· web viewna primeira história, que abre o filme, um piloto e músico frustrado reúne em uma...
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Carta Capital
Enfim fui assistir Relatos Selvagens, filme de Damián
Szifron que levou 3 milhões de espectadores aos
cinemas da Argentina e se tornou assunto de três em
cada três rodas de conversa por aqui. Tanto
estardalhaço leva os espectadores tardios, como eu, a
uma série de perguntas antes mesmo de entrar na
sessão. A primeira, e mais óbvia, é se o filme é mesmo
tudo isso. A segunda é o que une as seis histórias
paralelas da comédia-drama. A terceira é por que um
filme argentino tocou tanto em nós, brasileiros. As
perguntas, para minha surpresa, foram mais fáceis de
responder do que supunha.
Em primeiro lugar: sim, o filme é digno de todo
estardalhaço. E as razões estão relacionadas
justamente à segunda pergunta. É justamente o pano
de fundo das seis narrativas que amarra histórias tão
absurdas como verossímeis. Daí a identificação do
público brasileiro, argentino, norueguês ou americano.
Todos, de alguma forma, parecem se reconhecer nos
personagens de episódios só aparentemente
desconectados: a vítima do bullying que resolve se
vingar dos algozes, a filha a tentar vingança contra a
injustiça sofrida pelos pais, o motorista ofendido na
estrada, a vítima da indústria da multa de trânsito, o
garoto rico e superprotegido incapaz de lidar com os
próprios atos, os noivos em pé de guerra.
Esse pano de fundo é um mundo à beira do colapso e
da autodestruição. Nesse barril de pólvora, os
personagens estão sempre diante de
escolhas definitivas: desmontar a bomba ou mandar
tudo para os ares; engolir ou vomitar; oferecer a outra
face ou revidar. A escolha, de toda forma, é sempre do
indivíduo. Que, diante da escolha de outros indivíduos,
se distancia dos consensos e parte para a carnificina.
É como se, quando humilhados e sem espaço para
argumentar, não tivéssemos outra opção se não
explodir – em alguns casos do filme, literalmente. Não
se trata apenas de uma história sobre o triunfo da
barbárie sobre razão, mas da extensão da razão até as
últimas consequências. O que leva à explosão é o
confronto de riscos calculados em todos os detalhes, e
não impensados. Os indivíduos ali não são guiados por
instintos, e sim por uma ideia comum de mundo. Esse
mundo está em desordem e desapegado de qualquer
confiança ou arbitragem, seja das relações divinas,
familiares, políticas. Não há abrigo, portanto.
Em um dos episódios, o motorista de um carro de luxo,
fechado e protegido em um invólucro próprio, ofende,
na estrada, o motorista de uma caranga que não dava
espaço para a ultrapassagem. Não era qualquer
ofensa, mas uma ofensa dupla relacionada à raça e à
classe do outro. Não se sabe quem é ou o que pensa o
personagem sobre o mundo, mas sabe-se que sua fé
na própria máquina, o elemento que o diferencia dos
demais, é considerável. Esse mundo próprio de
velocidade própria, no entanto, não é inviolável, e isso
ele percebe apenas quando estoura um pneu. Como na
lenda do coelho e da tartaruga, ele é alcançado pelo
motorista da caranga enquanto tenta arrumar, sem jeito,
o veículo. O acerto de contas é inevitável – e também
simbólico. Aquela beira de rodovia é o estado natural
dos homens em estado bruto. Nenhum deles confia em
qualquer providência, nem da policia, nem da
seguradora, nem de qualquer santo. As diferenças
entre eles, portanto, são desafiadas sem qualquer
arbítrio, nem moral nem legal. Estão livres, portanto,
para matar ou morrer. É quando o diretor parece dizer:
a falta de acordos nos transforma em seres primitivos.
Não por acaso, o macaco do carro de luxo serve como
apetrecho de guerra, como os ossos usados como
armas no filme 2001: Uma Odisseia no Espaço.
