whitehead, alfred north. a ciência e o mundo moderno

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Page 1: Whitehead, alfred north. a ciência e o mundo moderno
Page 2: Whitehead, alfred north. a ciência e o mundo moderno

Coleção PHILOSOPHICA coordenada por RACHEl GAZOLLA

. A ciência e o mundo moderno, Alfred North Whitehead

• Introdução à f1losofia antiga: Premissas fifo/6gjcas e outras "ferramentas de trabalho", Livi o Rossetti

• A busca do conhecimento: Ensaios de filosofia medieval no Islã, Rosalie Helena S. Pereira (erg.)

ALfRED NORTH WHITEHEAD

A CIÊNCIA

EO

MUNDO MODERNO

~ PAULUS

Page 3: Whitehead, alfred north. a ciência e o mundo moderno

05-9274

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (O) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Whitehead, Alfred North, 1861-1947 A ciência e o mundo moderno I Alfred North

Whitehead ; [tradução Hermann Herbert Watzlawick}. São Paulo: Paulus, 2006. - (Coleção philosophica)

Titulo original: Science and the Modem World. Bibliografia.

ISBN 85-349-2451·1

1. Ciência - Filosofia - História 2. Ciência e civilização 3. Cosmologia 4. Estética 5. Ética

6. Religião I. título. 11. Série.

fndices para catálogo sistemático: 1. Ciência: Filosofia: História 501

Título original Science and the Modern World

CDD-501

© The Syndicate ofthe Press ofthe University ofCambridge, 1953

Direção editorial Paulo Bazaglia

Tradução Hermann Herbert Watzlawick

Editoração PAULU5

Impressão e acabamento PAULUS

o PAULUS - 2006 Rua Francisco Cruz, 229·04117-091 • São Paulo (Brasil)

Fax (11) 5579-3627· Te1. (11) 5084-3066 [email protected]

ISBN 85-349-2451-1

A meus colegas,

de outrora e de hoje, cuja amizade é inspiração

1

Page 4: Whitehead, alfred north. a ciência e o mundo moderno

) SUMÁRIO

-9 Prefacio

Capitulo I

J3 As origens da ciência moderna

Capitulo II

35 A matemática como um elemento na história

do pensamento

Capitulo 1II 57 O século do gênio

Capitulo N 77 O século XVlII

Capitulo V

99 A reação romântica

Capitulo VI

123 O século XIX

Capitulo VII

145 A relatividade

Capitulo VlII

163 A teoria do quantum

Capitulo IX

173 Ciência e filosofia

171

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195

215

223

I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

Capítulo X A abstração

Capítulo XI

Deus

Capítulo XII Religião e ciência

Capítulo XIII

237 Requisitos para o progresso social

257 Índice remissivo

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PREFÁCIO

,'.

O presente livro contém um estudo acerca de alguns as­

pectos da cultura ocidental ao longo dos últimos três séculos, à

medida que foi influenciada pelo desenvolvimento da ciência. Este estudo guiou-se pela convicção de que a mentalidade de uma época nasce da visão de mundo que, de fato, predomina nos setores instruídos das comunidades em questão. Há, pro­

vavelmente, mais que um esquema, de acordo com as divisões

culturais. Os diversos campos do interesse humano que suge­

rem cosmologias, e que também são influenciados por elas, são

a ciência, a estética, a ética e a religião. Em todas as épocas, cada

um desses assuntos evoca uma visão de mundo. Uma vez que

o mesmo grupo de pessoas é influenciado por todos esses inte­

resses, ou por mais do que um deles, seu ponto de vista efetivo

será o produto total dessas fontes. Cada época, porém, tem sua preocupação principal; durante os três séculos em questão, a cosmologia derivada da ciência tem-se auto-afirmado à custa

de antigos pontos de vista cuja origem encontra-se alhures. O

ser humano pode ser provinciano tanto no tempo corno no espaço. Podemos perguntar-nos se a mentalidade científica do

mundo moderno no passado recente não é um exemplo bem­

sucedido dessa limitação provinciana. A filosofia, em uma de suas funções, é a critica das cos­

mologias. É sua função harmonizar, remodelar e justificar in­tuições divergentes em relação à natureza das coisas. Deve insistir tanto na análise minuciosa das últimas idéias como

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1 1

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

na retenção de todas as evidências que modelam nosso es­quema cosmológico. Seu trabalho é tornar explicito e - Tia medida do possível - eficiente um processo que, de outn. maneira, seria realizado inconscientemente, sem testes r2-

cionais. Tendo isso em mente, evitei a introdução de uma série de

detalhes obscuros sobre avanços científicos. O que se espera, e

nisso me empenhei em seguida, é um simpático estudo de idéias

importantes vistas a partir de dentro. Se minha visão da função da filosofia está correta, ela é a mais eficaz de todos os esforços intelectuais. Constrói catedrais antes que o operário mova uma

pedra, e as destrói antes que os elementos (terra, ar, água e fogo) desgastem os arcos delas. É o arquiteto das construções do espírito, e é também o destruidor delas: o espiritual precede ao material. A @osofia trabalha devagar. Os pensamentos ficam

dormentes por períodos; e, então, quase repentinamente, a hu­manidade percebe que eles, os pensamentos, incorporaram-se em instituições.

Este livro consiste primordialmente em um conjunto de oito conferências em Lowell proferidas em fevereiro de 1925. Essas conferências - com alguns poucos acréscimos e a sub­divisão de uma conferência entre os capítulos VII e VIII - es­tão aquí publicadas conforme proferidas. Alguns conteúdos

adicionais, porém, foram acrescentados, a fim de completar o pensamento do livro em uma seqüência que não pode ser in­cluída no andamento daquelas conferências. Desse novo as­

sunto, o capítulo II - "A matemática como um elemento na

história do pensamento" - foi proferido como conferência diantê ·dá Sociedade Matemática da Universidade de Brown,

Providence (Rhode Island, USA); e o capitulo XII - "Reli­gião e ciência" - foi um comunicado proferido na Phillips Brooks House em Harvard, e será publicado no número de agosto da Atlantic Monthly deste ano (1925). Os capítulos X e XI - "Abstração" e "Deus" - são adições que agora aparecem pela primeira vez. Contudo, o livro descreve uma seqüência de

I 10 I

I A CIt;NClA E O MUNDO MODERNO I

pensamento, e a utilização anterior de parte de seu conteúdo é algo secundário.

Não houve ocasião no texto de fazer uma referência par­ticular às obras Emergent Evolution, de Lloyd Morgan, eSpace,

Time and Deity, de Alexander . Ficará claro para os leitores que as considerei muito sugestivas. Estou em débito especialmente com o formidável trabalho de Alexander. O grande objetive

do presente livro torna impossivel agradecer com detalhe às •

diversas fontes tanto de informação como de idéia. O livro é produto de antigas meditações e leituras que foram empreendi­

das sem nenhuma previsão de utilização para o atual propósito. Desse modo, agora talvez seja impossível para mim fornecer as referências detalhadas de minhas fontes, mesmo quando seria desejável fazê-lo. Contudo, não há necessidade: os fatos sobre os quais me baseio são simples e bem conhecidos. Quanto à fi­losofia, qualquer consideração de epistemologia foi inteiramen­te excluída. Seria impossível discutir esse assunto sem arruinar toda a estabilidade do trabalho. A chave do livro é a percepção da importância avassaladora de uma filosofia prevalente.

Meu mais sincero agradecimento a meu colega Sr. Rapha­el Demos, pela leitura das provas e pelas sugestões que melho­raram muito a expressividade do texto.

UNIVERSIDADE DE HARVARD 29 de junho de 1925

I 11 I

1

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I CAPrTU LO I I

As ORIGENS DA CIÊNCIA MODERNA '0

O progresso da civilização não é de todo uma tendên­cia uniforme rumo a coisas melhores. Pode talvez ser essa a impressão se o mapeamos com uma escala que seja suficien­

temente grande. Contudo, certas visões gerais obscurecem os

detalhes sobre os quais se assenta todo o nosso processo de entendimento. Épocas novas emergem com relativa rapidez se

considerarmos os milhares de anos ao longo dos quais a história toda se estende. Povos separados tomam de repente seus luga­res na torrente principal dos eventos; descobertas tecnológicas

transformam o mecanismo da vida humana; uma arte primitiva

rapidamente desabrocha em completa satisfação de algum de­sejo estético; grandes religiões, em sua jovem cruzada, expan­

dem pelas nações a paz do céu e a espada do Senhor. O século XVI de nossa era assistiu à ruptura do cristianis­

mo ocidental e à ascensão da ciência moderna. Foi um período

agitado. Nada se achava estabelecido, entretanto muito se des­cortinava - novos mundos e novas idéias. Na ciência, Copérni­

co e Vesálio podem ser escolhidos como figuras representativas: tipificam a nova cosmologia e a ênfase científica na observação

direta. Giordano Bruno foi o mártir; embora tenha padecido por causa não da ciência e sim da livre especulação imaginati­

va. Sua morte no ano 1600 inaugura o primeiro século da ci­

ência moderna no sentido estrito do termo. Em sua execução

havia um simbolismo inconsciente, pois o tom subseqüente do

pensamento cientifico desconfiou do tipo de especulação geral

I 13 I

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

dele. A Reforma, em razão de toda a sua importância, pode ser considerada uma tarefa interna dos povos europeus. Também o cristianismo oriental viu-a com profunda indiferença. Contudo, tais rompimentos não são fenômenos novos na história do cris­tianismo ou de outras religiões. Quando projetamos essa grande revolução na história completa da Igreja cristã, não podemos considerá-la como uma introdução de um novo princípio na

vida humana. Para bem ou para mal, foi uma grande transfor­

mação religiosa; mas não foi o advento da religião. A Reforma

não reivindicou isso para si. Os reformadores afirmavam que estavam apenas restaurando o que havia sido esquecido.

Ocorre algo completamente diferente com relação à as­censão da ciência moderna. De todas as formas ela contrasta com o movimento religioso da época. A Reforma foi uma in­surreição popular e por um século e meio encheu a Europa de sangue. O início do movimento cientifico ficou reservado a uma minoria entre a elite intelectual. Em uma geração que viu a Guerra dos Trinta Anos e lembrou o Duque de Alba, * na Holanda, o que aconteceu de pior para os homens da ciência foi Galileu ter sofrido uma prisão decente e uma censura bran­da, antes de morrer serenamente em sua cama. A forma como

a perseguição de Galileu tem sido lembrada é um tributo ao começo tranqüilo da mais profunda mudança de perspectiva que o gênero humano já experimentou. Desde que uma crian­ça nasceu em uma manjedoura, pode-se duvidar se algo tão

grande aconteceu com tão pouca agitação. A tese que estes capítulos ilustrarão é a de que esse cres­

cimento tranqüilo da ciência praticamente deu nova cor à nos­

sa mentalidade, de modo que formas de pensamento que até então eram excepcionais são agora amplamente difundidas por

* Fernando Álvarez de Toledo, fidalgo espanhol (Piedrahita, 1508 - Lisboa, 1582). General espanhol conhecido por sua tirania e crueldade. Em 1567, o rei Filipe II tornou·o governante dos Países Baixos, que se haviam revoltado contra a Espanha. O tribunal do Duque de Alba condenou à morte milhares de pessoas e ficou conhecido como Conselho de Sangue. (N. T.)

1 141

I A CI~NClA E O MUNDO MODERNO I

todo o mundo instruído. Esse novo colorido da forma de pensar tinha ocorrido lentamente ao longo de muitas épocas entre os povos europeus. Por fim, terminou em um rápido desenvolvi­mento da ciência; e se tem, desse modo, fortalecido graças às suas mais óbvias aplicações. A nova mentalidade é mais impor­tante também que a nova ciência e a nova tecnologia. Ela mu­dou os pressupostos metafísicos e os conteúdos imaginativos de

nossa mente; como resultado, agora o antigo estímulo provoca'

uma nova resposta. Talvez minha metáfora de uma nova cor seja demasiado forte. O que pretendo é apenas aquela pequena

mudança de tom que, porém, faz toda a diferença. Isso é muito bem ilustrado por uma frase de uma carta publicada de autoria do gênio adorável que foi William James. Quando estava con­cluindo seu grande trabalho sobre os Princípios de psicologia, escreveu a seu irmão Henry James: "Tenho de forjar cada frase no molde dos fatos irredutiveis e inflexíveis".

Esse novo matiz das mentes modernas é um interesse ve­emente e apaixonado pela relação entre os princípios gerais e os fatos irredutíveis e inflexíveis. Por todo o mundo, em todos os tempos e lugares, tem havido homens práticos, absorvidos por "fatos irredutíveis e inflexíveis"; por todo o mundo, em to­dos os tempos e lugares, tem havido homens de temperamento filosófico que foram absorvidos na teia dos principios gerais. É

essa união entre interesse apaixonado pelos fatos particulares e igual dedicação à generalização abstrata que forma a novidade

de nossa atual sociedade. Primeiramente, apareceu de forma es­porádica e como por acaso. Esse equilíbrio do espírito tornou­

se agora parte da tradição que permeia o pensamento erudito. É o sal que dá gosto à vida. O principal trabalho das universi­

dades é transmitir, de geração para geração, essa tradição como

uma herança comum. Outro contraste que diferencia a ciência dos demais movi­

mentos europeus dos séculos XVI e XVII é sua universalidade. A ciência moderna nasceu na Europa, mas sua casa é o mundo inteiro. Nos últimos dois séculos houve um longo e confuso

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.~ 1

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

impacto dos hábitos ocidentais sobre a civilização da Ásia. Os sábios do Oriente ficaram, e estão, intrigados quanto ao que pode ser o segredo norteador da vida capaz de ser transmitido do Ocidente para o Oriente sem a destruição dissoluta de sua própria herança, a qual eles tão acertadamente apreciam. Cada vez mais se toma evidente que o que o Ocidente pode mais prontamente dar ao Oriente é sua ciência e sua perspectiva cientifica. Isso é transferível de nação para nação, e de povo para povo, onde quer que haja uma sociedade racional.

Ao longo destes capítulos, não discutirei os detalhes das descobertas cientificas. Meu tema é a ativação de um estado de espirito no mundo moderno, sua ampla generalização e seu impacto sobre outras forças espirituais. Há dois modos de ler a história: para a frente e para trás. Na história do pensamento, precisamos de ambos os métodos. Um ambiente de juízo -para uSar a feliz frase de um escritor do século XVII - requer para sua compreensão a consideração de seus antecedentes e das questões deles. Por isso, neste capítulo considerarei alguns dos antecedentes de como abordamos modernamente a inves­tigação da natureza.

Em primeiro lugar, não pode haver ciência sem que não haja uma ampla convicção instintiva da existência de uma "~ dem das coisas" e, particularmente, de uma "ordem da nature­za". Usei a palavra "instintiva" deliberadamente. Não importa o que os homens expressem em palavras, suas atividades são controladas por determinados instintos. Até isso ter ocorrido, palavras não são importantes. Essa observação é importante a respeito da história do pensamento cientifico. Pois percebere­mos que, desde o tempo de Hume, a filosofia da ciência em voga tem sido usada para negar a racionalidade da ciência. Essa conclusão é patente na filosofia de Hume. Tome-se, por exem­plo, a seguinte passagem da parte IV de sua obra Investigação sobre o entendimento humano:

I Em uma palavra: todo efeito é um evento diferente de sua

I causa. Portanto, não poderia ser descoberto na causa; e a ,

I 16 I

I A CI~NClA E O MUNDO MODERNO I

) primeira invenção ou concepção dele, a priori, é necessaria·

~I mente arbitrária.

Se a causa em si não revela informação quanto ao efei­to, de modo que a primeira descoberta dela deva ser "necessa­riamente" arbitrária, infere-se imediatamente que a ciência é impossível, exceto se entendida como conexões estabelecidas "inteiramente arbitrárias", que não são asseguradas por nada in-'

trínseco à natureza das causas ou dos efeitos. Algumas variantes da filosofia de Hume têm prevalecido entre homens da ciência. Contudo, a crença cientifica deparou com uma emergência e precisou t~itamente remover a montanha filosófica.

Em virtude dessa grande contradição no pensamento

cientifico, é de primeira ordem considerar os antecedentes de uma crença que é inacessível à busca de uma racionalidade consistente. Temos, portanto, de descobrir a origem da crença instintiva existente quanto à "ordem da natureza" e que pode ser descoberta em cada evento particular.-

Naturalmente, todos nós partilhamos dessa crença e, por conseguinte, acreditamos que a razão para ela é nossa apreensão de sua verdade. Contudo, a formação de uma idéia - tal como a idéia de "ordem da natureza" -, a percepção de sua importân­cia e a observação de sua concretização em diversos exemplos não são, de forma alguma, conseqüências da verdade da idéia em questão. Coisas triviais acontecem e a humanidade não se preocupa com elas. Dedicar-se à análise do óbvio requer um es­

pírito bastante inusitado. Por isso, quero estudar os estágios em que essa análise toma-se explícita e, por fim, irreversivelmente gravada nas mentes eruditas da Europa ocidental.

Obviamente, as principais recorrências da vida são muito insistentes para permitir a constatação de uma ra­cionalidade humana mínima; e mesmo antes do começo da racionalidade elas fixaram-se nos instintos dos animais. É desnecessário à abordagem do assunto o fato de que, em grandes linhas, certos estados gerais da natureza ocorrem pe-

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riodicamente e de que nOSSa verdadeira natureza adaptou-se a essas repetições.

Há, contudo, um fato complementar que é igualmente verdadeiro e óbvio: nada jamais toma a acontecer em seus mí­nimos detalhes. Nenhum dia é igual a outro, nem invernos o são. O que passou, passou para sempre. Portanto, a filosofia prá­tica da humanidade tem consistido em esperar as abundantes

recorrências e em aceitar os detalhes como emanação do âma­

go inescrutável das coisas além do campo visual da racionali­dade. O ser humano presume que o sol nascerá, mas o vento sopra onde quer.

/ Com certeza, a partir da civilização grega clássica houve homens, e naturalmente grupos de homens, que se colocaram além da aceitação de uma irracionalidade última. Esses homens esforçaram-se em explicar todos os fenômenos como o resul­tado de uma ordem das coisas que se estende a cada detalhe. Gênios como Aristóteles, Arquimedes ou Roger Bacon tiveram, com toda a certeza, uma mentalidade científica no mais alto grau; essa mentalidade sustentava instintivamente que todas as coisas, grandes ou pequenas, são concebíveis como exemplifica­

ções de princípios gerais que reinam em toda a ordem natural. Contudo, até o fim da Idade Média o público erudito em

geral não percebeu essa convicção profunda e esse interesse particular em tal idéia, de modo a conduzir uma incessante oferta de homens com habilidade e oportunidade adequadas

para sustentar uma busca coordenada da descoberta desses

princípios hipotéticos. As pessoas ou duvidavam da existência de tais princípios e da possibilidade de serem encontrados - ou

então não se preocupavam em refletir sobre eles -, ou estavam desatentas à sua importância prática quando os encontravam. Seja qual for a razão, a busca era lenta, se atentarmos às opor­tunidades de uma grande civilização e a duração do tempo em questão. Por que as coisas de repente se aceleraram durante os séculos XVI e XVIP No final da Idade Média uma nova men­talidade manifestou-se. A invenção estimulou o pensamento, o

I 18 I

I A CI~NCIA E O MUNDO MODERNO I

pensamento provocou a especulação física; manuscritos gregos revelaram aquilo que os antigos haviam descoberto. Por últi­mo, embora no ano de 1500 a Europa não conhecesse nada de Arquimedes, que morrera em 212 a.C, logo em seguida, em 1700, Newton escreveria os Principia, e o mundo começaria a

Era moderna. Existem grandes civilizações nas quais o equilíbrio p~­

culíar do espírito necessitou que a ciência aparecesse apenas de tempos em tempos, o que produziu resultados débeis. Por

exemplo, quanto mais conhecemos a arte, a literatura e a filoso­fia de vida chinesas, mais admiramos O nível que essa civilização alcançou. Por milhares de anos, houve na China homens argu­tos e instruídos que pacientemente dedicaram sua vida ao estu­do. Tendo em conta o arco de tempo e a população em questão,

a China constitui a maior civilização que o mundo já viu. Não há razões para duvidar da capacidade intrínseca de cada chinês

na busca por ciência, mesmo que a ciência chinesa seja pratica­mente negligenciada. Não há razão para acreditar que a China,

se abandonada a si mesma, não poderia jamais produzir pro­gresso científico algum. O mesmo pode ser afirmado a respeito da índia. Ademais, se os persas tivessem dominado os gregos, não haveria base segura para acreditar que a ciência nasceria na Europa. Os romanos não demonstram originalidade nesse sen­tido. De acordo com o que aconteceu, os gregos, não obstante

terem fundado o movimento, não o mantiveram com o interes­se concentrado que os europeus modernos demonstraram. Não

estou aludindo às últimas gerações de europeus nos dois lados

do oceano; refiro-me à Europa menor, do período da Refor­ma, perturbada como ela foi por guerras e disputas religiosas.

Consideremos o mundo do Mediterrâneo oríental, da Sicília até a Ásia ocidental, durante o período de cerca de IAOO anos, desde a morte de Arquimedes (em 212 a.C) até a invasão dos tártaros. Houve guerras em revoluções e grandes mudanças re­ligiosas; mas nada pior que as guerras dos séculos XVI e XVII em toda a Europa. Houve uma grande e opulenta civilização

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1 I :

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

pagã, cristã e islâmica. Nesse período muito foi acrescentado à ciência. Todavia, em seu conjunto, o progresso foi lento e inconstante; e, exceto no campo da matemática) os homens do Renascimento praticamente começaram do lugar a que Arqui­medes havia chegado. Houvera alguns progressos na medicina e na astronomia. O avanço total, porém, foi muito pequeno se comparado aos fascinantes sucessos do século XVII. Por exem­

plo, se compararmos o progresso do conhecimento cientifico

entre 1560 (pouco antes do nascimento de Galileu e Kepler) e 1700 (quando Newton estava no auge de sua fama) com o

progresso na Antigüidade, já mencionado, constataremos que aquele foi dez vezes maior que este último.

Todavia, a Grécia foi a mãe da Europa, e é para a Grécia que devemos olhar a fim de encontrar a origem de nossas idéias modernas. Todos sabemos que na costa oriental do Mediterrâ­neo houve uma próspera escola de filósofos jônicos profunda­mente interessados em teorias concernentes à natureza. Suas idéias chegaram até nós depois de terem sido enriquecidas pelo talento de Platão e Aristóteles. Todavia, com exceção de Aristó­teles - por sinal, uma grande exceção -, essa escola de pensa­mento não atingiu a completa mentalidade cientifica. De certo modo, isso foi melhor. O gênio grego era filosófico, claro e lógico. Os homens desse grupo estavam primordialmente respondendo

a questões filosóficas. Qual é o substrato da natureza? O fogo, a terra, a água ou a combinação de dois deles, ou dos três? Ou é

um mero fluxo, irredutivel a qualquer material estável? A ma­temática despertou grande interesse entre eles. Inventaram sua

regra geral, analisaram suas premissas e fiz.eram notáveis desco­

~ dL~or~as lll_e_c!!ªI).t~ _1JII).ª-Ligj4ª.fl_deli4,,-d.e.a.oJaciod­nio dedutivo. A mente deles estava contamjnada de uma ávida

generalidade. Exigiam idéias claras, evidentes, e raciocínio exa­to com base nelas. Tudo isso foi muito bom, foi genial, foi um trabalho preparatório ideal. Não foi, porém, ciência conforme a entendemos. A paciência da observação minuciosa não teve

nem de longe destaque. O gênio deles !1~ estava suficientemen-

I 20 I ~ I ~,~/j ':~J- /' ,~L~ / - /) "..-'

I A CI~NClA E O MUNDO MODERNO 1

te apto para o estado de desordenada incerteza imaginativa que

.Jl:recede, com sucesso, generalizações indutivas. Eram pensado­

res lúcidos e raciocinadores claros. Naturalmente, havia exceções, e de primeira ordem: por

exemplo, Aristóteles e Arquimedes. Como modelo de obser­

vação paciente, também temos os astrônomos. Houve uma lucidez matemática sobre as estrelas e uma fascinação COIl}' o

pequeno grupo de planetas com órbita irregular. •

Toda filosofia está pintada com as cores de algum fundo secreto de imaginação, que nunca emerge explicitamente em sua seqüência de raciocínio. A visão grega da natureza, pelo

menos a cosmologia passada por eles às demais gerações, foi essencialmente dramática. Nem por isso está necessariamente errada, mas é predominantemente dramática. Sendo assim, a visão grega concebeu a natureza articulada à maneira de um trabalho de arte dramática, no intuito de que a exemplificação de idéias gerais convergisse para um fim. A natureza foi dife­renciada de modo a proporcionar seus próprios fins para cada coisa. Havia o centro do universo como o fim do movimento das coisas pesadas, e a esfera celeste como o fim do movimento das coisas cuja natureza levava-as para cima. A esfera celeste era para coisas impassíveis e ingeráveis, as regiões abaixo para

coisas passíveis e geráveis. A natureza era um drama em que

cada coisa representava seu papel. Não afirmo que essa é uma visão com a qual Aristóteles

poderia ter concordado sem severas reservas, de fato sem o tipo de reservas que nós próprios poderíamos fazer. Mas foi a visão

que o pensamento grego subseqüente extraiu de Aristóteles e

transmitiu para a Idade Média. O efeito desse cenário imagina­tivo para a natureza foi impedir o espírito histórico. Uma v~z que é o fim quem parece iluminar, então por que preocupar-se com o começo? A Reforma e o movimento científico foram dois aspectos da reviravolta histórica que constituiu O movi­mento intelectual dominante da Renascença tardia. O apelo às origens do cristianismo e o apelo de Francis Bacon à causa

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

eficiente, em detrimento da causa final, foram dois lados de um mesmo movimento de pensamento. Também por essa ra­zão Galileu e seus adversários foram incapazes de se entender, conforme se pode perceber em sua obra Diálogos sobre os dois maiores sistemas do mundo.'

Galileu continuou insistindo em "como" as coisas aconte­cem, enquanto seus adversários tinham uma teoria completa

sobre upor que" as coisas acontecem. Infelizmente, as duas teo­rias não apresentavam os mesmos resultados. Galileu insistia em "fatos irredutíveis e inflexíveis", e Simplício, seu oponente, apresentava razões completamente satisfatórias, pelo menos para si mesmo. É um grande erro conceber essa reviravolta his­tórica como um apelo à razão. Ao contrário, foi um movimento completamente antiintelectualista. Foi um retomo à contem­plação do fato bruto; e foi baseado em um recuo à racionali­dade inflexível do pensamento medieval. Ao afirmar isso, estou simplesmente resumindo o que os próprios partidários do re­gime antigo afirmavam. Por exemplo, no quarto livro do padre Paul Sarpi, História do Concílio de Trento, pode-se ler que em 1551 os legados do papa que presidiam o concilio ordenaram:

que os teólogos deveriam confirmar suas opiniões com a Sa­

grada Escritura, a Tradição dos Apóstolos, os Concílios sa­

grados e aprovados, e pelas Constituições e Autoridades dos

Santos Padres; que eles deveriam ser breves, e evitar questões

supérfluas e inúteis, e disputas perversas [ ... ]. Essa ordem não

agradou os teólogos italianos, os quais disseram que era uma

novidade e uma condenação da teologia escolástica, que,

com todas as dificuldades, "usava da razão", e porque não

seria lícito [isto é, por esse decreto] proceder como santo To­

más [de Aquino], são Boaventura e outros homens famosos.

* A obra, cujo título original em italiano é Dialogo sopra i dl/e massimi sistemi deI mondo, consiste numa conversa entre três indivíduos: Salviati (defensor das idéias heliocêntricas de Copérnico), Simplício (defensor do sistema geocêntrico de Pto­lomeu) e Sagredo (homem de bom senso que procura tudo compreender). (N. T.)

I 22 I

I A CII~NClA E O MUNDO MODERNO I

É impossível não simpatizar com esses teólogos italianos, que sustentavam a causa perdida do racionalismo desenfreado. Tinham sido abandonados por todos. Os protestantes estavam completamente revoltados contra eles; o papado não os apoia­va; e os bispos do concílio não eram capazes de compreendê­los. Nesse sentido, algumas poucas linhas depois da citação an-

terior, lemos: '0

Embora muitos se queixaram [do Decreto], ele ainda prevale­

ce, mas pouco, pois os Padres [os bispos] geralmente deseja­

vam ouvir os homens expressarem-se com termos inteligíveis,

não confusos, como na matéria da justificação e de outras

já tratadas.

Pobres medievalistas retardatários' Quando usaram a razão, também não foram compreendidos pelos poderes do­minantes da época. Passaram-se séculos até que os fatos irre­dutíveis se tomassem redutíveis pela razão, e entrementes o pêndulo oscilou vagarosa e pesadamente para o extremo do

método histórico. Quarenta e três anos depois que os teólogos italianos ha­

viam escrito o seu memorial, Richard Hooker, em seu famo­so Leis do governo eclesiástico, fez exatamente a mesma queixa com relação a seus adversários puritanos.' O ponderado pensa­mento de Hooker - que deu origem à designação "o judicioso

Hooker" - e seu estilo difuso, que é o veículo desse pensamen­

to, tomaram seus escritos inadequados para serem resumidos por uma citação curta e pontual. Todavia, na referida seção,

Hooker reprova seus oponentes pelo "menosprezo da razão" que eles cultivam; e a favor de sua postura cita, por fim, "o maior dentre os teólogos escolásticos", designando, presumo,

santo Tomás de Aquino.

1 Cf. livro 111, seção viii.

I 23 I

1

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

A obra Leis do governo eclesiástico, de Hooker, foi publi­cada pouco antes de História do Concílio de Trento, de Sarpi. Portanto, há completa independência entre as duas obras. Toda­via, tanto os teólogos italianos de 1551 quanto Hooker no final do século XVI testemunham a tendência anti-racionalista do pensamento da época, e a esse respeito diferenciam seu próprio

periodo do período escolástico.

