vygotsky da marta kohl

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Ha muito boas razoes para 0 interesse que temos hoje

em dia pela obra de Vygotsky. Sua obra centrou-se, con-

sistentemente, na idha da emergencia de novas formas

na ! 'syche hU.m.ana sob orientacso social. Essa perspecti-va e tanto ongtnal quanta extremamente pertinente pa-

ra as c~'enciassociais de nossos dias. A maior parte da psi-

cologie e das ciencias educacionais contempordneas es-

tao em estagnayao tlevido aperspectioa estiitica que her-

daram da bistoria das ciencias sociais do ocidente nos ul-timos seculos. As c ienc ia s s oc ia is tendem a encarar a so-

ciedade e os seres humanos que a constituefn como enti-

dades relativamente estdticas e nao como sistemas com-

plexos constantemente submetidos aprocessos de desen-

volvimento. Contudo, nossa realidade cotidiana oferece-

nos, ao con tr dr io , evidenctas dessa mudanya constante:

as cnancas se desenvolvem, muitas vezes, de maneira im-

previsivel para pais, professores e politicos - todos eles,

lJU 7l'tllj,Jt:---'-da(JJ,~eman'aoc]azer com que a gera?;io mazsjove:_n aprove e seja jiel as uisoes de mundo que possuem.

Porem, como mostra a bistoria de manezra bastante no-

, J' ?j ij ?, ,( J j? $ J . !" .( /b /f Cb > J J .. Pb > d?.:W ~74A?.dePgpeP$~ dgpP#<? - .#

gerayao mais nova constroi seu proprio modo de com-

preender 0mundo, que apenas parcialmente acompanha

o de seus pais, divergindo da compreensiio destes de ma-

neira signijicativamente inovadora.

Analogamente, nenhuma cultura ou sociedade e or-

ganizada de modo imutavel e estiitico. Pode parecer que

dada sociedade permaneceu por decadas numa situayao

de status quo, e somos tentados a descreoe-ia como estii-

vel. Eat, subitamente, numa sociedade assim aparente-

mente bem organizada, tumultuam-se os processos so-

ciais, e uma nova forma de organizayao social emerge so-

bre as ruinas das formas sociais passadas. Essas novas for-

mas podem se tornar temporariamente estiiueis mas, a

seguir, novamente se desintegrarao e se reorganizardo.

A gerayao mais nova que desabrocha - que pode ter ser-

vido de instrumento para ocasionar a mudanya social con-

creta - construird novas zaopias sociais e procurarii viverde conformidade com elas. Esse empenho otimista podeser efimero - em pouco tempo se descobrird que essas

utopias nao pod em ser integralmente implementadas. A

total complexidade da vida humana e plena de incerte-

zas, acontecimentos inesperados, felicidade e sofrimen-

to. E em meio a toda essa realidade pitoresca, mas am-

plamente surrealista, os individuos inventam coisas di-

ferentes, envolvem-se em disputas constantemente no-

nome da "verdade" ou da "patria ", reconciiiam-se bem

como desenvolvem novas potencialiaaaes, e perdem an-

tigas habilidades. Nosso mundo real estd em permanen-

te movimento e transformayao. No tavel, em si e por si,

e que nos, como seres humanos comuns, sejamos capa-

zes de suporta-Io - pelo menos na maior parte do tempo.

Essa natureza fiuida dos mundos social e psicologico

cria uma necessidade premente de que todas as cienciassociais venham a onentar-se para 0 estudo de processos

de desenvolvimento - de pessoas (na psicologia), de ins-

tituiyoes sociais (na sociologia) e de culturas em geral (na

antropologia cultural). Desnecessiino acrescentar que as

ciencias sociais apenas comecam a compreender as com-_.

plexidades do desenvolvimento em nossos tempos. Dai

que 0 voltar-se para as ideias de Vygotsky fundame,nta-

se na necessidade concreta de descobnr como concettuar

o desenvolvimento. Vygotsky foi um dos poucos estudio-sos da primeira metade deste seculo que insistiu, de ma-

neira persistente e j irme, em assumir uma perspectioa cen-

trada no desenvolvimento a respeito de todo tema que

abordou. Essa enfase estii bem transmitida neste livro.

Em vez de um discurso avaltativo sobre a obra de um "ge-

nio' (como repetidas uezes seus discipulos na Russia e

nos Estados Unidos tem-se refendo a Vygotsky), a auto-

ra apresenta as ideias de Vygotsky e su_asaplicayi!es de

modo conciso, acessiuel ao grande publtco e com ilustra-yoes pertinentes. A logica da abordagem de Vygo tsky ,

sobre a genese da psyche humana em, seu contexto

historico-cuitural, centrada no desenvolvtmento, emer-

ge passo a passo das paginas deste livro, e constitu_i um

verdadeiro tribute a obra global de um homem ceja fas-

cinayao por Hamlet era mais do que simples topico para

analise iueraria. 0genio de Vygotsky pode ter estado em

sua perseveranya na tarefa de resolver 0problema do de-

senvolvimento - ainda longe de estar resoloido neste nos-so final de seculo, mas que precisa ser resolvido. Para l i -so, este !ivro oferece rico material para ulterior refi'!_xao

e oxala leue muitos leitores a oferecer novas soluyoes a

esse momentoso problema.

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Exemplos de cartazes sooieticos

sobre euentos culturais da epocade Vygotsky.

CRONOLOGIA1917 Forma-se em Direito na Universidade de Moscou.

Revolurao Russa. E criado 0 Conselho dos Comis-

sarios do Povo, presidido por Lenin.

1917-1923 Vive em Gomel, lecionando literatura epsi-

cologia.

1918 Abre, com 0amigo Semyon Dobkin e 0primo Da-vid Vygotsky, uma pequena editora de obras de li-teratura (/echada pouco tempo depois, devido a

uma crise de fornecimento de papel na Russia).1920 Toma conhecimento de que esta tuberculoso.

1922 Centralizarao do poder. Stalin e nomeadosecretdrio-geral do Partido Comunista. Constitui-

rao da URSS.

1924 Faz uma conferencia no II Congresso de Psiconeu-rologia de Leningrado, marco importante em suabisttiria profissional. Muda-se para Moscou, a con-vite de Kornzlov, para trabalhar no Instituto de Psi-cologia de Moscou.

Morre Lenin. Stalin assume 0poder.

1925 Escreve0 livro Psicologia da ane (publzcado na Rus-sia em 1965).

Viajapara 0 exterior pela prime ira e unica uez em

sua vida.Comeca a organizar 0Laboratario de PsicologiaparaCriancas Deficientes (trans/ormado, em 1929, noInstituto de Estudos das Deficiencias e, apas suamorse , n o lnstiuuo C i en ti fi co d e Pesquisa sobre D e-/iciencias da Academia de Ciencias Pedagogicas) .

1925-1939 Periodo em que, antes de 1962, saopublica-dos trabalhos seus (sete artigos diversos) em publi-

cacoes do mundo ocidental.

1928 Processo de modernizarao da URSS: industrializa-rao, reforma agrdria, aIJabetizarao.

1929 Inicio da ditadura stalinista.

1934 Morre de tuberculose, em 11 dejunho, aos 37 anos

de idade.Pub/icayiio do livro Pensamento e linguagem na

URSS.

1936-1937 Periodo mais violento do regime stalinista.

1936-1956 As obras de Vygotsky deixam de serpublica-das na URSS, por motivos politicos.

1896 Nasce Lev Semenovich Vygotsky, em 17 de novem-

bro, na cidade de Orsha, em Bielarus.

1905 Revolurao popular contra 0 czar. Acentua-se a cri-se social na Russia.

1911 Ingressa pela primeira vez numa instituiyiio esco-

lar, apos anos de instrufao com tutores particulares.

1913 Forma-se no curso secundario.Ingressa na Universidade de Moscou, no curso de

Direito.

1914 Passaa Jrequentar aulas de hzstoria e de filosofia

na Universidade Popular de Shanyavskii.

1916 Escreve "A tragedia de Hamlet, principe da Di-

namarca", como trabalho delim de curso na Uni-

verszdade.

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Q uando vemos, hoj:, a crescen~epen~trac;:aodas ideiasde Vygotsky nas areas da psicologia e da educacao

e, pnncipalmente, quando tomamos contato com 0 con-

teiido de seu pensamento, podemos imagina-lo bastan-

te proximo de nos, no tempo e no espaco. Esse teorico

sovietico, entretanto, nasceu ainda no seculo passado, ten-

do vivido apenas ate a decada de 30de nosso seculo, nu-

rna situacao social, politica e cientifica completamente

diferente da nossa.

o momenta historico vivido por Vygotsky, na Russia

pos-Revolucao, contribuiu para definir a tarefa intelec-

tual a que se dedicou, juntamente com seus colaborado-res: a tentativa de reunir, num mesmo modelo explicati-

YO, tanto osmecanismos cerebrais subjacentes ao funcio-

namento psicologico, como 0 desenvolvimento do indi-

viduo e da especie humana, ao longo de urn processosocio-historico. Esse objetivo teorico implica uma abor-

dagem qualitativa, interdisciplinar e orientada para ospro-

cessos de desenvolvimento do ser humano. 0 objetivoteorico e a abordagem utilizada sao de extrema contern-

poraneidade, 0 que provavelmente explica 0 recente e in-tenso interesse por seu trabalho, nao apenas no Brasil ,

mas em muitos outros paises.

Vivemos hoje urn momento em que asciencias em ge-

ral , e as ciencias humanas em particular, tendem a bus-

car areas de interseccao, formas deintegrar 0conhecimen-

to acumulado, de modo a alcancaruma cornpreensao mais

completa de seus objetos. A interdisciplinaridade e a abor-

dagern qualitat iva tern, pois, forte apelo para 0 pens a-

rnento contemporaneo.

Do mesmo modo, a ideia do serhumano como irner-

so num contexto historico e a enfase em seus processos

de transforrnacao tambern sao proposicoes muito imp or-

tantes no ideario contemporaneo.

Embora, atualmente, 0 trabalho de Vygotsky seja bas-

tante divulgado e valorizado no ocidente, permaneceu

quase que completamente ignorado ate 1962, quando seulivroPensamento e linguagem foi publicado pela primeira

vez nos Estados Unidos. Ainda que alguns artigos seusja tivessem sido publicados anteriormente em ingles, suas

ideias nao tinham sido apreciadas e difundidas fora da

Uniao Sovietica. Isso deveu-se, em parte, it situacao de

isolamento em que a Uniao Sovietica se colocava em

relacao aos centros de producao cientif ica europeus enorte-arnericanos, por meio de barreiras politicas, culm-

rais e lingiiisticas. Deveu-se tambern a mecanismos in-

1953 Morre Stalin; Krucbeu sobe ao poder.

1956 Krucbeu da inicio ao processo de "desestaliniza-

fiio " da URSS.

1962 Publicayi io do livro Pensamento e linguagem nos

Estados Unidos.

1982-1984 Ediyiio das obras completas de Vygotsky na

URSS.

1984 Publicayiio da coletiinea A formacao socialda menteno Brasil.

1987 Publz'cayiio de Pensamento e linguagem no Brasii.

1988 Pitbl icayiio de "Aprendizagem e desenvolvimen-

to intelectual na idade escolar" na cole tiinea Lin-guagem, desenvolvirnento e aprendizagem no

Brasil.

Introducao

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o livro A formaca o socia l da

mente, editado nos Estados Uni-

dos em 1978 por um grupo depesquisadores americanos, inclui

uma listagem completa das obras

de Vygotskypublicadas na Uniso

Sovietica e empaises de lingua in-

glesa ate essa data.

Sobre 0 trabalho de Vygotsky,

com excecdo de algumas tesesque

o utdizam como referencia cen-tral, existe no Brasil apenas uma

coletimea, recentemente publica-

daspor um grupo depesquisado-resda Universidadede Campinas,

(6).

ternos da sociedade sovietica: entre 1936 e 1956, aproxi-

madamente, a publicacao das obras de Vygotsky, junta-mente com a de muitos outros autores, foi suspensa pela

censura violenta do regime stalinista.

Atualrnente, a publicacao de textos escritos porVygotsky e seus colaboradores, bern como de textos so-

bre seu trabalho, esta em rapids expansao nos paises oci-

dentais. No Brasil, onde as traducoes tern sido feitas a

partir das edicoesnorre-arnericanas, foram publicados ape-nas dois livros de Vygotsky: A formayao social da mentee Pensamento e linguagem, I1a tambem urn artigo seu,

denominado "Aprendizagem e desenvolvimento intelec-tual na idade escolar" , na coletanea Linguagem, desen-volvimento e aprendizagem.

A discussao do pensamento de Vygotsky na area da

educacao e da psicologia nos rernete a uma reflexao so-bre as relacoes entre ele e Piaget. No Brasil , Piaget tern

sido a referencia te6rica basica nessa area e a penetracao

das ideias de Vygotsky sugere, inevitavelmente, essecon-fronto. Esses dois te6ricos, coincidentemente, nasceram

no mesmo ana (1896), mas Vygotskyteveuma vida muito

mais curta: Piaget faleceu quase cinquenta anos depoisde Vygotsky. Vygotsky chegou a ler e discutir, em seustextos, os dois primeiros trabalhos de Piaget (A lingua-

gem e 0pensamento da crianc«, de 1923, e 0 raciociniona crianya, de 1924). Piaget, por outro lado, s6 foi to-mar conhecimento da obra de Vygotskyaproximadamente

25 anos depois de sua morte, tendo escrito 0 texto "Co-

rnentarios sobre as observacoes criticas de V yg ots ky ' , co-mo apendice it edicao norte-americana de 1962 do livroPensamento e linguagem, de Vygotsky. Ao longo dos ca-pitulos que se seguem, comentaremos algumas conver-gencias e divergenciasno pensamento dessesautores, con-

forme sua relacao com os temas especificos que estiver-

mos abordando.

Historia pessoal ehistoria intelectual

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Lev,S~menovichVygots~ynasceu.na cidade de Orsha,.prmam.a a Mensk, capital de Bielarus, pais da hoje

exnnta Uniao Sovietica, em 17 de novembro de 1896.

UCRANIA

Viveu, com sua familia, grande parte de sua vida emGomel, na mesma regiao de Bielarus. Era membro deuma familia judia, sendo 0 segundo de oito irrnaos. Seupai era chefe de departamento em urn banco em Gomel

e representanre de uma cornpanhia de seguros. Sua maeera professora formada, mas nao exercia a profissao.

Sua familia tinha uma situacao economica bastanteconfortavel,moravamnum amplo apartamento e podiamofereceroportunidades educacionaisde alta qualidade aos

18

E m a lg un s te xto s a d ata d e n asc i-

m en ta de V yg otsky e d ad a c om o

s en do d ia 5 /11/1896. Essa di ver-

ge ncia se de ve ao ja to de que

h ou ve u ma m ud an fa d e c ale nd a-

rio na ex-Unuio S ov iif ti ca e m

1 91 8. P e lo a n ti go c a le n da n o a d a-

ta d e seu n ascim en to sen a 5 de

n ove mb ro e p elo atu al17 de n o-

vembro.

S em yo n D obkin era a mig o d e in -

j an Cia d e V yg otsk y e d e su a f am i-

l ia . A lg um as r em in is ce nc ia s s ua s

e st ii o r eg is tr ad a s n o l iv ro One isnot Born a Personality: profiles of

Soviet Education Psychologists

(Nao se nasce uma personalida-

de: perfis de psic6logos da edu-cacao sovieticos), (11), provavef.

m en te a p n'n czp al f on te d e in fo r-

m afoe s d isp on ive l sab re a v id a

p es so al d e V yg ot sk y.

I n te l ec t ua i s da epoca d e V y go st ky

o cham ad o cu rso d e D ireito naU ni ve rs id ad e d e M o sc ou , n a e pa -

ca, era um curso am plo na area

de ciencias h uma n as , i nc lu in d o a

q ue a tu al me nt e c or re sp on de ria a

D i re it o e L it er at ur a. S e u t ra b al ho

d e jim d e c urso n a u niv ersid ad e

fo i uma a na lis e d o Hamlet, de

Shakespeare. Essa a n al is e f oi m a is

t ar de i nc o rp o ra d a, s ob f or m a mo-

d if ic a da , a s eu l iv ro Psychologyof

Art (Psicologiada arte) (1), escrito

em 1925.

filhos. Segundo Semyon Dobkin, a familia de Vygotsky

era "das mais cultas da cidade". A casa tinha uma at-mosfera intelectualizada, onde pais e filhos debatiam sis-tematicamente sobre diversos assuntos. A biblioteca dopai estava sernpre a disposicao dos filhos e de seus ami-

gos para 0 estudo individual e as reunioes de grupos.

Crescendo nesse ambiente de grande estimulacao in-telectual, desde cedo Vygotsky interessou-se pelo estudo

e pela reflexao sobre varias areas do conhecimento. Or-ganizava grupos de estudos comseus amigos, usavamuito

a biblioteca publica e aprendeu diversas Iinguas, inclusi-

ve 0 esperanto. Gostava muito, tambern, de ler obras deliteratura, poesia e teatro, atividade a qual dedicou-se'du-rante toda a vida.

Vladim ir Ma i ak ovs k i

(1893-1930)

S e rg e i E i sen st e in

(1898-1948)

A maior parte de sua educacao formal nao foi realiza-da na escola, mas sim em casa, por meio de tutores par-ticulares. Apenas aos 15anos e que ingressou num cole-gio privado, onde freqiientou osdoistiltimos anosdo cur-

so secundario, formando-se em 1913. Ingressou, entao,

na Universidade de Moscou, fazendo 0 curso de Direito

e formando-se em 1917. Ao mesmo tempo em que se-guia sua carreira universitaria principal, freqiientou cur-sos de hist6ria e filosofia na Universidade Popular deShanyavskii. Embora nao tenha recebido nenhum tituloacadernico dessa universidade, ai aprofundou seus estu-

dos em psicologia, f i losof ia e literatura, 0 que foi de gran-de valia em suavida profissional posterior. Anos rnais tar-de, devido a seu interesse em trabalhar com problemasneurol6gicoscomo forma de compreender 0 funcionamen-

to psicol6gico do homem, estudou tambern medicina,

parte em Moscou e parte em Kharkov.

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Do mesmo modo que sua formacao academica, sua ati-

vidade profissional foi muito diversificada. Trabalhou em

diferentes localidades dentro da ex-Uniao Sovietica, tendosaido do pais uma unica vez, em 1925, para uma viagem

de trabalho a outros paises da Europa. Foi professor e pes-

quisador nas areas de psicologia, pedagogia, filosofia, li-

teratura, deficiencia fisica e mental, atuando em diver-

sas instituicoes de ensino e pesquisa, ao mesmo tempo

em que lia, escrevia e dava conferencias.

Vygotsky trabalhou, tambern, na area chamada "pe-

dologia" (ciencia da crianca, que integra osaspectos bio-logicos, psicologicose antropologicos). Ele considerava essa

disciplina como sendo a ciencia basicado desenvolvimento

humano, uma sintese das diferentes disciplinas que es-tudam a crianca. Na verdade, "os aspectos da psicologia <l

de Vygotsky que nos, nos anos 80, lentamente aprende-

mos a apreciar - enfase consistente nos processos de de-

senvolvimento, na ernergencia de novas (superiores) for-

mas de organizacao dos processos psicologicos e recusa

em reduzir a dinamica complexidade psicologica a seus

elementos constitutivos - eram considerados, porVygotsky, como 0 centro da pedologia enquanto ciencia

mais geral que a psicologia".

Criou urn laboratorio de psicologia na escola de for-

macae de professores de Gomel e.participou da criacao

do Instituto de Deficiencias, em Moscou. Paralelamente

a sua vida profissional propriamente dita, Vygotskyman-

tinha intensa vida intelectual, fazendo parte de varies gru-pos de estudos, fundando uma editora e uma revista li-

teraria, coordenando 0 setor de teatro do Departamento

de Educacao de Gomel e editando a secao de teatro do

jornallocal. Ao longo de seus textos Vygotsky recorre,

frequentemente, a siruacoes extraidas de obras literarias.

o capitulo 7 do livroPensamento e linguagem, por exem-plo, tern como epigrafe urn verso do poeta Osip Man-delshtam: "Esqueci a palavra que pretendia dizer e meu

pensamento, privado de sua substancia, volta ao reinodas sombras".

Vygotsky casou-se em 1924 com Roza Smekhova, com

quem teve duas filhas. Desde 1920 conviveu com a tu-

berculose, doenca que 0 levaria a morte em 1934.

Sua producao escrita foi vastissima para uma vida tao

curta e, naturalmente, seu interesse diversificado e sua

formacao interdisciplinar definiram a natureza dessa pro-ducao. Escreveu aproximadamente 200 trabalhos cienti-

ficos, cujos temas vao desde a neuropsicologia ate a criti-

20

VAN DER VEER e VALSINER,

(28).

$I cacao n03a6bJ1 'HO H XOTen CKB3aTh.

Caenaa , Ja CTQ IKa B «epror renen BepHeTCR

Ha KPhJbHX cpeaannux, c npoapavnaun urpars.

B 6 e c n a~u l TCTa e HO ' l Ha5 1 n e c x» n e e - rc a .

He CJIbti lHO nTHL. oeCOepTHI1K He naerer.

Ilpoapavaa rpneu Ta6YHanouuoro.

B c yx ca p ek e n VC To H 'le'lHOl: n.tueer.

Cpe.aa xyaae.uucon Secnaxrsrtcrnyer (lOBO.

H Me.!l, eHHOpaCTCT, K3K 6 1 > 1 u ra re p " JI b x pa a,

T o n ap yr npOKIIHCTcn 6 e 3 Y M Ho l 1 A H T il f O HO f .i ,

To MepTao ti , 1 aC10 4 1 -: o i i epocaeren " aorau

C cTH rH1cKoH HeKHOCTbJO H SeT {OO 3eneuo .

Trechodo poema Tnstia, de Osp

Mandelshtam, com as versos ci-

tados par Vygotsky.

Seus dais unieos livrospublieados

no Brasilnaoforam escntos como

livros: saoa resultado do agrupa-menta de varios textos, eseritosem diferentes momentos.

Esta e uma dasdzferenfas impor-tantes entre a produfao de

Vygotsky e a de Piaget: Piaget,

em suavida quase cinqiienta anos

mais longa, eonstruiu uma teona

bastante artieulada enos deixou

informafoes precisas sobre seus

tmbalhos de investigafao.

No Brasil, antes mesmo de ter seu

nome associado ao de Vygotsky,

Lunaja eraum autor bastante eo-

nheeido , part ieularmente nasareasde neurologia efonoaudio-

logia, com diversos tmbalhos pu-

blieadosem portugues. Issose de-uea sua expressivaprodufao emneuropsieologia, especialmenteem disturbios da l inguagem, e

tambem aofoto de que, tendo vi-vido ate 1977, teve sua obra bas-

tante di fundida no oeidente .

Leontiev, por sua vez, teve umaprodufao escnta bem men orque

a deLuna e menor repercussdo no'Brasil e em outros paises do

oeidente.

LURIA, p. 56 (14).

VAN DER VEERe VALSINER,

(28).

ca literaria, passando por deficiencia, linguagem, psico-

logia, educacao e quest6es teoricas e rnetodologicas rela-

tivas as ciencias humanas.

Sua morte prematura (37 anos), juntamente com 0

enorme volume de sua producao intelectual, marcou, de

certa forma, 0 estilode seus textosescritos: saotextos den-sos, cheiosde ideias, numa mistura de reflex6esf i losof icas,imagens literarias, proposicoes gerais e dados de pesqui-sa que exemplificam essas proposicoes gerais. Tamberndevido a sua enfermidade, muitos dos textosde Vygotsky

nao foram originalmente produzidos na forma escrita; fo-ram criados oralmente e ditados a outra pessoa que oscopiava, ou anotados taquigraficamente durante suas aulas

ou conferencias. Essefato tambem tern clara influencia

no estilo dos textos de Vygotsky.

Sua producao escrita nao chega a constituir urn siste-ma explicativo completo, articulado, do qual pudesse-mos extrair uma "teoria vygotskiana' bern estruturada.Nao e constituida, tampouco, de relatos detalhados dos

seus trabalhos de investigacao cientifica, nos quais 0 lei-

tor pudesse obter inforrnacoes precisas sobre seus proce-dimentos e resultados de pesquisa. Parecem ser, justa-

mente, textos "jovens' , escritoscom entusiasmo e pres-sa, repletos de ideias fecundas que precisariam ser cana-lizadas num programa de trabalho a longo prazo para quepudessem ser explorados em toda a sua riqueza.

Esseprograma de trabalho existiu, de fato, e asideias

de Vygotsky nao se limitaram a uma elaboracao indivi-dual. Ao contrario , multiplicaram-se e desenvolveram-se na obra de seus colaboradores, dos quais os mais co-nhecidos entre nos saoAlexanderRomanovichLuriae Ale-xei Nikolaievich Leontiev.

A atuacao intelectual de Vygotskyparece ter sidomuito

marcante para as pessoas a seu redor. Ele era urn oradorbrilhante, que encantava a plateia que 0 ouvia. Entre seusalunos e colegas havia muita admiracao pelas suas ideias,

que foram consideradas pontos de partida para elabora-coes teoricas e projetos de pesquisa posteriores. Luria afir-maya, repetidas vezes, que Vygotsky foi urn indivlduo

muito especial ("l:lm genio"), que the ajudou a alargare aprofundar a cornpreensao de-sua tarefa enquanto pes-

t> quisador:' 'No final dos anos 200 futuro percurso de mi-nha carreirajiiestavaestabelecido. Eu dedicariameus anossubsequentes ao desenvolvimento dosvaries aspectos do

c- sistema psicologicode Vygotsky". Aspalavras de urn alu-no de Vygotskytambern evidenciam essaadrniracao: "E

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dificil determinar 0 que exatamente nos atraia nas expo-

sicoes de Lev Semenovich. Alern de seu conteiido pro-

fundo e interessante, nos ficivamos fascinados pela sua

sinceridade genuina, pelo continuo esforco em progre-

dir no seu raciocinio , com 0 qual cativava seus ouvintes,

[e) pela bela expressao literaria de seu pensamento. 0

pr6prio som de sua suave voz de baritone, flexivel e rica

em entonacoes, produzia uma especie de encanro esteti-

co. A gente queria rnuito entrar no efeito hipnotizador

da exposicao dele e era diflcil abster-se do sentimento in-

voluntario de frustracao quando ela acabava" .