Essa sensação de abandono diante de um mundo
inóspito está presente nos seis episódios. Neles, os
indivíduos são os únicos capazes de escrever, aos
pontapés, os desfechos de suas histórias. Não se trata
apenas de um mundo em desencanto. A descrença não
é apenas com o divino, mas com o humano, e com as
instituições humanas criadas para evitar nosso
extermínio. Essas instituições ou são ineficazes, caso
da polícia inexistente na estrada, ou são injustas, caso
do despótico serviço de guincho, ou são corruptas, caso
dos investigadores de um atropelamento em Buenos
Aires.
Mas o que detonou essa descrença para instalar a
desordem? No filme, a resposta é confusa. Parte da
explicação está desenhada em um certo cinismo
comum a todos os personagens: eles surfam ou
reagem à ideia de que tudo na vida pode ser comprado.
A vítima do buylling pode, assim, pagar pelo destino
dos algozes. O agiota pode comprar a ruína de uma
família. O motorista falastrão pode comprar a estrada, e
não apenas o automóvel. A prefeitura robotizada pode
lucrar desumanizando o contribuinte (que só tem a
opção de pagar para não ser multado). Os pais podem
comprar a liberdade dos filhos criminosos. E os noivos
podem comprar não apenas uma festa de casamento,
mas uma projeção de felicidade.
Ao menos no filme, a privatização da vida tem um efeito
perverso: cria indivíduos de primeira e segunda
categorias. A forma como reagem a isso é o que os
diferenciam. Os primeiros, por ironia, são mimados e
superprotegidos. Tanto no episódio do casamento
quanto do atropelamento, a primeira reação diante do
fiasco é correr, aos prantos, para os ombros dos pais.
Mas os pais também estão atordoados. Não sabem o
que fazer diante de um mundo caótico, injusto, perverso
e opressivo. Sabem apenas abrir a carteira. Por sua
vez, os cidadãos rebaixados, também incrédulos diante
das justiças humanas e divinas, partem para o
justiçamento. São heróis, para uns, e terroristas, para
outros. Mas não parecem imunes a um destino comum:
a incapacidade de evitar que as tragédias humanas se
transformem em hecatombes humanitárias.
Nesse sentido, a carnificina de um casamento parece a
alegoria perfeita de toda a tragicomédia: para encontrar
a essência é preciso se desfazer de todas as cortinas e
artifícios. Essa essência, aflorada sobre os escombros
de uma passionalidade comprada para apreciação dos
convivas, tem a roupa rasgada, a testa estourada e os
pés cortados de vidro. O nome dela é compaixão.registrado em: relatos selvagens Damián Szifron
http://www.passapalavra.info/2015/05/104280
Relatos selvagens lights17 de maio de 2015 Por Pablo PoleseCategoria: Cultura
Comentar | ImprimirO filme conseguiu a proeza de fazer a crítica à barbárie cotidiana de um modo que escapa às teorias sociais e às práticas políticas mais quadradas: fazendo rir. Comentando a Guerra franco-prussiana e a Comuna de Paris, Marx descreveu, visivelmente consternado, que dois comunardos parisienses já rendidos e de mãos levantadas haviam sido alvejados por soldados versalheses. Isso “é a barbárie!”, ponderou em 1871.