Essa reação foi indubitavelmente um corretivo muito ne­

cessárío para o incauto racionalismo da Idade Média. Contudo, as reações tendem para os extremos. Com isso, embora uma conseqüência dessa reação tenha sido o nascimento da ciência

moderna, devemos lembrar também que a ciência herdou a tendência de pensamento de sua própria origem.

O efeito da literatura dramática grega foi múltiplo, tendo

em vista que concerniu a vários modos nos quais ela indire­tamente influenciou o pensamento medieval. Os pioneiros da

imaginação cientifica, conforme ela existe hoje, são os grandes autores trágicos da Grécia antiga, Ésquilo, Sófocles e Euripides. Sua visão do destino - desapiedado e indiferente, incitando um incidente trágico para seu desfecho inevitável - é a visão que a ciência possui. O destino da tragédia grega toma-se a ordem da natureza no pensamento moderno. O interesse ca­tivante pelos incidentes heróicos particulares, como exemplo

e verificação da atuação do destino, reaparece em nossa época como concentração de interesse pelos experimentos cruciais.

Tive a sorte de participar da reunião da Sociedade Real, em Londres, quando o astrônomo real da Inglaterra anunciou que

chapas fotográficas do famoso eclipse, conforme previsão de seus colegas do Observatório de Greenwich, haviam compro­

vado o prognóstico de Einstein de que raios de luz tomam-se curvOS quando passam perto do Sol. Todo o ansioso ambiente de interesse era exatamente aquele do drama grego: éramos o coro comentando o decreto do destino conforme descoberto no desenrolar de um acontecimento supremo. Havia qualidade dramática naquela cena: o cerimonial tradicional, e no fundo o

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I A CI~NClA E O MUNDO MODERNO I

retrato de Ne\\lton para lembrar-nos de que a maior das genera­lizações cientificas estava agora, após mais de dois séculos, pres­tes a receber sua primeira modificação. Não faltava, tampouco,

o interesse pessoal: uma grande aventura de pensamento havia

chegado sã e salva ao porto seguro. Permitam-me aqui lembrá-los de que a essência da tragé­

dia dramática não é a desventura. Ela reside na solenidade do

funcionamento impiedoso das coisas. Essa inevitabilidade do

destino apenas pode ser ilustrada em termos de vida humana por incidentes que de fato envolvam desventura. Pois é apenas por meio deles que a futilidade da libertação pode ser eviden­

ciada no drama. Essa impiedosa inevitabilidade é que penetra o pensamento cientifico. As leis da física são os decretos do

destino. A concepção de uma ordem moral na tragédia grega não

foi certamente uma descoberta dos dramaturgos. Teve de pas­sar do importante pensamento geral da época para a tradição li­terária. Ao alcançar, porém, sua expressão máxima, intensificou a corrente de pensamento da qual surgiu. O espetáculo de uma ordem moral foi gravado na imaginação da civilização clássica.

Essa grande sociedade acabou ruindo e a Europa entrou na Idade Média. A influência direta da literatura grega deixou de

existir. Mas o conceito de ordem moral e de ordem da natureza já se havia inscrito na filosofia estóica. Por exemplo, Lecky, em sua História das morais européias, relata-nos que "Sêneca afirma

que Deus determinou todas as coisas por meio de uma inexorá­vellei de destino, lei esta que Ele decretou e a que Ele próprio

obedece". Mas o modo mais efetivo como os estóicos influen­

ciaram a mentalidade da Idade Média foi por intermédio do sensO difuso de ordem, nascido do direito romano. Novamente uma citação de Lecky: "O direito romano foi duplamente fi­lho da filosofia. Em primeiro lugar, ele formou-se com base no modelo filosófico, pois, em vez de ser um sistema meramente ajustado às necessidades existenciais da sociedade, estabeleceu princípios abstratos de direito, aos quais se esforçou em con-

1 2S 1

1

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

formar-se; e, em segundo lugar, esses princípios foram tomados diretamente do estoicismo". Não obstante a verdadeira anar­quia em todas as partes da Europa após o colapso do Império, o senso de ordem legal sempre esteve presente na memória racial das populações imperiais. Também a Igreja Ocidental sempre

esteve presente como personificação viva das tradições legisla­tivas imperiais.

É importante notar que essa marca moral sobre a civilização medieval não ocorreu sob a forma de alguns poucos preceitos sapienciais que permeariam a conduta. Tratava-se da concepção

de um sistema articulado definitivo que estabelece a legalidade da minuciosa estrutura do organismo social e do modo detalha­do em que ela funcionaria. Não havia nada de vago. Tratava-se não de máximas admiráveis, mas sim de procedimento definitivo para estabelecer coisas certas e para mantê-las no lugar. A Idade Média converteu-se em um longo treinamento do intelecto da Europa Ocidental no que diz respeito ao senso de ordem. Pode ter havido alguma deficiência quanto à prática. Mas por um mo­mento sequer a idéia deixou de ter poder. Foi sobretudo um período de pensamento ordenado, inteiramente racionalista. A própria anarquia acelerou a apreensão de um sistema coerente; exatamente como a anarquia moderna da Europa estimulou a visão intelectual de uma Liga das Nações.

Mas com relação à ciência esperava-se algo mais do que um senso geral de ordem das coisas. É necessária tão-somente

uma frase para mostrar COmo o costume do pensamento exato

e definitivo foi implantado na mente européia pelo longo do­mínio da lógica e da teologia escolásticas. O costume persistiu

após a filosofia ter sido repudiada, o inestimável costume de procurar um ponto exato e de agarrar-se a ele quando encon­trado. Galileu deve mais a Aristóteles do que à primeira vista aparece em seu Diálogo: o primeiro deve ao segundo sua inteli­gência clara e sua mente analítica.

Não penso, entretanto, que eu já tenha trazido à tona a maior contribuição do medievalismo para a formação do movi-

I 26 I

I A CI~NClA E O MUNDO MODERNO I

mento cientifico. Proponho a crença inexpugnável de que todo evento circunstanciado pode ser relacionado com seus antece­dentes de um modo perfeitamente preciso, demonstrando prin­cípios gerais. Sem essa crença, o incrível trabalho dos cientistas seria sem esperança. É essa convicção instintiva, nitidamente suspensa diante da imaginação, que é a força motivadora da pesquisa: há um segredo, um segredo que pode ser revelado.

Como essa convicção foi tão vividamente implantada no espí:

rito europeu? Quando comparamos esse tipo europeu de pensamento

com a atitude de outras civilizações sem influência européia, parece haver apenas uma fonte para sua origem. Esta última provém necessariamente da insistência medieval na racio­nalidade de Deus, concebida tanto com a energia pessoal de lahweh como com a racionalidade de uma filosofia grega. Cada detalhe foi supervisionado e ordenado: a pesquisa a respeito da natureza poderia resultar somente na justificativa da fé na racionalidade. Lembrem-se de que não estou falando das cren­

ças explicitas de alguns poucos indivíduos. O que proponho é a marca no espírito europeu resultante da fé inquestionável ao

longo de séculos. Por isso, sugiro o tipo instintivo de pensamen-to e não um mero_ credo 4.~ palavras. ,1- ('~ /3' -: 'P S j) ':~ /c j/'''-

Na Asia, as concepções de Deus eram de um ser ou mui­to arbitrário ou muito impessoal para que tais idéias tivessem

grande efeito sobre os hábitos instintivos da mente. Todo even­to circunstanciado poderia ser devido à sanção de um déspo­

ta irracional ou poderia emanar de alguma origem das coisas

impessoal e inescrutável. Não havia a mesma confiança como na racionalidade inteligível de um ser pessoal. Não estou de­

fendendo que a confiança européia na investigação da natureza fosse logicamente justificada até mesmo pela nossa teologia. Meu único objetivo é entender como isso começou. Minha explicação é que a fé na possibilidade da ciência, produzida anteriormente para o desenvolvimento da teoria científica mo­derna, é um derivado inconsciente da teologia medieval.

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~ )~

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Mas a ciência não é meramente o desfecho da fé instin­tiva. Ela também requer um interesse ativo pelos fenômenos cotidianos por eles mesmos.

A expressão "por eles mesmos" é importante. A primeira fase da Idade Média foi um período de simbolismo. Foi um período de idéias amplas e de técnicas primitivas. Havia pouco para ser feito com a natureza, exceto desenvolver um modo de

vida COm base nela. Mas havia áreas do conhecimento a serem

exploradas, áreas da filosofia e áreas da teologia. A arte primi­tiva poderia simbolizar essas idéias que preenchiam todas as mentes meditativas. A primeira fase da arte medieval teve um

fascínio inesquecível e incomparável: sua própria qualidade in­trínseca é acentuada pelo fato de que sua mensagem, que foi além da própria autojustificação da arte da realização estética, era o simbolismo de coisas que estão por trás da natureza em si. Nessa fase simbólica, a arte medieval abasteceu-se da natureza como seu ambiente, mas apontou para outro mundo.

Para entender o contraste entre essa antiga Idade Média e a atmosfera requerida pela mentalidade cientifica, compara­remos o século VI com o século XVI na Itália. Em ambos os séculos o gênio italiano estava estabelecendo os fundamentos de uma nova época. A história dos três séculos anteriores ao período mais antigo, a despeito da promessa futura apresenta­

da pela ascensão do cristianismo, está completamente tomada pelo senso de declínio da civilização. Em cada geração algo ha­

via sido perdido. Conforme lemos os testemunhos, somos to­mados pela sombra da chegada do barbarismo. Há grandes ho­

mens, com excelentes realizações no campo prático e teórico.

Mas seu efeito total dura apenas um curto período de tempo no impedimento do declínio geral. No século VI, estamos, com relação à Itália, no ponto mais baixo da curva. Mas nesse século cada ação está colocando os alicerces para a tremenda ascensão da nova civilização européia. Na obscuridade, o Império Bizan­tino, sob Justiniano, determinou de três modos o. caráter da an­tiga Idade Média na Europa Ocidental. Em primeiro lugar, seus

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I A CI~NClA E O MUNDO MODERNO I

exércitos, sob Belisário e Narses, livraram a Itália da domina­ção gótica. Desse modo, o palco ficou livre para o exercício do antigo gênio italiano para criar organizações que protegeriam ideais de atividade cultural. É impossível não simpatizar com os godos: mesmo nesse ponto não resta dúvida, entretanto, de que um milênio de papado foi infinitamente mais precioso para a Europa do que alguns efeitos derivados de um bem estabele-.·

cido reinado gótico da Itália. Em segundo lugar, a codificação do direito romano es­

tabeleceu o ideal de legalidade que dominaria o pensamento

sociológico da Europa ao longo dos séculos posteriores. O di­reito é para o governo tanto um instrumento como uma con­dição restritiva. O direíto canônico da Igreja e o direito civil do Estado devem aos juristas justinianos sua influência sobre o desenvolvimento da Europa. Eles estabeleceram no espíríto ocidental o ideal de que uma autoridade seria ao mesmo tempo legítima e obrigatória, e apresentaria em si mesma um sistema racional de organização. O século VI na Itália apresentou a pro­va inicial do modo como a marca dessas idéias foi impulsionada pelo contato com o Império Bizantino.

Em terceiro lugar, nas esferas apolíticas da arte e do en­sino, Constantinopla exibiu um padrão de realizações que) em parte pelo impulso da imitação direta, em parte pela inspira­

ção indireta nascida do mero conhecimento de que tais coisas existiam, atuou como um estimulo constante para a cultura

ocidental. A sabedoria dos bizantinos, visto que permaneceu na imaginação da primeira fase da mentalidade medieval, e a sa­

bedoria dos egipcios, visto que permaneceu na imaginação dos gregos antigos, desempenharam um papel análogo. Provavel­

mente, o conhecimento real dessas respectivas sabedorias era, em todo caso, quase tão bom quanto O era para seus recebe­dores. Sabiam suficientemente para conhecer o tipo de padrão atingível e não o suficiente para ser presos por modos estáticos e tradicionais de pensamento. Conformemente, em ambos os casos os homens estavam à frente dos seus contemporâneos

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

e faziam melhor. Nenhum relato da ascensão da mentalidade cientifica européia pode deixar de citar alguma informação des­sa influência da civilização bizantina na base do acontecimento. No século VI há uma crise na história das relações entre os bi­zantinos e o Ocidente; e essa crise precisa ser comparada com a influência da literatura grega sobre o pensamento europeu nos séculos XV e XVI. Os dois homens de destaque que na Itália

do século VI colocaram os alicerces do futuro foram são Bento

e Gregório Magno. Por referência a eles, podemos desde já ver como estava absolutamente em ruínas o caminho para a men­

talidade científica que havia sido trilhado pelos gregos. Estamos no ponto zero da temperatura científica. Mas a vida e a obra de Gregório e de Bento forneceram elementos para a reconsbução da Europa e asseguraram que essa reconsbução, quando ocor­resse, incluiria uma mentalidade científica mais efetiva do que aquela do mundo antigo. Os gregos foram hiperteóricos. Para eles, a ciência era um ramo da filosofia. Gregório e Bento foram homens práticos, com um olhar para a importância das coisas comuns; e eles combinavam esse temperamento prático com suas atividades religiosas e culturais. Em particular, devemos a

são Bento o fato de os mosteiros terem sido casas de agrônomos práticos, bem como de santos, de artistas e de sábios. A aliança da ciência com a tecnologia, por meio da qual o saber entrou em contato COm os fatos irredutíveis e inflexíveis, deve muito à

inclinação prática dos primeiros beneditinos. A ciência moder­na deriva de Roma, bem como da Grécia, e esse estilo romano

explica seu ganho em uma atividade de pensamento mantida em estreito contato com o mundo dos fatos.

Mas a influência desse contato entre os mosteiros e os fatos da natureza apareceu primeiro na arte. A ascensão do na­

turalismo na Idade Média tardia marcou a entrada no espíri­to europeu do ingrediente final necessário para a ascensão da ciência. Foi o surgimento do interesse tanto por objetos na­turais como por acontecimentos naturais, por eles mesmos. A folhagem natural de uma região era modelada em um lugar

I 30 I

I A CI~NClA E O MUNDO MODERNO \

afastado das construções posteriores, meramente como de­leite expositivo daqueles objetos familiares. Toda a atmosfera de cada arte exibia uma alegria direta na apreensão das coisas que se encontravam ao redor. Os artesãos que executavam a escultura decorativa da Idade Média tardia, Giotto, Chaucer, Wordsworth, Walt Whitman, e! atualmente, o poeta americano

(Nova Inglaterra) Robert Frost, são a esse respeito todos pa"

recidos entre si. Os fatos imediatos simples são os tópicos de • interesse, e eles reaparecem no pensamento da ciência como os "fatos irredutíveis e inflexíveis".

O espírito europeu estava agora preparado para sua nova aventura de pensamento. É desnecessário narrar em detalhes os diversos incidentes que marcaram a ascensão da ciência: o cres­cimento da riqueza e do tempo livre; a expansão das universi­dades; a invenção da imprensa; a tomada de Constantinopla; Copérnico; Vasco da Gama; Colombo; o telescópio. O solo, o clima e as sementes estavam lá! e as plantas cresceram. A ciên­cia nunca se livrou da marca de sua origem na reviravolta histó­rica da Renascença tardia. Continuou predominantemente um movimento anti-racionalista, baseado sobre uma fé ingênua. O tipo de raciocínio que faltava foi tomado de empréstimo da

matemática, que é uma relíquia remanescente do raciOnaliSm] grego, o qual segue o método dedutivo. A ciência repudia a filo I

sofia. Em outras palavras, nunca se preocupou em justificar su -fé ou em explicar seu sentido; e permaneceu tranqüilamente indiferente às refutações que Hume lhe fizera.

Naturalmente, a reviravolta histórica foi plenamente jus­tificada. Era desejada. Foi mais do que se queria: foi uma neces­

sidade absoluta para o progresso saudável. O mundo precisou de séculos de contemplação dos fatos irredutíveis e inflexíveis. É difícil para os homens fazer mais do que uma coisa a um só tempo, e esse foi o tipo de coisa que eles tinham para fazer após a orgia racionalista da Idade Média. Era uma reação ver­dadeiramente sensata; mas não era um protesto em nome da razão.

I 31 I .~

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li

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Há, no entanto, a Nêmesis que cuida daqueles que deli­beradamente evitam as veredas do conhecimento. O brado de Oliver Cromwell ecoa ao longo dos tempos, "Meus irmãos, pe­los sentimentos de Cristo imploro a vocês: lembrem que vocês podem estar enganados".

O progresso da ciência havia alcançado, assim, o ponto crítico. Os alicerces estáveis da física haviam sido rompidos:

alem disso, pela primeira vez a fisiologia estava afirmando-se

como um corpo efetivo de conhecimento, como algo distinto de um amontoado de partes. Os antigos alicerces do pensa­mento científico estavam tornando-se incompreensíveis. Tem­po, espaço, substância, matéria, éter, eletricidade, mecanismo, organismo, forma, estrutura, padrão, função, tudo isso exigia interpretação. Qual o sentido de falar sobre uma explicação mecânica quando não se sabe o que significa mecânica?

A verdade é que a ciência começou sua carreira moderna assumindo ideias derivadas do lado vulnerável da filosofia dos sucessores de Aristóteles. Em alguns aspectos foi uma escolha feliz. Capacitou ao conhecimento do século XVII ser formu­

lado à medida que a física e a química eram levadas em conta, com a perfeição que dura até os nossos dias. Mas o progresso da biologia e da psicologia tem sido reprimido provavelmente por causa da pretensão acrítica de meias verdades. Se a ciência não deve degenerar em uma confusão de hipóteses ad hoc, precisa

tornar-se filosófica e precisa assumir o criticismo radical com relação a seus próprios alicerces.

Nos capitulos seguintes deste livro, traçarei os êxitos e ma­

logros das concepções particulares de cosmologia com as quais a inteligência européia fechou-se em si mesma durante os últimos

três séculos. Climas gerais de opinião persistem por periodos de aproximadamente duas ou três gerações, ou seja, por perío­dos entre sessenta e cem anos. Há também ondas mais breves de pensamento, as quais roçam a superfície do movimento da maré. Encontraremos, entretanto, transformações no ponto de vista europeu, modificando-se lentamente ao longo dos séculos.

1321

I A CI~NCIA E O MUNDO MODERNO I

Essa posição persiste, no entanto, ao longo de todo o período da cosmologia cientifica estabelecida, a qual pressupõe que a realidade última de uma matéria bruta irredutível, ou material, estende-se por todo o espaço em um fluxo de configurações. Em si, uma tal matéria é absurda, sem valor, sem sentido. Apenas faz o que faz fazer, seguindo uma rotina fixa imposta pelas re­lações externas que não emergem da natureza de seu ser. É essa ,~ pretensão que chamo de "materialismo científico". Também é uma pretensão que objetarei como sendo inteiramente impró­

pria para a situação cientifica a que agora chegamos. Não está errada, se corretamente explicada. Se nos restringimos a certos tipos de fatos, abstraídos totalmente das circunstâncias em que eles ocorrem, a pretensão racionalista expressa esses fatos de modo perfeito. Mas quando vamos além da abstração - seja pelo mais sutil emprego de nOSSOS sentidos, seja pela solicitação de significado e de coerência de pensamento -, o esquema su­cumbe imediatamente. A eficiência limitada do esquema foi a verdadeira causa do seu supremo sucesso metodológico. Pois ele dirigia a atenção apenas aos grupos de fatos que, na circunstân­cia do conhecimento então existente, requeriam investigação.

Os sucessos do esquema afetaram desfavoravelmente as

várias correntes do pensamento europeu. A reviravolta histó­rica foi anti-racionalista, pois o racionalismo dos escolásticos precisava de uma severa correção por meio do contato com

o fato bruto. Mas o renascimento da filosofia sob a liderança de Descartes e de seus sucessores foi por completo marcado

em seu desenvolvimento pela aceitação da cosmologia cientí­fica em seu valor aparente. O sucesso das últimas idéias deles

confirmou 0$ cientistas em sua recusa em modificá-las como

o resultado de uma pesquisa a respeito de sua racionalidade. Toda filosofia foi obrigada de um modo ou de outro a absorver a todas elas. O exemplo da ciência influenciou também ou­tros campos do pensamento. A reviravolta histórica havia sido assim ampliada com relação à exclusão da filosofia do seu pa­pel próprio de harmonizar aS várias abstrações do pensamento

1331

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

metodológico. O pensamento é abstrato; e o uso intolerante

?e abstrações é o maior vício do intelecto. Esse vício não pode

ser totalmente corrigido pelo recurso à experiência concreta.

Pois, afinal de contas, basta apenas observar aqueles aspectos

da experiência concreta que se encontram em algum esquema

limitado. Há dois métodos para a purificação das idéias. Um

deles é a observação imparcial por meio dosM'ntidos corpór~~

Mas observação é selecão. Portanto, é difícil transcender um

esquema de abstração cujo sucesso é suficientemente vasto . ...Q.. outro método dá-se mediante a comparação dos vários esqu.l'.­~as-de ~b~traÇão'gue estão bem nllldados em nossos vários

__ !~de experiência Es~a ~o~~aração t~;~ ;-f~~a de s-;ti;fu~-ção das demandas dos teólogos escolásticos italianos que Paul Sarpi mencionou. Eles perguntam que razão poderia ser usada.

Fé na razão é a confiança de que as naturezas últimas das coisas encontram-se juntas em uma harmonia que exclui a mera arbi­

trariedade. É a fé de que na base das coisas não encontraremos um mero mistério arbitrário. A fé na ordem da natureza que

tornou possível o crescimento da ciência é um exemplo parti­

cular de uma fé mais profunda. Essa fé não pode ser justificada por nenhuma generalização indutiva. Nasce da inspeção direta da natureza das coisas como descobertas em sua própria expe­

riência presente e imediata. Não há como separar-se da própria

sombra. Experimentar essa fé é reconhecer que, ao sermos nós

mesmos, somos mais do que nós mesmos; reconhecer que nossa

experiência, mesmo opaca e incompleta COmo é, ainda ecoa

o mais profundo da realidade; reconhecer que detalhes sepa­

rados meramente a fim de serem eles próprios deveriam ser decifrados dentro de um sistema de coisas; reconhecer que esse

sistema inclui a harmonia da racionalidade lógica e a harmonia da realização estética; reconhecer que, enquanto a harmonia da

lógica baseia-se no universo como uma necessidade irredutívet

a harmonia estética está diante dele como um ideal de vida que forma o fluxo geral em seu progresso interrompido rumo às questões mais delicadas e eminentes.

1 34 1

I CAPrTULO II I

A MATEMÁTICA COMO UM ELEMENTO NA HISTÓRIA DO PENSAMENTO

A ciência da matemática pura, em seus desenvolvimentos

modernos, pode reivindicar ser a criação mais original do espí­

rito humano. Outro reivindicante para essa posição é a música.

Mas colocaremos de lado todos os rivais e consideraremos a base sobre a qual tal reivindicação pode ser feita para a ma­temática. A originalidade da matemática consiste no fato de que na ciência matemática são apresentadas conexões entre as

coisas que, separadas da intervenção da razão humana, são ex­

tremamente sem evidência. Assim, as idéias, agora na mente

dos matemáticos contemporâneos, encontram-se muito distan­

tes de qualquer noção que possa derivar imediatamente pela percepção mediante os sentidos; a menos, de fato, que seja uma

percepção estimulada e guiada por conhecimento matemático antecedente. Essa é a tese que continuarei a exemplificar.

Suponhamos uma projeção de nossa imaginação em di­reção ao passado de muitos milhares de anos e empenhemo­

nos em perceber a simplicidade até mesmo dos maiores inte­

lectos em meio àquelas antigas sociedades. As idéias abstratas que para nós são imediatamente evidentes devem ter sido, para

eles, tema somente da mais obscura apreensão. Por exemplo,

tomemos a questão do número. Pensamos no número "cinco"

como ligado a determinados grupos de qualquer entidade - a cinco peixes, cinco crianças, cinco maçãs, cinco dias. Sendo as­

sim, ao considerar as relações do número "cinco" com o nú­

mero "três", estamos pensando em dois grupos de coisas, um

135 1

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD 1

com cinco membros e o outro com três membros. Mas estamos

unicamente abstraindo com base em cada ponderação de cada

entidade particul~r ou ainda de cada tipo particular de entida­de, que determinará a pertença a esse ou àquele grupo. Estamos

pensando meramente nas relações entre os dois grupos que são

inteiramente independentes das essências individuais de qual­

quer um dos membros de cada grupo. Isso é uma capacidade

de abstração muito notável; e deve ter levado gerações para que

a raça humana promovesse isso. Durante um longo período,

grupos de peixes seriam comparados a todos os demais quanto

à sua multipliCidade, e grupos de dias a todos os demais. Mas o primeiro homem que percebeu a analogia entre um grupo de sete peixes e um grupo de sete dias realizou um avanço notável na história do pensamento. Foi o primeiro homem que cogitou um conceito pertencente à ciência da matemática pura. Nesse

momento deve ter sido impossível para ele adivinhar a comple­xidade e a sutileza dessas idéias matemáticas abstratas que esta­

vam esperando para ser descobertas. Tampouco poderia ele ter

adivinhado que essas noções poderiam exercer uma fascinação difusa em cada uma das gerações futuras. Há uma tradição lite­

rária errada que representa o amor pela matemática como uma

monomania restrita a uns poucos excêntricos em toda geração.

Mas seja como for, poderia ter sido impossível antecipar a Sa­

tisfação proveniente de um tipo de abstração de pensamento que não teve comparação na sociedade de então. Em terceiro

lugar, o enorme efeito futuro do conhecimento matemático so­

bre a vida dos homens, sobre suas ocupações diárias, sobre seus

pensamentos habituais, sobre a organização da sociedade, deve

ter ficado ainda mais completamente encoberto pela previsão daqueles antigos pensadores. Ainda hoje há uma compreensão incerta sobre a verdadeira posição da matemática como um

elemento na história do pensamento. Não irei tão longe para

dizer que construir a história do pensamento sem um profundo

estudo das idéias matemáticas das sucessivas épocas é como

omitir Hamlet da peça teatral que leva seu nome. Isso poderia

1361

1 A CI~NClA E O MUNDO MODERNO I

ser pretensioso demais. Mas é certamente análogo a cortar o pa­

pel de Ofélia. Essa comparação está profundamente certa, pois Ofélia é de todo essencial para a peça, ela é muito encantadora - e um tanto louca. Permitam-nos admitir que a atividade da matemática é uma divina loucura do espírito humano, um re­

fúgio da urgência pungente dos acontecimentos contingentes. Quando pensamos em matemática, temos em mente uma

ciência dedicada à exploração do número, da quantidade, da

geometria, e nos tempos modernos também incluímos a in­

vestigação sobre os conceitos ainda mais abstratos de ordem e sobre tipos análogos de relações puramente lógicas. O essen­

cial da matemática e que nela temos sempre de nos desfazer do caso particular e igualmente de todos os tipos específicos de identidade. Sendo assim, por exemplo, nenhuma verdade matemática aplica-se meramente a peixes, a pedras ou a cores.

Quando se lida com matemática pura, está-se no domínio da completa e absoluta abstração. Tudo o que se afirma é que a ra­zão insiste na aceitação de que, se uma entidade qualquer tiver

alguma relação que satisfaça quaisquer condições puramente abstratas, então elas devem ter outras relações que satisfaçam

outras condições puramente abstratas.

Matemática é pensamento movendo-se no âmbito da completa abstração a partir de qualquer caso particular de que se está falando. Por enquanto é porque essa visão de matemáti­

ca é lógica que nós podemos facilmente afirmar a nós mesmos que ela não é, até agora, amplamente entendida. Por exemplo,

é comum pensar que a certeza matemática é a razão para a cer­

teza de nosso conhecimento geométrico do espaço do universo físico. Eis uma ilusão que freqüentou muitas filosofias no passa­

do e encontra-se em algumas no presente. Essa questão de geo­metria é um caso-teste de relativa urgência. Há certos grupos

alternativos de condições puramente abstratas possíveis para

a relação de grupos de entidades inespecíficas, que chamarei de condições geométricas. Dei-lhes esse nome por causa de suas analogias gerais com aquelas condições que acreditamos mante-

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1 ALFRED NORTH WHITEHEAD 1

rem no que diz respeito às relações geométricas particulares de coisas observadas por nós em nossa percepção direta da natu­reza. Conforme nossas observações são concernidas, não somos

corretos o suficiente para estarmos certos da exata condição que regula as coisas com as quais deparamos na natureza. Mas podemos, por uma sutil distensão da hipótese, identificar essas condições observadas com mais algum conjunto de condições

geométricas puramente abstratas. Ao fazer isso, estabelecemos

uma determinação particular do grupo de entidades inespeci­

ficas, as quais são os relata na ciência abstrata. Na matemática pura das relações geométricas, dizemos que, se algum grupo de entidades possui alguma relação entre seus membros satis­fazendo esse grupo de condições geométricas abstratas, então quaisquer condições abstratas adicionais devem também ser tomadas para tais relações. Mas quando vamos para o espaço físico, dizemos que algum grupo de entidades fisicas observado de modo exato possui algumas relações observadas de modo exato entre seus membros que satisfazem o já mencionado

conjunto de condições geométricas abstratas. Por isso, conclu­imos que as relações adicionais que julgamos tomar em algum caso devem, no entanto, ser tomadas nesse caso particular.