Trecho de carra de Vygotsky a cinco de seus discipulos e colaboradores, Bozhovich, Levina, Morozova,

Slavina e Zaporozhec , da tada de 15 de abr il de ' 1929.

"Tiue um sentimento de enorme surpresa

quando A. R. {Luria} , em sua epoca, foi 0pn-mei ro a t rilhar esse eaminho e quando A. N.[Leontiev} 0 acompanhou. Agora, junta-se?t sur-

presa a alegriapelofote de que, peloJ-tray(}!fque

se revelam, 0grande caminho nito e visivel ape-

nas para mim, nem apesas jzara nor tres , mas

tambempara outras cincopessoas. 0sentimen-

to da vastidao e do ilimitado do trabalho psico-

logico contemporftneo (vivemos ·umperioao de

catac/ismas geoLogicos na psieologia) e0

senti-

mento que predomina em mim. Isto, porem,toma a situayao daqueles POUClJS que seguem a

nova I£nha da ciencia (particularmente da eien-cia sabre 0 homem), infinitamente responsdoe],

ser ia no mais alto grau, quase trdgico (nao no

sentido patetico dessapalavra, !'las em· seu sen-

tzao waior e mais verdadeiro). Eprecise, pot mz"loezes, por-se ?tproua, fiscaiizar-se, en/rentar pe-

nosa experiencia antes de decidir, pois essee um

caminho muito dif ici l que requer apessoa de

maneira integral". (28)

Vygotsky, Luria e Leontiev faziam parte de urn grupo

de jovens intelecruais da Russia pos-Revolucao, que tra-

balhava num clima de grande idealismo e efervescencia

intelectual. Baseados na crenca da ernergencia de uma

nova sociedade, seu objetivo mais amplo era a busca do

"novo", de uma ligacao entre a producao cientffica e 0

regime social recern-implantado. Mais especificamente,

buscavam a construcao de uma "nova psicologia", que

consist isse numa sintese entre duas fortes tendencias pre-

sentes na psicologia do inicio do seculo. De urn lado ha-

via a psicologia como ciencia natural, que procuravaexplicar processos elementares sensoriais e reflexos, roman-

do 0 homem basicarnente como corpo. Essa tendencia re-

laciona-se com a psicologia experimental, que procura

aproximar seus metodos daqueles das outras ciencias ex-

per imentais ( fisica, qufrnica, etc. ), preocupando-se com

a quantificacao de fenornenos observaveis e com a sub-

divisao dos processos complexos em partes menores, mais

faci lmente analisaveis . De outro lado havia a psicologia

como ciencia mental, que descrevia as propriedades dos

processos psicologicos superiores, tomando 0 homem co-

22

Proeessos psicologicos superiores

sao aqueles que earaeterizam 0

/uneionamento psie%gico t£pica-

mente humano: acoes conscien-

temente controladas, atenyao vo-luntaria, memorizayao ativa,pen-

samento abstrato, comportamen-

to intencional. Osprocesses psi-cologicos superiores se diferen-

ciam de mecanismos mais ele-

mentares, como reflexos, reacoes

automiisicas, associacoes simples.Essa difereneiayao, esseneialpara

a compreensdo do /uncionamen-to humano, efoco privzlegiado da

preoeupayao de Vygotsky, seraaprofundada no capitulo 2.

Sintese, para Vygotsky e-

Vygotsky fez uma conferencia noII Congresso de Psir:oneurologia

em Leningrado (atual Sao Peters-burgo), em 1924, sobre as rela-

yoes entre os reflexes condiciona-

dos e 0 comportamento conscien-

te do homem, onde apresenta

uma propos ta de sintese entre

p ro ce ss os e le m en ta re s e c on sc ie n-

cia. Foi essaproposta que levou

Korniiou a convida-Io para traba-Ihar no Instituto de Psieologia de

Moseou e inieiar, assim, sua par-

tzcipayao no projeto de eonstru-yao da "nova psicologia",

K.N. Kornilov (1879-1957).

mo mente, consciencia, espinto. Essa segunda tenden-

cia coloca a psicologia como sendo mais proxima da filo-

sofia e das ciencias humanas, com uma abordagem des-

cri tiva, subjetiva e dir igida a fenomenos globais, sem preo-

cupacao com a analise desses fenornenos em componen-

tes mais s imples.

Enquanto a psicologia de tipo experimental deixava

de abordar as funcoes psicologicas mais complexas do ser

humano, a psicologia mentalista nao chegava a produzir

descricoes desses processos complexos em terrnos aceita-

veis para a ciencia. Foi justamente na tentativa de supe-

rar essa crise da psicologia que Vygotsky e seus colabora-dores buscaram uma abordagem alternativa, que possi-

bilitasse uma sintese entre as duas abordagens predomi-

nantes naquele momento.

E importante destacar qual 0 significado de sintese para

Vygotsky, pois essa e uma ideia constantemente presen-

te em suas colocacoes e e central para sua forma de com-

preender os processos psicol6gicos. A sintese de dois ele-

mentos nao e a simples soma ou justaposicao desses ele-

mentos, mas a ernergencia de algo novo, anteriormente

inexistente. Esse componente novo nao estava presente

nos elementos iniciais: foi tornado possivel pela intera-

~ao entre esses elementos, num processo de transform a-~ao que gera novos fenornenos. Assim, a abordagem que

busca uma sintese para a psicologia integra, numa mes-

ma perspectiva, 0 homem enquanto corpo e mente, en-

quanto ser biol6gico e ser social, enquanto membro da

especie humana e participante de um processo hist6rico.

Essa nova abordagem para a psicologia fica explicita

em tres ideias centrais que podemos considerar como sen-

do os "pilares" basicos do pensamento de Vygotsky:

• as funcoes psicol6gicas tern um suporte biol6gico pois

sao produtos da atividade cerebral;

• 0 funcionamento psicol6gico fundamenta-se nas rela-

~6es sociais entre 0 individuo e 0mundo exterior, asquaisdesenvolvem-se num pro~esso hist6rico;

• a relacao homem / mundo e uma relacao mediada por

sistemas simb6licos.

Essas ideias serao brevemente del ioeadas a seguir, e dis-

cut idas em maior detalhe ao longo dos pr6ximos capftulos.

A postulacao de que 0 cerebro, como 0 6rgao mate-

rial, e a base biol6gica do funcionamenro psicol6gico to-

ea um dos extremos da psicologia humana: 0 hom em ,

enquanto especie biol6gica, possui uma existencia rna-

23

 

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terial que define lirnites e possibilidades para 0 seu de-

senvolvimento. 0 cerebro, no entanto, nao e urn sistemade funcoes fixas e irnutaveis, mas urn sistema aberto, de

grande plasticidade, cuja estrutura e rnodos de funcio-narnento sao rnoldados ao longo da historia da especiee do desenvolvirnento individual. Dadas asimensas pos-

sibilidades de realizacao humana, essa plasticidade e es-sencial: 0 cerebro pode servir a novas funcoes, criadas nahistoria do homern, sem que sejarn necessarias transfor-

rnacoes no 6rgao fisico. Essa ideia da grande flexibilida-

de cerebral nao sup6e urn caosinicial, mas sim a presenca

de uma estrutura basica estabelecida ao longo da evolu-c;:aoda especie, que cada urn de seus membros traz con-

sigo ao nascer.

A concepcao de uma basematerial em desenvolvimento

ao longo da vida do individuo e da especie esta direta-mente ligada ao segundo pressuposto do trabalho deVygotsky, que toea 0 outro extrerno do funcionamentohumano: 0 homem transforma-se de biol6gico em s6cio-historico, num processo em que a cultura e parte essen-cial da constituicao da natureza humana. Nao podemos

pensar 0 desenvolvimento psicol6gico como urn proces-

so abstrato, descontextualizado, universal: 0 funciona-mento psicol6gico, particularmente no que se refere as

funcoes psicologicassuperiores, tipicamente humanas, estabaseado fortemente nos modos culturalmente construi-

dos de ordenar 0 real.

Urn conceito central para compreendermos 0 funda-

mento socio-historico do funcionamento psicologico e 0

conceito de mediacao, que nos remere ao terceiro pres-suposto vygotskiano: a relacao do homem com 0mundonao e uma relacao direta, mas uma relacao mediada, sen-do os sistemas sirnbolicosos elementos intermediaries en-

tre 0 sujeito e 0mundo. 0 capitulo 2, a seguir, e inteira-

mente dedicado a complexa questao da mediacao sim-bolica.

24

Plasticidade e a qualidade daqui-1 0 que e "plastieo ", isto e , quepode ser moldado pela afiio de

elementos externas. A mediacaosimb6lica

25

 

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V yg~tskY dedicou-se, principalmente.' ao e~tudo da-quilo que chamamos de funcoes psicologicas supe-

riores ou processosmentais superiores. Isto e , interessou-sepor compreender os mecanismos psicologicos mais sofisti-cados, mais complexos, que sao tipicos do ser humane

e que envolvem 0 controle consciente do comportamen-

to, a acao intencional e a liberdade do individuo em re-

lacao a s caracteristicas do momento e do espaco presentes.

o ser humane tern a possibilidade de pensar em ob-

jetos ausentes, imaginar eventos nunca vividos, planejar

acoes a serem realizadas em momentos posteriores. Esse

tipo de atividade psicologica e considerada "superior"

na medida em que se diferencia de mecanismos mais ele-

mentares tais como acoes reflexas (a succao do seio ma-

terno pelo bebe, por exemplo), reacoes autornatizadas (0movimento da cabeca na direcao de urn som forte repen-

tino, por exemplo) ou processos de associacaosimples en-

tre eventos (0ate de evitar 0 contato da mao com a cha-ma de uma vela, por exemplo).

Urn exemplo interessante ilustra a diferenca entre pro-

cessos elementares e processos superiores: e possivel en-sinar urn animal a acender a luz num quarto escuro. Mas

o animal nao seria capaz de, voluntariamente, deixar derealizar 0 gesto aprendido porque ve uma pessoa dor-

mindo no quarto. Essecomportamento de tomada de de-cisao a parti r de uma informacao nova e urn comporta-mento superior, tipicamente humano. 0 mais importante

desse tipo de comportamento eo seu carater voluntario,

intencional.

Urn conceito central para a cornpreensao das concep-

~6es vygotskianas sobre 0 funcionamento psicologico e 0

conceito de mediacao. Mediacao, em termos genericos,eo processo de intervencao de urn elemento intermedia-

rio numa relacao; a relacao deixa, entao, de ser direta e

passa a ser mediada por esse elemento. Quando urn in-dividuo aproxima sua mao da chama de uma vela e a re-

tira rapidamente ao sentir dor, esta estabelecida uma re-

lacao direta entre 0 calor da chama e a retirada da mao.

Se, no entanto, 0 individuo retirar a mao quando ape-nas sentir 0 calor e lembrar-se da dor sentida em outra

ocasiao, a relacao entre a chama da vela e a retirada da

mao estara mediada pela Iernbranca da experiencia an-

terior. Se, em outro caso, 0 individuo retirar a mao quan-

do alguern the disser que pode se queimar, a relacao es-

tara mediad a pela intervencao dessa outra pessoa.

" [ . . . J 0 processo simples estimulo-resposta e substi-

26

Essemodo de/uncionamento psi-

col6gico, tipico da especie huma-

na, nao estapresente no indivi-

duo desde 0 seu nascimento. Co-

mo veremos nos capitulos que se

seguem, as atividades psicol6gi-

casmais sofisticadas saofrutos de

um processo de desenvolvimen-

to que envolve a interayao do or-ganismo individual com 0 meio

/isico e social em que vive. A

aquisicdo da linguagem definira

um salta qualitativo no desenvol-

vimento do ser humano.

<l VYGOTSKY, p. 45 , (2).

S

RX

estirnulo

respostaelo intermediario ou

elemento mediador

tuido por urn ato complexo, mediado, que representa-

mos da seguinte forma:

S - ------------------- R

~/Nesse novo processo 0 impulso direto para reagir e inibi-do, e e incorporado urn estimulo auxiliar que facilita a

cornplementacao da operacao por meios indiretos." No

exemplo da vela, 0 estimulo (S) seria 0 calor da chama

e a resposta (R) seria a retirada da mao. Numa relacao

direta entre 0 individuo e a vela, e necessario que 0 calorprovoque dor para que a mao seja retirada. A lembrancada dor (isto e , algum tipo de representacao mental do

efei to do calor da chama) ou 0 aviso de outra pessoa so-

bre 0 risco da queimadura seriam elementos mediado-

res, intermediaries entre 0 estirnulo e a resposta. A pre-

senca de elementos mediadores introduz urn elo a mais

nas relacoes organismo/meio, tornando-as mais comple-

xas. Ao longo do desenvolvimento do individuo as rela-~6es mediadas passam a predominar sobre as relacoes

diretas.Vygotsky trabalha, entao, com a nocao de que a rela-

~ao do homem com 0mundo nao e uma relacao direta,mas, fundamentalmente, uma relacao mediada. As fun-

~6espsicologicas superiores apresentam uma estrutura tal

que entre 0 homem e 0 mundo real existem mediado-res, ferramentas auxiliares da atividade humana.

Vygotsky distinguiu dois tipos de elementos media-

dores: os insrrumentos e os.signos. Embora exista uma

analogia entre esses dois t ipos de mediadores, eles tern

caracteristicas bastante diferentes e merecem ser tratados

separadamente.

o uso de instrument os

A importancia dos instrumentos na atividade huma-

na, para Vygotsky, tern clara ligacao com sua filiacao teo-

rica aos postulados marxistas. Vygotsky busca compreen-

der ascaracteristicas do homem atraves do estudo da ori-gem e desenvolvimento da especie humana, tomando 0

surgimento do trabalho e a formacao da sociedade hu-

mana, com base no trabalho, como sendo 0 processo ba-

27

 

sico gue vai marcar 0 homem como especie diferencia-

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da. E 0 trabalho que, pela a~ao transformadora do ho-

mem sobre a natureza, une homem e natureza e cria a

cultura e a hist6ria humanas. No trabalho desenvolvem-

s : . ' por ~~ lado, a atividade coletiva e, portanto, asrela-~oesSOCIalS,, por outro lado, a criacao e util izacao demstrumentos.

Representa fao de homem utz li -

zando ins trumento em pin tura

primitiva feita numa cauerna.

Ideias marxistas que influenciaram Vygotsky

Mareado pela orientafao

predominante na Uniao 50 -

vihiea pos-revolueionaria,

VygotJky via no materiali.rmohistorieo e dialhieo de Marx e

Engels uma fonte importante

para suas proprias elabora-

foes teortcas. Alguns postula-

dos basieos do marxzsmo cla-ramente ineorporados porVygotsky sao:

• 0modo deproduf iio davida material eondiciona a vi-

da social, politiea e espiritualdo homem.

• 0 homem e um ser his-torico, que se constroi atraves

de suas relafoes com 0 mun-

do natural e social. 0proces-

so de trabalho (transformafiio

da natureza) eo proeesso pn':

vzlegiado nessas re/afoes bo -memlmundo.

• a soeiedade humana euma totalidade em eonstante

transformafao. E um sistema

dinamico e contraditono, que

p reci se ser compreendzdo co-

mo processo em mudanfa , em.desenvolvimento,

• astransformafoes quali-tat ivas ocorrem por meio da

chamada "sintese dialhica"

onde, a part ir de elementos

presentes numa determinada

si tua fi io , fen8menos novosemergem. Essa e exatamente

a concepcao de sintese utzliza-

da por Vygotsky £10 longo de

toda sua obra.

28

Marx (1818-1883).

Engels (1820-1895).

Dentre os eolaboradores de

Vygotsky, Alexei Nikolaievieh

Leontiev (1904-1979) foi quem

mais explorou a questao da rela-

fao homem/trabalho, formu/an-

do a ehamada "teoria daativida-

de" (cer capitulo 5),

o instrumento e urn elemento interposto entre 0 tra-balhador eo objeto de seu trabalho, ampliando aspossi-bilidades de transforrnacao da natureza. 0 machado, porexemplo, corta mais e melhor que a mao humana; a va-silha permite armazenamento de agua. 0 instrumento

e feito ou buscado especialmente para urn certo objeti-

yo. Ele carrega consigo, portanto, a funcao para a qualfoi criado e 0 modo de utilizacao desenvolvido durante

a historia do trabalho coletivo. E , pois, urn objeto sociale mediad or da relacao entre 0 individuo e 0 mundo.

Chimpanze usando instrumento.

Vale apena destacar que 0 estu-

do do compor tamento animal

avanfou muito nos iiltimos anos,produz indo dados £lOS quais

Vygotsky nso ehegou a ter aces-

so, Embora controversos, hi da-

dos que demonstram um uso

mais sofistieado de instrumentosentre primates supenores do que

o usa suposto por Vygotsky nestacomparafao,

E importante rnencionar que anirnais tam bern utili-

zam instrumentos de forma rudimentar. Sao bastante co-nhecidos osexperimentos comchimpanzes que usam varas

para alcancar alimentos distantes ou sobern em caixotes

para atingir frutas penduradas no teto. Embora essesins-trumentos tam bern tenham uma funcao mediadora en-tre individuo e objeto, Vygotsky os considera como sen-

do de natureza diferente da dos instrurnentos humanos.Os anirnais, diferentemente do homem, nao produzem,

deliberadamente, instrumentos com objetivos especffi-

cos, nao guardam os instrumentos para usa futuro, nao

preservam sua fun~ao como conquista a ser transmitidaa outros membros do grupo social. Sao capazes de trans-formar 0 ambiente num momenta especifico, mas naodesenvolvem sua relacao com 0 meio num processo

historico-cultural, como 0 homem.

29

 

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o uso de s ign o s

, 'A invencao e 0 uso de signos como rneios auxil iares

para solucionar urn dado problema psicologico (lembrar,

comparar coisas, relatar, escolher, etc.), e analoga a in-vencao e uso de instrumentos, so que agora no campo

psicologico. 0 signo age como urn instrumento da ativi-

dade psicologica de maneira ana loga ao papel de urn ins-

t tumento no trabalho" . Os instrumentos , porern, sao ele-

mentos extern os ao individuo, voltados para fora dele;

sua funcao e provo car mudancas nos objetos, controlar

processos da natureza . Os signos, por sua vez, tambernchamados por Vygotsky de "instrumentos psicologicos";

sao orientados para 0 proprio sujeito, para dentro do in-

dividuo; dirigem-se ao controle de acoes psicologicas, seja

do proprio indivlduo, seja de outras pessoas. Sao ferra-

rnentas que auxil iam nos processos psicologicos e nao nas

acoes concretas, como os instrumentos.

Ao longo de sua his toria, 0 hom em tern utilizado sig-

nos como insttumentos psicologicos em diversas situacoes,

conforme veremos a seguir. Na sua forma mais elemen-

tar 0 signa e uma marca externa, que auxilia 0 homemem tarefas que exigem memoria ou atencao . Assim, por

exemplo, a utilizacao de varetas ou pedras para registro

e controle da contagem de cabecas de gada ou a separa-

c,:aode sacos de cereais em pilhas diferentes que identifi-

cam seus propr ietaries sao formas de recorrer a s ignos que

ampliam a capacidade do homem em sua acao no mun-

do. Assim como 0 machado, instrumento de trabalho,

corta melhor que a mao humana, as varetas usadas na

contagem do gado perrnitem que 0 ser humano armaze-

ne informacoes sobre quantidades muito superiores a s queele poderia guardar na memoria. Isto e, as varetas repre-

sentam a quantidade de cabecas de gado, a qual pode

ser recuperada em momentos posteriores. E neste senti-do que as varetas sao signos: sao interpretave is como re-

presentacao da realidade e podem refer ir-se a elementos

ausentes do espac,:oe do tempo presentes . A memoria me-

diad a por signos e, pois, mais poderosa que a memoria

nao mediada.

Sao imimeras as formas de utilizar signos como ins-

trumentos que auxiliam no desempenho de atividades

psicologicas , Fazer uma lista de compras por escri to, uti -

lizar urn mapa para encontra r dete rminado local, fazer

urn d iagram a para orienta r a construcao de urn objeto,

30

<J VYGOTSKY, p. 59-60, (2).

Signospodem ser dejinidos como

elementos que representam ouexpressam outros objetos, even-

tos, situacoes. A pa/avra mesa,por exemplo, e um signa que re-presenta 0 objeto mesa; asimbola

3 e um signo para a quantidade

tres; 0 desenho de uma cartolanaporta de um sanitaria e um sig-no que indica "aqui e 0 sanita-

rio masculino' '.

.Quipus, nosfeitos pelos incaspa-ra regis trar inlormafoes sobre

quantzdades e outrosfatos da vi-da cotidiana.

dar urn no num Ienco para nao esquecer urn compromisso

sao apenas exemplos de como constantemente recorre-

mos it mediacao de varies tipos de sign os para melhorar

nossas poss ibil idades de armazenamento de inforrnacoes

e de controle da ac,:aopsicologica.

Vygotsky e seus colaboradores realizaram diversos ex-

per imentos para estudar 0 papel dos signos na atividade

psicologica. Urn dos experimentos tinha como objetivoverificar a relacao entre a percepcao e a ac ,:aomotora em

criancas de quatro e cinco anos, com e sem a intervencao

de signos mediadores. Numa primeira fase do exper irnen-

to havia urn conjunto de figuras e a cada figura corres-

pondia uma tecla de urn teclado. Quando uma figura era

mostrada it crianca, a tecla correspondente deveria ser pres-

sionada. As criancas tinham dificuldade de decid ir rap i-

damente que tecla aperta r, vacilando em seus movimen-

tos, indo e vindo entre as varias teclas, ate escolher a que

deveria ser pressionada.

Numa segunda fase do exper irnento os pesquisadores

introduziram marcas identificadoras nas teclas, que au-

xiliavarn sua correspondencia com as figuras (por exem-

plo, a figura de urn treno para lernbrar cavalo, a figura

de uma faca para lembrar pao). A introducao dessas mar-

cas modificou radicalmente 0 desempenho das criancas.

Em vez de vacilar entre as teclas, fazendo movimentos

desordenados, as criancas passaram a focalizar sua a ten-

c ,:aonas marcas, e a selecionar a tecla apropriada a partir

da relacao estabelecida entre a figura mostrada e 0 signa

que a representava. A relacao, antes direta, entre a per-

cepcao da figura e a escolha da tecla, passou a ser media-

da pelas marcas que representavam as varias figuras.

31

 

Isto e, 0 uso de mediad ores aumentou a capacidade de

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escolha da tecla

atencao e de memoria e , sobrerudo, permitiu maior con-

trole voluntario do sujeito sobre sua atividade.

Esses dois experimentos mencionados sao exemplos dos

estudos feitos por Vygotsky e seus colaboradores no sen-

tido de compreender como 0 processo de rnediacao, por

meio d~ instrumentos e signos, e fundamental para 0 de-

senvolvirnento das funcoes psicologicas superiores , dis-

tinguindo 0 homem dos outros animais. A rnediacao e

um processo essencial para tomar possivel at ividades psi-

cologicas voluntarias, intencionais, controladas pelo pro-

prio individuo.

E interessante observar que os processos de rnediacao

tarnbem sofrem transforrnacoes ao longo do desenvolvi-

mento do individuo. Justamente por constituirem fun-

c;6espsicologicas mais sofisticadas, os processos mediados

vao ser construidos ao longo do desenvolvimento, nao es-

tando ainda presentes nas criancas pequenas. No experi-

mento das "cores proibidas'", que acabamos de descre-

ver, por exernplo, e so a partir de oito anos, aproxima-

damente, que a crianca vai comecar a beneficiar-se dos

cartoes, utilizando-os como auxiliares psicologicos, As

criancas menores nao se beneficiaram dos canoes comosignos de apoio a sua atividade psicologica. Ao resolver

esse t ipo de tarefa, sua at ividade era predominantemen-

te direta, nao mediada. Sem serem capazes de, delibera-

damente, fazerem uso de recursos externos, como os car-

toes, essas criancas pequenas lembravam-se 0\,1 nao das

cores proibidas mas nao conseguiam controlar sua pro-

pria atividade por meio desses signos mediadores.

Atividade direta

percepcao da Figura--------------1 escolha da tecla

Atividade mediada

percepcao da figura

marcas nas teclas

Esse p~ocesso de mediacao possibilitou um comportamen-

to mars controlado, uma acao motora dominada por uma

escolha previa. A ac;ao psicologica tornou-se mais sofisti-

cada, menos impulsiva.

Um outre experirnento, conduzido por Leontiev, vi-

s~va fornec~r elementos para a cornpreensao do papel dos

sign os mediadores na atencao voluntaria e na memoria.

Leontiev utilizou um jogo infantil tradicional na Europa

como base para estruturar a situacao experimental. Nes-

se jogo uma pessoa faz perguntas a outra, que deve res-

ponder sem usar determinadas "palavras proibidas". No

caso do experimento de Leontiev, as criancas deveriam

responder a diversas questoes sobre cores , por exemplo:

"Qual a cor de um tomate?", "Qual a cor da sua blu-.

s~?", sem usar 0 nome de duas cores definidas no expe-

nmento como "proibidas" (verde e amarelo, por

exemplo).

Na primeira fase do experimento 0 pesquisador for-

mulava as perguntas oraImente, e a crianca simplesmen-

te as respondia, como no jogo original. Sua resposta era

considerada errada se falasse 0 nome das cores proibidas.

Numa segunda fase, a mesma brincadeira de pergunta-

resposta era fei ta, mas a crianca recebia canoes coloridos

que podia utilizar, se quisesse, como auxiliares no jogo.

Algumas criancas passaram, entao, a utilizar os canoes

como suportes externos para sua atencao e memoria: se-

paravam os cartoes com as cores proibidas e, antes de res-

ponder as perguntas, olhavam para os canoes, como se

estivessem "consultando" uma Fonte de inforrnacao.