Numa reportagem nordestina em bar de uma periferia o jornalista narra indignado, ao vivo, que há mais de meia hora o homem ao chão está agonizando, vítima de um tiro, e nem a ambulância nem a polícia chegou ainda para socorrê-lo. Nisso um dos clientes do bar sai do balcão, tira uma arma da cintura e atira na cabeça do rapaz ao chão, “terminando o serviço”. O repórter perde a fala e corre, em choque.Século 21. Beijo entre duas mulheres, transmitido em rede nacional, causa revolta.Rio de Janeiro, alguma favela “pacificada” pelas UPPs. Uma criança de 10 anos atirada ao chão, com a cabeça aberta por um tiro de fuzil, e uma quantidade imensa de sangue. Moradores, e provavelmente familiares da criança, gritam e gritam e gritam num tom que só se reconhece ser de um ser humano porque vem entremeado de “covardes!” “assassinos!”.São Paulo, nove da noite. Um grupo de 8 amigos na faixa dos 30 anos se reúne, dessa vez mais tarde que de costume porque o trânsito estava “ainda pior” em decorrência do fechamento de algumas vias da capital por policiais. “Não sei se era manifestação, ouvi um cara falando que a polícia matou 3 moleques lá na quebrada, acho que zona sul, sul mesmo, e aí o povo se revoltou e ateou fogo em um ônibus”. “Lester, você como vampiro no quarto grau evolutivo devia saber que tem uma responsabilidade inescapável de chegar pontualmente aos encontros do clã, sob pena de ter retardada sua evolução, como consequência da perda de respeito entre os vampiros e metamorfos principiantes”. “Ah, achei que não tinha começado ainda. Perdoa-me óh, vampiro original, rogo-lhe que me dê outra chance de mostrar meu valor”.Uma jovem passeia pelas ruas quando dois rapazes a abordam, perguntando se ela é prostituta. Diante da recusa, respondem que se não é prostituta então não vai cobrar. Então a levam para um canto e a violentam. Um grupo de pessoas passa perto e percebe o que está havendo, mas optam por não se intrometer para não acabar “sobrando pra eles”. Depois a jovem toma um táxi e corre até uma delegacia. O motorista cobra a corrida, mesmo depois de ela contar o ocorrido, meio fora de si. Na delegacia o policial, depois de tê-la olhado de cima abaixo e ouvido a denúncia, diz com a boca de lado “mas também, né, com essa roupa”.
Alemanha, 1945. Mais de 2 milhões de mulheres alemãs de 8 a 80 anos são estupradas pelos exércitos aliados logo após a vitória contra o exército nazista. É “espólio de guerra”, justificavam.O horror.O horror.
E que fazer com tanto horror? Fingir que a barbárie não existe muitas vezes não dá, pois ela se escancara qual pedra no sapato, nos semáforos e horas de trânsito e vida desperdiçada, nas cidades onde vivemos, que não funcionam, mas onde seguimos vivendo ou tentando viver, mesmo sabendo que o grau de “comunidade” é tal que, quando estamos fora de casa, sabemos que é quase impossível usar um banheiro sem ter que pagar, por exemplo. Na selva social onde vivemos os locais de trabalho são locais de rituais de sacrifício, onde nos esfoliamos das 6 às 18h30 com um sorriso no rosto que sequer nos incomoda. Não bastasse a hostilidade das ruas e do trabalho, até dentro de nossas casas, ela, a barbárie, mostra suas garras, quando nos maltratamos entre aqueles que mais queremos bem. Essa selvageria tipicamente humana se tornou pra nós algo cotidiano, que só não percebe quem prefere as fantasias ou quem já nasceu tão imerso nela que sequer tem um referencial utópico de outro mundo possível. Tem razão o Marildo Menegat quando diz que “no capitalismo da atualidade da barbárie, marcado pelas ruínas das derrotas das revoluções, a exclusão de milhões de seres humanos da esfera do mundo social cria formas de sociabilidade em decomposição, como o desemprego estrutural e a criminalidade, por exemplo, que, definitivamente, não podem ser vistos como uma anomia”. E mais à