A certeza matemática repousa sobre sua completa gene­ralidade abstrata. Mas não podemos ter certeza a priori de que

estamos certos em acreditar que as entidades observadas no universo concreto formam um caso particular do que está in­

cluido em nosso raciocinio geral. Tomemos outro exemplo da aritmética. Constitui uma verdade abstrata geral da matemáti­

ca pura que qualquer conjunto de quarenta elementos pode ser

subdividido em dois grupos de vinte elementos. Temos, portan­to, razões suficientes para concluir que um conjunto particular de maçãs que acreditamos conter quarenta elementos possa ser subdividido em dois conjuntos de maçãs dos quais cada um contenha vinte elementos. Mas a esse respeito sempre perma­nece a possibilidade de que tenhamos contado maio conjunto grande; de modo que, quando na prática o subdividirmos, des-

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I A C!~NClA E O MUNDO MODERNO 1

cobriremos que um dos dois montantes tem algumas maçãs a

menos ou algumas maçãs a mais. De acordo com isso, para julgar um argumento baseado

sobre a aplicação da matemática a fatos concretos particulares, há sempre três processos que devem ser perfeitamente separa­dos em nossa mente. Devemos em primeiro lugar examinar o raciocínio puramente matemático para certificar-se de que não;~

haja erros simples nele - nenhuma ilogicidade casual em razão

de falhas mentais. Todo matemático sabe, de amarga experiên­cia, que, no início da elaboração de uma série de raciocínios, é muito fácil cometer um pequeno erro, que, contudo, faz toda a

diferença. Mas quando uma parte da matemática foi revisada e exposta, durante algum tempo, aos especialistas, a probabilida­de de um erro casual é quase desprezível. O próximo processo é tornar-se completamente seguro de todas as condições abs­tratas que se pressupôs considerar. Isso é a determinação das premissas abstratas das quais o raciocínio matemático procede. Trata-se de um assunto de considerável dificuldade. No pas­sado, descuidos deveras extraordinários foram feitos e aceitos por gerações dos maiores matemáticos. O perigo principal é o do descuido, a saber, introduzir tacitamente algumas condições que é natural pressupormos, mas que de fato não precisamos considerar. Há outro descuido oposto nessas conexões que não

leva ao erro, mas somente necessita de simplificação. É muito fácil pensar que são necessárias mais condições postuladas do

que de fato ocorre. Em outras palavras, podemos pensar que é necessário algum postulado abstrato que seja de fato capaz

de ser provado com base em outros postulados que já temos

em mãos. O único efeito desse excesso de postulados abstratos é diminuir nosso prazer estético no raciocínio matemático e dar-nos mais trabalho quando chegarmos ao terceiro processo de crítica.

Esse terceiro processo de crítica é o da verificação de que nossos postulados abstratos cabem no caso particular em questão. É com respeito a esse processo de verificação para o

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

caso particular que toda a dificuldade aparece. Em exemplos simples, como na contagem das quarenta maçãs, podemos COm algum cuidado chegar à certeza prática. Mas em geral, com exemplos mais complexos, a certeza completa é inatingivel. Li­vros e livros foram escritos sobre esse assunto. É o campo de batalha de filósofos rivais. Há duas diferentes questões envolvi­das. Há determinadas coisas definidas que observamos e temos

de estar certos de que as relações entre essas coisas obedecem realmente a certas condições abstratas definidas e exatas. Há

aqui grande oportunidade para erro. Os métodos exatos de ob­servação da ciência são todos artifícios para limitar essas con­clusões erradas quanto à matéria de fato. Surge, porém, outra questão. As coisas diretamente observadas são, quase sempre, simples exemplos. Precisamos concluir que as condições abs­

tratas, cabíveis nos exemplos, também cabem em outras enti­dades que, por alguma razão, parecem para nós ser do mesmo

tipo. Esse processo de raciocinar partindo do exemplo e indo para -; totalidade das espécies é a indução. A t"oria da indução é o _de~spero da filosofia; no entanto, todas as nossas atividades estão nela baseadas. De qualquer forma, ao julgar uma conclu­são matemática como um assunto particular de fato, as difi­culdades reais consistem em descobrir as afirmações abstratas ocorrentes e em estimar a evidência de sua aplicabilidade para

o caso particular em questão. Acontece com freqüência que, ao criticarmos uma obra

erudita de matemática aplicada, ou alguma autobiografia, todo o embaraço está no primeiro capítulo, ou mesmo na primeira

página. Porque é lá, bem no começo, onde o autor provavel­mente será apanhado em deslize. Ademais, o embaraço está não

naquilo que o autor diz, mas naquilo que ele não diz. Também está não no que sabe que afirma, mas naquilo que afirmou in­conscientemente. Não duvidamos da honestidade do autor. É a sua perspicácia que criticamos. Toda geração critica as afirma­ções inconscientes feitas pelos seus antecessores. Pode concor­dar com elas, mas apresenta-as como claras e manifestas.

1 40 I

I A Cl~NCIA E O MUNDO MODERNO I

A história do desenvolvimento da linguagem ilustra esse ponto. É uma história da progressiva análise das idéias. O latim e o grego eram línguas flexionais. Isso significa que expressam um conjunto de idéias não analisado pela mera modificação de uma palavra; ao passo que em inglês, por exemplo, USamos preposições e verbos auxiliares para envolver a obviedade de todo um conjunto de idéias envolvidas. Para algumas formas da "

arte literària - embora nem sempre -, a absorção resumida

das idéias auxiliares na palavra principal pode ser uma vanta­gem. Mas em uma língua COmo o inglês há enorme vantagem no detalhamento. Esse aumento do detalhamento é uma apre­

sentação mais completa das várias abstrações incluídas na idéia complexa que é o significado da frase.

Por comparação com a linguagem, podemos agora ver qual é a função desempenhada pela matemática pura no pen­samento. É uma tentativa resoluta para empreender o caminho todo rumo à análise completa, de modo que os elementos do fato puro e simples sejam separados das condições puramente abstratas que eles exemplificam.

O hábito dessa análise ilumina todos os atos do funcio­namento da mente humana. Primeiramente (isolando-os), des­

taca a apreciação estética direta do conteúdo da experiência. Essa apreciação direta significa uma apreensão daqUilo que essa experiência é em si mesma na sua própria essência particular, incluindo os seus valores concretos imediatos. É uma questão

de experiência direta, dependente da acuidade sensorial. Há

então a abstração das determinadas entidades em questão vis­tas em si meSmas e à parte dessa especial ocasião de experi­

ência em que as apreendemos. Finalmente há a subseqüente apreensão das condições absolutamente gerais, satisfeita pelas relações determinadas daquelas entidades como nessa experiên­cia. Essas condições adquirem a sua generalidade pelo fato de serem expressáveis sem referência àquelas relações determina­das ou àqueles relatos determinados que ocorrem nessa deter­minada ocasião da experiência. São condições que podem ser

141 I

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I ALfRED NORTH WHITEHEAD I

tomadas como variedade indefinida de outras ocasiões, envol­

vendo outras entidades e outras relações entre elas. Assim essas

condições são perfeitamente gerais porque não se referem 1

nenhuma circunstância determinada, nem a nenhuma entidade

determinada (tais como verdes, azuis ou árvores) que entram

em uma variedade de ocasiões, e não em determinadas relações

entre tais entidades. Há, contudo, uma limitação a ser feita na generalidade

da matemática; é uma qualificação que se aplica igualmente a todas as afirmações. Com uma só exceção, nenhuma afirmação

pode ser feita a respeito de qualquer circunstância remota que não entre em nenhuma relação com a circunstância imediata,

de modo a formar um elemento constitutivo da essência dessa

condição imediata. Por "circunstância imediata" entendo aque­

la circunstância que inclui, como ingrediente, o ato individual

do julgamento em questão. A afirmação excetuada é a seguinte: se há alguma coisa fora da relação, existe completa ignorância a seu respeito. Por "ignorância" entendo aqui ignorância. Com

isso, nenhum conselho pode ser dado quanto ao modo de es­perar tal coisa ou de tratá-la, na "prática" ou de qualquer outro modo. Ou sabemos algo da circunstância remota pela cognição de que ela mesma é um elemento da circunstância imediata ou não sabemos nada. Assim, todo O universo, aberto a todas

as variedades de experiências, é um universo em que todos os

detalhes entram em suas próprias relações com a circunstância

imediata. A generalidade da matemática é a mais completa ge­

neralidade consistente na comunidade de ocasiões a qual cons­

titui nossa situação metafísica. Deve-se notar, ademais, que as entidades determinadas

requerem essas condições gerais para ingressarem em qualquer

circunstância, mas as mesmas condições gerais podem ser re­

queridas por muitos tipos de entidades determinadas. Esse fato de que as condições gerais transcendem qualquer conjunto de entidades determinadas é o fundamento para a inclusão na ma­temática e na lógica matemática da noção de "variável". É pelo

1 42 1

I A CI~NCIA E O MUNDO MODERNO I

emprego dessa noção que as condições gerais são investigadas

sem nenhuma especificação de entidades determinadas. Essa irrelevância das entidades determinadas não tem sido ampla­

mente compreendida: por exemplo, a propriedade de ter forma das formas, como a circularidade, a esfericidade, a cubicidade,

como na experiência real, não entra no raciocínio geométrico.

O exercício do raciocínio lógico sempre diz respeito a es- ,~

sas condições absolutamente gerais. No mais amplo sentido, ° descobrimento da matemática é o descobrimento de que todas

essas condições abstratas, que são concorrentemente aplicáveis

às relações entre as entidades em qualquer circunstância con­

creta, são por seu turno correlacionadas entre si à maneira de

um modelo para o qual há uma chave. Esse modelo de relações entre condições abstratas é igualmente imposto sobre a reali­

dade exterior e sobre a representação abstrata que temos dela, pela necessidade geral de que todas as coisas devam ser exata­

mente a sua própria individualidade, com a sua própria manei-

ra de diferir de tudo mais. Isso é nada mais que a necessidade da lógica abstrata, que é o pressuposto implícito no próprio fato da existência inter-relacionada, como se desdobra em cada

circunstância imediata de experiência.

A chave para O modelo significa este fato: que de um conjunto seleto daquelas condições gerais, exemplificadas em

qualquer e na mesma circunstância, um modelo compreen­

dendo uma variedade infinita de outras condições semelhan­

tes, também exemplificadas na mesma circunstância, pode ser

desenvolvido pelo simples exercicio da lógica abstrata. Cada

tal conjunto selecionado chama-se conjunto de postulados, ou

premissas, dos quais o raciocínio procede. O raciocínio não é

nada mais do que a apresentação de todo o modelo de condi­ções gerais implícitas no modelo derivado dos postulados sele­cionados.

A harmonia do raciocínio lógico, que faz conjecturar o

modelo completo como incluído nos postulados, é a proprieda­de estética mais geral resultante do simples fato da existência

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I ALFRED NORTH WH1TEHEAD I

concorrente na unidade de uma circunstância. Em qualquer parte em que há unidade de circunstância há, pois, uma rela­ção estética estabelecida entre as condições gerais implícitas nessa circunstância. Essa relação estética é que é conjecturada no exercício da racionalidade. Tudo quanto acontece nessa rela­ção é, portanto, exemplificado nessa circunstância; tudo quanto acontece sem essa relação é, portanto, excluído da exemplifica­

ção nessa circunstância. O completo modelo das condições ge­

rais, assim exemplificadas, é determinado por qualquer desses muitos conjuntos selecionados dessas condições. Esses conjun­tos de caminhos são conjuntos de postulados equivalentes. Essa

harmonia razoável do ser, exigida para a unidade da ci~;" tância completa, juntamente com o acabamento da realização ( nessa circunstância) de tudo quanto está incluído nessa har­monia lógica, é o artigo primeiro da doutrina metafísica. Isso significa que o fato de as coisas estarem juntas implica que elas estão razoavelmente juntas. Isso significa que o pensamento pode penetrar em todas as circunstâncias do fato, de sorte que, pela compreensão das chaves de sua condição, todo o comple­xo do seu modelo de condições acha-se manifesto perante ele. Daí, dado que conheçamos algo que seja perfeitamente geral

com respeito aos elementos em qualquer circunstância, pode­mos então conhecer um número infinito de outros idênticos gerais que também devem ser exemplificados nessa mesma cir­

cunstância. A harmonia lógica incluída na unidade de cada cir­cunstância é ao mesmo tempo exclusiva e inclusiva. A circuns­

tância deve excluir a desarmonia e deve incluir a harmonia. Pitágoras foi o primeiro homem que captou todo o al­

cance desse princípio geral. Viveu no século VI a.c. O nosso

conhecimento dele é fragmentário. Mas conhecemos alguns pontos que lhe marcam a grandeza na história do pensamen­to. Insistia na importância da predominante generalidade no raciocínio e intuiu a importância do número como auxílio na construção de qualquer representaÇão das condições incluídas na ordem da natureza. Também sabemos que estudou geome-

144 1

1 A Cl~NC1A E O MUNDO MODERNO 1

tria e descobriu a prova geral do notável teorema dos triângulos retângulos. A formação da Fraternidade Pitagórica e os miste­riosos rumores sobre os seus ritos e influência constituem prova de que Pitágoras entreviu, ainda que obscuramente, a possível importância da matemática na formação da ciência. Quanto à

filosofia, descobriu uma discussão que desde então agitou os pensadores. Questionou: "Qual é o status das entidades mate- "

máticas, COmo o número, por exemplo, no domínio das coísas?".

O número "dois", por exemplo, é, em muitos sentidos, livre do fluxo de tempo e da necessidade de posição no espaço. Mesmo assím, está contido no mundo real. As mesmas consíderações

aplicam-se às noções geométricas, à forma circular, por exem­plo. Dízem que Pítágoras ensinou que as entidades matemáti­cas, como número e volume, eram a matéria última Com que

são construídas as entidades reais da nossa experiência percep­tiva. Apresentada assim simploriamente, a idéia parece ele­mentar e verdadeiramente tola. Mas, inegavelmente, Pitágoras encontrou uma noção filosófica de considerável importância; uma noção que tem uma longa história e que moveu o espírito do homem, e ainda entrou na teologia cristã. Cerca de mil anos separam Pitágoras do Credo de Atanásio, e cerca de dois mil e quatrocentos anos separam Pitágoras de Hegel. Mesmo assim, para todas essas distâncias no tempo, a importância do número

na constituição da Natureza Divina e o conceito do mundo real como apresentando a evolução de uma idéia podem ambos ir

buscar a sua origem na marcha de raciocínio estabelecido por Pitágoras.

A importância de um pensador individual deve alguma

coisa ao acaso, pois dele depende o destino das suas idéias no espírito dos sucessores. A esse respeito Pitágoras foi feliz. As suas especulações filosóficas chegaram até nós por meio do es­pírito de Platão. O mundo das idéias de Platâo é a requinta­da e revista doutrina pitagórica de que o número está na base do mundo real. Em razão de o sistema grego representar os números por meio de caracteres fixos, as noções de número

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I ALFRED NDRTH WH1TEHEAD 1

e de configuração geométrica são menos separadas que entre nós. Também Pitágoras, sem dúvida, incluiu a propriedade de

ter forma da forma, que é uma entidade matemática impura. Assim, hoje, Einstein e seus adeptos, proclamando que fatos físicos, como a gravitação, devem ser construídos como repre­sentações de peculiaridades locais de propriedades espaciais e temporais, estão seguindo a tradição pitagórica pura. Em cer­

to sentido, Pitágoras e Platão aproximam-se da física moder­

na mais do que Aristóteles. Os primeiros são matemáticos, ao

passo que Aristóteles era filho de um médico, sem que por isso fosse um ignorante em matemática. O conselho prático que se deve tirar de Pitágoras é medir e assim expressar qualidades em termos de quantidade numericamente determinada. Mas as ciências, desde então até hoje, têm sido preponderantemen­te classificadoras. Em vista disso, Aristóteles, com a sua lógica, insistiu na classificação. A popularidade da lógica aristotélica retardou o adiantamento das ciências físicas durante a Idade Média. Se os eruditos apenas tivessem medido, em vez de clas­sificarem, quanto poderiam ter aprendido'

A classificação é um meio caminho entre a concreção imediata da coisa e a completa abstração das noções matemáti­cas. As espécies levam em conta o caráter específico; enquanto os gêneros, o caráter genérico. Mas no processo de relacionar

noções matemáticas com os fatos da natureza - por contagem, medição, relações geométricas ou tipos de ordem -, a contem­plação racíonal eleva-se das abstrações incompletas, íncluídas

em espécies e gêneros definidos, para a completa abstração da

matemática. A classificação é necessária. Mas, a menos que se queira progredir da classificação para a matemática, não se irá muito longe com o raciocinio.

Entre as épocas que se estendem de Pitágoras a Platão e a compreendida no século XVII do mundo moderno, quase dois mil anos se escoam. E nesse longo período a matemática deu largos passos. A geometria alcançou o estudo das seções cônicas e a trigonometria; o método da exaustão, que prova a igualdade

146 1

I A ,CIl~NCIA E O MUNDO MODERNO I

. entre duas grandezas, quase tinha antecipado o cálculo integral; e sobretudo a noção aritmética árabe e a álgebra foram a con­tribuição do pensamento asiático. Mas o progresso estava no domínio técnico. A matemática, como elemento formativo no desenvolvimento da filosofia, durante esse longo periodo nunca se refez do influxo de Aristóteles. Algumas das antigas idéias de­rivadas da época pitagórico-platônica permaneceram e podem,"

ser apontadas entre as influências platônicas que formaram O

primeiro período da evolução da teologia cristã. Mas a filosofia

não recebeu nenhuma inspiração nova do seguro adiantamento da ciência matemática. No século XVII a influência de Aris­tóteles era mínima, e a matemática recuperou a importância do seu período prímitivo. Foi uma época de grandes fisicos e de grandes filósofos; e os físicos e os filósofos eram igualmente matemáticos. Deve-se fazer exceção a John Locke. No entanto ele era muito influenciado pelo grupo newtoniano da Socieda­

de Real. No tempo de Galileu, Descartes, Spinoza, Newton e Leibniz, a matemática tinha uma influência da mais alta magni­tude na formação das idéias filosóficas. Mas a matemática, que

então atingiu a preeminência, era uma ciência muito diferente da matemática da época primitiva. Ganhara em generalidade e começara a sua quase incrível carreira moderna de amonto­ar sutilezas sobre sutilezas e de encontrar, com cada aumento

de complexidade, alguma aplicação nova, ora à ciência física, ora ao pensamento filosófico. Os algarismos arábicos muniram

a ciência de uma eficiência técnica quase perfeita no manejo dos números. O alívio da luta com detalhes aritméticos (haja

vista, por exemplo, a aritmética de 1600 a. C) deu lugar a um desenvolvimento que já se antecipava timidamente na primi­

tiva matemática dos gregos. A álgebra veio agora para a cena, e ela é uma generalização da aritmética. Do mesmo modo que a noção de número é abstraída da referência a qualquer conjunto de entidades, em álgebra faz-se a abstração da noção de quais­quer números determinados. Exatamente como o número "5" refere-se imparcialmente a qualquer grupo de cinco entidades,

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

assim em álgebra as letras são usadas em referência a qualquer número, com a condição de que cada letra refira-se ao mesmo número através do mesmo contexto em que seja empregada.

Esse uso foi primeiro empregado em equações, que são métodos de propor questões aritméticas complicadas. Nes­sa conexão, as letras que representam números são chamadas "incógnitas". Mas logo as equações sugeriram uma nova idéia,

isto é, a de função de um ou mais símbolos gerais, sendo esses símbolos qualquer letra representando qualquer número. Nes­

se emprego as letras algébricas são chamadas "argumentos" da função, ou algumas vezes "variáveis". Assim, se um ângulo é representado por uma letra algébrica como sendo a sua medida numérica, em termos de uma unidade dada, a trigonometria é absorvida nessa nova álgebra. Desse modo, a álgebra desenvol­ve-se dentro da ciência geral da análise em que consíderamos as propriedades das várias funções de argumentos indetermi­nados. Finalmente, as funções determinadas - tais como as funções trigonométricas, as funções logarítmicas e as funções algébricas - são generalizadas na idéia de "qualquer função". Generalizações assim tão amplas levam a mera esterilidade. É

a ampla generalização, limitada por uma apropriada particu­laridade, que constitui a concepção fecunda. Por exemplo, a idéia de qualquer função "contínua", por onde a limitação de continuidade é introduzida, é a idéia fecunda que leva à mais

importante das aplicações. Esse aparecimento da análise algé­brica colaborou com o descobrimento da geometria analitica

por Descartes e depois com a invenção do Cálculo infinitesimal

por Newton e Leibniz. Verdadeiramente, Pitágoras, se pudesse prever o resultado da marcha do pensamento que estabeleceu,

se sentiria completamente justificado na sua fraternidade com a exaltação, operada por ela, dos ritos misteriosos.

O ponto que agora pretendo destacar é que esse predomí­nio da idéia de funcionalidade na esfera abstrata da matemática reflete-se na ordem da natureza à guisa de leis da natureza ex­pressas matematicamente. Sem esse progresso da matemâtica,

14 81

,

I A CII:.NCtA E o MUNDO MODERNO I

o desenvolvimento da ciência no século XVII teria sido im­possível. A matemática fornece a base do pensamento criador com o qual os homens da ciência aproximam-se da observação da natureza. Galileu produziu fórmulas; Descartes produziu fórmulas; Huyghens produziu fórmulas; Newton produziu fór­mulas.

Como um exemplo especial do efeito do desenvolvimen"

to da matemática na ciência daquele período, consideremos a

noção de periodicidade. As repetições gerais das coisas são ób­vias em nossa experiência diâria. Os dias se repetem, as fases lunares se repetem, as ·estações do ano se repetem, os corpos

que giram voltam à sua posição antiga, as pulsações do coração se repetem, a respiração se repete. Em todo lugar encontramos a repetição. Se puséssemos à parte a repetição, o conhecimento

seria impossível; porque nada poderia relacionar-se com a sua experiência passada. Também, pondo à parte certa regularidade

da repetição, a medição seria impossível. Em nossa experiência, quando conquistamos a idéia de exatidão, a repetição toma-se fundamental.

Nos séculos XVI e XVII, a teoria da periodicidade ocu­pou lugar fundamental na ciência. Kepler descobriu uma lei que estabelece conexão entre os eixos maiores das órbitas pla­netârias com os períodos em que os respectivos planetas des­

crevem a sua órbita; Galüeu observou a vibração periódica do pêndulo; Newton explicou o som como devido à agitação do

ar pela passagem por ele de ondas perdidas de condensação e rarefação; Huyghens explicou a luz como O resultado de ondas

inclinadas de vibração de um éter sutil; Mersenne relacionou o período da vibração da corda do violino com a sua densidade,

tensão e comprimento. O nascimento da física moderna de­pendeu da aplicação da idéia abstrata de periodicidade a uma variedade de exemplos complexos. Mas isso teria sido impossí­vel, caso os matemáticos não tivessem lidado de modo abstrato com as idéias abstratas que encerram a noção de periodicidade. A ciência da trigonometria partiu da relação dos ângulos de um

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I ALFRED NORTH WH1TEHEAD I

triângulo retângulo e chegou à razão entre os lados do triângulo e a sua hipotenusa. Então, sob a influência da recém-descoberta ciência matemática da análise das funções, estendeu-se ao es­tudo das simples e abstratas funções periódicas, que essa razão exemplifica. Assim, a trigonometria tomou-se completamente abstrata; e, tomando-se abstrata, tornou-se útil. Iluminou a ana­logia estabelecida entre conjuntos de fenômenos fisicos total­

mente diferentes; e ao mesmo tempo forneceu os meios pelos quais qualquer um de tais conjuntos pudesse ter as suas várias partes analisadas e relacionadas entre si.'

Nada é mais impressionante do que o fato de que, à me­dida que a matemática se retirou para as mais altas regiões do pensamento abstrato, voltou à terra com um correspondente aumento de importância para a análise dos fatos concretos. A história da ciência do século XVII ensina como, entretanto, ela foi um certo sonho brilhante de Platão ou de Pitágoras. Quanto a essa característica, o século XVII foí apenas o precursor de seus sucessores.

Está agora inteiramente estabelecido o paradoxo de que as maiores abstrações são os verdadeiros elementos com os quais controlamos o pensamento dos fatos concretos. Como resulta­do da preeminência dos matemáticos no século XVII, o sécu­lo XVIII teve a mentalidade matemática, mais especialmente onde predominou a influência francesa. Constitui exceção o empirismo inglês derivado de Locke. Fora da França, a influên­cia direta de Newton sobre a filosofia é mais bem percebida em

Kant, e não em Hume. No século XIX, a influência geral da matemática decaiu.

O movimento romântico em literatura e o movimento idealista em filosofia não foram produto de mentalidades matemáticas.

Mesmo na ciência, o desenvolvimento da geologia e da zoo-

I Para uma mais detalhada consideração da natureza e da função da matemática pura, confira minha obra Introduction to Mathematics, Home University Library, Williams and Norgate, London,

150 I

..

I A C1~NCIA E O MUNDO MODERNO I

logia e das ciências biológicas em geral não tinha em nenhum caso conexão alguma com a matemática. A principal fascina­ção cientifica do século foi a teoria da evolução de Darwin. Por isso os matemáticos estavam em segundo plano no que se refere ao pensamento dessa época. Mas não quer isso dizer que a matemática tenha sido negligenciada e que não tenha exercido influência. Durante o século XIX, a matemática teve um progresso quase tão grande como nOS séculos precedentes

a partir de Pitágoras. Naturalmente o progresso era mais fácil, pois a técnica fora aperfeiçoada. Mesmo assim, a transformação da matemática entre os anos 1800 e 1900 é muito considerá­

vel. Se acrescentarmos os precedentes cem anos e tomarmos os dois séculos que precedem o tempo atual, seremos tentados a datar a fundação da matemática de um dos anos do último quartel do século XVII. O período do descobrimento dos ele­mentos estende-se de Pitágoras a Descartes, Newton e Leibniz, e a ciência desenvolvida foi criada durante esses últimos duzen­tos e cinqüenta anos. Isso não é um louvor do gênio superior do mundo moderno, pois é mais dificultoso descobrir os elemen­

tos do que desenvolver a ciência. Através do século XIX, a influência da ciência agiu sobre

a mecânica e a física, e por isso derivadamente sobre a enge­nharia e a quimica. É difícil avaliar-lhe a influência direta na

vida humana por intermédio dessas ciências. Mas não há ne­nhuma influência direta da matemática sobre o pensamento

geral da época. Revendo esse breve esboço da influência da matemáti­

ca no pensamento europeu, vemos que houve dois períodos de influência direta sobre o pensamento geral e que ambos duraram cerca de duzentos anos. O primeiro período é o que se estende de Pitágoras a Platão, quando a pOSSibilidade da ciência e o seu caráter geral alvoreceu entre os pensadores gre­gos. O segundo período compreende os séculos XVII e XVIII da nossa era. Ambos os períodos têm algumas características comuns. Tanto no primeiro como no segundo, as categorias

I 51 I

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

gerais do pensamento em muitas esferas do interesse humano achavam-se em estado de desintegração. Na época de Pitágo­ras, o paganismo inconsciente, com a sua tradicional roupagem de ritual maravilhoso e ritos mágicos, passava para uma nova fase sob duas influências. Havia ondas de entusiasmo religioso,

procurando iluminação direta nas profundezas secretas do ser; e, no pólo oposto, notava-se o despertar do pensamento crítico

e analítico, provando com desapaixonada frieza os últimos sig­

nificados. Em ambas as influências, tão diversas nos seus resul­tados, há um elemento comum - uma incitante curiosidade e um movimento pela reconstrução dos moldes tradicionais. O

misticismo pagão pode ser comparado com a reação puritana e a reação católica; o crítico interesse científico era semelhante em ambas as épocas, embora com mínimas diferenças de im­portância substancial.

Em cada época, os primeiros estágios eram situados em periodos de crescente prosperidade e de novas oportunidades. A esse respeito diferem do periodo de gradual decadência no segundo e no terceiro século, quando o cristianismo estava pro­gredindo na conquista do mundo romano. Foi tão-só em um periodo, afortunado tanto nas oportunidades para se esquivar à pressão das circunstâncias como na aguda curiosidade, que o

Espírito da Época pôde empreender alguma revisão direta da­quelas abstrações finais que jazem ocultas nos mais concretos conceitos nos quais se inicia o sério pensamento de uma época.

Nos raros períodos em que essa tarefa pode ser empreendida, a matemática torna-se importante para a filosofia, pois a mate­

mática é a ciência da mais completa abstração que o espirito humano pode atingir.

O paralelo entre as duas épocas não deve ser exagerado. O mundo moderno é mais amplo e mais complexo do que a ci­vilização antiga em torno da costa do Mediterrâneo, ou mesmo do que a da Europa que enviou Colombo e os Pilgrim Fathers [colonos puritanos que fundaram comunidades na Nova Ingla­terra] através dos mares. Não podemos agora explicar a nossa

I 52 I

I A CI~NCIA E O MUNDO MODERNO I

época por uma fórmula simples que se torna predominante e que depois será posta de lado por milhares de anos. Assim, a submersão temporária da mentalidade matemática de Rous­seau em diante parece que já chegou ao seu fim. Estamos en­trando em uma idade de reconstrução do pensamento religioso,

cientifico e político. Quanto a essas épocas, se se deve evitar mera oscilação ignorante entre os extremos, deve-se também

procurar a verdade na sua profundeza. Não pode haver nenhu­

ma visão dessa profundeza da verdade se pusermos à parte a filosofia que toma em conta aquelas últimas abstrações, cujas

correlações compete à matemática explorar. Para explicar a importância que a matemática adquiriu no

tempo atual, vamos começar de uma perplexidade cientifica especial e considerar as noções às quais somos naturalmente levados por algumas tentativas para elucidar essas dificuldades. Na atualidade, a física está preocupada com a teoria do quan­

tum. Não preciso agora explicar2 o que é essa teoria, aos ainda não familiarizados com ela. Mas o ponto é que uma das mais

esperançosas linhas da explicação é afirmar que um elétron não percorre de modo continuo sua órbita no espaço. A noção alter­

nativa, quanto ao seu modo de existência, é que ele aparece em uma série de distintas posições no espaço que ocupa por suces­sivas durações de tempo. É como se um automóvel, correndo na média de trinta quilômetros por hora ao longo de uma es­

trada, não percorresse a estrada continuamente, mas aparecesse sucessivamente nos marcos de cada quilômetro, permanecendo

em cada um durante dois minutos. Em primeiro lugar, exige-se puro uso técnico da mate­

mática para determinar se essa concepção de fato explica as

muitas caracteristicas da perplexidade na teoria do quantum.