As criancas que utilizaram os cartoes como marcas ex-

ternas para a regulacao de sua atividade psicologica co-

~eteram muito menos erros nessa segunda fase do expe-

nrnento do que na primeira fase, sem os cartoes. Nova-mente, aqui, a atividade psi cologie a foi beneficiada pela

ut ilizacao de sign os como "instrumentos psicolcgicos":

32

Esse jogo tambem e conbeado no

B ra si l, s en do a s ' 'p ai av ra s p ro ib i-

das" sim, nao e porque,

Atividade direta

pergunta------- resposta

Atividade mediada

pergunta resposta

~

canoes coloridos

33

 

ses sujeitos foram capazes de, por conta propria, pensar

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Os sistemas simb6licos e 0 processo deinternalizacao

Vim?s que Vygotsky trabalha com a funcao mediado-ra dos mstrumentos e dos signos na atividade humanafazendo uma analogia entre 0papel dos instrurnentos de

trabalho na transforrnacao e no controle da natureza e

o papel dos sign?~ enquanto instrumenros psicologic~s,

f~rrame?~as auxiliares no controle da atividade psicolo-grca. E e justarnente em sua analogia com os instrumen-tos de trabalho que ossignos aparecem como marcas ex-

ternas, que fornecem urn suporte concreto para a acaodo homem no mundo.

Ao longo da evolucao da especie humana e do desen-volvimento de cada individuo, ocorrem, entretanto, duas

mudancas qualit~t~vas fundamentais no usa dos signos.Por urn lado, a utilizacao de marcasexternas vai se trans-f~rmar em processos internos de rnediacao: esse meca-~Ismo e chamado, por Vygotsky, de processo de interna-Iizacao. Por outro lado, sao desenvolvidos sistemas sirn-

bolicos, ~ue organizam os signos em estruturas comple-xas e articuladas. Vamos discuti-Ios em maior detalhe a

s~guir, pois ~anto0processo de internalizacao como a uti-

Iizacao .de sistemas sirnbolicos sao essenciais para 0 de-

s~nvolvl!llento dos processos mentais superiores e eviden-Clam a importancia das relacoes sociais entre os indivi-du~s na construcao dos processos psicologicos.

E inter~ss.antc;,retomar, aqui, 0 experirnenro das "pa-lavras proibidas desenvolvido por Leontiev. Conforme

mencionamos anteriorrnente, foi apenas a partir dos oi-to anos, aproximadarnenre, que as criancas fizeram usa

dos cartoes como instrumentos psicologicos: criancas me-

n?res operaram de forma direta, sem 0 usa de signos me-diadores. Adultos que participaram do mesmo experimen-

to tambern nao se beneficiaram da presenca dos cartoes:seu desempenho na primeira fase do experimento (semcartoes) foi muito semelhante ao da segunda fase (comcartces).

Vygotsky argumenta que esse resultado nao significa

u:na rewessao dos adultos a uma atividade psicologicanao mediada, como a das criancas pequenas. Ao contra-

rio,0

born desempenho dos adultos nas duas fases doexperimento evidencia que esta, sim, havendo mediacao,

porern que ela esta ocorrendo internamente, independen-temente da presenca dos cartoes. Podemos supor que es-

34

A linguagem e 0 sistema simb6-

lico basico de todos osgrupos hu-

manos. A questiio do desenvolvi-

mento da l inguagem e suas reia-

Foescom 0pensamento e um dos

temas centrais das investigaFoes

de Vygotsky, Esse tema sera ex-

plorado no capitulo 3.

na cor verde como sendo "proibida" , sem necessitar da

existencia fisica de urn cartao verde para Iernbra-Ios dis-

so. Ao longo do processo de desenvolvimento, 0 indivi-duo deixa de necessitar de marcas externas e passa a uti-

lizar signos internos, isto e , represenracoes mentais que

substituem os objetos do mundo real. Os signos interna-

lizados sao, como asmarcas exteriores, elementos que re-

presentam objetos, eventos, situacoes. Assim como urn

no num lenco pode representar urn comprornisso que naoquero esquecer, minha ideia de "mae" representa a pes-soa real da minha mae e me perrnite lidar mentalmente

com ela, mesmo na sua ausencia. No caso dos canoes,

a ideia "verde = proibido" substitui 0 cartao verde co-

mo signa mediador.

A propria ideia de que 0 homem e capaz de operarmentalmente sobre 0mundo - isto e , fazer relacoes, pla-nejar, comparar, lembrar, etc. - supoe urn processo derepresentacao mental. Temos conteiidos menta is que to-

mam 0 lugar dos objetos, das situacoes e dos eventos do

mundo real. Quando pensamos em urn gato, por exem-

plo, nao temos na mente, obviamente , 0 proprio gato;trabalhamos com uma ideia, urn conceito, uma imagem,

uma palavra, enfim, algum tipo de representacao, de sig-

no, que substitui 0 gato real sobre 0 qual pensamos.

Essa capacidade de lidar com representacoes que subs-

tituern 0 proprio real e que possibilita ao homem libertar-

se do espaco e do tempo presentes, fazer relacoes men-

tais na ausencia das proprias coisas, imaginar, fazer pia-

nos e ter intencoes. Posso pensar em urn gato que nao

esta presente no local em que estou, imaginar urn gatosobre uma poltrona que no momenta esta vazia, preten-

der ter urn gato em minha casa a partir da proxima se-mana. Essas possibilidades de operacao mental nao cons-

tituern uma relacao direta com 0 mundo real fisicarnen-

te presente; a relacao e mediada pelos signos internal i-

zados que representam os elementos do mundo, liber-

tan do 0homem da necessidade de interacao concreta com

os objetos de seu pensamento.

Quando trabalhamos com os processos superiores que

caracrerizam 0funcionamento psicol6gico tipicarnente hu-

mano, asrepresentacoes mentais da realidade exterior sao,

na verdade, os principais mediadores a serem considera-

dos na relacao do homem com 0mundo. E justamentea origem dessas representacoes que Vygotsky esta buscan-

do quando nos remete a criacao e ao uso de instrumen-

35

 

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tos e de signos externos como mediadores da atividadehumana.

Aolongoda hist6ria da especiehumana - onde 0 sur-gimento do trabalho propicia 0 desenvolvimento da ati-vidade coletiva, das relacoes sociais e do uso de instru-mentos - as representacoes da realidade tern se articu-lado em sistemassimb6licos.Isto e , ossignos nao seman-tern como marcas externas isoladas, referentes a objetosavulsos, nem como simbolos usados por individuos par-

ticulares. Passam a ser signos compartilhados pdo con-junto dos membros do grupo social, permitindo a cornu-nicacao entre os individuos e 0 aprimoramento da inre-racaosocial. Quando urn individuo aprende, por exern-plo, 0 significado de "cavalo", esseconceito, internali-zado pelo individuo e compartilhado pelos outros usua-rios da lingua portuguesa, passa a ser uma representacaomental que servecomosigna mediador na sua compreen-sao do mundo. Se alguem the contar uma hist6ria sobreurn cavalo, 0 individuo nao necessitara do contato diretocom esse animal para lidar mentalmente com de, paracompreender a hist6ria. A ideia de cavalofara a media-

<;aoentre 0 cavaloreal (que pode estar ausente) e a ativi-dade psicol6gica do sujeito (pensar sobre 0 cavalo,irnagina-Io nas acoes descritas na hist6ria, etc.).

Os sistemas de representacao da realidade - e a lin-guagem e 0 sistema sirnbolico basicode todos os~gruposhumanos - sao, portanto, socialmente dados. Eo gru-po cultural onde 0 individuo se desenvolve que the for-nece formas de perceber e organizar 0 real, as quais vaoconstituir os instrumentos psico16gicosque fazem a me-diacao entre 0 individuo e 0 mundo.

Enquanto mediadores entre 0 individuo e 0 mundo

real, essessistemas de representacao da realidade consis-tern numa especie de "filtro' atraves do qual 0 homemsera capaz de ver 0 mundo e operar sobre de. Quandourn individuo v€:,por exemplo, urn aviao, de e capaz deinterpretar esseobjeto como urn aviao e nao como urnamontoado de inforrnacoes perceptuais (linhas, formas,cores, sons) ca6ticas ou nao compreensiveis. 0 conceitode aviao, construido socialmente, consiste numa repre-sentacao mental que faz a mediacao entre 0 individuoeo objeto real que esta no mundo. A palavra "aviao".que designa uma. certa categoria de objetos do mundoreal, e urn signo mediador entre 0 individuo e 0 aviao

enquanto elernento concreto.

A vi ao s ob re vo a nd o um a t ri bo i n-digena.

36

Vamos supor a existencia de urn grupo cultural onde,

por alguma razao, nunca tenharn sido vistos avioes. Se

a urn individuo desse grupo cultural for mostrado, pela

prime ira vez, um aviao,. ele nao tera condicoes deinterpreta-lo como tal; nao dispora da representacao SlID-

b6lica, do instrumental psicol6gico que permita a com-

preensao desse objeto. E a part ir de sua experiencia como mundo objetivo e do contato com as formas cultur~l-

mente dererminadas de organizacao do real (e com ossig-

nos fornecidos pela cultura) que os individuos vao cons-

truir seu sistema de signos, 0 qual consistira numa espe-cie de "c6digo" para decifracao do mundo.

Uma consequencia importante dessas colocacoes de

Vygotsky, diretamente ligada a um dos "pilares" de seu

pensamento, discutidos no primeiro capitulo, e que osgrupos culturais em que as criancas nascem e se desen-

volvem funcionam no sentido de produzir adultos que

operam psicologicamente de uma maneira particular, deacordo com os modos culturalmente construidos de or-

denar 0 real. E importante mencionar que a dimensao

sociocultural do desenvolvimento humano nao se refere

apenas a um amplo cenario, um pano de fundo onde se

desenrola a vida individual. Isto e , quando Vygotsky fa-la em cultura nao esta se reportando apenas a fatores

abrangentes como 0 pals onde 0 individuo vive, ~seuni-vel s6cio-econ6mico, a profissao de seus palS. Esta falan-

do, isto sim, do grupo cultural como fornecendo ao in-

dividuo um ambiente estruturado, onde todos oselemen-

tos sao carregados de significado. Toda a vida humana

esta impregnada de significacoes e a influencia do rnun-do social se da por meio de processos que ocorrem em

37

 

diversos niveis . Assim, se 0 bebe e colocado para dormiruezes: primeiro, no nioe! social,

e , depo is , no n ioe! ind iv idua l;se da "de fora para dentro". Isto e , primeiramente 0 in-

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num berco, nurna rede ou numa esteira, se quem alimen-

ta a crianca e a mae ou outro adulto, do sexo masculino

ou feminine, se 0 alimento solido e levado it boca com

a mao, com talheres ou com palitos, se existem ou nao

escolas ou outras insti tuicoes onde as criancas sao subme-

tidas a conteiidos culturais considerados importantes, estes

s~o apenas exemplos da mul tip lic idade de fatores que de-

finern qual e 0mundo em que 0 indiv iduo vai se desen-

volver.

A interacao face a face entre individuos par ticulares

desempenha urn papel fundamental na construcao do serhumano: e atraves da r e l acao in terpessoal concreta com

outros homens que 0 individuo vai chegar a interiorizar

as formas cul turalmente estabelecidas de funcionamen-

to psicologico. Por tanto, a interacao social, seja direra-

~ente com outros membros da cultura, seja atraves dos

diversos elementos do ambiente culturalmente estrutu-

rado, fornece a materia-prima para 0 desenvolvimento

ps i co l og i co do individuo.

A cultura, entretanto, nao e pensada por Vygotsky co-

mo algo pronto, urn sistema es tatico ao qual 0 individuo

se submete, mas como uma especie de "palco de nego-

ciacoes' , em que seus membros es tao num constante mo-

vimento de recriacao e rein terpretacao de inforrnacoes,

concertos e signif icados. A vida social e urn processo di-

narnico, onde cada sujei to e ativo e onde acontece a in-

teracao entre 0mundo cultural e 0mundo subjetivo de

cada urn. Neste sentido, e novamente associado a sua fi-

liacao marxista, Vygotsky postula a interacao entre va-

rio~ pla~lOs historicos: a historia da especie (filogenese),

a historia do grupo cultural, a historia do organismo in-

dividual da especie (ontogenese) e a sequencia singular

de processos e experiencias vivid as por cada individuo.

o processo pelo qual 0 individuo internaliza a materia-

prima ~orneci~a pela cultura nao e, pois, urn processo de

absorcao passrva, mas de t ransforrnacao, de sintese. Esseprocesso e, para Vygotsky, urn dos pr incipais mecanis-

-'}losa serem compreendidos no estudo do ser humano.

E como se, ao longo de seu desenvolvimento, 0 indivi-

duo' 'tomasse posse" das formas de compor tamento for-

necidas pela cultura, num processo em que as atividades

ex.ternas e .as funcoes interpessoais transformam-se ematividades mternas, intrapsicologicas.

o processo de desenvolvimento do ser humano, mar-

cado por sua insercao em determinado grupo cultural,

38

Todas asfunfoes no desenvotoi-

mento da cnanca aparecem duas

pnmeiro entre pessoas (interpsi·

coI6gica) , e, depots, no interior

da crianca (intrapsicoI6gica)' '.

VYGOTSKY, p. 64, (2) .

las pessoas a seu redor, de acordo com os signif icados cul-

turalmente estabelecidos. A parti r dessa in terpretacao eque sera possivel para 0 individuo atribuir significados

a suas p ro p ri as a c oe s e desenvolver processos ps i co l og i cos

intern os que podem ser interpretados por ele proprio a

parti r dos mecanismos estabelecidos pelo grupo cultural

e compreendidos por meio dos codigos comparti lhados

pelos membros desse grupo.

Vygotsky utiliza 0 desenvolvimento do gesto de apon-

tar , na cr ianca, como urn exemplo que ilus tra 0 processo

de internalizacao de significados dados culturalmente. Ini-

cialmente 0 bebe tenta pegar, com a mao, urn objeto-

urn chocalho, por exemplo - que est a fora de seu al-

cance. Estica a mao na direcao do chocalho fazendo, no

ar, urn movimento de pegar, sem conseguir toca-lo. Do

ponto de vista do bebe, este e urn gesto dirigido ao cho-

calho, uma relacao externa entre ele e esse chocalho, uma

tentativa malsucedida de alcancar urn objeto. Quando

urn adulto ve essa cena, entretanto, ocor re uma transfor -

macae na situacao. Observando a tentativa da crianca de

pegar 0 chocalho, 0 adulto provavelmente reage dando

o chocalho para a crianca. Na verdade estara interpretando

aquele movimento malsucedido de pegar urn objeto co-mo tendo 0 significado' 'Eu quero aquele chocalho".

Ao longo de varias experiencias semelhantes, a pro-

pria crianca come~a a incorporar 0 significado atribuido

pelo adulto it situacao e a compreender seu proprio ges-

to como sendo urn gesto de apontar urn objeto deseja-

do. Aquele movimento, que era urna relacao entre a cr ian-

ca e 0 chocalho, passa a ser dir igido para outra pessoa.

o movimento de pegar transforma-se no ato de apon-

tar, com uma interacao orientada nao mais para 0 obje-

to, mas para outra pessoa. 0 significado do gesto e ini-cialmente estabelecido PQruma situacao objet iva, depois

interpretado pelas pessoas que cercam a crianca e a se-guir incorporado pela propr ia crianca, a par tir das inter-

pretacoes dos outros.

Poderiamos explorar 0 exemplo dado por Vygotsky

imaginando urn grupo cultural onde 0 gesto de apontar

nao exista, ou melhor , nao tenha nenhum signif icado es -

tabelecido. Neste caso hipotet ico , aquele movimento ori -

ginal da crianca, de tentar pegar urn objeto fora de seu

alcance, nunca sera interpretado, pelos adultos desse gru-

po, como urn gesto de apontar; nunc a sera, portanto, in-

39

 

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ternalizado pela crianca como tendo urn significado queestabelece relacoes com aspessoas e, provavelmente, per-rnanecera como urn movimento que relaciona a criancacom 0 objeto.

As origens das funcoes psicol6gicas superiores devem

ser buscadas, assirn, nas relacoes sociais entre 0 indivi-duo e os outros homens: para Vygotsky 0 fundamento

do funcionamento psicol6gico tipicamente humano e so-cial e, portanto, hist6rico. Os elementos mediadores narelacao entre 0homem e 0mundo - instrumentos, sig-

nos e todos os elementos do ambiente humano carrega-dos de significado cultural - sao fornecidos pelas rela-

s6es entre os homens. Os sistemas simb6licos, e particu-Iarrnente a linguagem, exercem urn papel fundamental

na comunicacao entre os individuos e no estabelecimen-to de significados compartilhados que permitern inter-pretacoes dos objetos, eventos e situacoes do mundo real.A linguagem, e suas relacoes com 0 funcionamento psi-

col6gico do hornem, e 0 terna tratado no capitulo quese segue.

Pensamento e

linguagem

41

40

 

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No caplt~lo 2 d~scut!mos a imporrancia do. conceito

de mediacao simbolica para Vygotsky. Virnos que

os process os mentais superiores que caracterizam 0 pen-

samento t ipicamente humano - acoes conscienternenre

controladas, atencao voluntaria, memorizacao ativa, pen-

samento abstrato, comportamento intencional- sao pro-

cessosmediados por sistemas simb6licos. Como a lingua-

gem e 0 sistema simb6lico basico de todos os grupos hu-

manos, a questao do desenvolvimento da linguagem esuas relacoes com 0 pensamento ocupa lugar central naobra de Vygotsky.

Vygotsky trabalha com duas Iuncoes basicas da lingua-

gem. A principal func;ao e a de intercimbio social : e pa-ra se comunicar com seus semelhantes que 0 homem cria

e utiliza os sistemas de linguagem. Essa funcao de co-

municacao com os outros e bern visivel no bebe que estacornecando a aprender a falar: ele nao sabe ainda art icu-

lar palavras, nem e capaz de cornpreender 0 significado

precise das palavras uti lizadas pelos adultos, mas conse-

gue comunicar seus desejos e seus estados emocionais aos

outros atraves de sons, gestos e express6es. E a necessida-

de de cornunicacao que impulsiona, inicialmenre, 0 de-senvolvimento da linguagem.

Para que a cornunicacao com outros individuos sejapos-

sivel de forma mais sofisticada, nao basta, entretanto, que

a pessoa manifeste, como 0 bebe, estados gerais como

"desconforro" ou "prazer". E necessario que sejam uti-

lizados signos, compreensiveis por outras pessoas, que tra-duzam ideias, sentirnenros, vontades, pensamentos, de

forma bastante precisa. Como cada individuo vivesua ex-periencia pessoal de modo muito complexo e part icular ,

42

Um dos livroJ mais importantesde Vygotsky chama-se,justamen-te, Pensamenro e linguagern.

Nesse livro de trata da origem edo processo de desenvolvimentodo pensamento e da linguagemno serhumano, comparando suasposifoes com as de outros auto-res, principalmente Piaget.

o mundo da experiencia vivida tern que ser extrem~ente

simplificado e generalizado para poder ser traduzido em

signos que possam ser transmitidos a outros.

A palavra cachorro, por exemplo, tern urn significado

preciso, compartilhado pelos usuaries da lingua portu-

guesa. Independentemente dos cachorros concretos que

urn individuo conheca, ou do medo de cachorro que al-

guern possa ter, a palavra cachorro denomina urn certo

conjunto de elementos do mundo real. 0 concerto de ca-

chorro pode ser traduzido por essa palavra e sera adequa-damente compreendido por outras pessoas, r_nesmo que

a experiencia concreta delas com cachorros seja diferente

da do individuo que utilizou a palavra.

E esse fen6meno que gera a segunda funcao da lin-

guagem: a de pensamento generalizante. A linguagem

ordena 0 real, agrupando todas asocorrencias de uma mes-

rna classe de objetos, eventos, situacoes, sob uma mes-

rna categoria conceitual.

Ao chamar determinado objeto de cachorro estou, en-

tao, c1assificando esse 0bje to na categoria "cachorro " e,

portanto, agrupando-o com outros elementos da mesma

categoria e, ao mesmo tempo, diferenciando-o de ele-

mentos de outras categorias. Urn cachorro particular e par-te de urn conjunto abstrato de objetos que sao todos rnem-

bros da mesma categoria e distingue-se dos membros das

categorias "mesa", "girafa", "caminhao'", etc.

E essa funcao de pensamento general izante que torna

a linguagem urn instrumento de pensamento: a lingua-

gem fornece os conceitos e as formas de organizacao ~o

real que consti tuern a rnediacao entre 0 sujeito e 0 obje-

to de conhecimento. A cornpreensao das relacoes entre

pensamento e Iinguagem e, pois, essencial para a com-

preensao do funcionamento psicol6gico do ser humano.

o desenvolvimento do pensamento

e da linguagem

o pensamento e a linguagem tern origens diferentes

e desenvolvem-se segundo trajet6rias diferentes e inde-pendentes, antes que ocorra a estreita ligacao entre esses

dois fen6menos. Vygotsky trabalha com 0 desenvolvimen-

43

 

to da especie humana e com d .

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vfduo humano buscand 0 esenvolv~ento do indi-

toria desses d~is fen6m~~~~preender a ongem e a traje-

Ao buscar compreender h . ~.na, Vygotskyedcontrou n a IstO;la t~specie huma-

tas superiores, p rinc ipal~e~~ee~tu o~ . ertos com pr ima-

~e funcionamento intelectual e~m c lmpan~e~, formasl111guagem que pod . ormas de utlhza<;ao de

dcnam ser tomadas

o pensamento e da ling como precursoras

derou esses processos com~a~~~~o ~~Ium~no. Consi-desenvolvimento do P a ase pre-verbal do

. ensamento" e "f ~.tual do desenvolviment d l' a ase pre-I ll te lec-

. . _ 0 a lllguagem".Os anImalS sao capazes de utili .

mediadores entre eles e . izar lllstrumentos como

minados problemas Us:r:mbl.ent~ para resolver deter-

guir urn cerro objeti~o rneros llld1t~tos para conse.cionados em que chi ' como nos expenmentos ja men-

. ' lmpanzes utiliem carxotes para alcancar l' rzarn varas ou sobem

teo Esse tipo de comport um a rmenm que esta disran-" . l' amento revel a urn ~. dlnte igencia pratica" d' . a espeCle e

<;aode problemas e de alte e _eXls te capaCldade de solu-_ cracao do arnbi

tencao de determinados fins E rente para a ob-

to lntelectual e independe~te sd: 1I~d~ de funclO~a1!'en-

a chamada fase pre-verbal do d g agem, deflllllldosamenro. esenvolvlmento do pen-

44

A evolufiio de uma especie e eha-

mada filogenese e 0 desenvolvi-

mento de um indiv[duo e ehama-

do ontogenese. Conforme seradzseutzdo em mais detal.LP_ /, ne no ca -ztu 0 4, Vygotsky preoeupa-se

eonstantemente em eompreender

os aSj.ectosfilogenetieos e onto-ghenetzeos do desenvolvimentoumano.

Chimpanzes em situafi io de co-muntcariio social.

"Na ausincia de um sis tema de

signos, lingUistieos ou nso, so-

mente 0 tipo de eomunieafito

maisprimitivo e /imitado torna-

se possioel. A comunicacdo por

meio de movimentos expressioos,

observada prineipalmente entre

os animais, e mais uma efusitoafetiva do que comunicacso. Um

ganso amedrontado, pressenttn-

do subitamente a/gumpengo, ao

alertar 0 bando inteiro com seus

gritos, nito esta informando aos

outrosaquzlo que viu, masantescontagiando-os com seu medo. "

VYGOTSKY, p. 5 , (4) .

Afito coletiva em situafiio de tra-

balho: intercnmbio, planejamen.

to e uso de instrumentos.

Ao mesmo tempo em que exibem essa forma de pen-

samento pre-verbal, os animais tambern se ut il izam de

uma linguagem propria. Emitem sons e ut il izam gestos

e expressoes faciais que tern a funcao de a l iv i o e r n oc i o-

nal e consti tuem, simul taneamente, um meio de conta-

to psico16gico com osoutros membros do grupo. Esseuso

da l inguagem e pre-intelec tua l no sent ido de que ela nao

tem ainda funcao de signo. I sto e, funciona como meio

de expressao emocional e de comun icacao difusa com os

outros, mas nao indica significados especfficos, cornpreen-siveis de forma precisa por urn interlocutor que compar-

tilhe de um sistema de s ignos.

Existe, assim, a t rajeto r ia do pensamento desv incula-

do da l inguagem e a tra jetor ia da l inguagemindepen-

dente do pensamento. Num determinado momenta do

desenvolvimento f ilogenetico, essas duas t ra jet6rias se

un em e 0 pensamento se torn a verbal e a l inguagem ra -

cional. A associacao entre pensamento e linguagem e atri-buida a necessidade de intercambio dos individuos du-

rante 0 t rabalho, a tividade especificamente humana. 0

trabalho e uma atividade que exige, por um lado, a uti-

lizacao de instrurnentos para a transforrnacao da nature-

za e, por ourro lado, 0 plapejamento, a ac;aocoletiva e,portanto, a cornunicacao social. Para agir coletivamente

e de formas cada vez mais sofisticadas, 0 grupo humano

teve de criar um sistema de cornunicacao que permitisse

t roca de infor rnacoes especificas, e ac;aono mundo com

base em significados compartilhados pelos varios indivi-

duos empenhados no projeto colet ivo. O.surg imento do

pensamento verbal e da l inguagem como sistema de sig -

nos e um momenta crucia l no desenvolvimento da espe-

cie humana, momenta em que 0 biologico transform a-

se no s6cio-hist6rico.

45

 

Na evolucao do individuo , observada desde seu nasci-

Assim como ocorreu no desenvolvimento da especie

humana , num determinado momenta do desenvolvimen-

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mento, ocorre urn processo semelhante aquele descrito

para a hist6ria da especie. Antes de 0 pensamento e a

linguagem se associarem, existe, tambern, na crianca pe-

quena , uma fase pre-verbal no desenvolvimento ~o pen-samento e uma fase pre-intelectual no desenvolvirnento

da linguagem. Antes de dominar a linguagem, a crianca

dernonstra capacidade de resolver problemas praticos, de

uti lizar instrumentos e meios indiretos para conseguir de-

terminados objet ivos, Ela e capaz , por exemplo, de su-

bir numa cadeira para alcancar urn brinquedo, ou de dar

a volta num sofa para pegar uma bolacha que caiu arrasdele. De forma semelhante ao chimpanze, a crianca pre-

verba l exibe essa especie de inteligencia pratica, que per-

mite a acao no ambiente sem a rnediacao da linguagem.

Nessa fase de seu desenvolvimento, a crianca, embora

nao domine a linguagem enquanto sistema simb6lico,

ja u tiliza rnanifestacoes verbais. 0 choro, 0 riso e 0 bal-

bucio da crianca pequena tern clara funcao de a livio emo-

cional, mas tam bern servem como meio de contato so-

cial, de cornunicacao difusa com outras pessoas.