frente: “desse homem sobrevivido, assujeitado em torno dos tormentos do aumento vertiginoso do poder das mercadorias sobre sua livre escolha, temos ao final um ser adaptado às formas germinais da barbárie”.Vejam só, um ser adaptado, acomodado ao horror. Se o horror já é algo por si mesmo medonho, estar adaptado a ele é algo como o inferno. Se antes da barbárie se espraiar por tudo lutávamos por um mundo de igualdade e liberdade, hoje parece que junto com a noção de progresso a pauta das lutas recuou a ponto de termos que lutar por um mundo menos selvagem, um mundo onde alguns dos relatos acima sejam puramente histórias de ficção voltadas para aqueles que curtem o terror e o suspense como gêneros literários. Mas enquanto ela for real, enquanto essa barbárie se impor ferreamente, ignorá-la não será uma opção. Como lidar com ela, então, principalmente se sabemos que as causas são sociais e de âmbito macroestrutural? Enquanto os lutadores sociais se digladiam em lutas fratricidas em torno de quem dirige a luta e até mesmo de quem pode ou não lutar contra alguma dessas inúmeras barbaridades contra as quais tentamos nos rebelar coletivamente, a arte parece nos oferecer alguma resposta de tipo distinto. Ópios, édens e analgésicos? Um sopro de oxigênio, enquanto temos nos afogado? E por que não? Não é porque o mundo está desmoronando que estamos impedidos de ter algum prazer aqui e ali, nas brechas que encontramos para a aliviar a pressão de ter tanto a fazer. O contrário seria confundir nossa tarefa histórica de reagir à podridão com algum tipo de moralismo cristão que nos impede de fazer (ou tentar) isso da melhor forma possível. Além disso, a selvageria retratada comicamente
em Relatos Selvagens é uma selvageria light se comparada ao patamar avançado de barbárie em que nos encontramos. Embora todos nós nos reconheçamos nas histórias do filme, a selvageria ali retratada é mais comum ao sujeito de classe média, e até por isso foi possível narrar os relatos selvagens de modo cômico, e de um cômico que funcionou. Muito se tem falado sobre as exportações brasileiras, não as de minério de ferro e soja, mas as exportações de formas de gestão da barbárie em que o Brasil aparece como modelo “que deu certo” a ser seguido, como por exemplo as técnicas de militarização da vida cotidiana a la UPPs, ou mesmo as técnicas de ampla participação social das massas em mecanismos de responsabilidade social e “mobilização total” onde a classe atua e participa e decide o tempo todo, questões que sempre levam ao aprofundamento de sua dependência e atrelamento ao capital e ao governo. Me parece, então, que o Brasil, que era o país do futuro, hoje se tornou o país do presente que mostra como será o futuro daqueles países que até ontem eram o “avançado” que nos olhava como o “subdesenvolvido”. Com a inversão histórica das lentes e a reconfiguração das noções de “típico” podemos hoje, ou alguns podem, se gabar de sermos os detentores e desenvolvedores originais de uma tecnologia de ponta em matéria de gestão da crise do capital, e por isso, talvez, os relatos selvagens da Argentina – que mesmo depois de 2001 deve ainda guardar em seu DNA algo daquilo que um dia levou alguns a considerarem-na a “Europa da América do sul”, soem a alguns como narrativas de uma selvageria que não é lá tão selvagem assim, uma
selvageria light, brincadeira de criança se comparada ao modelo high techque substituiu Macunaíma por Capitão Nascimento.Desde Aristóteles que se divide comédia e tragédia, no entanto, sem que uma e outra deixem de ter algum substrato comum. O recente filme de Damián Szifron uniu os dois gêneros com bastante competência. Não sei se o termo “tragicomédia” se aplicaria bem aqui: são relatos de tragédias, mas contadas em forma de comédia. Uma separação entre forma e conteúdo, talvez, mas com a forma enriquecendo o conteúdo, ao expressá-lo pelo avesso e de forma subversiva. Do ponto de vista técnico não é um grande filme. Tem excelentes atuações e o dedo de Almodóvar, mas cinematograficamente é um filme bastante hollywoodiano, ou seja, feito para vender e dar lucros aos investidores e, por isso, receoso e hostil a inovações e experimentalismos que possam “dar errado” e pôr a perder os lucros. Relatos Selvagens paga seu tributo à padronização tecno-estilística hollywoodiana, mas ainda assim, ah, a vitória da arte! o filme conseguiu a proeza de fazer a crítica à barbárie cotidiana de um modo que escapa às teorias sociais e às práticas políticas mais quadradas: fazendo rir. Trata-se disso, um filme trágico, crítico e cômico, tudo junto e misturado em narrativas dinâmicas, de tirar o fôlego. Poder-se-ia dizer que se trata de uma crítica sociológica levada a cabo no plano da arte cinematográfica, mas isso seria tão tedioso que não serei eu a dizê-lo, ainda mais depois de ter despertado a antipatia do leitor ao narrar aquelas histórias horríveis no começo dessa resenha.