Se a noção sobreviver ao teste, sem dúvida a física a adotará. Por enquanto a questão é puramente uma para a matemática e

2 Cf. capftulo VIII.

I 53 I

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

a física, de modo a estabelecer-se entre ambas as ciências sobre

a base dos cálculos matemáticos e das observações físicas.

Mas agora um problema é entregue aos filósofos. Essa existência descontínua no espaço, atribuída aos elétrons, é

muito diferente da existência contínua das entidades mate­

riais que habitualmente temos como óbvias. O elétron pare­

ce estar tomando de empréstimo o caráter que alguns povos

atribuiram aos Mahatmas do Tibete. Esses elétrons, com os correlativos prótons, são agora concebidos Como as entidades

fundamentais das quais são compostos os corpos materiais da

experiência comum. Com isso, se é lícita essa explicação, te­

mos de rever todas as nossas noções do caráter último da exis­

tência material. É que, quando penetramos nessas entidades últimas, manifesta-se essa inicial descontinuidade da existên­cia espacial.

Não há nenhuma dificuldade em explicar o paradoxo se consentimos em aplicar à imutável e indiferenciada duração

da matéria os mesmos princípios que aqueles agora aceitos por

som e luz. Uma nota que soa imutável é explicada como o re­sultado da vibração do ar; uma cor imutável é explicada como uma vibração no éter. Se explicarmos a imutável duração da

matéria com o mesmo princípio, conceberemos cada elemento

primordial como uma ondulação vibratória de uma energia ou atividade fundamental. Suponhamos que nos atemos à idéia física da energia. Então cada elemento primordial será um sis­

tema organizado de corrente vibratória de energia. Com isso

haverá um período definido associado a cada elemento. E den­tro desse período o sistema de corrente vibrará de um máximo

estacionário a outro máximo estacionário - ou, tomando uma

metáfora do movimento da maré, o sistema vibrará de uma

maré alta a outra maré alta. O sistema, formando um elemento primordial, não é nada em cada um dos instantes. Demanda o

seu período integral para se manifestar. De modo análogo, uma nota de música não é nada em um instante, pois também de­

manda o seu período integral para se manifestar.

I S4 I

I A CltNClA E O MUNDO MODERNO I

Assim, ao perguntarmos onde está o elemento primordial,

devemos deter-nos na sua posição média ao centro de cada pe­

ríodo. Se dividirmos o tempo nos mais pequenos elementos, o

sistema vibratório como uma entiçlade eletrônica não terá exis­

tência. O caminho no espaço de tal entidade vibratória - onde

a entidade é constituída por vibração - deve ser representado por uma série de destacadas posições no espaço, analogamente .~

ao automóvel que é encontrado nos sucessivos marcos e em nenhum lugar entre dois deles.

Devemos primeiro perguntar se há alguma evidência para

associar a teoria do quantum com a vibração. Essa pergunta é

imediatamente respondida de modo afirmativo. Toda a teoria concentra-se em torno da energia irradiante partindo de um

átomo e está intimamente associada com os periodos do sis­

tema de ondas irradiantes. Parece, portanto, que a hipótese da existência vibratória essencial é o mais esperançoso meio de

explicar o paradoxo da órbita descontinua. Em segundo lugar, um novo problema é agora proposto

aos filósofos e aos físicos, se mantivermos a hipótese de que os últimos elementos da matéria são em essência vibratórios.

Quero com isso dizer que, se um sistema não fosse periódico,

tal elemento não teria existência. Com essa hipótese ternos de

indagar quais são os ingredientes que formam o organismo vi­

bratório. Já nos libertamos da matéria com sua aparência de

duração indiferenciada. Se pusermos à parte alguma exigência

metafísica, não há razão para procurar um tecido mais sutil

para substituir a matéria que acaba de ser explicada. Abre-se

agora o campo à introdução de uma nova teoria do organismo

que possa substituir o materialismo com o qual desde o sécu­lo XVII a ciência sobrecarregou a filosofia. Deve ser lembrado que a energia dos físicos é manifestamente uma abstração. O fato concreto, que é o organismo, deve ser uma expressão com­

pleta do caráter de uma ocorrência real. Tal deslocamento do materialismo científico, se ocorrer, não pode deixar de ter im­

portantes conseqüências em todas as esferas do pensamento.

I SS I

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

Finalmente, nossa última reflexão deve ser que no fim te­

mos de voltar a uma versão da doutrina do velho Pitágoras, de quem a matemática e a física matemática tomaram a sua ori­

gem. Ele descobriu a importância de lidar com as abstrações; e particularmente dirigiu a atenção para o número enquanto este

caracteriza as periodicidades das notas musicais. A importância

da idéia abstrata da periodicidade estava assim presente no pró­

prio início tanto da matemática como da filosofia européia.

No século XVII, o nascimento da ciência moderna de­mandava uma nova matemática, mais plenamente equipada

para o propósito de analisar as características da existência vi­

bratória. E agora no século XX encontramos os físicos empe­nhados a fundo em analisar as periodicidades dos átomos. Na verdade, Pitágoras, criando a filosofia e a matemática européias, dotou-as das mais venturosas hipóteses dentre as venturosas

- ou seria um clarão do gênio divino a penetrar no mais íntimo

da natureza das coisas?

I 56 I

I CAP[TULO 111 I

O SÉCULO DO GÊNIO

Os capítulos precedentes foram dedicados às condições antecedentes que preparam o terreno para a irrupção cientifica do século XVII. Apontaram os vários elementos do pensamen­to e da crença instintiva, desde o seu primeiro desabrochar na civilização clássica do mundo antigo, através das transforma­ções por que passaram na Idade Média, até a revolta cientifica do século XVI. Três fatores principais chamaram a atenção: o aparecimento da matemática, a crença instintiva em uma or­

dem detalhada da natureza e o desenfreado racionalismo do pensamento da alta Idade Média. Por esse racionalismo enten­do que o caminho para a verdade estendia-se predominante­mente através da análise metafísica da natureza das coisas, que

determinaria, portanto, corno as coisas atuavam e funcionavam.

A reviravolta histórica foi o abandono definitivo desse méto­do em favor do estudo dos fatos empiricos de antecedentes e

conseqüentes. Em religião, isso significava apelo às origens do cristianismo, e em ciência apelo à experimentação e ao método

indutivo do raciocínio.

Uma breve e cuidadosa descrição da vida intelectual dos povos europeus durante duzentos e cinqüenta anos desde en­

tão até o nosso tempo mostra que vinham vivendo do conjunto de idéias acumulado que lhes proporcionou o gênio do século XVII. Os homens dessa época herdaram uma agitação de idéias implícitas na reviravolta científica do século XVI, e legaram sis­temas de pensamento constituídos relativos a todos os aspectos

1571

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.1

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I ALfRED NORTH WHITEHEAD I

da vida humana. Esse foi o século que, consistentemente e em

todas as esferas da atividade humana, proporcionou o gênio in­telectual adequado à grandeza de suas circunstâncias. A densi­dade desses cem anos é indicada pelas coincidências que apare­

cem em seus anais literários. No seu alvorecer, o Advancement

of Learning [Progresso do saber), de Bacon, e o Dom Quixote,

de Cervantes, foram publicados no mesmo ano (1605), como

se a época se tivesse inaugurado com um olhar para trás e outro para a frente. A primeira edição em livro de Hamlet apareceu

no ano anterior, e uma edição ligeiramente diferente no mesmo ano. Finalmente, Shakespeare e Cervantes morreram no mes­mo dia, 23 de abril de 1616. Na primavera desse ano, acredita­se que Harvey expôs pela primeira vez sua teoria da circulação do sangue, em uma seqüência de conferências na Faculdade de

Medicina de Londres. Newton nasceu no ano em que morreu Galileu (1642), exatamente cem anos após a publicação de De

Revolutionibus, de Copérnico. Um ano antes Descartes publi­cara Meditationes e dois anos mais tarde Principia Philosophiae.

Simplesmente não havia tempo para o século delongar mais brilhantemente os seus notáveis acontecimentos concernentes aos homens de gênio.

Não posso agora relatar todos os diversos estágios do pro­

gresso intelectual dessa época. Seria algo demasiado extenso para um capítulo e obscureceria as idéias que tenho o objetivo de desenvolver. Um mero catálogo em linhas gerais de alguns

nomes será suficiente, nomes de homens que divulgaram para

o mundo nessa época os seus trabalhos: Francis Bacon, Harvey, Kepler, Galileu, Descartes, Pascal, Huyghens, Boyle, Newton,

Locke, Spinoza e Leibniz. Limitei a lista ao sagrado número de doze, um número pequeno deles para ser repr~sentativo. Por exemplo, há um só italiano no elenco, e no entanto a Itália poderia encher a lista a partir de suas próprias fileiras. Há um só biólogo, e também há muitos ingleses. Este último defeito é parte devido ao fato de o autor ser inglês e de estar dirigindo-se a um público ao qual, da mesma forma que a ele, reconhece esse

I S8 I

,

I A CI~NCIA E o MUNDO MODERNO I

século inglês. Se ele fosse holandês, haveria muitos holandeses; se italiano, haveria muitos italianos; se francês, muitos france­ses. A infeliz Guerra dos Trinta Anos devastou a Alemanha; mas

todos os demais países voltam-se para esse século como uma época que testemunhou certo auge do seu gênio. Certamente foi esse um grande período do pensamento inglês, tanto quanto mais tarde Voltaire influenciou a França. .'

A omissão de outros fisiologistas que não Harvey também requer explicação. Houve, evidentemente, grandes progressos na biologia nesse século, principalmente associados à Itália e à

Universidade de Pádua. Mas o meu propósito é traçar a visão filosófica derivada da ciência e pressuposta pela ciência, e ava­liar alguns dos seus efeitos no clima geral de cada época; ora, a filosofia cientifica desse período esteve dominada pela física, de modo a tomar-se a mais clara manifestação, em termos de idéias gerais, do estado de conhecimentos físicos dessa época e

dos dois séculos posteriores. Realmente, esses conceitos eram impróprios para a bíologia, e a ela apresentam um problema

insolúvel de matéria, vida e organismo, com o qual os biólogos agora lutam. Mas a ciência dos organismos vivos só agora se encaminha para um desenvolvimento adequado para imprimir as suas concepções na filosofia. Os últimos cinqüenta anos de nossa época testemunharam tentativas fracassadas de infundir

noções biológicas no materialismo do século XVII. Por mais que esse sucesso seja considerado, é certo que as idéias básicas

do século XVII derivaram da escola de pensamento que pro­

duziu Galileu, Huyghens e Newton, e não dos fisiologistas de Pádua. Um problema pendente do pensamento, na medida em

que deriva desse período, deve ser formulado assim: dadas as configurações da matéria com movimento no espaço, conforme determinadas pelas leis físicas, explicar os organismos vivos.

Minha discussão da época seria mais adequadamente apresentada com uma citação de Francis Bacon que constitui o início da Seção (ou "Século") IX de sua História natural, isto é, a Silva Silvarum. Somos informados da memória contemporâ-

I S9 I

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

nea por seu capelão, Dr. Rawley, pois esse trabalho foi compos­to nos últimos cinco anos de sua vida, e assim deve ser datado do período entre 1620 e 1626. A citação é a seguinte:

t certo que todos os corpos, sejam quais forem, embora não

tenham sentido, têm percepção, pois, quando um corpo é

aplicado a outro, há uma espécie de eleição para aceitar o

que é agradável e excluir ou expelir o que é desagradável; e,

se o corpo for alterador ou alterado, sempre uma percepção

precede uma operação; é que, de outra forma, todos os cor­

pos poderiam ser semelhantes entre si. E às vezes essa per­

cepção, em alguns tipos de corpos, é muito mais aguda que

os sentidos; sendo assim, o sentido não é senão uma coisa

grosseira em comparação com ela; vemos que o barômetro

marca a menor diferença do calor ou do frio, ao passo que

nós não. E essa percepção se dá algumas vezes a distância

tão bem como se fosse pelo tato: como quando o ímã atrai

o ferro, ou a chama atrai o petróleo, de uma grande distân­

cia. Assunto da mais nobre indagação é, portanto, esse de

pesquisar as mais agudas percepções, pois é outra chave da

natureza tão boa como os sentidos. E algumas vezes melhor.

Além disso, é um meio principal de compreender a natureza,

pois ° que nessas percepções primeiro aparece nos grandes

efeitos vem muito depois.

Há muitos pontos interessantes nessa citação, alguns dos quais serão destacados nos próximos capítulos. Em primeiro

lugar, notem o cuidado com que Bacon discrimina entre "per­cepção" ou "tomar conhecimento de", de um lado, e os "senti­

dos" ou "experiência cognitiva" de outro. A esse respeito Bacon

está fora da linha física do pensamento que por fim dominou o século. Mais tarde, pensou-se na matéria passiva que era ma­

nipulada externamente pelas forças. Creio que a linha do pen­samento de Bacon expressou uma verdade mais fundamental do que os conceitos materialistas que então se formavam como adequados à física. Estamos agora tão acostumados com o modo materialista de considerar as coisas radicado em nossa literatura

160 I

1 A CI~NCIA E O MUNDO MODERNO 1

graças ao gênio do século XVIl, que não é sem dificuldade que compreendemos a possibilidade de outro modo de abordar os

problemas da natureza. No caso especial da citação que acabo de fazer, por todo

o trecho e por seu contexto perpassam sinais do método ex­perimentai, a saber, pela atenção prestada aos "fatos irreduti­veis e inflexíveis", e pelo método indutivo de extrair leis gerais. to

Outro problema insolúvel que nOS legou o século XVII é a

justificação racional desse método de indução. O reconheci­mento explícito da antitese entre o racionalismo indutivo dos escolásticos e do método indutivo de observação dos modernos

deve ser atribuído principalmente a Bacon, embora, natural­mente, estivesse implícito em Galileu e em todos os homens da ciência desse tempo. Mas Bacon era um dos mais antigos

de todo o grupo e também apreendia mais diretamente todo o alcance da reviravolta intelectual que estava acontecendo. O homem que mais completamente antecipou tanto Bacon como todo ponto de vista moderno foi talvez o artista Leonardo Da Vinci, que viveu quase exatamente um século antes de Bacon. Leonardo também ilustrou a teoria, que adiantei em meu úl­timo capítulo, de que o aparecimento da arte naturalista foi um importante ingrediente na formação da nossa mentalidade

cientifica. Realmente, Leonardo era um homem de ciência mais completo que Bacon. A prática da arte naturalista é mais próxi­ma da prática da fisica, da química e da biologia que a prática

do direito. Todos nos lembramos do dito do contemporâneo

de Bacon, Harvey, o descobridor da circulação do sangue, de que Bacon "escreveu sobre ciência como um Lorde Chanceler".

Mas, no principio dos tempos modernos, Da Vinci e Bacon se unem para ilustrar as várias correntes que se combinaram para

formar o mundo moderno: a mentalidade legal e os hábitos de paciente observação dos artistas naturalistas.

Na passagem que citei dos escritos de Bacon não há men­ção explícita do método indutivo de raciocínio. É desneces­sário para mim provar a vocês com citação que o reforço da

I 61 I

L.

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

importância desse método e do que significam os segredos da natureza a ser descobertos para o bem da humanidade é uma das coisas a que Bacon se consagrou em seus escritos. Ficou provado ser a indução um processo algo mais complexo do que o anunciou Bacon. Este tinha em mente que, com o suficiente cuidado na coleta dos exemplos, a lei geral por si mesma se imporia. Sabemos hoje, e provavelmente Harvey já sabia, que

se trata de uma apresentação muito inadequada dos processos

que aparecem nas generalizações cientificas. Mas, quando faze­mos todas as deduções exigidas, Bacon permanece como um dos grandes construtores da mentalidade do mundo moderno.

As principais dificuldades levantadas pela indução emer­gem no século XVIII como o resultado da crítica de Hume. Mas Bacon foi um dos profetas da reviravolta histórica que abandonou o método do racionalismo fechado e lançou-se ao outro extremo de basear todos os conhecimentos aproveita­dos sobre inferências tiradas de circunstâncias determinadas no passado para circunstãncias determinadas no futuro. Não quero lançar nenhuma dúvida sobre a validade da indução, quando devidamente observada. O ponto para mim é que a tarefa re­

almente frustrada de aplicar um raciocínio para extrair as ca­racterísticas gerais da circunstância imediata, posta perante nós em direta cognição, é uma preliminar necessária, se queremos justificar a indução; a não ser que, na verdade, nos contentemos com o vago instinto de que tudo está bem. Ou há alguma coisa

sobre a circunstância imediata que abrange o conhecimento do passado e do futuro, ou estamos reduzidos ao ceticismo em relação à memória e à indução. Nunca é demais frisar que a

chave para o processo da indução, conforme se usa tanto na ciência como na vida comum, será encontrada na compreen­são exata da circunstância imediata dos conhecimentos em sua concreção cabal. É a respeito da nossa apreensão do caráter das circunstâncias na sua concreção que o desenvolvimento moderno da fisiologia e da psicologia tem importãncia crítica. Ilustrarei esses pontos em meus próximos capítulos. Achamo-

I 62 I

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I A CI~NCIA E o MUNDO MODERNO 1

nos no meio de insolúveis dificuldades quando substituímos essa circunstância concreta por outra meramente abstrata na qual só consideramos objetos materiais em um movimento de configurações no tempo e no espaço. É bastante óbvío que tais objetos só nos podem dizer o que eles são onde estão.

Sendo assim, devemos recorrer ao método da teologia escolástica como a explicaram os medievalistas italianos que ,,~

citei no primeiro capítulo. Devemos observar a circunstância imediata e usar a razão para extrair uma descrição geral da sua natureza. A indução pressupõe a metafísica. Vocês não podem ter uma justificação racional para os seus apelos à história en­quanto a metafísica de vocês não lhes certificar que há uma história para a qual apelar. De modo análogo, as conjecturas de vocês para o futuro pressupõem alguma base do conhecimento de que há um futuro já submetido a algumas determinações. A dificuldade é encontrar o sentido de algumas dessas idéias. Mas se vocês não o fizerem, terão transformado a indução em tolice.

Vocês perceberão que não considerei a indução como

sendo em essência derivada de leis geraís. É o descobrimento de algumas características de um futuro determinado, partindo de algumas características conhecidas de um passado determi­nado. A mais ampla aceitação das leis gerais tidas por todas as circunstâncias cognosciveis faz aparecer um adendo realmente inseguro a esse conhecimento limitado. O máximo que se pode esperar da circunstância presente é que ela estabelecerá uma comunidade de circunstâncias determinadas que são a alguns

respeitos mutuamente qualificadas pela razão de serem incluí­das nessa mesma comunidade. Essa comunidade de circunstân­cias considerada na ciência física é o conjunto de conhecimen­tos feitos um para o outro - como se diz - em um espaço­tempo comum, de sorte que podemos indicar a transição de um para o outro. Assim, referimo-nos ao espaço-tempo comum indicado em nossa circunstância imediata de conhecimento. O raciocínio indutivo procede da circunstância determinada para

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

a comunidade de circunstâncias determinadas e da comunida­

de determinada para as relações entre as circunstâncias deter­

minadas incluídas nessa comunidade. Enquanto levarmos em

conta outros conceitos cientificos, é impossível levar a discussão

da indução além dessa conclusão preliminar.

O terceiro ponto a notar acerca dessa citação de Bacon é o caráter puramente qualitativo daquilo que afirmou. A esse

respeito Bacon omitiu inteiramente a tonalidade subjacente ao

sucesso da ciência do século XVII. A ciência estava tornando-se primordialmente quantitativa e assim permaneceu. Procurem

elementos mensuráveis entre os fenômenos e depois busquem

as relações entre essas medidas de quantidades físicas. Bacon despreza essa norma da ciência. Por exemplo, na citação fala de ação a distância; mas pensa qualitativamente e não quantitati­

vamente. Não cabe indagar se anteciparia seu contemporâneo

mais jovem, Galileu, ou seu distante sucessor, Newton. Mas

não deu indício de que se tratava de uma procura por quantida­de. Talvez fosse desviado pelas doutrinas lógicas correntes que

tinham vindo de Aristóteles, pois efetivamente essas doutrinas diziam ao físico "classifique", quando deveriam dizer "meça".

Mais para o final do século a física acabou sendo fundada sobre satisfatória base de medição. A última e adequada expo­sição foi dada por Newton. O elemento comum mensurável da "massa" foi discriminado como característica de todos os corpos

em diferentes grupos. Corpos que eram evidentemente idênti­

cos em substância, forma e tamanho têm aproximadamente a

mesma masSa: quanto mais estreita a identidade, mais próxima

a igualdade. A força atuante em um corpo, tanto pelo conta­

to como pela ação a distância, era [com efeito 1 definida como igual à massa do corpo multiplicada pela média da diferença de velocidade do corpo, até onde essa média de diferença é produ­zida por aquela força. Desse modo a força é encontrada por seu efeito no movimento do corpo. Surge agora a questão sobre se

essa concepção da importância da força leva ao descobrimen­to das simples leis quantitativas que envolvem a determinação

1641

I A Cl~NClA E O MUNDO MODERNO I

alternativa das forças pelas circunstâncias da configuração das

substâncias e de suas características físicas. A concepção newto­

niana alcançou êxito magnífico em sobreviver a essa experiên­

cia através de todo o período moderno. O seu primeiro triunfo

cumulativo foi o desenvolvimento da astronomia dinâmica, da

mecânica e da física.

Esse assunto da formação das três leis do movimento e

da lei da gravitação pede atenção crítica. O desenvolvimen­

to total do pensamento ocupa exatamente duas gerações. Co­meça com Galileu e termina com os Principia de Newton; e Newton nasceu no ano em que Galileu morreu. Também a vida

de Descartes e a de Huyghens aconteceram dentro do período ocupado por essas duas figuras-limite. O resultado dos com­binados esforços desses quatro homens tem algum direito de

ser considerado como a maior vitória singular da inteligência

que a humanidade realizou. Na estimativa de seu alcance, de­vemos considerar quanto é completa a sua combinação, que

construiu para nós uma visão completa do universo material e

habilitou-nos a calcular os mínimos detalhes de determinadas ocorrências. Galileu deu o primeiro passo, vislumbrando a linha

certa do pensamento. Notou que o ponto crítico em que se

devia atentar era, não o movimento dos corpos, mas a diferença

desses movimentos. O descobrimento de Galileu é formulado

por Newton na sua primeira lei do movimento: "Todo corpo

continua em estado de repouso ou de movimento uniforme

em linha reta, exceto quando possa ser impelido por forças a sair desse estado".

Essa fórmula contém o repúdio de uma crença que impe­diu por dois séculos o progresso da física. Também atinge um

conceito fundamental, essencial à teoria científica; refiro-me

ao conceito de um sistema idealmente ísolado. Essa concepção abrange um caráter fundamental das coisas, sem o qual seria

impossível a ciência ou de fato qualquer conhecimento por parte do intelecto finito. O sistema "isolado" não é um sistema solipsístico, fora do qual só haveria negação. É isolado dentro

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

do universo. Quer isso dizer que há verdades a respeito desse sistema que demandam referência apenas ao remanescente das coisas por meio de um uniforme e sistemático esquema de rela­ções. Assim, a concepção de sistema isolado é a concepção não de independência substancial do remanescente das coisas, mas

de liberdade da casual dependência contingente de pontos se­parados dentro do restante do universo. Além russo, essa liber­

dade de dependência casual só é exigida com respeito a algu­mas características abstratas que se prendem ao sistema isolado, e não com respeito ao sistema em toda a sua concreção.

A primeira lei indaga o que vem a ser um sistema isolado dinamicamente, no que se refere ao seu movimento como um todo, abstraindo-se de sua orientação e do arranjo interior das partes. Aristóteles disse que devemos conceber que tal sistema

estã em repouso. Galileu acrescentou que o estado de repouso é apenas um caso especial e que a verificação geral se dã "ou em estado de repouso ou em movimento uniforme em linha reta". De acordo com isso, um aristotélico conceberia as forças surgi­das das reações desse corpo estranho como quantitativamente mensuráveis em termos da velocidade que mantém, e como diretivamente determinada pela direção dessa velocidade, en­quanto Galileu dirigiria a atenção para a importância da ace­leração e sua direção. Essa diferença é exemplificada pelo con­

traste entre Kepler e Newton. Ambos especularam sobre como as forças mantinham os planetas em suas respectivas órbitas. Kepler buscava forças tangenciais que impelem os planetas, ao passo que Newton procurava a força das radiais que desviam a

direção do movimento dos planetas. Em vez de permanecermos no engano de Aristóteles, é

mais proveitoso acentuarmos a justificativa que ele tinha, se considerarmos os fatos óbvios da nossa experiência. Todos os movimentos que entram em nossa experiência diária cessam, salvo quando evidentemente sustentados de fora. Portanto, é

evidente que os empiristas totais deveriam dedicar a atenção a esse ponto de sustentação do movimento. Estamos diante

166 I I

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I A CI~NCIA E o MUNDO MODERNO I

aqui de um dos perigos do empirismo não imaginativo. O sé­culo XVII apresenta outro exemplo desse mesmo perigo; e entre tantos no mundo, Newton caiu nele. Huyghens tinha produzido a teoria ondulatória da luz. Mas essa teoria deixou de considerar os fatos mais óbvios em relação à luz como na experiência comum, isto é, as sombras produzidas por obje­tos que interceptam são definidas pelos raios retilineos. Assim,

Newton rejeitou essa teoria e adotou a teoria corpuscular, que explica completamente as sombras. Desde então ambas as teo­

rias têm tido o seu período de triunfo. No presente momento, o mundo cientifico anda à procura de uma combinação das duas. Esses exemplos ilustram o perigo de manter uma idéia porque deixa de explicar um dos fatos mais óbvios da matéria em questão. Se quiserem ter a mente voltada para a novidade do pensamento, durante a vida de vocês, terão de observar que quase todas as idéias novas têm ar de insensatez na sua primei­

ra apresentação. Voltando às leis do movimento, chama a atenção o fato de

que nenhuma explicação ocorreu no século XVII para distin­

guir a posição de Galileu da de Aristóteles. Foi um fato poste­rior. Quando no curso destes capítulos chegarmos ao período moderno, veremos que a teoria da relatividade lançou plena luz sobre essa questão; mas o fez só por um novo arranjo de todas as nossas idéias sobre tempo e espaço.

Coube a Newton dirigir a atenção para a massa como

quantidade inerente à natureza de um corpo material. A mas­sa continua permanente durante todas as mudanças do mo­vimento. Mas a prova da permanência da massa em meio às transformações quimicas teve de esperar por Lavoisier até um século depois. A subseqüente tarefa de Newton foi achar algu­ma estimativa para a importância da força estranha em termos da massa do corpo e da sua aceleração. Teve aqui um golpe de sorte, pois, do ponto de vista de um matemático, a mais sim­ples lei possível, isto é, o produto das duas, revelou-se bem-su­cedida. Novamente a moderna teoria da relatividade modifica

I 67 I

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

essa simplicidade extrema. Felizmente, porém, para a ciência, as delicadas experiências dos físicos de hoje não eram então

conhecidas, ou mesmo possíveis. Com isso, o mundo levou dois séculos para digerir as leis newtonianas sobre o movimento.

Olhando esse triunfo, será de admirar que os cientistas

depositem os seus últimos princípios sobre base materialista, e portanto cessem de cuidar da filosofia? Compreenderemos o

curso do pensamento se entendermos exatamente o que vem a

ser essa base e que dificuldades afinal implicam_ Quando criti­carmos a filosofia de uma época, não dirijamos principalmente

a nossa atenção para aquelas posições intelectuais que os seus expoentes acham necessário defender explicitamente. Haverá algumas afirmações fundamentais que os adeptos dos vários sistemas de cada época pressupõem inconscientemente. Tais

afirmações afiguram-se tão óbvias que a gente não sabe o que está afirmando, porque nenhum outro modo de apresentar as

coisas ocorreu. Com essas afinnações, é possível certo número de tipos de sistemas filosóficos, e esses grupos de sistemas cons­tituem a filosofia dessa época_

Tal afirmação delineia toda a filosofia da natureza nos

tempos modernos_ Está incorporada na concepção que acredita expor os mais concretos aspectos da natureza_ Os filósofos jôni­cos indagavam: De que é feita a natureza? A resposta é calcada

em termos de substância, matéria ou material - o nome es­colhido não importa -, que tem a propriedade de localização

simples no tempo e no espaço, ou, se adotarmos as mais mo­dernas idéias, em espaço-tempo_ O que entendo por matéria ou

material é o que tem a propriedade dessa "localização simples"_

Por localização simples entendo uma característica maior que se refere igualmente tanto ao espaço quanto ao tempo, e outras

características menores, diferentes quanto à diferença entre o tempo e o espaço_

A característica comum entre espaço e tempo é que se pode afirmar que a matéria está aqui no espaço e aqui no tem­po, ou, ainda, aqui no espaço-tempo em um perfeito sentido

1 68 I

1 A CI~NClA E o MUNDO MODERNO I

definido que não exige para a sua explicação referência a outra região do espaço-tempo. É bastante curioso que esse caráter de localização simples destaca-se quando consideramos uma re­gião do espaço-tempo determinada quer absolutamente, quer relativamente, pois, se uma região é meramente um meio de indicar certo conjunto de relações com outras entidades, então

essa característica, a que chamo localização simples, é que se ""

pode afirmar que o material pode ter só essa relação de posi­

ções com outras entidades, sem demandar para a sua explicação nenhuma referência a outras regiões constituídas por relações análogas de posições com as próprias entidades_ De fato, logo

que estabelecemos, e de qualquer maneira que o façamos, o que entendemos por uma colocação definida no espaço-tempo, podemos estabelecer adequadamente a relação de um grupo material determinado com o espaço-tempo, dizendo que só pode ser neste lugar; e, além do concernente à localização sim­ples, nada há mais que dizer a respeito do assunto_

Há, porém, algumas explicações subordinadas a serem feitas, as quais levam às características menores que mencionei. Primeiro, no que concerne ao tempo, se a matéria existiu duran­te algum periodo, teve existência durante alguma parte desse periodo_ Noutras palavras, dividir o tempo não divide a matéria_

Em segundo lugar, com respeito ao espaço, dividir o volume não é dividir o material. Assim, se a matéria existe através de um volume, haverá menos desse material distribuído a qual­

quer metade definida desse volume_ É dessa propriedade que

decorre a nossa noção de denSidade em um ponto do espaço_ Qualquer pessoa que fala sobre densidade não o faz assimilan­

do tempo e espaço até o ponto que desejam alguns relativistas extremados com muita precipitação_ Para a divisão das funções

do tempo, com respeito ao material, a coisa é completamente diferente do que se dá com a divisão do espaço_

Além disso, esse fato de que a matéria é indiferente para a divisão do tempo leva à conclusão de que o lapso de tempo é um acidente, mais que da essência, do material. O material

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

está completamente em qualquer subperíodo, por curto que seja. Assim, a transição do tempo nada tem a ver com o caráter

do material. O material é também igual em um instante do tempo. Aqui, um instante do tempo é concebido em si mesmo, sem transição, desde que a transição temporal seja a sucessão de instantes.

