
seus cantos E em meio dos cantos na internet tomamos conhecimento das Missotildees
Folcloacutericas de 1938 promovidas por Maacuterio de Andrade quando dirigiu a Biblioteca
Puacuteblica Municipal de Satildeo Paulo [12] Essa expediccedilatildeo e seu material coletado junto
com forte ressonacircncia na proacutepria obra de Maacuterio de Andrade foram um ponto de
referecircncia para pensarmos a preservaccedilatildeo da memoacuteria cultural atraveacutes da tecnologia
Nesse momento natildeo se tratava mais de um artefato tecnoloacutegico somente mas
de um objeto em contexto tendo implicaccedilotildees sociais para aleacutem das questotildees esteacuteticas
Nossa concepccedilatildeo se tornou entatildeo de um dispositivo atuando em prol da memoacuteria da
cultura oral indiacutegena um artefato de memoacuteria e difusatildeo fundindo a tecnologia da
ceracircmica pankararu com a tecnologia digital A conexatildeo terrena do siliacutecio dos
eletrocircnicos com o barro da ceracircmica ressoando em conjunto com as vozes indiacutegenas
A proposta enviada foi entatildeo a seguinte
A proposta do projeto tem a intenccedilatildeo de desenvolver artefatos eletrocircnicos sonoros que
possibilitem a escuta amplificaccedilatildeo e produccedilatildeo de memoacuteria na cultura indiacutegena Este
httpssimbinoisetumblrcom
artefato seraacute co-criado com indiacutegenas da Aldeia Brejo dos Padres e pretende mesclar a
tradiccedilatildeo ancestral Pankararu com tecnologias digitais de comunicaccedilatildeo e armazenamento
de informaccedilatildeo O dispositivo tecno-indiacutegena consiste em um mini-computador(raspberry
pi) com a capacidade de gravar aacuteudio para posteriormente armazenar e executar o
conteuacutedo automaticamente na web e em outro dispositivo emissor Esse sistema seraacute
acoplado e montado dentro de objetos de ceracircmica construiacutedo por mulheres indiacutegenas
Pankararu
Em um orifiacutecio modelado na escultura de barro do dispositivo os habitantes da aldeia
poderatildeo gravar cacircnticos tradicionais do Toreacute reclames sobre suas lutas e resistecircncias
por demarcaccedilatildeo de terras histoacuterias da tribo e demais mensagens que valorizem
fortaleccedilam e empoderem a aldeia Esse material armazenado na web iraacute compor um
banco de sonoridades Pankararu com acesso puacuteblico e tem por objetivo a preservaccedilatildeo
e salvaguarda da memoacuteria e patrimocircnio cultural da Aldeia As sonoridades gravadas
tambeacutem seratildeo transmitidas na web no formato web raacutedio tambeacutem de acesso puacuteblico e
tem o intuito de contribuir na difusatildeo amplificaccedilatildeo e transmissatildeo da cultura indiacutegena
Aleacutem da funccedilatildeo de guardar e propagar a cultura indiacutegena este vasilhame de
ceracircmica mistura de barro e siliacutecio poderaacute ser usado tambeacutem como emissor sonoro em
performances e itineracircncia em diversos espaccedilos Ao circular por outras Aldeias e
espaccedilos urbanosculturais a ceracircmica leva um pedaccedilo da terra dos Pankararus
preenchido por suas histoacuterias e cultura Temos a intenccedilatildeo tambeacutem de editar um manual
de montagem uso e manutenccedilatildeo do dispositivo para que ele possa ser livremente
replicado O projeto seraacute completamente open-source compartilhando saberes para
realizaccedilatildeo de uma tecnologia cidadatilde-aldeatilde
Alguns meses apoacutes enviarmos a nossa proposta para o projeto de residecircncia Arte
Eletrocircnica Indiacutegena recebemos a notiacutecia que nosso projeto foi aprovado Infelizmente
Andreacute Anastaacutecio co-autor do projeto natildeo poderia estar presencialmente na residecircncia
pois estaria se mudando para Lisboa no mesmo periacuteodo Por conta dessa ausecircncia
Sebastian curador do projeto nos indicou Ilana Majerowicz que estaria jaacute em
Pankararu no periacuteodo de residecircncia e jaacute havia feito alguns projetos junto com a
associaccedilatildeo das mulheres pankararu a AMIGP e seria uma oacutetima colaboradora e
mediadora nos conduzindo a diversas portas jaacute abertas em Pankararu
O Povo Pankararu
Alguns meses mais tarde recebemos a notiacutecia de que tivemos nosso projeto aprovado
mas antes de entrarmos nas questotildees da residecircncia eacute necessaacuterio falar um pouco mais
sobre o povo Pankararu
A reserva de Pankararu entre os municiacutepios de Tacaratu Jatobaacute e Petrolacircndia no
sertatildeo Pernambucano eacute de onde originaram diversos grupos indiacutegenas no Nordeste
com forte semelhanccedila cultural (Jeripancoacute Kantarureacute Kalancoacute Karuazu Katokin
Pankararu do Real Parque Pankaiwka etc) A cultura Pankararu tem forte conexatildeo e
intercacircmbio com diversos outros povos indiacutegenas que residem ao longo do Rio Satildeo
Francisco em Pernambuco [1]
Como a maioria dos povos indiacutegenas do Nordeste o contato com o homem branco se
deu no iniacutecio do periacuteodo colonial Os primeiros registros de contato dos colonos
portuguecircs com os indiacutegenas Pankararu datam do iniacutecio do seacutec XVII com as missotildees
dos padres oratorianos e capuchinhos que buscavam converter os povos indiacutegenas da
regiatildeo para o catolicismo
Eventualmente a maloca de Cana Brava desfeita e os missionaacuterios deslocaram-se em
direccedilatildeo agrave serra de Tacaratu para formar a aldeia que ficou conhecida como ldquoBrejo dos
Padresrdquo
Muita luta foi necessaacuteria para o reconhecimento de suas terras Os Pankararu
acreditam que o formato quadrado de sua reserva se deu pelo fato de ter sido doada
pelo entatildeo Imperador Pedro II
Os Pankararu falam somente o portuguecircs traccedilo comum entre as etnias do nordeste
com exceccedilatildeo dos Fulni-ocirc fruto da forte repressatildeo e perseguiccedilatildeo que ocorre desde os
primeiros contatos ateacute agora
Em seus rituais eacute caracteriacutestica a figura dos praiaacutes figuras cobertas por uma ldquofardardquo
como eles denominam feita de caroaacute uma planta regional do sertatildeo do qual eacute feita
uma espeacutecie de palha bem resistente Pode-se dizer que os praiaacutes satildeo os guardiotildees
dos pankararu contra os espiacuteritos malignos o fardamento dos praiaacutes eacute de uso exclusivo
dos homens e a diferenciaccedilatildeo de quem veste cada praiaacute depende de qual lsquotroncorsquo das
famiacutelias pankararu o homem pertence sendo portanto uma tradiccedilatildeo tambeacutem familiar
Fotografias do ritual ldquoTrecircs Rodasrdquo tirada durante a residecircncia fotografia do autor
A Ceracircmica Pankararu
A ceracircmica tem uma importacircncia especial na cultura Pankararu pois constituem como
elementos sagrados dentro dos seus rituais Nos pratos de barro eacute onde se oferece a
comida sagrada aos praiaacutes e aos participantes do ritual no terreiro e os potes de
ceracircmica satildeo usados para comportar a garapa de cana a ser bebida durante o ritual
Todos presentes compartilham da comida oferecida no ritual sendo necessaacuterio agraves
vezes mais de 100 200 pratos de barro para um ritual ocorrer Hoje em dia muitas
vezes jaacute se utilizam baldes pratos potes de plaacutestico substituindo os de barro na praacutetica
dos rituais perdendo um pouco dessa tradiccedilatildeo Isso ocorre devido ao aumento da
populaccedilatildeo indiacutegena na aldeia que natildeo eacute acompanhada de um crescimento tambeacutem da
produccedilatildeo de ceracircmica pankararu Hoje em dia somente algumas famiacutelias mantecircm a
tradiccedilatildeo da ceracircmica em Pankararu a falta de incentivo e infra-estrutura prejudica para
que essa cultura permaneccedila acessa Mas apesar das dificuldades a demanda interna
relativamente alta de pratos de ceracircmica por conta dessas praacuteticas nos rituais ajuda a
manter a produccedilatildeo de ceracircmica ativa natildeo dependendo somente da venda do
artesanato para fora da aldeia para se manter a tradiccedilatildeo viva
[Fot251] Coleccedilatildeo Etnograacutefica Carlos Estevatildeo de Oliveira [16]
A Residecircncia
A residecircncia artiacutestica ocorreu entre as 15 e 22 de junho de 2018 na aldeia Brejo dos
Padres no municiacutepio de Tacaratu PE Cada artista residente ficava hospedado na
casa de algueacutem na aldeia que participasse dos projetos culturais no meu caso fiquei
na casa de Geovam Araticum Pankararu (Geo) com sua esposa Rosacircngela e suas
duas filhas Geovam eacute um dos pankararus da nova geraccedilatildeo que puxam a tradiccedilatildeo
indiacutegena estaacute presente nos rituais cantando os toantes e na escola indiacutegena estadual
Carlos Estevatildeo ele trabalha como pedagogo ensinando as crianccedilas sobre as tradiccedilotildees
da cultura pankararu
Dia 1
Ao chegar no aeroporto de Paulo Afonso Patriacutecia Pankararu viria me buscar para me
levar para Pankararu e assim se deu Foi meu primeiro contato com um dos
pankararus logo ela me contou sobre a histoacuteria e situaccedilatildeo atual do seu povo os
conflitos existentes no momento entre os indiacutegenas e os posseiros e toda a
problemaacutetica decorrente disso
Cheguei agrave noite na aldeia Brejo dos Padres onde fui acolhido na casa de Geo e sua
famiacutelia laacute encontrei Ilana Majerowicz com quem faria a mediaccedilatildeo do projeto e outras
figuras que seriam atores importantes do experimento em Pankararu Fernando
Monteiro dos Santos ou Fernandatildeo como eacute chamado uma das lideranccedilas da aldeia
Brejo dos Padres Ewerton e Antocircnio Neto ambos ativos no Ponto de Cultura Indiacutegena
aleacutem da esposa de Geo Rosacircngela e suas duas filhas pequenas
Nesse nosso primeiro encontro jaacute estabelecemos algumas metas do nosso projeto
irmos encontrar as ceramistas na aldeia Tapera mapearmos figuras importantes que
pudessem compartilhar diferentes conhecimentos sobre Pankararu conosco e tambeacutem
locais no qual esse experimento pudesse ocorrer na aldeia
Dia 2
Acordamos cedo no segundo dia e jaacute fomos para a aldeia Tapera para encontrarmos a
ceramista Luciene sobrinha de Mercinha que jaacute havia preparado um pote
especiacuteficamente para o nosso projeto Chegando laacute fizemos uma pequena entrevista
com ela pedimos para que nos contasse um pouco do seu processo como havia
aprendido a arte da ceracircmica e o que isso significava para ela Ela natildeo foi de muitas
palavras e nos disse simplismente que havia aprendido todo o processo da ceracircmica
vendo suas parentes mais velhas fazendo e repetia esse processo Nesse momento a
forma de comunicaccedilatildeo era ainda muito nova para mim sendo um pouco difiacutecil entender
o ritmo de diaacutelogo mais apropriado com os pankararu
Luciene jaacute havia preparado o pote especiacuteficamente para o projeto e parecia perfeito
para o dispositivo Era necessaacuteria uma boca grande o suficiente para poder entrar o
Raspbery Pi junto com o alto falante ao mesmo tempo que era necessaacuterio um buraco
na parte de baixo do pote para sair os cabos de energia e do mouse e teclado para o
Raspberry
Fiz alguns testes com o pote ali mesmo e o tudo funcionou Geo fez o primeiro canto
dentro do pote e escutamos pela primeira vez um toante pankararu entrar no pote e
depois ser tocado de dentro dele para escutarmos e foi um momento muito bonito
Embora o pote estivesse moldado ele precisava ainda secar e ir para a queima e aiacute
sim estaria pronto para ser colocado como dispositivo e jaacute que isso iria demorar ainda
alguns dias decidimos pegar alguns potes jaacute prontos que haviam disponiacuteveis para
seguirmos com o experimento enquanto o pote definitivo natildeo estivesse pronto
Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento
Fotografia de Ilana Majerowicz
Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute
Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos
documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua
luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia
ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote
natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa
naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote
pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo
indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no
Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns
testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara
qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira
criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote
Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor
Dia 3
No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac
produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles
haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia
Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas
viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas
Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde
ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas
tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro
lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa
tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e
ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos
noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer
mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia
mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu
As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo
liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu
toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem
vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio
tupinambaacutersquo esse simrdquo
A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio
das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso
das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A
cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e
antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria
expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir
da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo
iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e
a ldquoinduacutestria culturalrdquo
Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de
transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de
Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30
recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu
Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos
importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas
pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos
iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute
Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo
de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas
por essas flautas [3]
Dia 4
A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a
perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre
a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos
Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente
pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante
Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos
encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada
devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e
esposas no dia anterior da retirada
Fernando sobre os toantes
ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados
noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados
que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem
diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais
velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu
dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada
toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um
pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o
praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam
lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa
memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele
vem ensinarrdquo
A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do
sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e
como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os
encantados
Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras
Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando
era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos
Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz
Dia 5
Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo
nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele
Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo
Fotografia do autor
Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que
atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e
revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus
poemas para o dispositivo
A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os
pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se
repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que
segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura
destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em
detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu
somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos
mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse
ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos
debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e
sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu
vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que
manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade
desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura
Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas
externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em
seu entorno
Dia 6
No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso
projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana
antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois
queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do
dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a
uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico
Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa
de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na
casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma
entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a
tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo
que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se
do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia
de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de
Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo
consideradas as melhores regiatildeo
Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone
e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma
mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar
com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes
espalhados em difentes lugares longe de Pankararu
Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana
Majerowicz
Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia
que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz
de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos
imemoriais
Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita
Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu
Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos
uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente
presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da
cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem
diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma
mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees
metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro
que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem
era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de
ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto
haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc
Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da
sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos
Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou
claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o
dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos
esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos
um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de
que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela
aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus
remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu
somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo
como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo
da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita
da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela
cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta
Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e
assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira
Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles
pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa
mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram
esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que
haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria
a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as
vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos
imemoriais
Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca
havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira
vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute
justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para
cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do
canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os
pankararus
Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura
pankararu
ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a
nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender
que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no
sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente
possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem
neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses
cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a
memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes
aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo
Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da
direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz
Dia 7
No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o
experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a
predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato
com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote
mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia
de falar com pote
Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz
Dia 8
A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num
acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e
indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e
outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio
certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares
para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo
muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica
Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees
estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele
mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por
completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos
presentes nesse experimento
Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz
Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de
aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir
de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra
pankararu
A Exposiccedilatildeo
Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as
residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador
(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as
obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das
diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee
Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu
Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes
cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do
puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento
possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo
de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios
registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a
residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em
Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro
do pote
Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias
para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no
espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados
num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias
indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias
artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus
vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo
Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia
que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou
intacto em Salvador para ser exposto
Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que
aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar
colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com
aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros
indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo
toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora
um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as
diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes
em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e
terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas
indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o
dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e
atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu
Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a
experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a
cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que
interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta
daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes
camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do
museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os
natildeo-indiacutegenas
Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor
Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo
em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees
teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do
sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy
8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
For Today
httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
httpwwwvitruviusbeboek5h5htm
9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna
+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris
+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+
dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M
aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici
adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9
+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+
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e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X
ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one
pageampqampf=false
11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
threshold Essa biblioteca possibilita configurar tempo miacutenimo de um trecho de aacuteudio
tempo maacuteximo de silecircncio tolerado durante um trecho aleacutem e etc ou seja Audiotok se
apresentou como um sistema flexiacutevel o suficiente para as funcionalidades necessaacuterias
para esse dispositivo
A biblioteca Auditok foi entatildeo configurada para seguir o fluxo como estaacute formulado
abaixo detecccedilatildeo aacuteudios salvando-os num banco de aacuteudios em formato WAV
O primeiro experimento foi realizado com um pote de ceracircmica modelado e queimado
no atelier de ceracircmica da UFRJ um laptop conectado num microfone simples e um
alto-falante em modo Bluetooth colocados dentro do pote
Posteriormente para esse sistema caber dentro do pote de ceracircmica foi necessaacuterio o
uso de um Raspberry Pi um microcomputador de baixo custo bastante popular para
projetos compactos e que necessitem de uma boa capacidade de processamento Foi
acoplado ao Raspberry Pi uma bateria de 5V para possibilitar tambeacutem a autonomia do
dispositivo por algumas horas sem a necessidade de um cabo de energia conectado
fisicamente no dispositivo Para a captaccedilatildeo de aacuteudio foi utilizado um microfone
Omnidirecional colocado na boca do pote depois de constatado que nesta posiccedilatildeo se
obtia a menor microfonia sem perder a qualidade de som que o formato do pote dava a
voz projetada dentro dele
Pote do primeiro protoacutetipo feito no ateliecircr de ceracircmica da EBAUFRJ fotografia do autor
AEI - Arte Eletrocircnica Indiacutegena
Algum tempo depois do primeiro experimento feito na UFRJ me veio a notiacutecia de uma
chamada aberta para projetos de residecircncia em aldeias indiacutegenas no nordeste do
Brasil chamado ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo promovida pela ONG Thydewaacute que tinha
como objetivo a produccedilatildeo colaborativa e cocriada entre indiacutegenas e artistas
A ONG Thydecircwaacute faz a cogestatildeo de 08 Pontos de Cultura Indiacutegena ndashPCI localizados no
coraccedilatildeo de 08 comunidades indiacutegenas diferentes quatro na Bahia duas em Alagoas
uma em Sergipe e uma em Pernambuco Esses PCIs funcionaratildeo como
LABORATOacuteRIOS cada um deles receberaacute em RESIDEcircNCIA ARTIacuteSTICA um ou vaacuterios
convidados [ref]
Vi nessa oportunidade uma maneira uacutenica de desdobrar o protoacutetipo realizado no
ateliecircr de ceracircmica da UFRJ e poder expandi-lo em uma comunidade indiacutegena onde a
tradiccedilatildeo oral ainda eacute essencial para a sobrevivecircncia e resistecircncia de praacuteticas culturais
milenares Sabendo da existecircncia de aldeias no nordeste com produccedilatildeo de ceracircmica
ainda em atividade enviei um email para Sebastian Gerlic curador do projeto
perguntando se alguma das aldeias listadas ainda contavam com a produccedilatildeo de
ceracircmica Na sua resposta ele me informou que dentre as aldeias contempladas no
projeto somente a etnia Pankararu em TacaratuPE mantia essa tradiccedilatildeo viva
Nesse momento com a possibilidade real do projeto natildeo ser soacute o
desenvolvimento de um artefato artesanal tecnoloacutegico mas de um experimento
social-etnograacutefico decidi entatildeo convidar o artista Andreacute Anastaacutecio para colaborar no
projeto da residecircncia Andreacute eacute um grande amigo com quem jaacute tenho colaborado desde
2013 junto aos Biocircnicos em diversas accedilotildees artiacutesticas lidando com tecnologia 1
1 Biocircnicos foi um grupo de estudos no campo da arte natureza e tecnologia originado no laboratoacuterio do NANO (Nuacutecleo de Arte e Novos Organismos) na EBA-UFRJ Formado por Caio Chacal Igor Abreu Andreacute Anastaacutecio Itajaci Amaral Jabal Murbach e Alberto Harres o grupo realizou diversas instalaccedilotildees nas ruas do Rio de Janeiro na contra-cultura digital e analoacutegica
natureza e poliacutetica Desenvolvemos esteacuteticas em conjunto que orbitavam exatamente o
eixo em que esse projeto estava se colocando Aleacutem disso considerei que sua
experiecircncia recente um trabalho de mediaccedilatildeo e direccedilatildeo artiacutestica num
documentaacuteriofilme em comunidades Quilombolas em Minas Gerais e no Maranhatildeo
iriam trazer um olhar jaacute aguccedilado nas dinacircmicas etnograacuteficas e relacionais desse
experimento Sua pesquisa em dispositivos sonoros e poeacuteticas de sonorizaccedilatildeo seriam
tambeacutem essenciais para o desenvolvimento do aspecto sonoro do dispositivo de
maneira potente
Com as informaccedilotildees passadas por Sebastian sobre os Pankararus e sua
produccedilatildeo de ceracircmica comeccedilamos entatildeo uma pesquisa aprofundada sobre esta etnia
Com o intuito de enviar uma proposta de residecircncia lidando com todas as
especificidades do povo Pankararu pesquisamos sua histoacuteria seus ritos escutamos
seus cantos E em meio dos cantos na internet tomamos conhecimento das Missotildees
Folcloacutericas de 1938 promovidas por Maacuterio de Andrade quando dirigiu a Biblioteca
Puacuteblica Municipal de Satildeo Paulo [12] Essa expediccedilatildeo e seu material coletado junto
com forte ressonacircncia na proacutepria obra de Maacuterio de Andrade foram um ponto de
referecircncia para pensarmos a preservaccedilatildeo da memoacuteria cultural atraveacutes da tecnologia
Nesse momento natildeo se tratava mais de um artefato tecnoloacutegico somente mas
de um objeto em contexto tendo implicaccedilotildees sociais para aleacutem das questotildees esteacuteticas
Nossa concepccedilatildeo se tornou entatildeo de um dispositivo atuando em prol da memoacuteria da
cultura oral indiacutegena um artefato de memoacuteria e difusatildeo fundindo a tecnologia da
ceracircmica pankararu com a tecnologia digital A conexatildeo terrena do siliacutecio dos
eletrocircnicos com o barro da ceracircmica ressoando em conjunto com as vozes indiacutegenas
A proposta enviada foi entatildeo a seguinte
A proposta do projeto tem a intenccedilatildeo de desenvolver artefatos eletrocircnicos sonoros que
possibilitem a escuta amplificaccedilatildeo e produccedilatildeo de memoacuteria na cultura indiacutegena Este
httpssimbinoisetumblrcom
artefato seraacute co-criado com indiacutegenas da Aldeia Brejo dos Padres e pretende mesclar a
tradiccedilatildeo ancestral Pankararu com tecnologias digitais de comunicaccedilatildeo e armazenamento
de informaccedilatildeo O dispositivo tecno-indiacutegena consiste em um mini-computador(raspberry
pi) com a capacidade de gravar aacuteudio para posteriormente armazenar e executar o
conteuacutedo automaticamente na web e em outro dispositivo emissor Esse sistema seraacute
acoplado e montado dentro de objetos de ceracircmica construiacutedo por mulheres indiacutegenas
Pankararu
Em um orifiacutecio modelado na escultura de barro do dispositivo os habitantes da aldeia
poderatildeo gravar cacircnticos tradicionais do Toreacute reclames sobre suas lutas e resistecircncias
por demarcaccedilatildeo de terras histoacuterias da tribo e demais mensagens que valorizem
fortaleccedilam e empoderem a aldeia Esse material armazenado na web iraacute compor um
banco de sonoridades Pankararu com acesso puacuteblico e tem por objetivo a preservaccedilatildeo
e salvaguarda da memoacuteria e patrimocircnio cultural da Aldeia As sonoridades gravadas
tambeacutem seratildeo transmitidas na web no formato web raacutedio tambeacutem de acesso puacuteblico e
tem o intuito de contribuir na difusatildeo amplificaccedilatildeo e transmissatildeo da cultura indiacutegena
Aleacutem da funccedilatildeo de guardar e propagar a cultura indiacutegena este vasilhame de
ceracircmica mistura de barro e siliacutecio poderaacute ser usado tambeacutem como emissor sonoro em
performances e itineracircncia em diversos espaccedilos Ao circular por outras Aldeias e
espaccedilos urbanosculturais a ceracircmica leva um pedaccedilo da terra dos Pankararus
preenchido por suas histoacuterias e cultura Temos a intenccedilatildeo tambeacutem de editar um manual
de montagem uso e manutenccedilatildeo do dispositivo para que ele possa ser livremente
replicado O projeto seraacute completamente open-source compartilhando saberes para
realizaccedilatildeo de uma tecnologia cidadatilde-aldeatilde
Alguns meses apoacutes enviarmos a nossa proposta para o projeto de residecircncia Arte
Eletrocircnica Indiacutegena recebemos a notiacutecia que nosso projeto foi aprovado Infelizmente
Andreacute Anastaacutecio co-autor do projeto natildeo poderia estar presencialmente na residecircncia
pois estaria se mudando para Lisboa no mesmo periacuteodo Por conta dessa ausecircncia
Sebastian curador do projeto nos indicou Ilana Majerowicz que estaria jaacute em
Pankararu no periacuteodo de residecircncia e jaacute havia feito alguns projetos junto com a
associaccedilatildeo das mulheres pankararu a AMIGP e seria uma oacutetima colaboradora e
mediadora nos conduzindo a diversas portas jaacute abertas em Pankararu
O Povo Pankararu
Alguns meses mais tarde recebemos a notiacutecia de que tivemos nosso projeto aprovado
mas antes de entrarmos nas questotildees da residecircncia eacute necessaacuterio falar um pouco mais
sobre o povo Pankararu
A reserva de Pankararu entre os municiacutepios de Tacaratu Jatobaacute e Petrolacircndia no
sertatildeo Pernambucano eacute de onde originaram diversos grupos indiacutegenas no Nordeste
com forte semelhanccedila cultural (Jeripancoacute Kantarureacute Kalancoacute Karuazu Katokin
Pankararu do Real Parque Pankaiwka etc) A cultura Pankararu tem forte conexatildeo e
intercacircmbio com diversos outros povos indiacutegenas que residem ao longo do Rio Satildeo
Francisco em Pernambuco [1]
Como a maioria dos povos indiacutegenas do Nordeste o contato com o homem branco se
deu no iniacutecio do periacuteodo colonial Os primeiros registros de contato dos colonos
portuguecircs com os indiacutegenas Pankararu datam do iniacutecio do seacutec XVII com as missotildees
dos padres oratorianos e capuchinhos que buscavam converter os povos indiacutegenas da
regiatildeo para o catolicismo
Eventualmente a maloca de Cana Brava desfeita e os missionaacuterios deslocaram-se em
direccedilatildeo agrave serra de Tacaratu para formar a aldeia que ficou conhecida como ldquoBrejo dos
Padresrdquo
Muita luta foi necessaacuteria para o reconhecimento de suas terras Os Pankararu
acreditam que o formato quadrado de sua reserva se deu pelo fato de ter sido doada
pelo entatildeo Imperador Pedro II
Os Pankararu falam somente o portuguecircs traccedilo comum entre as etnias do nordeste
com exceccedilatildeo dos Fulni-ocirc fruto da forte repressatildeo e perseguiccedilatildeo que ocorre desde os
primeiros contatos ateacute agora
Em seus rituais eacute caracteriacutestica a figura dos praiaacutes figuras cobertas por uma ldquofardardquo
como eles denominam feita de caroaacute uma planta regional do sertatildeo do qual eacute feita
uma espeacutecie de palha bem resistente Pode-se dizer que os praiaacutes satildeo os guardiotildees
dos pankararu contra os espiacuteritos malignos o fardamento dos praiaacutes eacute de uso exclusivo
dos homens e a diferenciaccedilatildeo de quem veste cada praiaacute depende de qual lsquotroncorsquo das
famiacutelias pankararu o homem pertence sendo portanto uma tradiccedilatildeo tambeacutem familiar
Fotografias do ritual ldquoTrecircs Rodasrdquo tirada durante a residecircncia fotografia do autor
A Ceracircmica Pankararu
A ceracircmica tem uma importacircncia especial na cultura Pankararu pois constituem como
elementos sagrados dentro dos seus rituais Nos pratos de barro eacute onde se oferece a
comida sagrada aos praiaacutes e aos participantes do ritual no terreiro e os potes de
ceracircmica satildeo usados para comportar a garapa de cana a ser bebida durante o ritual
Todos presentes compartilham da comida oferecida no ritual sendo necessaacuterio agraves
vezes mais de 100 200 pratos de barro para um ritual ocorrer Hoje em dia muitas
vezes jaacute se utilizam baldes pratos potes de plaacutestico substituindo os de barro na praacutetica
dos rituais perdendo um pouco dessa tradiccedilatildeo Isso ocorre devido ao aumento da
populaccedilatildeo indiacutegena na aldeia que natildeo eacute acompanhada de um crescimento tambeacutem da
produccedilatildeo de ceracircmica pankararu Hoje em dia somente algumas famiacutelias mantecircm a
tradiccedilatildeo da ceracircmica em Pankararu a falta de incentivo e infra-estrutura prejudica para
que essa cultura permaneccedila acessa Mas apesar das dificuldades a demanda interna
relativamente alta de pratos de ceracircmica por conta dessas praacuteticas nos rituais ajuda a
manter a produccedilatildeo de ceracircmica ativa natildeo dependendo somente da venda do
artesanato para fora da aldeia para se manter a tradiccedilatildeo viva
[Fot251] Coleccedilatildeo Etnograacutefica Carlos Estevatildeo de Oliveira [16]
A Residecircncia
A residecircncia artiacutestica ocorreu entre as 15 e 22 de junho de 2018 na aldeia Brejo dos
Padres no municiacutepio de Tacaratu PE Cada artista residente ficava hospedado na
casa de algueacutem na aldeia que participasse dos projetos culturais no meu caso fiquei
na casa de Geovam Araticum Pankararu (Geo) com sua esposa Rosacircngela e suas
duas filhas Geovam eacute um dos pankararus da nova geraccedilatildeo que puxam a tradiccedilatildeo
indiacutegena estaacute presente nos rituais cantando os toantes e na escola indiacutegena estadual
Carlos Estevatildeo ele trabalha como pedagogo ensinando as crianccedilas sobre as tradiccedilotildees
da cultura pankararu
Dia 1
Ao chegar no aeroporto de Paulo Afonso Patriacutecia Pankararu viria me buscar para me
levar para Pankararu e assim se deu Foi meu primeiro contato com um dos
pankararus logo ela me contou sobre a histoacuteria e situaccedilatildeo atual do seu povo os
conflitos existentes no momento entre os indiacutegenas e os posseiros e toda a
problemaacutetica decorrente disso
Cheguei agrave noite na aldeia Brejo dos Padres onde fui acolhido na casa de Geo e sua
famiacutelia laacute encontrei Ilana Majerowicz com quem faria a mediaccedilatildeo do projeto e outras
figuras que seriam atores importantes do experimento em Pankararu Fernando
Monteiro dos Santos ou Fernandatildeo como eacute chamado uma das lideranccedilas da aldeia
Brejo dos Padres Ewerton e Antocircnio Neto ambos ativos no Ponto de Cultura Indiacutegena
aleacutem da esposa de Geo Rosacircngela e suas duas filhas pequenas
Nesse nosso primeiro encontro jaacute estabelecemos algumas metas do nosso projeto
irmos encontrar as ceramistas na aldeia Tapera mapearmos figuras importantes que
pudessem compartilhar diferentes conhecimentos sobre Pankararu conosco e tambeacutem
locais no qual esse experimento pudesse ocorrer na aldeia
Dia 2
Acordamos cedo no segundo dia e jaacute fomos para a aldeia Tapera para encontrarmos a
ceramista Luciene sobrinha de Mercinha que jaacute havia preparado um pote
especiacuteficamente para o nosso projeto Chegando laacute fizemos uma pequena entrevista
com ela pedimos para que nos contasse um pouco do seu processo como havia
aprendido a arte da ceracircmica e o que isso significava para ela Ela natildeo foi de muitas
palavras e nos disse simplismente que havia aprendido todo o processo da ceracircmica
vendo suas parentes mais velhas fazendo e repetia esse processo Nesse momento a
forma de comunicaccedilatildeo era ainda muito nova para mim sendo um pouco difiacutecil entender
o ritmo de diaacutelogo mais apropriado com os pankararu
Luciene jaacute havia preparado o pote especiacuteficamente para o projeto e parecia perfeito
para o dispositivo Era necessaacuteria uma boca grande o suficiente para poder entrar o
Raspbery Pi junto com o alto falante ao mesmo tempo que era necessaacuterio um buraco
na parte de baixo do pote para sair os cabos de energia e do mouse e teclado para o
Raspberry
Fiz alguns testes com o pote ali mesmo e o tudo funcionou Geo fez o primeiro canto
dentro do pote e escutamos pela primeira vez um toante pankararu entrar no pote e
depois ser tocado de dentro dele para escutarmos e foi um momento muito bonito
Embora o pote estivesse moldado ele precisava ainda secar e ir para a queima e aiacute
sim estaria pronto para ser colocado como dispositivo e jaacute que isso iria demorar ainda
alguns dias decidimos pegar alguns potes jaacute prontos que haviam disponiacuteveis para
seguirmos com o experimento enquanto o pote definitivo natildeo estivesse pronto
Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento
Fotografia de Ilana Majerowicz
Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute
Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos
documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua
luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia
ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote
natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa
naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote
pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo
indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no
Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns
testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara
qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira
criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote
Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor
Dia 3
No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac
produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles
haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia
Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas
viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas
Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde
ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas
tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro
lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa
tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e
ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos
noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer
mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia
mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu
As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo
liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu
toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem
vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio
tupinambaacutersquo esse simrdquo
A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio
das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso
das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A
cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e
antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria
expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir
da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo
iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e
a ldquoinduacutestria culturalrdquo
Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de
transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de
Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30
recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu
Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos
importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas
pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos
iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute
Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo
de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas
por essas flautas [3]
Dia 4
A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a
perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre
a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos
Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente
pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante
Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos
encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada
devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e
esposas no dia anterior da retirada
Fernando sobre os toantes
ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados
noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados
que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem
diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais
velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu
dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada
toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um
pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o
praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam
lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa
memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele
vem ensinarrdquo
A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do
sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e
como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os
encantados
Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras
Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando
era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos
Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz
Dia 5
Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo
nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele
Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo
Fotografia do autor
Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que
atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e
revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus
poemas para o dispositivo
A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os
pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se
repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que
segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura
destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em
detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu
somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos
mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse
ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos
debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e
sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu
vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que
manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade
desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura
Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas
externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em
seu entorno
Dia 6
No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso
projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana
antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois
queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do
dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a
uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico
Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa
de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na
casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma
entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a
tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo
que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se
do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia
de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de
Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo
consideradas as melhores regiatildeo
Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone
e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma
mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar
com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes
espalhados em difentes lugares longe de Pankararu
Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana
Majerowicz
Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia
que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz
de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos
imemoriais
Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita
Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu
Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos
uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente
presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da
cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem
diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma
mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees
metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro
que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem
era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de
ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto
haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc
Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da
sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos
Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou
claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o
dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos
esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos
um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de
que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela
aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus
remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu
somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo
como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo
da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita
da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela
cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta
Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e
assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira
Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles
pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa
mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram
esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que
haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria
a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as
vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos
imemoriais
Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca
havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira
vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute
justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para
cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do
canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os
pankararus
Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura
pankararu
ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a
nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender
que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no
sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente
possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem
neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses
cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a
memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes
aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo
Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da
direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz
Dia 7
No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o
experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a
predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato
com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote
mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia
de falar com pote
Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz
Dia 8
A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num
acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e
indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e
outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio
certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares
para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo
muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica
Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees
estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele
mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por
completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos
presentes nesse experimento
Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz
Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de
aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir
de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra
pankararu
A Exposiccedilatildeo
Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as
residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador
(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as
obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das
diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee
Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu
Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes
cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do
puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento
possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo
de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios
registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a
residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em
Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro
do pote
Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias
para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no
espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados
num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias
indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias
artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus
vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo
Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia
que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou
intacto em Salvador para ser exposto
Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que
aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar
colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com
aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros
indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo
toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora
um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as
diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes
em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e
terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas
indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o
dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e
atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu
Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a
experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a
cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que
interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta
daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes
camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do
museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os
natildeo-indiacutegenas
Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor
Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo
em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees
teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do
sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy
8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
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7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
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Cambridge University Press 2002
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9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna
+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris
+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+
dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M
aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici
adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9
+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+
as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc
e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X
ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one
pageampqampf=false
11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
dispositivo por algumas horas sem a necessidade de um cabo de energia conectado
fisicamente no dispositivo Para a captaccedilatildeo de aacuteudio foi utilizado um microfone
Omnidirecional colocado na boca do pote depois de constatado que nesta posiccedilatildeo se
obtia a menor microfonia sem perder a qualidade de som que o formato do pote dava a
voz projetada dentro dele
Pote do primeiro protoacutetipo feito no ateliecircr de ceracircmica da EBAUFRJ fotografia do autor
AEI - Arte Eletrocircnica Indiacutegena
Algum tempo depois do primeiro experimento feito na UFRJ me veio a notiacutecia de uma
chamada aberta para projetos de residecircncia em aldeias indiacutegenas no nordeste do
Brasil chamado ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo promovida pela ONG Thydewaacute que tinha
como objetivo a produccedilatildeo colaborativa e cocriada entre indiacutegenas e artistas
A ONG Thydecircwaacute faz a cogestatildeo de 08 Pontos de Cultura Indiacutegena ndashPCI localizados no
coraccedilatildeo de 08 comunidades indiacutegenas diferentes quatro na Bahia duas em Alagoas
uma em Sergipe e uma em Pernambuco Esses PCIs funcionaratildeo como
LABORATOacuteRIOS cada um deles receberaacute em RESIDEcircNCIA ARTIacuteSTICA um ou vaacuterios
convidados [ref]
Vi nessa oportunidade uma maneira uacutenica de desdobrar o protoacutetipo realizado no
ateliecircr de ceracircmica da UFRJ e poder expandi-lo em uma comunidade indiacutegena onde a
tradiccedilatildeo oral ainda eacute essencial para a sobrevivecircncia e resistecircncia de praacuteticas culturais
milenares Sabendo da existecircncia de aldeias no nordeste com produccedilatildeo de ceracircmica
ainda em atividade enviei um email para Sebastian Gerlic curador do projeto
perguntando se alguma das aldeias listadas ainda contavam com a produccedilatildeo de
ceracircmica Na sua resposta ele me informou que dentre as aldeias contempladas no
projeto somente a etnia Pankararu em TacaratuPE mantia essa tradiccedilatildeo viva
Nesse momento com a possibilidade real do projeto natildeo ser soacute o
desenvolvimento de um artefato artesanal tecnoloacutegico mas de um experimento
social-etnograacutefico decidi entatildeo convidar o artista Andreacute Anastaacutecio para colaborar no
projeto da residecircncia Andreacute eacute um grande amigo com quem jaacute tenho colaborado desde
2013 junto aos Biocircnicos em diversas accedilotildees artiacutesticas lidando com tecnologia 1
1 Biocircnicos foi um grupo de estudos no campo da arte natureza e tecnologia originado no laboratoacuterio do NANO (Nuacutecleo de Arte e Novos Organismos) na EBA-UFRJ Formado por Caio Chacal Igor Abreu Andreacute Anastaacutecio Itajaci Amaral Jabal Murbach e Alberto Harres o grupo realizou diversas instalaccedilotildees nas ruas do Rio de Janeiro na contra-cultura digital e analoacutegica
natureza e poliacutetica Desenvolvemos esteacuteticas em conjunto que orbitavam exatamente o
eixo em que esse projeto estava se colocando Aleacutem disso considerei que sua
experiecircncia recente um trabalho de mediaccedilatildeo e direccedilatildeo artiacutestica num
documentaacuteriofilme em comunidades Quilombolas em Minas Gerais e no Maranhatildeo
iriam trazer um olhar jaacute aguccedilado nas dinacircmicas etnograacuteficas e relacionais desse
experimento Sua pesquisa em dispositivos sonoros e poeacuteticas de sonorizaccedilatildeo seriam
tambeacutem essenciais para o desenvolvimento do aspecto sonoro do dispositivo de
maneira potente
Com as informaccedilotildees passadas por Sebastian sobre os Pankararus e sua
produccedilatildeo de ceracircmica comeccedilamos entatildeo uma pesquisa aprofundada sobre esta etnia
Com o intuito de enviar uma proposta de residecircncia lidando com todas as
especificidades do povo Pankararu pesquisamos sua histoacuteria seus ritos escutamos
seus cantos E em meio dos cantos na internet tomamos conhecimento das Missotildees
Folcloacutericas de 1938 promovidas por Maacuterio de Andrade quando dirigiu a Biblioteca
Puacuteblica Municipal de Satildeo Paulo [12] Essa expediccedilatildeo e seu material coletado junto
com forte ressonacircncia na proacutepria obra de Maacuterio de Andrade foram um ponto de
referecircncia para pensarmos a preservaccedilatildeo da memoacuteria cultural atraveacutes da tecnologia
Nesse momento natildeo se tratava mais de um artefato tecnoloacutegico somente mas
de um objeto em contexto tendo implicaccedilotildees sociais para aleacutem das questotildees esteacuteticas
Nossa concepccedilatildeo se tornou entatildeo de um dispositivo atuando em prol da memoacuteria da
cultura oral indiacutegena um artefato de memoacuteria e difusatildeo fundindo a tecnologia da
ceracircmica pankararu com a tecnologia digital A conexatildeo terrena do siliacutecio dos
eletrocircnicos com o barro da ceracircmica ressoando em conjunto com as vozes indiacutegenas
A proposta enviada foi entatildeo a seguinte
A proposta do projeto tem a intenccedilatildeo de desenvolver artefatos eletrocircnicos sonoros que
possibilitem a escuta amplificaccedilatildeo e produccedilatildeo de memoacuteria na cultura indiacutegena Este
httpssimbinoisetumblrcom
artefato seraacute co-criado com indiacutegenas da Aldeia Brejo dos Padres e pretende mesclar a
tradiccedilatildeo ancestral Pankararu com tecnologias digitais de comunicaccedilatildeo e armazenamento
de informaccedilatildeo O dispositivo tecno-indiacutegena consiste em um mini-computador(raspberry
pi) com a capacidade de gravar aacuteudio para posteriormente armazenar e executar o
conteuacutedo automaticamente na web e em outro dispositivo emissor Esse sistema seraacute
acoplado e montado dentro de objetos de ceracircmica construiacutedo por mulheres indiacutegenas
Pankararu
Em um orifiacutecio modelado na escultura de barro do dispositivo os habitantes da aldeia
poderatildeo gravar cacircnticos tradicionais do Toreacute reclames sobre suas lutas e resistecircncias
por demarcaccedilatildeo de terras histoacuterias da tribo e demais mensagens que valorizem
fortaleccedilam e empoderem a aldeia Esse material armazenado na web iraacute compor um
banco de sonoridades Pankararu com acesso puacuteblico e tem por objetivo a preservaccedilatildeo
e salvaguarda da memoacuteria e patrimocircnio cultural da Aldeia As sonoridades gravadas
tambeacutem seratildeo transmitidas na web no formato web raacutedio tambeacutem de acesso puacuteblico e
tem o intuito de contribuir na difusatildeo amplificaccedilatildeo e transmissatildeo da cultura indiacutegena
Aleacutem da funccedilatildeo de guardar e propagar a cultura indiacutegena este vasilhame de
ceracircmica mistura de barro e siliacutecio poderaacute ser usado tambeacutem como emissor sonoro em
performances e itineracircncia em diversos espaccedilos Ao circular por outras Aldeias e
espaccedilos urbanosculturais a ceracircmica leva um pedaccedilo da terra dos Pankararus
preenchido por suas histoacuterias e cultura Temos a intenccedilatildeo tambeacutem de editar um manual
de montagem uso e manutenccedilatildeo do dispositivo para que ele possa ser livremente
replicado O projeto seraacute completamente open-source compartilhando saberes para
realizaccedilatildeo de uma tecnologia cidadatilde-aldeatilde
Alguns meses apoacutes enviarmos a nossa proposta para o projeto de residecircncia Arte
Eletrocircnica Indiacutegena recebemos a notiacutecia que nosso projeto foi aprovado Infelizmente
Andreacute Anastaacutecio co-autor do projeto natildeo poderia estar presencialmente na residecircncia
pois estaria se mudando para Lisboa no mesmo periacuteodo Por conta dessa ausecircncia
Sebastian curador do projeto nos indicou Ilana Majerowicz que estaria jaacute em
Pankararu no periacuteodo de residecircncia e jaacute havia feito alguns projetos junto com a
associaccedilatildeo das mulheres pankararu a AMIGP e seria uma oacutetima colaboradora e
mediadora nos conduzindo a diversas portas jaacute abertas em Pankararu
O Povo Pankararu
Alguns meses mais tarde recebemos a notiacutecia de que tivemos nosso projeto aprovado
mas antes de entrarmos nas questotildees da residecircncia eacute necessaacuterio falar um pouco mais
sobre o povo Pankararu
A reserva de Pankararu entre os municiacutepios de Tacaratu Jatobaacute e Petrolacircndia no
sertatildeo Pernambucano eacute de onde originaram diversos grupos indiacutegenas no Nordeste
com forte semelhanccedila cultural (Jeripancoacute Kantarureacute Kalancoacute Karuazu Katokin
Pankararu do Real Parque Pankaiwka etc) A cultura Pankararu tem forte conexatildeo e
intercacircmbio com diversos outros povos indiacutegenas que residem ao longo do Rio Satildeo
Francisco em Pernambuco [1]
Como a maioria dos povos indiacutegenas do Nordeste o contato com o homem branco se
deu no iniacutecio do periacuteodo colonial Os primeiros registros de contato dos colonos
portuguecircs com os indiacutegenas Pankararu datam do iniacutecio do seacutec XVII com as missotildees
dos padres oratorianos e capuchinhos que buscavam converter os povos indiacutegenas da
regiatildeo para o catolicismo
Eventualmente a maloca de Cana Brava desfeita e os missionaacuterios deslocaram-se em
direccedilatildeo agrave serra de Tacaratu para formar a aldeia que ficou conhecida como ldquoBrejo dos
Padresrdquo
Muita luta foi necessaacuteria para o reconhecimento de suas terras Os Pankararu
acreditam que o formato quadrado de sua reserva se deu pelo fato de ter sido doada
pelo entatildeo Imperador Pedro II
Os Pankararu falam somente o portuguecircs traccedilo comum entre as etnias do nordeste
com exceccedilatildeo dos Fulni-ocirc fruto da forte repressatildeo e perseguiccedilatildeo que ocorre desde os
primeiros contatos ateacute agora
Em seus rituais eacute caracteriacutestica a figura dos praiaacutes figuras cobertas por uma ldquofardardquo
como eles denominam feita de caroaacute uma planta regional do sertatildeo do qual eacute feita
uma espeacutecie de palha bem resistente Pode-se dizer que os praiaacutes satildeo os guardiotildees
dos pankararu contra os espiacuteritos malignos o fardamento dos praiaacutes eacute de uso exclusivo
dos homens e a diferenciaccedilatildeo de quem veste cada praiaacute depende de qual lsquotroncorsquo das
famiacutelias pankararu o homem pertence sendo portanto uma tradiccedilatildeo tambeacutem familiar
Fotografias do ritual ldquoTrecircs Rodasrdquo tirada durante a residecircncia fotografia do autor
A Ceracircmica Pankararu
A ceracircmica tem uma importacircncia especial na cultura Pankararu pois constituem como
elementos sagrados dentro dos seus rituais Nos pratos de barro eacute onde se oferece a
comida sagrada aos praiaacutes e aos participantes do ritual no terreiro e os potes de
ceracircmica satildeo usados para comportar a garapa de cana a ser bebida durante o ritual
Todos presentes compartilham da comida oferecida no ritual sendo necessaacuterio agraves
vezes mais de 100 200 pratos de barro para um ritual ocorrer Hoje em dia muitas
vezes jaacute se utilizam baldes pratos potes de plaacutestico substituindo os de barro na praacutetica
dos rituais perdendo um pouco dessa tradiccedilatildeo Isso ocorre devido ao aumento da
populaccedilatildeo indiacutegena na aldeia que natildeo eacute acompanhada de um crescimento tambeacutem da
produccedilatildeo de ceracircmica pankararu Hoje em dia somente algumas famiacutelias mantecircm a
tradiccedilatildeo da ceracircmica em Pankararu a falta de incentivo e infra-estrutura prejudica para
que essa cultura permaneccedila acessa Mas apesar das dificuldades a demanda interna
relativamente alta de pratos de ceracircmica por conta dessas praacuteticas nos rituais ajuda a
manter a produccedilatildeo de ceracircmica ativa natildeo dependendo somente da venda do
artesanato para fora da aldeia para se manter a tradiccedilatildeo viva
[Fot251] Coleccedilatildeo Etnograacutefica Carlos Estevatildeo de Oliveira [16]
A Residecircncia
A residecircncia artiacutestica ocorreu entre as 15 e 22 de junho de 2018 na aldeia Brejo dos
Padres no municiacutepio de Tacaratu PE Cada artista residente ficava hospedado na
casa de algueacutem na aldeia que participasse dos projetos culturais no meu caso fiquei
na casa de Geovam Araticum Pankararu (Geo) com sua esposa Rosacircngela e suas
duas filhas Geovam eacute um dos pankararus da nova geraccedilatildeo que puxam a tradiccedilatildeo
indiacutegena estaacute presente nos rituais cantando os toantes e na escola indiacutegena estadual
Carlos Estevatildeo ele trabalha como pedagogo ensinando as crianccedilas sobre as tradiccedilotildees
da cultura pankararu
Dia 1
Ao chegar no aeroporto de Paulo Afonso Patriacutecia Pankararu viria me buscar para me
levar para Pankararu e assim se deu Foi meu primeiro contato com um dos
pankararus logo ela me contou sobre a histoacuteria e situaccedilatildeo atual do seu povo os
conflitos existentes no momento entre os indiacutegenas e os posseiros e toda a
problemaacutetica decorrente disso
Cheguei agrave noite na aldeia Brejo dos Padres onde fui acolhido na casa de Geo e sua
famiacutelia laacute encontrei Ilana Majerowicz com quem faria a mediaccedilatildeo do projeto e outras
figuras que seriam atores importantes do experimento em Pankararu Fernando
Monteiro dos Santos ou Fernandatildeo como eacute chamado uma das lideranccedilas da aldeia
Brejo dos Padres Ewerton e Antocircnio Neto ambos ativos no Ponto de Cultura Indiacutegena
aleacutem da esposa de Geo Rosacircngela e suas duas filhas pequenas
Nesse nosso primeiro encontro jaacute estabelecemos algumas metas do nosso projeto
irmos encontrar as ceramistas na aldeia Tapera mapearmos figuras importantes que
pudessem compartilhar diferentes conhecimentos sobre Pankararu conosco e tambeacutem
locais no qual esse experimento pudesse ocorrer na aldeia
Dia 2
Acordamos cedo no segundo dia e jaacute fomos para a aldeia Tapera para encontrarmos a
ceramista Luciene sobrinha de Mercinha que jaacute havia preparado um pote
especiacuteficamente para o nosso projeto Chegando laacute fizemos uma pequena entrevista
com ela pedimos para que nos contasse um pouco do seu processo como havia
aprendido a arte da ceracircmica e o que isso significava para ela Ela natildeo foi de muitas
palavras e nos disse simplismente que havia aprendido todo o processo da ceracircmica
vendo suas parentes mais velhas fazendo e repetia esse processo Nesse momento a
forma de comunicaccedilatildeo era ainda muito nova para mim sendo um pouco difiacutecil entender
o ritmo de diaacutelogo mais apropriado com os pankararu
Luciene jaacute havia preparado o pote especiacuteficamente para o projeto e parecia perfeito
para o dispositivo Era necessaacuteria uma boca grande o suficiente para poder entrar o
Raspbery Pi junto com o alto falante ao mesmo tempo que era necessaacuterio um buraco
na parte de baixo do pote para sair os cabos de energia e do mouse e teclado para o
Raspberry
Fiz alguns testes com o pote ali mesmo e o tudo funcionou Geo fez o primeiro canto
dentro do pote e escutamos pela primeira vez um toante pankararu entrar no pote e
depois ser tocado de dentro dele para escutarmos e foi um momento muito bonito
Embora o pote estivesse moldado ele precisava ainda secar e ir para a queima e aiacute
sim estaria pronto para ser colocado como dispositivo e jaacute que isso iria demorar ainda
alguns dias decidimos pegar alguns potes jaacute prontos que haviam disponiacuteveis para
seguirmos com o experimento enquanto o pote definitivo natildeo estivesse pronto
Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento
Fotografia de Ilana Majerowicz
Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute
Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos
documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua
luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia
ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote
natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa
naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote
pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo
indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no
Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns
testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara
qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira
criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote
Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor
Dia 3
No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac
produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles
haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia
Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas
viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas
Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde
ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas
tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro
lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa
tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e
ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos
noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer
mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia
mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu
As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo
liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu
toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem
vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio
tupinambaacutersquo esse simrdquo
A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio
das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso
das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A
cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e
antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria
expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir
da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo
iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e
a ldquoinduacutestria culturalrdquo
Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de
transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de
Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30
recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu
Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos
importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas
pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos
iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute
Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo
de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas
por essas flautas [3]
Dia 4
A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a
perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre
a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos
Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente
pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante
Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos
encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada
devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e
esposas no dia anterior da retirada
Fernando sobre os toantes
ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados
noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados
que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem
diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais
velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu
dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada
toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um
pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o
praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam
lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa
memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele
vem ensinarrdquo
A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do
sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e
como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os
encantados
Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras
Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando
era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos
Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz
Dia 5
Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo
nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele
Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo
Fotografia do autor
Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que
atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e
revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus
poemas para o dispositivo
A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os
pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se
repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que
segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura
destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em
detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu
somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos
mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse
ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos
debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e
sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu
vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que
manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade
desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura
Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas
externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em
seu entorno
Dia 6
No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso
projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana
antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois
queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do
dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a
uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico
Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa
de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na
casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma
entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a
tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo
que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se
do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia
de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de
Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo
consideradas as melhores regiatildeo
Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone
e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma
mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar
com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes
espalhados em difentes lugares longe de Pankararu
Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana
Majerowicz
Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia
que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz
de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos
imemoriais
Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita
Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu
Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos
uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente
presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da
cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem
diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma
mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees
metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro
que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem
era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de
ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto
haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc
Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da
sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos
Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou
claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o
dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos
esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos
um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de
que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela
aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus
remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu
somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo
como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo
da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita
da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela
cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta
Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e
assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira
Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles
pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa
mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram
esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que
haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria
a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as
vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos
imemoriais
Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca
havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira
vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute
justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para
cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do
canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os
pankararus
Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura
pankararu
ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a
nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender
que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no
sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente
possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem
neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses
cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a
memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes
aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo
Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da
direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz
Dia 7
No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o
experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a
predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato
com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote
mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia
de falar com pote
Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz
Dia 8
A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num
acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e
indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e
outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio
certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares
para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo
muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica
Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees
estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele
mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por
completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos
presentes nesse experimento
Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz
Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de
aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir
de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra
pankararu
A Exposiccedilatildeo
Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as
residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador
(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as
obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das
diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee
Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu
Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes
cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do
puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento
possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo
de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios
registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a
residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em
Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro
do pote
Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias
para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no
espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados
num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias
indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias
artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus
vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo
Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia
que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou
intacto em Salvador para ser exposto
Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que
aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar
colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com
aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros
indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo
toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora
um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as
diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes
em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e
terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas
indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o
dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e
atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu
Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a
experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a
cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que
interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta
daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes
camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do
museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os
natildeo-indiacutegenas
Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor
Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo
em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees
teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do
sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy
8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
For Today
httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
httpwwwvitruviusbeboek5h5htm
9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna
+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris
+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+
dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M
aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici
adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9
+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+
as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc
e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X
ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one
pageampqampf=false
11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
AEI - Arte Eletrocircnica Indiacutegena
Algum tempo depois do primeiro experimento feito na UFRJ me veio a notiacutecia de uma
chamada aberta para projetos de residecircncia em aldeias indiacutegenas no nordeste do
Brasil chamado ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo promovida pela ONG Thydewaacute que tinha
como objetivo a produccedilatildeo colaborativa e cocriada entre indiacutegenas e artistas
A ONG Thydecircwaacute faz a cogestatildeo de 08 Pontos de Cultura Indiacutegena ndashPCI localizados no
coraccedilatildeo de 08 comunidades indiacutegenas diferentes quatro na Bahia duas em Alagoas
uma em Sergipe e uma em Pernambuco Esses PCIs funcionaratildeo como
LABORATOacuteRIOS cada um deles receberaacute em RESIDEcircNCIA ARTIacuteSTICA um ou vaacuterios
convidados [ref]
Vi nessa oportunidade uma maneira uacutenica de desdobrar o protoacutetipo realizado no
ateliecircr de ceracircmica da UFRJ e poder expandi-lo em uma comunidade indiacutegena onde a
tradiccedilatildeo oral ainda eacute essencial para a sobrevivecircncia e resistecircncia de praacuteticas culturais
milenares Sabendo da existecircncia de aldeias no nordeste com produccedilatildeo de ceracircmica
ainda em atividade enviei um email para Sebastian Gerlic curador do projeto
perguntando se alguma das aldeias listadas ainda contavam com a produccedilatildeo de
ceracircmica Na sua resposta ele me informou que dentre as aldeias contempladas no
projeto somente a etnia Pankararu em TacaratuPE mantia essa tradiccedilatildeo viva
Nesse momento com a possibilidade real do projeto natildeo ser soacute o
desenvolvimento de um artefato artesanal tecnoloacutegico mas de um experimento
social-etnograacutefico decidi entatildeo convidar o artista Andreacute Anastaacutecio para colaborar no
projeto da residecircncia Andreacute eacute um grande amigo com quem jaacute tenho colaborado desde
2013 junto aos Biocircnicos em diversas accedilotildees artiacutesticas lidando com tecnologia 1
1 Biocircnicos foi um grupo de estudos no campo da arte natureza e tecnologia originado no laboratoacuterio do NANO (Nuacutecleo de Arte e Novos Organismos) na EBA-UFRJ Formado por Caio Chacal Igor Abreu Andreacute Anastaacutecio Itajaci Amaral Jabal Murbach e Alberto Harres o grupo realizou diversas instalaccedilotildees nas ruas do Rio de Janeiro na contra-cultura digital e analoacutegica
natureza e poliacutetica Desenvolvemos esteacuteticas em conjunto que orbitavam exatamente o
eixo em que esse projeto estava se colocando Aleacutem disso considerei que sua
experiecircncia recente um trabalho de mediaccedilatildeo e direccedilatildeo artiacutestica num
documentaacuteriofilme em comunidades Quilombolas em Minas Gerais e no Maranhatildeo
iriam trazer um olhar jaacute aguccedilado nas dinacircmicas etnograacuteficas e relacionais desse
experimento Sua pesquisa em dispositivos sonoros e poeacuteticas de sonorizaccedilatildeo seriam
tambeacutem essenciais para o desenvolvimento do aspecto sonoro do dispositivo de
maneira potente
Com as informaccedilotildees passadas por Sebastian sobre os Pankararus e sua
produccedilatildeo de ceracircmica comeccedilamos entatildeo uma pesquisa aprofundada sobre esta etnia
Com o intuito de enviar uma proposta de residecircncia lidando com todas as
especificidades do povo Pankararu pesquisamos sua histoacuteria seus ritos escutamos
seus cantos E em meio dos cantos na internet tomamos conhecimento das Missotildees
Folcloacutericas de 1938 promovidas por Maacuterio de Andrade quando dirigiu a Biblioteca
Puacuteblica Municipal de Satildeo Paulo [12] Essa expediccedilatildeo e seu material coletado junto
com forte ressonacircncia na proacutepria obra de Maacuterio de Andrade foram um ponto de
referecircncia para pensarmos a preservaccedilatildeo da memoacuteria cultural atraveacutes da tecnologia
Nesse momento natildeo se tratava mais de um artefato tecnoloacutegico somente mas
de um objeto em contexto tendo implicaccedilotildees sociais para aleacutem das questotildees esteacuteticas
Nossa concepccedilatildeo se tornou entatildeo de um dispositivo atuando em prol da memoacuteria da
cultura oral indiacutegena um artefato de memoacuteria e difusatildeo fundindo a tecnologia da
ceracircmica pankararu com a tecnologia digital A conexatildeo terrena do siliacutecio dos
eletrocircnicos com o barro da ceracircmica ressoando em conjunto com as vozes indiacutegenas
A proposta enviada foi entatildeo a seguinte
A proposta do projeto tem a intenccedilatildeo de desenvolver artefatos eletrocircnicos sonoros que
possibilitem a escuta amplificaccedilatildeo e produccedilatildeo de memoacuteria na cultura indiacutegena Este
httpssimbinoisetumblrcom
artefato seraacute co-criado com indiacutegenas da Aldeia Brejo dos Padres e pretende mesclar a
tradiccedilatildeo ancestral Pankararu com tecnologias digitais de comunicaccedilatildeo e armazenamento
de informaccedilatildeo O dispositivo tecno-indiacutegena consiste em um mini-computador(raspberry
pi) com a capacidade de gravar aacuteudio para posteriormente armazenar e executar o
conteuacutedo automaticamente na web e em outro dispositivo emissor Esse sistema seraacute
acoplado e montado dentro de objetos de ceracircmica construiacutedo por mulheres indiacutegenas
Pankararu
Em um orifiacutecio modelado na escultura de barro do dispositivo os habitantes da aldeia
poderatildeo gravar cacircnticos tradicionais do Toreacute reclames sobre suas lutas e resistecircncias
por demarcaccedilatildeo de terras histoacuterias da tribo e demais mensagens que valorizem
fortaleccedilam e empoderem a aldeia Esse material armazenado na web iraacute compor um
banco de sonoridades Pankararu com acesso puacuteblico e tem por objetivo a preservaccedilatildeo
e salvaguarda da memoacuteria e patrimocircnio cultural da Aldeia As sonoridades gravadas
tambeacutem seratildeo transmitidas na web no formato web raacutedio tambeacutem de acesso puacuteblico e
tem o intuito de contribuir na difusatildeo amplificaccedilatildeo e transmissatildeo da cultura indiacutegena
Aleacutem da funccedilatildeo de guardar e propagar a cultura indiacutegena este vasilhame de
ceracircmica mistura de barro e siliacutecio poderaacute ser usado tambeacutem como emissor sonoro em
performances e itineracircncia em diversos espaccedilos Ao circular por outras Aldeias e
espaccedilos urbanosculturais a ceracircmica leva um pedaccedilo da terra dos Pankararus
preenchido por suas histoacuterias e cultura Temos a intenccedilatildeo tambeacutem de editar um manual
de montagem uso e manutenccedilatildeo do dispositivo para que ele possa ser livremente
replicado O projeto seraacute completamente open-source compartilhando saberes para
realizaccedilatildeo de uma tecnologia cidadatilde-aldeatilde
Alguns meses apoacutes enviarmos a nossa proposta para o projeto de residecircncia Arte
Eletrocircnica Indiacutegena recebemos a notiacutecia que nosso projeto foi aprovado Infelizmente
Andreacute Anastaacutecio co-autor do projeto natildeo poderia estar presencialmente na residecircncia
pois estaria se mudando para Lisboa no mesmo periacuteodo Por conta dessa ausecircncia
Sebastian curador do projeto nos indicou Ilana Majerowicz que estaria jaacute em
Pankararu no periacuteodo de residecircncia e jaacute havia feito alguns projetos junto com a
associaccedilatildeo das mulheres pankararu a AMIGP e seria uma oacutetima colaboradora e
mediadora nos conduzindo a diversas portas jaacute abertas em Pankararu
O Povo Pankararu
Alguns meses mais tarde recebemos a notiacutecia de que tivemos nosso projeto aprovado
mas antes de entrarmos nas questotildees da residecircncia eacute necessaacuterio falar um pouco mais
sobre o povo Pankararu
A reserva de Pankararu entre os municiacutepios de Tacaratu Jatobaacute e Petrolacircndia no
sertatildeo Pernambucano eacute de onde originaram diversos grupos indiacutegenas no Nordeste
com forte semelhanccedila cultural (Jeripancoacute Kantarureacute Kalancoacute Karuazu Katokin
Pankararu do Real Parque Pankaiwka etc) A cultura Pankararu tem forte conexatildeo e
intercacircmbio com diversos outros povos indiacutegenas que residem ao longo do Rio Satildeo
Francisco em Pernambuco [1]
Como a maioria dos povos indiacutegenas do Nordeste o contato com o homem branco se
deu no iniacutecio do periacuteodo colonial Os primeiros registros de contato dos colonos
portuguecircs com os indiacutegenas Pankararu datam do iniacutecio do seacutec XVII com as missotildees
dos padres oratorianos e capuchinhos que buscavam converter os povos indiacutegenas da
regiatildeo para o catolicismo
Eventualmente a maloca de Cana Brava desfeita e os missionaacuterios deslocaram-se em
direccedilatildeo agrave serra de Tacaratu para formar a aldeia que ficou conhecida como ldquoBrejo dos
Padresrdquo
Muita luta foi necessaacuteria para o reconhecimento de suas terras Os Pankararu
acreditam que o formato quadrado de sua reserva se deu pelo fato de ter sido doada
pelo entatildeo Imperador Pedro II
Os Pankararu falam somente o portuguecircs traccedilo comum entre as etnias do nordeste
com exceccedilatildeo dos Fulni-ocirc fruto da forte repressatildeo e perseguiccedilatildeo que ocorre desde os
primeiros contatos ateacute agora
Em seus rituais eacute caracteriacutestica a figura dos praiaacutes figuras cobertas por uma ldquofardardquo
como eles denominam feita de caroaacute uma planta regional do sertatildeo do qual eacute feita
uma espeacutecie de palha bem resistente Pode-se dizer que os praiaacutes satildeo os guardiotildees
dos pankararu contra os espiacuteritos malignos o fardamento dos praiaacutes eacute de uso exclusivo
dos homens e a diferenciaccedilatildeo de quem veste cada praiaacute depende de qual lsquotroncorsquo das
famiacutelias pankararu o homem pertence sendo portanto uma tradiccedilatildeo tambeacutem familiar
Fotografias do ritual ldquoTrecircs Rodasrdquo tirada durante a residecircncia fotografia do autor
A Ceracircmica Pankararu
A ceracircmica tem uma importacircncia especial na cultura Pankararu pois constituem como
elementos sagrados dentro dos seus rituais Nos pratos de barro eacute onde se oferece a
comida sagrada aos praiaacutes e aos participantes do ritual no terreiro e os potes de
ceracircmica satildeo usados para comportar a garapa de cana a ser bebida durante o ritual
Todos presentes compartilham da comida oferecida no ritual sendo necessaacuterio agraves
vezes mais de 100 200 pratos de barro para um ritual ocorrer Hoje em dia muitas
vezes jaacute se utilizam baldes pratos potes de plaacutestico substituindo os de barro na praacutetica
dos rituais perdendo um pouco dessa tradiccedilatildeo Isso ocorre devido ao aumento da
populaccedilatildeo indiacutegena na aldeia que natildeo eacute acompanhada de um crescimento tambeacutem da
produccedilatildeo de ceracircmica pankararu Hoje em dia somente algumas famiacutelias mantecircm a
tradiccedilatildeo da ceracircmica em Pankararu a falta de incentivo e infra-estrutura prejudica para
que essa cultura permaneccedila acessa Mas apesar das dificuldades a demanda interna
relativamente alta de pratos de ceracircmica por conta dessas praacuteticas nos rituais ajuda a
manter a produccedilatildeo de ceracircmica ativa natildeo dependendo somente da venda do
artesanato para fora da aldeia para se manter a tradiccedilatildeo viva
[Fot251] Coleccedilatildeo Etnograacutefica Carlos Estevatildeo de Oliveira [16]
A Residecircncia
A residecircncia artiacutestica ocorreu entre as 15 e 22 de junho de 2018 na aldeia Brejo dos
Padres no municiacutepio de Tacaratu PE Cada artista residente ficava hospedado na
casa de algueacutem na aldeia que participasse dos projetos culturais no meu caso fiquei
na casa de Geovam Araticum Pankararu (Geo) com sua esposa Rosacircngela e suas
duas filhas Geovam eacute um dos pankararus da nova geraccedilatildeo que puxam a tradiccedilatildeo
indiacutegena estaacute presente nos rituais cantando os toantes e na escola indiacutegena estadual
Carlos Estevatildeo ele trabalha como pedagogo ensinando as crianccedilas sobre as tradiccedilotildees
da cultura pankararu
Dia 1
Ao chegar no aeroporto de Paulo Afonso Patriacutecia Pankararu viria me buscar para me
levar para Pankararu e assim se deu Foi meu primeiro contato com um dos
pankararus logo ela me contou sobre a histoacuteria e situaccedilatildeo atual do seu povo os
conflitos existentes no momento entre os indiacutegenas e os posseiros e toda a
problemaacutetica decorrente disso
Cheguei agrave noite na aldeia Brejo dos Padres onde fui acolhido na casa de Geo e sua
famiacutelia laacute encontrei Ilana Majerowicz com quem faria a mediaccedilatildeo do projeto e outras
figuras que seriam atores importantes do experimento em Pankararu Fernando
Monteiro dos Santos ou Fernandatildeo como eacute chamado uma das lideranccedilas da aldeia
Brejo dos Padres Ewerton e Antocircnio Neto ambos ativos no Ponto de Cultura Indiacutegena
aleacutem da esposa de Geo Rosacircngela e suas duas filhas pequenas
Nesse nosso primeiro encontro jaacute estabelecemos algumas metas do nosso projeto
irmos encontrar as ceramistas na aldeia Tapera mapearmos figuras importantes que
pudessem compartilhar diferentes conhecimentos sobre Pankararu conosco e tambeacutem
locais no qual esse experimento pudesse ocorrer na aldeia
Dia 2
Acordamos cedo no segundo dia e jaacute fomos para a aldeia Tapera para encontrarmos a
ceramista Luciene sobrinha de Mercinha que jaacute havia preparado um pote
especiacuteficamente para o nosso projeto Chegando laacute fizemos uma pequena entrevista
com ela pedimos para que nos contasse um pouco do seu processo como havia
aprendido a arte da ceracircmica e o que isso significava para ela Ela natildeo foi de muitas
palavras e nos disse simplismente que havia aprendido todo o processo da ceracircmica
vendo suas parentes mais velhas fazendo e repetia esse processo Nesse momento a
forma de comunicaccedilatildeo era ainda muito nova para mim sendo um pouco difiacutecil entender
o ritmo de diaacutelogo mais apropriado com os pankararu
Luciene jaacute havia preparado o pote especiacuteficamente para o projeto e parecia perfeito
para o dispositivo Era necessaacuteria uma boca grande o suficiente para poder entrar o
Raspbery Pi junto com o alto falante ao mesmo tempo que era necessaacuterio um buraco
na parte de baixo do pote para sair os cabos de energia e do mouse e teclado para o
Raspberry
Fiz alguns testes com o pote ali mesmo e o tudo funcionou Geo fez o primeiro canto
dentro do pote e escutamos pela primeira vez um toante pankararu entrar no pote e
depois ser tocado de dentro dele para escutarmos e foi um momento muito bonito
Embora o pote estivesse moldado ele precisava ainda secar e ir para a queima e aiacute
sim estaria pronto para ser colocado como dispositivo e jaacute que isso iria demorar ainda
alguns dias decidimos pegar alguns potes jaacute prontos que haviam disponiacuteveis para
seguirmos com o experimento enquanto o pote definitivo natildeo estivesse pronto
Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento
Fotografia de Ilana Majerowicz
Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute
Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos
documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua
luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia
ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote
natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa
naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote
pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo
indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no
Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns
testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara
qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira
criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote
Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor
Dia 3
No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac
produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles
haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia
Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas
viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas
Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde
ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas
tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro
lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa
tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e
ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos
noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer
mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia
mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu
As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo
liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu
toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem
vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio
tupinambaacutersquo esse simrdquo
A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio
das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso
das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A
cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e
antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria
expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir
da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo
iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e
a ldquoinduacutestria culturalrdquo
Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de
transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de
Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30
recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu
Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos
importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas
pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos
iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute
Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo
de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas
por essas flautas [3]
Dia 4
A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a
perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre
a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos
Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente
pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante
Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos
encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada
devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e
esposas no dia anterior da retirada
Fernando sobre os toantes
ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados
noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados
que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem
diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais
velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu
dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada
toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um
pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o
praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam
lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa
memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele
vem ensinarrdquo
A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do
sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e
como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os
encantados
Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras
Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando
era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos
Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz
Dia 5
Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo
nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele
Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo
Fotografia do autor
Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que
atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e
revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus
poemas para o dispositivo
A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os
pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se
repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que
segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura
destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em
detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu
somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos
mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse
ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos
debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e
sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu
vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que
manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade
desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura
Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas
externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em
seu entorno
Dia 6
No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso
projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana
antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois
queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do
dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a
uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico
Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa
de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na
casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma
entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a
tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo
que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se
do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia
de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de
Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo
consideradas as melhores regiatildeo
Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone
e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma
mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar
com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes
espalhados em difentes lugares longe de Pankararu
Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana
Majerowicz
Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia
que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz
de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos
imemoriais
Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita
Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu
Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos
uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente
presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da
cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem
diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma
mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees
metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro
que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem
era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de
ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto
haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc
Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da
sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos
Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou
claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o
dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos
esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos
um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de
que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela
aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus
remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu
somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo
como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo
da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita
da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela
cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta
Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e
assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira
Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles
pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa
mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram
esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que
haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria
a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as
vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos
imemoriais
Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca
havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira
vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute
justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para
cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do
canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os
pankararus
Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura
pankararu
ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a
nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender
que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no
sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente
possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem
neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses
cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a
memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes
aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo
Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da
direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz
Dia 7
No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o
experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a
predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato
com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote
mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia
de falar com pote
Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz
Dia 8
A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num
acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e
indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e
outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio
certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares
para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo
muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica
Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees
estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele
mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por
completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos
presentes nesse experimento
Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz
Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de
aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir
de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra
pankararu
A Exposiccedilatildeo
Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as
residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador
(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as
obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das
diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee
Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu
Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes
cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do
puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento
possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo
de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios
registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a
residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em
Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro
do pote
Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias
para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no
espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados
num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias
indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias
artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus
vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo
Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia
que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou
intacto em Salvador para ser exposto
Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que
aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar
colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com
aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros
indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo
toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora
um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as
diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes
em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e
terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas
indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o
dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e
atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu
Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a
experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a
cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que
interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta
daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes
camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do
museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os
natildeo-indiacutegenas
Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor
Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo
em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees
teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do
sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy
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5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
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la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna
+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris
+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+
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e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X
ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one
pageampqampf=false
11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
natureza e poliacutetica Desenvolvemos esteacuteticas em conjunto que orbitavam exatamente o
eixo em que esse projeto estava se colocando Aleacutem disso considerei que sua
experiecircncia recente um trabalho de mediaccedilatildeo e direccedilatildeo artiacutestica num
documentaacuteriofilme em comunidades Quilombolas em Minas Gerais e no Maranhatildeo
iriam trazer um olhar jaacute aguccedilado nas dinacircmicas etnograacuteficas e relacionais desse
experimento Sua pesquisa em dispositivos sonoros e poeacuteticas de sonorizaccedilatildeo seriam
tambeacutem essenciais para o desenvolvimento do aspecto sonoro do dispositivo de
maneira potente
Com as informaccedilotildees passadas por Sebastian sobre os Pankararus e sua
produccedilatildeo de ceracircmica comeccedilamos entatildeo uma pesquisa aprofundada sobre esta etnia
Com o intuito de enviar uma proposta de residecircncia lidando com todas as
especificidades do povo Pankararu pesquisamos sua histoacuteria seus ritos escutamos
seus cantos E em meio dos cantos na internet tomamos conhecimento das Missotildees
Folcloacutericas de 1938 promovidas por Maacuterio de Andrade quando dirigiu a Biblioteca
Puacuteblica Municipal de Satildeo Paulo [12] Essa expediccedilatildeo e seu material coletado junto
com forte ressonacircncia na proacutepria obra de Maacuterio de Andrade foram um ponto de
referecircncia para pensarmos a preservaccedilatildeo da memoacuteria cultural atraveacutes da tecnologia
Nesse momento natildeo se tratava mais de um artefato tecnoloacutegico somente mas
de um objeto em contexto tendo implicaccedilotildees sociais para aleacutem das questotildees esteacuteticas
Nossa concepccedilatildeo se tornou entatildeo de um dispositivo atuando em prol da memoacuteria da
cultura oral indiacutegena um artefato de memoacuteria e difusatildeo fundindo a tecnologia da
ceracircmica pankararu com a tecnologia digital A conexatildeo terrena do siliacutecio dos
eletrocircnicos com o barro da ceracircmica ressoando em conjunto com as vozes indiacutegenas
A proposta enviada foi entatildeo a seguinte
A proposta do projeto tem a intenccedilatildeo de desenvolver artefatos eletrocircnicos sonoros que
possibilitem a escuta amplificaccedilatildeo e produccedilatildeo de memoacuteria na cultura indiacutegena Este
httpssimbinoisetumblrcom
artefato seraacute co-criado com indiacutegenas da Aldeia Brejo dos Padres e pretende mesclar a
tradiccedilatildeo ancestral Pankararu com tecnologias digitais de comunicaccedilatildeo e armazenamento
de informaccedilatildeo O dispositivo tecno-indiacutegena consiste em um mini-computador(raspberry
pi) com a capacidade de gravar aacuteudio para posteriormente armazenar e executar o
conteuacutedo automaticamente na web e em outro dispositivo emissor Esse sistema seraacute
acoplado e montado dentro de objetos de ceracircmica construiacutedo por mulheres indiacutegenas
Pankararu
Em um orifiacutecio modelado na escultura de barro do dispositivo os habitantes da aldeia
poderatildeo gravar cacircnticos tradicionais do Toreacute reclames sobre suas lutas e resistecircncias
por demarcaccedilatildeo de terras histoacuterias da tribo e demais mensagens que valorizem
fortaleccedilam e empoderem a aldeia Esse material armazenado na web iraacute compor um
banco de sonoridades Pankararu com acesso puacuteblico e tem por objetivo a preservaccedilatildeo
e salvaguarda da memoacuteria e patrimocircnio cultural da Aldeia As sonoridades gravadas
tambeacutem seratildeo transmitidas na web no formato web raacutedio tambeacutem de acesso puacuteblico e
tem o intuito de contribuir na difusatildeo amplificaccedilatildeo e transmissatildeo da cultura indiacutegena
Aleacutem da funccedilatildeo de guardar e propagar a cultura indiacutegena este vasilhame de
ceracircmica mistura de barro e siliacutecio poderaacute ser usado tambeacutem como emissor sonoro em
performances e itineracircncia em diversos espaccedilos Ao circular por outras Aldeias e
espaccedilos urbanosculturais a ceracircmica leva um pedaccedilo da terra dos Pankararus
preenchido por suas histoacuterias e cultura Temos a intenccedilatildeo tambeacutem de editar um manual
de montagem uso e manutenccedilatildeo do dispositivo para que ele possa ser livremente
replicado O projeto seraacute completamente open-source compartilhando saberes para
realizaccedilatildeo de uma tecnologia cidadatilde-aldeatilde
Alguns meses apoacutes enviarmos a nossa proposta para o projeto de residecircncia Arte
Eletrocircnica Indiacutegena recebemos a notiacutecia que nosso projeto foi aprovado Infelizmente
Andreacute Anastaacutecio co-autor do projeto natildeo poderia estar presencialmente na residecircncia
pois estaria se mudando para Lisboa no mesmo periacuteodo Por conta dessa ausecircncia
Sebastian curador do projeto nos indicou Ilana Majerowicz que estaria jaacute em
Pankararu no periacuteodo de residecircncia e jaacute havia feito alguns projetos junto com a
associaccedilatildeo das mulheres pankararu a AMIGP e seria uma oacutetima colaboradora e
mediadora nos conduzindo a diversas portas jaacute abertas em Pankararu
O Povo Pankararu
Alguns meses mais tarde recebemos a notiacutecia de que tivemos nosso projeto aprovado
mas antes de entrarmos nas questotildees da residecircncia eacute necessaacuterio falar um pouco mais
sobre o povo Pankararu
A reserva de Pankararu entre os municiacutepios de Tacaratu Jatobaacute e Petrolacircndia no
sertatildeo Pernambucano eacute de onde originaram diversos grupos indiacutegenas no Nordeste
com forte semelhanccedila cultural (Jeripancoacute Kantarureacute Kalancoacute Karuazu Katokin
Pankararu do Real Parque Pankaiwka etc) A cultura Pankararu tem forte conexatildeo e
intercacircmbio com diversos outros povos indiacutegenas que residem ao longo do Rio Satildeo
Francisco em Pernambuco [1]
Como a maioria dos povos indiacutegenas do Nordeste o contato com o homem branco se
deu no iniacutecio do periacuteodo colonial Os primeiros registros de contato dos colonos
portuguecircs com os indiacutegenas Pankararu datam do iniacutecio do seacutec XVII com as missotildees
dos padres oratorianos e capuchinhos que buscavam converter os povos indiacutegenas da
regiatildeo para o catolicismo
Eventualmente a maloca de Cana Brava desfeita e os missionaacuterios deslocaram-se em
direccedilatildeo agrave serra de Tacaratu para formar a aldeia que ficou conhecida como ldquoBrejo dos
Padresrdquo
Muita luta foi necessaacuteria para o reconhecimento de suas terras Os Pankararu
acreditam que o formato quadrado de sua reserva se deu pelo fato de ter sido doada
pelo entatildeo Imperador Pedro II
Os Pankararu falam somente o portuguecircs traccedilo comum entre as etnias do nordeste
com exceccedilatildeo dos Fulni-ocirc fruto da forte repressatildeo e perseguiccedilatildeo que ocorre desde os
primeiros contatos ateacute agora
Em seus rituais eacute caracteriacutestica a figura dos praiaacutes figuras cobertas por uma ldquofardardquo
como eles denominam feita de caroaacute uma planta regional do sertatildeo do qual eacute feita
uma espeacutecie de palha bem resistente Pode-se dizer que os praiaacutes satildeo os guardiotildees
dos pankararu contra os espiacuteritos malignos o fardamento dos praiaacutes eacute de uso exclusivo
dos homens e a diferenciaccedilatildeo de quem veste cada praiaacute depende de qual lsquotroncorsquo das
famiacutelias pankararu o homem pertence sendo portanto uma tradiccedilatildeo tambeacutem familiar
Fotografias do ritual ldquoTrecircs Rodasrdquo tirada durante a residecircncia fotografia do autor
A Ceracircmica Pankararu
A ceracircmica tem uma importacircncia especial na cultura Pankararu pois constituem como
elementos sagrados dentro dos seus rituais Nos pratos de barro eacute onde se oferece a
comida sagrada aos praiaacutes e aos participantes do ritual no terreiro e os potes de
ceracircmica satildeo usados para comportar a garapa de cana a ser bebida durante o ritual
Todos presentes compartilham da comida oferecida no ritual sendo necessaacuterio agraves
vezes mais de 100 200 pratos de barro para um ritual ocorrer Hoje em dia muitas
vezes jaacute se utilizam baldes pratos potes de plaacutestico substituindo os de barro na praacutetica
dos rituais perdendo um pouco dessa tradiccedilatildeo Isso ocorre devido ao aumento da
populaccedilatildeo indiacutegena na aldeia que natildeo eacute acompanhada de um crescimento tambeacutem da
produccedilatildeo de ceracircmica pankararu Hoje em dia somente algumas famiacutelias mantecircm a
tradiccedilatildeo da ceracircmica em Pankararu a falta de incentivo e infra-estrutura prejudica para
que essa cultura permaneccedila acessa Mas apesar das dificuldades a demanda interna
relativamente alta de pratos de ceracircmica por conta dessas praacuteticas nos rituais ajuda a
manter a produccedilatildeo de ceracircmica ativa natildeo dependendo somente da venda do
artesanato para fora da aldeia para se manter a tradiccedilatildeo viva
[Fot251] Coleccedilatildeo Etnograacutefica Carlos Estevatildeo de Oliveira [16]
A Residecircncia
A residecircncia artiacutestica ocorreu entre as 15 e 22 de junho de 2018 na aldeia Brejo dos
Padres no municiacutepio de Tacaratu PE Cada artista residente ficava hospedado na
casa de algueacutem na aldeia que participasse dos projetos culturais no meu caso fiquei
na casa de Geovam Araticum Pankararu (Geo) com sua esposa Rosacircngela e suas
duas filhas Geovam eacute um dos pankararus da nova geraccedilatildeo que puxam a tradiccedilatildeo
indiacutegena estaacute presente nos rituais cantando os toantes e na escola indiacutegena estadual
Carlos Estevatildeo ele trabalha como pedagogo ensinando as crianccedilas sobre as tradiccedilotildees
da cultura pankararu
Dia 1
Ao chegar no aeroporto de Paulo Afonso Patriacutecia Pankararu viria me buscar para me
levar para Pankararu e assim se deu Foi meu primeiro contato com um dos
pankararus logo ela me contou sobre a histoacuteria e situaccedilatildeo atual do seu povo os
conflitos existentes no momento entre os indiacutegenas e os posseiros e toda a
problemaacutetica decorrente disso
Cheguei agrave noite na aldeia Brejo dos Padres onde fui acolhido na casa de Geo e sua
famiacutelia laacute encontrei Ilana Majerowicz com quem faria a mediaccedilatildeo do projeto e outras
figuras que seriam atores importantes do experimento em Pankararu Fernando
Monteiro dos Santos ou Fernandatildeo como eacute chamado uma das lideranccedilas da aldeia
Brejo dos Padres Ewerton e Antocircnio Neto ambos ativos no Ponto de Cultura Indiacutegena
aleacutem da esposa de Geo Rosacircngela e suas duas filhas pequenas
Nesse nosso primeiro encontro jaacute estabelecemos algumas metas do nosso projeto
irmos encontrar as ceramistas na aldeia Tapera mapearmos figuras importantes que
pudessem compartilhar diferentes conhecimentos sobre Pankararu conosco e tambeacutem
locais no qual esse experimento pudesse ocorrer na aldeia
Dia 2
Acordamos cedo no segundo dia e jaacute fomos para a aldeia Tapera para encontrarmos a
ceramista Luciene sobrinha de Mercinha que jaacute havia preparado um pote
especiacuteficamente para o nosso projeto Chegando laacute fizemos uma pequena entrevista
com ela pedimos para que nos contasse um pouco do seu processo como havia
aprendido a arte da ceracircmica e o que isso significava para ela Ela natildeo foi de muitas
palavras e nos disse simplismente que havia aprendido todo o processo da ceracircmica
vendo suas parentes mais velhas fazendo e repetia esse processo Nesse momento a
forma de comunicaccedilatildeo era ainda muito nova para mim sendo um pouco difiacutecil entender
o ritmo de diaacutelogo mais apropriado com os pankararu
Luciene jaacute havia preparado o pote especiacuteficamente para o projeto e parecia perfeito
para o dispositivo Era necessaacuteria uma boca grande o suficiente para poder entrar o
Raspbery Pi junto com o alto falante ao mesmo tempo que era necessaacuterio um buraco
na parte de baixo do pote para sair os cabos de energia e do mouse e teclado para o
Raspberry
Fiz alguns testes com o pote ali mesmo e o tudo funcionou Geo fez o primeiro canto
dentro do pote e escutamos pela primeira vez um toante pankararu entrar no pote e
depois ser tocado de dentro dele para escutarmos e foi um momento muito bonito
Embora o pote estivesse moldado ele precisava ainda secar e ir para a queima e aiacute
sim estaria pronto para ser colocado como dispositivo e jaacute que isso iria demorar ainda
alguns dias decidimos pegar alguns potes jaacute prontos que haviam disponiacuteveis para
seguirmos com o experimento enquanto o pote definitivo natildeo estivesse pronto
Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento
Fotografia de Ilana Majerowicz
Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute
Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos
documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua
luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia
ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote
natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa
naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote
pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo
indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no
Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns
testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara
qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira
criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote
Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor
Dia 3
No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac
produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles
haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia
Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas
viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas
Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde
ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas
tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro
lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa
tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e
ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos
noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer
mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia
mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu
As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo
liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu
toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem
vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio
tupinambaacutersquo esse simrdquo
A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio
das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso
das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A
cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e
antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria
expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir
da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo
iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e
a ldquoinduacutestria culturalrdquo
Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de
transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de
Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30
recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu
Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos
importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas
pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos
iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute
Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo
de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas
por essas flautas [3]
Dia 4
A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a
perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre
a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos
Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente
pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante
Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos
encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada
devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e
esposas no dia anterior da retirada
Fernando sobre os toantes
ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados
noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados
que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem
diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais
velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu
dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada
toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um
pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o
praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam
lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa
memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele
vem ensinarrdquo
A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do
sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e
como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os
encantados
Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras
Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando
era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos
Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz
Dia 5
Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo
nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele
Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo
Fotografia do autor
Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que
atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e
revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus
poemas para o dispositivo
A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os
pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se
repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que
segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura
destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em
detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu
somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos
mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse
ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos
debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e
sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu
vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que
manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade
desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura
Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas
externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em
seu entorno
Dia 6
No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso
projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana
antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois
queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do
dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a
uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico
Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa
de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na
casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma
entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a
tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo
que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se
do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia
de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de
Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo
consideradas as melhores regiatildeo
Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone
e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma
mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar
com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes
espalhados em difentes lugares longe de Pankararu
Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana
Majerowicz
Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia
que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz
de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos
imemoriais
Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita
Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu
Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos
uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente
presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da
cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem
diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma
mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees
metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro
que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem
era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de
ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto
haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc
Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da
sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos
Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou
claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o
dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos
esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos
um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de
que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela
aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus
remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu
somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo
como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo
da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita
da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela
cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta
Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e
assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira
Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles
pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa
mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram
esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que
haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria
a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as
vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos
imemoriais
Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca
havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira
vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute
justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para
cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do
canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os
pankararus
Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura
pankararu
ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a
nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender
que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no
sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente
possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem
neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses
cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a
memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes
aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo
Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da
direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz
Dia 7
No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o
experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a
predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato
com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote
mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia
de falar com pote
Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz
Dia 8
A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num
acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e
indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e
outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio
certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares
para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo
muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica
Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees
estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele
mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por
completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos
presentes nesse experimento
Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz
Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de
aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir
de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra
pankararu
A Exposiccedilatildeo
Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as
residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador
(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as
obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das
diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee
Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu
Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes
cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do
puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento
possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo
de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios
registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a
residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em
Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro
do pote
Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias
para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no
espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados
num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias
indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias
artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus
vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo
Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia
que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou
intacto em Salvador para ser exposto
Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que
aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar
colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com
aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros
indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo
toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora
um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as
diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes
em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e
terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas
indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o
dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e
atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu
Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a
experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a
cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que
interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta
daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes
camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do
museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os
natildeo-indiacutegenas
Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor
Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo
em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees
teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do
sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy
8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
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httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
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9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
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11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
artefato seraacute co-criado com indiacutegenas da Aldeia Brejo dos Padres e pretende mesclar a
tradiccedilatildeo ancestral Pankararu com tecnologias digitais de comunicaccedilatildeo e armazenamento
de informaccedilatildeo O dispositivo tecno-indiacutegena consiste em um mini-computador(raspberry
pi) com a capacidade de gravar aacuteudio para posteriormente armazenar e executar o
conteuacutedo automaticamente na web e em outro dispositivo emissor Esse sistema seraacute
acoplado e montado dentro de objetos de ceracircmica construiacutedo por mulheres indiacutegenas
Pankararu
Em um orifiacutecio modelado na escultura de barro do dispositivo os habitantes da aldeia
poderatildeo gravar cacircnticos tradicionais do Toreacute reclames sobre suas lutas e resistecircncias
por demarcaccedilatildeo de terras histoacuterias da tribo e demais mensagens que valorizem
fortaleccedilam e empoderem a aldeia Esse material armazenado na web iraacute compor um
banco de sonoridades Pankararu com acesso puacuteblico e tem por objetivo a preservaccedilatildeo
e salvaguarda da memoacuteria e patrimocircnio cultural da Aldeia As sonoridades gravadas
tambeacutem seratildeo transmitidas na web no formato web raacutedio tambeacutem de acesso puacuteblico e
tem o intuito de contribuir na difusatildeo amplificaccedilatildeo e transmissatildeo da cultura indiacutegena
Aleacutem da funccedilatildeo de guardar e propagar a cultura indiacutegena este vasilhame de
ceracircmica mistura de barro e siliacutecio poderaacute ser usado tambeacutem como emissor sonoro em
performances e itineracircncia em diversos espaccedilos Ao circular por outras Aldeias e
espaccedilos urbanosculturais a ceracircmica leva um pedaccedilo da terra dos Pankararus
preenchido por suas histoacuterias e cultura Temos a intenccedilatildeo tambeacutem de editar um manual
de montagem uso e manutenccedilatildeo do dispositivo para que ele possa ser livremente
replicado O projeto seraacute completamente open-source compartilhando saberes para
realizaccedilatildeo de uma tecnologia cidadatilde-aldeatilde
Alguns meses apoacutes enviarmos a nossa proposta para o projeto de residecircncia Arte
Eletrocircnica Indiacutegena recebemos a notiacutecia que nosso projeto foi aprovado Infelizmente
Andreacute Anastaacutecio co-autor do projeto natildeo poderia estar presencialmente na residecircncia
pois estaria se mudando para Lisboa no mesmo periacuteodo Por conta dessa ausecircncia
Sebastian curador do projeto nos indicou Ilana Majerowicz que estaria jaacute em
Pankararu no periacuteodo de residecircncia e jaacute havia feito alguns projetos junto com a
associaccedilatildeo das mulheres pankararu a AMIGP e seria uma oacutetima colaboradora e
mediadora nos conduzindo a diversas portas jaacute abertas em Pankararu
O Povo Pankararu
Alguns meses mais tarde recebemos a notiacutecia de que tivemos nosso projeto aprovado
mas antes de entrarmos nas questotildees da residecircncia eacute necessaacuterio falar um pouco mais
sobre o povo Pankararu
A reserva de Pankararu entre os municiacutepios de Tacaratu Jatobaacute e Petrolacircndia no
sertatildeo Pernambucano eacute de onde originaram diversos grupos indiacutegenas no Nordeste
com forte semelhanccedila cultural (Jeripancoacute Kantarureacute Kalancoacute Karuazu Katokin
Pankararu do Real Parque Pankaiwka etc) A cultura Pankararu tem forte conexatildeo e
intercacircmbio com diversos outros povos indiacutegenas que residem ao longo do Rio Satildeo
Francisco em Pernambuco [1]
Como a maioria dos povos indiacutegenas do Nordeste o contato com o homem branco se
deu no iniacutecio do periacuteodo colonial Os primeiros registros de contato dos colonos
portuguecircs com os indiacutegenas Pankararu datam do iniacutecio do seacutec XVII com as missotildees
dos padres oratorianos e capuchinhos que buscavam converter os povos indiacutegenas da
regiatildeo para o catolicismo
Eventualmente a maloca de Cana Brava desfeita e os missionaacuterios deslocaram-se em
direccedilatildeo agrave serra de Tacaratu para formar a aldeia que ficou conhecida como ldquoBrejo dos
Padresrdquo
Muita luta foi necessaacuteria para o reconhecimento de suas terras Os Pankararu
acreditam que o formato quadrado de sua reserva se deu pelo fato de ter sido doada
pelo entatildeo Imperador Pedro II
Os Pankararu falam somente o portuguecircs traccedilo comum entre as etnias do nordeste
com exceccedilatildeo dos Fulni-ocirc fruto da forte repressatildeo e perseguiccedilatildeo que ocorre desde os
primeiros contatos ateacute agora
Em seus rituais eacute caracteriacutestica a figura dos praiaacutes figuras cobertas por uma ldquofardardquo
como eles denominam feita de caroaacute uma planta regional do sertatildeo do qual eacute feita
uma espeacutecie de palha bem resistente Pode-se dizer que os praiaacutes satildeo os guardiotildees
dos pankararu contra os espiacuteritos malignos o fardamento dos praiaacutes eacute de uso exclusivo
dos homens e a diferenciaccedilatildeo de quem veste cada praiaacute depende de qual lsquotroncorsquo das
famiacutelias pankararu o homem pertence sendo portanto uma tradiccedilatildeo tambeacutem familiar
Fotografias do ritual ldquoTrecircs Rodasrdquo tirada durante a residecircncia fotografia do autor
A Ceracircmica Pankararu
A ceracircmica tem uma importacircncia especial na cultura Pankararu pois constituem como
elementos sagrados dentro dos seus rituais Nos pratos de barro eacute onde se oferece a
comida sagrada aos praiaacutes e aos participantes do ritual no terreiro e os potes de
ceracircmica satildeo usados para comportar a garapa de cana a ser bebida durante o ritual
Todos presentes compartilham da comida oferecida no ritual sendo necessaacuterio agraves
vezes mais de 100 200 pratos de barro para um ritual ocorrer Hoje em dia muitas
vezes jaacute se utilizam baldes pratos potes de plaacutestico substituindo os de barro na praacutetica
dos rituais perdendo um pouco dessa tradiccedilatildeo Isso ocorre devido ao aumento da
populaccedilatildeo indiacutegena na aldeia que natildeo eacute acompanhada de um crescimento tambeacutem da
produccedilatildeo de ceracircmica pankararu Hoje em dia somente algumas famiacutelias mantecircm a
tradiccedilatildeo da ceracircmica em Pankararu a falta de incentivo e infra-estrutura prejudica para
que essa cultura permaneccedila acessa Mas apesar das dificuldades a demanda interna
relativamente alta de pratos de ceracircmica por conta dessas praacuteticas nos rituais ajuda a
manter a produccedilatildeo de ceracircmica ativa natildeo dependendo somente da venda do
artesanato para fora da aldeia para se manter a tradiccedilatildeo viva
[Fot251] Coleccedilatildeo Etnograacutefica Carlos Estevatildeo de Oliveira [16]
A Residecircncia
A residecircncia artiacutestica ocorreu entre as 15 e 22 de junho de 2018 na aldeia Brejo dos
Padres no municiacutepio de Tacaratu PE Cada artista residente ficava hospedado na
casa de algueacutem na aldeia que participasse dos projetos culturais no meu caso fiquei
na casa de Geovam Araticum Pankararu (Geo) com sua esposa Rosacircngela e suas
duas filhas Geovam eacute um dos pankararus da nova geraccedilatildeo que puxam a tradiccedilatildeo
indiacutegena estaacute presente nos rituais cantando os toantes e na escola indiacutegena estadual
Carlos Estevatildeo ele trabalha como pedagogo ensinando as crianccedilas sobre as tradiccedilotildees
da cultura pankararu
Dia 1
Ao chegar no aeroporto de Paulo Afonso Patriacutecia Pankararu viria me buscar para me
levar para Pankararu e assim se deu Foi meu primeiro contato com um dos
pankararus logo ela me contou sobre a histoacuteria e situaccedilatildeo atual do seu povo os
conflitos existentes no momento entre os indiacutegenas e os posseiros e toda a
problemaacutetica decorrente disso
Cheguei agrave noite na aldeia Brejo dos Padres onde fui acolhido na casa de Geo e sua
famiacutelia laacute encontrei Ilana Majerowicz com quem faria a mediaccedilatildeo do projeto e outras
figuras que seriam atores importantes do experimento em Pankararu Fernando
Monteiro dos Santos ou Fernandatildeo como eacute chamado uma das lideranccedilas da aldeia
Brejo dos Padres Ewerton e Antocircnio Neto ambos ativos no Ponto de Cultura Indiacutegena
aleacutem da esposa de Geo Rosacircngela e suas duas filhas pequenas
Nesse nosso primeiro encontro jaacute estabelecemos algumas metas do nosso projeto
irmos encontrar as ceramistas na aldeia Tapera mapearmos figuras importantes que
pudessem compartilhar diferentes conhecimentos sobre Pankararu conosco e tambeacutem
locais no qual esse experimento pudesse ocorrer na aldeia
Dia 2
Acordamos cedo no segundo dia e jaacute fomos para a aldeia Tapera para encontrarmos a
ceramista Luciene sobrinha de Mercinha que jaacute havia preparado um pote
especiacuteficamente para o nosso projeto Chegando laacute fizemos uma pequena entrevista
com ela pedimos para que nos contasse um pouco do seu processo como havia
aprendido a arte da ceracircmica e o que isso significava para ela Ela natildeo foi de muitas
palavras e nos disse simplismente que havia aprendido todo o processo da ceracircmica
vendo suas parentes mais velhas fazendo e repetia esse processo Nesse momento a
forma de comunicaccedilatildeo era ainda muito nova para mim sendo um pouco difiacutecil entender
o ritmo de diaacutelogo mais apropriado com os pankararu
Luciene jaacute havia preparado o pote especiacuteficamente para o projeto e parecia perfeito
para o dispositivo Era necessaacuteria uma boca grande o suficiente para poder entrar o
Raspbery Pi junto com o alto falante ao mesmo tempo que era necessaacuterio um buraco
na parte de baixo do pote para sair os cabos de energia e do mouse e teclado para o
Raspberry
Fiz alguns testes com o pote ali mesmo e o tudo funcionou Geo fez o primeiro canto
dentro do pote e escutamos pela primeira vez um toante pankararu entrar no pote e
depois ser tocado de dentro dele para escutarmos e foi um momento muito bonito
Embora o pote estivesse moldado ele precisava ainda secar e ir para a queima e aiacute
sim estaria pronto para ser colocado como dispositivo e jaacute que isso iria demorar ainda
alguns dias decidimos pegar alguns potes jaacute prontos que haviam disponiacuteveis para
seguirmos com o experimento enquanto o pote definitivo natildeo estivesse pronto
Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento
Fotografia de Ilana Majerowicz
Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute
Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos
documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua
luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia
ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote
natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa
naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote
pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo
indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no
Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns
testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara
qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira
criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote
Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor
Dia 3
No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac
produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles
haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia
Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas
viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas
Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde
ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas
tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro
lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa
tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e
ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos
noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer
mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia
mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu
As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo
liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu
toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem
vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio
tupinambaacutersquo esse simrdquo
A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio
das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso
das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A
cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e
antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria
expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir
da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo
iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e
a ldquoinduacutestria culturalrdquo
Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de
transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de
Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30
recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu
Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos
importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas
pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos
iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute
Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo
de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas
por essas flautas [3]
Dia 4
A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a
perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre
a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos
Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente
pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante
Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos
encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada
devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e
esposas no dia anterior da retirada
Fernando sobre os toantes
ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados
noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados
que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem
diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais
velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu
dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada
toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um
pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o
praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam
lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa
memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele
vem ensinarrdquo
A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do
sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e
como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os
encantados
Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras
Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando
era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos
Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz
Dia 5
Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo
nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele
Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo
Fotografia do autor
Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que
atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e
revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus
poemas para o dispositivo
A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os
pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se
repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que
segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura
destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em
detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu
somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos
mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse
ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos
debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e
sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu
vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que
manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade
desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura
Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas
externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em
seu entorno
Dia 6
No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso
projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana
antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois
queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do
dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a
uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico
Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa
de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na
casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma
entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a
tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo
que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se
do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia
de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de
Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo
consideradas as melhores regiatildeo
Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone
e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma
mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar
com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes
espalhados em difentes lugares longe de Pankararu
Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana
Majerowicz
Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia
que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz
de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos
imemoriais
Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita
Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu
Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos
uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente
presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da
cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem
diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma
mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees
metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro
que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem
era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de
ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto
haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc
Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da
sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos
Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou
claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o
dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos
esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos
um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de
que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela
aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus
remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu
somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo
como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo
da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita
da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela
cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta
Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e
assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira
Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles
pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa
mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram
esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que
haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria
a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as
vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos
imemoriais
Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca
havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira
vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute
justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para
cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do
canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os
pankararus
Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura
pankararu
ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a
nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender
que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no
sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente
possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem
neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses
cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a
memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes
aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo
Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da
direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz
Dia 7
No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o
experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a
predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato
com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote
mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia
de falar com pote
Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz
Dia 8
A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num
acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e
indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e
outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio
certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares
para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo
muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica
Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees
estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele
mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por
completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos
presentes nesse experimento
Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz
Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de
aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir
de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra
pankararu
A Exposiccedilatildeo
Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as
residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador
(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as
obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das
diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee
Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu
Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes
cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do
puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento
possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo
de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios
registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a
residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em
Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro
do pote
Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias
para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no
espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados
num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias
indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias
artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus
vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo
Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia
que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou
intacto em Salvador para ser exposto
Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que
aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar
colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com
aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros
indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo
toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora
um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as
diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes
em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e
terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas
indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o
dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e
atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu
Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a
experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a
cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que
interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta
daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes
camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do
museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os
natildeo-indiacutegenas
Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor
Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo
em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees
teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do
sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy
8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
For Today
httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
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9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna
+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris
+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+
dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M
aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici
adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9
+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+
as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc
e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X
ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one
pageampqampf=false
11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
O Povo Pankararu
Alguns meses mais tarde recebemos a notiacutecia de que tivemos nosso projeto aprovado
mas antes de entrarmos nas questotildees da residecircncia eacute necessaacuterio falar um pouco mais
sobre o povo Pankararu
A reserva de Pankararu entre os municiacutepios de Tacaratu Jatobaacute e Petrolacircndia no
sertatildeo Pernambucano eacute de onde originaram diversos grupos indiacutegenas no Nordeste
com forte semelhanccedila cultural (Jeripancoacute Kantarureacute Kalancoacute Karuazu Katokin
Pankararu do Real Parque Pankaiwka etc) A cultura Pankararu tem forte conexatildeo e
intercacircmbio com diversos outros povos indiacutegenas que residem ao longo do Rio Satildeo
Francisco em Pernambuco [1]
Como a maioria dos povos indiacutegenas do Nordeste o contato com o homem branco se
deu no iniacutecio do periacuteodo colonial Os primeiros registros de contato dos colonos
portuguecircs com os indiacutegenas Pankararu datam do iniacutecio do seacutec XVII com as missotildees
dos padres oratorianos e capuchinhos que buscavam converter os povos indiacutegenas da
regiatildeo para o catolicismo
Eventualmente a maloca de Cana Brava desfeita e os missionaacuterios deslocaram-se em
direccedilatildeo agrave serra de Tacaratu para formar a aldeia que ficou conhecida como ldquoBrejo dos
Padresrdquo
Muita luta foi necessaacuteria para o reconhecimento de suas terras Os Pankararu
acreditam que o formato quadrado de sua reserva se deu pelo fato de ter sido doada
pelo entatildeo Imperador Pedro II
Os Pankararu falam somente o portuguecircs traccedilo comum entre as etnias do nordeste
com exceccedilatildeo dos Fulni-ocirc fruto da forte repressatildeo e perseguiccedilatildeo que ocorre desde os
primeiros contatos ateacute agora
Em seus rituais eacute caracteriacutestica a figura dos praiaacutes figuras cobertas por uma ldquofardardquo
como eles denominam feita de caroaacute uma planta regional do sertatildeo do qual eacute feita
uma espeacutecie de palha bem resistente Pode-se dizer que os praiaacutes satildeo os guardiotildees
dos pankararu contra os espiacuteritos malignos o fardamento dos praiaacutes eacute de uso exclusivo
dos homens e a diferenciaccedilatildeo de quem veste cada praiaacute depende de qual lsquotroncorsquo das
famiacutelias pankararu o homem pertence sendo portanto uma tradiccedilatildeo tambeacutem familiar
Fotografias do ritual ldquoTrecircs Rodasrdquo tirada durante a residecircncia fotografia do autor
A Ceracircmica Pankararu
A ceracircmica tem uma importacircncia especial na cultura Pankararu pois constituem como
elementos sagrados dentro dos seus rituais Nos pratos de barro eacute onde se oferece a
comida sagrada aos praiaacutes e aos participantes do ritual no terreiro e os potes de
ceracircmica satildeo usados para comportar a garapa de cana a ser bebida durante o ritual
Todos presentes compartilham da comida oferecida no ritual sendo necessaacuterio agraves
vezes mais de 100 200 pratos de barro para um ritual ocorrer Hoje em dia muitas
vezes jaacute se utilizam baldes pratos potes de plaacutestico substituindo os de barro na praacutetica
dos rituais perdendo um pouco dessa tradiccedilatildeo Isso ocorre devido ao aumento da
populaccedilatildeo indiacutegena na aldeia que natildeo eacute acompanhada de um crescimento tambeacutem da
produccedilatildeo de ceracircmica pankararu Hoje em dia somente algumas famiacutelias mantecircm a
tradiccedilatildeo da ceracircmica em Pankararu a falta de incentivo e infra-estrutura prejudica para
que essa cultura permaneccedila acessa Mas apesar das dificuldades a demanda interna
relativamente alta de pratos de ceracircmica por conta dessas praacuteticas nos rituais ajuda a
manter a produccedilatildeo de ceracircmica ativa natildeo dependendo somente da venda do
artesanato para fora da aldeia para se manter a tradiccedilatildeo viva
[Fot251] Coleccedilatildeo Etnograacutefica Carlos Estevatildeo de Oliveira [16]
A Residecircncia
A residecircncia artiacutestica ocorreu entre as 15 e 22 de junho de 2018 na aldeia Brejo dos
Padres no municiacutepio de Tacaratu PE Cada artista residente ficava hospedado na
casa de algueacutem na aldeia que participasse dos projetos culturais no meu caso fiquei
na casa de Geovam Araticum Pankararu (Geo) com sua esposa Rosacircngela e suas
duas filhas Geovam eacute um dos pankararus da nova geraccedilatildeo que puxam a tradiccedilatildeo
indiacutegena estaacute presente nos rituais cantando os toantes e na escola indiacutegena estadual
Carlos Estevatildeo ele trabalha como pedagogo ensinando as crianccedilas sobre as tradiccedilotildees
da cultura pankararu
Dia 1
Ao chegar no aeroporto de Paulo Afonso Patriacutecia Pankararu viria me buscar para me
levar para Pankararu e assim se deu Foi meu primeiro contato com um dos
pankararus logo ela me contou sobre a histoacuteria e situaccedilatildeo atual do seu povo os
conflitos existentes no momento entre os indiacutegenas e os posseiros e toda a
problemaacutetica decorrente disso
Cheguei agrave noite na aldeia Brejo dos Padres onde fui acolhido na casa de Geo e sua
famiacutelia laacute encontrei Ilana Majerowicz com quem faria a mediaccedilatildeo do projeto e outras
figuras que seriam atores importantes do experimento em Pankararu Fernando
Monteiro dos Santos ou Fernandatildeo como eacute chamado uma das lideranccedilas da aldeia
Brejo dos Padres Ewerton e Antocircnio Neto ambos ativos no Ponto de Cultura Indiacutegena
aleacutem da esposa de Geo Rosacircngela e suas duas filhas pequenas
Nesse nosso primeiro encontro jaacute estabelecemos algumas metas do nosso projeto
irmos encontrar as ceramistas na aldeia Tapera mapearmos figuras importantes que
pudessem compartilhar diferentes conhecimentos sobre Pankararu conosco e tambeacutem
locais no qual esse experimento pudesse ocorrer na aldeia
Dia 2
Acordamos cedo no segundo dia e jaacute fomos para a aldeia Tapera para encontrarmos a
ceramista Luciene sobrinha de Mercinha que jaacute havia preparado um pote
especiacuteficamente para o nosso projeto Chegando laacute fizemos uma pequena entrevista
com ela pedimos para que nos contasse um pouco do seu processo como havia
aprendido a arte da ceracircmica e o que isso significava para ela Ela natildeo foi de muitas
palavras e nos disse simplismente que havia aprendido todo o processo da ceracircmica
vendo suas parentes mais velhas fazendo e repetia esse processo Nesse momento a
forma de comunicaccedilatildeo era ainda muito nova para mim sendo um pouco difiacutecil entender
o ritmo de diaacutelogo mais apropriado com os pankararu
Luciene jaacute havia preparado o pote especiacuteficamente para o projeto e parecia perfeito
para o dispositivo Era necessaacuteria uma boca grande o suficiente para poder entrar o
Raspbery Pi junto com o alto falante ao mesmo tempo que era necessaacuterio um buraco
na parte de baixo do pote para sair os cabos de energia e do mouse e teclado para o
Raspberry
Fiz alguns testes com o pote ali mesmo e o tudo funcionou Geo fez o primeiro canto
dentro do pote e escutamos pela primeira vez um toante pankararu entrar no pote e
depois ser tocado de dentro dele para escutarmos e foi um momento muito bonito
Embora o pote estivesse moldado ele precisava ainda secar e ir para a queima e aiacute
sim estaria pronto para ser colocado como dispositivo e jaacute que isso iria demorar ainda
alguns dias decidimos pegar alguns potes jaacute prontos que haviam disponiacuteveis para
seguirmos com o experimento enquanto o pote definitivo natildeo estivesse pronto
Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento
Fotografia de Ilana Majerowicz
Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute
Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos
documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua
luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia
ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote
natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa
naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote
pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo
indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no
Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns
testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara
qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira
criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote
Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor
Dia 3
No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac
produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles
haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia
Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas
viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas
Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde
ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas
tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro
lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa
tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e
ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos
noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer
mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia
mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu
As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo
liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu
toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem
vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio
tupinambaacutersquo esse simrdquo
A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio
das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso
das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A
cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e
antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria
expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir
da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo
iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e
a ldquoinduacutestria culturalrdquo
Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de
transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de
Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30
recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu
Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos
importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas
pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos
iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute
Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo
de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas
por essas flautas [3]
Dia 4
A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a
perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre
a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos
Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente
pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante
Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos
encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada
devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e
esposas no dia anterior da retirada
Fernando sobre os toantes
ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados
noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados
que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem
diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais
velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu
dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada
toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um
pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o
praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam
lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa
memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele
vem ensinarrdquo
A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do
sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e
como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os
encantados
Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras
Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando
era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos
Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz
Dia 5
Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo
nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele
Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo
Fotografia do autor
Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que
atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e
revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus
poemas para o dispositivo
A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os
pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se
repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que
segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura
destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em
detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu
somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos
mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse
ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos
debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e
sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu
vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que
manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade
desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura
Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas
externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em
seu entorno
Dia 6
No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso
projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana
antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois
queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do
dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a
uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico
Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa
de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na
casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma
entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a
tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo
que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se
do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia
de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de
Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo
consideradas as melhores regiatildeo
Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone
e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma
mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar
com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes
espalhados em difentes lugares longe de Pankararu
Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana
Majerowicz
Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia
que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz
de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos
imemoriais
Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita
Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu
Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos
uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente
presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da
cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem
diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma
mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees
metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro
que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem
era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de
ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto
haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc
Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da
sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos
Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou
claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o
dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos
esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos
um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de
que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela
aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus
remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu
somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo
como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo
da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita
da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela
cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta
Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e
assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira
Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles
pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa
mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram
esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que
haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria
a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as
vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos
imemoriais
Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca
havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira
vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute
justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para
cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do
canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os
pankararus
Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura
pankararu
ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a
nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender
que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no
sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente
possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem
neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses
cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a
memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes
aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo
Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da
direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz
Dia 7
No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o
experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a
predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato
com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote
mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia
de falar com pote
Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz
Dia 8
A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num
acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e
indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e
outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio
certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares
para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo
muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica
Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees
estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele
mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por
completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos
presentes nesse experimento
Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz
Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de
aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir
de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra
pankararu
A Exposiccedilatildeo
Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as
residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador
(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as
obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das
diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee
Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu
Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes
cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do
puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento
possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo
de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios
registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a
residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em
Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro
do pote
Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias
para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no
espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados
num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias
indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias
artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus
vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo
Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia
que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou
intacto em Salvador para ser exposto
Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que
aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar
colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com
aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros
indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo
toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora
um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as
diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes
em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e
terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas
indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o
dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e
atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu
Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a
experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a
cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que
interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta
daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes
camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do
museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os
natildeo-indiacutegenas
Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor
Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo
em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees
teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do
sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy
8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
For Today
httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
httpwwwvitruviusbeboek5h5htm
9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
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pageampqampf=false
11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
Os Pankararu falam somente o portuguecircs traccedilo comum entre as etnias do nordeste
com exceccedilatildeo dos Fulni-ocirc fruto da forte repressatildeo e perseguiccedilatildeo que ocorre desde os
primeiros contatos ateacute agora
Em seus rituais eacute caracteriacutestica a figura dos praiaacutes figuras cobertas por uma ldquofardardquo
como eles denominam feita de caroaacute uma planta regional do sertatildeo do qual eacute feita
uma espeacutecie de palha bem resistente Pode-se dizer que os praiaacutes satildeo os guardiotildees
dos pankararu contra os espiacuteritos malignos o fardamento dos praiaacutes eacute de uso exclusivo
dos homens e a diferenciaccedilatildeo de quem veste cada praiaacute depende de qual lsquotroncorsquo das
famiacutelias pankararu o homem pertence sendo portanto uma tradiccedilatildeo tambeacutem familiar
Fotografias do ritual ldquoTrecircs Rodasrdquo tirada durante a residecircncia fotografia do autor
A Ceracircmica Pankararu
A ceracircmica tem uma importacircncia especial na cultura Pankararu pois constituem como
elementos sagrados dentro dos seus rituais Nos pratos de barro eacute onde se oferece a
comida sagrada aos praiaacutes e aos participantes do ritual no terreiro e os potes de
ceracircmica satildeo usados para comportar a garapa de cana a ser bebida durante o ritual
Todos presentes compartilham da comida oferecida no ritual sendo necessaacuterio agraves
vezes mais de 100 200 pratos de barro para um ritual ocorrer Hoje em dia muitas
vezes jaacute se utilizam baldes pratos potes de plaacutestico substituindo os de barro na praacutetica
dos rituais perdendo um pouco dessa tradiccedilatildeo Isso ocorre devido ao aumento da
populaccedilatildeo indiacutegena na aldeia que natildeo eacute acompanhada de um crescimento tambeacutem da
produccedilatildeo de ceracircmica pankararu Hoje em dia somente algumas famiacutelias mantecircm a
tradiccedilatildeo da ceracircmica em Pankararu a falta de incentivo e infra-estrutura prejudica para
que essa cultura permaneccedila acessa Mas apesar das dificuldades a demanda interna
relativamente alta de pratos de ceracircmica por conta dessas praacuteticas nos rituais ajuda a
manter a produccedilatildeo de ceracircmica ativa natildeo dependendo somente da venda do
artesanato para fora da aldeia para se manter a tradiccedilatildeo viva
[Fot251] Coleccedilatildeo Etnograacutefica Carlos Estevatildeo de Oliveira [16]
A Residecircncia
A residecircncia artiacutestica ocorreu entre as 15 e 22 de junho de 2018 na aldeia Brejo dos
Padres no municiacutepio de Tacaratu PE Cada artista residente ficava hospedado na
casa de algueacutem na aldeia que participasse dos projetos culturais no meu caso fiquei
na casa de Geovam Araticum Pankararu (Geo) com sua esposa Rosacircngela e suas
duas filhas Geovam eacute um dos pankararus da nova geraccedilatildeo que puxam a tradiccedilatildeo
indiacutegena estaacute presente nos rituais cantando os toantes e na escola indiacutegena estadual
Carlos Estevatildeo ele trabalha como pedagogo ensinando as crianccedilas sobre as tradiccedilotildees
da cultura pankararu
Dia 1
Ao chegar no aeroporto de Paulo Afonso Patriacutecia Pankararu viria me buscar para me
levar para Pankararu e assim se deu Foi meu primeiro contato com um dos
pankararus logo ela me contou sobre a histoacuteria e situaccedilatildeo atual do seu povo os
conflitos existentes no momento entre os indiacutegenas e os posseiros e toda a
problemaacutetica decorrente disso
Cheguei agrave noite na aldeia Brejo dos Padres onde fui acolhido na casa de Geo e sua
famiacutelia laacute encontrei Ilana Majerowicz com quem faria a mediaccedilatildeo do projeto e outras
figuras que seriam atores importantes do experimento em Pankararu Fernando
Monteiro dos Santos ou Fernandatildeo como eacute chamado uma das lideranccedilas da aldeia
Brejo dos Padres Ewerton e Antocircnio Neto ambos ativos no Ponto de Cultura Indiacutegena
aleacutem da esposa de Geo Rosacircngela e suas duas filhas pequenas
Nesse nosso primeiro encontro jaacute estabelecemos algumas metas do nosso projeto
irmos encontrar as ceramistas na aldeia Tapera mapearmos figuras importantes que
pudessem compartilhar diferentes conhecimentos sobre Pankararu conosco e tambeacutem
locais no qual esse experimento pudesse ocorrer na aldeia
Dia 2
Acordamos cedo no segundo dia e jaacute fomos para a aldeia Tapera para encontrarmos a
ceramista Luciene sobrinha de Mercinha que jaacute havia preparado um pote
especiacuteficamente para o nosso projeto Chegando laacute fizemos uma pequena entrevista
com ela pedimos para que nos contasse um pouco do seu processo como havia
aprendido a arte da ceracircmica e o que isso significava para ela Ela natildeo foi de muitas
palavras e nos disse simplismente que havia aprendido todo o processo da ceracircmica
vendo suas parentes mais velhas fazendo e repetia esse processo Nesse momento a
forma de comunicaccedilatildeo era ainda muito nova para mim sendo um pouco difiacutecil entender
o ritmo de diaacutelogo mais apropriado com os pankararu
Luciene jaacute havia preparado o pote especiacuteficamente para o projeto e parecia perfeito
para o dispositivo Era necessaacuteria uma boca grande o suficiente para poder entrar o
Raspbery Pi junto com o alto falante ao mesmo tempo que era necessaacuterio um buraco
na parte de baixo do pote para sair os cabos de energia e do mouse e teclado para o
Raspberry
Fiz alguns testes com o pote ali mesmo e o tudo funcionou Geo fez o primeiro canto
dentro do pote e escutamos pela primeira vez um toante pankararu entrar no pote e
depois ser tocado de dentro dele para escutarmos e foi um momento muito bonito
Embora o pote estivesse moldado ele precisava ainda secar e ir para a queima e aiacute
sim estaria pronto para ser colocado como dispositivo e jaacute que isso iria demorar ainda
alguns dias decidimos pegar alguns potes jaacute prontos que haviam disponiacuteveis para
seguirmos com o experimento enquanto o pote definitivo natildeo estivesse pronto
Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento
Fotografia de Ilana Majerowicz
Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute
Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos
documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua
luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia
ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote
natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa
naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote
pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo
indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no
Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns
testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara
qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira
criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote
Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor
Dia 3
No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac
produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles
haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia
Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas
viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas
Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde
ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas
tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro
lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa
tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e
ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos
noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer
mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia
mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu
As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo
liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu
toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem
vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio
tupinambaacutersquo esse simrdquo
A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio
das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso
das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A
cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e
antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria
expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir
da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo
iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e
a ldquoinduacutestria culturalrdquo
Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de
transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de
Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30
recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu
Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos
importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas
pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos
iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute
Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo
de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas
por essas flautas [3]
Dia 4
A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a
perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre
a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos
Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente
pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante
Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos
encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada
devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e
esposas no dia anterior da retirada
Fernando sobre os toantes
ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados
noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados
que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem
diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais
velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu
dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada
toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um
pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o
praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam
lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa
memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele
vem ensinarrdquo
A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do
sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e
como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os
encantados
Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras
Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando
era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos
Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz
Dia 5
Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo
nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele
Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo
Fotografia do autor
Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que
atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e
revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus
poemas para o dispositivo
A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os
pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se
repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que
segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura
destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em
detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu
somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos
mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse
ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos
debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e
sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu
vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que
manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade
desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura
Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas
externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em
seu entorno
Dia 6
No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso
projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana
antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois
queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do
dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a
uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico
Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa
de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na
casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma
entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a
tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo
que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se
do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia
de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de
Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo
consideradas as melhores regiatildeo
Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone
e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma
mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar
com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes
espalhados em difentes lugares longe de Pankararu
Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana
Majerowicz
Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia
que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz
de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos
imemoriais
Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita
Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu
Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos
uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente
presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da
cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem
diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma
mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees
metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro
que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem
era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de
ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto
haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc
Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da
sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos
Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou
claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o
dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos
esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos
um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de
que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela
aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus
remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu
somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo
como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo
da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita
da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela
cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta
Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e
assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira
Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles
pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa
mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram
esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que
haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria
a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as
vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos
imemoriais
Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca
havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira
vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute
justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para
cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do
canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os
pankararus
Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura
pankararu
ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a
nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender
que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no
sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente
possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem
neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses
cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a
memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes
aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo
Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da
direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz
Dia 7
No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o
experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a
predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato
com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote
mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia
de falar com pote
Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz
Dia 8
A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num
acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e
indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e
outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio
certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares
para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo
muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica
Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees
estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele
mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por
completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos
presentes nesse experimento
Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz
Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de
aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir
de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra
pankararu
A Exposiccedilatildeo
Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as
residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador
(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as
obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das
diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee
Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu
Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes
cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do
puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento
possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo
de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios
registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a
residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em
Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro
do pote
Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias
para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no
espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados
num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias
indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias
artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus
vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo
Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia
que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou
intacto em Salvador para ser exposto
Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que
aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar
colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com
aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros
indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo
toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora
um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as
diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes
em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e
terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas
indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o
dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e
atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu
Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a
experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a
cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que
interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta
daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes
camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do
museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os
natildeo-indiacutegenas
Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor
Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo
em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees
teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do
sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy
8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
For Today
httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
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9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna
+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris
+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+
dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M
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e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X
ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one
pageampqampf=false
11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
vezes mais de 100 200 pratos de barro para um ritual ocorrer Hoje em dia muitas
vezes jaacute se utilizam baldes pratos potes de plaacutestico substituindo os de barro na praacutetica
dos rituais perdendo um pouco dessa tradiccedilatildeo Isso ocorre devido ao aumento da
populaccedilatildeo indiacutegena na aldeia que natildeo eacute acompanhada de um crescimento tambeacutem da
produccedilatildeo de ceracircmica pankararu Hoje em dia somente algumas famiacutelias mantecircm a
tradiccedilatildeo da ceracircmica em Pankararu a falta de incentivo e infra-estrutura prejudica para
que essa cultura permaneccedila acessa Mas apesar das dificuldades a demanda interna
relativamente alta de pratos de ceracircmica por conta dessas praacuteticas nos rituais ajuda a
manter a produccedilatildeo de ceracircmica ativa natildeo dependendo somente da venda do
artesanato para fora da aldeia para se manter a tradiccedilatildeo viva
[Fot251] Coleccedilatildeo Etnograacutefica Carlos Estevatildeo de Oliveira [16]
A Residecircncia
A residecircncia artiacutestica ocorreu entre as 15 e 22 de junho de 2018 na aldeia Brejo dos
Padres no municiacutepio de Tacaratu PE Cada artista residente ficava hospedado na
casa de algueacutem na aldeia que participasse dos projetos culturais no meu caso fiquei
na casa de Geovam Araticum Pankararu (Geo) com sua esposa Rosacircngela e suas
duas filhas Geovam eacute um dos pankararus da nova geraccedilatildeo que puxam a tradiccedilatildeo
indiacutegena estaacute presente nos rituais cantando os toantes e na escola indiacutegena estadual
Carlos Estevatildeo ele trabalha como pedagogo ensinando as crianccedilas sobre as tradiccedilotildees
da cultura pankararu
Dia 1
Ao chegar no aeroporto de Paulo Afonso Patriacutecia Pankararu viria me buscar para me
levar para Pankararu e assim se deu Foi meu primeiro contato com um dos
pankararus logo ela me contou sobre a histoacuteria e situaccedilatildeo atual do seu povo os
conflitos existentes no momento entre os indiacutegenas e os posseiros e toda a
problemaacutetica decorrente disso
Cheguei agrave noite na aldeia Brejo dos Padres onde fui acolhido na casa de Geo e sua
famiacutelia laacute encontrei Ilana Majerowicz com quem faria a mediaccedilatildeo do projeto e outras
figuras que seriam atores importantes do experimento em Pankararu Fernando
Monteiro dos Santos ou Fernandatildeo como eacute chamado uma das lideranccedilas da aldeia
Brejo dos Padres Ewerton e Antocircnio Neto ambos ativos no Ponto de Cultura Indiacutegena
aleacutem da esposa de Geo Rosacircngela e suas duas filhas pequenas
Nesse nosso primeiro encontro jaacute estabelecemos algumas metas do nosso projeto
irmos encontrar as ceramistas na aldeia Tapera mapearmos figuras importantes que
pudessem compartilhar diferentes conhecimentos sobre Pankararu conosco e tambeacutem
locais no qual esse experimento pudesse ocorrer na aldeia
Dia 2
Acordamos cedo no segundo dia e jaacute fomos para a aldeia Tapera para encontrarmos a
ceramista Luciene sobrinha de Mercinha que jaacute havia preparado um pote
especiacuteficamente para o nosso projeto Chegando laacute fizemos uma pequena entrevista
com ela pedimos para que nos contasse um pouco do seu processo como havia
aprendido a arte da ceracircmica e o que isso significava para ela Ela natildeo foi de muitas
palavras e nos disse simplismente que havia aprendido todo o processo da ceracircmica
vendo suas parentes mais velhas fazendo e repetia esse processo Nesse momento a
forma de comunicaccedilatildeo era ainda muito nova para mim sendo um pouco difiacutecil entender
o ritmo de diaacutelogo mais apropriado com os pankararu
Luciene jaacute havia preparado o pote especiacuteficamente para o projeto e parecia perfeito
para o dispositivo Era necessaacuteria uma boca grande o suficiente para poder entrar o
Raspbery Pi junto com o alto falante ao mesmo tempo que era necessaacuterio um buraco
na parte de baixo do pote para sair os cabos de energia e do mouse e teclado para o
Raspberry
Fiz alguns testes com o pote ali mesmo e o tudo funcionou Geo fez o primeiro canto
dentro do pote e escutamos pela primeira vez um toante pankararu entrar no pote e
depois ser tocado de dentro dele para escutarmos e foi um momento muito bonito
Embora o pote estivesse moldado ele precisava ainda secar e ir para a queima e aiacute
sim estaria pronto para ser colocado como dispositivo e jaacute que isso iria demorar ainda
alguns dias decidimos pegar alguns potes jaacute prontos que haviam disponiacuteveis para
seguirmos com o experimento enquanto o pote definitivo natildeo estivesse pronto
Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento
Fotografia de Ilana Majerowicz
Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute
Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos
documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua
luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia
ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote
natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa
naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote
pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo
indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no
Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns
testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara
qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira
criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote
Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor
Dia 3
No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac
produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles
haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia
Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas
viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas
Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde
ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas
tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro
lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa
tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e
ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos
noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer
mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia
mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu
As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo
liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu
toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem
vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio
tupinambaacutersquo esse simrdquo
A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio
das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso
das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A
cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e
antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria
expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir
da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo
iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e
a ldquoinduacutestria culturalrdquo
Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de
transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de
Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30
recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu
Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos
importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas
pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos
iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute
Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo
de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas
por essas flautas [3]
Dia 4
A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a
perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre
a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos
Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente
pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante
Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos
encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada
devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e
esposas no dia anterior da retirada
Fernando sobre os toantes
ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados
noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados
que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem
diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais
velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu
dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada
toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um
pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o
praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam
lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa
memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele
vem ensinarrdquo
A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do
sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e
como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os
encantados
Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras
Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando
era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos
Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz
Dia 5
Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo
nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele
Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo
Fotografia do autor
Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que
atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e
revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus
poemas para o dispositivo
A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os
pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se
repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que
segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura
destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em
detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu
somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos
mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse
ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos
debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e
sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu
vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que
manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade
desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura
Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas
externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em
seu entorno
Dia 6
No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso
projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana
antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois
queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do
dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a
uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico
Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa
de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na
casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma
entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a
tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo
que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se
do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia
de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de
Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo
consideradas as melhores regiatildeo
Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone
e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma
mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar
com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes
espalhados em difentes lugares longe de Pankararu
Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana
Majerowicz
Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia
que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz
de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos
imemoriais
Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita
Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu
Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos
uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente
presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da
cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem
diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma
mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees
metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro
que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem
era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de
ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto
haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc
Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da
sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos
Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou
claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o
dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos
esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos
um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de
que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela
aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus
remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu
somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo
como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo
da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita
da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela
cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta
Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e
assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira
Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles
pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa
mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram
esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que
haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria
a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as
vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos
imemoriais
Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca
havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira
vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute
justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para
cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do
canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os
pankararus
Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura
pankararu
ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a
nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender
que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no
sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente
possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem
neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses
cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a
memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes
aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo
Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da
direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz
Dia 7
No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o
experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a
predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato
com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote
mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia
de falar com pote
Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz
Dia 8
A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num
acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e
indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e
outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio
certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares
para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo
muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica
Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees
estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele
mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por
completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos
presentes nesse experimento
Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz
Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de
aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir
de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra
pankararu
A Exposiccedilatildeo
Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as
residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador
(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as
obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das
diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee
Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu
Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes
cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do
puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento
possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo
de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios
registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a
residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em
Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro
do pote
Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias
para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no
espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados
num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias
indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias
artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus
vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo
Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia
que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou
intacto em Salvador para ser exposto
Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que
aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar
colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com
aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros
indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo
toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora
um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as
diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes
em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e
terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas
indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o
dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e
atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu
Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a
experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a
cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que
interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta
daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes
camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do
museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os
natildeo-indiacutegenas
Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor
Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo
em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees
teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do
sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy
8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
For Today
httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
httpwwwvitruviusbeboek5h5htm
9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
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11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
A Residecircncia
A residecircncia artiacutestica ocorreu entre as 15 e 22 de junho de 2018 na aldeia Brejo dos
Padres no municiacutepio de Tacaratu PE Cada artista residente ficava hospedado na
casa de algueacutem na aldeia que participasse dos projetos culturais no meu caso fiquei
na casa de Geovam Araticum Pankararu (Geo) com sua esposa Rosacircngela e suas
duas filhas Geovam eacute um dos pankararus da nova geraccedilatildeo que puxam a tradiccedilatildeo
indiacutegena estaacute presente nos rituais cantando os toantes e na escola indiacutegena estadual
Carlos Estevatildeo ele trabalha como pedagogo ensinando as crianccedilas sobre as tradiccedilotildees
da cultura pankararu
Dia 1
Ao chegar no aeroporto de Paulo Afonso Patriacutecia Pankararu viria me buscar para me
levar para Pankararu e assim se deu Foi meu primeiro contato com um dos
pankararus logo ela me contou sobre a histoacuteria e situaccedilatildeo atual do seu povo os
conflitos existentes no momento entre os indiacutegenas e os posseiros e toda a
problemaacutetica decorrente disso
Cheguei agrave noite na aldeia Brejo dos Padres onde fui acolhido na casa de Geo e sua
famiacutelia laacute encontrei Ilana Majerowicz com quem faria a mediaccedilatildeo do projeto e outras
figuras que seriam atores importantes do experimento em Pankararu Fernando
Monteiro dos Santos ou Fernandatildeo como eacute chamado uma das lideranccedilas da aldeia
Brejo dos Padres Ewerton e Antocircnio Neto ambos ativos no Ponto de Cultura Indiacutegena
aleacutem da esposa de Geo Rosacircngela e suas duas filhas pequenas
Nesse nosso primeiro encontro jaacute estabelecemos algumas metas do nosso projeto
irmos encontrar as ceramistas na aldeia Tapera mapearmos figuras importantes que
pudessem compartilhar diferentes conhecimentos sobre Pankararu conosco e tambeacutem
locais no qual esse experimento pudesse ocorrer na aldeia
Dia 2
Acordamos cedo no segundo dia e jaacute fomos para a aldeia Tapera para encontrarmos a
ceramista Luciene sobrinha de Mercinha que jaacute havia preparado um pote
especiacuteficamente para o nosso projeto Chegando laacute fizemos uma pequena entrevista
com ela pedimos para que nos contasse um pouco do seu processo como havia
aprendido a arte da ceracircmica e o que isso significava para ela Ela natildeo foi de muitas
palavras e nos disse simplismente que havia aprendido todo o processo da ceracircmica
vendo suas parentes mais velhas fazendo e repetia esse processo Nesse momento a
forma de comunicaccedilatildeo era ainda muito nova para mim sendo um pouco difiacutecil entender
o ritmo de diaacutelogo mais apropriado com os pankararu
Luciene jaacute havia preparado o pote especiacuteficamente para o projeto e parecia perfeito
para o dispositivo Era necessaacuteria uma boca grande o suficiente para poder entrar o
Raspbery Pi junto com o alto falante ao mesmo tempo que era necessaacuterio um buraco
na parte de baixo do pote para sair os cabos de energia e do mouse e teclado para o
Raspberry
Fiz alguns testes com o pote ali mesmo e o tudo funcionou Geo fez o primeiro canto
dentro do pote e escutamos pela primeira vez um toante pankararu entrar no pote e
depois ser tocado de dentro dele para escutarmos e foi um momento muito bonito
Embora o pote estivesse moldado ele precisava ainda secar e ir para a queima e aiacute
sim estaria pronto para ser colocado como dispositivo e jaacute que isso iria demorar ainda
alguns dias decidimos pegar alguns potes jaacute prontos que haviam disponiacuteveis para
seguirmos com o experimento enquanto o pote definitivo natildeo estivesse pronto
Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento
Fotografia de Ilana Majerowicz
Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute
Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos
documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua
luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia
ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote
natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa
naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote
pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo
indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no
Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns
testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara
qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira
criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote
Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor
Dia 3
No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac
produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles
haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia
Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas
viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas
Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde
ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas
tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro
lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa
tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e
ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos
noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer
mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia
mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu
As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo
liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu
toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem
vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio
tupinambaacutersquo esse simrdquo
A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio
das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso
das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A
cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e
antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria
expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir
da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo
iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e
a ldquoinduacutestria culturalrdquo
Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de
transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de
Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30
recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu
Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos
importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas
pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos
iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute
Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo
de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas
por essas flautas [3]
Dia 4
A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a
perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre
a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos
Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente
pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante
Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos
encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada
devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e
esposas no dia anterior da retirada
Fernando sobre os toantes
ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados
noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados
que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem
diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais
velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu
dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada
toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um
pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o
praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam
lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa
memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele
vem ensinarrdquo
A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do
sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e
como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os
encantados
Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras
Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando
era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos
Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz
Dia 5
Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo
nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele
Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo
Fotografia do autor
Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que
atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e
revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus
poemas para o dispositivo
A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os
pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se
repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que
segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura
destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em
detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu
somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos
mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse
ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos
debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e
sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu
vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que
manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade
desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura
Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas
externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em
seu entorno
Dia 6
No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso
projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana
antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois
queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do
dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a
uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico
Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa
de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na
casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma
entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a
tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo
que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se
do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia
de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de
Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo
consideradas as melhores regiatildeo
Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone
e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma
mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar
com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes
espalhados em difentes lugares longe de Pankararu
Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana
Majerowicz
Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia
que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz
de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos
imemoriais
Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita
Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu
Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos
uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente
presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da
cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem
diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma
mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees
metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro
que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem
era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de
ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto
haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc
Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da
sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos
Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou
claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o
dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos
esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos
um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de
que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela
aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus
remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu
somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo
como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo
da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita
da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela
cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta
Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e
assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira
Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles
pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa
mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram
esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que
haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria
a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as
vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos
imemoriais
Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca
havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira
vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute
justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para
cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do
canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os
pankararus
Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura
pankararu
ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a
nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender
que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no
sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente
possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem
neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses
cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a
memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes
aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo
Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da
direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz
Dia 7
No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o
experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a
predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato
com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote
mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia
de falar com pote
Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz
Dia 8
A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num
acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e
indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e
outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio
certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares
para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo
muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica
Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees
estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele
mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por
completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos
presentes nesse experimento
Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz
Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de
aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir
de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra
pankararu
A Exposiccedilatildeo
Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as
residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador
(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as
obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das
diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee
Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu
Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes
cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do
puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento
possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo
de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios
registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a
residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em
Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro
do pote
Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias
para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no
espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados
num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias
indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias
artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus
vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo
Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia
que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou
intacto em Salvador para ser exposto
Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que
aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar
colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com
aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros
indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo
toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora
um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as
diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes
em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e
terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas
indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o
dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e
atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu
Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a
experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a
cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que
interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta
daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes
camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do
museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os
natildeo-indiacutegenas
Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor
Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo
em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees
teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do
sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy
8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
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8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
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9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna
+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris
+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+
dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M
aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici
adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9
+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+
as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc
e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X
ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one
pageampqampf=false
11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
Dia 2
Acordamos cedo no segundo dia e jaacute fomos para a aldeia Tapera para encontrarmos a
ceramista Luciene sobrinha de Mercinha que jaacute havia preparado um pote
especiacuteficamente para o nosso projeto Chegando laacute fizemos uma pequena entrevista
com ela pedimos para que nos contasse um pouco do seu processo como havia
aprendido a arte da ceracircmica e o que isso significava para ela Ela natildeo foi de muitas
palavras e nos disse simplismente que havia aprendido todo o processo da ceracircmica
vendo suas parentes mais velhas fazendo e repetia esse processo Nesse momento a
forma de comunicaccedilatildeo era ainda muito nova para mim sendo um pouco difiacutecil entender
o ritmo de diaacutelogo mais apropriado com os pankararu
Luciene jaacute havia preparado o pote especiacuteficamente para o projeto e parecia perfeito
para o dispositivo Era necessaacuteria uma boca grande o suficiente para poder entrar o
Raspbery Pi junto com o alto falante ao mesmo tempo que era necessaacuterio um buraco
na parte de baixo do pote para sair os cabos de energia e do mouse e teclado para o
Raspberry
Fiz alguns testes com o pote ali mesmo e o tudo funcionou Geo fez o primeiro canto
dentro do pote e escutamos pela primeira vez um toante pankararu entrar no pote e
depois ser tocado de dentro dele para escutarmos e foi um momento muito bonito
Embora o pote estivesse moldado ele precisava ainda secar e ir para a queima e aiacute
sim estaria pronto para ser colocado como dispositivo e jaacute que isso iria demorar ainda
alguns dias decidimos pegar alguns potes jaacute prontos que haviam disponiacuteveis para
seguirmos com o experimento enquanto o pote definitivo natildeo estivesse pronto
Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento
Fotografia de Ilana Majerowicz
Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute
Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos
documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua
luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia
ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote
natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa
naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote
pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo
indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no
Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns
testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara
qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira
criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote
Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor
Dia 3
No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac
produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles
haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia
Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas
viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas
Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde
ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas
tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro
lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa
tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e
ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos
noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer
mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia
mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu
As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo
liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu
toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem
vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio
tupinambaacutersquo esse simrdquo
A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio
das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso
das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A
cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e
antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria
expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir
da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo
iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e
a ldquoinduacutestria culturalrdquo
Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de
transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de
Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30
recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu
Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos
importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas
pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos
iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute
Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo
de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas
por essas flautas [3]
Dia 4
A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a
perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre
a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos
Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente
pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante
Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos
encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada
devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e
esposas no dia anterior da retirada
Fernando sobre os toantes
ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados
noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados
que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem
diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais
velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu
dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada
toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um
pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o
praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam
lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa
memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele
vem ensinarrdquo
A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do
sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e
como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os
encantados
Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras
Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando
era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos
Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz
Dia 5
Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo
nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele
Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo
Fotografia do autor
Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que
atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e
revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus
poemas para o dispositivo
A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os
pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se
repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que
segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura
destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em
detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu
somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos
mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse
ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos
debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e
sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu
vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que
manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade
desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura
Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas
externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em
seu entorno
Dia 6
No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso
projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana
antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois
queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do
dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a
uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico
Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa
de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na
casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma
entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a
tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo
que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se
do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia
de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de
Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo
consideradas as melhores regiatildeo
Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone
e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma
mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar
com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes
espalhados em difentes lugares longe de Pankararu
Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana
Majerowicz
Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia
que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz
de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos
imemoriais
Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita
Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu
Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos
uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente
presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da
cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem
diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma
mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees
metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro
que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem
era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de
ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto
haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc
Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da
sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos
Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou
claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o
dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos
esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos
um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de
que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela
aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus
remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu
somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo
como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo
da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita
da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela
cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta
Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e
assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira
Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles
pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa
mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram
esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que
haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria
a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as
vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos
imemoriais
Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca
havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira
vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute
justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para
cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do
canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os
pankararus
Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura
pankararu
ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a
nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender
que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no
sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente
possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem
neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses
cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a
memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes
aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo
Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da
direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz
Dia 7
No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o
experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a
predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato
com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote
mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia
de falar com pote
Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz
Dia 8
A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num
acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e
indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e
outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio
certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares
para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo
muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica
Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees
estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele
mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por
completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos
presentes nesse experimento
Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz
Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de
aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir
de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra
pankararu
A Exposiccedilatildeo
Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as
residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador
(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as
obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das
diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee
Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu
Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes
cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do
puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento
possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo
de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios
registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a
residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em
Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro
do pote
Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias
para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no
espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados
num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias
indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias
artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus
vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo
Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia
que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou
intacto em Salvador para ser exposto
Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que
aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar
colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com
aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros
indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo
toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora
um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as
diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes
em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e
terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas
indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o
dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e
atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu
Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a
experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a
cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que
interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta
daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes
camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do
museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os
natildeo-indiacutegenas
Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor
Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo
em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees
teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do
sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy
8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
For Today
httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
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httpwwwvitruviusbeboek5h5htm
9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
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+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris
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dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M
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11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
Meu primeiro contato com o pote pankararu colocando o dispositivo dentro para testar o funcionamento
Fotografia de Ilana Majerowicz
Depois da visita agrave Luiciene tambeacutem em tapera fomos visitar o museu pessoal de Zeacute
Cocada conhecido anciatildeo da aldeia Tapera No seu museu ele guarda artefatos fotos
documentos peccedila de arteanato tudo para manter viva a histoacuteria de seu povo e sua
luta Quando Geo lhe conta sobre o projeto que estaacutevamos desenvolvendo na aldeia
ele pergunta ldquoOcirc seu Zeacute vocecirc jaacute falou com um pote rdquo e ele responde ldquoCom um pote
natildeo falei natildeo mas um dia um embuzeiro falou comigordquo e sua resposta foi numa
naturalidade daquele que natildeo se surpreenderia de ver cantos saindo de um pote
pankararu mostrando um pouco do animismo dentro da cosmovisatildeo
indiacutegena-pankararu Mais tarde fizemos um encontro no pequeno museu pankararu no
Brejo dos Padres com algumas pessoas do ponto de cultura onde fizemos alguns
testes de dinacircmica com o dispositivo poreacutem sem muito ecircxito Natildeo estava ainda clara
qual era a metodologia para o dispositivo captar as vozes pankararu De que maneira
criar a situaccedilatildeo em que as pessoas se sintam a vontade de falar com um pote
Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor
Dia 3
No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac
produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles
haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia
Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas
viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas
Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde
ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas
tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro
lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa
tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e
ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos
noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer
mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia
mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu
As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo
liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu
toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem
vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio
tupinambaacutersquo esse simrdquo
A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio
das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso
das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A
cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e
antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria
expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir
da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo
iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e
a ldquoinduacutestria culturalrdquo
Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de
transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de
Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30
recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu
Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos
importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas
pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos
iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute
Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo
de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas
por essas flautas [3]
Dia 4
A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a
perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre
a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos
Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente
pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante
Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos
encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada
devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e
esposas no dia anterior da retirada
Fernando sobre os toantes
ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados
noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados
que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem
diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais
velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu
dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada
toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um
pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o
praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam
lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa
memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele
vem ensinarrdquo
A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do
sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e
como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os
encantados
Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras
Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando
era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos
Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz
Dia 5
Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo
nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele
Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo
Fotografia do autor
Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que
atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e
revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus
poemas para o dispositivo
A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os
pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se
repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que
segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura
destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em
detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu
somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos
mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse
ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos
debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e
sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu
vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que
manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade
desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura
Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas
externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em
seu entorno
Dia 6
No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso
projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana
antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois
queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do
dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a
uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico
Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa
de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na
casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma
entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a
tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo
que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se
do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia
de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de
Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo
consideradas as melhores regiatildeo
Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone
e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma
mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar
com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes
espalhados em difentes lugares longe de Pankararu
Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana
Majerowicz
Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia
que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz
de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos
imemoriais
Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita
Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu
Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos
uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente
presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da
cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem
diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma
mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees
metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro
que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem
era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de
ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto
haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc
Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da
sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos
Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou
claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o
dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos
esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos
um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de
que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela
aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus
remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu
somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo
como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo
da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita
da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela
cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta
Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e
assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira
Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles
pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa
mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram
esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que
haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria
a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as
vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos
imemoriais
Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca
havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira
vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute
justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para
cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do
canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os
pankararus
Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura
pankararu
ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a
nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender
que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no
sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente
possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem
neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses
cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a
memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes
aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo
Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da
direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz
Dia 7
No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o
experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a
predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato
com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote
mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia
de falar com pote
Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz
Dia 8
A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num
acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e
indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e
outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio
certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares
para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo
muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica
Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees
estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele
mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por
completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos
presentes nesse experimento
Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz
Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de
aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir
de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra
pankararu
A Exposiccedilatildeo
Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as
residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador
(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as
obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das
diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee
Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu
Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes
cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do
puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento
possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo
de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios
registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a
residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em
Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro
do pote
Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias
para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no
espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados
num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias
indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias
artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus
vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo
Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia
que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou
intacto em Salvador para ser exposto
Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que
aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar
colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com
aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros
indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo
toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora
um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as
diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes
em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e
terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas
indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o
dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e
atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu
Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a
experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a
cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que
interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta
daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes
camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do
museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os
natildeo-indiacutegenas
Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor
Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo
em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees
teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do
sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy
8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
For Today
httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
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la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
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11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
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15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
Zeacute Cocada e seu museu pessoal Fotografia do autor
Dia 3
No terceiro dia encontramos Sebastian Gerlic curador do projeto Anna Campagnac
produtora do projeto aleacutem de Acircngelo e Loiaacute da equipe do registro aacuteudiovisual Eles
haviam acabado de chegar de outra aldeia onde estava ocorrendo outra residecircncia
Todas elas estavam ocorrendo num periacuteodo de tempo proacuteximo e eles faziam essas
viagens entre as aldeias registrando as residecircncias e coletando registros delas
Entrevista Baacuterbara na Raacutedio Cunhatilde
ldquoNatildeo eacute porque a gente seja indiacutegena que a gente natildeo tem o direito de conhecer novas
tecnologias a gente tem que ter conhecimento com que estaacute acontecendo no outro
lado do mundo e tambeacutem o que nunca vai deixar que a gente seja pankararu eacute nossa
tradiccedilatildeo eacute os nossos rituais eacute a gente natildeo tem vergonha de falar ldquoeu sou pankararurdquo e
ningueacutem vai tirar isso da gente a natildeo ser que a gente queira mas quem vai tirar somos
noacutes mesmo mas tecnologia avanccedilada natildeo vai tirar isso da gente natildeo vai sim trazer
mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia
mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu
As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo
liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu
toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem
vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio
tupinambaacutersquo esse simrdquo
A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio
das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso
das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A
cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e
antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria
expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir
da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo
iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e
a ldquoinduacutestria culturalrdquo
Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de
transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de
Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30
recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu
Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos
importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas
pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos
iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute
Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo
de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas
por essas flautas [3]
Dia 4
A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a
perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre
a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos
Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente
pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante
Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos
encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada
devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e
esposas no dia anterior da retirada
Fernando sobre os toantes
ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados
noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados
que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem
diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais
velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu
dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada
toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um
pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o
praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam
lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa
memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele
vem ensinarrdquo
A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do
sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e
como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os
encantados
Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras
Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando
era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos
Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz
Dia 5
Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo
nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele
Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo
Fotografia do autor
Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que
atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e
revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus
poemas para o dispositivo
A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os
pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se
repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que
segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura
destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em
detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu
somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos
mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse
ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos
debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e
sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu
vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que
manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade
desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura
Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas
externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em
seu entorno
Dia 6
No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso
projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana
antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois
queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do
dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a
uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico
Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa
de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na
casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma
entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a
tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo
que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se
do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia
de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de
Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo
consideradas as melhores regiatildeo
Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone
e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma
mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar
com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes
espalhados em difentes lugares longe de Pankararu
Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana
Majerowicz
Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia
que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz
de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos
imemoriais
Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita
Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu
Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos
uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente
presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da
cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem
diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma
mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees
metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro
que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem
era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de
ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto
haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc
Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da
sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos
Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou
claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o
dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos
esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos
um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de
que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela
aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus
remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu
somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo
como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo
da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita
da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela
cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta
Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e
assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira
Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles
pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa
mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram
esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que
haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria
a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as
vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos
imemoriais
Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca
havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira
vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute
justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para
cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do
canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os
pankararus
Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura
pankararu
ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a
nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender
que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no
sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente
possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem
neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses
cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a
memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes
aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo
Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da
direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz
Dia 7
No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o
experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a
predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato
com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote
mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia
de falar com pote
Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz
Dia 8
A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num
acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e
indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e
outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio
certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares
para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo
muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica
Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees
estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele
mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por
completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos
presentes nesse experimento
Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz
Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de
aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir
de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra
pankararu
A Exposiccedilatildeo
Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as
residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador
(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as
obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das
diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee
Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu
Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes
cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do
puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento
possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo
de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios
registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a
residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em
Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro
do pote
Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias
para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no
espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados
num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias
indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias
artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus
vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo
Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia
que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou
intacto em Salvador para ser exposto
Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que
aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar
colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com
aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros
indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo
toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora
um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as
diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes
em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e
terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas
indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o
dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e
atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu
Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a
experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a
cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que
interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta
daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes
camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do
museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os
natildeo-indiacutegenas
Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor
Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo
em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees
teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do
sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy
8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
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6 A study on Aristoxenus acoustic urns
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acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
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8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
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la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna
+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris
+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+
dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M
aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici
adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9
+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+
as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc
e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X
ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one
pageampqampf=false
11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
mais aprendizado pra gente pra gente aprender a lidar tambeacutem com as tecnologia
mostrar essas tecnologias estatildeo levando laacute pra fora que existe que existe pankararu
As tecnologias satildeo para isso eacute pra mostrar laacute fora iacutendio natildeo soacute eacute aquele de cabelo
liso de olhinho puxado natildeo iacutendio eacute aquele que natildeo tem vergonha de cantar o seu
toante o seu toreacute e danccedilar no terreiro sagrado e tambeacutem eacute aquele que natildeo tem
vergonha de dizer lsquoeu sou iacutendio pankararu eu sou um iacutendio pataxoacute eu sou um iacutendio
tupinambaacutersquo esse simrdquo
A partir dessa fala Baacuterbara reafirma o potencial de preservaccedilatildeo difusatildeo e intercacircmbio
das novas tecnologia no contexto das comunidades indiacutegenas e que natildeo seraacute pelo uso
das novas ferramentas de comunicaccedilatildeo que a cultura pankararu iraacute se apagar A
cultura pankararu eacute um exemplo vivo dessa reafirmaccedilatildeo constante reinvenccedilatildeo e
antropofagia em relaccedilatildeo ao que vem de fora de sua cultura Ironicamente a proacutepria
expediccedilatildeo folcloacuterica de 1938 da qual esse projeto eacute em parte inspirado surgiu a partir
da convicccedilatildeo de Maacuterio de Andrade que as manifestaccedilotildees culturais ditas ldquofolcloacutericasrdquo
iriam rapidamente desaparecer com o acesso aos meios de comunicaccedilatildeo em massa e
a ldquoinduacutestria culturalrdquo
Um exemplo praacutetico e bem simples de como a tecnologia tem natildeo soacute o poder de
transmitir memoacuterias culturais mas tambeacutem revivecirc-las Nesse trecho do artigo de
Renato Athias ele conta como as fotografias tiradas por Carlos Estevatildeo nos anos 30
recuperou a tradiccedilatildeo das flautas nos rituais pankararu
Carlos Estevatildeo publicou um conjunto de fotografias que registram pessoas e momentos
importantes dos Xukuru-Kariri Fulni-ocirc e Pankararu Essas fotografias certamente feitas
pela sua ldquoRolleiflexrdquo foram muito bem selecionadas e satildeo utilizadas muito bem pelos
iacutendios atualmente Por exemplo a fotografia que ele fez sobre os buacutezios do Toreacute
Pankararu foi recuperada por um grupo de jovens Pankararu e atraveacutes dela esse grupo
de jovens revitalizou a confecccedilatildeo dos buacutezios (flautas longas) e as muacutesicas produzidas
por essas flautas [3]
Dia 4
A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a
perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre
a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos
Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente
pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante
Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos
encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada
devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e
esposas no dia anterior da retirada
Fernando sobre os toantes
ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados
noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados
que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem
diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais
velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu
dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada
toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um
pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o
praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam
lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa
memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele
vem ensinarrdquo
A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do
sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e
como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os
encantados
Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras
Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando
era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos
Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz
Dia 5
Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo
nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele
Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo
Fotografia do autor
Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que
atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e
revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus
poemas para o dispositivo
A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os
pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se
repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que
segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura
destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em
detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu
somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos
mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse
ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos
debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e
sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu
vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que
manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade
desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura
Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas
externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em
seu entorno
Dia 6
No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso
projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana
antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois
queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do
dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a
uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico
Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa
de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na
casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma
entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a
tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo
que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se
do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia
de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de
Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo
consideradas as melhores regiatildeo
Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone
e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma
mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar
com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes
espalhados em difentes lugares longe de Pankararu
Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana
Majerowicz
Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia
que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz
de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos
imemoriais
Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita
Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu
Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos
uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente
presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da
cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem
diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma
mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees
metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro
que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem
era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de
ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto
haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc
Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da
sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos
Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou
claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o
dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos
esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos
um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de
que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela
aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus
remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu
somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo
como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo
da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita
da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela
cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta
Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e
assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira
Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles
pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa
mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram
esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que
haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria
a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as
vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos
imemoriais
Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca
havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira
vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute
justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para
cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do
canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os
pankararus
Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura
pankararu
ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a
nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender
que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no
sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente
possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem
neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses
cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a
memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes
aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo
Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da
direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz
Dia 7
No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o
experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a
predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato
com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote
mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia
de falar com pote
Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz
Dia 8
A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num
acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e
indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e
outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio
certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares
para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo
muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica
Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees
estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele
mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por
completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos
presentes nesse experimento
Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz
Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de
aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir
de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra
pankararu
A Exposiccedilatildeo
Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as
residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador
(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as
obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das
diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee
Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu
Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes
cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do
puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento
possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo
de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios
registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a
residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em
Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro
do pote
Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias
para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no
espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados
num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias
indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias
artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus
vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo
Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia
que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou
intacto em Salvador para ser exposto
Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que
aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar
colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com
aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros
indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo
toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora
um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as
diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes
em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e
terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas
indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o
dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e
atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu
Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a
experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a
cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que
interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta
daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes
camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do
museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os
natildeo-indiacutegenas
Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor
Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo
em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees
teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do
sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy
8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
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la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna
+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris
+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+
dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M
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pageampqampf=false
11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
Dia 4
A tarde fizemos a entrevista com Fernando ele fala sobre a histoacuteria dos Pankararu a
perseguiccedilatildeo sofrida ao longo dos anos sua ida a Satildeo Paulo quando jovem Fala sobre
a questatildeo dos Toantes como eles vecircm em sonhos que se perdeu a liacutengua nativa dos
Pankararu mas ela continua viva atraveacutes dos toantes que vem subconscientemente
pelos sonhos Fala sobre a perseguiccedilatildeo que os indiacutegenas sofreram E canta um toante
Ele fala do processo de retirada do barro que eacute necessaacuterio o pedido de permissatildeo dos
encantados para se retirar a terra que aqueles envolvidos no processo da retirada
devemrdquoestar com o corpo limpordquo ou seja privado de relaccedilotildees com seus maridos e
esposas no dia anterior da retirada
Fernando sobre os toantes
ldquoOs nossos toantes eles satildeo memoacuterias eles satildeo um docircm dos nossos antepassados
noacutes natildeo temos a letra ele eacute toante que vem naturalmente pelos nossos encantados
que natildeo nos permitem dizer a letra tem algum que eu posso ateacute cantar mas tem
diversos que noacutes natildeo podemos Eles vecircm dos nossos antepassados os iacutendio mais
velhos ele natildeo eacute escrito ele estaacute na nossa memoacuteria entatildeo cada um de noacutes pankararu
dentro da nossa famiacutelia de nossa bisavoacute Maria Caluacute e outros nossos bisavocircs Cada
toante ele tem um dono um encantado e esse encantado eu posso dizer de um
pankarareacute dandarureacute que eacute um nome de um encantado cada tonanquiaacute que eacute o
praiaacute ele tem um nome e todos eles tecircm cada um 25 toantes que vocecircs chamam
lsquomuacutesicarsquo ele eacute pela natureza que nos ensina a noite (nos sonhos) entatildeo fica na nossa
memoacuteria Se vocecirc natildeo tentar guarda ele na mente ele naturalmente com o tempo ele
vem ensinarrdquo
A partir dessa fala de Fernando podemos compreender um pouco da complexidade do
sistema de crenccedilas pankararu e como se daacute a dinacircmica do canto como memoacuteria e
como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os
encantados
Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras
Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando
era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos
Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz
Dia 5
Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo
nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele
Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo
Fotografia do autor
Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que
atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e
revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus
poemas para o dispositivo
A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os
pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se
repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que
segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura
destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em
detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu
somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos
mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse
ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos
debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e
sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu
vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que
manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade
desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura
Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas
externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em
seu entorno
Dia 6
No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso
projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana
antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois
queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do
dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a
uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico
Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa
de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na
casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma
entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a
tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo
que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se
do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia
de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de
Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo
consideradas as melhores regiatildeo
Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone
e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma
mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar
com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes
espalhados em difentes lugares longe de Pankararu
Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana
Majerowicz
Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia
que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz
de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos
imemoriais
Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita
Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu
Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos
uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente
presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da
cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem
diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma
mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees
metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro
que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem
era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de
ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto
haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc
Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da
sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos
Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou
claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o
dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos
esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos
um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de
que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela
aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus
remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu
somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo
como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo
da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita
da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela
cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta
Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e
assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira
Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles
pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa
mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram
esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que
haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria
a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as
vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos
imemoriais
Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca
havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira
vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute
justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para
cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do
canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os
pankararus
Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura
pankararu
ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a
nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender
que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no
sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente
possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem
neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses
cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a
memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes
aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo
Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da
direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz
Dia 7
No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o
experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a
predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato
com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote
mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia
de falar com pote
Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz
Dia 8
A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num
acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e
indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e
outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio
certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares
para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo
muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica
Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees
estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele
mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por
completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos
presentes nesse experimento
Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz
Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de
aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir
de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra
pankararu
A Exposiccedilatildeo
Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as
residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador
(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as
obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das
diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee
Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu
Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes
cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do
puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento
possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo
de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios
registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a
residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em
Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro
do pote
Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias
para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no
espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados
num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias
indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias
artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus
vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo
Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia
que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou
intacto em Salvador para ser exposto
Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que
aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar
colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com
aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros
indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo
toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora
um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as
diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes
em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e
terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas
indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o
dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e
atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu
Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a
experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a
cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que
interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta
daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes
camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do
museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os
natildeo-indiacutegenas
Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor
Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo
em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees
teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do
sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy
8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
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la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
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dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M
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pageampqampf=false
11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
como os sonhos tecircm um papel central na comunicaccedilatildeo dos pankararu com os
encantados
Entrevista com Rosa da AMIGP (Associaccedilatildeo das Mulheres Indiacutegenas Guerreiras
Pankararu) onde ela canta algumas canccedilotildees que seus avoacutes cantavam para ela quando
era crianccedila e ressalta tambeacutem a importacircncia dos sonhos
Entrevista e dinacircmica com Fernandatildeo Na foto Loiaacute Fernandatildeo e eu Fotografia de Ilana Majerowicz
Dia 5
Fomos ao topo do cruzeiro gravar uma entrevista com geo e naquela perspectiva Geo
nos falou um pouco sobre significado da terra Pankararu para ele
Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo
Fotografia do autor
Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que
atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e
revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus
poemas para o dispositivo
A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os
pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se
repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que
segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura
destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em
detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu
somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos
mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse
ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos
debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e
sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu
vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que
manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade
desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura
Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas
externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em
seu entorno
Dia 6
No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso
projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana
antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois
queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do
dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a
uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico
Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa
de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na
casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma
entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a
tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo
que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se
do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia
de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de
Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo
consideradas as melhores regiatildeo
Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone
e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma
mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar
com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes
espalhados em difentes lugares longe de Pankararu
Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana
Majerowicz
Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia
que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz
de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos
imemoriais
Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita
Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu
Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos
uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente
presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da
cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem
diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma
mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees
metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro
que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem
era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de
ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto
haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc
Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da
sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos
Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou
claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o
dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos
esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos
um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de
que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela
aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus
remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu
somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo
como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo
da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita
da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela
cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta
Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e
assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira
Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles
pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa
mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram
esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que
haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria
a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as
vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos
imemoriais
Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca
havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira
vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute
justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para
cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do
canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os
pankararus
Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura
pankararu
ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a
nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender
que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no
sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente
possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem
neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses
cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a
memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes
aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo
Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da
direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz
Dia 7
No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o
experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a
predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato
com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote
mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia
de falar com pote
Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz
Dia 8
A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num
acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e
indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e
outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio
certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares
para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo
muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica
Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees
estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele
mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por
completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos
presentes nesse experimento
Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz
Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de
aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir
de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra
pankararu
A Exposiccedilatildeo
Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as
residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador
(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as
obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das
diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee
Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu
Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes
cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do
puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento
possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo
de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios
registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a
residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em
Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro
do pote
Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias
para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no
espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados
num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias
indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias
artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus
vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo
Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia
que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou
intacto em Salvador para ser exposto
Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que
aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar
colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com
aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros
indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo
toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora
um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as
diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes
em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e
terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas
indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o
dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e
atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu
Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a
experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a
cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que
interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta
daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes
camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do
museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os
natildeo-indiacutegenas
Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor
Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo
em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees
teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do
sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy
8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
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httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
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la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
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pageampqampf=false
11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
Geo gravando seu depoimento no alto do Cruzeiro com vista para a reserva Pankararu ao fundo
Fotografia do autor
Mais tarde fomos para a AMIGP encontrar Antocircnio Ciacutecero um poeta pankararu que
atualmente reside em Petrolina mas que estaacute sempre conectado com a cultura e
revindicaccedilotildees do seu povo Fizemos uma dinacircmica para ele declamar alguns de seus
poemas para o dispositivo
A partir da declamaccedilatildeo dos poemas de Ciacutecero foi iniciada um debate enre os
pankararu presentes sobre a questatildeo do machismo na aldeia e de que forma pode-se
repensar o papel das mulheres na aldeia sem que isso desestruture o tecido social que
segura as tradiccedilotildees ancestrais pankararu por tanto tempo como natildeo causar disruptura
destrutiva mudando as dinacircmicas de gecircnero dentro da comunidade Natildeo entrarei em
detalhes sobre o que foi debatido esse eacute um assunto que diz respeito aos pankararu
somente envolvendo aspectos de sua cultura que se manteacutem secretos como parte dos
mecanismos de proteccedilatildeo de suas tradiccedilotildees O que quero apontar a partir desse
ocorrido eacute como a comunidade pankararu natildeo estaacute de forma alguma desassociada dos
debates que ocorre no acircmbito global no caso a questatildeo dos direitos das mulheres e
sua falta de representatividade nos instrumentos de poder A comunidade Pankararu
vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que
manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade
desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura
Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas
externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em
seu entorno
Dia 6
No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso
projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana
antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois
queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do
dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a
uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico
Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa
de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na
casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma
entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a
tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo
que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se
do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia
de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de
Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo
consideradas as melhores regiatildeo
Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone
e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma
mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar
com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes
espalhados em difentes lugares longe de Pankararu
Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana
Majerowicz
Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia
que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz
de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos
imemoriais
Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita
Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu
Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos
uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente
presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da
cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem
diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma
mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees
metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro
que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem
era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de
ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto
haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc
Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da
sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos
Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou
claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o
dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos
esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos
um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de
que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela
aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus
remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu
somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo
como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo
da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita
da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela
cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta
Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e
assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira
Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles
pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa
mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram
esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que
haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria
a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as
vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos
imemoriais
Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca
havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira
vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute
justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para
cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do
canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os
pankararus
Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura
pankararu
ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a
nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender
que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no
sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente
possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem
neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses
cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a
memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes
aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo
Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da
direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz
Dia 7
No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o
experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a
predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato
com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote
mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia
de falar com pote
Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz
Dia 8
A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num
acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e
indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e
outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio
certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares
para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo
muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica
Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees
estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele
mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por
completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos
presentes nesse experimento
Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz
Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de
aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir
de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra
pankararu
A Exposiccedilatildeo
Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as
residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador
(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as
obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das
diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee
Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu
Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes
cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do
puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento
possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo
de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios
registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a
residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em
Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro
do pote
Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias
para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no
espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados
num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias
indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias
artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus
vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo
Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia
que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou
intacto em Salvador para ser exposto
Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que
aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar
colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com
aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros
indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo
toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora
um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as
diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes
em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e
terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas
indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o
dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e
atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu
Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a
experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a
cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que
interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta
daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes
camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do
museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os
natildeo-indiacutegenas
Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor
Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo
em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees
teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do
sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy
8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
For Today
httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
httpwwwvitruviusbeboek5h5htm
9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
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11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
vive no contemporacircneo natildeo eacute por se tratar de uma cultura tradicional indiacutegena que
manteacutem os rituais desde tempos imemoriais que se vive numa temporalidade
desconectada do que ocorre nacional ou globalmente pelo contraacuterio a cultura
Pankararu estaacute em constante ebuliccedilatildeo natildeo soacute sendo transformada pelas forccedilas
externas mas tambeacutem sendo atores ativos de transformaccedilatildeo de toda sociedade em
seu entorno
Dia 6
No sexto dia recebemos a notiacutecia de que o pote feito especialmente para o nosso
projeto de residecircncia estava finalmente pronto depois de ser modelado uma semana
antes da minha chegada na aldeia passou pelo processo de secagem e depois
queima Com isso todo o ciclo do artefato estaria completo o desenvolvimento do
dispositivo eletrocircnico e a colaboraccedilatildeo com as artesatildes pankararu firmando enfim a
uniatildeo do barro pankararu com o siliacutecio do material eletrocircnico
Fomos entatildeo toda a equipe do projeto juntos de encontro ao pote novamente na casa
de Mercinha e sua sobrinha Luciene artesatildees resposaacuteveis pela feitura do pote Na
casinha onde Dona Mercinha guarda as suas obra de ceracircmica gravamos uma
entrevista com ela Perguntamos sobre sua relaccedilatildeo com a ceracircmica como eacute passada a
tradiccedilatildeo e a importacircncia dessa arte em Pankararu Ela nos contou que aprendeu tudo
que sabe vendo as parentes fazendo a ceracircmica desde que era bem nova lembrou-se
do tempo de sua matildee em que ela atravessava o rio Satildeo Francisco com a canoa cheia
de peccedilas para vender em Petrolacircndia velha (agora inundada por conta da represa de
Itaparica) Contou tambeacutem com orgulho sobre a qualidade de suas peccedilas sendo
consideradas as melhores regiatildeo
Durante a entrevista preparei o Raspberry Pi dentro do pote final junto com o microfone
e o alto-falante e logo depois da entrevista convidamos a Mercinha deixar uma
mensagem com sua voz dentro do pote ela relutou bastante com a proposta de falar
com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes
espalhados em difentes lugares longe de Pankararu
Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana
Majerowicz
Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia
que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz
de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos
imemoriais
Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita
Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu
Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos
uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente
presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da
cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem
diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma
mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees
metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro
que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem
era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de
ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto
haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc
Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da
sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos
Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou
claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o
dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos
esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos
um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de
que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela
aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus
remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu
somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo
como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo
da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita
da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela
cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta
Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e
assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira
Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles
pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa
mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram
esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que
haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria
a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as
vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos
imemoriais
Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca
havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira
vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute
justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para
cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do
canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os
pankararus
Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura
pankararu
ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a
nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender
que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no
sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente
possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem
neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses
cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a
memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes
aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo
Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da
direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz
Dia 7
No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o
experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a
predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato
com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote
mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia
de falar com pote
Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz
Dia 8
A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num
acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e
indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e
outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio
certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares
para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo
muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica
Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees
estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele
mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por
completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos
presentes nesse experimento
Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz
Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de
aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir
de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra
pankararu
A Exposiccedilatildeo
Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as
residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador
(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as
obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das
diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee
Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu
Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes
cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do
puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento
possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo
de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios
registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a
residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em
Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro
do pote
Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias
para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no
espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados
num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias
indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias
artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus
vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo
Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia
que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou
intacto em Salvador para ser exposto
Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que
aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar
colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com
aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros
indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo
toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora
um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as
diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes
em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e
terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas
indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o
dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e
atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu
Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a
experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a
cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que
interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta
daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes
camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do
museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os
natildeo-indiacutegenas
Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor
Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo
em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees
teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do
sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy
8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
For Today
httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
httpwwwvitruviusbeboek5h5htm
9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
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11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
com o pote mas acabou usando o pote para dar uma mensagem aos seus parentes
espalhados em difentes lugares longe de Pankararu
Dinacircmica e entrevista com Dona Mercinha no local onde ela guarda suas peccedilas Fotografia de Ilana
Majerowicz
Dessa forma sua voz foi a primeira a ressoar dentro do pote era de muita importacircncia
que em meio a todas as Vozes da Terra Pankararu houvesse em primeiro lugar a voz
de uma das artesatildes que modelam a terra onde vivem em obras de arte desde tempos
imemoriais
Depois da entrevista com mercinha todos presente naquele momento Da esquerda para direita
Luciene Geo eu Dona Mercinha Anna Ilana Loiaacute e Acircngelo Fotofia de Patriacutecia Pankararu
Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos
uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente
presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da
cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem
diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma
mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees
metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro
que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem
era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de
ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto
haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc
Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da
sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos
Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou
claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o
dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos
esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos
um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de
que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela
aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus
remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu
somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo
como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo
da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita
da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela
cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta
Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e
assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira
Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles
pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa
mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram
esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que
haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria
a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as
vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos
imemoriais
Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca
havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira
vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute
justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para
cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do
canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os
pankararus
Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura
pankararu
ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a
nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender
que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no
sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente
possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem
neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses
cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a
memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes
aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo
Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da
direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz
Dia 7
No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o
experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a
predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato
com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote
mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia
de falar com pote
Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz
Dia 8
A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num
acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e
indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e
outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio
certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares
para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo
muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica
Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees
estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele
mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por
completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos
presentes nesse experimento
Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz
Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de
aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir
de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra
pankararu
A Exposiccedilatildeo
Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as
residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador
(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as
obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das
diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee
Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu
Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes
cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do
puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento
possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo
de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios
registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a
residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em
Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro
do pote
Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias
para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no
espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados
num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias
indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias
artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus
vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo
Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia
que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou
intacto em Salvador para ser exposto
Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que
aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar
colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com
aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros
indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo
toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora
um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as
diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes
em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e
terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas
indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o
dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e
atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu
Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a
experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a
cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que
interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta
daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes
camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do
museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os
natildeo-indiacutegenas
Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor
Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo
em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees
teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do
sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy
8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
For Today
httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
httpwwwvitruviusbeboek5h5htm
9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
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11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
Agora estando o pote de ceracircmica feito especialmente para a residecircncia em matildeos
uma outra camada poeacutetica se colocou no trabalho que ainda natildeo era totalmente
presente na residecircncia Coletamos aacuteudios diversos abordando diferentes aspectos da
cultura pankararu foi explorada a importacircncia da ceracircmica para a cultura e tambeacutem
diversos laccedilos afetivos que se criaram Com isso surge a questatildeo afinal de que forma
mediar esse dispositivo De que maneira conectar o povo pankararu nessas relaccedilotildees
metafoacutericas e sensiacuteveis presentes no artefato Na entrevista com Mercinha ficou claro
que simplesmente a proposta de falar com o pote natildeo parecia ser a melhor abordagem
era de certa forma impositiva demais e colocava aquele que interagia numa posiccedilatildeo de
ldquoter o que dizerrdquo e isso muitas vezes natildeo os interessava As dinacircmicas de canto
haviam funcionado bem mas ainda natildeo havia compreendido o porquecirc
Mais tarde no mesmo dia Geo convidou eu e Ilana para fazermos uma visita na casa da
sua vizinha Maria Rosa da Conceiccedilatildeo curandeira e rezadeira da aldeia Brejo dos
Padres para mostra-la o pote e propor alguma dinacircmica Foi laacute que para mim ficou
claro que a maneira mais potente e fluida que os pankararu interagiam com o
dispositivo era atraveacutes dos toantes Ao chegar na sua casa Rosa estava nos
esperando no seu ldquosalatildeordquo local destinado a fazer as suas rezas e curas Conversamos
um pouco ela pouco a pouco foi nos contando do seu cotidiano como rezadeira de
que apesar de o seu pai ter sido um curandeiro reconhecido em Brejo dos Padres ela
aprendera tudo sozinha atraveacutes de sonhos vecircm as suas rezas a receita dos seus
remeacutedios ldquofoi um dom que Deus me deurdquo ela disse Nos contou que os pankararu
somente vatildeo para o hospital quando a cura da reza natildeo daacute jeito ldquoos homi da canetardquo
como ela chama os meacutedicos (eacute interessante notar que eacute feita precisamente a distinccedilatildeo
da cura da reza e da cura do hospital como sendo da oralidade do canto e outra escrita
da caneta) Assim que senti que ela jaacute estava agrave vontade conosco sugeri que ela
cantasse um toante para o pote e ver ela mesma o pote para ela cantando de volta
Ela soacute conseguia rir do absurdo que era cantar para o pote mas Geo a animou e
assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira
Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles
pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa
mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram
esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que
haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria
a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as
vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos
imemoriais
Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca
havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira
vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute
justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para
cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do
canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os
pankararus
Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura
pankararu
ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a
nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender
que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no
sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente
possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem
neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses
cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a
memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes
aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo
Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da
direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz
Dia 7
No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o
experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a
predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato
com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote
mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia
de falar com pote
Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz
Dia 8
A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num
acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e
indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e
outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio
certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares
para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo
muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica
Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees
estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele
mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por
completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos
presentes nesse experimento
Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz
Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de
aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir
de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra
pankararu
A Exposiccedilatildeo
Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as
residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador
(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as
obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das
diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee
Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu
Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes
cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do
puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento
possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo
de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios
registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a
residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em
Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro
do pote
Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias
para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no
espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados
num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias
indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias
artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus
vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo
Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia
que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou
intacto em Salvador para ser exposto
Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que
aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar
colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com
aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros
indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo
toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora
um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as
diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes
em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e
terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas
indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o
dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e
atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu
Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a
experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a
cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que
interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta
daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes
camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do
museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os
natildeo-indiacutegenas
Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor
Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo
em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees
teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do
sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy
8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
For Today
httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
httpwwwvitruviusbeboek5h5htm
9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
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pageampqampf=false
11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
assegurou acompanhar ela no toante Com pote em cima de um banco de madeira
Rosa e Geo pegaram seus maracaacutes e comeccedilaram Foi um toante muita forccedila eles
pareciam realmente estarem invocando ali mesmo os encantados para o pote Rosa
mesmo enquanto cantava se segurava para natildeo rir e assim que eles terminaram
esperamos alguns segundos e o pote responde repetindo de dentro dele o toante que
haviam acabado de cantar Naquele momento o pote ganhou uma forccedila extraordinaacuteria
a terra proacutepria pankararu moldada com as proacuteprias matildeos pankararu ressoando as
vozes que naquele momento evocavam a memoacuteria viva dos toantes vindos de tempos
imemoriais
Depois de terminado de tocar o toante de dentro do pote Rosa nos diz que nunca
havia escutado sua proacutepria voz gravada antes o fato disso ter acontecido pela primeira
vez atraveacutes de um pote de ceracircmica feito da terra onde ela viveu a vida toda por si soacute
justifica todo o experimento Depois do primeiro toante eles logo se animaram para
cantar mais outros quatro toantes para o pote ficando bem claro que a dinacircmica do
canto e da escuta da proacutepria voz era a maneira que mais interessava e engajava os
pankararus
Relato de Geo ao perguntarmos sobre o significado dos toantes para a cultura
pankararu
ldquoDentro da espiritualidade esses cantos representam pelos nossos encantados a
nossa forccedila a nossa feacute a nossa alegria foi um dom que Deus nos deu de apreender
que natildeo eacute noacutes que compocircs que nem uma muacutesica popular brasileira neacute entatildeo aiacute jaacute eacute no
sonho eles vem ensinar em sonho a chegada deles traz esses cantos que a gente
possa aprender pra taacute ensinando os meninos pra livrar do mal mal quer dizer do aleacutem
neacute dos espiacuteritos malignos que adoece as crianccedilas que adoecem a gente esses
cantos representam tudo isso e a nossa vida e a nossa alegria o nosso viver a
memoacuteria dos nossos antepassados que aprenderam com eles e hoje noacutes
aprenderemos com o conviacutevio aqui dentro do povo com os nossos mais velhosldquo
Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da
direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz
Dia 7
No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o
experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a
predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato
com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote
mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia
de falar com pote
Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz
Dia 8
A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num
acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e
indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e
outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio
certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares
para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo
muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica
Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees
estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele
mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por
completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos
presentes nesse experimento
Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz
Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de
aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir
de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra
pankararu
A Exposiccedilatildeo
Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as
residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador
(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as
obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das
diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee
Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu
Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes
cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do
puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento
possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo
de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios
registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a
residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em
Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro
do pote
Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias
para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no
espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados
num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias
indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias
artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus
vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo
Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia
que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou
intacto em Salvador para ser exposto
Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que
aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar
colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com
aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros
indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo
toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora
um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as
diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes
em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e
terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas
indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o
dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e
atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu
Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a
experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a
cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que
interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta
daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes
camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do
museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os
natildeo-indiacutegenas
Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor
Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo
em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees
teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do
sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy
8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
For Today
httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
httpwwwvitruviusbeboek5h5htm
9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna
+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris
+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+
dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M
aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici
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ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one
pageampqampf=false
11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
Momento do encontro com Rosa em sua casa Na foto da esquerda momento de nossa conversa na da
direita Geo cantando para o pote Fotografias de Ilana Majerowicz
Dia 7
No uacuteltimo dia de dinacircmicas com o pote fomos agrave escola Carlos Estevatildeo mostrando o
experimento nas salas de aula Com grandes grupos torna-se mais difiacutecil a
predisposiccedilatildeo na interaccedilatildeo com o artefato dentre as centenas de crianccedilas em contato
com o pote somente duas quebraram a timidez e cantaram dois toantes dentro do pote
mas essa uacutenica situaccedilatildeo jaacute foi capaz de gerar muitas risadas na sala de aula na ideia
de falar com pote
Dispositivo na escola estadual Carlos Estevatildeo Fotos de Ilana Majerowicz
Dia 8
A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num
acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e
indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e
outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio
certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares
para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo
muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica
Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees
estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele
mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por
completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos
presentes nesse experimento
Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz
Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de
aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir
de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra
pankararu
A Exposiccedilatildeo
Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as
residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador
(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as
obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das
diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee
Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu
Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes
cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do
puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento
possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo
de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios
registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a
residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em
Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro
do pote
Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias
para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no
espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados
num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias
indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias
artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus
vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo
Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia
que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou
intacto em Salvador para ser exposto
Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que
aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar
colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com
aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros
indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo
toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora
um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as
diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes
em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e
terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas
indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o
dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e
atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu
Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a
experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a
cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que
interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta
daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes
camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do
museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os
natildeo-indiacutegenas
Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor
Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo
em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees
teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do
sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy
8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
For Today
httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
httpwwwvitruviusbeboek5h5htm
9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna
+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris
+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+
dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M
aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici
adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9
+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+
as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc
e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X
ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one
pageampqampf=false
11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
Dia 8
A residecircncia durou somente oito dias mas saiacute de laacute com reais amizades num
acolhimento sem igual de Geo e sua famiacutelia e todas as pessoas envolvidas direta e
indiretamente no projeto O engajamento dos pankararu Geo Patriacutecia Ewerton Neto e
outros foi o que tornou o projeto em realidade abrindo todas as portas desde o iniacutecio
certificando o contato com as louceiras com os anciatildeos e nos mostrando os lugares
para eles sagrados Pankararu confirmou o que jaacute tinha ouvido falar de ser um povo
muito acolhedor e aberto a novas ideias Tratou-se de fato de uma cocriaccedilatildeo artiacutestica
Natildeo soacute o pote fora modelado por matildeos pankararu mas as ideias e situaccedilotildees
estruturantes desse projeto tambeacutem o foram Ao fim da residecircncia Geo jaacute havia ele
mesmo entroduzido o pote para tantos outros pankararus que jaacute dominava por
completo os conceitos envolvidos nessa obra os aspectos poeacuteticos e metafoacutericos
presentes nesse experimento
Despedida de Geo Rosacircngela e Rosa Fotografia de Ilana Majerowicz
Ao fim da residecircncia a memoacuteria do dispositivo contava com mais de 70 arquivos de
aacuteudios gravados falas toantes cantigas sons da natureza e poesias Todos a partir
de vozes pankararu que estariam de agora em diante ressoando na proacutepria terra
pankararu
A Exposiccedilatildeo
Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as
residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador
(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as
obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das
diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee
Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu
Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes
cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do
puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento
possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo
de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios
registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a
residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em
Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro
do pote
Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias
para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no
espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados
num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias
indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias
artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus
vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo
Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia
que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou
intacto em Salvador para ser exposto
Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que
aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar
colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com
aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros
indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo
toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora
um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as
diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes
em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e
terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas
indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o
dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e
atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu
Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a
experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a
cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que
interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta
daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes
camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do
museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os
natildeo-indiacutegenas
Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor
Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo
em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees
teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do
sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy
8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
For Today
httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
httpwwwvitruviusbeboek5h5htm
9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna
+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris
+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+
dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M
aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici
adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9
+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+
as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc
e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X
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pageampqampf=false
11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
A Exposiccedilatildeo
Conforme o programa do projeteto ldquoArte Eletrocircnica Indiacutegenardquo depois de todas as
residecircncia concluiacutedas haveria uma exposiccedilatildeo no Museu de Arte Moderna de Salvador
(MAM-BA) no espaccedilo da capela do Solar do Unhatildeo estando expostas laacute todas as
obras cocriadas com indiacutegenas em cada uma das residecircncias artiacutesticas dentro das
diferentes etnias do Nordeste contempladas no projeto - Pataxoacute Pataxoacute-hatildehatildehatildee
Kariri-Xocoacute Karapotoacute Plak-ocirc Xocoacute Tupinambaacute e Pankararu
Para essa exposiccedilatildeo eu e Andreacute Anastaacutecio formulamos o dispositivo para diferentes
cenaacuterios jaacute ainda natildeo era certo a melhor forma de colocar esse artefato distante do
puacuteblico no espaccedilo de um museu Buscando a maior flexibilidade de funcionamento
possiacutevel programei no software duas possibilidades de interaccedilatildeo no dispositivo Modo
de reproduccedilatildeo aleatoacuteria onde o dispositivo tocaria em sequecircncia os aacuteudios
registrados em sua memoacuteria alternando entre aacuteudios os aacuteudios coletados durante a
residecircncia E o Modo eco com a mesma funcionalidade que foi utilizada em
Pankararu onde o dispositivo escuta grava e reproduz os sons projetados para dentro
do pote
Indiacutegenas de cada uma das etnias contempladas no projeto vieram das suas aldeias
para Salvador para participar da abertura da exposiccedilatildeo e tambeacutem trocar oficinas no
espaccedilo do museu sobre a cultura de cada um desses povos Ficaram todos alocados
num mesmo hostel funcionando entatildeo como um grande encontro de diferentes etnias
indiacutegenas do Nordeste partilhando entre si as diferentes experiecircncias das residecircncias
artiacutesticas atraveacutes dos cantos da culinaacuteria do artesanato e etc Quatro pankararus
vieram da aldeia representar sua etnia como parte do projeto da Thydewaacute Geo
Ewerton Neto e Antocircnio o poeta eles vieram trazendo o pote feito durante a residecircncia
que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou
intacto em Salvador para ser exposto
Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que
aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar
colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com
aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros
indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo
toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora
um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as
diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes
em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e
terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas
indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o
dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e
atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu
Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a
experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a
cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que
interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta
daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes
camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do
museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os
natildeo-indiacutegenas
Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor
Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo
em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees
teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do
sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
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2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
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4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
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5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
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6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
For Today
httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
httpwwwvitruviusbeboek5h5htm
9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
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11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
que havia ficado na casa de Geo que apesar da longa viagem de ocircnibus chegou
intacto em Salvador para ser exposto
Na abertura da exposiccedilatildeo a princiacutepio colocamos o pote para funcionar no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteria gerando interesse do puacuteblico mas natildeo ficava claro de que
aqueles aacuteudios foram captados por aquele mesmo pote Entatildeo para demostrar
colocamos no modo eco e Geo fez seu canto para o pote e o pote respondeu com
aquele mesmo canto saindo misteriosamente de dentro de si Rapidamente os outros
indiacutegenas se interessaram e depois disso natildeo parou mais ateacute o fim da exposiccedilatildeo
toantes dos mais diferentes tipos foram cantados para dentro do pote fazendo-o agora
um artefato que natildeo soacute ressoa as vozes pankararu mas serve de intercacircmbio para as
diversas vozes indiacutegenas cada uma com sua especificidade Os pankararu presentes
em seu espiacuterito caracteriacutesticamente acolhedor ficaram muito contentes que a arte e
terra de seu povo estava servindo de artefato ressonante das diversas culturas
indiacutegenas do nordeste Na diversidade dos aacuteudios gerada durante a exposiccedilatildeo o
dispositivo mostrou sua forma como ferramentamente que tem o poder de fortalecer e
atravessar comunidades de qual eacute sua significacircncia para aleacutem de Pankararu
Na abertura da exposiccedilatildeo compreendi o caraacutecter ldquopenetraacutevelrdquo da obra onde a
experiecircncia artiacutestica se daacute por completo no projetar a voz para o pote no conectar a
cultura ancestral do canto com a cultura ancestral ou seja para aqueles que
interagiam (maior parte foram os proacuteprios indiacutegenas) a obra era um bastante distinta
daquele que soacute a observavam a alguns passos de distacircncia Isso mostra as diferentes
camadas de leituras e sensaccedilotildees presentes na obra dentro do espaccedilo expositivo do
museu sendo essa distinccedilatildeo particularmente sensiacutevel entre os indiacutegenas e os
natildeo-indiacutegenas
Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor
Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo
em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees
teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do
sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy
8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
For Today
httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
httpwwwvitruviusbeboek5h5htm
9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna
+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris
+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+
dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M
aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici
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pageampqampf=false
11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
Momento de interaccedilatildeo dos indiacutegenas com o dispositivo durante a exposiccedilatildeo Fotografia do autor
Durante o periacuteodo restante da exposiccedilatildeo o pote funcionou somente no modo
reproduccedilatildeo aleatoacuteriardquo Por mais que tenha-se buscado uma autonomia do dispositivo
em suas capacidades de escuta e gravaccedilatildeo isso natildeo foi possiacutevel por questotildees
teacutecnicas Era ainda necessaacuteria a presenccedila de algueacutem com um bom conhecimento do
sistema para operar-lo e tornar possiacutevel o modo Eco
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
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8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
For Today
httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
httpwwwvitruviusbeboek5h5htm
9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
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+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris
+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+
dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M
aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici
adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9
+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+
as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc
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11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
Miolo de Pote
Os vasos de ceracircmica estatildeo presentes na histoacuteria de diversas civilizaccedilotildees humanas
sendo muitas vezes os potes de ceracircmica as uacutenicas evidecircncias restantes de
civilizaccedilotildees perdidas Eles tecircm o propoacutesito de preservar a comida o frescor da aacutegua
potaacutevel e acabam por preservar a memoacuteria da existecircncia daquela presenccedila humana Eacute
a terra queimada que traz a memoacuteria das matildeos que a modelaram marcas eternizadas
de gestos sobre a terra por aquelas matildeos vividas
O uso da ceracircmica como forma de expressatildeo artiacutestica humana datam desde 26000
AC vasos de ceracircmica estatildeo entre os itens mais frequentemente encontrados como
indiacutecio de atividade humana num dado local Na cultura chinesa por exemplo a histoacuteria
do sistema de escrita primitivo estaacute intimamente conectado a tais peccedilas Pode-se dizer
entatildeo que a ceracircmica teve um papel ativo na preservaccedilatildeo de memoacuteria e linguagem na
histoacuteria humana [15]
O uso de pote e vasos como artifiacutecio de amplificaccedilatildeo e reverberaccedilatildeo sonora datam
desde os tempos de Vetruacutevio no Impeacuterio Romano onde ele teorizou a utilizaccedilatildeo de
potes de ceracircmicas espalhados pelos teatros romanos para melhor propagaccedilatildeo sonora
das vozes dos atores em cena Pode-se encontrar em vaacuterias igrejas medievais
europeias vasos de bronze embutidos nas paredes para criar uma ambiecircncia sonora
especiacutefica delas reverberando as vozes das missas e cantos que laacute ocorrem [7]
O constante som que se escuta de dentro de um pote eacute chamado de Resonacircncia de
Helmhotz fazendo com que cada formato de pote reverbere vibraccedilotildees diferentes
Pode-se dizer objetivamente que cada pote tem a sua voz e reverbera os sons de uma
maneira uacutenica Em cada gravaccedilatildeo feita dentro desse pote haveraacute uma marca
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
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8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
For Today
httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
httpwwwvitruviusbeboek5h5htm
9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
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dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M
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as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc
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ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one
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11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
ressonante de seu corpo uma identidade sonora definida a partir do seu formato
escultoacuterico
Vozes da terra eacute uma metaacutefora em curso uma figura de linguagem construiacuteda a partir
da experiecircncia A relaccedilatildeo entre a terra o povo que por ela luta e suas vozes se daacute no
proacuteprio ato de interagir com o dispositivo Como obra artiacutestica esse artefato se
completa enquanto acontecimento poeacutetico de fato na interaccedilatildeo com os indiacutegenas
sendo eles os artesatildeos (no ato de fazer o pote) os atores (no ato do canto) e os
espectadores (no ato da auto-escuta vinda do pote) A funccedilatildeo do artista no caso dessa
obra eacute buscar construir e conduzir a maacutequina de maneira que o seu objetivo seja
alccedilando com a menor interferecircncia possiacutevel poreacutem sem perder de vista o aspecto das
relaccedilotildees afetivas que satildeo construiacutedas entre o proponente e os atores da obra Essa
obra eacute um conceito replicaacutevel e multiplicaacutevel com possibilidade de diferentes atores e
diferentes proponentes natildeo haacute uma verdade associada da a personalidade pessoal do
artista que defina os limites de possibilidades dessa iniciativa um aparelho autocircnomo
que atua em prol da memoacuteria das tradiccedilotildees orais
Esse aparelho difere dos equipamentos tradicionais utilizados por etnoacutelogos como
gravadores e fonoacutegrafos trata-se de um artefato relacional em que a proacutepria dinacircmica
de fala e escuta proacutepria da cultura oral estaacute programada em seus procedimentos O
antropoacutelogo Levi-Strauss na ementa do curso sobre folclore em que ministrou na USP
[12] aponta a dificuldade que o meacutetodo de gravaccedilatildeo de cantos em comunidades
indiacutegenas com os aparelhos disponiacuteveis na eacutepoca
ldquoO FONOacuteGRAFO - eacute ao mesmo tempo o meio mais simples e mais imperfeito
Imperfeito porque depende da boa vontade do sujeito em colocar-se na proximidade do
aparelho e executar ou cantar Exige principalmente entre populaccedilotildees indiacutegenas um
constrangimento tatildeo grande que agraves vezes eacute absolutamente impossiacutevel consegui-lo Si
pois tem a grande vantagem de ser extremamente faacutecil de manejar apresenta o
incoveniente de encontrar resistecircncia da parte do observadordquo
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy
8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
For Today
httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
httpwwwvitruviusbeboek5h5htm
9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna
+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris
+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+
dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M
aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici
adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9
+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+
as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc
e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X
ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one
pageampqampf=false
11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
No caso de Vozes da terra a proacutepria ceracircmica Pankararu funciona como esse
dispositivo captador e emissor a relaccedilatildeo com o aparelho se daacute de forma miacutestica e
metafoacuterica em sintonia com a proacutepria cosmovisatildeo animista indiacutegena
Trata-se tambeacutem de uma distinccedilatildeo no ldquocoraccedilatildeo da maacutequinardquo onde antes no tempo
que Levi-Strauss ministrou esse curso tratavam-se de aparelhos analoacutegicos mecacircnicos
sem inteligecircncia ou ldquoespiacuteritordquo proacuteprio Agora no aparelho de Vozes da Terra utilizando
linguagens de programaccedilatildeo ferramentas de reconhecimento sonoro a maacutequina dispotildee
de uma inteligecircncia proacutepria possibilitada pela tecnologia digital A inteligecircncia binaacuteria
da maacutequina tem procedimentos densos o suficiente para poder lidar com interaccedilotildees e
respostas relativamente complexas de maneira autocircnoma Dessa forma o que se
busca com o dispositivo em desenvolvimento eacute funcionar um mecanismo loacutegico que
tenha procedimentos sensiacuteveis o suficiente para atuarem em prol da cultura oral e da
significaccedilatildeo subjetiva humana O que se aponta aqui eacute que essa inteligecircncia mais
densa das maacutequinas contemporacircneas abra caminhos para que ela seja natildeo somente
ferramenta com utilidades maquinais praacuteticas e sim um Ente poeacutetico e catalisador
A linguagem falada eacute a forma com que o ser humano armazena e transmite
informaccedilatildeo A linguagem escrita iconograacutefica e outros modos de reproduccedilatildeo de
informaccedilatildeo satildeo maneiras com que os humanos encontraram de armazenar e transmitir
essas informaccedilotildees para aleacutem dos seus limites corpoacutereos Linguagem eacute memoria eacute o
coacutedigo pelo qual o ser humano aprendeu a codificar e decodificar o que se absorve do
ambiente ldquoeacute um elemento essencial do que se costuma chamar identidade individual
ou coletiva cuja busca eacute uma das atividades fundamentais dos indiviacuteduos e das
sociedadesrdquo (Le Goff 1992 p476)
A noccedilatildeo de histoacuteria surge com o encadeamento de memoacuterias que vatildeo aleacutem das
informaccedilotildees apreendidas por aquele corpo-presente o que foi absorto pelos corpos
antepassados eacute transmitido em sequecircncias encadeadas ateacute o corpo vivo no agora
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
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8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
For Today
httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
httpwwwvitruviusbeboek5h5htm
9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna
+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris
+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+
dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M
aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici
adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9
+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+
as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc
e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X
ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one
pageampqampf=false
11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
Esse encadeamento de memoacuterias pode ocorrer de forma escrita falada cantada
Na maneira escrita esse encadeamento se da de forma externa aos corpos e a
experiecircncia do corpo presente na tradiccedilatildeo oral essa memoacuteria esta sempre viva
transmutando-se no corpo daquele que a carrega o processo de acessar a memoacuteria no
ceacuterebro nao eacute simplesmente um ato se acessar mas uma constante releitura sobre o
que foi ali armazenado [13] A memoacuteria na tradiccedilatildeo oral eacute em si um ato criativo onde
peccedilas perdidas satildeo substituiacutedas de maneira consciente ou natildeo pelas memoacuterias vividas
e sonhadas daquele corpo presente
Desta forma o canto eacute uma das maneiras em que essas memoacuterias informaccedilotildees
experiecircncias podem se encadear coletivamente Atraveacutes dos mecanismos da rima e
ritmo no canto enquanto rito a comunidade passa a ter uma memoacuteria oral coletiva natildeo
dependente de um soacute corpo tornando-se possiacutevel preservar de maneira muito
duradoura as informaccedilotildees ali contidas
No caso dos Pankararu a referecircncia da liacutengua materna foi perdida apoacutes seacuteculos da
perseguiccedilatildeo do homem branco agrave identidade e cultura indiacutegena mas em seus toantes
ainda se preservam fragmentos dessa liacutengua materna e a memoacuteria contida nessas
palavras natildeo mais compreendidas tratando-se entatildeo de uma memoacuteria que natildeo eacute mais
descriptografada Como me contou Fernando em sua entrevista os toantes satildeo
cantados natildeo soacute a partir da memoacuteria dos cantos dos anciatildeos passados atraveacutes da
tradiccedilatildeo dos rituais mas eles vecircm tambeacutem atraveacutes de sonhos em que os encantados
os visitam e ensinam
A partir dessas reflexotildees fica evidente o porque dos cantos ganharam um papel tatildeo
central dentro do projeto depois dos desdobramentos da residecircncia artiacutestica e da
exposiccedilatildeo O canto eacute a forma com que esses povos conectam suas vozes seus
corpos de maneira coletiva com a memoacuteria cultural e espiritual de seu povo e sua
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
WwLT0kOPfwlau3e9McclUXAzJPg4M4utulwIRvrcOSiQgelD0SbpZDbme74k4lyB
V3zEpbxIdJlq6J2uw_kY3uVsBPErJafF1Gj6XZ4bjBvkFlWDf6B0aqhgzhiXvKFhCy
8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
For Today
httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
httpwwwvitruviusbeboek5h5htm
9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna
+e+progressista+de+boa+educaC3A7C3A3o+civil+E+como+em+Paris
+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+
dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M
aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici
adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9
+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+
as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc
e=blampots=U2vGerX1vlampsig=Jqb6nEouiP9LWh7b1_FWkB5l4Z0amphl=pt-BRampsa=X
ampved=2ahUKEwjGqr3znMjeAhWGnJAKHcW6C0oQ6AEwAXoECAYQAQv=one
pageampqampf=false
11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
terra Satildeo cantos vozes que resistem para aleacutem de extermiacutenios vindos de seacuteculos
para caacute e que ainda estatildeo em curso hoje
Conclusatildeo
A concepccedilatildeo do projeto foi ganhando forma conforme ele foi sendo colocado no
mundo O seu sentido e uso ainda estaacute em ebuliccedilatildeo seus desdobramentos futuros
podem ainda serem levados para lugares totalmente diversos dependendo natildeo soacute da
vontade artiacutestica do proponente mas das circunstacircncia em que o artefato se
encontraraacute
Aqui natildeo eacute proposta uma lsquoalteridade artiacutesticarsquo ou uma representaccedilatildeo simboacutelica exterior
daqueles que produziram o pote ou cantaram para ele O processo colaborativo natildeo
tomando o indiacutegena como objeto de estudo e sim como co-criador da obra possibilita
que essa relaccedilatildeo simboacutelica possa se estabelecer de uma maneira mais empiacuterica O
dispositivo buscou potencializar e automatizar as relaccedilotildees vivas com a oralidade
ancestralidade e memoacuteria que jaacute se manifestavam naquela comunidade Geo vaacuterias
vezes fazia a relaccedilatildeo do funcionamento do dispositivo no pote com o eco que as serras
da regiatildeo fazem ao se gritar para o vale notando que esses elementos presentes no
dispositivo jaacute estatildeo presentes na natureza e soacute estamos destacando essas conexotildees
atraveacutes das tecnologias digitais
A funccedilatildeo do pote aleacutem da natildeo-funccedilatildeo proacutepria de um objeto de arte eacute tanto como
instrumento miacutestico de evocaccedilatildeo de cantos como tambeacutem de gerador de material de
estudo antropoloacutegicomusicallinguiacutestico desses cantos indiacutegenas Ele eacute um instrumento
ativo na memoacuteria e difusatildeo da cultura indiacutegena
No contexto poliacutetico atual brasileiro esse projeto passa a ter outra importacircncia e
urgecircncia Quando haacute por parte de figuras de estado como Jair Bolsonaro uma intensatildeo
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
aso20da20reserva20Pankararupdffbclid=IwAR1vBwH_burpK06feA81EPffWbLWpyQuSX
mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
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8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
For Today
httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
httpwwwvitruviusbeboek5h5htm
9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
ampdq=A+civilizaC3A7C3A3o+criou+um+preconceito+de+cidade+moderna
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+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+
dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M
aracatus+Cabocolinhos+e+Bois+na+esperanC3A7a+de+se+dizerem+polici
adas+bem-educadinhas+e+atuais+Cocos+viram+besteira+CandomblC3A9
+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+
as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc
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11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
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15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
declarada de promover o extermiacutenio e apagamento das culturas indiacutegenas surge uma
responsabilidade ainda maior da sociedade civil de natildeo soacute se mobilizar frontalmente
contra essas propostas autoritaacuterias mas tambeacutem certificar que a memoacuteria cultural dos
povos originaacuterios seja preservada No dia X um dia apoacutes as eleiccedilotildees de segundo turno
de 2018 em que Jair Bolsonaro saiu como vitorioso uma escola e um posto de sauacutede
foram destruiacutedos num incecircndio criminoso se materializando de maneira imediata toda
a violecircncia promovida no discurso do candidato do PSL contra os indiacutegenas
O projeto Vozes da Terra tem ainda muitos caminhos a serem desdobrados no
futuro o experimento descrito nesse texto coloca como foi plantada essa
primeira semente e quais caminhos se mostraram mais feacuterteis no uso de
tecnologias digitais em prol da preservaccedilatildeo da memoacuteria e difusatildeo da cultura
indiacutegena Coloca-se em questatildeo novas formas de relacionar as novas
tecnologias com tecnologias ancestrais propotildee-se aqui um jogo poeacutetico entre
maacutequinas e humanos que caminhe contra o apagamento da identidade cultural
dos povos ancestrais
Agradecimentos
Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
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Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
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2 PANKARARU David J Phillips
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3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
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8ARD522PqLqIuc_9le7_NxYQ_WMJcVK7qDx1pX7bL0fqRT6_NdObnyEhsYhV
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8_b3MBkI-Kf4aoWUROlKQox_m2phw0amp__tn__=H-R
5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
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6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
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7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
For Today
httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
httpwwwvitruviusbeboek5h5htm
9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
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+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+
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Devo agradecer primeiramente ao povo pankararu que tatildeo bem me acolheu em sua
terra Geovam se entusiasmou tanto com o projeto que me acolheu em sua casa junto
com Rosacircngela sua esposa e suas duas filhas Patriacutecia Ewerton Warlen Antocircnio
Carlos Araunatilde (Tonho o poeta) Antocircnio Vittal Neto que a partir do ponto de cultura
indiacutegena ajudaram a produzir a obra na aldeia Mercinha e sua sobrinha Luciene que
aceitaram a proposta de fazer o pote para o projeto e modelaram com suas proacuteprias
matildeos o que tornou-se o artefato Baacuterbara pankararu que tambeacutem abriu a port de sua
casa para os participantes do projeto Os entrevistados Fernando Rosa maria da
conceiccedilatildeo pelos toantes e pela reza
A Andreacute Anastaacutecio co-criador da obra e que me orientou em diversos aspectos do
projeto desde a pesquisa teacutecnica ateacute mediaccedilatildeo e a documentaccedilatildeo
A Iliana Majerovicz que topou o desafio de uacuteltima hora de participar da mediaccedilatildeo do
projeto e abriu muitas portas em Pankararu
Agrave todos que tornaram possiacutevel o projeto Arte Eletrocircnica Indiacutegena Sebastian Gerlic
Tiago Tao e Anna Campagnac entre muitos outros Loiaacute Fernandes e Acircngelo Rosaacuterio
que aleacutem de fazerem a documentaccedilatildeo audiovisual da residecircncia tambeacutem tiveram um
papel sensiacutevel nas dinacircmicas e entrevistas na aldeia
Links
Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
httpaeiartbrtecno-ancestral-conheca-o-co-criador-de-a-voz-da-terra-pankararu-uma-
obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
Viacutedeos oficiais da Thydewaacute
httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
nto20Oliveira20-TerrotC3B3rios20indC3ADgenas20No2020brasil20o20c
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mn6T_DNpL-Iy2XIOGmWteTjU4
2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
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4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
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httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
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6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
For Today
httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
httpwwwvitruviusbeboek5h5htm
9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
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+Nova+York+e+SC3A3o+Paulo+nC3A3o+hC3A1+danC3A7as+
dramC3A1ticas+Recife+JoC3A3o+Pessoa+e+Natal+perseguem+os+M
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+C3A9+crime+Pastoril+ou+Boi+dC3A1+em+briga+Da+maneira+como+
as+coisas+vC3A3o+indo+a+sentenC3A7a+C3A9+de+morteampsourc
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12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
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15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
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Entrevista com Andreacute Anastaacutecio sobre a obra
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obra-que-mescla-ceramica-artesanal-e-tecnologias-digitais
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httpswwwyoutubecomwatchv=3UTO2yptevY
httpswwwyoutubecomwatchv=f0kpAG7sUVc
Bibliografia
1 Terrotoacuterios indiacutegenas No brasil o caso da reserva Pankararu httpsrepositorioufbabrribitstreamri264781JoC3A3o20Paulo2020do20Nascime
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2 PANKARARU David J Phillips
httpsbrasilantroposorgukethnic-profilesprofiles-p149-229-pankararuhtml
3 rdquoCarlos Estevatildeo a Gruta do Padre e os Pankararu de Itaparica PErdquo Renato
Athias Biblioteca Digital Curt Nimuendajuacute
httpwwwetnolinguisticaorgdoc2
4 Ataque 1 dia apoacutes bolsonaro ser eleito
httpswwwfacebookcompankararunetposts2184561924947154__xts__[0]=6
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5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
httpsliviafloreslopesfileswordpresscom201512foster-hal-o-artista-como-etn
occ81grafopdf
6 A study on Aristoxenus acoustic urns
httpikeelibauthgrrecord127577filesA20study20on20Aristoxenus20
acoustic20urnspdf
7 The Enigma Of Vitruvian Resonating Vases And The Relevance Of The Concept
For Today
httpwwwphilophonycompagescr1470spdf
8 Vitruvius The Ten Books on Architecture Loeb 1960 Dover 1960 and
Cambridge University Press 2002
httpwwwvitruviusbeboek5h5htm
9 httpsogloboglobocomculturalivrosmissao-mario-de-andrade-uma-viagem-pe
la-cultura-popular-inspirada-nas-pesquisas-do-escritor-16495442
10httpsbooksgooglecombrbooksid=6sFQDwAAQBAJamppg=PT299amplpg=PT299
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11httpspibsocioambientalorgptPovoPankararu
12httpwwwitauculturalorgbrocupacaomario-de-andradeetnografia-e-folclore
13 httpwwwhuman-memorynetprocesses_recallhtml
14httpswebstanfordeduclasslinguist289schank80pdf
15httpwwwvisual-arts-corkcompottery-timelinehtm
16httpwww3ufpebrcarlosestevao
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5 O Artiacutesta como etnoacutegrafo FOSTER Hall
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