Mais que um mero filme de comédia, Relatos Selvagens é, portanto, um filme crítico. Seu
meio de crítica tem charme: com uma boa dose de humor negro, o filme faz piadas mordazessutilestravagantementedemolidoras de algumas das opressões e das consequências nefastas de vivermos num mundo dominado pela burocratização da vida. E é justamente esse excesso de burocracia e barbárie cotidiana que torna o filme tão atraente e bem-vindo, afinal não é todo dia que podemos perceber e dar boas risadas das nossas idiossincrasias mais estúpidas. Também não é todo dia que os anacronismos e falências mais destrutivas que nossa “civilização” insiste em não enterrar, como por exemplo o casamento, o ego mesquinho (pleonasmo?) e o dinheiro como solução de todos os problemas são alvo de críticas feitas na forma prazerosa do filme de comédia (nos últimos tempos esse gênero quase se tornou sinônimo de besteirol…).Entre um riso e outro, no entanto, é preciso que sejamos realistas. Existem limites no que toca à selvageria passível de ser narrada como comédia, sem que se recaia na banalização da barbárie e todas as formas de fascismo que tanto insistem em se entranhar na nossa vida. Infelizmente temos no Brasil, mas na Argentina também e noutros cantos também, exemplos de sobra de relatos bárbaros que fariam o velho Marx, horrorizado com uma execução feita em contexto de guerra, ter um infarto fulminante. Convenhamos: seria preciso muita habilidade cinematográfica para tirar gargalhadas de alguns dos relatos do começo dessa resenha. Não há subversão da forma que consiga reverter o sentido trágico de alguns relatos selvagens. Quando uma criança síria ergue as mãos em sinal de rendição ao confundir uma câmera fotográfica com uma arma, podemos até irrefletidamente ver nisso algo de cômico, mas não havemos de nos enganar: é sinal de que algo de muito errado está rolando por aí, todos os dias, e que talvez não baste a boa vontade de rir de nós mesmos, não é? Mas que ótimo que existe gente genial que consegue, nalguns casos (e já é muito), arrancar flores de montes de lixo, e fazer rir bem ali onde o trágico se instaurou. Ah, esses Robertos Benignis a nos tirar sorrisos salgados…No trato artístico da selvageria light relatada pelo avesso, o filme pode não oferecer uma grande resposta ou saída para além de vagas esperanças românticas e inusitadas ao estilo “faça algo, tente diferente, já está tudo ferrado mesmo!”, mas só de fazer uma crítica bem humorada
da condição humana no patamar histórico já vale o esforço e as duas horas em frente à tela. Além disso, como reclamar da falta ou da qualidade das “saídas positivas” apontadas pelo filme depois que aquele diretor grego filmou “Miss Violence”, o filme das portas trancadas?
http://psicologiadospsicologos.blogspot.com.br/2015/05/relatos-selvagens-e-animalidade-humana.html
NA SELVA DA HUMANIDADE.
Francamente, frustra-me profundamente a ideia de ter
que iniciar este texto produzindo uma abordagem
temática sobre Relatos Selvagens, relatando – perdão
pelo semi-trocadilho – sua estrutura narrativa dividida
em segmentos e a abordagem temática de cada um
deles, aproximando o leitor um pouco mais desta
retomada de experiência. Frustração esta causada não
por aquela sensação de uma obrigação editorial que me
reaproximaria de uma experiência desagradável, não;
ao contrário, na verdade é alimentada por um profundo
sentimento de entusiasmo e inspiração artística e
emocional provocado pela obra, o que me faz não
querer dissertá-la como uma produção em suas
vertentes, erros e acertos do desenvolvimento artístico
e técnico, mas de forma que revele-a como a
experiência emocional, sensitiva e provocadora que ela
é. Creio ter alcançado meu objetivo inicial.
Primeiramente, é fundamental observar que dificilmente
encontraremos um ser humano que não identifique-se
com o retratado por Relatos Selvagens em ao menos
uma – embora seja aplicável a todas – de suas tramas
– e caso conheça um, eu recomendaria que se
afastasse do mesmo. Situações enervantes são uma
parte inerente ao cotidiano de todo cidadão – e nossas
reações perante a estas, com base em nossas
experiências vividas, são aquilo que nos moldará. Mas
a narrativa vai além, e proporciona ainda maior
identificação por utilizar-se daquilo que está ainda mais
inerente à vivência humana do que as próprias
situações cotidianas: os anseios não alcançados.
Diante das tais situações, parte deles são colocados em
prova. A cada situação adversa enfrentada, somos
capazes de imediatamente imaginar uma série de
possíveis reações a esta – posteriormente, é provável
que executemos a mais cautelosa, e possivelmente
menos impactante.