Por conseguinte, a resposta que o século XVII deu à per­

gunta dos ·pensadores jônicos sobre "De que era feita a nature­

za?" foi que o mundo é uma sucessão de configurações instan­

tâneas de matéria, ou de material, se quisermos incluir estofo mais sutil que a matéria comum, o éter, por exemplo.

Não nos podemos surpreender que a ciência ficasse satis­feita com essa afirmação quanto aos elementos fundamentais da natureza. As grandes forças da natureza como a gravitação foram inteiramente determinadas pelas configurações da mas­sa. Assim, as configurações determinaram as suas próprias mu­

danças, de modo que o círculo do pensamento cientifico foi completamente fechado. Essa é a famosa teoria mecanicista da

natureza, que reinou soberana durante todo o século XVII. É

o credo ortodoxo da ciência fisica. Além disso, o credo justifi­ca-se mediante a experiência pragmática. Ele funcionou. Os fisicos deixaram de se interessar pela filosofia. Enfatizaram O

anti-racionalismo na reviravolta histórica. Mas as dificuldades

dessa teoria do mecanicismo materialista muito cedo se tor­naram evidentes. A história do pensamento nos séculos XVIII

e XIX é governada pelo fato de que o mundo havia tomado posse de uma idéia geral que não podia viver nem com ela nem sem ela.

Bergson protestou contra essa localização simples das con­figurações da matéria, na medida em que ela conceme ao tem­

po e é tomada como o fato fundamental da natureza concreta. Bergson chama isso de um desvio da natureza, devido à "espe­cialização" intelectual das coisas. Concordo com Bergson em seu protesto, mas não concordo em que tal desvio seja um vício necessário à apreensão intelectual da natureza. Em capítulos a

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I A CI~NClA E o MUNDO MODERNO I

seguir empenhar-me-ei por mostrar que essa especialização é a expressão de fatos mais concretos sob o aspecto de construções lógicas deveras abstratas. Há um erro, mas é simplesmente o erro de tomar o abstrato pelo concreto. É um exemplo daquilo a que chamarei a "falácia da concreção deslocada". Essa falácia

é ocasião de grande confusão em filosofia. Não é necessário ao intelecto cair na armadilha, apesar de nesse exemplo ter havido "

manifesta tendência a fazê-lo. É evidente que o conceito de localização simples irá cons­

tituir grande dificuldade para a indução, pois, se na localização

de configurações da matéria ao longo de um lapso de tempo não há nenhuma referência inerente a qualquer outro tempo, passado ou futuro, segue-se imediatamente que a natureza dentro de um periodo não se refere à natureza em outro pe­ríodo. De acordo com isso, a indução não se baseia sobre algo que possa ser observado como inerente à natureza. Assim não podemos encarar a natureza como justificação de nossa crença em qualquer lei como a da gravitação. Em outras palavras, a ordem da natureza não pode ser justificada pela mera observa­ção da natureza. É que nada há no fato presente que se refira inerentemente ao passado ou ao futuro. Portanto, é como se tanto a memória quanto a indução devessem deixar de encon­

trar justificação na própria natureza. Estou antecipando a marcha do futuro pensamento e re­

petindo o argumento de Hume. Esse desenvolvimento do pen­

samento segue-se tão imediatamente da localização simples que não podemos esperar pelo século XVIII para o considerarmos.

A única surpresa é que o mundo esperasse de fato por Hume para notar a dificuldade. Também isso ilustra o anti-racionalis­

mo do público cientifico, cuja atenção só foi atraida pelo con­teúdo religioso da filosofia de Hume. Isso sucedeu porque o clero era, em princípio, racionalista, ao passo que os homens da ciência contentavam-se com uma fé simples na ordem da na­tureza. Nota o próprio Hume, sem dúvida com certo escárnio, que "nossa religião sagrada se funda na fé". Essa atitude satisfez

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

à Royal Society, mas não à Igreja. Satisfez também a Hume e

aos empiristas posteriores.

Há outro pressuposto de pensamento que coloco ao lado da teoria da localização simples. Refiro-me às duas categorias corre­lativas de substància e qualidade. Acontece, contudo, esta diferen­ça. Há distintas teorias quanto à adequada descrição de condição de espaço. Mas, qualquer que fosse sua condição, nInguém tinha

dúvida senão de que a conexão com o espaço verificada nas enti­

dades, que se diz estarem no espaço, fosse da localização simples.

Posso resumir tudo isso dizendo que era tacitamente aceito que o espaço é o lugar da localização simples. O que quer que esteja no espaço está simpliciter em alguma determinada porção do espaço. Mas, no que diz respeito à substáncia e à qualidade, os pensadores do século XVII andavam positivamente perplexos, embora, com o seu gênio usual, logo construíssem uma teoria adequada aos seus

propósitos imediatos.

Naturalmente, a substância e a qualidade, bem como a lo­calização simples, são as idéias mais naturais da mente humana.

É a maneira como pensamos e sem essa maneira de pensar não

podemos atingir nossas idéias adequadas ao uso diário. Não resta dúvida quanto a isso. A única questáo consiste em saber como

pensamos concretamente quando consideramos a natureza sob

essas concepções. Minha opinião é que nos apresentamos com

edições simplificadas dos fatos imediatos. Quando examinamos

os elementos primários dessas edições simplificadas, verificamos que na verdade eles só se justificam como elaboradas construções

lógicas de um alto grau de abstração. Evidentemente, como pon­

to de psicologia indiVidual, alcançamos essas idéias pelo método fácil e elementar de suprimir o que aparece a nós sem detalhes

irrelevantes. Mas, quando tentamos justificar essa supressão do irrelevante, verificamos que, embora haja entidades deixadas em correspondência com as de que falamos, também essas entidades têm um alto grau de abstração.

Assim, sustento que a substância e a qualidade propiciam outro tipo de falácia da concreção. Permitam-nos que conside-

172 I

,

I A CI~NClA E o MUNDO MODERNO I

remos como surge a noção de substancialidade. Observamos um objeto como uma entidade com determinadas caracterís­

ticas. Além disso, cada entidade individual é apreendida por meio de suas características. Por exemplo, observamos um corpo: notamos alguma coisa a seu respeito. Talvez seja duro,

azul, redondo e ruidoso. Observamos alguma coisa que possua essas qualidades; fora delas não observamos nada. Sendo assim,

a entidade é o substrato, ou a substáncia, do que qualificamos

de qualidades. Algumas das qualidades são essenciais, de modo que, se as puséssemos de parte, a entidade não existiria; enquan­

to outras qualidades são acidentais e mutáveis. Com respeito aos corpos materiais, a qualidade de ter uma massa quantitativa

e de localização simples em alguma parte foi considerada por John Locke, no fim do século XVII, como qualidades essenciais. Naturalmente, a localização era mutável, e a imutabilidade da massa era simplesmente um fato acidental, menos para certos

extremistas. Até aqui tudo bem. Mas quando passamos para o azul e

o ruidoso, temos de enfrentar uma nova situação. Em primeiro

lugar, o corpo pode não ser sempre azulou ruidoso. Já o admiti­mos em nossa teoria das qualidades acidentais, que no momen­

to aceitamos como adequada. Mas, em segundo lugar, o século XVII apresentou uma dificuldade real. Os grandes físicos ela­boraram teorias sobre a transmissão da luz e do som, basea­

das na sua visão materialista da natureza. Havia duas hipóteses

quanto à luz: ou era transmitida pelas ondas vibratórias de um

éter materialístico, ou - segundo Newton - era transmitida

pelo movimento de corpúsculos incrivelmente diminutos de alguma matéria leve. Todos sabemos que a teoria ondulatória

de Huyghens ocupou o campo durante o século XIX, e presen­temente os físicos se esforçam por explicar algumas circuns­

tâncias obscuras atinentes à radiação, por uma combinação das

duas teorias. Mas, não importa qual seja a teoria escolhida, não

há luz nem cor como um fato na natureza externa. Há simples­

mente movimento de matéria. Igualmente, quando a luz entra

173 I

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

em nossos olhos e incide em nossa retina, há simplesmente mo­vimento de matéria. Então, os nervos e o cérebro são afetados, o que também é simplesmente movimento de matéria. A mesma linha de argumento aplica-se ao som, substituindo ondas do éter por ondas do ar, e olhos por ouvidos.

Então questionamos em que sentido o azul e o ruidoso são qualidades do corpo. Raciocinando de modo análogo, in­

dagamos em que sentido o perfume da rosa é uma qualidade dela.

Galileu considerou essa questão e logo indicou que, se puséssemos à parte olhos, ouvidos e nariz, não haveria nem cor, nem som, nem cheiro. Descartes e Locke elaboraram uma teo­ria de qualidades primárias e secundárias. Por exemplo, Descar­

tes, em sua Sexta Meditação diz: "E, na verdade, como percebo diferentes espécies de cores, sons, odores, gostos, calor, dureza etc., de modo seguro concluo que, nos corpos dos quais as di­

versas percepções dos sentidos procedem, há certas variedades correspondentes a eles, embora, talvez, na realidade não sejam iguais a eles [ ... l".

Também em seus Princípios de filosofia disse: "Pelos senti­dos nada conhecemos dos objetos externos além de sua figura [ou situação], tamanho e movimento".

Locke, escrevendo com o conhecimento da dinâmica

newtoniana, colocou a massa entre as qualidades primárias dos corpos. Em resumo, elaborou uma teoria das qualidades pri­

márias e secundárias de acordo com o estado da ciência física

no fim do século XVii. As qualidades primárias são as qualida­des essenciais das substâncias cujas relações espaciotemporais

constituem a natureza. A ordenação dessas relações constitui a ordem da natureza. Os acontecimentos da natureza são de muitos modos apreendidos pelas mentes, associados com os corpos animados. Inicialmente, a apreensão mental é provoca­da pelo reflexo em certas partes do corpo correlacionado (os reflexos no cérebro, por exemplo), Com a condição, porém, de que o cérebro também apreenda sensações da experiência que,

1741

I A O!';NC1A E o MUNDO MODERNO I

adequadamente falando, são apenas qualidades da mente. Es­sas sensações são projetadas pela mente, a :fim de revestir com a natureza externa corpos apropriados. Assim, os corpos são percebidos juntamente com as qualidades que na realidade não lhes pertencem, qualidades que de fato são apenas produtos da mente. Assim, a natureza ganha mérito que na verdade deveria ser reservado a nós: a rosa por seu perfume; o rouxinol por seu

canto; e o Sol por seus raios. Os poetas estão inteiramente en­ganados. Deveriam dirigir as suas líricas a si meSmos e deveriam

transforroá-las em congratulações a si próprios pela excelên­cia da mente humana. A natureza é uma coisa enfadonha, sem

som, sem odor e sem cor; mero passar da matéria, sem fim nem significação.

Não importa como você camufle isso, é o resultado prá­

tico da característica filosofia científica que encerra o século XVii.

Em primeiro lugar, devemos notar a sua espantosa eficiên­cia como sistema de conceitos para a organização da investiga­ção cientifica. A esse respeito, é completamente digna do gênio do século que a produziu. Defendeu o seu princípio como guia dos estudos cientificas desde então. Ainda está reinando. Todas as universidades do mundo se organizam de acordo com ela. Nenhuma outra alternativa como sistema de organização da

pesquisa da verdade científica foi sugerida. Não apenas reina, mas também está sem rival.

E ainda assim é verdadeiramente incrivel. Essa concep­

ção do universo está seguramente esboçada em termos de altas

abstrações, e o paradoxo só transparece porque consideramos

nOSSa abstração como realidades concretas. Nenhum quadro das realizações do pensamento científi­

co nesse século, por generalizado que seja, pode negligenciar o progresso em matemática. Aqui como em toda parte o gênio da época fez-se evidente. Três grandes franceses - Descartes, Desargues e Pascal- iniciaram o período da geometria. Outro francês, Fermat, lançou os alicerces da análise moderna e aper-

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

feiçoou tudo, exceto os métodos do cálculo diferencial. Newton e Leibniz, junto com eles, criaram realmente o cálculo diferen­

cial como método prático do raciocínio matemático. Quando o século findou, a matemática, como instrumento de aplicação aos problemas físicos, estava bem estabelecida em algo de sua competência moderna. A matemática pura moderna, se exce­tuarmos a geometria, estava na infância, e não tinha dado sinais

do grande desenvolvimento que ia realizar no século XIX. Mas o físico matemático tinha aparecido, trazendo consigo a menta­

lidade que ia governar o mundo científico no próximo século. Era para ser a era da "Análise Vitoriosa".

O século XVII tinha afinal produzido um esquema de pensamento científico, estruturado pelos matemáticos para o uso dos matemáticos. A grande característica da mentalidade

matemática é a sua capacidade para lidar com as abstrações e tirar esclarecedoras e demonstrativas seqüências de raciocínio,

inteiramente satisfatórias, na medida em que são as abstrações sobre as quais se deseja refletir. O enorme sucesso das abstra­ções cientificas, pondo-se em um lado a matéria com a sua Inca­lização simples no tempo e no espaço, e no outro a mente, que percebe, sofre e raciocina, mas não interfere, inseriu na filosofia a tarefa de aceitá-las como a mais concreta apresentação dos fatos.

Com isso, a filosofia moderna arruinou-se. Tem oscilado de maneira complexa entre três extremos. Há os dualistas, que

aceitam a matéria e o espirito em base igual, e as duas varieda­des de monistas, os que incluem o espírito na matéria e os que

incluem a matéria no espírito. Mas esse jogo com abstrações nunca pode superar a inerente confusão introduzida por se ter

adscrito a concreção deslncada ao esquema científico do século XVII.

176 I I .

,

I CAPiTULO IV I

O SÉCULO XVIII

Até o ponto em que o clima intelectual de duas épocas

pode ser contrastado, o século XVIII na Europa foi a completa antitese da Idade Média. O contraste é simbolizado pela di­ferença entre a catedral de Chartres e o salão de Paris, onde D'Alembert conversava com Voltaire. A Idade Média se deixa­va empolgar pelo desejo de racionalizar o infinito. Os homens do século XVIII racionalizaram a vida social da comunidade e basearam suas teorias sociológicas sobre um apelo aos fatos da natureza. O primeiro período foi a era da fé baseada na razão. No período seguinte não mexeram em casa de marimbondo: foi a era da razão baseada na fé. Exemplifico meu pensamento: Santo Anselmo ficaria aflito se não conseguisse um convincen­

te argumento da existência de Deus, e sobre esse argumento assentou seu edifício da fé, ao passo que Hume baseou a sua

Dissertação sobre a história natural da religião sobre sua fé na ordem da natureza. Ao compararmos essas épocas, é bom lem­

brar que a razão pode enganar-se e a fé pode colocar-se em

lugar que não é o seu. Em meu capítulo anterior, tracei a evolução, durante o

século XVII, do esquema das idéias científicas que dominaram

o pensamento de lá para cá. Ele envolve uma dualidade fun­damental, tendo a "matéria" de um lado e o espírito do outro. Entre ambos encontram-se os conceitos de vida, organismo, função, realidade instantânea, interação, ordem da natureza, que

juntos formam o calcanhar-de-aquiles de todo o sistema.

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

Também expresso a minha convicção de que, se desejamos obter uma expressão mais fundamental do caráter concreto do fato natural, o elemento desse esquema que por primeiro deve­mos criticar é o conceito de posição simples. Em vista, portanto, da importância que essa idéia ganhará nestes capitulos, repe­

tirei o sentido que atribuí a essa expressão. Dizer que deter­minada matéria tem posição simples significa que, ao exprimir

as suas relações espaciotemporais, é adequado declarar que ela

está onde está, em uma definida e finita região do espaço, e por completo em uma definida e finita duração do tempo, à parte

de toda e qualquer referência essencial às relações dessa porção de matéria com outras regiões do espaço e durações do tempo. Por outro lado, esse conceito de posição simples é indepen­dente da controvérsia entre absolutistas e relativistas acerca do espaço ou do tempo. Desde que alguma teoria de espaço ou de tempo ofereça um significado quer absoluto, quer relativo, para a idéia de uma região definida de espaço e de uma duração de­finida de tempo, a idéia de posição simples terá um significado perfeitamente definido. Essa idéia é o verdadeiro fundamento do esquema da natureza do século XVII. Fora dela, o esquema é incapaz de expressão. Devo sustentar que, entre os elementos primários da natureza, como os apreendemos em nossa expe­

riência imediata, não há nenhum elemento, seja qual for, que possua o caráter da posição simples. Daí não se segue, porém, que a ciência do século XVII esteja inteiramente errada. Sus­

tento que, por um processo de abstração construtiva, podemos chegar a abstrações que são as partes da matéria posicionadas

de modo simples, e a outras abstrações que são o espirito im­

plícito no esquema científico. De acordo com isso, O verdadeiro erro é um exemplo daquilo a que chamei de a "falácia da con­creção deslocada".

A vantagem de restringir a atenção a um grupo definido de abstrações é restringir o pensamento a coisas claras e defini­das, com relações claras e definidas. Assim, se você tiver aptidão lógica, poderá deduzir uma variedade de conclusões a respeito

I 78 I

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I A CI~NClA E o MUNDO MODERNO I

das relações entre essas entidades abstratas. Além disso, se as abstrações forem bem fundadas, quer dizer, se não se afastarem de algo importante da experiência, o pensamento cientifico que se restringir a essas abstrações chegará a uma variedade de importantes verdades relativas à nossa experiência da nature­za. Conhecemos todos aqueles destacados e agudos intelectos inamovivelmente fechados em uma dura concha de abstrações.

Eles sujeitam vocês às abstrações deles pelo puro controle da

personalidade. A desvantagem de dar atenção a um exclusivo grupo de

abstrações, por bem fundadas que sejam, reside no fato de que, conforme a natureza do caso, prescindimos das coisas restantes. À medida que as coisas excluidas tornam-se importantes em nossa experiência, nossos modos de pensamento passarão a ser inapropriados para ocupar-nos delas. Não podemos pensar sem abstrações; sendo assim, é da máxima importância manter-se vigilante em rever criticamente os "modos" de abstração. Aqui é que a filosofia encontra o lugar próprio como essencial ao sadio progresso da sociedade. É a crítica das abstrações. Uma civiliza­ção que não consegue romper com as abstrações correntes está condenada à esterilidade, depois de breve periodo de progresso.

Uma escola ativa de filosofia é exatamente tão importante para a locomoção das idéias como uma escola ativa de maquinistas

para a locomoção a combustivel. Algumas vezes acontece que o serviço prestado pela filo­

sofia é inteiramente obscurecido pelo espantoso sucesso de um

esquema de abstrações em expressar os interesses dominantes de uma época. Foi exatamente o que aconteceu durante o sé­

culo XVIII. Les philosophes não eram filósofos. Eram homens de gênio, de inteligência clara e aguda, que aplicaram o grupo

de abstrações científicas do século XVII à análise do universo ilimitado. O seu triunfo, no que concerne ao círculo de idéias que principalmente interessavam aos contemporâneos, foi ex­traordinário; tudo quanto não coubesse em seu esquema era omitido, ridicularizado e descrido. A sua aversão à arquitetura

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1 ALFRED NORTH WHITEHEAD I

gótica simboliza a falta de simpatia pelas perspectivas obscuras. Era a época da razão, a razão sadia, varonil, firme; mas de um só olho, deficiente na sua visão da profundeza. Não podemos me­nosprezar o nosso débito de gratidão para com esses homens. Por mil anos a Europa foi vítima de intolerantes e intoleráveis visionários. O senso comum do século XVIII e a sua compre­ensão dos fatos óbvios do sofrimento humano e das exigências

óbvias da natureza humana atuaram sabre o mundo como uma

purificação moral. Deve-se creditar a Voltaire o ódio à injustiça, o ódio à crueldade, o ódio à repressão indébita, o ódio à trapaça. Além do mais, reconhecia esses males tão logo os via. Nessa virtude suprema, ele pertence tipicamente a seu século, no que este último tinha de melhor. Mas se nem só de pão vive o ho­mem, muito menos só de desinfetantes. A época teve as Suas

limitações; não obstante, não podemos compreender como al­gumas de suas posições principais são ainda defendidas, espe­

cialmente em escolas de ciência, a menos que façamos justiça a suas realizações positivas. O esquema de conceitos do século

XVII provou ser um perfeito instrumento de investigação. O triunfo do materialismo deu-se principalmente nas dên­

cias da dinâmica, física e química racionais. No que diz respeito à dinâmica e à física, o progresso se dava em forma de desenvol­vimentos diretos das principais idéias da época anterior. Nada de novo foi introduzido, mas houve um imenso desenvolvi­

mento quanto aos detalhes. Casos especiais foram deslindados. Era como se o próprio céu estivesse sendo aberto, em um plano

predeterminado. Na segunda metade desse século, Lavoisier de

modo prático fundou a química em sua base atual. Introduziu nela o princípio de que nada se perde nem se cria em qual­

quer transformação química. Foi esse o último sucesso do pen­samento materialista, que acabou por não se mostrar de dois gumes. A ciência química agora só esperava pela teoria atômica, no século seguinte.

Nesse século, a noção de explicação mecânica de todos os processos da natureza finalmente se solidificou em dogma

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I A CIt:NClA E o MUNDO MODERNO I

de ciência. A noção alcançou completamente o seu mérito em razão de uma quase miraculosa série de triunfos levados a cabo por físicos matemáticos, os quais culminaram na Mecânica ana~ lírica de Lagrange, que foi publicada em 1787. Os Principia de Newton foram publicados em 1687, de modo que exatamente cem anos separam os dois grandes livros. Esse século contém o primeiro período da física matemática de tipo moderno. A

publicação de Eletricidade e magnetismo, de Clerk Maxwell, em 1873, marca o encerramento do segundo periodo. Cada um desses três livros introduziu novos horizontes de pensamento

que afetaram tudo quanto veio deppis deles. Considerando os vários pontos para os quais a humanida­

de inclinou o seu pensamento sistemático, é impossível não se impressionar com a distribuição desigual de habilidade entre os diferentes domínios. Em quase todos os assuntos, há alguns nomes que se impõem, pois é preciso genialidade para criar uma matéria que constitua um novo assunto para o pensamen­to. Mas, no caso de muitos pontos, após um bom início, muito importante para a sua circunstância imediata, o desenvolvi~ mento posterior aparece como lamentável série de apalpadelas, de modo que o conjunto do assunto perde gradualmente seu poder na evolução do pensamento. Aconteceu exatamente o oposto com a física matemática. Quanto mais se estuda esse

assunto, tanto mais se sente maravilhado com os quase incríveis triunfos que ela apresenta. Os grandes físicos matemáticos do

século XVIII e dos primeiros anos do século XIX, a maioria deles franceses, são um bom exemplo: Maupertuis, Clairaut,

D' Alembert, Lagrange, Laplace, Fourier, Carnot formam uma

série de nomes tais que cada um nos lembra alguma realização de primeira ordem. Quando Carlyle, como arauto da subse­qüente era romântica, escamecedoramente chama esse período de "época da análise vitoriosa" e zomba de Maupertuis, cha­mando-o de "magnifico cavalheiro de peruca branca", apenas mostra o ponto de vista estreito dos românticos, de quem ele é

porta-voz.

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I ALFRED NORTH WHlTEHEAD I

É impossível descrever de maneira inteligível e sem ter­mos técnicos os detalhes do progresso feito por essa escola. Es­forçar-me-ei, contudo, por explicar o ponto principal de uma realização conjunta de Maupertuis e Lagrange. Seus resultados, em conexão com alguns métodos matemáticos subseqüentes devidos a dois grandes matemáticos alemães da primeira meta­de do século XIX, Gauss e Riemann, mostraram ser o trabalho

preparatório necessário às novas idéias que Hertz e Einstein in­troduziram na física matemática. Também inspiraram algumas

das melhores idéias do trabalho de Clerk Maxwell já mencio­nado neste capítulo.

Eles intencionaram descobrir algo mais fundamental e mais geral do que as leis de Newton sobre o movimento discu­tidas no capítulo anterior. Queriam encontrar algumas idéias mais amplas, e no caso de Lagrange alguns meios mais gerais da exposição matemática. Era uma empresa ambiciosa, e alcan­çaram completo êxito. Maupertuis viveu na primeira metade do século XVIII, e a vida ativa de Lagrange está na segunda metade. Encontra-se em Maupertuis uma colaboração da ida­de teológica que precedeu o seu nascimento. Começou com a

idéia de que o caminho inteiro de uma partícula material en­tre quaisquer limites de tempo deve realizar alguma perfeição digna da providência divina. Há dois pontos de interesse nesse princípio motor. Em primeiro lugar, ilustra a tese na qual insisti

em meu primeiro capítulo segundo a qual o modo como a Igreja medieval imprimira na Europa a noção da partícular providên­

cia de um Deus racional e pessoal é um dos fatores pelo qual se gerou a fé na ordem da natureza. Em segundo lugar, embora

hoje todos estejamos convencidos de que semelhante modo de pensar não tem nenhuma aplicação direta na detalhada investi­

gação cientifica, o sucesso de Maupertuis nesse caso partícular mostra que qualquer idéia que nos desvia da abstração corrente pode ser melhor do que nada. No caso presente, o que a idéia em questão fez para Maupertuis foi levá-lo a inquirir qual a propriedade do caminho COmo um todo que pode ser deduzida

I 82 I l'

I A CI~NClA E o MUNDO MODERNO I

das leis de Newton sobre o movimento. Sem dúvida, esse é um processo sensato, não obstante as noções teológicas. Também sua idéia geral levou-o a conceber que a propriedade achada seria uma soma quantitativa, de tal sorte que qualquer des­vio do caminho o aumentaria. Nesse pressuposto, generalizou

a primeira lei do movimento de Newton. É que uma partícula isolada toma o caminho mais curto com a mesma velocidade. ,',

Assim, Maupertuis conjecturou que uma partícula que atraves-

sa um campo de forças realizaria o menor conjunto possível de quantidades. Descobriu essa quantidade e denominou-a ação

integral entre os limites de tempo considerados. Em linguagem moderna, é a soma de breves lapsos de tempo sucessivos da di­ferença entre as energias cinéticas e potenciais da partícula em cada instante sucessivo. Essa ação, por conseguinte, relaciona-se com o intercâmbio entre a energia deflagrada pelo movimento e a energia desencadeada pela posição. Maupertuis tinha des­coberto o famoso teorema da menor ação. Maupertuis não era propriamente de primeiro plano em comparação com um ho­mem como Lagrange. Nas suas mãos e nas dos seus imediatos sucessores, o seu princípio não assumiu nenhuma importância

dominante. Lagrange apresentou a mesma questão em base mais ampla, de modo a tomar a sua resposta relevante para o processo real no desenvolvimento da dinâmica. O seu "princí­pio do trabalho virtual" aplicado aos sistemas em movimento é efetivamente o princípio de Maupertuis concebido como apli­

cado em cada instante do caminho do sistema. Mas Lagrange

viu mais longe que Maupertuis. Percebeu que tinha alcançado um método para afirmações dinâmicas de uma maneira per­

feitamente indiferente aos métodos particulares de medição empregados em fixar a posição das várias partes do sistema. De acordo com isso, continuou a deduzir equações de movi­mento igualmente aplicáveis, quaisquer que fossem as medidas quantitativas que se fizessem, contanto que fossem adequadas a posições fixas. A beleza e a quase divina simplicidade dessas equações é tal que essas fórmulas são dignas de se equipararem

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I ALFRED NORTH WHlTEHEAD I

àqueles símbolos misteriosos que em tempos antigos eram em­pregados diretamente para indicar a Suprema Razão na base de todas as coisas. Mais tarde Hertz - descobridor das ondas eletromagnéticas - baseou a mecânica na idéia de todas as partículas atravessarem o caminho mais curto que se lhes abre sob as circunstâncias que constrangem o seu movimento; e fi­nalmente Einstein, mediante o uso das teorias geométricas de

Gauss e Riemann, mostrou que essas circunstâncias poderiam ser construidas Como inerentes ao caráter do próprio espaço­tempo. Eis, em linhas muito gerais, a história da dinâmica de Galileu a Einstein.