46

Essalase pre-verbal do desenvol-

vimento dopensamento pode ser

associada ao periodo sens6rio-

motor descr ito por Piaget, no

qual a ayiio da crianca no mundoe f ei t« por meio de sensacoes e

movimentos, sem mediayi io de

representacoes simb6licas.

to da crianca (por volta dos do is anos de idade) 0 percur-

so do pensamento e9-contra-se com 0 da linguagem e

inicia-se uma nova forma de funcionamento psicologi-

co: a fa la torna-se intelectual, com funcao s imbolica, ge-

neralizante, eo pensamento torna-se verbal, mediado por

significados dados pela linguagem. Enquanto no desen-

volvimento filogenetico foi a necessidade de intercarn-

bio dos ind ividuos durante 0 t rabalho que impulsionou

a vinculacao dos processos de pensamento e linguagem,

na ontogenese esse impulso e dado pela propria insercao

da crianca num grupo cultural. A interacao com mem-

bros mais maduros da cultura, que ja dispoern de uma

linguagem estruturada, e que vai provocar 0 salta quali-

tativo para 0 pensamento verbal.

Fase Pre-linguistica do Pens amen to

• utilizacao de instrumentos ~

• inte ligencia pratica

Pensamento Verbal e

/

Linguagem Racional

• transformacao do

biologico no socio -h is to r icoFase Pre-intelectual da Linguagem

• alivio emocional

• funcao social

I Quando os processos de desenvolvimento do pensa-

mento e da linguagem se unem, surgindo, entao, 0 pen-

samento verbal e a linguagem racional, 0 ser humano

passa a ter a possibilidade de urn modo de funcionamento

psicologico mais sofisticado, mediado pelo sistema sim-

b61ico da linguagem. E importante mencionar que, pa-

ra Vygotsky, 0 surgimento dessa possibi lidade nao elimina

a presenca da linguagem sem pensamento (como na lin-

guagem puramente emocional ou na repeticao autorna-

rica de frases decoradas, por exemplo), nem do

pensamento sem linguagem (nas acoes que requerem 0

uso da inteligencia pratica, do pensamento instrumen-

tal) . Mas 0pensamento verbal passa a predominar na a~ao

psicol6g ica tip icamente humana. Por isso ele e objeto pri-

vilegiado dos estudos de psicologia, onde os processos

mentais superiores interessam, particularmente, para a

cornpreensao do funcionamento do hom em enquanto ser

socio- hist6rico.

47

 

o significado das palavras tura, juncao de duas pe~as de roupa"; a seguir passou

a designar, por analogia, qualquer especie de juncao: a

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Na ana!ise que Vygotsky faz das relacoes entre pensa-

mento e hngua.ge~~ a questao do significado ocupa Iu -gar centra~. 0sIgnIfIcado e um componente essencial da

palavrae e., .ao mesmo tempo, urn ato de pensamento,

po~s0~Igll1fICadode uma palavra ja e, em si, uma gene-

rahza~ao. Isto e, no significado da palavra e que 0 pen-

samento e a fala se unem em pensamento verbal . Ao di-zer saparo, por exemp~o, esto~ enunciando uma pala-

vra qu~etern urndeterrninado

sIgnificado. Esse significa-~o, alem de possibilItar a comunica~ao entre usuaries da

lIngua, define urn modo de organizar 0 mundo real de

for1_llaque a alguns objetos (os sapatos) essa palavra se

a~lIca e a ?utros (cadeiras, cachorros, etc.) essa palavranao se aplica.

E _?osi~~icado 9ue se encontra a unidade das duasfun~oes basicas da linguagem: 0 inrercambio social e 0

pensarnenm ge.ne~ali~ant~..Sao os significados que vaopropiciar a m~di~~aoslffibolica entre 0 indivrduo e 0rnun-

d? :eal, c~onstltullldo-se no "fiItro" atraves do qual 0 in-

d1V1~~O~ cap~z de compreender 0 mundo e agir sobreele . ~ signifI~ado de uma palavra represent a urn amal-

gama .t~~ es~relto do pensamento e da linguagem, quefica diftcil dizer se se trata de urn fenomeno da fala ou

d~ urn fenomeno do pensamento. Urna palavra sem sig-

nip~~do e ~m som vazio; 0 significado, portanto, e urn

cnte~lOda £>alavra', se.uc?mponente indispensavel Pa-recef,Ia,,entao, que 0 sIgnificado poderia ser visto como

urn. enoI?e~~ da fala. Mas, do ponto de vista da psico-10gIa, 0 significadr, de cada palavra e uma generaliza~ao

o_u~m concerto E como as generaliza~6es e os conceiros

sao llleg~ve~mente atos de pensamento, podemos consi-derar 0 sIgnificado como urn fenomeno do pensamento."

~ Como os significados sao construfdo- ao longo da his-

tona dos grupos huma~<?s, com base nas rela~6es dos ho-me_?scom 0 mundo flSICOe SOCIal em que vivem, eles

estao em constante transforma~ao. No desenvolvimentode uma lingua, os significados nao sao, pois, esraticos:

urn n01_llenasce para designar urn determinado concei-

to, e valsofrendo :nodifica~6es, refinamentos, acrescirnos.

~m e.xemplo d~ lIngua russa, mencionado por Vygotsky,

e multo .aproI?nad?,p~ra ilustrar esse fenorneno. A pala-vra sutki significa dia-e-noire ". isto e, urn perfodo de

24 horas. Onglllalmente, essa palavra significava "cos-

48

<J VYGOTSKY, p. 104, (4).

SILVEIRA BUENO, (25) e (26). e -

juncao de duas paredes , urn canto, uma esquina. Meta-

foricamente essesignificado foi estendido, posteriorrnente,

para 0 crepiisculo, isto e , a juncao do dia com a noire .A partir dai, 0 periodo cornpleto entre urn creptisculo e

outro, isto e, 0 periodo de 24 horas que inclui 0 dia e

a noire, passou a ser chamado de sutki.

Na Hngua portuguesa temos exemplos semelhantes.

A palavra mancebo (do latim mancipium) significava, ori-

ginalmente, "escravo". Pelo fato de sepreferirem escra-

vos jovens, fortes, passou a significar "rnoco, jovem, for-te". Depois 0 termo passou a designar amante, prova-

velmente porque nas casas roman as muitas vezes os jo-

yens escravos passavam a amantes de suas senhoras. Darmancebia, designando concubinato, eo verbo amancebar-

se. Mancebo tam bern significa "cabide onde se pendu-

ram roupas, chapeus, etc." , numa rerniniscencia do sig-

nificado de escravo. A palavra boemio designava 0 habi-

tante da Boernia : como os ciganos vinham da Boemia,

essa palavra passou a significar "errante, nornade, des-

regrado" .

De modo similar ao que acontece na his t6ria de uma

lingua, a transforrnacao dos significados tambern ocorreno processo de aquisicao da linguagem pela crianca, 0

sistema de relacoes e generalizacoes conti do numa pala-

vra muda ao longo do desenvolvimento. Ao aprender,

por exemplo, a palavra lua, a crianca pequena pode aplicarinicialmente essa palavra nao s6 a propria lua, como aabajures, lustres, lanternas e outros focos de luz visfveis

a noite ou em ambientes escuros. Por outro lado, pode

pensar que Nescau refere-se apenas ao leite morno com

chocolate que sempre toma, nao aceitando essa designa-

~ao, por exemplo, para leite ge1ado com chocolate. Ao

tomar posse dos significados expressos pela linguagem,

a crianca os aplica a seu universo de conhecimentos so-bre 0 mundo, a seu modo particular de "recortar"sua

experiencia. Ao longo de seu desenvolvimento, marca-

do pela interacao verbal com aduItos e criancas mais ve-

lhas, a crianca vai ajustando seus significados de modo

a aproxima-los cada vezmais dos conceitos predominan-

tes no grupo cultural e linguistico de que faz parte.

Esse processo de transforrnacao de significados ocorrede forma rnuito clara nas fases iniciais da aquis icao da

linguagem, quando tanto 0vocabulario da crianca quanto

seu conhecimento sobre 0mundo concreto em que vive

49

 

crescem muiro rapidamenre a partir de sua experienciaRelaciona-se com 0 fato de que a experiencia individual

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pessoaI. Mas os significados continuarn a ser transform a-

dos durante todo 0 desenvolvimento do individuo, ga-

nhando contornos peculiares quando se inicia 0 processode aprendizagem escolar. Entao se realiza a interven<;ao

deliberada do educador na forma<;ao da estrutura con-

ceitual das criancas e adolescentes. As transforma<;6es de

significado ocorrem nao rnais apenas a partir da experien-

cia vivida, mas, principalmente, a partir de defini<;6es,

referencias e ordenacoes de diferentes sistemas conceituais,

mediadas pelo conhecimento ja consolidado na cultura.

Assim, a crianca que aprendeu a distinguir a lua da

luz do abajur e da lanterns vai, agora, aprender que a

lua e urn satelite, que gira em torno da Terra, que sate li-

te e urn tipo de astro diferente de planetas e estrelas, etc.

Novarnenre 0 significado da palavra transforma-se,

tornando-se cada vez rnais proximo dos conceitos esta-

belecidos na cultura. No caso especifico do conhecimen-

to escolar, 0 referencial privilegiado dos sistemas concei-

tuais e 0saber acumulado nas diferentes disciplinas cien-tificas.

A ideia da transforrnacao dos significados das palavrasesta relacionada a urn outro aspecto da questao do signi-

f icado. Vygotsky distingue dois componentes do signifi-

cado da palavra: 0significado propriamente dito e 0 "sen-

tido". 0 significado propriamente dito refere-se ao sis-tema de relacoes objetivas que se formou no processo de

desenvolvimento da palavra, consist indo num micleo re-

lativamente estavel de compreensgn da palavra, cornpar-

tilhado por todas as pessoas que a utilizarn. 0 sentido,

por sua vez, refere-se ao significado da palavra para cada

individuo, compos to por relacoes que dizern respeiro ao

contexto de uso da palavra e as vivencias afetivas do in-

dividuo.

A palavra carro, por exemplo, tern 0 significado obje-

tivo de "vefculo de quatro rodas, movido a combusti-

vel , uti lizado para 0 transporte de pessoas": 0 sentido

da palavra carro, entretanto, variara conforme a pessoa

que a utiliza e 0 contexto em que e aplicada. Para 0 rno-

torista de taxi signifies urn instrumenro de trabalho; pa-

ra 0 adolescente que gosta de dirigir pode significar for-

rna de lazer; para urn pedestre que ja foi atropelado 0

carro tern urn sentido arneacador, que lernbra uma situa-

<;aodesagradavel, e assim por diante. 0 sentido da pala-

vra Iiga seu significado objetivo ao contexto de uso da

lingua e aos rnotivos afetivos e pessoais de seus usuaries.

50

Em seu /ivro Pensamemo e lin-

guagem Vygotsky traba/ha deta-

/hadamente com a questi io daformafiio de conceitos na crtanca,

tanto nasituafiio esco/arcomofo-ra de/a.

e sempre mais complexa do que a generalizacao contida

nos signos.

o discurso interior e a fala egocentrics

Conforme vim os no inicio deste capitulo, e a funcaogeneralizante da linguagem. 9.ue a to~na urn instrurnen-

to do pensamento. Ao se utilizar da linguagern 0 s.erhu-

mana e capaz de pensar de uma fo~ma que nao sena_pos~

sivel se ela nao existisse: a generalizacao e a abstracao so

se dao pela linguagem.

Mas 0 uso da linguagem co~o instr~me~to de pensa-

mento sup6e urn processo de internalizacao da lingua-

gem. Isto e , nao e apenas por falar ~o~ as outras pessoas

que 0 individuo da urn salto qualitative para 0 pensa-

mento verbal . Ele tam bern desenvolve, gradualmente, 0

chamado "discurso interior", que e uma forma interna

de linguagem, dirigida ao proprio sujeito e n~o a_um in-

terlocutor externo. E urn discurso sem vocahz~<;.ao, v?l-

tado para 0 pensamento, com a funcao de .auxIhar 0 m-

dividuo nas suas operacoes psicologicas. Diante do pro-

blema de como chegar de carro a urn determinado local,

por exemplo, uma pessoa "delibera" internam.~nt~ qual

o melhor caminho, levando em conta a conVelllen~la dos

varies percursos possiveis, 0 t ransito naque1e h~rano, et~.

Embora apoiando-se em racioclnios, referenc~s e deci-

soes de carater verbal, a pessoa nao fala alto, nao. conver-

sa com ninguern. Realiza, is to sim, 0 discurso mtenor,que e uma especie de dialogo consigo mesma.

Justamente por ser urn dialogo cons!go p~oprio,. 0 dis-

curso interior tern uma estrutura peculiar , diferenciando-

se da fala exterior. Como nao e feito para cornunicacao

com outros, constitui uma especie de "dialeto pessoal".

E fragmentado, abreviado, contendo quase so nuel~.?s de

significado e nao todas as palavras. usada~ nu~ dialogo

com outros. No exemplo de urn dialogo mtenor para a

escolha de urn born percurso de carro, 0 fO.rmato de~se

discurso seria algo como "direita -Brasil-o behsco-p~mlll-

gos" e nao a fala cornpleta "Eu ~ou entrar a due Ita na

Avenida Brasil, seguir ate 0 obelisco, fazer 0 c<?ntorno,

pegar aque1a rua que sobe e chegar ate a Domingos de

51

 

Moraes". Essa versao completa seria redundante demais

para urn dialogo do sujeito consigo mesmo.E interessante mencionar que a questao da fala ego-

centrica e 0 ponto mais explicito de divergencia entre

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Vygotsky postula para 0processo de desenvolvimento

do pensamento e da linguagem a mesma trajet6ria das

outras funcoes psicol6gicas. 0 percurso e da atividade so-cial, interpsiquica; para a atividade individualizada, in-trapsiquica. A crianca primeiramente utiliza a fala socia-

lizada, com a funcao de comunicar, de manter urn con-

tato social. Com 0 desenvolvimento e que ela passa a sercapaz de utilizar a linguagem como instrumento de pen-

samento, com a funcao de adaptacao pessoal. Is to e , a

internalizacao do discurso e urn processo gradual, que secornpletara em fases mais avancadas da aquisicao da lin-guagem.

No estudo da transicao entre 0 discurso socializado e

o discurso interior, Vygotsky recorre a "fala egocentri-

ca' como urn fenorneno relevante para a cornpreensao

dessa transicao. .

Conforme discutimos anteriormente, a funcao inicial

. da linguagem e a comunicacao social. 0 bebe, membro

imaturo de urn determinado grupo cultural, vai passar

por urn processo de aquisicao da linguagem gue ja existeno seu ambiente enquanto Sistema compartilhado pelos

membros desse grupo cultural. Nas fases iniciais da aqui-sicao da linguagem a crianca seutiliza, entao, da lingua-

gem externa disponivel no seu meio, com a funcao de

comurucar.

Num certo momenta do seu desenvolvimento, a criancapassa a se utilizar da linguagem egocentrica, falando al-

to para simesma, independentemente da presen<;ade urn

interlocutor. A fala egocentrica acompanha a arividade

da crianca, cornecando a ter umafuncao pessoal, l igada

as necessidades do pensamento. E utilizada como apoio

ao planejamento de sequencias a serem seguidas, como

auxiliar na solucao de problemas. Para Vygotsky, 0 sur-

girnento da fala egocentrica, com essafuncao claramen-te associada ao pensamento, indica que a traje t6r ia da

crianca vai, de fato, dos processos socializados para os pro-

cessosinternes. Isto e , ao tomar posse da linguagem, ini-cialrnente utilizada apenas com a funcao de comunica-

~ao, a crianca passa a ser capaz de utiliza-la como instru-

mento (interno, intrapsiquico) de pensamento. Como esseprocesso e gradual, a fala egocentric a aparece como urnprocedimento de transicao, no qual 0 discurso ja tern a

funcao que tera como discurso interior, mas ainda tern

a forma da fala socializada, externa.

52

Falaegocentrica ou discurso ego-

centnco e 0 discurso da cnanca

quando dialoga alto consigo pro-

pria , quando " fala sozinha" (ou

"pensa alto"). lsso acontece fre-

qiientemente com criancas por

vol ta dos tres ou quatro anos de

idade. Ao querer um brinquedoque estafora de seu alcance, por

exemplo, uma criancapoaeria di-

zer para sipropria: "Vou pegaraquele banquinho e subir nele.. ,

Ih, ele e muito baixinho. A ca-

deira e grande, vou pegar a

c aa ei ra .. " .

Piaget (1896-1980).

Vygotsky e Piaget. Para Piaget a funcao da fala egocen-trica e exatamente oposta aquela proposta por Vygotsky:ela seria uma transicao entre estados mentais individuais

nao verbais, de urn lado, eo discurso socializado e 0pen-

samento 16gico, de outro. Piaget postula uma trajet6ria

"de dentro para fora" , enquanto Vygotskyconsidera que

o percurso e "de fora para dentro" do individuo. 0 dis-

curso egocentrico e , portanto, tornado como transicao en-tre processos diferentes para cada urn desses teoricos. Es-

sa divergencia e discutida detalhadamente por Vygotskyno livro Pensamento e linguagem, publicado na UR S S

em 1934, e retomada por Piaget no texto escr ito no ini -

cio dos anos 60 e publicado como apendice da edicaonorte-americana desse livro.

Trecho da resposta de Piaget aos comentiir ios

de Vygotsky sobre sua obra , (21).

"Nao e sem trtsteza que um autor descobre,

25 anos depois de suapublicafao, a obra de um

colega, morto nesse interim, sobretudo selevadoem considerafao 0fato de que eta contem tantos

pontos de interesse imediato para ele, que pode-

nam ter sido dtscuttdos pessoalmente e em deta-

Ihe. Embora meu amigo A. Luna me tiuesse

informado sobre aposifao aomesmo tempo sim-

patizante e critica de Vygotsky a respetto de meutrabalho, nuncapude lerseustextos ou encontrar-

me com elepessoalmente; e hoje, aolerseu l i-

vro, lamento-o profundamente, porque setives-sesidopossivel uma aproximafao, poderiamos ter

chegado a nos entender sobre diversos pontes.

"[.. .} enquanto 0 livro de Vygotsky apare-

ceu em 1934, meus trabalhos que saopor ele dls-

cutldos datam de 1923 e 1924. Pensando de que

forma eu poaeria realizar esta discussao retros-pectiva, encontrei uma SOIUfaOao mesmo tem-

po simples e instrutiva (pelo menos para mim),

ou seja, procurer ver se as criticas de Vygotsky

justificam-se ii luz de meus trabalhos posterio-

res. A resposta e tanto aji'rmatlva como negati-va: a respeito de determinados aspectos estou

rnais de acordo com Vygotsky do que tena esta-

do em 1934 e a respeito de outros pontos acre-

dito que possuo, hoje, melhores argumentostiara Ihe responder. "

o desenvolvimento da linguagem e suas relacoes como pensamento sao, como acabamos de ver, questoes cen-

trais na obra de Vygotsky e sao por ele abordadas de for-

ma cornplexae multifacetada. Os diversos aspectos de sua

discussao sobre essas questoes podem ser sintetizados em

VYG0 TSKY, p. 108, (4). t> suas pr6prias palavras: "[ ... J a relacao entre 0pensamento

e a palavra nao e uma coisa mas urn processo, urn rnovi-rnento continuo de vaivern do pensamento para a pala-vra, e vice-versa. Nesse processo, a relacao entre 0 pensa-

rnento e a palavra passa por transforrnacoes que; em si

mesmas, podem serconsideradas urn desenvolvimento no

53

 

sentido funcional. 0 pensarnento nao e simplesmente ex-presso em palavras; e por rneio delas que ele passa a exis-tir. Cada pensamento tende a relacionar alguma coisacom

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outra, a estabelecer uma relacao entre ascoisas.Cada pen-sarnento semove, amadurece e se desenvolve, desempe-nha uma funcao, soluciona urn problema. Essefluxo de

pensamento corre como urn movimento interior atravesde uma serie de pIanos. Urna analise da interacao do pen-

samento e da palavra deve comecar com uma investiga-

c;aodas fases e dos pIanos diferentes que urn pensamen-to percorre antes de ser expresso em palavras.

"A primeira coisa que esseestudo revela e a necessi-dade de se fazer uma distincao entre os dois pIanos da

fala. Tanto 0 aspecto interior da fala - sernantico e sig-nificativo - quanto 0 exterior - fonetico -, embora

formem uma verdadeira unidade, tern as suas pr6priasleis de movimento. A unidade da fala e uma unidadecomplexave nao hornogenea.'

Desenvolvimento e

aprendizado

5 5

5 4

 

viduo que permitiarn a aquisicao da leitura e da escrita.Confirmando 0 mesmo fenorneno , podemos supor que

.se esseindividuo, por alguma razao, deixasse seu grupo

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Odesenvolvimento humano, 0 aprendizado e asrela-coes entre desenvolvimento e aprendizado saotemas

centrais nos trabalhos de Vygotsky. Sua preocupacao como desenvolvimento do homem esta presente em toda suaobra, como ficou evidente nos capitulos anteriores.

Vygotskybusca compreender a origem e 0 de~env?lvimen-to dos processos psicologicos ao longo da historia da es-pecie humana e da historia individual. Essetipo de abor-dagem, que enfatiza 0 processo de desenvolvimento, echamado de abordagem generica e e comurn a outras teo-

rias psicologicas.Asteorias deJean Piaget e de Henri WaHon sao asmais

completas e articuladas teorias geneticas do desenvolvi-mento psicologico de que dispomos. Diferenternente des-ses dois estudiosos, Vygotskynao chegou a formular umaconcepcao estruturada do desenvolvimento humano, apartir da qual pudessernos interpretar 0 processo de cons-trucao psicologica do nascimento ate a idade adulta. Ain-da que 0 desenvolvimento (da especie , dos grupos cul-turais, dos individuos) seja objeto privilegiado de suasinvestigacoes, Vygotsky nao nos oferece uma interpreta-<;aocompleta do percurso psicologico do ser humane:oferece-nos, isto sim, reflexoes e dados de pesquisa so-bre varies aspectos do desenvolvimento, os quais seraodiscutidos 'ao longo do presente capitulo.

Ao lado de sua preocupacao constante com a questaodo desenvolvimento, Vygotsky enfatiza, em sua obra, airnportancia dos processosde aprendizado. Para ele, desdeo nascimento da crianca, 0 aprendizado esta relaci?nadoao desenvolvimento e e "urn aspecto necessarioe universal <I

do processo de desenvolvimento das funcoes psicologi-cas culturalmente organizadas e especificamente huma-nas". Existe um percurso de desenvolvimento, em partedefinido pelo processo de maturacao do organismo ind~-vidual, pertencente a especie humana, mas eo aprendi-zado que possibilita 0 despertar de processos ll~ter,:~sdedesenvolvimento que, nao Fosse0 contato do individuo

com certo ambiente cultural, nao ocorreriam.

Podemos pensar, por exemplo, num individuo que vivenum grupo cultural isolado que nao dispoe de um siste-ma de escrita. Se continuar isolado nesse meio culturalque desconhece a escrita, esseindividuo j.amaissera alfa-betizado. Isto e , so 0 processo de aprendizado da leiturae da escrita (desencadeado num determinado ambientesocio-cultural onde isso seja possivel) e que poderia des-pertar osprocessos de desenvolvimento internes do indi-

56

A expressiio "genetica ", neste ca-

so, niiose referea genes, nao ten-do relayao nenhuma com 0 ramo

da biologia que estuda a trans-missao dos caractereshereditiirios.Refere-se, isto sim, a genese -

origem eprocesso deformayao apartir dessaorigem, eonstituiyao,gerayao de um ser ou de um fe-

nomeno . Essa distinyao e extre-mamente importante: uma abor-

dagem genetica em psieologianao e uma abordagem centrad ana transmissao hereditiina de ca-racteristicas psicologicas, mas no

processo de construcao dosfena-menos psicologicos ao longo dodesenvolvimento humano.

VYGOTSKY, p. 101, (2).

de origem e passasse a viver num ambiente letrado, po-

deria ser submetido a um processo de alfabetizacao e seudesenvolvimento seria alterado.

Aprendizado ou aprendizagem

E 0 processo peio qual 0 individuo adquire

informayoes, habilidades, atitudes, valores, etc.

apartir de seu eontato com a!ealzdade, 0meio

ambiente, asoutras pessoas. E um processo quese diferencia dosfatores inatos (aeapaeidade de

dzgestao, pot exemplo, que jii nasee com 0 in-

dividuo) e dos processes de maturayao do orga-

nismo, independentes da informayao do

ambiente (amaturayiiosexual,por exemplo). Em

Vygotsky, justamente por sua enfose nosproces-

sos socio-bistoricos, a ideza de aprendizaao in-

clui a interdependencia dos in dividu os

envolvidos no processo. 0 termo que ele utiliza

em russo (obuchenie) significa algo como "pro-

cesso de ensino-aprendizagem ", incluindo sem-

pre aquele que aprende, aquele que ens ina e a

relayao entre essaspessoas. Pela falza de um ter -mo equivalente em ingles, apalavra obuchenie

tem sido traduzida ora como ensino, ora como

aprendizagem e assim re-traduzida para 0por-

tugues. Optamos aquipelo usadapalavraapren-

dizado, men oscomum que aprendizagem, para

auxiliar 0 leitor a lembrar-se de que 0 conceito

em Vygotsky tem um significaao mais abrangen-

t~, sempre envolvendo interayao social.

Pensando numa suposicao mais extrema, uma crianca

normal que crescessenum ambiente exclusivamente for-

mado por surdos-mudos nao desenvolveria a Iinguagern

oral, mesmo que tivesse todos osrequisitos inatos neces-sarios para isso. Fenomeno semelhante ocorre com os va-rios casos das chamadas "criancas selvagens", que sao

criancasencontradas em isolamento, sem contato com ou-tros seres humanos. Mesmo em idade superior a idadenormal para a aquisicao da linguagem, nao haviam apren-dido a falar. 0 desenvolvimento fica impedido de OCOf-rer na falta de situacces propfcias ao aprendizado.

o ser humano cresce num am-

b iente social e a in terafao com

outras pessoas e essencial a seudesenvolvimento.