Os seis segmentos formadores da fita pautam-se em
torno desta temática – quatro destes seguem uma linha
mais descontraída, os outros dois abordam-na de
maneira mais densa -, povoando cada um deles com
personagens comuns a quem cabe a realização destes
anseios – torna-se real aquilo que é normalmente
apenas imaginado. Diretor e roteirista da produção,
Damián Szifrón trabalha-a com um admirável senso de
unidade narrativa. Todas as personagens do longa são
absolutamente humanas, cujas decisões – embora
exageradas, para gerar o humor da trama – são
pautadas em situações de causa e consequência, atos
de nervosismo compreensíveis, por mais chocante que
seja concluir isto. O texto possui o cuidado de manter
uma sagaz ambiguidade ideológica – enquanto
corrobora com o princípio humano de Rousseau, ao
levar suas personagens a agirem violentamente como
consequência da influência do meio, também constrói-
as com um instinto selvagem em sua essência e que,
nestas situações, apenas externa-se -, embora
explorando-a para diferentes ambições narrativas.
Szifrón prova-se um realizador ainda mais coerente
quando notamos suas ambições narrativas trabalhando
a favor de mensagens ideológicas, tornando-a um
trabalho artístico em seu poder integral. Enquanto uma
obra reveladora da selvageria humana de maneira
perspicaz e corajosa, revela-se, paralelamente,
contestadora de muito daquilo que foi criado por esta
como espécie. Desde o terceiro segmento, a
observação de um comentário sutil a respeito da luta de
classes, colocando em prova nosso próprio sub-
julgamento entre dois indivíduos de condições
econômicas extremas; no segmento que o sucede,
surge um posicionamento mais evidente sobre a
opressão cotidianamente imposta pelo Estado sobre
cada cidadão – o personagem de Darín observa-se
obrigado a agir violentamente após uma série de
episódios nos quais vive injustiças mas não pode reagir
a estas, uma vez que está aprisionado aos dogmas
legais. Nos dois segmentos finais, é possível notar uma
contestação extremamente ácida às instituições
familiares – o pai protege o filho acima de tudo, mas
apenas por manter a imagem de sua família;
posteriormente, ele despe-se de qualquer intenção de
proteger seu herdeiro ao priorizar suas posses
materiais -, geridas inicialmente pela instituição
matrimonial – o episódio final, então, prova-se
inteligentíssimo neste sentido: desde as sequências
iniciais do casamento, a fita narra o evento com
extremo cinismo, denunciando como aquelas
cerimônias são, no fundo, todas uma celebração à
imagem e às relações de falso amor familiar, e depois,
a cerimônia acaba findando num ato explosivo de
honestidade que coloca em prova todo aquele
experimento sentimental.
Ainda mais importante é notar como o longa transmite
todas estas mensagens jamais deixando a atenção do
espectador perder-se – as explosões instintivas, a
sagacidade do olhar sobre os atos; tudo isto
proporciona ao público um misto de tensão e
comicidade que torna a sessão uma das melhores
experiências de entretenimento do ano. Acima dos
objetivos ideológicos da produção, reside um
experimento narrativo de notável qualidade: Relatos Selvagens despe-se do conceito de heróis e vilões,
ganhador e perdedor, colocando suas personagens
numa constante inversão de lideranças onde jamais
somos capazes de prever quem sairá por cima – os
embates entre os motoristas e entre os recém-casados
são provas finas disto -, por mais que, entre estas
situações, possam surgir determinados momentos de
conveniência ou certa previsibilidade, porém jamais
atrapalhando aquela provocação que recebemos com
prazer.
Afinal de contas, Relatos Selvagens é o cotidiano
numa constante catarse.
Relatos se lvagens” e a an imal idade humana
O filme argentino Relatos selvagens – que concorreu ao Oscar 2015 de melhor filme estrangeiro - é composto por seis histórias independentes que tem em comum a temática do descontrole (e pare de ler aqui caso não queira saber pormenores da trama). Na primeira história, que abre o filme, um piloto e músico frustrado reúne em uma avião todas as pessoas que em algum momento o magoaram ou o rejeitaram com o objetivo de derrubá-lo com todos dentro - e em cima da casa de seus pais!. Assim tem início o filme, que durante os créditos iniciais exibe uma série de fotos de animais, sinalizando – o que será confirmado no restante do filme – que nós também somos animais. E é sobre esta animalidade, que por vezes faz com que nos comportemos de forma exagerada ou descontrolada, de que tratam as histórias que se seguem.