Entrementes, Galvani e Volta faziam os seus descobri­mentos elétricos; e as ciências biológicas lentamente colhiam os seus materiais, mas ainda esperavam por idéias dominan­tes. Também a psicologia começava a desvencilhar-se da sua dependência da filosofia geral. Esse crescimento independente da psicologia foi o último resultado da sua reivindicação por John Locke como uma crítica aos abusos metafísicos. Todas as

ciências que lidam COm a vida estavam ainda em estado ele­mentar de observação, no qual predominavam a classificação e a descrição diretas. Até esse ponto o esquema das abstrações era adequado à circunstância.

No domínio da prática, não se pode dizer que a época que produziu governantes ilustrados - como o imperador

José, da Casa de Habsburgo, Frederico, o Grande, Walpole, o grande conde De Chatham, George Washington - fracassou.

Principalmente quando a esses governantes acrescentamos a criação do governo parlamentar na Inglaterra, do governo federal e presidencial dos Estados Unidos, e dos princípios humanitários da Revolução Francesa. Também na técnica o século produziu a máquina a vapor, e com isso abriu uma nova era à civilização. Sem dúvida, como época prática, o sé­culo XVIII foi um sucesso. Se perguntássemos a um dos mais sábios e típicos dos seus antepassados que apenas viu o seu começo, John Locke, o que esperava deles, dificilmente teria

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I A Clt:NCIA E o MUNDO MODERNO I

depositado esperanças em nível mais alto que suas efetivas realizações alcançaram.

Ao desenvolver uma crítica do esquema cientifico do sé­culo XVIII, devo primeiro dar a minha principal razão de não considerar o idealismo do século XIX - falo do idealismo filo­

sófico que encontra a razão última da realidade na capacidade intelectiva, a qual é totalmente cognitiva. A corrente idealista,

até aqui desenvolvida, tem-se divorciado da observação cientí­

fica. Absorveu em sua integridade o esquema cientifico como sendo ele a única versão dos fatos da natureza e então o expli­

cou como uma idéia dentro da mentalidade fundamental. No caso do idealismo absoluto, o mundo da natureza é exatamente o das idéias, diferenciando de algum modo a unidade do Ab­soluto. No caso do idealismo pluralistico que envolve menta­lidades monadárias, esse mundo é a maior medida comum das várias idéias que diferenciam as várias unidades mentais das várias mônadas. Mas, como quer que seja, é patente que es­sas escolas idealistas não conseguiram correlacionar, de modo orgânico, o fato da natureza com a sua filosofia idealista. No referente ao que afirmo nestes capítulos, a nossa visão funda­mentai pode ser realista ou idealista. Destaco a necessidade de

um estágio mais avançado de um realismo provisório no qual o esquema científico seja remodelado e fundado com base no conceito fundamental de organismo.

Em linhas gerais, meu procedimento começaria da análise do status do espaço e do tempo, ou, em linguagem moderna, do

status do espaço-tempo. Há duas propriedades de cada um de­

les. As coisas são separadas tanto pelo espaço como pelo tempo, mas também são reunidas tanto no espaço como no tempo, mesmo que não sejam contemporâneas. Chamarei a essas pro­priedades de propriedades "separativa" e "preensiva" do espaço­tempo. Há ainda uma terceira propriedade do espaço-tempo. Todas as coisas que estão no espaço recebem uma limitação definida de alguma espécie, de modo que em certo sentido têm tão-só a forma que têm, e não outra, e também em certo sen-

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I AURED NORTH WHITEHEAD I

tido estão tão-só naquele lugar, e não em outro. Analogamente

quanto ao tempo, uma coisa permanece durante um período e não durante outro. Chamarei a isso a propriedade "modal" do

espaço-tempo. É evidente que a propriedade modal tomada em si dá origem à idéia de posição simples. Mas pode ser correla­cionada com a propriedade separativa e com apreensiva.

Por simplicidade de pensamento, falarei primeiro apenas

do espaço, e depois estenderei o mesmo tratamento ao tempo. O volume é o mais concreto elemento do espaço. Mas a

propriedade separativa do espaço reparte o volume em subvo­lumes, e assim por diante indefinidamente. Assim, tomando a propriedade separativa isoladamente, concluiremos que o vo­lume é uma mera multiplicidade de elementos não volumosos, de pontos, para ser mais preciso. Mas é a unidade do volume

que é o produto final da experiência, por exemplo, o espaço volumoso de um recinto. Tal recinto, como simples multiplici­dade de pontos, é uma construção da imaginação lógica.

Assim, o primeiro fato é a unidade preensiva do volume, e essa unidade é mitigada ou limitada pelas unidades separadas das inumeráveis partes contidas. Temos uma unidade preensi­va, que é contudo tomada à parte como um agregado de par­tes controladas. Mas a unidade preensiva do volume não é um mero agregado lógico de partes. As partes formam um agregado

ordenado no sentido de que cada parte é alguma coisa do ponto de vista de todas as outras partes, e também do mesmo ponto

de vista todas as demais partes são alguma coisa em relação a ela. Assim, se A, B e C são volumes de espaço, B tem um as­

pecto do ponto de vista de A, e assim também C, e da mesma

forma acontece com a relação entre B e C. Esse aspecto de B partindo de A é a essência de A. Os volumes de espaço não

têm existência independente. São apenas entidades dentro da totalidade; não podemos extraí-las daquilo que as cerca sem a destruição de sua verdadeira essência. De acordo com isso, digo que o aspecto de B partindo de A é o modo como B entra na composição de A. Essa é a propriedade modal do espaço, na

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I A CI~NC1A E o MUNDO MODERNO I

medida em que a unidade preensiva de A é a preensão dentro da unidade de aspectos de todos os demais volumes do ponto de vista de A. A forma de um volume é a fórmula da qual pode ser derivada a totalidade desses aspectos. Assim, a forma de um volume é mais abstrata do que os seus aspectos. É evidente que posso usar a linguagem de Leibniz e dizer que todo volume

reflete em si todos os demais volumes no espaço.

Exatamente as mesmas considerações cabem nos aspectos das durações no tempo. Um instante de tempo sem duração

é uma construção lógica imaginativa. Assim, cada duração de

tempo reflete em si todas as durações do tempo. Mas de dois modos introduzi uma falsa simplicidade. Em

primeiro lugar, deveria ter conjugado espaço e tempo, e condu­zido a minha exposição a respeito de regiões quadridimensio­

nais do espaço-tempo. Não tenho nada a acrescentar ao modo de explanação. Substituam na mente de vocês os volumes es­paciais das explicações anteriores pelas regiões quadridimen­

sionais. Em segundo lugar, a minha explanação entrou em um cir­

culo vicioso, pois fiz a unidade preensiva da região A consistir na unificação preensiva das presenças modais em A de outras regiões. Surge essa dificuldade porque o espaço-tempo não

pode na realidade ser considerado como entidade subsistente por si. Ela é uma abstração, e sua explicação exige referência àquela da qual foi extraida. Espaço-tempo é a especificação de

certas propriedades gerais de acontecimentos e de sua mútua ordenação. Esse recurso ao fato concreto faz-me voltar ao sécu­

lo XVIII, e na verdade a Francis Bacon no século XVII. Temos

de considerar o desenvolvimento durante essas épocas da criti­

ca ao esquema cientifico dominante. Nenhuma época é homogênea; qualquer que seja a nota

dominante apontada em um período considerado, será sempre possível produzir homens, e grandes homens, pertencentes ao mesmo tempo, que se apresentam em antagonismo com o tom da sua época. Tal é certamente o caso do século XVIII. Por

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

exemplo, os nomes de John Wesley e de Rousseau devem ter ocorrido a vocês quando eu estava esboçando o caráter des­se tempo. Mas não quero falar deles ou de outros. O homem

cujas idéias devo considerar até certo ponto é o bispo Berkeley. Exatamente no começo dessa época, ele fez as críticas certei­ras, pelo menos em princípio. Seria inverdade dizer que não produziu nenhum efeito. Era um homem famoso. A esposa de

Jorge 11 foi uma das poucas rainhas que, entre todos os países, foi suficientemente inteligente e sábia para judiciosamente pa­trocinar o saber; por isso, Berkeley foi feito bispo, em tempos

em que os bispos na Grã-Bretanha eram relativamente muito mais grandes homens do que agora. Também, algo que é mais importante do que esse bispado, Hume o estudou e desenvol­veu um aspecto de sua filosofia de um modo que talvez tivesse preocupado o espírito do grande eclesiástico. Depois Kant ana­lisou Hume. Assim, dizer que Berkeley não teve influência nes­se século seria certamente absurdo. Mas, mesmo assim, deixou de afetar a principal corrente do pensamento científico. Tudo se passou como se ele nunca tivesse escrito. Seu sucesso ge­ral tornou-o impenetrável à crítica, então e posteriormente. O

mundo da ciência sempre permaneceu perfeitamente satisfeito com as suas abstrações peculiares. Elas funcionam e isso basta para o ambiente cientifico.

O ponto que temos presente é que essa esfera científica do pensamento é agora, no século XX, demasiado estreita para os fatos concretos que tem diante de si para análise. Isso é verda­

de certamente em física, e é mais especialmente relevante nas

ciências biológicas. Assim, para compreender as dificuldades do pensamento científico moderno, e também as suas reações so­

bre o mundo atual, devíamos ter em mente alguma concepção de uma esfera de abstração mais ampla, uma análise mais con­creta, que ficará mais próxima da completa concreção da nossa experiência intuitiva. Tal análise acharia em si mesma uma co­locação para os conceitos de matéria e espírito, como abstrações em cujos termos algumas das nossas experiências físicas podem

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I A CI~NClA E o MUNDO MODERNO I

ser interpretadas. É na busca dessa base mais ampla para o pen­samento científico que Berkeley é tão importante. Lançou a sua crítica pouco depois que as escolas de Newton e Locke

tinham completado o seu trabalho, e indicou com exatidão os pontos fracos que ambos haviam deixado. Não me proponho a

considerar nem o idealismo subjetivo que dele derivou nem as escolas de desenvolvimento que mostram descender de Hume

e Kant respectivamente. Meu foco será o de que - seja qual

for a metafísica final que adotarmos - há outra linha de desen­volvimento baseada em Berkeley, apontando para a análise por

que procuramos. Berkeley não tomou conhecimento disso, em parte por causa do demasiado intelectualismo dos filósofos, em parte por causa de sua pressa em recorrer a um idealismo cuja objetividade estivesse baseada no espírito de Deus. Vocês de­vem lembrar que já afirmei que a chave do problema reside na noção de posição simples. Berkeley, efetivamente, criticou essa noção. Também levantou a seguinte questão: Que entendemos por coisas que se realizam no mundo da natureza?

Nas seções 23 e 24 dos seus Princípios do entendimento humano, deu resposta a essa última pergunta. Citarei algumas

frases tiradas dessas seções:

23. Mas, dirão, nada mais fácil para mim do que imaginar

árvores em um parque ou livros em uma estante, sem alguém

por perto para os perceber. Respondo, de fato podem, não

há nisso nenhuma dificuldade; mas o que é isso, pergunto

eu, senão a concepção em sua mente de certas idéias a que

chamam livros e árvores, e ao mesmo tempo a omissão em

conceber a idéia de alguém que possa percebê-los?

Quando fazemos o possível para conceber a existência de

corpos exteriores, estamos durante esse tempo contemplan­

do tão-somente as nossas pr6prias idéias. Mas a mente,

"sem tomar conhecimento" de si mesma, é iludida a pensar

que pode e de fato concebe os corpos existentes sem serem

pensados ou fora da mente, embora sejam simultaneamen­

te apreensíveis ou existentes por ela mesma [ ... J.

I 89 I

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I ALFRED NORTH WHlTEHEAD I

24. É evidente, ao mais rápido exame do nosso pensamento,

saber se é possível a nós entender o que significa a "existência

absoluta dos objetos sensíveis por si mesmos, ou sem a men­

te". Para mim é evidente que essas palavras ou indicam uma

contradição direta, ou nada mais [ ... ].

Ademais, há uma nova passagem notável da seção 10, do quarto diálogo de A/cifriio de Berkeley. Já a citei largamente em

meus Principies of Natural Knowledge:

Eufrânor: Diga-me, Alcifrão, você pode distinguir as portas, as

janelas e as ameias desse mesmo castelo?

A/cifrão: Não posso. A essa distância, ele parece apenas uma

pequena torre redonda.

Eufrânor: Mas eu, que estive nele, sei que é não uma pequena

torre redonda, mas um grande edificio quadrado com ameias

e torreões que, ao que parece, você não vê.

A/cifrão: Que você conclui disso?

Eufrânor: Concluo que o verdadeiro objeto que própria e es­

tritamente você percebe pela vista não é aquilo que está a

alguns quilômetros de distância.

A/cifrão: E por quê?

Eufrânor: Porque um pequeno objeto redondo é uma coisa, e

um grande objeto quadrado é outra. Não é verdade? ..

Alguns exemplos semelhantes referentes a um planeta e

a uma nuvem são depois citados no diálogo, e essa passagem fina1mente termina assim:

Eufrânor: Não é evidente, portanto, nem que o castelo ou o

planeta, nem que a nuvem "que você vê aqui" sejam realmen­

te aqueles que você supõe existir a distância?

Torna-se explícito, na primeira passagem já citada, que o próprio Berkeley adota interpretação idealista extremada. Para ele, o espírito é a única realidade absoluta, e a unidade da na­tureza é a unidade das idéias na mente de Deus. Pessoalmente penso que a solução que Berkeley deu ao problema metafisi-

I 90 I

I A CI~NC!A E o MUNDO MODERNO I

co levanta dificuldades não menores que as apontadas por ele como resultantes da interpretação realística do esquema cientí­fico. Há, contudo, outra possível linha de pensamento que nos habilita a adotar de qualquer modo atitude de realismo pro­visório e a alargar o esquema cientifico de modo que seja útil

para a própria ciência. Retorno à passagem da História natural de Francis Bacon

já citada no capitulo anterior:

É certo que todos os corpos, sejam quais forem, embora não

tenham sentido, têm percepção [ ... ]; e tanto se o corpo é al­

terador como se é alterado, sempre uma percepção precede

a operação; pois, senão, todos os corpos poderiam ser iguais

entre si [ ... ].

Também no capitulo anterior expliquei a "percepção" (conforme Bacon a entende), com a significação de "tomar co­nhecimento do" caráter essencial da coisa percebida, e expli­quei os "sentidos" como "cognição". Certamente temos de to­mar conhecimento das coisas das quais no momento não temos

nenhuma cognição determinada. Podemos até ter uma memó­ria cognitiva da tomada de conhecimento, sem ter tido uma cognição contemporânea. Também, conforme indica Bacon em sua afirmação - "[ ... ] pois, senão, todos os corpos poderiam ser iguais entre si" -, é evidentemente algum elemento do caráter

essencial do qual tomamos conhecimento, isto é, alguma coisa sobre a qual se funda a diversidade, e não apenas a simples

diversidade lógica. A palavra "perceber" é, no uso comum, perpassada por

completo pela noção de apreensão cognitiva. O mesmo acon­

tece com a palavra "apreensão", mesmo com a omissão do adje­tivo cognitiva. Usarei a palavra "preensão" para a apreensão não

cognitiva: com isso entendo "apreensão" que pode ou não ser cognitiva. Tomemos agora a última observação de Eufrânor:

"Não é evidente, portanto, nem que o castelo ou o planeta, nem que a nuvem, que você vê aqui, sejam realmente aqueles

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

que você supõe existir a distância?". Assim, há uma preensão, aqui neste lugar; de coisas que têm referência a outros lugares.

Voltemos agora às afirmações de Berkeley extraídas de seus Princípios do entendimento humano. Ele sustenta que o que constitui a compreensão das entidades naturais é o ser percebi­do na unidade da mente.

Podemos substituir o conceito, de modo que o reconheci­mento seja o ato de recolher as coisas na unidade da preensão; e de modo que o que está sendo, portanto, reconhecido seja a preensão, e não as coisas. Essa unidade de preensão define-se Como um aqui e um agora, e as coisas assim reunidas na unida­de considerada têm referências essenciais a outros lugares e a outros tempos. Substituo a mente de Berkeley por um processo de unificação preensiva. Com o fim de tomar inteligivel esse conceito do reconhecimento progressivo das ocorrências na­turais, exige-se considerável desenvolvimento e confrontação com as suas implicações reais em termos de experiência con­creta. Será essa a tarefa dos capítulos seguintes. Em primeiro lugar, notem que a noção de posição simples desapareceu. As coisas que apanhamos em uma unidade reconhecida, aqui e agora, não são o castelo, a nuvem, nem o planeta do ponto de vista, em espaço e tempo, da unificação preensiva. Em outras palavras, é a perspectiva do castelo ali do ponto de vista da uni­ficação aqui. São, portanto, aspectos do castelo, da nuvem, do

planeta, que apanhamos em unidade aqui. Vocês devem estar

lembrados de que a idéia de perspectiva é deveras habitual em filosofia. Foi introduzida por Leibniz, na noção de suas môna­

das que espelham perspectivas do universo. Faço uso da mesma noção, só que estou pondo suas mônadas em consonância com os acontecimentos unificados no espaço e no tempo. Em alguns aspectos, há uma grande analogia Com os modos de Spinoza; esse é o motivo pelo qual usei os termos "modo" e "modal". Na analogia com Spinoza, sua substância una é para mim sua ativi­dade básica una da compreensão, individualizandCl-se em uma interdependente pluralidade de modos. Assim, o fato concreto

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1 A CI~NClA E o MUNDO MODERNO 1

é processo. Sua análise primária está na atividade fundamental da preensão e nos acontecimentos reconhecidos e preensivos. Cada acontecimento é um fato individual resultante de uma individualização da atividade subjacente. Mas individualização não significa independência substancial.

Uma entidade da qual tomamos consciência na percep­ção dos sentidos é o ponto final do nosso ato de percepção.

Denominaremos essa entidade de um "objeto dos sentidos".

Por exemplo, o verde de tonalidade definida é um objeto dos sentidos; assim é um som de qualidade e altura definidas, e as­

sim um cheiro definido e uma qualidade definida de impres­são tátil. O modo como tal entidade é relacionada ao espaço durante um lapso definido de tempo é complexo. Direi que um objeto dos sentidos tem "ingresso" no espaço-tempo. A per­cepção cognitiva de um objeto dos sentidos é a advertência da unidade preensiva (em um ponto de vista A) de vários modos de vários objetos dos sentidos, até mesmo o objeto dos sentidos em questão. O ponto de vista A é naturalmente uma região de espaço-tempo, ou seja, um volume de espaço ao longo de uma

duração de tempo. Mas, como entidade, esse ponto de vista é uma unidade de experiência realizada. Um modo de objeto dos sentidos em A (abstraído do objeto dos sentidos cuja relação para com A o modo está condicionado) é o aspecto que se tem

de A de alguma outra região B. Assim, o objeto dos sentidos está presente em A com o modo de localização em B. Por isso,

se o verde é o objeto dos sentidos em questão, o verde não está simplesmente em A, onde está sendo percebido, nem está'

simplesmente em B, onde se percebe como localizado, mas está

presente em A com o modo de localização em B. Não há nisso nenhum mistério especial. Só temos de olhar em um espelho e ver nele a imagem de algumas folhas verdes que estão atrás de nós. Para vocês, A será verde: mas o verde não está somente em A, onde vocês se encontram. O verde de A será verde com o modo de ser localizado na imagem da folha no espelho. Agora voltem e olhem para a folha. Vocês estarão agora percebendo

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

o verde do mesmo modo como o viram antes, com a diferença de que agora o verde tem o modo de ser localizado na folha real. Descrevo simplesmente o que de fato percebemos: somos

advertidos pelo verde como sendo um elemento na unificação preensiva dos objetos dos sentidos, tendo cada objeto dos sen­tidos, e entre eles o verde, seu modo determinado expressável como localização em qualquer parte. Há vários tipos de loca­

lização moda!. Por exemplo, o som é volumoso: enche todo

um recinto, e o mesmo acontece algumas vezes com uma cor

difusa. Mas a localização modal de uma cor pode ser a de estar no limite extremo do volume, como, por exemplo, as cores das paredes de uma sala. Assim primariamente o espaço-tempo é

O locus da introdução modal dos objetos dos sentidos. Essa é a razão por que espaço e tempo (se para simplificar os separar­mos) são dados em sua integridade, porque cada volume de espaço e cada lapso de tempo inclui na sua essência aspectos

de todos os volumes de espaço ou de todos os lapsos de tempo. As dificuldades da filosofia a respeito do espaço e do tempo fundam-se no equívoco de os considerar como primariamente os loei das localizações simples. A percepção é simplesmente a cognição da unificação preensiva, ou, em resumo, a percepção é a cognição da preensão. O mundo real é um desdobramento de várias preensões: e a "preensão" é uma "circunstância preen­

siva"; e a circunstância preensiva é a mais concreta entidade finita, concebida como o que é em si por si, e não do ponto de

vista do seu aspecto na essência de outra circunstância seme­lhante. Pode-se afirmar que a unificação preensiva tem posição

simples em seu volume A. Mas isso seria mera tautologia, pois

o espaço e o tempo são simples abstrações da totalidade das unificações preensivas mutuamente uniformizadas. Assim uma preensão tem posição simples no volume A do mesmo modo que a face humana condiz COm o sorriso que a ilumina. Há, até onde podemos chegar, mais sentido em dizer que um ato de percepção tem posição simples, pois podemos concebê-lo como estando simplesmente na preensão em cognição.

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I A CI~NCIA E o MUNDO MODERNO I

Na natureza há mais entidades que os meros objetos dos

sentidos, nessas mesmas condições. Mas, levando em conta a necessidade de revisão conseqüente de um ponto de vista mais concreto, podemos esboçar a nossa resposta à pergunta de Berkeley sobre o caráter da realidade que se deve apontar à

natureza. Segundo ele, é a realidade das idéias na mente. Uma metafísica completa que atingisse alguma noção de mente ou

alguma noção de idéia poderia talvez adotar finalmente essa

concepção. É desnecessário ao propósito deste capitulo pro­por essa questão fundamental. Podemos contentar-nos com um

realismo provisório no qual a natureza é concebida como um complexo de unificações preensivas. O espaço e O tempo apre­sentam o esquema geral de relações interdependentes dessas preensões. Não podemos arrancar nenhuma delas de seu con­texto. Ainda assim, cada uma delas, em seu contexto, tem toda a realidade que se prende à totalidade do complexo. Contraria­

mente, a totalidade tem a mesma realidade de cada preensão, pois cada preensão unifica as modalidades a serem atribuídas, do seu ponto de vista, a todas as partes da totalidade. A preen­

são é um processo de unificação. Por conseguinte, a natureza é um processo de desenvolvimento expansivo, necessariamente transicional de preensão a preensão. O que é realizado é, por­tanto, ultrapassado, mas é também retido graças a aspectos seus

presentes nas preensões que permanecem além dele. Assim, a natureza é uma estrutura de processos evoluti­

vos. A realidade é o processo. É tolice perguntar se a cor ver­melha é real. A cor vermelha é um ingrediente no processo da

realização. As realidades da natureza são preensões na natureza,

ou seja, os acontecimentos da natureza. Agora que removemos do espaço e do tempo a tintura

da posição simples, podemos abandonar parcialmente o inade­quado termo preensão. Introduziu-se esse termo para significar a unidade essencial de um acontecimento, isto é, o aconteci­mento como uma só entidade, e não corno mero conjunto de partes ou de ingredientes. Faz-se necessário compreender que

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

espaço-tempo não é senão um sistema de reunir conjuntos em unidades. Mas a palavra "acontecimento" significa uma dessas unidades espaciotemporais. Por conseqüência, pode ser usada em lugar do termo "preensão" significando a coisa preendida.

Um acontecimento tem contemporâneos. Isso significa

que reflete em si os modos dos seus contemporâneos como um arranjo de realização imediata. O acontecimento tem um

passado. Isso significa que reflete em si os modos dos seus pre­decessores, como lembranças que se fundiram no próprio con­

teúdo dele. O acontecimento tem um futuro. Isso significa que reflete em si aspectos como os que o futuro lança de volta ao presente ou, em outros termos, como o presente determinou o que concerne ao futuro. Assim o acontecimento tem anteci­pação:

A alma profética

Do vasto mundo sonhando com coisas por vir. [cviiJ

Essas conclusões são essenciais a qualquer forma de rea­

lismo. É que há no mundo, para nossa cognição, lembrança do passado, imediatismo da realização e indicação do porvir.

Nesse esboço de análise mais concreta que a do esque­ma científico do pensamento, parti do nosso próprio campo psicológico, já que significa a nossa cognição. Eu o tomo como aquilo que ele reclama ser: o autoconhecimento do nosso acon­

tecimento corpóreo. Refiro-me ao acontecimento, e não à ins­peção dos detalhes do corpo. Esse autoconhecimento revela,

para além de si mesmo, uma unificação preensiva de presenças

modais de entidades. Generalizo pelo uso do principio de que esse acontecimento total e corpóreo está no mesmo nível de

todos os demais acontecimentos, salvo uma inusitada comple­xidade e estabilidade de padrão inerente. A força da teoria do mecanismo materialístico foi a exigência de que nenhuma in­terrupção arbitrária fosse introduzida na natureza, a qual viesse agravar uma quebra da explicação. Aceito esse princípio. Mas, se partirmos do fato imediato de nossa experiência psicológi-

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I A CI~NClA E o MUNDO MODERNO \

ca, tão seguramente como os empiristas deviam fazer, seremos logo levados à concepção orgânica da natureza cuja descrição

foi começada neste capítulo. O defeito cientifico do século XVIII foi não cuidar de

nenhum dos elementos que compõem as experiências psicoló­

gicas imediatas da humanidade. Nem cuidar de nenhum traço elementar da unidade orgânica de um todo, dos quais podem

surgir as unidades orgânicas de elétrons, prótons, moléculas e

corpos animados. De acordo com esse esquema, na natureza das coisas não há razão para porções da matéria terem relações

físicas umas com as outras. Concedamos que não se pode ter esperança de que seja necessário discernir as leis da natureza. Mas podemos esperar ver que é necessário haver uma ordem da natureza. O conceito de ordem da natureza está em ligação estreita com o conceíto da natureza como o locus do organismo

em processo de desenvolvimento.

Nota: Em relação à última parte deste capítulo, é interessante

um trecho de Descartes de Resposta a objeções ["·l contra "Medi­

tações"; "Portanto, a idéia de sol poderá ser o próprio sol exis­

tente na mente, não propriamente de maneira formal como

existe no céu, mas objetivamente, isto é, do modo como ob­

jetos costumam existir na mente; e esse modo de ser é ver­

dadeiramente muito menoS perfeito do 'lue a'luele em que

as coisas existem fora da mente, mas não é por esse motivo

mero nada, como já disse" (Resposta a objeções I, trad. Haldane

and Ross, v. 11, p. 10). Acho dificuldade em reconciliar essa

teoria das idéias (com a 'lual concordo) com outras partes

da filosofia cartesiana.

197 I

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I CAPITULO V I

A REAÇÃO ROMÂNTICA

Meu último capítulo descreveu a influência sobre o sé­culo XVIII do estrito e eficiente esquema dos conceitos cien­tificos que lhe foram legados pelo século anterior. Esse esque­ma era o produto da mentalidade que achava a filosofia agos­tiniana extremamente simpática. O calvinismo protestante e

o jansenismo católico apresentavam o homem como incapaz de cooperar com a Graça Irresistível; o esquema da ciência de então apresentava o homem como incapaz de cooperar com o

irresistível mecanismo da natureza. O mecanismo de Deus e o

mecanismo da matéria eram os imponentes resultados da limi­tada metafísica e da clara inteligência lógica. Também o século XVII foi genial e purificou o mundo do pensamento confuso. O século XVIII continuou o trabalho de limpeza, com impla­

cável eficiência. O esquema cientifico durou mais tempo que o esquema teológico. Depressa a humanidade perdeu o inte­

resse pela Graça Irresistivel, mas logo apreciou o competente mecanismo devido à ciência. Também no primeiro quartel do

século XVIII George Berkeley lançou a sua critica filosófica contra toda a base do sistema. Não conseguiu interromper a

corrente dominante do pensamento. No último capítulo de­senvolvi uma linha paralela de argumento que conduziria a um sistema de pensamento que baseia a natureza sobre o conceito de organismo, e não sobre o conceito de matéria. No presente capítulo proponho, em primeiro lugar, considerar como o pen­samento erudito concreto dos homens concebeu essa oposição

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

do mecanismo e do organismo. É na literatura que a observação concreta da humanidade recebe a sua expressão. Sendo assim, é para a literatura que devemos olhar, especialmente em suas formas mais concretas - a poesia e o teatro - se esperamos descobrir os pensamentos íntimos de uma geração.

Rapidamente verificamos que os povos ocidentais apre­sentam, em colossal escala, uma peculiaridade que comumente

se supõe característica especial dos chineses. Todo mundo se

surpreende de que o chinês possa ser de duas religiões: con­fucionista em algumas ocasiões e budistas em outras. Se isso é

verdade quanto à China, não sei; também ignoro se, na verdade, essas duas atitudes são realmente incompatíveis. Mas não pode haver dúvida de que fato análogo é verdadeiro em relação ao Ocidente, e que as duas atitudes em questão são incompativeis. Um realismo científico baseado no mecanismo conjuga-se com uma crença estável no mundo dos homens e dos animais supe­riores como constituídos de organismos auto determinados. Essa incompatibilidade radical na base do pensamento moderno res­ponde em grande parte pelo que há de dúbio e instável em nossa civilização. Seria ir muito longe afirmar que isso desvia o

pensamento. Enfraquece-o, em razão da inconsistência que se espreita ao fundo. Depois, o homem da Idade Média andava no encalço de uma excelência cuja existência quase esquecemos. Estabelecia para si o ideal de atingir uma harmonia de inteli­

gência. Contentamo-nos com ordenações superficiais de vários e arbitrários pontos de partida. Por exemplo, as empresas leva­

das a cabo pela energia individualista dos povos europeus pres­

supõem ações físicas dirigidas para causas finais. Mas a ciência empregada no seu desenvolvimento é baseada em uma filosofia

que assevera que a casualidade física é suprema e que separa a causa física da causa final. Não é vulgar insistir na conseqüen­te contradição absoluta. Tal é o fato, por mais que tentemos dissimulá-lo com frases. Naturalmente encontramos no século XVIII o famoso argumento de Paley segundo o qual o organis­mo supõe um Deus, autor da natureza. Mas, mesmo antes de

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I A CIÊNCIA E o MUNDO MODERNO I

Paley apresentar o seu argumento na forma definitiva, Hume tinha escrito em contraposição que o Deus que acharmos será a espécie de Deus que fez esse mecanismo. Em outras palavras, esse mecanismo pode, no máximo, pressupor um mecânico, não um mecânico qualquer, mas o seu mecânico. O único meio de atenuar o mecanismo é descobrir que ele não é mecanismo.