57

 

Essa concepcao de que e 0 aprendizado que possibili-

ta 0 despertar de processos internos do individuo liga 0res com cubos de diversos tamanhos, por exemplo, 0pes-

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desenvolvimento da pessoa a sua relacao com 0 ambien-

te socio-cultural em que vive e a sua situacao de organis-

mo que nao se desenvolve plenamente sem 0 suporte de

outros individuos de sua especie. E essa importancia queVygotsky da ao papel do outro social no desenvolvimen-

to dos individuos cristaliza-se na forrnulacao de urn con-

ceito especifico dentro de sua teoria, essencial para a com-

preensao de suas ideias sobre as relacoes entre desenvol-

vimento e aprendizado: 0 conceito de zona de desenvol-

vimento proximal.

o conceito de zona de desenvolvimentoproximal

quisador nao vai considerar que uma crianca jii sabe cons-

truir a torre se ela conseguir construi-la apenas porque

urn colega de classe a ajudou. Para ser considerada como

possuidora de certa capacidade, a crianca tern que de-

monstrar que pode cumprir a tarefa sem nenhum tipode ajuda.

Vygotsky denomina essa capacidade de realizar tare-

fas de forma independente de nivel de desenvolvimento

real. Para ele, 0 nivel de desenvolvimento real da crianca

caracteriza 0 desenvolvimento de forma retrospectiva, ou

seja, refere-se a etapas jii alcancadas, jii conquistadas pe-la crianca. As funcoes psicologicas que fazem parte donivel de desenvolvimento real da crianca em determina-

do momenta de sua vida sao aquelas jii bern estabeleci-

das naquele momento. Saoresultado de processos de de-

senvolvimento' jii completados, jii consolidados.

Vygotskychama a atencao para 0 fato de que para com-

preender adequadamente 0 desenvolvimento devemos

considerar nao apenas 0 nlvel de desenvolvimento realda crianca, mas tam bern seu myel de desenvolvimento

potencial, isto e, sua capacidade de desempenhar tarefas

com a ajuda de adultos ou de companheiros mais capa-

zes. Ha tarefas que uma crianca nao e capaz de realizar

sozinha, mas que se torn a capaz de realizar se alguern

lhe der instrucoes, fizer uma dernonstracao, fornecer pis-

tas, ou der assistenciadurante 0processo. No casoda cons-trucao da torre de cubos, por exemplo, se urn adulto der

instrucoes para a crianca (' 'Voce tern que ir pondo pri-

meiro 0 cubo maior de todos, depois os menores' ou

"Tern que fazer de urn jeito que a torre nao caia") ou

se ela observar uma crianca mais velha construindo uma

torre a seu lado, e possivelque consiga urn resultado mais

avancado do que aquele que conseguiria se realizasse atarefa sozinha.

Essapossibilidade de alteracao no desempenho de umapessoa pela interferencia de outra e fundamental na teo-

ria de Vygotsky. Em primeiro lugar porque representa,

de fato, urn momento do desenvolvimento: nao e qual-quer individuo que pode, a partir da ajuda de outro, rea-

lizar qualquer tarefa. Isto e, a capacidade de se benefi-ciar de uma colaboracao de outra pessoa vai ocorrer num

cerro nivel de desenvolvimento, mas nao antes. Uma

crianca de cinco anos, por exemplo, pode ser capaz de

construir a torre de cubos sozinha; uma de tres anos naoconsegue construi-la sozinha, mas pode conseguir com

Normalmente, quando nos referimos ao desenvolvi-

mento de uma crianca, 0 que buscamos compreender e

"ate onde a crianca jii chegou", em termos de urn per-

curso que, supomos, sera percorrido por ela. Assim, ob-servamos seu desempenho em diferentes tarefas e ativi-

dades, como por exemplo: ela jii sabe andar? Jii sabe amar-

rar sapatos? Jii sabe construir uma torre com cubos de di-versos tamanhos? Quando dizemos que a crianca jiisabe

realizar determinada tarefa, referimo-nos a sua capaci-dade de realiza-la sozinha. Por exemplo, se observamos

que a crianca "jii sabe amarrar sapatos", esta impllcitaa ideia de que ela sabe amarrar sapatos sozinha, sem ne-

cessitar da ajuda de outras pessoas.

Esse modo de avaliar 0 desenvolvimento de urn indi-

viduo esta presente nas situacoes da vida diaria, quando

observamos as criancas que nos rodeiam, e tambem cor-responde a maneira mais comumente utilizada em pes-

quisas sobre 0 desenvolvimento infantil. 0 pesquisadorseleciona algumas tarefas que considera importantes pa-

ra 0estudo do desempenho da crianca e observa que coi-

sas ela jii e capaz de fazer. Geralmente nas pesquisas existe

urn cuidado especial para que se considere apenas ascon-

quistas que jii estao consolidadas na crianca, aquelas ca-

pacidades ou funcoes que a crianca jii domina cornpleta-

mente e exerce de forma independente, sem ajuda de ou-tras pessoas. Numa pesquisa sobre a montagem de tor-

 

a assistencia de alguern; uma 'crianca de urn ana nao con-seguiria realizar essatarefa, nem mesmo com ajuda. Urna

crianca que ainda nao sabe andar sozinha so vai conse-o papel da mrervencao pedagogica

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guir andar com a ajuda de urn adulto que a segure pelas

maos a partir de urn determinado nivel de desenvolvi-

mento. Aos tees rneses de idade, por exemplo, eta nao

e capaz de andar nem com ajuda. A ideia de nivel de

desenvolvimento potencial capta, assim, urn momenta

do desenvolvimento que caracteriza nao as etapas ja al-

cancadas, ja consolidadas, mas etapas posteriores, nasquais a interferencia de outras pessoas afeta significati-

vamente 0 resultado da a~ao individual.

Em segundo lugar essa ideia e fundamental na teoria

de Vygotsky porque ele atribui importancia extrema a in-teracao social no processo de construcao das funcoes psi-cologicas humanas. 0 deseovolvimento individual se danum ambiente social determinado e a relacao com 0 ou-

tro, nas diversas esferas e niveis da atividade humana, e

essencial para 0 processo de construcao do ser psicologi-

co individual.

E a partir da postulacao da existencia desses dois ni-

veis de desenvolvimento - real e potencial - que

Vygotsky define a zona de desenvolvimento proximal co-

mo "a distancia entre 0 nivel de desenvolvimento real,que se costuma deterrninar atraves da solucao indepen-

dente de problemas, e 0 nivel de desenvolvirnento po-

tencial, determinado atraves da solucao de problemas sob

a orientacao de urn adulto ou em colaboracao com com-

panheiros mais capazes" .

A zona de desenvolvimento proximal refere-se, assim,

ao caminho que 0 individuo vai percorrer para desenvol-

ver funcoes que estao em processo de amadurecimento

e que se tornarao funcoes consolidadas, estabelecidas no

seu nivel de desenvolvimento real. A zona de desenvol-

vimento proximal e, pois, urn dorninio psicologico em

constante transforrnacao: aquilo que uma crianca e ca-paz de fazer com a ajuda de alguern hoje, ela conseguira

fazer sozinha amanha. E como se 0 processo de desenvol-vimento progredisse mais Ientarnente que 0 processo de

aprendizado; 0 aprendizado desperta processos de desen-

volvimento que, aos poucos, vao tornar-se parte das fun-

~6es psicologicas consolidadas do individuo. Interferin-

do constantemente na zona de desenvolvimento proxi-

mal das criancas, os adultos e as criancas mais experien-

tes contribuem paramovirnentar os processos de desen-volvimento dos membros imaturos da cultura.

<J VYGOTSKY, p. 97, {2}.

"A zona de desenvolvimento

proximal define aquelas junyoes

que ainda nao amadureceram,

mas que estdo em processo de

maturayaO, junyoes que amadu-

recerdo, mas que estiiopresente-

mente em estado embriondrio.

Essasjunyoes poderiam ser cba-madas de "brotos" ou "flores"do desenvolvimento, ao inves de

frutos do desenvolvimento' '.

VYGOTSKY, p. 97, {2}.

Nas sociedades letradas a escola

tem papel central no desenooloi-mento das pessoas.

A concepcao de Vygotsky sobre as relacoes entre de-

senvolvirnenro e aprendizado, e particularrnenre sobre a

zona de desenvolvimento proximal, estabelece forte Ii-

~a~~o~ntre 0 processo d~ deser:v?lvimento e a relacao doindividuo com seu ambiente socio-cultural e com sua si-

tuacao de organismo que nao se desenvolve plenamente

sem 0 suporte de o~tros individuos de sua especie. E nazona de desenvolvirnento proximal que a interferencia

de outros individuos e a mais transformadora. Processosja consolidados, por urn lado, nao necessitam da acao ex-

t~ma para serem desencadeados; processos ainda nem ini-

ciados, por outro l~do, nao se beneficiarn dessa ac,:aoex-terna. Para um~ cnanca que ja sabe amarrar sapatos, por

exemplo, ? ensino dessa habilidade seria completamen-te sem efeito; para urn bebe, por outro lado, a ac,:aode

urn adulto que tenta ensina-lo a arnarrar sapatos e tam-bern sem efeiro, pelo fato de que essahabilidade estarnui-

to distante do horizonte de desenvolvirnento de suasfun-c,:5espsicologicas. 56 se beneficiaria do auxilio oa tarefade amarrar sapatos a crianca que ainda nao aprendeu bern

a faze-Io, mas ja desencadeou 0 processo de desenvolvi-rnenro dessa habilidade.

. A implicac,:~odes.saconcepcao de Vygotsky para 0 eo-sino escol~r e imediata. Se 0 apreodizado impulsiooa 0

desenvolvimenm, entao a escola tern urn papd esseocial

oa construcao do ser psicologico adulto dos individuosque vivem em sociedades escolarizadas. Mas 0 desempe-

( i 7

 

nho desse papel sose dara adequadamente quando, co-nhecendo 0 nivel de desenvolvimento dos alunos, a es-

cola dirigir 0 ensino nao para etapas intelectuais ja al-

temente, a uma postura espontanefsta , que propoe que

a crianca deve ser deixada livre em sua interacao com os

estirnulos do mundo fisico para que possa amadurecer,de ensino-aprendizado como forma de permitir a elabo-

ra<;aode uma funcao psicologica no nivel interpsiquico

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cancadas, mas sim para estagiosde desenvolvimento ainda

nao incorporados pelos alunos, funcionando realmente

como urn motor de novas conquistas psicologicas. Para

a crianca que freqiienta a escola, 0 aprendizado escolar

e elemento central no seu desenvolvimento.

o processo de ensino-aprendizado na escola deve ser

construido, entao, tomando como ponto de partida 0ni-

vel de desenvolvimento real da crianca - num dado mo-

rnento e com relacao a urn determinado conteudo a serdesenvolvido - e como ponto de chegada os objet ivos

estabelecidos pela escola, supostamente adequados a faixaetaria e ao nivel de conhecimentos e habilidades de cadagrupo de criancas. 0 percurso a ser se.g~i.donesse pro~es-so estara balizado tambem pelas possibilidades das cnan-

cas, isto e, pelo seu nivel de desenvolvimento potencial.

Sera muito diferente ensinar, por exemplo, a distincao

entre avese mamiferos para criancas que vivem na zona

rural em contato direto e constante com animais, e para

c r i ancas que vivern em cidades e conhecern animais porviasmuito mais indiretas. Masnos d01Scasosa escola tern

o papel de·fazer a crianca avancar em sua cornpreensao

do mundo a partir de seu desenvolvimento ja consolida-do e tendo como meta etapas poster iores, ainda nao al-

cancadas.

Como na escola0aprendizado e urn resultado deseja-

vel, eo proprio objetivo do processo escolar, a interven-<;aoe urn processo pedagogico privilegiado. 0 professor

tern 9 papel explicito de interferir na zona de desenvol-

virnento proximal dos alunos, provocando avances que

nao ocorreriam espontaneamente. 0 tinico bom ensino,

afirma Vygotsky, e aquele que se adianta ao desenvolvi-mento. Os procedirnentos regulares que ocorrem na es-

cola - dernonstracao, assistencia, fornecimento de pis-

tas, instrucoes - sao fundamentais na prornocao do"born ensino". Isto e, a crianca nao tern condicoes de

percorrer, sozinha, 0 caminho do aprendizado. A inter-

vencao de outras pessoas - que, no caso especifico da

escola, sao 0 professor e as demais criancas - e funda-

mental para a prornocao do desenvolvimento do in-

dividuo.

E importante destacar, aqui, 0 risco de uma interpre-

tacao distorcida da posicao de Vygotsky. Se uma inter-

pretacao leviana das posicoes de Piaget levou, freqiien-

62

, 'desabrochar", em seu desenvolvimento natural, umacompreensao superficial de Vygotsky poderia levar exa-

tamente ao oposto: uma postura diretiva, intervencionista,

uma volta a "educacao tradicional". Embora Vygotsky

enfatize 0papel da intervencao no desenvolvimento, seu

objerivo e trabalhar com a importancia do meio cultural

e das relacoes entre individuos na definicao de urn per-

curso de desenvolvimento da pessoa humana, e nao pro-por uma pedagogia diretiva, autoritaria. Nem seria pos-

sivel supor, a partir de Vygotsky, urn papel de receptor

passivo para 0 educando: Vygotsky trabalha explicita e

constantemente com a ideia de reconstrucao, de reela-

boracao, por parte do individuo, dos significados que lhe

sao transmitidos pelo grupo cultural. A consciencia in-

dividual e os aspectos subjetivos que constituern cada pes-soa sao, para Vygotsky, elementos essenciais no desen-

volvimento da psicologia humana, dos processos psico-

logicos superiores. A constante recriacao da cultura por

parte de cadaurn dos seus membros e a base do processo

historico, sempre em transformacao, das sociedadeshumanas.

Ligado aos procedimentos escolares, mas nao restritoa situacao escolar, esta 0mecanismo de imitacao, desra-

cado explicitamente por Vygotsky. Irnitacao, para ele, nao

e mera copia de urn modelo, mas reconstrucao individual

daquilo que e observado nos outros. Essa reconstrucao

e balizada pelas possibilidades psicologicas da crianca que

realiza a imitacao e consti tui, para ela, cr iacao de algo

novo a parti r do que observa no outro. Vygotsky nao to-rna a atividade imita tiva , portanto, como urn processo

mecanico, mas si rn como uma oporrunidade de a crian-

ca realizar acoes que estao alern de suas proprias capaci-

dades, 0 que contribuiria para seu desenvolvimento. Ao

imitar a escrita do adulto, por exemplo, a crianca estapromovendo 0 amadurecimento de processos de desen-

volvimento que a levarao ao aprendizado da escri ta.

A nocao de zona de desenvolvimento proximal e fun-

damental nessa questao: soe possivel a imitacao de acoes

que estao dentro da zona de desenvolvimento proximal

do sujeito. Urn bebe de dez meses pode imitar expres-

soes faciais 01 1 gestos, por exemplo, mas seu nivel de de-

senvolvimento nao the permite imitar 0 papel de "me-

dico" ou de "bailarina", ou a escrita do adulto. A irni-tacao poderia ser utilizada deliberadamente em situacoes

63

(isto e, em atividades coletivas, sociais)para que mais tarde

essafuncao pudesse ser internalizada como atividade in-

rrapsicologica (isto e, interna ao proprio individ uo).

Com relacao a atividade escolar, e interessante desta-car que a interacao entre os alunos tambern provoca in-

tervencoes no desenvolvimento das criancas. Os grupos

de criancas sao sempre heterogeneos quanto ao conheci-

mento ja adquirido nas diversas areas e uma crianca mais

avancada num determinado assunto pode contribuir pa-ra 0 desenvolvimento das outras. Assim como 0 adulto,

uma crianca tam bern pode funcionar como mediadoraentre uma outra crianca e a s acoes e significados estabe-lecidos como relevantes no interior da cultura.

Essaposicao explicita de Vygotsky, sobre a irnportan-

cia da intervencao do professor e das proprias criancas no

desenvolvimento de cada individuo envolvido na situa-

<;aoescolar, sugere uma recolocacao da questao de quais

sao asmodalidades de interacao que podem ser conside-radas legitim asprornotoras de aprendizado na escola. Se

o professor da uma tarefa individual aos alunos em sala

de aula, por exemplo, a troca de inforrnacoes e de estra-

tegias entre as criancasnao deve ser considerada como pro-

cedimento errado, pois pode tornar a tarefa urn projeto

coletivo extrernamente produtivo para cada c r i anca , Do

mesmo modo, quando urn aluno recorre aoprofessor (ouaos pais, em casa) como fonte de inforrnacao para ajuda-

10 a resolver algum tipo de problema escolar, nao esta

bur lando as regras do aprendizado mas, ao contrario ,

utilizando-se de recursoslegitirnos para promover seu pro-

prio desenvolvimento.

E interessante observar que, em situacoes informais deaprendizado, as criancas costumam utilizar as interacoessociais como forma privilegiada de acesso a inforrnacao:aprendem regras dos jogos, por exemplo, atraves dos ou-tros e nao como resultado de urn empenho estritamente

individual na solucao de urn problema. Qualquer mo-

dalidade de interacao social, quando integrada num con-

texto realmente voltado para a promocao do aprendiza-

do e do desenvolvimento, poderia ser utilizada, portan-to, de forma produt iva na situacao escolar .

A postura de Vygot sky , no que diz respeito a inter-vencao de urn inriividuo no desenvolvimento do outro ,

tern consequencias para seu proprio procedimento de pes-

quisa. Muito freqiientemente Vygotsky e seus colabora-

64

 

dores interagiam com seus sujeitos de pesquisa para pro-yocar transforma~6es em seu comportamento que fossemImportantes para compreender processos de desenvolvi-

da e sem uma funcao explicita na prom.o~ao de proces;osde desenvolvimento. No entanto , 0 bnnquedo tambem

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Esse metodo depesquisa em psi-

cologza e simzlar ao metodo eli-

nicopiagetiano: 0 investigador ao

mesmo tempo deixa fluir 0 de-

semp_enho do sujeito, sem apri-

Slona-Io numa situaftlo experi-

mental muzto estruturada, e in-

terfore comperguntas eproposss,

de tarefospam provocar compor-

tamentos re!evantes por parte doSUjezto.

ment?. Ao inv~s de agirern apenas como observadoresda auv~dade pSIco16gica, agiam como elementos ativos

numa situacao de intera~ao social, utilizando a interven-~ao c.omoforma de criar material de pesquisa rclevante.Ess.aInterven~ao do pesquisador e feita no sentido de de-

safiar 0 sujeito, deAqu~stionarsuas respostas, para obser-

Vatcomo a InterferenCla de ourra pessoa afeta seu desem-

penho e, sobretudo, para observar seus processos psico-10glCos em transforma~ao e nao apenas os resultados deseu desempenho.

Esseprocedimento de pesquisa e bastante diferenre da-

qUele em 9~e a pesquisador e apenas urn observador pas-SIVOdo :u)elto. Em termos da pesquisa educacional con-

temporanea, podemos fazer uma liga~ao desses procedi-

ment~s com .a.pesqU1sa-~~ao, pesquisa-interven~ao oupesqU1sa-par:lClpantena sltua~ao escolar. 0 pesquisador,nessasmodahdade~ de pesquisa, coloca-secomo elementoque faz parte da sltua~ao que esta sendo estudada, nao

pr:tendendo.ter uma posicao de observador neutro. Sua

acao ~o ambienre e os efeitos dessa a~ao sao, tambem,

mater;al relevante para a pesquisa. Como a situacao es-

colar e urn processo permanentemente em movimentoe a transfor~a~ao e justame~lte 0 resultado desejavel dess~

process~,m~todos ~e pesqU1saque permitam captar trans-forma~?es saoos meto.dos.mats adequados para a pesquisacducacionat. A contnbU1~ao de Vygotsky nesse aspecroe extremamente relevante.

Brinquedo e desenvolvimento

.VJmos, anteriorI?ente, como Vygotsky trabalha coma Ideia de que na sltua~ao escolar a interven~ao na zona

de desenvolvlmento proximal das criancas se da de for-

ma constante e de~i~erada. A situa~ao escolar e bastanteestfl:turada e explIotamente c?mprometida com a pro-

rnocao de processes de aprendizado e desenvolvimento.

.~ygotsky trabalha tam bern com urn outro domfnio daauvI.dade infantil que tern claras rela~6es com 0 desen-

volvlmen~o: 0brinquedo. Comparada com a situa~ao es-

colar, a s1tua~aode brincadeira parece pouco cstrutura-

65

cria uma zona de desenvolvimento proximal na crianca,

tendo enorme influencia em seu desenvolvimento, con-

forme veremos a seguir.

Quando Vygotskydis~ute0papel~? brinquedo, ~~fere-se especificamente a brincadeira de f~z-de-co.nta , co-mo brincar de casinha, brincar de escolinha, bnncar comurn cabo de vassoura como se fosse urn cavalo. Faz refe-

rencia a outros tipos de brinquedo, mas a brincadeira de

"faz-de-conta' e privilegiada em sua discussao sobre 0

papel do brinquedo no desenvolvimento.

o cornportamento das cria?~~s peque!las e_fortemen-te determinado pelas caractensncas das situacoes concre-

tas em que elas se encontram. Confo~me dis~utido emcapftulos anteriores, s6 quando adquirern a Iinguagern

e passam, portanto, a ser ca~azes de utilizar a r~p!esen-tacao simbolica, e que as cnancas vao ter condicoes de

libertar seu funcionamento psicologico dos elementos con-

cretamente presentes no momenta atual. Vygotsky exem-plifica a irnportancia das situacoes concretas e a fus~o que

a crianca pequena faz entre os eleme~tos perceb~dos e

o significado: "quando sepede a uma cnanca de dOISan~s

que repita a sentenca 'Tania esta de p€' quando, T~n~aesta sentada a sua frente, ela mudara a frase para Taniaesta sentada' " . Ela nao e capaz de operar com urn signi-

ficado contraditorio a inforrnacao perceptual presente.

Nurna situacao imaginaria como a da brincadeira d.e

"faz-de-conta' ao contrario, a crianca e levada a aglr

num mundo imaginario (0 "onibus" que ela esta diri-

gindo na brincadeira, por exemp~o), onde ~ situa~ao edefinida pelo significado estabelecido pela brincadeira (0

onibus, 0motorista, ospassageiros, etc.) e nao pelos ele-

mentos reais concretamente presentes (as cadeiras da sa-la onde ela esta brincando de onibus, as bonecas, etc.) .

Ao brincar com um tijolinho de madeira como sefos-seum carrinho, por exemplo, ela serelaciona com 0 sig-

nificado em questao (a ideia de "carro") e nao com 0

objeto concreto que tern nas maos, 0 tijolinh? de ma-

deira serve como uma representacao de uma realidade au-

sente e ajuda a crianca a separar objeto e significado. ~Cons'-t itui urn passo irnportante no percurso que a levara a ser

capaz de, como no pensamento adulto.' desvincular-~e to-talmente das situacoes concretas. 0 bnnquedo prov~, as-

sirn, uma situacao de transicao entre a a~~o?a cnanca

com objetos concretos e suas acoes com significados,

A brincadeira de "faz-ae-conts'

estudada POl'Vygotsky correspon-

de ao jogo simb61ico estudado

POl' Piaget.

<l VYGOTSKY, p. 110, (2).

66

 

Mas alern de ser uma situacao imaginaria, 0 brinque-do e tarnbem uma atividade regida por regras. Mesmono universo do "faz-de-conra' ha regras que devem ser

A evolucao da escrita na crianca

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seguidas. Numa brincadeira de "escolinha", por exem-

plo, tem que haver alunos e uma professora, e as ativi-dades a serem desenvolvidas tern uma correspondenciapre-estabelecida com aqueles que ocorrem numa escolareal. Nao e qualquer cornportamento, portanto, que eaceitavel no ambito de uma dada brincadeira.

Sao justamente asregras da brincadeira que fazem comque a crianca se cornporte de forma mais avancada do

que aquela habitual para sua idade. Ao brincar de oni-bus, por exemplo, exerce0 papel de motorista. Para issotern que tomar como modelo osmotoristas reais que co-nhece e extrair deles um significado mais geral e abstra-to para a categoria "motorista". Para brincar conformeas regras, tem que esforcar-se para exibir um comporta-mento semelhante ao do rnotorista, 0 que a impulsion a

para alem de seu cornportamento como crianca. Vygotskymenciona um exemplo extrerno, em que duas irrnas, de

"cincoe sete anos, decidiram brincar "de irmas". Ence-

nando a propria realidade, elas tentavam exibir 0 com-

portarnento tipico de irma, trabalhando de forma deli-berada sobre as regras das relacoes entre irrnas. 0 quena vida real e natural e passa despercebido, na brinca-deira torna-se regra e contribui para que a crianca enten-da 0 universo particular dos diversos papeis que de-sempenha.

Ta~1topela criacao da situacao irnaginaria, como peladefinicao de regras especificas, 0 brinquedo criauma zo-na de desenvolvimento proximal na crianca. No brinque-do a crianca comporta-se de forma mais avancada do quenas atividades da vida real e tambem aprende a separar

objeto e significado. Embora num exame superficial possa

parecer que 0 brinquedo tem pouca sernelhanca com ati-vidades psicologicasmais complexas do serhumano, umaanalise mais aprofundada revela que asacoes no brinque-do sao subordinadas aos significados dos objetos, contri-

buindo claramente para 0 desenvolvimento da crianca.

Sendo assim, a prornocao de atividades que favorecarno envolvimento da crianca em brincadeiras, principalmen-

te aquelas que promovem a criacao de situacoes imagi-narias, tem nitida funcao pedagogics. A escola e, parti-cularrnente, a pre-escola poderiam se utilizar delibera-damente desse tipo de situacoes para atuar no processo

de desenvolvimento das criancas,

A questao da evolucao da escrita na crianca e bastanteimportante no conjunto das colocacoes de Vygotsky so-

bre desenvolvimento e aprendizado, por duas razoes. Em

primeiro lugar porque suasideias sobre esseterna sao ex-

tremamente conternporaneas, surpreendentes, mesmo

quando levamos em conta que foram produzidas ha apro-

ximadamente 60 anos.Em segundo lugar porque sua concepcao sobre a es-

crita, enquanto sistema simbolico de representacao da rea-

lidade, esta estreitamente associada a questoes centrais

em sua teoria (linguagem, rnediacao simbolica, uso de

instrumentos). Assim sendo, embora nao seja uma ques-

tao rnuito explorada por Vygotsky em seus textos escri-tos, e bastante justificavel que a lingua escrita seja obje-,to de nossa atencao nesta revisao sobre suas concepccesa respeito de desenvolvimento e aprendizado.