A segunda história expõe o caso de uma garçonete que atende no meio da noite o homem responsável pelo declínio de sua família e pelo suicídio de seu pai. Já a terceira história, hilária, narra uma série de incidentes que acontece quando o pneu do carro de um homem fura em uma estrada deserta. A quarta, que é protagonizada pelo ator-ícone do cinema argentino Ricardo Dárin, conta a triste história de um perito em demolições que tem sua vida “demolida” após seu carro ser guinchado injustamente enquanto buscava o bolo de aniversário da filha - o que leva o personagem a uma série de situações que fogem totalmente ao seu controle. Há ainda a história de uma família cujo filho atropela e mata uma mulher grávida. Finalmente, a última história – a melhor e mais bizarra – retrata uma festa de casamento que dá absurdamente errado após a noiva descobrir que seu futuro marido a traiu com uma das convidadas. O que acontece a partir desta descoberta é surreal – e hilário.
Em todas estas histórias, as pessoas se comportam em algum momento de forma irracional, impulsiva, fazendo escolhas que não fariam racionalmente. Isto só evidencia algo óbvio para mim: nós seres humanos não somos seres racionais, ou melhor, não somos seres puramente racionais. Nossas escolhas são feitas sempre – ou quase sempre – num caldo de razão e emoção no qual não é possível distinguir onde começa uma e termina a outra. Somos seres emocionais que fazemos escolhas baseando-nos não somente em um cálculo frio de prós e contras, mas também em paixões, afetos, desejos e impulsos. Como bem apontou o economista Eduardo Giannetti da Fonseca no excelente livro “O valor do amanhã” vivemos num permanente oscilar entre aproveitarmos o momento e fazermos o que desejamos agora e planejarmos o futuro, abrindo mão, no presente, de algumas atitudes.
Às vezes cedemos às tentações do presente e fazemos aquilo que desejamos mesmo que isto traga ou possa trazer conseqüências no futuro; e em outras vezes conseguimos nos controlar, reprimindo aquele lado animal que insiste em se manifestar. Sem este lado repressor, que Freud chamou de Supereu, a vida em sociedade não seria possível. Se déssemos vazão todo o tempo os nossos desejos sexuais e impulsos agressivos – com o fazem muitos personagens de Relatos selvagens – a vida em comum seria impossível. Por outro lado, se nunca manifestarmos ou “colocarmos para fora” – ou ainda sublimarmos, como diz Freud – a vida em comum também se torna difícil. Um “barraco”, de vez em quando, não faz mal a ninguém. O descontrole, se moderado, pode até fazer bem.
Outra questão é se de fato controlamos a nossa vida e os nossos comportamentos. Psicanalistas provavelmente diriam que não, ou pelo menos não totalmente. Afinal, se grande parte da vida psíquica se dá abaixo do limiar da consciência, não faz sentido falar propriamente em controle. Da mesma forma, mas por motivos diferentes, behavioristas provavelmente diriam que o controle que temos de nossos comportamentos e de nossas vidas é limitado. Alguns neurocientistas contemporâneos, inclinados ao reducionismo, iriam além e negariam completamente nosso livre-arbítrio, argumentando que quem está no controle, efetivamente, é o nosso cérebro – e não nós (mas se, como alguns argumentam, “nós somos o nosso cérebro” então isso quer dizer que nós estamos no comando?). De toda forma, acho bastante pertinente a idéia de que não temos total controle de nossas ações - veja bem, eu disse total, porque algum grau
de controle nós certamente temos, especialmente quando dizemos não à algo que desejamos. De toda forma, tenho certeza que todos já tomaram atitudes que se arrependeram depois. Só espero que o nível de descontrole não tenha chegado – e não chegue no futuro – ao nível de alguns dos casos expostos no filme Relatos Selvagens.