Quando deixamos a teologia apologética e encaramos a

literatura comum, achamos, como era de esperar, que a obser­vação científica é simplesmente ignorada. No que diz respeito

ao conjunto da literatura, nunca se ouviu falar na ciência. Até os nossos dias quase todos os escritores andam encharcados da literatura clássica e da renascentista. Para a maioria, nem a filo­sofia nem a ciência os interessam, e os seus espíritos são treina­

dos para ignorá-las. Há exceções a essa verificação ostensiva; e, mesmo se nos

ativermos à literatura inglesa, veremos que-isso se dá com al­guns dos maiores nomes e que também a influência indireta da

ciência é considerável. O exame de alguns desses poemas sérios da literatura in­

glesa, de evidente caráter didático, ilumina essa desviada incon­sistência do pensamento moderno. Os poemas importantes são: Paraíso perdido, de Milton; Ensaio sobre o homem, de Pope; A excursão, de Wordsworth; In Memoriam, de Tennyson. Embora

escrevesse depois da Restauração, Milton exprime o aspecto teológico dos primórdios do seu século, imune à influência do

materialismo científico. O poema de Pope representa a ação no pensamento popular dos sessenta anos de permeio que in­

cluem o primeiro período do assegurado triunfo do movimento científico. Wordsworth, em seu todo, exprime uma reação Cons­

ciente contra a mentalidade do século XVIII. Essa mentalidade significa nada menos que a aceitação das idéias científicas em todo o seu valor. Wordsworth não se importava com nenhum antagonismo intelectual. O que o movia era uma repulsa moral. Sentiu que alguma coisa fora abandonada e que aquilo que fora abandonado compreendia tudo de mais importante. Tennyson

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I ALFRED NORTH WH1TEHEAD I

foi o porta-voz das tentativas do movimento romântico em de­clínio no segundo quartel do século XIX para chegar a acordo com a ciência. Nesse período, os dois elementos do pensamento moderno tinham revelado a sua fundamental divergência, pelas suas interpretações contrárias do curso da natureza e da vida humana. Tennyson surge nesse poema como perfeito exemplo do já mencionado desvio. Há opostas visões de mundo, e ambas

exigem aprovação através de apelos a intuições finais das quais parecem não escapar. Tennyson vai ao âmago da dificuldade. É

o problema do mecanismo que lhe desperta atenção:

"As estrelas", murmura ela, "correm cegamente".

Esse verso apresenta perfeitamente toda a filosofia im­

plicita no poema. Cada molécula corre cegamente. O corpo humano é um conjunto de moléculas. Logo, o corpo humano corre cegamente, e portanto não pode haver nenhuma respon­sabilidade do indivíduo nas ações do corpo. Se vocês uma vez aceitarem que a molécula é definidamente determinada para ser o que é, independentemente de qualquer determinação em razão do organismo total do corpo, e se além disso admiti­rem que o curso cego é confirmado por leis mecânicas gerais, não haverá como escapar dessa conclusão. Mas as experiências

mentais são derivadas da ação do corpo, até mesmo, é claro, o seu comportamento interior. Assim, a única função da mente

é ter pelo menos algumas dessas experiências estabelecidas e acrescentar outras semelhantes conforme possam ser apresen­

tadas independentemente dos movimentos do corpo, tanto in­ternos como externos.

Há, então, duas teorias quanto à mente. Podemos ou ne­

gar ou admitir que ela possa suprir por si mesma quaisquer experiências diferentes das que lhe foram proporcionadas pelo corpo.

Se recusarmos admitir as experiências adicionais, toda responsabilidade moral do indivíduo é afastada para longe. Se

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I A CI~NCIA E o MUNDO MODERNO I

as admitirmos, então o ser humano pode ser responsável pela afirmação da sua inteligência, embora não tenha nenhuma responsabilidade pela ação do seu corpo. Esse enfraquecimen-to do pensamento no mundo moderno é ilustrado pelo modo como esse evidente resultado é evitado no poema de Tenny­sono Há alguma coisa guardada bem no fundo, um esqueleto no armário. Toca em quase todos os problemas religiosos e .::

cientificos, mas cautelosamente evita algo mais que uma alu­

são passageira a isso. Esse verdadeiro problema estava em pleno debate na

época do poema. John Stuart Mil! sustentava a sua teoria do determinismo. Nessa teoria as volições eram determinadas por motivos, e os motivos são expressáveis em termos de condições antecedentes, incluindo tanto situações da mente como situa­

ções do corpo. É óbvio que essa teoria não logra escapar do dilema apre­

sentado por um mecanismo em movimento, pois, se a volição atinge a situação do corpo, as moléculas do corpo não correm cegamente. Se a volição não atinge a situação do corpo, a mente

é ainda deixada em sua posição desconfortável. A teoria de Mil! é geralmente aceita, principalmente en­

tre cientistas, como se de algum modo ela permitisse aceitar a

teoria extremada do mecanismo materialístico, e também mi­tigava as suas incríveis conseqüências. Não fez nada disso. As moléculas do corpo correm cegamente ou não. Se correm cega­

mente, as situações mentais não têm importância em confronto

com as ações corporais. Expus os argumentos concisamente porque na verdade o

resultado é muito simples. Discussões prolongadas só dão ori­gem a confusão. Não vem ao caso a questão sobre o estado

metafísico das moléculas. A afirmação de que elas são meras formas não tem nenhuma força de argumento, pois presumi­velmente as fórmulas significam alguma coisa. Se nada signifi­cam, toda a teoria mecânica carece de significação e a questão acaba. Mas, se as fórmulas significam alguma coisa, o argumen-

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Page 53: Whitehead, alfred north. a ciência e o mundo moderno

J ALFRED NORTH WHITEHEAD J

to se aplica exatamente ao que significam. O meio tradicional de evitar a dificuldade - diverso do simples modo de não lhe dar atenção - é recorrer a alguma forma daquilo a que agora se chama de "vitalismo". Essa teoria é realmente um compromis­

so. Permite livre curso ao mecanismo por toda a natureza ina­nimada e sustenta que o mecanismo é parcialmente atenuado nos corpos animados. Sinto que essa teoria é um compromisso

que não satisfaz. O hiato entre a matéria animada e a inanima­

da é demasiado vago e problemático para suportar o peso de tal afirmação arbitrária, que envolve um dualismo essencial em

algum lugar. A teoria que sustento é que todo o conceito do materialis­

mo só se aplica a entidades verdadeiramente abstratas, produtos do discernimento lógico. As entidades concretas que se man­têm são organismos, de modo que o plano do "todo" influencia as verdadeiras propriedades dos organismos subordinados que nele entram. No caso de um animal, as situações mentais en­tram no plano do organismo total, e assim modificam os planos dos sucessivos organismos subordinados, até que se alcancem os menores organismos, comO os elétrons. Assim um elétron em um corpo animado é diferente de um elétron fora dele, em razão do plano do corpo. O elétron corre cegamente dentro do corpo ou fora dele, mas ocorre dentro do corpo, de acordo com

o seu caráter dentro do corpo, isto é, de acordo com o plano geral do corpo, e esse plano inclui a situação mental. Mas o

princípio da modificação é perfeitamente geral em toda a natu­reza, e representa a propriedade peculiar aos corpos vivos. Em

capítulos posteriores será esclarecido que essa teoria envolve o abandono do materialismo científico e a substituição de uma

teoria alternativa do organismo. Não discutirei o determinismo de Mill, visto que ultrapas­

sa o esquema desses capítulos. A discussão precedente preocu­pou-se em assegurar que ou o determinismo ou a vontade livre têm importância desvencilhada das dificuldades introduzidas pelo mecanismo materialístico, ou pelo compromisso do vita-

1 1041 I 1

I A CI~NClA E o MUNDO MODERNO \

lismo. Chamaria a teoria desses capítulos de teoría do "meca­nismo orgânico". Nessa teoria, as moléculas podem correr ce­gamente de acordo com as leis gerais, mas as moléculas diferem no seu caráter intrínseco de acordo com os planos orgânicos

gerais das situações em que elas se encontram. A discrepância entre o mecanismo materialístico da ciên­

cia e as intuições morais, que são pressupostos nas coisas con­

cretas da vida, apenas assumiram sua importância real com o

passar dos séculos. As diferentes tonalidades das épocas suces­sivas a que pertencem os mencionados poemas refletem-se curiosamente nas suas passagens iniciais. Milton termina a sua

introdução com a oração:

Que à altura deste grande argumento

Possa eu afirmar a eterna Providência

E justificar os caminhos de Deus aos homens.

A julgar do que dizem muitos escritores modernos sobre

Milton, poder-se-ia imaginar que o Paraíso perdido e o Paraíso reconquistado foram escritos como uma série de experiências em verso branco. Certamente não era essa a visão que tinha Milton de seu trabalho. "Justificar os caminhos de Deus aos ho­mens" era de fato o seu principal objetivo. Recorreu à mesma

idéia em Sansão combatente:

Justos são os caminhos de Deus

E justificáveis aos homens.

Notamos a grande quantidade de confiança segura, des­

preocupada pela avalanche científica que se aproximava. A

verdadeira data da publicação de Paraíso perdido ultrapassa a época a que pertence. É o canto de cisne de um mundo passado

de certeza inabalável. Uma comparação entre o Ensaio sobre o homem, de Pope,

e o Paraíso perdido mostra a mudança de tom do pensamento inglês nos cinqüenta ou sessenta anos que separam a época de

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

Milton da época de Pope. Milton dedica o seu poema a Deus, e o poema de Pope é dedicado a Lord Bolingbroke:

Acorda, meu são João! deixa todas as misérias

Para barrar a ambição e o orgulho dos reis.

Deixa-nos Uá que a vida é pouco mais

Que olhar ao redor de nós e morrer)

Espairecer livremente por essas cenas humanas;

Formidável labirinto! mas não sem plano.

Comparem a garbosa certeza de Pope:

Formidável labirinto! mas não sem plano.

com a de Milton:

JUStos são os caminhos de Deus

E justificáveis aos homens.

Mas o verdadeiro ponto para notar é que Pope, bem como Milton, não se incomodava com a grande perplexidade freqüen­te no mundo moderno. A sugestão que Milton seguiu era man­ter-se nos caminhos de Deus nas relações com o homem. Duas

gerações depois achamos Pope igualmente confiante em que os esclarecidos métodos da ciência moderna proporcionavam um

plano adequado como um mapa do "formidável labirinto" .

A excursão, de Wordswortb, é o próximo poema inglês sobre o meSmo assunto. Um prefácio em prosa diz-nos que ele

é um fragmento de um trabalho mais amplamente projetado, descrito como "um poema filosófico contendo visões do ho­mem, da natureza e da sociedade".

De modo bem característico, o poema começa com o verso:

Era verão, e o sol se havia elevado às alturas.

Assim, a reação romântica não começou nem com Deus

nem com o Lord Bolingbroke, mas COm a natureza. Testemu­nhamos aqui uma reação consciente contra todo o tom do sécu­

lo XVIII. Esse século aproximou a natureza da análise abstrata

1106 1

I A clENClA E o MUNDO MODERNO I

da ciência, ao passo que Wordsworth opõe toda a sua própria

experiência concreta às abstrações científicas.

Uma geração de ressurgimento religioso e de progresso científico medeia entre A excursão, de Wordsworth, e a In me­moriam, de Tennyson. Os primeiros poetas resolveram a per­

plexidade ignorando-a. Esse caminho não foi aberto a Tenny­sono Por isso, o seu poema inicia assim:

Forte Filho de Deus, Amor imortal,

A guem nós, gue não Lhe vimos a face,

Pela fé, tão-somente pela fé, abraçamos,

Acreditamos onde não podemos provar.

A nota da perplexidade é tocada imediatamente. O sécu­lo XIX foi um século de perplexidade, não sendo nisso igualado por nenhum seu predecessor do período moderno. Nos primeiros tempos houve campos opostos que amargamente se diversificaram

em questões julgadas fundamentais. Mas, exceto alguns poucos casos isolados} nenhum campo estava seguro de suas convicções. A

importância do poema de Tennyson está no fato de exprimir exa­tamente o caráter de seu periodo. Cada individuo estava dividido contra si próprio. No início} os pensadores mais profundos eram os

mais claros pensadores - Descartes, Spinoza, Locke, Leibniz. Sa­

biam exatamente o que queriam e o declaravam. No século XIX, alguns dos mais profundos pensadores entre filósofos e teólogos

eram pensadores confusos. Suas afirmações eram sustentadas por teorias incompatíveis; e os esforços pela conciliação produziam

uma confusão inevitável.

Mattbew Arnold, talvez mais do que Tennyson, foi o poeta

que exprimiu o estado de ânimo de perturbação individual que foi tão característico desse século. Comparem com In memoriam os

versos finais de Dover Beach [Praia de Dover], de Arnold:

E aqui estamos como sobre uma planície escura

Sacudidos por confusos alarmes de lutas e ascensões

Onde ignotos exércitos confrontam-se à noite.

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J ALFRED NORTH WHITEHEAD I

o cardeal Newman, em sua Apologia pro vita sua, men­ciona tudo isso como peculiaridade de Pusey, o grande teólogo anglicano: ''Atormentavam-no perplexidades não intelectuais". A esse respeito Pusey lembra Milton, Pope e Wordsworth, em contT'aste com Tennyson, Clough, Matthew Arnold e o próprio Newman.

No concernente à literatura inglesa, verificamos, como era

de prever, a crítica mais interessante dos pensamentos da ciên­cia entre os mentores da reação romântica que acompanham e

sucedem à época da Revolução Francesa. Na literatura inglesa, os mais agudos pensadores dessa escola foram Coleridge, Wor­dsworth e Shelley. Keats é um exemplo de literatura insensível à ciência. Podemos negligenciar as tentativas de Coleridge em uma formulação filosófica; não teve influência em sua própria geração, mas neste capítulo meu objetivo é só mencionar aque­les elementos do pensamento do passado que se manifestam

em todos os tempos. Mesmo com eSSa limitação, só uma sele­ção é possível. Para o nosso propósito, a única importância de Coleridge é a sua influência sobre Wordsworth. Assim restam Wordsworth e Shelley.

Wordsworth estava apaixonadamente absorvido pela na­tureza. De Spinoza se disse que andava embriagado de Deus. É igualmente verdade que Wordsworth andava embriagado da natureza. Mas era um homem reflexivo, versado, com interesses

filosóficos e sensato até chegar a extremos de prosaísmo. Além do mais, era um gênio. Enfraquecia Sua evidência com o desa­

mor da ciência. Todos nos lembramos de seu escárnio para com

um pobre homem a quem ele um tanto quanto irritavelmente acusa de observar e estudar plantas no túmulo da própria mãe.

Passagens e passagens podem ser transcritas dele, que expres­sam essa repugnância. A esse respeito, o seu pensamento ca­racterístico pode ser resumido nesta frase: "Assassinamos para dissecar" .

Nessa última passagem, ele revela a base intelectual de sua crítica à ciência. Alega contra a ciência sua absorção em

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I A CI~NCIA E o MUNDO MODERNO I

abstrações. O seu tema constante é que os fatos importantes da natureza iludem o método científico. É, pois, importante indagar o que Wordsworth achou na natureza que deixou de receber expressão na ciência. Faço essa pergunta no interesse da própria ciência, pois uma das principais afirmações deste capítulo é a contestação da idéia de que as abstrações da ciência são incorrigíveis e inalteráveis. Evidentemente não sucede que

Wordsworth deixe a matéria inorgânica à mercê da ciência e se concentre na fé de que no organismo animado há um elemento

que a ciência não pode analisar. Claro que reconhece, o que ninguém duvida, que, em certo sentido, as coisas inanimadas são diferentes das coisas sem vida. Mas o seu ponto principal não é esse, e sim a contemplativa presença das colinas que re­petidamente aparecem nele. O seu tema é a natureza in solido, isto é, insiste nessa misteriosa presença das coisas circundantes, que se impõe em qualquer elemento de per si que considera­mos como indivíduo em si. Sempre compreende o conjunto da natureza implícito na tonalidade de determinada circunstância. Por isso é que ri com os narcisos silvestres e acha nas prímulas

"pensamentos muito profundos para lágrimas". O maior poema de Wordsworth é, sem dúvida alguma,

o primeiro livro de O prelúdio. É invadido por esse sentimen­to da perturbadora presença da natureza. Diversas magníficas

passagens, demasiado longas para serem citadas, expressam essa idéia. Evidentemente, Wordsworth é um poeta escrevendo um poema, e nada tem com as ásperas afirmações filosóficas. Mas

dificilmente seria possível exprimir de modo mais claro o sen­

timento da natureza do que apresentando unidades preensivas entrelaçadas, cada qual repleta da presença modal das demais:

Vós, Presenças da Natureza no céu

E sobre a terra! Vós, Visões das colinas!

E Almas dos lugares ermos! poderei pensar

Que uma esperança trivial seja vossa guando empregais

Tais ministérios, guando vós, ao longo de muitos anos

Perseguindo-me assim entre os meus bringuedos de menino,

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I ALFRED NORTH WH1TEHEAD I

Em cavernas e árvores, nos bosques e nas colinas,

Gravados em todas as formas os sinais

De perigos e desejos; e assim fizestes

A superfície de toda a terra,

Com triunfo e deleite, com esperança e temor,

Trabalhar como um mar?.

Citando assim Wordsworth, o ponto a que desejo chegar

é que nos esquecemos quanto é forçada e paradoxal a visão da natureza que a ciência moderna nos impõe ao pensamento.

Wordsworth, do alto do gênio, expressa os fatos concretos de nossa apreensão, fatos que são distorcidos na análise cientifica. Não seria possível que os conceitos padronizados da ciência fossem válidos tão-somente com estreitas limitações, até mes­

mo para a própria ciência? A atitude de Shelley para com a ciência estava no pólo

oposto da posição de Wordsworth. Amava-a, e nunca se cansou de expressar em poesia os pensamentos que ela sugeria. Sim­boliza para ele alegria, paz e luz. O que foram as colinas de in­

fância de Wordsworth foi um laboratório químico para Shelley. Infelizmente os críticos de Shelley têm, a esse respeíto, muito pouco de Shelley em sua mentalidade. Tendem a tratar como casual excentricidade da índole de Shelley o que de fato fazía parte do mais íntimo do seu espírito e está presente em toda

a sua poesia. Se Shelley tivesse nascido cem anos mais tarde, o século XX teria visto um Nevvton entre os quimicos.

Para poder avaliar o valor da prova de Shelley, é importan­

te reconhecer essa absorção do seu espírito nas idéias científi­

cas. Isso pode ser exemplificado por diversos poemas líricos. Es­colherei só um poema, o quarto ato do seu Prometeu libertado. A Terra e a Lua conversam entre si em linguagem de apurada ciência. Experimentos físicos conduzem as imaginações do po­eta. Por exemplo, a aclamação da Terra

A vaporosa exultação que não deve ser limitada!

I 110 I

I A C!~NC1A E o MUNDO MODERNO I

é a transcrição da "força expansiva dos gases", conforme é de­signada nos livros de ciência. Novamente tomemos a estrofe

da Terra: Giro sob minha pirâmide de noite,

Que aponta para o céu - deleite sonhador,

Murmurando alegria triunfante no meu sono encantado;

Como um jovem suspirando levemente embalado por sonhos

de amor,

Estendendo-se à sombra de sua beleza,

Que mantém em torno do seu repouso um cuidado de luz e

calor.

Essa estrofe só poderia ser escrita por uma pessoa munida de um diagrama geométrico perante seu olhar interior - um

diagrama que sempre procurei demonstrar em aulas de mate­mática. Como é evidente, percebam especialmente o último verso, que dá imagem poética à luz que circunda a pirâmide da noite. Essa idéia não podia ocorrer a uma pessoa sem o dia­grama. Mas todo o poema e ainda outros são permeados de

referências desse tipo. Agora o poeta, que tanto simpatiza com a ciência, tão

absorto em suas idéias, não pode fazer simplesmente nada

da teoria das qualidades secundarias, fundamental para seus conceitos, porque a natureza de Shelley mantém sua beleza e sua cor. A natureza de Shelley é em essência uma natu­

reza de organismos, funcionando com todos os conteúdos de nossa experiência perceptual. Estamos tão acostumados a negligenciar a implicação da doutrina científica ortodoxa,

que é difícil evidenciar a critica implicada sobre ela neste

caso. Se alguém pudesse ter tratado disso seriamente, Shel­

ley o teria feito. Além disso, Shelley concorda com Wordsworth quanto à

interfusão da presença na natureza. Aqui está a primeira estrofe

do seu poema intitulado Monte branco:

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

o eterno universo das coisas

Flui através da mente e agita as suas rápidas ondas

Ora escuras, ora cintilantes, ora refletindo as trevas

Ora trazendo esplendor, onde, de origens secretas,

A fonte do pensamento humano traz o seu tributo

De águas - com um som que é a metade de si mesmo,

Tal um fino regato assumirá muita vez

Na selva selvagem, na solidão da montanha,

Onde as cachoeiras em torno sempre despenham,

Onde matas e ventos combatem, e um imenso rio

Por sobre suas rochas incessantemente irrompe e ruge.

Shelley escreveu esses versos com clara referência a uma forma de idealismo, kantiano, berkeliano ou platônico. Mas,

Como quer que o interpretem, aqui está um enfático testemu­nho de uma unificação preensiva como constituinte do verda­deiro ser da natureza.

Berkeley, Wordsworth e Shelley são representativos da recusa intuitiva em aceitar seriamente o materialismo abstrato da ciência.

Há uma diferença interessante no tratamento da natureza feito por Wordswortb e por Shelley, diferença essa que eviden­cia as questões exatas sobre as quais temos de pensar. Shelley

considera a natureza em mudança, em dissolução, em transfor­mação como ao toque de uma varinha mágica. As folhas voam diante do vento oeste

Como fantasmas em uma fuga encantada.

Em seu poema A nuvem, são as transformações da água que lhe excitam a imaginação. O assunto do poema é a infinita, eterna e furtiva mudança das coisas:

Mudo, mas não posso morrer.

A furtiva mudança é um aspecto da natureza: uma mu­dança não para ser expressa na locomoção, mas uma mudança

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I A Ci~NClA E o MUNDO MODERNO I

de caráter interior. Shelley insiste nisto: na mudança do que não pode morrer.

Wordsworth nasceu entre montanhas: montanhas princi­palmente nuas de árvores, mostrando assim o mínimo de mu­dança nas estações. Era atormentado pelas enormes permanên­

cias da natureza. Para ele a mudança é um incidente que passa por um fundo de duração:

Quebrando o silêncio dos mares

Entre as remotas Hébridas.

Todo esquema para a análise da natureza tem de encarar esses dois fatos: "mudança" e "duração". Há ainda que conside­rar um terceiro fato a que chamarei "eternalidade". Montanhas duram. Mas, quando com a sucessão das épocas se desgastam, acabam. Se outras surgirem, serão contudo novas montanhas. Uma cor é eterna. Aparece freqüentemente como um espíri­to. Vem e vai. Mas, onde quer que esteja, é a mesma cor. Não sobrevive nem vive. Aparece quando solicitada. As montanhas têm com o tempo e o espaço uma relação diferente da que tem a cor. No capitulo anterior, considerei principalmente a relação com o espaço-tempo de coisas que, no sentido de meu termo, são eternas. Era necessário fazê-lo antes de podermos passar à

consideração das coisas que duram. Também devemos recordar a base do nosso processo. Pen­

so que a filosofia é a crítica das abstrações. Sua função é dupla, primeiro a de harmonizá-las, apontando-lhes a sua conveniente situação relativa como abstrações, segundo a de completá-las pela comparação direta com intuições do universo mais con­

cretas, e portanto promover a formação do mais completo es­quema de pensamento. É a respeito dessa comparação que o testemunho dos grandes poetas tem tanta importância. Sua so­brevivência é prova de que eles expressam profundas intuições da humanidade penetrando naquilo que é universal no fato concreto. A filosofia não é uma das ciências com o seu próprio pequeno esquema de abstrações, que aperfeiçoa e melhora. É

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

a visão geral das ciências com o objetivo de as harmonizar e completar. Leva a essa tarefa não só a evidência das ciências de per si, mas também o seu próprio apelo à experiênda concreta. Confronta as ciências com os fatos concretos.

A literatura do século XIX, principalmente a poesia in­glesa, é um testemunho da discordância entre as intuições es­téticas da humanidade e o mecanismo da ciência. Shelley põe

vividamente perante nós a eterna ilusão dos objetos dos senti­dos como freqüentemente aparecem na mudança que afeta os organismos básicos. Wordsworth é o poeta da natureza como sendo o campo das permanências duradouras levando consigo uma mensagem de tremenda significação. A esse respeito, os objetos eternos também são para ele

A luz que nunca esteve na terra ou no mar.

Tanto Shelley como Wordsworth claramente testemu­nham que a natureza não pode divorciar-se de seus valores estéticos; e que esses valores derivam, em certo sentido, da evi­dente presença do todo por sobre as suas várias partes. Assim, extraímos dos poetas a doutrina de que uma filosofia da nature­za deve levar em conta pelo menos essas seis noções: mudança, valor, objetos eternos, duração, organismo, interfusão.

Vemos que o movimento romântico na literatura no iní­cio do século XIX, bem como o movimento filosófico idealista de Berkeley um século antes} recusou confinar-se nos conceitos materialistas da teoria científica ortodoxa. Sabemos também que, quando nestes capítulos chegarmos ao século XX, achare­

mos um movimento na própria ciência para reorganizar a sua conceituação, também dirigido pelo seu próprio movimento intrínseco.

É, contudo, impossível continuar enquanto não estabele­cermos se essa remodelação de idéias deve ser levada a cabo em base objetiva ou subjetiva. Por base subjetiva entendo a crença de que a natureza da nossa experiência imediata é o resultado das peculiaridades perceptivas do sujeito da expe-

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I A CI~NClA E o MUNDO MODERNO I

riência. Em outros termos, quero dizer que para essa teoria o percebido não é uma visão parcial de um complexo de coisas geralmente independentes do respectivo ato de cognição, mas que é simplesmente a expressão das peculiaridades individuais do ato cognitivo. Assim, o que é comum à multiplicidade dos

atos cognitivos é o raciocínio a eles relacionado. Por isso, em­bora haja um mundo comum de pensamento associado à nossa

percepção sensorial, não há um mundo comum para pensar. O que pensamos é em um mundo conceitual comum que se

aplica indiferentemente às nossas experiências individuais que são estritamente pessoais para nós. Tal mundo conceitual nós

acharemos, enfim, nas equações da matemática aplicada. Essa é a extrema posição subjetivista. Há naturalmente a posição intermediária daqueles que acreditam que a nossa experiência perceptiva nos fala de um mundo objetivo comum, mas que as coisas percebidas são simplesmente para nós o resultado desse mundo, e não são em si elementos do próprio mundo comum.

Há também a posição objetiva. Essa crença consiste em que os verdadeiros elementos percebidos pelos sentidos são em si mesmos elementos do mundo comum, e que esse mundo é um complexo de coisas que inclui até os nossos atos de cogni­ção, mas transcendendo-os. De acordo com esse ponto de vista, as coisas experimentadas devem ser distintas da noção que te­mos delas. Até o ponto em que há dependência, as coisas abrem o caminho para a cognição, e não vice-versa. Mas o ponto é que as verdadeiras coisas experimentadas entram em um mundo comum que transcende o conhecimento, embora o inclua. Os subjetivistas intermediários sustentariam que as coisas expe­rimentadas só indiretamente entram no mundo comum, em razão da sua dependência do sujeito que está conhecendo. Os objetivistas afirmam que as coisas experimentadas e o sujeito

que exerce a cognição entram no mundo comum em termos iguais. Nesses capítulos apresentarei o esboço do que julgo a essência de uma filosofia objetivista adaptada às exigências da ciência e à experiência concreta da humanidade. Pondo de lado

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

a crítica detalhada das dificuldades levantadas por qualquer subjetivismo, minhas amplas razões para desconfiar dele são três. Uma razão surge da indagação direta da nossa experiência perceptiva. Resulta dessa indagação que não estamos dentro de um mundo de cores, sons e outros objetos dos sentidos relacio­nados quanto ao espaço e ao tempo a outros objetos duradou­ros tais como pedras, árvores e corpos humanos. Nós próprios

parecemos elementos desse mundo no mesmo sentido em que o são as demais coisas que percebemos. Mas os subjetivistas, mesmo os moderados, fazem esse mundo, como descrito, de­pender de nós de uma maneira que impede diretamente nossa experiência simples. Sustento que o apelo final é para a expe­riência simples e é por isso que dei tanta importância à prova da poesia. Meu objetivo consiste em que em nossa experiência sensorial conhecemos para aquém e para além de nossa per­sonalidade, enquanto os subjetivistas sustentam que em tais experiências conhecemos simplesmente a nossa personalidade. Mesmo os subjetivistas intermediários colocam a nossa perso­nalidade entre o mundo que conhecemos e o mundo comum

que admitem. O mundo que conhecemos é para eles a força interna da nossa personalidade sob a força do mundo comum que está escondido.