Coerente com sua concepcao sobre 0 desenvolvimen-

to psicologico em geral, Vygotsky tem uma abordagemgenetica da escrita: preocupa-se com 0 processo de suaaquisicao, 0qual seinicia rnuito antes da entrada da crian-

ca na escolae seestende por muitos anos. Considera, en-

tao, que para compreender 0desenvolvimento da escrita

na crianca e necessario estudar 0 que ele chama de "a

pre-historia da linguagem escrita" , isto e, 0que sepassa

com a crianca antes de ser submetida a processos delibe-rados de alfabetizacao.

Como a escrita e uma funcao culturalmente mediada,

a crianca que sedesenvolve numa cultura letrada esta ex-

posta aos diferentes usosda linguagem escrita e a seu for-

rnato , tendo diferentes concepcoes a respeito desse obje-to cultural ao longo de seu desenvolvimento. A princi-pal condicao necessaria para que uma crianca seja capaz

de compreender adequadamente 0 funcionamento da lin-gua escrita e que ela descubra que a lingua escrita e umsistema de signos que nao tern significado em si. Os sig-

nos representam outra realidade; isto e , 0 que se escreve

tem uma funcao instrumental, funciona como urn suporte

para a memoria e a transmissao de ideias e conceitos.

Dentro do vasto prograrna de pesquisas do grupo de

Vygotsky, Luria foi seu colaborador que desenvolveu 0

estudo experimental sobre 0 desenvolvimento da escrita.Solicitava a criancas que nao sabiam ler e escrever que

memorizassem uma serie de sentencas faladas por ele. Pro-67

68

As ldi ias de Vygotsky sobre a es-cnta tem muitos pontes em co-

mum com a teorta de Emilia Fer-

reiro e s eu s colaboradores, desen-

volvtda apartir dos anos 70 e con-

siaerada uma "revolufao concei-

t ua !' , a respeito do assunto . 0as-

pecto mais impor tante dessa se-melhanfa e a consideracao da es-

cnta como um sis tema de repre-

seniafiio da realidade, e do pro-

cesso de aljabetizafiio como 0 do-

minio progressiuo desse sistema

(que comeca multo antes dopro-

c e ss o e sc o la r de aljabetizafao) enao como aaqulsifao de uma ba -

bZlidade mecdnica de correspon-

dencia letra/som.

o material mais detalhado sobrea questao da escnta na concepfiio

de Vygotsky e seus colaboradores

encontra-se num texto de Luria,

denominado 0 desenvolvimento

da escrita na crianca, (19). Uma

comparafiio entre esse artigo de

Luria e asldiias de Emilia Ferrei-ro e l et/a no art igo "Acesso ao

mundo da escnta: os caminhosparalelos de Luria e Ferreiro", de

Mana Tbereza FragaRocco, (24).

 

Este e um bom exempio dainter-

positalmente, 0mirnero de sentencas era maior do que

aquele de que a crianca conseguiria lembrar-se. Depois

de ficar evidente para a crianca sua dificuldade em me-

2. "Marcas topograficas" - distribui~ao dos registros noespaco do papel:

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venfito do expenmentador: a ta-

re/a dif icil para a cnanca e a su-gestito de um procedimento espe-

cifico por parte do pesquisador

provocou modos de comporta-

mento da crianca que nita apare-

cenam espontaneamente.

Retirado da dissertafito de mestra-

do, de Maria da Graca Azenha

Bautzer Santos: "0grafismo in-

fantil - processos eperspectivas"

(Faculdade de Educafito da USP,1991).

morizar todas as sentencas faladas, 0 experirnentador su-

geria que ela passasse a "escrever" as sentencas, comoajuda para a memoria, A partir da observacao da produ-

~ao de diversas criancas nessa situacao, Luria delineou urn

percurso para a pre-historia da escrita.

As criancas inicialmente imitavam 0 formato da escri-

ta do adulto, produzindo apenas rabiscosmecanicos, sem

nenhuma funcao instrumental, isto e , nenhuma relacaocom os conteudos a serem representados. Obviamente,esse tipo de grafismo nao ajudava a crianca em seu pro-

cesso de mernorizacao. Ela nao era capaz de uti lizar sua

producao escrita como suporte para a recuperacao da in-

formacao a ser lembrada.

GISLAINE1

t,

,:

.r:. . ~

a.

'<,

a cnan<;aguis escreve~:1. balance; 2. Eu gosto de brin-car no bal~n<;o; 3. Ieite: 4. banana; 5. Eu comi bana-na no cafe.

Exemplos de producao escritade criancasnao alfabetizadas

3. ~'Representas:oes pictograftcas" - desenhos estiliza-os usados como forma de escrita:

1. "Rabiscos mecanicos' - imitacao do formato da es-

crita do adulto:

\

na ctlan~a quis escrever: 1. onibus' 2.'oculos: 3 .. 4 / " . menl-

no, . arvore; 5. escola; 6. rua: 7. classe.

a crianca quis escrever: 1. escorregador; 2. balanca;3. trepa-trepa; 4. gira-gira; 5. tauque de areia.

. N~m. nivel mais avancado, as crian<;asCOntinuam a fa-zer srnais sem rela~ao com 0 conteiido das senteu<;asfa-

69 70

 

ladas, produzindo, porern, 0 que Luria chama de "mar-cas ropograficas": distribuem seus rabiscos pelo papel,

possibilitando uma especie de mapeamento do mater ial

a ser lembrado, depois, pela sua posicao no e sp aco . E s-

as situacoes de aprendizado sistematico pela~ CJ,uaiselapassa. Assim, por exemplo, a crianca pode asslI~dar bern

cedo a diferenca entre desenhar e escrever e ~ao chegar

a ut ilizar a representa<;ao pictografica por na°afacel lta-la

laboradores, que se ramificaram em var ies temas inter-relacionados. Seu particular interesse pela genese, fun-

<;ao e estrutura dos processos psicologicos superiores Ie-

YOU a uma preocupacao com temas classico s da psicolo-

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sas marcas ainda nao sao signos, mas fornecem pistas ru-

dimentares que poderao auxiliar na recuperacao da in-

formacao.

Das marc as topogr if icas indiferenciadas a crianca pas-

sa a preocupar-se em produzir em sua escrita algo que

refli ta as di ferencas presentes nas sentencas faladas. Pri -

meiramente as diferencas registradas sao formais, refle-

tindo 0 que Luria chama de "ritrno da fala", isto e, frases

curtas sao registradas com marc as pequenas e frases Ion-gas com marcas grandes. A seguir a crianca passa a dife-

renciar pelo conteudo do que e dito, preocupando-se em

distinguir quantidade, tamanho, forma e outras caracte-

risticas concretas das coisas ditas. "Uma fumaca muito

preta esta saindo da chamine' , por exemplo, e uma sen-

tenca regis trada com marcas bern pretas com 0 lapis; "No

ceu ha muitas estrelas' e registrada com muitas linhas

e "Eis urn homem e ele tern duas pernas" com apenas

duas linhas.

Neste ponto de seu desenvolvimento a crianca ja des-

cobr iu a necessidade de trabalhar com marcas diferentes

em sua escrita, que possam ser relacionadas com 0 con-teudo do material a ser memorizado. A crianca desco-

briu, portanto, a natureza instrumental da escrita. De-

pois disso, corneca a utilizar representacoes pictograficas,

isto e, desenhos. Mas neste caso os desenhos nao sao uti-

lizados como forma de expressao individual, como ativi-

dade que se encerra em si mesma, mas como instrumen-

tos, como signos mediadores que representam conteudos

determinados. Da representacao pictografica a crianca pas-

sa a escrita simbolica, inventando form as de representar

informacoes dif iceis de serem desenhadas (por exemplo,

urn circulo escuro para representar a noite).

Para a crianca que vive numa cultura letrada, e serasubmetida a processos de alfabetizacao, 0 proximo passo

envolve a assimilacao dos mecanismos de escrita sirnbo-

lica culturalmente disponiveis, is to e, 0 aprendizado da

lingua escrita propriamente dita.

Luria chama atencao para 0 fato de que esse percurso

da crianca nao e urn processo individual, independente

do contexto. Ao contrario, interage com os usos da lin-

gua escrita que ela observa na vida cotidiana, com 0 for-

mato daquilo que os adultos cham am de escrita, e com

71

.. ita" Pode rambern se souber gr ar etrascomo escn a. , . ' _ .mas ainda nao tiver compreendldo a funcao mstru~er :-

tal da escrita, utilizar a mesma letra c.omo marca nao di-

ferenciada para registrar informa<;6es diferen~es ,(por exe~-

1"A" para cachorro "A" para mesa, 'A para chi-

p 0, 'f / . _

1 ) Enfim 0 percurso proposto so rera vana<;oes con-ne 0 ., .

forme a experiencia concreta das cnan<;as. /'

Podemos supor que, atualmente, esse percurso e rnais

difkil de ser observado em cr iancas urbanas d~ ~ruposculturais escolarizados. Em compara<;ao. com S':lJeltoSes-

tudados por Luria nos anos 2.0, essas cnancas mgre~sam

mais cedo na escola, sao alfabetizadas mars ce.do ; vlv~m

em urn meio onde a presen<;a da lIn~ua ;s~nta e mu~to

marcante Assim sendo, 0 sistema simbolico da escrita

interfere antes e mais fortemente no processo de desen-

volvimento da crianca.

E importante mencionar, ainda, que c0f!1? :- aqulsl-

<;aoda lingua esc rita e. para Vygotsky, a a9.ulsl<;ao de ~m

sistema simbolico de representa<;ao da realidadc. tambem

contribuem para esse processo 0 dese~volv/~ento ~os ges-

tos dos desenhos e do brinquedo slmboltco, p~)1Se~sassao' rambern atividades de carater represen.tat~vo, lSto

/ urilizam-se de signos para representar s~gn1ficados.e, . / para <l, '[ ... ] desenhar e brincar dev~nam ser estagios pre. -

rorios ao desenvolvimento da l tnguagem escnta das c~lan-

s Os educadores devem organizar todas ess.as a<;oe~ e

~~do 0 complexo processo de rransicao de urn upo de lin-

uagem esc rita para outro. Devem :~ompar:har esse pro-

~esso atraves de seus momentos cnncos, ate 0 ponto ~a

descoberta de que se pode desenhar nao somen~e obje-

tos, mas rambem a fala. Se quisessemos resurnir todas

essas demandas praticas e expressa-las de uma form/a un~-

ficada, podedamos dizer que 0 ~ue se_deve fazer e en~l-

nar as criancas a linguagem escnta e nao apenas a escrita

de letras".

Percep~ao, aten~ao e memoria

As ideias basicas de Vygotsky gerara~ urn programa

de pesquisas , desenvolvidas por ele propno e por seus co-

72

gia, como percepcao, atencao e memor ia, numa aborda-

gem que relaciona desenvolvimento e aprendizado, dis-

tinguindo os mecanismos mais elementares daqueles mais

sofis ticados, t ip icamente humanos. Neste i tem, delinea-remos brevemente as ideias de Vygotsky sobre esses te-

mas especi ficos, buscando art icula-los com os pressupos-

tos basi cos da abordagem vygotskiana, discutida nos ca-

pitulos anteriores.

No que se refe re a percepcao, a abordagem de Vygotsky

e centrada no fato de que, ao longo do desenvolvimento

humano, a percepcao torna-se cada vez mais urn proces -

sC!complexo, que se distancia das deterrn inacoes fis io lo-

gicas dos orgaos sensoriais embora, obviamente, conti-

nue a basear-se nas possibilidades desses orgaos fisicos.

A mediacao sirnbolica e a origem socio-cultural dos pro-

cessos psicologicos superiores sao pressupostos fundamen-

tais para explicar 0 funcionamento da percepcao. A vi-

sao humana, por exemplo, esta organizada para perce-

ber luz , ~ue revelarapontos, l inhas, cores, movimentos,

profundidade; a audicao perr rute a percepcao de sons em

diferentes timbres, alturas e intensidades; 0 tato perrni-

te perceber pressao, temperatura, textura. Os limites des-sas e das demais sensacoes sao definidos pelas caracteris-

ticas do aparato perceptivo da especie humana: nao es-

cutamos ultra-sons, como 0 morcego e 0 golfinho; nao

percebemos movimento na agua com a sutileza dos pei-

xes; nao somos capazes de nos orientar no espaco a partir

de informacoes sobre temperatura, como as cobras.

o bebe humano nasce, entao, com suas possibilida-

des de percepcao definidas pelas caracter isticas do siste-

ma sensorial humano. Ao longo do desenvolvimento, en-

t re tanto, principalmente atraves da internal izacao da l in-

guagem e dos conceitos e signif icados culturalmente cle-

senvolvidos, a percepcao deixa de ser uma relacao diretaentre 0 individuo e 0 meio, passando a ser mediada por

conteudos culturais.

Assim, por exemplo, quando olhamos para urn par de

oculos, nao vemos "duas coisas redondas, ligadas entre

si por uma tira horizontal e com duas tiras mais longas

presas na parte lateral" , mas vemos, imediatarnente , urn

p ar d e oculos. Isto e, nossa relacao perceptual com 0 rnun-

do nao se da em term os de.atr ibutos fisicos isolados, mas

em termos de objetos, eventos e situacoes rotulados pela

7 3

 

cesses ois esrfrn OS!lO- saoer. prcrianeme. 0 que e umamosca e 0 que e urn 2.YiaO. Percebo 0 objeto COllO urn

todo COllO uma realidade completa, articulada, e nao

linguag~m e categorizados pela cultura. A fun~ao dos ocu-los, assituacoes concretas em que nos acostumamos a in-

teragir com esse objeto, 0 lugar que ele ocupa nas ativi-

~ades que desenvolvemos habitualmente sao caracteris-

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Ii! 13 14

COllO urn amontoado de informacoes sensoriais. Isso es-

ta relacionado ao percurso de desenvolvimento do indi-viduo, ao seu conhecimento sobre 0mundo, a sua vivenciaem situacoes espedficas. A crianca pequena que chama

urn cavalo de "au-au" nao esta sendo iludida pela in-

formacao sensorial: embora veja que 0cavalo e maior queo cachorro, que seu rabo e diferente, que seu focinho tern

outro formato, etc., classifica cachorros e cavalos dentrode uma mesma categoria conceitual, Nao tendo infor-

macae suficiente para fazer uma distincao precisa entreEssesdois tipos de animais, percebe ambos como serne-

lhantes, equivalentes.

A atencdo [> 0 funcionamento da atencao seda de forma semelhan-te ao que foi descrito para a percepcao. Inicialmente ba-

seada em mecanismos neurol6gicos inatos, a atencao vai

gradualmente sendo submetida a processos de controle

voluntario , em grande parte fundamentados na media-~ao simb61ica. Os organismos estao submetidos a irnen-saquantidade de informacoes do ambiente. Em todas as

atividades do organismo no meio, entretanto , ocorre urnprocesso de selecao das inforrnacoes com as quais vai in-

teragir: se nao houvesse essa seletividade a quantidade

de inforrnacao seria tao grande e desordenada que seria

impossivel uma a~aoorganizada do organismo no rnun-do. Cada especie e dotada da capacidade de selecao de

estimulos do ambiente que e apropriada para sua sobre-vivcncia. 0 bebe humano tam bern nasce com rnecanis-

mos de atencao involuntaria: estimulos muito intensos

(como ruidos fortes), mudancas bruscas no ambiente, ob-

jetos em movirnento, sao elementos que, invariavelmente,

chamam a atencao de uma crianca.

Ao lange do desenvolvimento, 0 indivlduo passa a sercapaz de dirigir, voluntariamente, sua atencao para ele-

mentos do ambiente que ele tenha definido como rele-

vantes. A relevancia dos objetos da atencao voluntaria es-

tara relacionada a atividade desenvolvida pelo individuoe ao seu significado, sendo, portanto, construida ao Ion-

go do desenvolvimento do individuo em interacao como rneio em que vive. Assirn, por exemplo, uma crianca

e capaz de concentrar sua arencao na construcao de urn

carrinho em miniatura, "desligando-se" de outros esti-

mulos do ambiente, como Q ruido da relevisao ou dos

ucas que van interag~r com os.dados sens~riais que obte-

mos quando nosso Sistema visual capta esse objeto que

aprendemos a reconhecer como 6culos.

o mesmo estirnulo e percebido como mimero ou letra, dependendo do con-

texto em que se encontra.

A 13

Se na? conheco a escrita arabe, uma sujeira no papel pode ser tomada co-~o urn sinal relevante. Urn arabe, por sua vez, distingue sinaisvalidos de marcas

irrelevantes no papel.

(escrita arabe)

A percepcao age, portanto, num sistema que envolveoutras funcoes, Ao percebermos elementos do mundo

real, fazemos inferencias baseadas em conhecimentos ad-

quiridos previamente e em inforrnacoes sobre a situacao

presente, interpretando os dados perceptuais a luz de ou-tros co~teudos _psicoI6gicos.Embora uma mosca pousa-

da no vidro da janela e urn aviao ao longe no ceu possam

7 57

 

irmaos conversando; urn adulto dirige sua atencao parao trabalho que realiza, sem se distrair com cada toquena rnaquina de escreverda pessoa que trabalha a seu lado.

Podemos retomar, aqui, urn exemplo utilizado no ca-

clararnente presente nas deterrninacoes inatas do orga-nismo da especie humana, surgindo como consequencia

da influencia direta dos estimulos externos sobre os in-

dividuos. Por exemplo, 0 bebe que faz movimentos de

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pitulo 2, referente ao experimento das "palavras proibi-das'", em que ascriancas deveriam responder a questoes

sobre cores. Os canoes coloridos, fornecidos pelo experi-mentador como auxilio a tarefa, serviram como instru-

mento para ajudar a crianca a, voluntariamente, focali-zar sua atencao nos elementos relevantes da tarefa (istoe, osnomes das cores proibidas). Como vimos na descri-~ao desse experimento, a ajuda externa para a organiza-

~aoda atencao voluntaria e substituida, com a passagempara niveis mais avancados do desenvolvimento indivi-

dual, por instrurnentos internos: os adultos podiam dis-pensar oscanoes coloridos porque ja haviam internaliza-do formas de controle de sua atencao.

Apesar da aquisicao de processos de atencao volunta-r ia, os mecanismos de atencao involuntaria continuampresentes no ser humane: ruldos fortes repentinos ou mo-

vimentos bruscos, por exernplo, continuam a despertara atencao do individuo. E interessante observar, entre-

tanto, que ate mesmo a atencao involuntaria pode ser me-

diada por significados aprendidos ao lange do desenvol-virnento. Quando escutamos nosso proprio nome, porexemplo, reagimos irnediatamente, focalizando nossaatencao de.forma nao deliberada. Isto e, 0nome proprio,

por ser carregado de significado que indica a referenciaa urn individuo particular, provoca uma reacaosemelhante

aquela despertada por estimulos repentinos, como umaporta batendo, por exemplo. Do mesmo modo, e comumvermos criancas que desviam sua atencao de outra ativi-

dade para, quase automaticamente, olharem para a te-Ievisaoquando aparecem determinados comerciais de sua

preferencia. Neste exemplo, a atencao involuntaria, isto

e, nao controlada de forma intencional pelo proprio su-jeito, tambern esta sendo mediada por significados apren-didos.

Com relacao a memoria, Vygotsky tambern trabalha <l A memoria

com a irnportancia da transforrnacao dessa funcao psico-Iogicaao longo do desenvolvimento e com a poderosa in-

fluencia dos significados e da linguagem. 0 foco princi-pal de suasdiscussoes e a distincao entre a memoria "na-tural", nao mediada, e a memoria mediada por signos.

A memoria nao mediada, assim como a percepcao sen-sonal e a atencao involuntaria, e mais eiernentar, mais

76

"0 uso de pedayos de madeira

entalhada e nos, a escrita primi-

tiva e auxiliares mnemonicos sim-

ples demonstram, no seu conjun-

to, que mesmo nos estiigios mats

primitivos do desenvolvimento

bistorico ossereshumanos foramalem dos limites dasfunyoes psi-cologicas impostas pela natureza,

evoluindo para uma organizacao

nova, culturalmente elaborada,

de seu comportamento. A anali-

se comparativa mostra que tal ti-

po de atividade estaausente mes-

mo nas especiessupenores de ani-

mats; acreditamos que essasope-racoescom signos saoproduto das

condicoes especificas do desenvol-

vimento social. " VYGOTSKY,

p. 44, (2) .

succao ao ver sua mamadeira esta reagindo diretamentea mamadeira como estimulo. Esseestimulo produz a rea-~ao de succao pelo faro de haver uma lernbranca da co-

nexao mamadeiral ato de mamar fixada na memoria dobebe, A memoria natural, na especie humana, e seme-

lhante a memoria existente nos outros animais: refere-seao registro nao voluntario de experiencias, que perrnite

o acumulo de inforrnacoes e 0 uso dessasinforrnacoes em

momentos posteriores, na ausencia das situacoes vividasanteriormente.

A memoria mediada e de natureza bastante diferen-teo Refere-se, tarnbem, ao registro de experiencias para

recuperacao e lISO posterior, mas inclui a acao voluntariado individuo no sentido de apoiar-se em elementos me-

diadores que 0 ajudem a lembrar-se de conteudos espe-cificos. A memoria mediada perrnite ao individuo con-trolar seu proprio cornportamento, por meio da utiliza-

~aode instrurnentos e signos que provoquem a lembranca

do contetido a ser recuperado, de forma deliberada. As-

sim, voltando mais uma vez ao exemplo do experimento

das "palavras proibidas" , vimos que as criancas utiliza-

yam os canoes como signos externos para ajuda-las a lem-brar quais os nomes de cores que, de acordo com as re-

gras do jogo, nao podiam ser faladas.

Os grupos humanos desenvolvem inumeras formas de

utilizacao de signos para auxiliar a memoria: calendarios,agendas, listas de cornpras, etc. Com 0 uso desses signosa capacidade de mernorizacao fica significativamente au-

mentada e sua relacao com conteudos culturais e, por-tanto, com processos de aprendizado, fica daramente es-tabelecida. Com 0 desenvolvimento historico-cultural 0

ser humane desenvolve, portanto, modos de utilizacaodo mecanismo da memoria que distanciam seu desem-

penho daquele definido pelas formas naturais de fun-cionamemo psicologico.

E interessante mencionar um exemplo ficticio que in-

tegra os tres processos psicologicos discutidos nesta secao

- percepcao, atencao e memoria - evidenciando, jus-tamente, a similaridade dos mecanisrnos de seu funcio-

namento e as estreitas relacoes entre eles. Urn individuoesta caminhando por uma longa rua, procurando umafarrnacia onde ja esteve uma vez. Vai olhando para to-

dos os edificios, dos dois lados da rua, mas sua atencao

 

esta de!iberadamente focalizada na busca de uma deter-minada farmacia. Isto e, nao e qualquer edificio na rua

que chama sua atencao: ascasas, lojas e predios sao umaespecie de "pano de fundo", no qual vai se destacar afarrnacia que esta sendo intencionalrnente procurada. Sua

te cultural e parte ~essencial de sua propria constituicaoenquanto pessoa. E impossfvel pensar 0 ser humano pri-vado do contato com urn grupo cultural, que the forne-cera osinstrumentos e signosque possibilitarao 0 desen-

volvimento das atividades psicologicas rnediadas, tipica-

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atencao voluntaria estafortemente relacionada comosme-

canismos de percepcao e memoria, tambern mediad osporsignificados construidos ao longo de seu desenvolvimen-

to. Os elementos observados na rua nao sao urn amon-toado caotico de inforrnacoes sensoriais: organizam-se em

estruturas reconhecidas e rotuladas por nomes correspon-dentes a conceitos ("casa", "acougue", "padaria'", etc.).Sua lernbranca da farrnacia nao e apenas uma imagem

mental diretamente gerada a partir da experiencia comtal farmacia. Esta mediada pe!o proprio conceito de far-rnacia (que 0 auxilia a focalizar a atencao apenas nos ele-

mentos relevantes da paisagem) e eventualmente por ou-tras inforrnacoes paralelas, tais como: "tern uma arvorena frente " ou "i: perto de urn predio grande".

o individuo sabe, entao, que 0 que esta procurandoe uma determinada farrnacia. A rotulacao por meio da

linguagem e a relacao com urn conhecimento anterior-mente possuido dirigem sua atencao e sua memoria deforma deliberada, orientando sua percepcao e facilitan-

do a realizacao da tarefa. E interessante observar que osmecanismos mediadores utilizados no caso em questao

neste exemplo sao mecanismos internalizados. Isto e, 0individuo nao se apoia em signos externos, mas em re-

presentacoes rnentais, conceitos, imagens, etc., realizandouma atividade complexa, na qual e capaz de controlar,deliberadamente, sua propria acao psicologica, atraves de

recursos internalizados.

Vemos assim que, para Vygotsky, as funcoes psicolo-gicas superiores, tlpicas do ser humano , sao, por urn la-

do, apoiadas nas caracteristicas biologicas da especie hu-mana e, por outro lado, construidas aolongo de sua his-

toria social. Como a relacao do individuo com 0 mundoe mediada pelos instrumentos e simbolos desenvolvidos

no interior da vida social, e enquanto ser socialque 0 ho-mem cria suas formas de acao no mundo e as relacoescomplexas entre suas varias funcoes psicologicas. Paradesenvolver-se plenamente como ser humano 0 homem

necessita,assim,dos mecanismos de aprendizado que mo-vimentarao seus processos de desenvolvimento.

Na concepcao que Vygotskytern do ser humano, por-tanto, a insercao do individuo num determinado ambien-

78

mente humanas. 0 aprendizado, nesta concepcao, e 0

processo fundamental para a construcao do ser humano.o desenvolvimento da espec i e humana e do individuodessaespecie esta, pois, baseado no aprendizado que, paraVygotsky, sempre envolve a interferencia, direta ou in-

direta, de outros individuos e a reconstrucao pessoal daexperiencia e dos significados.

79

o bio16gico e 0

cu ltura l: osd esdob ramentos do

pensam ento de

Vygotsky

5

81

 

Noe apenas a partir dos. textos de Vygotsky que po-

demos ter acesso a suas concepcoes. Seus co-

laboradores continuaram, depois de sua morte, a desen-

volver investigacoes fundamentadas nos pressupostos ba-

sicos de seu pensamento e a produzir vasto material escrito

Dentro do grupo de colaboradores de Vygotsky, Luriafoi quem se dedicou mais intensamente ao estudo das

funcoes psicologicas relacionadas ao sistema nervoso cen-

tral, tornando-se conhecido como urn dos mais impor-

tantes neuropsicologos de todo 0 mundo. 0 proprio Lu-

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que nos perrnite aprofundar os varies aspectos presentes

no program a de trabalho do chamado grupo de psicolo-

gos sovieticos.

Como forma de explorar os desdobramentos das pro-

postas de Vygotsky na obra de seus colaboradores, abor-

daremos, neste capitulo, tres aspectos fundamentais desse

programa de trabalho:

• 0 funcionamento cerebral como suporte biologico dofuncionamento psicologico;

• a influencia da cultura no desenvolvimento cognitive

dos individuos;

• a atividade do homem no mundo, inserida num siste-

ma de relacoes sociais , como 0 principal foco de interes-

se dos esrudos em psicologia.

A base biologica do funcionamentopsicologico: a neuropsicologia de Luria

Alexander Romanouich Luria(1902·1977)

82

LURiA, p. 56-57, (12),

A neuropsicologia e uma dreain-terdisciplinar, que envolve asdis-

ciplinas de neurologia, psiquia-

tria, psicologia, jonoaudiologia,

linguistica e outras correlatas, e

que tem como objetivo estudar as

inter-reiacoesentre asjunyoes psi-

cologicashumanas e suabasebio-logic«.

.,] 0 ser vivo comeca a

-;<mtar-se'no meio ambiente,

7;;.girativamente a eada mu-

:,; que neste seprocessa, ou

zomeca a adquirir formas de

-:xmamento individualmente-: eis , que nao existiam no

• Jo vegetal. "LURiA, p. 32,

r ia considera que as investigacoes de Vygotsky .sobre le-

sees cerebrais, perturbacoes da linguagem e organizacao

de funcoes psicologicas em condicoes normais e anor-

I> mais, realizadas na decada de 20, "lancaram as bases para

uma nova area da ciencia, a neuropsicologia, que so re-

centemente se estabeleceu" e que suas ideias sobre a or-

ganizacao cerebral' 'agora, trinta anos depois da rnorte

do autor, incorporaram-se completamente a cienciamoderna".

De acordo com 0 que ja foi discutido em capitulos an-

teriores, urn dos pilares do pensarnento de Vygotsky e

a ideia de que as funcoes mentais superiores sao cons-

truidas ao longo da historia social do hornern. Na sua re-

lacao com 0meio fisico e social que e mediada pelos ins-

trumentos e sirnbolos desenvolvidos no interior da vida

social, 0ser humane cria e transform a seus modos de acao

no mundo. E justamente essavisao sobre 0 funcionamento

psicolo~ico que es~ana base das concepcoes de Vygotskya respeito do funcionamento do cerebro: se a historia so-

cial objet iva tern urn papel crucial no desenvolvimento

psicologico, este nao pode ser buscado em propriedades

naturais do sistema nervoso. Isto e, 0 cerebro e urn siste-

ma aberto, que esta em constante interacao com 0 meio

e que transforma suas estruturas e mecanismos de fun-

cionamento ao longo desse processo de interacao. Nao

podemos, portanto, pensar 0 cerebro como urn sistema

fechado, com funcoes pre-definidas, que nao sealtera no

processo de relacao do homem com 0 mundo.

E interessante observar que, em nenhuma especie ani-

mal, 0 modo de funcionamento do organismo esta com-

pletamente estabelecido no momenta do nascirnento. Em-bora as caracteristicas de cada especie definam limites e

possibilidades para 0 desenvolvirnento dos organismos in-

dividuais, existe sempre certa flexibil idade, uma possi-

bilidade de variacao nos cornportarnentos tipicos da es-

pecie. E isso que garante a capacidade de adaptacao dos

seres vivos a ambientes diversificados e, portanto, 0 pro-cesso de evolucao das especies,

A especie humana e uma especie animal cujos indivi-

duos nascem muito pouco preparados para a sobreviven-

cia imediata: 0 recern-nascido, eo bebe humano ate uns

83

 

d. de vida dependem totalmente dos cuidados01Sanos , . A • E do desen-de adultos para sua sobrevlv.en~la. m termos . _volvimento psico16gicoissoslgnific~,q,:e0 ~rgan1sr:uft~s

t~r?a a ideia d~complexidade dossistemasfuncionais quedirigem a realizacao dessas tarefas. Uma pessoa pode res-

ponder corretamente quanto e 15 + 7, por exemplo, con-tando nos dedos, fazendo urn calculomental, usando uma

trurura basica, com a qual cada membra da especie has-ce e a partir da qual se estabelecerao os modos de fun-

cionamento do sistema nervoso central.

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mano nasce muito "pouco pronto ,IStOe, .com

caracteristicas em aberto, a serem d~selnvolvld:: ~~:~~rn 0 mundo externo e, parncu arrnen ,

~a~~r~~membros da especie- Essa imatur~dade do~or~~-nismos no momento do nascimento e a lmensay asnCI-dade do sistema nervoso central do ~omem. eS,t~oforte-mente relacionadas com a impor;iJ?-oada !l1stona da es~pecie no desenvolvimento pSlCologlCo.:cer1-

ropod~ s

adaptar a diferentes nec~ssi~~des,servmdo a rversas n-<;5esestabelecidas na histona do homem .Uma ideia fundamental para que se comp,ree?-d:essa

_ sobre 0 funcionamento cerebral e a ideia de

~~~~~;;~ncional. Asfun<;5esmentais nao podem serlo-r das em pontes especificosdo cerebro ou em grupos

i:o~~dosde celulas. Elassao, isso sim, organ1za~s ; par-. d - de diversos elementos que atuam e ormatit a acao 1 '1articulada, cada um desempenhando UI?-pare nafUl 0ue se constitui como um sistema .funclona ~omp e~o.~sses elementos podem estar locah~ados em areas dife-

rentes do cerebro, frequentemente dlstant~Surnast~~i~~tras. Alern dessa estrutura complex~, os sistemas :Oden-

. d rnutl 'l izar componentes diferentes, depnais po e . f ( plodo da situa<;ao.Numa determma~a tare a por exem'r o~. -0) urn certo resultado final (no caso, supn

a respua<;a " b or-ulm5es de oxigenio, 0 qual sera poste.no:mente ~ sp. 1 g"mea) pode seratmg1dode dlversasvido pe a correntc san u .' de musculosmaneiras alternativas. Se 0 pnnopal grupo ,ue funcionam durante a respira<;aopara de atuar, osrnus-

;ulos intercostais sao chamados ~ u~balhar, masr )~:alguma razao eles estiverem pre)_udlcaos, os mU~~~e_da laringe sao mobilizados e 0 anunal o,ua pessfa<;aa engolir ar que entao chega aos alveolos pu monar~sor uma rota'completamente diferente. A presence e

~ma tarefa constante, desempenhada por meca~11Smos:~

riaveis produzindo um resultado constan.te e urna .caract~rlsticasbasicasque distingue 0 funclOnamento de

cada sistema funcional.o exemplo acima rnostra como ate mesm? uma tarefa

basicacomo a respira<;aoe possibilitada p.orslstem~s~~-1 os que podem seutilizar de rotas dlversase de 1 e-fe~es 'combina<;5esde seus componentes: Quan 0 pe~-samos em tarefas rnais distantes do funo~na~,ento PSl-

co16gicobasico e mais ligadas a relacao~o m~vlduo crmo rneio sociocultural onde ele vive, matsfun amenta se

84

maquin~ de calcular, fazendo a operacao com lapis e pa-

pel ou sirnplesrnente lembrando-se de uma informacaoja armazenada anteriormente em sua memoria. E facilimaginar como cada uma dessas rotas para a solucao de

urn mesmo p!~blema mobilizara diferentes partes de seuaparato cogrunvo e, portanto, de seu funcionamento ce-rebral. Contar nos dedos implica uma atividade motora

que esta ause~te nas outras estrategias: usar a maquina

de calcular exige 0usa de uma informacao "tecnica' so-bre 0 usa da n:aquina; _Iembrarde urn resultado previa-mente memonzado exige uma operacao especifica liga-

da a memoria, e assim por diante.

A mera listagern dessesprocedimentos evidencia a co-~exao Intima q.ue existe entre 0 desempenho de tarefasligadas ao funcionamento mental e a insercao do indivi-duo num contexto socio-historico especifico. Instrumen-

~ose s~~olos C?~s.truidossocialmente definem quais dasinfindaveis possibilidades de funcionamento cerebral serao

efetivamente desenvolvidas e mobilizadas na execucao de

~ma certa tar~f~: 0caminho percorrido pela operacao rea-

Iizada com lapis e papel, por exernplo, seria inexistenteno conjunto de sistemas funcionais de urn membra de

uma sociedade sem escrita.

Podemos retomar aqui urn exemplo mencionado no

capitulo 4:. urn individuo que vive num grupo culturalque nao dispoe da escrita jamais sera alfabetizado. Isto

e, embora, engu.a~to me~bra da especie hurnana, dis-ponha da possibilidade fisica de aprender a ler e escre-

ver, essapossibilidade s6 sera desenvolvida como urn mo-

d? de funcio~amento psicologico por seres humanos que

vlvam.em sOCledad~sletradas. E irnportante destacar q~eessa diferenca funcional nao se reflete em diferencas fisi-

cas no cerebro humano: enquanto sistema aberto 0 ce-

rebro esta, justarnente, pre~arado para realizar funcoesdiversas, dependendo dos diferentes modos de insercaodo homem no mundo.

Essa concepcao da organizacao cerebral como sendo ba-

seada em sistemas funcionais que se estabelecem na his-

t6ria do homem supoe uma organizacao basica do cere-

b~o~umano, q~~ resulta da evolucao da especie. Isto e,a ideia da plasticidade cerebral nao significa falta de es-trutura, mas, ao contrario, implica a presenca de uma es-

85

Luria aprofunda, em sua obra, a questao da estrutura

basica do cerebra, distinguindo tres grandes unidades de

funcionamento cerebral cuja participacao e necessaria emqualquer tipo de atividade psicol6gica. A primeira delase a unidade para regulacao da atividade cerebral e do es-

tado de vigilia. Para que os processos mentais se desen-volvam de forma adequada e necessario que 0 organis-

mo esteja desperto: a atividade mental organizada e di-

rigida a objetivos nao ocorre durante 0 sono. Alern disso

e necessario que 0 cerebro funcione num nivel adequa-

do de atividade, nern muito excitado, nem rnuito inibido.o sistema deve estar, rambern, alerta para a necessi-

dade de mudancas de comportamento. Isto e, emborao sistema nervoso tenha, normalmente, urn cerro nivel

de atividade e a manutencao desse nivel seja uma carac-

teristica essencial do funcionamento do organismo, ha si-tuacoes em que esse nivel deve ser aumentado. Quandoo individuo tern fome, por exernplo, volta sua ativida-

de para ibusca de alimento, comportando-se de forma

86

 

mais intensa ate saciarsua fome; quando urn ruido forte

e ouvido, 0 sujeito focaliza sua atencao na fonte do rui-

do, mobilizando-se para reagir a urn eventual aconteci-

mento inusitado. 0 sistema nervoso conta, entao, com

analise e a sintese da inforrnacao recebida pelo sistema

visual (segunda unidade) e osmovime~tos dos ol_hosp~-las varias partes do objeto a ser percebido (terceira urn-

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essa forma de controle sobre seu proprio nivel de ativi-dade, 0 que the da condicao de funcionamento adequa-

do, dependendo da situacao em que 0 organismo se en-

.contre.

A segunda unidade de funcionamento cerebral e a uni-

dade para recebimento, analise e armazenamento de in-

formacoes. Essaunidade e responsavel, inicialmente, pelarecepcao de inforrnacoes sensoriais do mundo ~xterno atra-yes dos orgaos dos sentidos. Trabalha com inforrnacoes

especificas, como por exemplo, na percep~a? visual~com

pontos Iuminosos, linhas, rnanchas. A seguir essas infer-

macoes sao analisadas e integradas em sensacoesmais com-

plexas, constituindo objetos completos (cadeiras, mesas,

etc.). Depois sao sintetizadas em percepcoes ainda mais

complexas que envolvem, simultaneamente, inforrnacoesdas varias modalidades sensoriais (visao, audicao, taro,

etc.). Assim se da a percepcao de cenas, eventos, situa-

coes que se desenvolvem no tempo e no espaco. Todasessas inforrnacoes, das mais simples as mais compiexas,

sao armazenadas na memoria e podem serutilizadas em

situacoes posteriores enfrentadas pelo individuo.

A terceira unidade postulada por Luria e a unidadepara programacao, regulacao e controle da atividade.,'A atividade consciente do hom em apenas corneca com

a obtencao da inforrnacao e sua elaboracao, terminando

com a formacao das intencoes, do respectivo programa

de a~ao e com a realizacao desse programa em atos exte-

riores (motores) ou interiores (mentais). Para isso e ne-

cessario urn aparelho especial, capaz de criar e manter as

necessarias intencoes, elaborar programas de acao a elascorrespondentes, realiza-los nos devidos atos e, 0 que e

de suma importancia, acompanhar as acoes em curso,

comparando 0 efeito da as:aoexercida com as intencoes

iniciais". Enquanto a segunda unidade trabalha com a

recepcao da inforrnacao vinda do ambiente, essaterceira

unidade regula a acao - ffsicae mental- do individuo

sobre 0 ambiente.

Luria enfatiza em seu trabalh~ que qualquer forma de

atividade psicologica e urn sistema complexo que envol-

ve a operacao simultanea das tres unidades funcionais.

A percepcao visual, por exemplo, envolve 0 nivel ade-

quado de atividade do organismo (prirneira unidade), a

dade). Astres unidades sempre funcionam)untas e a com-

preensao da interacao entre elas e essencial p~ra a con:-

preensao da natureza dos mecanismos cerebral~ envolvi-

dos na atividade mental. Essas tres grandes unidades de

funcionamento cerebral estao presentes em todos os in-

dividuos da especie humana e sao a base sobre a qual seconstruirao mecanismos especfficos, carregados de con-

teudo cultural.

Outro aspecto importante resultante das concepcoes

de Luria, sobre a organizacao cerebral, e a ideia de que

a estrutura dos processos mentais e as relacoes entre os

varies sistemas funcionais transformam-se ao longo do de-

senvolvimento individual. Nos estagios iniciais do desen-volvirnento , as atividades mentais apoiam-se principal-mente em funcoes mais elementares, enquanto que, em

estagios subsequentes, a participacao de funcoes superio-

res, especialmente as que envolvem a linguagem, torna-

se mais irnportante. Os processos de mediacao simbolica

eo pensamento abstrato e generaliza~te, tor~ado possi-vel pela linguagem, passam a ser mars centrais nos pro-cessos psicologicos do adulto.

Essadiferenca no desenvolvimento tern uma correspon-

dencia na organizacao cerebral propriamente dit~. Na

crianca pequena as regioes do cerebro responsaveis por

processos rnais elementares (registro sensorial de pontos

luminosos, por exemplo) sao rnais fundamentais para seu

funcionamento psicologico; no adulto, ao contrario, a im-portancia maior e a das areas ligadas a processamentos

rnais compiexos (reconhecimento de imagens visuais con:-

pletas, por exemplo). Assim sendo, lesoes em dererrni-nadas areas do cerebro podem causar problemas comple-

tamente diferentes, dependendo do estagio de desenvol-

vimento psicologico do individuo.

Foi propondo uma linha de investigacao 9ue buscass.e

descrever a estruturacao das funcoes mentars em condi-

~oes normais de desenvolvimento, sua perda ?~ .desor-ganizacao em caso de lesao cerebral e suas possibilidades

de recuperacao que Vygotsky lancou os fundamentos do

que viria a ser a neuropsicologia de Luria e as bases de

uma compreensao da psicologia humana, que contem-

pia 0 substrato biologico do funcionamento ps~cologicodessa especie, cujo desenvolvimento e essencialmente

socio-hist6rico.

8788

Luna realizou muitos estudoscompessoas com tesso cerebra/-

que t iveram a/gum tipo de dana

fisico no cerebra eausado p or fe-

nmento aba/a, paneada, tumor

ou hemorragia. Esses danos fisi-

cosprovoeam disturbios no fun-

eionamento psicotogico, que ua -

riarn eonforme a re gia o e a exten-

sao da iesso. 0 estudo da /esao

associada ao disturbio psie%gi-

cofornece informacoes muito im-

portantes para a compreensdo do

funeionamento do cerebra.

 

Os fundamentos culturais e sociais dodesenvolvimento cognitivo: a pesquisa

intercultural na Asia Central

gistrava as respostas dadas e provocavaos sujeitos com no-

vas perguntas para obter, de urn mesmo individuo, ou-tras reflex6es e ourras possibilidades de raciocinio. Conforme vimos no capftulo 4, a

metodologia depesqeasa:utzliza-

da por Luria e de extrema con-

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o livro Desenvolvirnenro cogni-

tivo: seus fundamenros culturais

e sociais, (20), em que essapes-

quisa intercultural e relatada, foipublicado na Unido Sooietica em

1974, mais de quarenta anos de-

pois de sua conctusao. Nos Esta-

dos Unidos, foi publicado em

1976 e, em 1990, no Brasi l. Na

coletdnea Linguagem, desenvol-

vimenro e aprendiz agem, (3),

tambem hi um artigo de Luria,

intitulado "Diferencas culturais

depensamento", que resume os

resultados dessa pesquisa.

Alern de se ter dedicado ao estudo das funcces psico-

logicas, no nivel da organizacao cerebral, Luria tam bern

foi quem, entre oscolaboradores de Vygotsky, desenvo~-veu a pesquisa de maior alcance sobre a questao das di-

ferencas culturais. Com 0 objetivo de estudar como os

processos psicologicos superiores sao construidos em di-ferentes contextos culturais, Luria conduziu extenso tra-

balho de campo sobre 0 funcionamento psicologico demoradores de vi larejos e areas rurais de uma regiao re-

mota e pouco desenvolvida da Asia Central. Vygotskynao

participou diretamente desse trabalho, por encontrar-se

ja bastante doente.

A regiao em que 0 estudo foi realizado (Usbequistaoe Quirguistao) situa-se na Asia Central, proxima a fron-

teira com 0Afeganistao. Essaera uma regiao bastante iso-

lada, estagnada economicamente, com alto grau de anal-

fabetismo, predominancia da religiao rnuculmana e do

trabalho rural em propriedades individuais e isoladas. Na

epoca em que 0 trabalho de campo foi realizado (193.1-

1932), a regiao estava sofrendo um processo de rapidastransformacoes sociais, com a irnplantacao de fazendas

coletivas, mecanizacao da agricultura e escolarizacao da

populacao. Esse perfodo de transformacoes propiciava

uma oportunidade privilegiada para a observacao das re-

lacoes entre vida social e processos psicologicos, tao im-

portante na construcao de uma psicologia historico-cul-

tural. A pergunta fundamental que Luria fez foi: 0 queacontece com os individuos que passam por essas trans-

formacoes sociais, em termos de seu funcionamento in-

telectual? Diferentes individuos, com varies graus de es-

colarizacao e de insercao no trabalho mais moderno das

fazendas coletivas, foram incluidos na pesquisa, para per-

rnitir a cornparacao de seu desempenho em diversos ti-

pos de tarefas psicologicas,

Luria e 0 grupo de pesquisadores que 0 acompanhou

procuraram relacionar-se com osmoradores da regiao es-

tudada, convivendo com eles nos ambientes de sua vida

cotidiana, antes de comecarern 0 trabalho propriamente

di to. Depois os dados de pesquisa foram coletados emlongas entrevistas nas quais eram apresentadas tarefas para

serem resolvidas pelo entrevistado. 0 experimentador re-

89

Varies tipos de tarefas foram utilizadas ao longo das

entrevistas: tarefas de percepcao (norneacao e agrupamen-

to de cores, norneacao e agrupamenro de figuras georne-

tricas, resposta a ilus6es visuais); de abstracao e generali-

zacao (comparacao, discrirninacao e agrupamento de ob-jetos, defini<;aode conceitos); de deducao e inferencia(estabelecimento de conclusoes logicas a partir de infor-

rnacoes dadas); de solucao de problemas matemaricos a

partir de situacoeshipoteticas apresentadas oralmente; de.

imaginac,:ao(elaboracao de perguntas ao experimentador);

de auto-analise (avaliacao de suasproprias caracreristicas).

Em todas as tarefas apresentadas, os resultados obti-.dos apontaram para uma mesma direcao: houve altera-

<;oesfundamenrais na atividade psicologica acompanhan-

do 0 processo de alfabetizacao e escolarizacao e as mu-

dancas nas formas basicas de trabalho. Isto e, os sujeitos

rnais escolarizados e mais envolvidos em situacoes de tra-

balho coletivo exibiram urn comportamento mais sofis-

ticado do q~~ os analfabetos e os camponeses que traba-lhavam individualmenre, Vamos apresentar aqui apenas

alguns resultados especfficos, como exemplo dos tipos de

respostas dadas as tarefas utilizadas na pesquisa.

Em uma das tarefas de classificacao foram apresenta-

dos desenhos de quatro objetos, sendo tres pertencentes

a uma categoria e 0 quarto a outra categoria (por exem-plo, "marte lo" , "serra'" , "machadinha", todos ferra-

90

temporaneidade: a imerslio do

pesquisaaor no contexto dapes-

quisa, a entreuista longa e nao es-

truturada, a intervenflio do pes-

qzasaaor para prouocar compor-tamentos releuantes a serem ob-

servados sso estratigias muito uti-

lizadas e valorizadas napesquisa

atual em ciencias humanas.

Trabalhadores rurais na ex-UnilioSovzitica.

 

rnentas, e "rora de madeira", 0 unico objeto que naopertencia a categoria das ferramentas}. Perguntava-se aoentrevistado quais eram os tres objetos semelhantes, que

poderiam ser colocados num mesmo grupo, equal 0 que

nao pertencia a essegrupo. Os mais escolarizados e inse-

. Tarefa de percepcao utilizada por Luria

Figuras apresentadas aos sujeitos para serem agrupadas e nomeadas:

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ridos em situacoes de trabalho mais modernizadas ten-diam a colocar as tres ferramentas juntas e indicar a torade madeira como 0 unico objeto diferente.Ta os analfa-betos e que trabalhavam como camponeses isolados nao

faziam essetipo de classificacao dos objetos. Diziam que

os quatro objetos deviam ser colocados juntos, porque

o serrote serra a tora, a machadinha corta a tora e preci-

samos da madeira para pregar alguma coisa com 0 mar-telo: todos os objetos sao usados juntos e nenhum delespode ser separado.

Em uma variacao da mesma tarefa, apresentava-se um

conjunto de desenhos de tres objetos que pertenciam auma mesma categoria (por exemplo, "arvore", "flor"e "espiga", todos vegetais) e pedia-se aos sujeitos que

selecionassem urn quarto objeto adequado, de um gru-po de dois ou tres outros desenhos ("roseira" e "passa-

ro", por exemplo). Novamente os mais escolarizados e

modernizados tendiam a selecionar 0 objeto pertencen-te a mesma categoria que os outros tres ("roseira", no

exemplo citado). Os analfabetos e camponeses isoladostendiam a fazer outro tipo de relacao entre os objetos,

selecionando, por exemplo, 0 passaro para compor 0 con-LURIA, p. 99, (20). to > junto: " ... a andorinha. Ha uma arvore aqui e uma flor

- e um lugar bonito. A andorinha vai sentar aqui ecantar" .

Nesta tarefa era utzlizado 0 silo-

gismo, um tipo de deduyiio logi-

ca:de duasproposicoes chamadas

premisses, e possivel extrair umaconclusiio iogica. Por exemplo:

Premisses:

1 - Todo homem e mortal.2 - Pedro e homem.Conclusiio: Pedro -e mortal.

Em outro tipo de tarefa, pedia-se aos sujeitos que che-

gassem a uma conclusao com base em inforrnacoes da-das pelo experimentador. 0 experimentador informava,

por exemplo, que "No norte, onde ha neve, todos osursos

sao brancos" e que "Novaya Zemlya fica no norte e lasempre neva". A seguir perguntava: "De que corsao os

ursos em Novaya Zemlya?". A conclusao l6gica a partirdas duas inforrnacoes basicas e a de que os ursos em No-vaya Zemlya sao brancos. Essa era a conclusao apresenta-

da pelos sujeitos mais escolarizados e que trabalhavam

em fazendas coletivas. ]a os menos escolarizados e quetrabalhavam como camponeses isolados tinham dificul-

dade com esseraciocinio abstrato, baseando suas respos-tas em experiencias pessoais e negando-se a fazer infe-rencias sobre fatos nao vivenciados: "Eu nao sei de quecor sao os ursos lao Eu nunca os vi".

LURIA, p. 148, (20). to >

91

Qu.A :.~D...:, x xxx

D~~~~~~

1\

C\'----'/~xempl~s d~f~gr~pamentos de figuras realizados por camponeses pouco escolariza-os e a JUSU rcanva que eles deram para agruparem desse modo:

"Molduras de janelas."

o00

o 0

o •o 0

o •. .... . . . . . . . .

. . . . . . . . .· ..0

• 0· ..•. . "Rel6gios. "

. • . . . . . . .: :. .•

: :. - .. . . . . . . . oEstes sao parec idos - isto e urna ga iol a e esta e

a gaveta de alimenta~ao atraves da gaiola."

"Este e urn pequeno balde para Iei te coalhado,

e esta e uma panela para 0 creme."

Nas demais tarefas utilizadas nesse estudo as diferen-casobservadas entre os grupos de sujeitos apontavam sem-

pre n.a.mesma dlrec;ao: "mudanc;as nas formas praticas <J LURIA, p. 58, (18).de atividade, e espeoalmente a reorganizac;ao da ativi-

da~e basea?a ~a escolaridade formal, produziram alte-r~c;oesqualitativas nos processos de pensamenro dos in-

dividuos estudados". Baseado nas proposicoes te6ricas de

Vygotsky, Luria identificou dois modos basi cos de pen-

samento que caractenzam essasalteracoes qualitativas as-

92

 

sociadas as transforrnacoes sociais ocorridas na regiao es-

tudada: 0 modo grafico-funcional e 0 modo categorial.

Esses dois modos de pensamento estavam preseotes, co-

mo urn contraste entre os diferentes grupos de sujeitos,

em todas as tarefas incluidas nesse estudo intercultural.

o modo chamado grafico-funcional refere-se ao pen-

Com esses individuos , Luria pede observar claramen-

te 0 papel da intervencao do pesquisador na zona de de-

senvolvimento proximal. Luria freqiientemente provo cava

a reflexao dos entrevistados contrapondo a resposta de-

les uma resposta dada por uma pessoa hipotetica ("Mas

das por ~uria ~este amplo projeto de investigacao, sao,

alllda. hoje , objeto de grande controversia na area da psi-

cologia, Por urn lado a psicologia tradicional nao leva em

conta as relacoes entre cultura e pensamento, buscando

a cornpreensao do funcionamento psicologico como urn

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sarnento baseado na experiencia individual, em contex-

tos concretos, em siruacoes reais vivenciadas pelo sujei-

to. E chamado "grafico" no sentido de que se baseia em

configuracoes perceptuais, presentes no campo da expe-

riencia do sujeito - como no caso das figuras................ .............que "se parecem porque ambas tern pontinhos'", sem

que sejam feitas relacoes entre as figuras e as categorias

rnais abstratas de quadrados e triangulos. E chamado

"funcional" porque refere-se as relacoes concretas entre

os objetos, inseridos em situacoes praticas de uso - co-

mo no caso da tora de madeira dassificada com 0 serrote

porque 0 serrote serra a tora.

o modo de pensamento chamado cat ego rial refere-se

ao pensamento baseado em categorias abstratas, a capa-

cidade de lidar com atributos genericos dos objetos, sem

referencia aos contextos praticos em que 0 sujeito se re-

laciona concre tamente com os objetos. 0 individuo quefunciona psicologicamente de forma categorial e capazde desvincular-se das situacoes concretas e trabalhar com

objetos de forma descontextualizada. Assim, por exem-

plo, independentemente do uso conjunto que 0 sujeito

faca do serrote e da tora de madeira, ele e capaz de clas-

smear esses objetos em dois grupos diferentes : ferrarnentas

e nao ferramentas. Do mesmo modo, e capaz de conduir,

a partir de informacoes verbais, que em Novaya Zemlya

os ursos sao brancos, mesmo que nunca tenha estado la,

ou nunca tenha visto os rais ursos.

Conforme mencionado anteriormente, os individuos

rnais escolarizados e com urn tipo de trabalho rnais mo-dernizado e que tendiam a comportar-se de modo cate-

gorial. E interessante observar que alguns sujeitos, prin-

cipalmente aqueles com pequeno grau de escolaridade

e uma atividade profissional interrnediaria entre formas

mais tradicionais e formas modernas, apresentavam urn

desempenho "em transicao" nas tarefas psicologicas uti-

lizadas nesse estudo. Isto e, ora comportavam-se de mo-

do categorial, ora apresentavam urn raciocinio mais pre-

so a situacoes concretas e a experiencia pessoal.

93

uma pessoa me disse que uma dessas coisas nao pertence

a esse grupo", por exemplo) ou fazendo urn questiona-

mento expliciro da resposta do suje ito (' 'Esta certo, mas

urn martelo, uma serra e uma machadinha sao todos fer-

ramentas"). Para aqueles sujeitos "em transi~ao" essa

intervencao ativa do pesquisador muitas vezes resultava

numa transforrnacao do seu modo de pensamento: ao lon-

go da realizacao da tare fa 0 individuo passava do modografico-funcional ao categor ial. Essa transforrnacao nao

acontecia com os que raciocinavarn, consistentemente, de

modo grafico-funcional. Parece, justamente, que a in-

terferencia externa provoca transformacao visfvel apenas

quando 0 novo modo de pensamento ja esta presente,

"em semente", no proprio sujeito. Esta e exatamentea ideia da intervencao na zona de desenvolvimento pro-

ximal e da prornocao de processos de desenvolvimento

a partir de situacoes de interacao social.

As relacoes entre as dife rencas no modo de funciona-

mento intelectual e as transforrnacoes no modo de vida

sao bastante evidentes no que se refere ao processo deescolarizacao formal. A escola e uma inst ituicao social on-

de 0 conhecimento e objeto privilegiado da atencao dos

individuos, sem conexao irnediata com situacoes de vida

real. Os sujeitos que passam pela escola acostumam-se

a trabalhar com ideias e conceitos de forma descontex-

tualizada, sem referencia ao dominio do concreto. As cien-

cias, cujo conhecimento acumulado e t ransrni tido na es-

cola, constroem, ao longo de sua historia, modos de or-

ganizar 0 real justarnente de forma categorial.

No que se refere aos processos de rnodernizacao no tra -

balho, particularmente de irnplantacao das fazendas co-

letivas no caso da regiao estudada por Luria, esses envol-vern 0 planejamento de acoes coletivas, a tom ada de de-

cisoes com base em crite rios que ultrapassam as necessi-

dades emotivacoes individuais, a subst ituicao daquilo que

e circunstancial e particular pelo que e previsivel, geral

e cornpart ilhado. Essas caracter ist icas do modo de traba-

lho parecem propiciar a ernergencia de novas formas de

funcionamento intelectual.

Ii importante mencionar que as relacoes entre contex-

tos cul turais e processos psicologicos superiores , estuda-

94

fen6meno universal. Estudos como 0 de Luria, por outro

lado, constroem uma diferenciacao entre modos de fun-

cionarnento intelectual que, ao romper com a universa-

hd~de dos processos psicologicos, podem levar a uma va-

lorizacao de urn dos modos de funcionamento como sendo

o mais sofist icado, rnais complexo, mais adequado. Co-

mo 0 referencial privilegiado da psicologia e a sociedade

urbana , modema, escolarizada, com desenvolvimentocie~tl!ico e te~nologico, 0modo de funcionamento psi-

cologico associado a esse tipo de insercao do homem no

mun?o tende a ser tornado como 0modo mais avancado.

MIchael Cole, urn dos principais estudiosos contem-

poraneos das re lacoes entre cultura e pensamento, mani-

festa s~a ~~eocupa~ao. com essa questao no prologo a obrade Luna: Seu objetivo geral era rnostrar as raizes socio-

historicas de todos os processos cognitivos basicos; a es-

trutu~a. de pensam.ento depende da estrutura dos tipos

de atividades dorninantes em diferentes culturas. Desse

c?nju~to de pr~missas, segue-se que 0 pensamento pra-

t1~0val ~redo~ar em s?ciedades caracterizadas pela ma-nipulacao pratica de obje tos e que forrnas rnais 'abstra-

~as' d~ atividade ' teor ica' em sociedades tecnologicas vao

induzir a pensamento~ rnais abs tratos, teoricos. 0 para-

lelo entre 0 des;n~ol~l~ento social e individual produz

uma forte tendencia a mterpretacao de todas as diferen-

~a~comportamentais em termos de desenvolvimento. [ .. . J

Minha l~lt~rpreta~ao pessoal desse tipo de dados e urnpou~C?dist inta, uII?-avez que sou urn tanto cet ico quantoa utilidade da aplicacao de teorias do desenvolvimento

em .es~udos comparativos ~~ culturas. Ass im, aquilo que

luna lnterpreta como aqursicao de novos modos de pen-

5amen~0, tenho tendencia a interpretar como mudancas

na aphca~ao. de modos previamente disponiveis aos pro-

blemas part iculates e contextos do discurso representa-

::los.pela situacao experimental. Entretanro, 0 valor des-

se livro na~ depende da nossa interpreracao dos resulta-

::losde Luna. Como ele enfatiza em divers as passagens,

) t~xto representa urn projeto-piloto ampliado que ja-

nars podera set repetido. Sera ta refa de outros pesquisa-

:i.ores, tr~balhand? naquelas partes do mundo em que

unda existem sociedades tradicionais, aperfe icoar a in-

erpretacao desses achados".

95

 

A teoria da atividade de Leontiev A atividade de cada individuo ocorre num sistema derelacces sociais e de vida social, onde 0 trabalho ocupa

lugar central. A atividade psicol6gica interna do indivi-duo tern sua origem na atividade externa: "[ ... J os pro-cessosmentais humanos (as 'funcoes psicol6gicas supe-

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Juntamente com Luria, A. N. Leontiev foi urn dos co-laboradores mais pr6ximos de Vygotsky, tendo trabalha-

do diretamente com ele no projeto de construcao da "n~-va psicologia" na Russia p6s-revolucionaria. Sua teon~

da atividade pode ser considerada urn desdobramento dos

posrulados basicos de Vygotsky, especialmente no que ;hz

respeito a relacao ho~em-mun?o enquanto construidahistoricamente e mediada por mstrumentos.

As atividades humanas sao consideradas por Leontiev,

como formas de relacao do homem com 0mundo, diri-

gidas por motivos, por fins a serem alcancados. A.ideia

de atividade envolve a nocao de que 0 homem onent~-

se por objetivos, agindo de fo~ma intencional, por mewde acoes planejadas. A capacidade de consC1en~e~enteformular e perseguir objetivos e um trace que distingue

o homem dos outros animais.

96

riores') adquirem uma estrurura necessariamente ligada

aos meios e rnetodos socio-historicamente formados etransmitidos no processo de trabalho cooperative e de

interacao social. [... J As atividades mentais internas erner-gem da atividade pratica desenvolvida na sociedade hu-mana com base no trabalho, e sao formadas no curso da

ontogenese de cada pessoa em cada nova geracao". Osprocessespsicol6gicosdo individuo, internalizados a partir

de processes interpsicol6gicos, passam a mediar a ativi-

dade do sujeito no mundo, numa interacao constante en-tre 0 psiquismo e as condicoes concretas da existencia dohomem.

Alexei Nikolaiev ich Leon tiev

(1904-1979)

Leontiev analisa a estrurura da atividade humana, dis-tinguindo tres niveis de funcionamento: a atividade pro-priamente dita, asacoese asoperacoes, Urn exemplo dado

por Leontiev explicita esses niveis de funcionamento:"Quando urn membro de urn grupo realiza sua ativida-

de de trabalho ele 0 faz para satisfazer a uma de suas ne-cessidades. Urn batedor, por exemplo, que toma partede uma cacada coletivaprimitiva, foi estimulado pela ne-cessidade de alimento ou, talvez, pela necessidade de ves-

timenta, que a pele do animal morto satisfaria para ele.Mas a que sua atividade estava diretamente orientada?Poderia estar orientada, por exemplo, para afugentar urnbando de animais e encaminha-los na direcao de outroscacadores tocaiados. Isso, na verdade, e 0 resultado da

atividade desse homem. E a atividade desse membro in-dividual da cacada termina ai. 0 restante e completadopelos outros membros. Por si s6, esse resultado - a fugada caca, etc. - nao leva, e nao pode Ievar, a satisfacaoda necessidade de comida ou de vestirnenta. Consequen-ternente , os processos da atividade do batedor estavamdirecionados a algo que nao coincidia com 0 que os esti-mulou, isto e , nao coincidia com 0motivo de sua ativi-

dade; os dois estavam separados nesse exemplo. Aos .pro-cessoscujo objeto e motivo nao coincidem chamaremos'acoes': Podemos dizer, por exemplo, que a atividade dobatedor e a cacada e 0 afugentar do animal, sua ac,:ao".

Vemos nesse exemplo como a atividade e uma formacomplexa de relacao homern-mundo, que envolve fina-lidades conscientes e atuacao coletiva e cooperativa. A ati-

Hii apenas dais art igos de Leon-

tiev publicados no Brasil: "Umacontribuicao a teoria do desenvol-vimento da psique infantzi" e

"Os principios psicol6gicos da

brincadeira pre-escolar", ambos

na coletiinea Linguagem, dcsen-

volvimento e aprendizagem eambos orzginalmente publicados

num de seus principais livros,

Problems of the development of

the mind (1981). Este l ivro foi

traduzido par uma editora portu-

guesa com a titulo 0 desenvolvi-

memo do psiquismo. Hd tam-bem um livro seu traduzido paraa espanbol: Actividad, conscien-

cia y personalidad.

97

 

vidade e realizada por meio de acoes dirigidas porrne-

ras, desempenhadas pelos diversos indivfduos envolvidos

na atividade. 0 resultado da atividade como urn todo

que s~tisfaz a necessidad- do grupo, tambern leva a sa~

tisfacao das necesslda~es de cad a individuo, mesmo que

sem sentido, absurd a ate, considerando que seu objeti-

vo e obter alimento. Mas sua acao passa a ter significado

quando analisada como parte integrante de uma ativi-

dade coletiva, com funcao definida num sistema de coo-

peracao social que conduz a obtencao daquele resultado.

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cada urn tenha se dedicado apenas a uma parte especffi-ca da tarefa em questao.

o rerceiro ~nfvel da atividade humana postulado por

~eonuev, o.myel das operacoes, refere-se ao aspecto pra- <l

t~coda realizacao d.asacoes, as condi<;:6es em que sao efe-

tivadas, aos procedirnenros para realiza-Ias: "alem de seu <l

as?ec~o intencional (0 que deve ser realizado) a acao tam-

bern inclui s~u aspecto operacional (como, de que modo

podeser reahzada), 0 qual e determinado nao pela meta

em Sl, I?as pelas condi<;:6es objetivas (ambientais) para

su~ realIza<;:ao. [ ... ] A esses modos de desempenhar umaacao chamo de opera~6es".

Vma m~sma ati.vidade humana pode ser desempenha-

da por rnero de diferentes cadeias de acoes: a atividade

de caca pode envolver as acoes de afugentar os animais

e embosca-los, como no exemplo mencionado anterior-

mente, ou as a<;:6esd~ co?stru<;:ao de armadilhas e posre-nor rnatanca dos anrmais que nelas caem, ou ainda as

a<;:6esde coloca<;:ao de alimentos em determinado local

para atrair 0animal e posterior espera do animal cevado.

Da .mesm~ forma, uma acao pode set desempenhada por

rnero de d~ferentes operacoes: 0 abate de urn animal po -

de set realizado po t golpes de bastao, flechadas, tiros dearma de fogo, etc.

E interessante fazer urn paralelo entre essa abordagern

de Leontiev e a nocao de "sistemas funcionais" na neu-

rops~~ologia de Luria: em ambos os casos, esta presenre

a ideia de q~e uma determinada fun<;:ao ou finalidadepode set reallza~a_de m~it~s maneiras diferenres, depen-

dendo das condicoes objetivas e das praticas culturais es-

tabelec.idas. 0 funcionamenro do ser humano nao po-

de, pots, set cornpreendido sem referencia ao contexteem que ocorre.

A atividade humana e tomada como a unidade de ana-

lise, ~ais adequad.a para a compreensao de processos psi-

cologicos porque inclui tanto 0 indivfduo como seu am-

?i.ente, culturalmenre definido. A a<;:aoindividual em si

e insuficienr- como unidade de analise: sem inclusao num

s~stema coletivo de atividade, a a<;:aoindividual f ica des-

tituida ?e significado. 0 batedor que afugenta a caca,

olhado isoladarnente, parece estar realizando uma acao

98

Operafoes, para Leontiev

Como a atividade humana, resultado do desenvolvi-

mento socio-historico, e internalizada pelo individuo e

vai constituir sua consciencia, seus modos de agir e sua

forma de perceber 0mundo real, a compreensao do con-

texto cultural no qual ela ocorre e essencial para a com-

preensao dos processos psicologicos. Conforme se trans-

forma a estrutura da interacao social ao longo da histo-

ria, a estrutura do pensamento humano tam bern se trans-

formacao

Podemos reconhecer, na teoria.da atividade de Leon-

tiev, varies conceitos presentes nas principais forrnulacoes

de Vygotsky. A propria ideia da atividade baseia-se na

concepcao do ser humano como sendo capaz de agir de

forma voluntaria sobre 0mundo, intencionalmente bus-

cando atingir determinados fins. Esse modo de funcio-

namento psicologico e a base dos processos psicologicos

superiores tipicamente humanos. Os processos superio-res envolvem, necessariarnente, relacoes entre 0 indivi-

duo e 0mundo, que nao sao diretas, mas mediadas pela

cultura. A interacao social e fundamental para 0 desen-

volvimento das formas de atividade de cad a grupo cul-

tural: 0 individuo internaliza os elementos de sua cultu-

ra, construindo seu universo intrapsicologico a partir do

mundo externo. Urna abordagem genetic a e contextua-

lizada dos processos psicologicos do ser humano e fun-

damental para a cornpreensao de seu funcionamento en-

quanto ser socio-historico.

LEONTIEV, (27).

Esse paralelo e discutido po.

Werseht, importante interpretl

dopensamento dos soviiticos no:

Estados Unidos, em seu l ivro Cconceito de atividade na psicolo-

gra sovietica, (29), sem tradUfiiGpara 0 portugais.

99

 

Conclusao , 'A internalizacao de formas culturais de c?~por-

tamento envolve a reconstrucao da atividade

psicologica tendo como base as operacoes com signos. Os

processos psicologicos, tal como aparecem nos animais,

E importante destacar que essa ideia da escolha ent.re

teorias coloca 0 educador numa situacao bastante arris-

cada, particularmente dada a natureza aplicada .d~ sua

area de atuacao. Pode levar a urn consum.o superficial da

teoria tida como" a melhor" num deterrninado mornento

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realmente deixam de existir; sao incorporados nesse sis-

tema de comportamento e sao culturalmente reconstrui-

dos e desenvolvidos para formar uma nova entidade psi-

cologica. 0 uso de signos externos tam bern e reconstrui-

do radicalmente. As mudancas nas operacoes com sig-

nos durante 0 desenvolvimento sao semelhantes aquelas

que ocorrem na linguagem. Aspectos tanto da fala ex-terna ou comunicativa como da fala egocentrica 'interio-

rizam-se", tornando-se a base da fala interior.

"A internalizacao das atividades socialmente enraiza-

das e historicamente desenvolvidas constitui 0 aspecto ca-

racteristico da psicologia humana; e a base do salto qua-

litativo da psicologia animal para a psicologia humana.

Ate agora conhece-se apenas urn esboco desse processo."

Esse pequeno trecho e parte de urn texto escrito por

Vygotsky em 1930 enos fornece uma visao condensada

de sua abordagem: 0 homem biologico transforma-se em

social por rneio de urn processo de internalizacao de ati-vidades, comportamentos e signos culturalmente desen-

volvidos. Vygotsky tam bern explicita que "ate agora

conhece-se apenas urn esboco desse processo": sua obra

nao nos fornece, de fato, uma teoria bern esttuturada a

respeito da diversidade de temas aos quais dedicou tao

pouco tempo de vida. Por isso mesmo, seu trabalho, mui-

to mais do que organiza, inspira a reflexao sobre 0 fun-

cionamento do ser humano, a realizacao da pesquisa em

educacao e em areas relacionadas e a pratica pedagogica.

Seria inadequado buscar em Vygotsky urn sistema teori-

co completo, que articulasse as varias dimensoes contem-

pladas em sua obra. Seria ainda mais inadequado buscarem sua producao escrita material que desse suporte ex-

plicito a qualquer tipo de pratica pedagogica.

Essa questao nos remete a urn problema central na area

da educacao: a relacao entre propostas te6ricas e pratica

pedagogica, A educacao e uma area interdisciplinar e apli-

cada, que se alimenta de forrnulacoes te6ricas origin a-

rias de varias disciplinas e que se constr6i no plano da

pratica. Entretanto, a tentativa de escolher uma so teo-

ria como unica referencia para a cornpreensao do feno-

me no educativo (e como iinica proposta que levaria a so-Iucao dos problemas concretos) e uma conduta bastante

comum na area da educacao no Brasil.

e a desconsideracao de outras abordagens que poderiam

ser igualmente enriquecedoras. Pode levar, tambern, a

uma utilizacao simplificadora de principios mal com-

preen didos e, ainda, ao abandono total da teoria em ques-

tao quando uma outra passar a ser consid.erada a melh~r

referencia. Provavelmente a conduta mars fecunda sena

o estudo de rnuitas perspectivas diferenres, no sentido

do aprimoramento teorico do profissional e , portanto, de

uma elaboracao mais refinada de sua pratica a luz das

diversas abordagens estudadas. Diferentes teorias podem,

certamente, trazer contribuicoes relevantes a compreen-sao do fenomeno educativo.

Vivernos, no presente mornento , justamente u~a es-

pecie de "crise teorica" , particularmente no que diz r~s-

peito a questoes relativas a psicologia da educacao: Pia-

get tern sido a referencia predominante nessa area e a c re s-

cente penetracao do pensamento de Vygotsky no ideario

pedagogico brasileiro parece trazer consigo a necessida-

de de uma escolha entre ele e Piaget. lsto e, parece ha-

ver uma tendencia ao confronto desses dois teoricos, no

sentido.de definir qual deles deve ser adotado como re-

ferencia basica em educacao.

A ideia da escolha da "rnelhor teoria" e particular-

mente questionavel no caso do confronto entre Piaget e

Vygotsky. Em primeiro lugar porque ambos nos legaram

uma producao vasta e densa, com inegaveis contribui-

~oes a area da educacao: ambos merecem, portanto, urn

estudo aprofundado e de longo prazo, que leve a uma

real cornpreensao de suas propostas teo ric as e nao a ado-~ao de alguns principios simplificados. Em segundo lu-

gar porque ha algumas afinidades essenciais entr~ as abor-

dagens desses dois pensadores, que tornanam leviana uma

oposicao radical entre eles.

Embora haja uma diferenca muito .marcan~e no pon-

to de partida que definiu 0 ernpreendimento intelectual

de Piaget e Vygotsky - 0 primeiro tentando. desvendar

as estruturas e mecanismos universais do funcionarnento

psicologico do hom em e 0 ultimo tomando 0 ser.h~ma-

no como essencialmente his t ori co e portanto sujerto as

especificidades de seu contexto cultural - hidivers?s as-pectos a respeito dos quais 0 pensamento desses dots au-

102103

 

tores e bastante semelhante. Ambos enfatizam a neces-

sidade de cornpreensao da genese dos processos que es-tao sendo estudados, levando em consideracao mecanis-

mos tanto filogeneticos como ontogeneticos. Ambos uti-

Em segundo lugar e fundamenta~ para a e~ucac;ao aideia de que os processos de aprendizado movimentam

os processos de desenvolvimento. 0 percurso do desen-volvimento humano se c ia "de fora para dentro", por

meio da inrernalizacao de processos inrerpsicologicos. A

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lizam uma metodologia qualitativa em seus estudos, bus-

cando captar mecanismos psicologicos em processo e nao

resultados estaticos expressos em medidas quantitativas.Tanto Piaget como Vygotsky sao interacionistas, postu-

lando a importancia da relacao entre individuo e ambiente

na construcao dos processos psicologicos; nas duas abor-

dagens, portanto, 0 individuo e ativo em seu proprio pro-

cesso de desenvolvimento: nem esta sujeito apenas a me-

canismos de rnaturacao, nem submetido passivamente aimposicoes do ambiente. Ambos, ainda, consideram queo aparecimento da capacidade de representacao simboli-

ca, evidenciado particularmente pela aquisicao da lingua-

gem, marca urn salto qualitativo no processo de desen-volvimento do ser humano.

Vemos, assim, que nao estamos diante da tarefa de

descartar uma entre duas teorias opostas. Nao se trata,tampouco, de agrupa-las como se fossem cornpletamen-te equivalentes: quando penetramos nas especificidades

de cada abordagem, revelam-se contribuicoes de nature-

za bastante distinta em cada uma delas. A questao e, co-

mo em qualquer caso de aprofundamento teorico, com-

preender 0 melhor possivel cada abordagem, para que

haja urn real aprimoramento da reflexao sobre 0 objeto

que esta sendo estudado.

Nesse sentido e interessante retomar, aqui, as ideias

de Vygotsky que tern particular relevancia para a areada

educacao, Em primeiro lugar sua postulacao de que 0de-

senvolvimento do individuo deve ser olhado de maneira

prospectiva, isto e, para alern do momento atual, com

referencia ao que esta por acontecer em sua trajetoria. Li-

gada a esta postulacao esta 0 conceito de zona de desen-volvimento proximal, que marca, como mais importan-

tes no percurso de desenvolvimento, exatamente aque-

les processosque jfestao presentes "em sernente" no in-

dividuo, mas ainda nao se consolidaram. Essaconcepcaoe central para a educacao, na medida em que imprime

claramente urna abordagem genetica ao estudo do fun-

cionamento psicologico, focalizando a atencao nos pro-cessosde desenvolvimento e na ernergencia daquilo que

e novo na trajetoria do indivfduo: a ideia de transforma-

< , : : 1 0 , tao essencial ao proprio conceito de educacao, ocu-

pa lugar de destaque nas colocacoes de Vygotsky.

escola, enquanto agencia social explicitamente encarre-

gada de promover 0 .aprendizado das crianc;~se jovens

das sociedades letradas, tern urn papel essencial na pro-

mocao do desenvolvimento psicologico dos individuos.

Finalmente, destaca-se nas postulacoes de Vygotsky aimportancia da atuacao dos outros membros do grupo

social na rnediacao entre a cultura e 0 individuo e na pro-

rnocao dos processos in terpsico logicos que serao posterior-

mente internalizados. A intervencao deliberada dos mem-

bros mais maduros da cultura no aprendizado das crian-

cas e essencial ao seu processo de desenvolv~ento. A in-

tervencao pedagogica do professor tern, pOlS,urn papelcentral na rrajetoria dos individuos que passam pela escola.

Devido a penetracao recente e rapida das idei~s de

Vygotsky em nosso meio educacional e a pe9u~na dlSPO-nibilidade de textos seus em publicacoes brasileiras, torna-

se particularmente importante 0 cuidado para que nao

haja urn consumo superficial de sua teoria. Os trabalhos

de Vygotsky que chegaram a nos ate 0present~ momen-to, sempre mediados por traducoes norte-amencanas dos

textos originais, devem ser tornados como ponto de par-

tida para urn acesso mais aprofundado a sua obra, a ser

realizado por meio de,textos de seus colaboradores e de

estudiosos de seu pensamento. Do mesmo modo, suas

ideias, inspiradoras, devem ser tomadas como ponto departida para reflexoes e elaboracoes teoricas que possamir alern de suas fecundas proposicoes.

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