Minha segunda razão para desconfiar do subjetivismo baseia-se no conteúdo especial da experiência. Nosso conhe­cimento histórico fala-nos de uma idade no passado que, por onde quer que se andasse, não existia ser vivo sobre a Terra. Também nos fala de incontáveis sistemas planetários cuja his­tória pormenorizada continua fora de nosso alcance. Conside­

rem a própria Terra e a Lua. O que se passa no interior da

Terra e na mais remota parte da Lua? Nossas percepções nos conduzem a inferir que algo está acontecendo nas estrelas, algo está acontecendo dentro da Terra, e algo está acontecendo na parte mais remota da Lua. Também nos dizem que em idades remotas muitas coisas aconteciam. Mas todas essas coisas que parecem ter acontecido certamente ou são desconhecidas em

I 116 I

I A CltNCIA E o MUNDO MODERNO 1

detalhe ou ainda reconstruídas por evidência inferencial. Em face desse conteúdo da nossa experiência pessoal, é difícil acre­ditar que o mundo experimentado seja um atributo da nossa

própria personalidade. Minha terceira razão se baseia no instinto da ação. Exata­

mente como a percepção sensorial parece dar a noção do que está além da individualidade, assim a ação parece surgir de um

instinto de auto transcendência. A atividade passa além de si no mundo transcendente conhecido. Aqui é que os últimos fins

têm importância, pois não é a atividade impelida do oculto que passa para o mundo velado dos subjetivistas intermediários. É a atividade dirigida a fins determinados para o mundo conhecido; e ainda é a atividade que transcende a si mesma e é a atividade dentro do mundo conhecido. Por conseguinte, o mundo como o conhecemos transcende o objeto que exerce a sua cognição.

A posição subjetivista foi popular entre os que se empe­nharam em dar uma interpretação filosófica a recentes teorias

sobre a relatividade na física. O fato de o mundo dos sentidos depender da percepção do individuo parece um modo fácil de exprimir as significações em causa. Naturalmente, com exceção dos que estavam contentes consigo por acreditarem que forma­vam todo o universo, solitários em meio do nada, todos querem voltar a alguma posição objetiva. Não compreendo como um

mundo comum de pensamento possa ser estabelecido com au­sência de um mundo comum dos sentidos. Não discuto esse ponto em detalhe, mas na ausência de uma transcendência de pensamento ou de uma transcendência do mundo dos senti­

dos, é difícil entender como os subjetivistas escapariam de sua solidão. Nem os subjetivistas intermediários parecem alcançar

alguma ajuda para o seu mundo desconhecido na base. A distinção entre realismo e idealismo não coincide com

a distinção entre objetivismo e subjetivismo. Tanto os realistas como os idealistas podem partir de um ponto de vista objeti­vo. Podem ambos convir em que o mundo que se manifesta na percepção sensorial é um mundo comum, transcendendo o

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I ALfRED NORTH WHITEHEAD I

recipiente do indivíduo. Mas, quando o idealista objetivo chega a analisar o que a realidade desse mundo envolve, verifica que a mentalidade cognitiva é de certo modo inextricavelmente re­lacionada em todos os detalhes. Essa posição é negada pelos realistas. De acordo com isso, essas duas classes de objetivistas

não se separam enquanto não chegam aos últimos problemas da metafísica. Eles têm muita coisa em comum. Eis por que,

em meu último capítulo, disse que adotava uma posição de

realismo provisório. No passado, a posição objetivista foi desviada pela suposta

necessidade de aceitar um materialismo científico clássico com a sua doutrina de posição simples. Isso suscitou a doutrina das qualidades primárias e secundárias. Assim, as qualidades secun­dárias, como os objetos dos sentidos, são tratadas sob principios subjetivistas. Essa é uma posição intermediária que se toma presa fácil da crítica subjetivista.

Se devemos incluir as qualidades secundárias no mundo comum, será necessária uma reorganização verdadeiramente drástica da nossa concepção fundamental. É um fato evidente da experiência que nossas apreensões do mundo exterior de­pendem absolutamente dos acontecimentos no corpo humano.

Executando as habilidades apropriadas sobre um corpo, um homem pode conseguir perceber, ou não, quase tudo. Algumas pessoas se exprimem como se corpos, cérebros e nervos fossem as únicas coisas reais em um mundo inteiramente imaginário.

Em outras palavras, tratam os corpos com base em princípios

objetivos, e o restante do mundo com base em principios subje­tivos. Isso é inadequado, especialmente quando nos lembramos

de que é a percepção do experimentador do corpo de outra

pessoa que está em questão como prova. Temos, porém, de admitir que o corpo é o organismo

cujas situações regulam a nossa cognição do mundo. A unida­de do campo perceptual deve ser, portanto, a unidade de uma percepção corpórea. Prestando atenção à experiência corpórea, devemos, portanto, estar atentos a aspectos de todo o mundo

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I A C1~NCIA E o MUNDO MODERNO I

espaciotemporal, refletindo-se nele a vida corpórea. Essa é a

solução do problema proposto em meu último capítulo. Não me repetirei agora, a não ser para lembrar a vocês que a minha teoria envolve o completo abandono da noção de que a posi­ção simples constitui a maneira primária pela qual as coisas estão implícitas no espaço-tempo. Em certo sentido, todas as

coisas estão em todas as partes em todos os tempos, pois cada

localização envolve um aspecto de si mesma em todas as de­

mais localizações. Assim, todo ponto de vista espaciotemporal reflete o mundo.

Se vocês tentarem imaginar essa doutrina em termos de nossa visão convencional de espaço e tempo que pressupõe po­sição simples, haverá um grande paradoxo. Mas, se vocês consi­derarem em termos de nossa experiência simples, teremos uma

mera transcrição dos fatos óbvios. Vocês estão em certo lugar percebendo as coisas. A percepção de vocês acontece onde vo­

cês estão, e é inteiramente dependente do lugar onde o corpo de vocês está em atividade. Mas essa atividade do corpo em um único lugar apresenta à cognição de vocês um aspecto do am­biente distante, absorvendo-se no conhecimento geral de que há coisas para além. Se essa cognição traz a idéia de um mundo transcendente, deve ser porque o acontecimento que é a vida

corporal unifica em si mesmo aspectos do universo. Essa é uma doutrina extremamente consonante com a ví­

vida expressão da experiência pessoal que achamos na poesia da

natureza dos escritores de ficção como Wordsworth e Shelley.

As patentes e imediatas presenças das coisas são uma obsessão de Wordsworth. O que a teoria faz é evitar que a mentalidade

cognitiva seja substrato necessário da unidade de experiência. Tal unidade é agora colocada na unidade de um acontecimento. Acompanhando essa unidade, pode ou não haver cognição.

Nesse ponto voltamos à grande questão que nos foi pro­posta pelo nosso exame da prova apresentada pela visão poé­tica de Wordsworth e Shelley. Essa questão única se expande em um grupo de questões. O que são coisas duradouras, como

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD !

distintas dos objetos eternos tais como cor e forma? Como são possíveis? Qual é seu status e significação no universo? Che­gamos a isso: Qual é a situação da estabilidade duradoura da ordem da natureza? Eis a resposta sumária, que refere a natu­reza a alguma realidade maior que a acompanha. Essa reali­dade ocorre na história do pensamento sob muitos nomes: O Absoluto, Brahma, A Ordem Celeste, Deus. O delineamento da

verdade metafísica final não pertence a esse capitulo. Meu ponto é que qualquer conclusão sumária que pule da nossa convicção

da existência de tal ordem da natureza para a simples a:6.nnação de que há uma verdade última que, de algum modo inexplicado,

deve ser levado em conta para remover a perplexidade constitui por parte da racionalidade a grande recusa de reivindicar os seus direitos. Temos de verificar se a natureza, em sua verdadeira essên­cia, mostra-se explicada por si mesma. Com isso quero dizer que a pura afirmação de que as coisas são pode conter elementos expli­cativos de por que as coisas são. É de esperar que tais elementos se refiram às profundezas para além de qualquer coisa que possamos apanhar com uma apreensão clara. Em certo sentido, todas as ex­plicações devem concluir em arbitrariedade final. Minha preten­

são é que a última arbitrariedade do fato do qual começa o nosso enunciado deve revelar os mesmos principios gerais da realidade que obscuramente discriminamos como se estendendo em regiões para além do nosso explicito poder de discernimento. A natureza

se apresenta como exemplificação de uma filosofia da evolução de organismos sujeitos a condições especificas. Exemplos des­

sas condições são as dimensões do espaço, as leis da natureza, as entidades de duração determinada, tais como átomos e elé­

trons, que exemplificam essas leis. Mas a verdadeira natureza dessas entidades, a verdadeira natureza da sua espacialidade

e temporalidade deve apresentar a arbitrariedade dessas con­dições COmo o resultado de uma ampla evolução para além da própria natureza e na qual ela não é senão um modo limitado.

A transição das coisas, a passagem de uma para outra, constitui a evidência do perpassar, inerente ao verdadeiro ca-

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I A CI~NCIA E o MUNDO MODERNO I

ráter do real. Essa passagem não é uma simples série linear de entidades distintas. Como quer que fixemos uma entidade determinada, há sempre mais estrita determinação de alguma

coisa pressuposta em nossa primeira escolha. Há também uma determinação mais ampla na qual desaparece a nossa primeira escolha mediante transição para além de si mesma. O aspecto geral da natureza é de expansividade evolutiva. Essas unidades

que chamo de acontecimentos emergem na realidade de algu­

ma coisa. Como caracterizar essa coisa que emerge? O nome de "acontecimento" dado a tal unidade chama a atenção para a inerente transitoriedade combinada com a unidade real. Mas

essa palavra abstrata não pode ser suficiente para caracterizar o que o fato da realidade de um acontecimento é em si. Um pensamento momentâneo mostra-nos que nenhuma idéia em si pode ser suficiente, pois toda idéia que encontra significa­ção em cada acontecimento deve representar alguma coisa que contribua para o que a realidade vem a ser em si mesma. Assim, nenhuma palavra pode ser adequada. Em compensa­ção, porém, nada deve ser desprezado. Recordando o papel dos poetas em nossa experiência concreta, vemos logo que o ele­mento de valor, de ser valioso, de ter valor, de ser um fim em si, de ser uma coisa por si mesma, não deve ser omitido em

nenhuma consideração de acontecimento como aquilo que é mais concreto e real. "Valor" é a palavra que uso para designar a realidade intrínseca do acontecimento. Valor é um elemento

que penetra a visão poética da natureza. Só temos de transferir para a verdadeira tessitura da realidade em si esse valor que tão

prontamente reconhecemos: em termos de vida humana, esse

é o segredo da adoração wordsworthiana da natureza. Realiza­ção em si é, portanto, a consecução do valor. Nada há, porém, que seja meramente valor. O valor é o resultado da limitação. A entidade definida e finita é o modo escolhido como forma da consecução; fora de tal forma na matéria individual, não há nenhuma consecução. A mera fusão de tudo o que existe seria a não-entidade do indefinido. A salvação da realidade são

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as suas entidades imutáveis, irredutíveis, de fato, que se limi­tam a não ser outra coisa senão elas mesmas. Nem a ciência, nem a arte, nem a ação criadora podem ser arrancadas de fatos imutáveis, irredutíveis e limitados. A duração das coisas tem a sua significação na auto-retenção daquilo que se impõe como uma definida consecução por si mesma. O que dura é limitado, obstrutivo, intolerante, afetan40 as suas proximidades com os seus próprios aspectos. Mas não basta a si mesmo. Os aspectos de todas as coisas entram em sua verdadeira natureza. O que dura só se representa reunindo em sua própria limitação o mais amplo conjunto em que se encontra. Em compensação, só se representa emprestando os seus aspectos ao meio em que se encontra. O problema da evolução é o desenvolvimento das harmonias duradouras de formas duradouras do valor implícito em mais altas consecuções das coisas para além de si mesmas. A consecução estética é entrelaçada com a tessitura da realização. A duração de uma entidade representa a consecução de um êxito estético limitado, embora, se olharmos além dela para os

seus efeitos externos, possa representar um malogro estético. Ainda que dentro de si mesma possa representar o conflito en­

tre um êxito mais baixo e um malogro mais alto. O conflito é o presságio da irrupção.

A discussão posterior, da natureza dos objetos duradouros e das condições que requerem, será importante para a conside­ração da teoria da evolução que dominou a segunda metade do século XIX. O ponto que tentei tornar claro neste capitulo é

que a poesia da natureza do ressurgimento romântico foi uma defesa da concepção orgânica da natureza e também um pro­testo contra a exclusão do valor da essência do fato. Nesse as­

pecto, o movimento romântico pode ser concebido como uma revivescência do protesto de Berkeley lançado cem anos antes. A reação romântica é uma defesa do valor.

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I CAP[TU LO VI I

O SÉCULO XIX

No último capítulo ocupei-me com a comparação da poe­sia da natureza no movimento romântico da Inglaterra COm a filosofia da ciência materialista legada pelo século XVIII. Notou-se o completo desacordo entre os dois movimentos do pensamento. O capitulo também prosseguiu no esforço por esboçar uma filosofia objetivista capaz de preencher a lacuna existente entre a ciência e essa intuição fundamental da humanidade que encontra expressão na poesia e exempli­ficação prática em pressupostos da vida cotidiana. Quando o século XIX passou, o movimento romântico terminou. Não terminou inteiramente, mas perdeu a clara unidade de rio desbordante e dispersou-se por muitos estuários quando se misturou com outros interesses humanos. A fé do século de­rivava de três fontes. Uma era o movimento romântico, ma­nifestando-se em ressurgimento religioso, em aspirações de arte e de política; a outra foi o amplo progresso da ciência, que alargou os caminhos do pensamento; a terceira foi o pro­gresso da técnica, que mudou completamente as condições

da vida humana. Cada uma dessas fontes teve a sua origem no período

precedente. A própria Revolução Francesa foi primogênita do romantismo na forma em que a matizou Rousseau. James Watt obteve patente da sua máquina a vapor de 1769. O progresso científico foi a glória da França e da influência francesa no de­curso daquele século.

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Também, mesmo durante esse período anterior, as corren­tes influenciaram-se, confundiram-se e opuseram-se umas às outras. Mas só no século XIX esse tríplice movimento atingiu o desenvolvimento completo e o ritmo e as características pecu­liares aos sessenta anos posteriores à batalha de Waterloo.

O que é peculiar e novo no século, que o diferencia de to­dos os predecessores, é a sua técnica. Não se trata da introdução

de inventos isolados. É impossivel não sentir que está em jogo

algo mais do que isso. Por exemplo, a escrita é uma invenção maior que a máquina a vapor. Mas, traçando a história contí­

nua do desenvolvimento da escrita, encontramos uma enorme diferença com relação à história da máquina a vapor. Devemos, é claro, deixar de lado antecipações menores e esporádicas de ambas, e ater-nos ao período de sua elaboração, pois a escala

de tempo é completamente diversa. Para a máquina a vapor, devemos dar cem anos, mais ou menos; para a escrita, o perío­

do de tempo é da ordem de um milênio. Além disso, quando a escrita foi finalmente popularizada, o mundo não estava então à espera do passo seguinte no domínio da técnica. O processo de mudança foi lento, inconsciente e inesperado.

No século XIX, o processo tomou-se rápido, consciente e esperado. A primeira metade do século foi o período em que essa nova atitude de mudança foi pela primeira vez experimen­

tada e sentida. Foi um periodo peculiar de esperança, no senti­

do de que, sessenta ou setenta anos mais tarde, podemos agora rastrear uma nota de desilusão, ou pelo menos de ansiedade.

A maior invenção do século XIX foi a do método da in­venção. Veio ao mundo um novo método. Para entendermos

a nossa época, podemos negligenciar todos os detalhes da transformação, tais como ferrovias, telégrafo, rádio, máquinas

rotativas, tintas sintéticas. Podemos concentrar-nos no próprio método, a real novidade, que abalou os alicerces da antiga ci­vilização. A profecia de Francis Bacon cumpriu-se agorá; e o homem, que às vezes se imaginou um pouco abaixo dos anjos, submeteu-se a ser o ministro e o servo da nat';lreza. Continua

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I A CI~NClA E o MUNDO MODERNO I

a ser visto como tal, se é que o mesmo ator pode desempenhãr os dois papéis.

A transformação completa nasceu da nova informação científica. A ciência, concebida não tanto em seus principios, mas mais em seus resultados, é um óbvio celeiro de idéias a serem utilizadas. Mas, se devemos entender o que aconteceu durante o século, a analogia de uma mina é melhor que a de

um celeiro. Além disso, constitui grande engano pensar que a simples idéia cientifica seja a invenção exigida, de tal modo

que seja suficiente tomar e usar. Um intenso período de proje­to imaginativo se estende de um a outro ato. Um elemento do novo método é precisamente a descoberta de como estabelecer uma ponte para unir as idéias cientificas e os seus últimos pro­dutos. É um processo de abordagem disciplinada a uma dificul­

dade em seguida da outra. As possibilidades da técnica moderna foram pela primeira

vez realizadas, na prática, na Inglaterra, pela energia de uma próspera classe média. Assim, a Revolução Industrial começou

nesse lugar. Mas os alemães compreenderam explicitamente os métodos pelos quais os mais profundos veios na mina da ciên­cia podiam ser alcançados. Aboliram o puro acaso dos métodos de conhecimento. Nas suas escolas técnicas e universidades, o progresso não ficara à espera de eventuais gênios, nem de

eventual pensamento feliz. Suas realizações de conhecimento durante o século XIX foram a admiração do mundo. Essa disci­

plina de conhecimento foi aplicada tanto à ciência pura como à técnica, e daí ao ensino geral. Representa a troca de amadores

por profissionais. Sempre houve pessoas que consagraram a vida a regiões

especificas do pensamento. De modo particular, os juristas e o clero da Igreja Católica formam exemplos claros de tal especia­lização. Mas a compreensão total e consciente do poder do pro­fissionalismo no conhecimento em todos os seus departamen­tos, do meio de produzir os profissionais, da importância do conhecimento para o progresso da técnica, dos métodos pelos

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quais as noções abstratas podem correlacionar-se com a técnica

e das ilimitadas possibilidades do progresso técnico, enfim, a realização de todas essas coisas foi pela primeira vez efetiva­da no século XIX, e, entre os vários países, principalmente na Alemanha.

No passado, a vida humana transcorria em um carro de bois; no futuro, transcorrerá em um aeroplano; e a mudança de

velocidade corresponderá a uma diferença qualitativa.

A transformação do campo do conhecimento, que assim se efetuou, não constitui de todo uma vantagem. Pelo menos há perigos implícitos, muito embora o crescimento da eficiên­cia seja inegável. A discussão dos vários efeitos sobre a vida social resultante da nova situação está reservada para o último capitulo. Agora basta notar que essa nova situação de progresso disciplinado é o plano em que se desenvolve o pensamento do século.

No período considerado, quatro idéias nOvas foram intro­duzidas na ciência teórica. Obviamente é possível apresentar bons motivos para aumentar a lista para muito além de "qua­tro". Mas ative-me a idéias que, se tomadas em sentido lato, são vitais para as tentativas modernas de reconstituir os fundamen­tos da ciência física.

Duas dessas idéias são antitéticas e considerá-Ias-ei junta­mente. Não abordaremos detalhes, mas suas últimas influências sobre o pensamento. Uma dessas idéias é a de um campo de

atividade física que abrange todo o espaço, mesmo onde haja

um vácuo evidente. Essa idéia ocorreu a muita gente e sob vá­rias formas. Estamos lembrados do axioma medieval "a natu­

reza abomina o vácuo". Também os vórtices de Descartes, em

certo tempo, no século XVII, pareceram estabelecer-se entre as verificações cientificas. Newton acreditava que a gravitação era causada por alguma coisa acontecida em um meio. Mas,

em conjunto, no século XVIII nada foi feito dessas idéias. A passagem da luz foi explicada à moda de Newton pelo võo de minúsculos corpúsculos, que naturalmente deixaram espaço

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I A CI~NCIA E o MUNDO MODERNO I

para um vácuo. Os físicos matemáticos andavam ocupadíssi­mos em deduzir as conseqüências da teoria da gravitação para darem muita importância às causas; nem saberiam para onde olhar se dessem importância a essa questão. Houve especula­ção, mas sem grande importância. Assim, quando começou o século XIX, a noção de ocorrências físicas estendendo-se por todo o espaço não manteve nenhum lugar efetivo na ciência.

Ressurgiu de duas fontes. A teoria ondulatória da luz triun­

fou, graças a Thomas Young e a Fresnel. Isso demanda a exis­tência de alguma coisa no espaço que ondule de acordo com

isso; produziu-se o éter como matéria sutil que penetrava por toda parte. Novamente a teoria do eletromagnetismo afinal, nas mãos de Clerk Maxwell, assumiu uma forma exigindo que existisse ocorrência eletromagnética por todo o espaço. A teo­ria de Maxwell sô alcançou forma final por volta da década de 1870. Mas tinha sido preparada por muitos grandes homens: Ampêre, Oersted, Faraday. De acordo com a vigente concepção materialista, essa ocorrência eletromagnética também requeria matéria na qual acontecer. Por isso, novamente se apelou para o éter. Então, Maxwell, como os frutos imediatos da sua teo­

ria, demonstrou que as ondas da luz eram simplesmente ondas das suas ocorrências eletromagnéticas. Assim, o resultado foi a teoria eletromagnética superar a teoria da luz. Foi uma gran­de simplificação, e ninguém duvida de sua verdade. Mas teve

efeito infeliz no que se refere ao materialismo, pois, enquanto uma espécie muito simples de éter elástico bastava para a luz

quando tomada em si, o éter eletromagnético tinha de estar dotado precisamente daquelas propriedades necessárias à pro­

dução dos fenômenos eletromagnéticos. De fato, toma-se um

simples nome da matéria que se postula na base dessas ocor­rências. Uma vez que não se aceite a teoria metafísica que faz postular tal éter, este pode ser descartado, pois não tem nenhu­ma vitalidade independente.

Assim, durante a década de 70 do séc. XIX, algumas das principais ciências físicas foram estabelecidas em base que pres-

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

supõe a idéia de continuidade. 'De outro lado, a idéia de "ato­

micidade" fora introduzida por John Dalton, para completar o trabalho de Lavoisier na fundação da química. Essa é a segunda grande noção. A matéria comum é concebida como atômica.

Os efeitos eletromagnéticos são concebidos como resultantes de um campo continuo.

Não havia contradição. Em primeiro lugar, as noções são

antitéticas; mas, deixando de lado incorporações especiais, não são logicamente contraditórias. Em segundo lugar, eram aplica­

das a diferentes regiões do pensamento: uma à química, outra

ao eletromagnetismo. E, até agora, só há fracos sinais de mistura

entre as duas.

A noção de matéria atômica teve uma longa história. De­mócrito e Lucrécio imediatamente ocorrerão à memória de vo­

cês. Falando dessas idéias como novas, quero dizer simplesmen­te relativamente novas, tendo em vista o conjunto das idéias que

formavam a base eficiente da ciência durante o século XVIII. Considerando a história do pensamento, é necessário distinguir

a corrente real que determina um período de pensamentos sem

efeito casualmente sustentados. No século XVIII, todos os ho­mens cultos liam Lucrécio e tinham idéias sobre o átomo, mas

John Dalton é que a tornou eficiente na corrente científica; e

nessa função de eficiência, atomicidade era uma idéia nova.

A influência da atomicidade não se limitava à química. A célula viva é para a biologia o que o elétron e o próton são

para a físíca. Sem as células e os conjuntos de células não há fenômeno biológico. A teoria celular foi introduzida na biolo­

gia contemporaneamente a Dalton, mas independentemente

da sua teoria atômica. As duas teorias são exemplificações in­dependentes da mesma idéia de "atomismo". A teoria celular

da biologia era um crescimento gradual, e uma simples lista de datas e nomes ilustra o fato de que as ciências biológicas,

como esquemas efetivos de pensamento, não têm mais de cem

anos. Bichât, em 180 I, elaborou uma teoria do tecido; Johan­nes Müller, em 1835, descreveu "células" e demonstrou fatos

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I A CI~NCIA E o MUNDO MODERNO I

concernentes à sua natureza e relações; Schleiden, em 1838,

e Schwann, em 1839, estabeleceram-lhe finalmente o caráter fundamental. Assim, por volta de 1840 tanto a biologia como a química foram estabelecidas em bases atômicas. O triunfo final do atomismo teve de esperar pela chegada dos elétrons no fim do século. A importância do fundo imaginativo é ilustrada pelo fato de que, perto de um século depois de Dalton realizar a

sua obra, outro químico, Louis Pasteur, levou avante as mesmas

idéias de atomicidade, indo mais longe que Dalton. A teoria celular e a realização de Pasteur eram em muitos aspectos mais

revolucionárias que as idéias de Dalton, pois introduziram a

idéia de organismo no mundo dos infinitamente pequenos. Ha­via tendências para tratar o átomo como uma entidade última,

só capaz de relações externas. Essa atitude cai por terra sob a

influência da lei periódica de Mendeleiev. Mas Pasteur apon­tou a decisiva importância da idéia de organismo no estágio

da grandeza infinitesimal. Os astrônomos nos mostraram como o universo é grande. Os químicos e os biólogos nos ensinam

quanto é pequeno. Há na prática científica moderna um famo­so padrão de extensão. É um tanto reduzido; para obtê-lo, de­vemos dividir o centímetro em cem milhões de partes e tomar

uma delas. Os organismos de Pasteur são bem maiores que essa extensão. Em conexão com os átomos, sabemos agora que há

organismos para os quais tais distâncias são inquietantemente

grandes. As duas outras idéias novas a serem atribuídas a essa época

são ambas relacionadas com a idéia de transição ou mudança.

São a teoria da conservação da energia e a teoria da evolução.

A teoria da energia relaciona-se com a noção de permanência quantitativa ímplicita na mudança. A teoria da evolução relacio­na-se com o aparecimento de novos organismos como resultado

da mudança. A teoria da energia está na região da física. A teoria da evolução está principalmente na região da biologia, embora fosse tratada por Kant e Laplace em conexão com a formação das estrelas e dos planetas.

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o efeito convergente da nova força para o progresso cien­tífico resultante dessas quatro idéias transformou a metade des­se século em uma orgia de triunfo científico. Homens esclare­cidos, que estavam evidentemente errados, agora proclamavam que os segredos do universo físico estavam afinal desvendados. Se somente nós omitíssemos tudo quanto se recusa a ser le­vado em conta, o nosso poder de explicação seria ilimitado.

De outra parte, homens de inteligência confusa emaranharam­se nas mais indefensáveis posições. O dogmatismo aprendido,

conjugado á ignorância de fatos primordiais, sofreu uma pesada derrota dos que advogavam novos processos científicos. Assim, além do incitamento derivado da revolução técnica, cumpre agora acrescentar o resultante dos aspectos desvendados pela teoria científica. Tanto a base material como a base espiritual da vida social estavam em processo de transformação. Quando o século entrou nos últimos vinte e cinco anos, as três fontes de inspiração - a romântica, a técnica e a científica - tinham realizado a sua tarefa.

Então, quase de repente, ocorreu uma pausa; e em seus úl­timos vinte anos o século fechou com um dos mais monótonos estágios de pensamento desde o tempo da Primeira Cruzada. Era um eco do século XVIII, exceto Voltaire e a virtude teme­rária da aristocracia francesa. O período foi eficiente, monóto­no e desleixado. Celebrou o triunfo do homem profissional.

Mas, reportando-nos a esse tempo de pausa, podemos agora discernir sinais de mudança. Em primeiro lugar, as con­

dições modernas da investigação sistemática impedem absolu­

ta estagnação. Em todos os ramos da ciência, havia progresso efetivo, progresso verdadeiramente rápido, muito embora fosse

confinado um tanto estritamente às idéias aceitas de cada ramo. Era uma idade de ortodoxia científica bem-sucedida, não per­turbada por muito pensamento além das convenções.

Em segundo lugar, podemos agora ver que o inadequado do materialismo científico como esquema de pensamento para o uso da ciência era perigoso. A conservação da energia propor-

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I A CI~NClA E o MUNDO MODERNO I

cionou novo tipo de permanência quantitativa. É verdade que a energia podia ser construída Como algo subsidiário à matéria. Mas, ainda assim, a noção de "massa" estava perdendo a sua única preeminência na qualidade de a única quantidade per­manente final. Mais tarde, achamos as relações de massa e ener-gia invertidas, de modo que massa se tornou o nome de uma quantidade de energia considerada em relação a algum dos seus "

efeitos dinâmicos. Essa corrente de pensamento conduziu à no-ção de energia como fundamental, deslocando assim a matéria

dessa posição. Mas energia é apenas um nome de um aspecto quantitativo de uma estrutura de acontecimentos; em suma, tudo depende da noção de funcionamento de um organismo. A

questão é saber se se pode definir o organismo sem recorrer ao conceito de matéria em posição simples. Devemos mais tarde

considerar, com maiores detalhes, esse assunto. A mesma relegação da matéria ao segundo plano ocorre

em conexão com os campos eletromagnéticos. A teoria mo­derna pressupõe acontecimentos nesse campo divorciados da dependência imediata da matéria. É costume apresentar o éter como um substrato. Mas o éter não entra nessa teoria. Assim, novamente a noção de matéria perde a sua posição fundamen­tal. Também o átomo transforma-se em organismo: finalmente

a teoria da evolução nada mais é que a análise das condições para a formação e sobrevivência de vários tipos de organismos. Na verdade, um fato mais significativo desse último período é

o progresso nas ciências biológicas. Essas são ciências que es­

sencialmente dizem respeito ao organismo. Durante a época em questão, e na verdade também no momento presente, o

prestigio da mais perfeita forma científica pertence às ciências físicas. Sendo assim} a biologia imita os procedimentos da física.

É ortodoxo sustentar que nada há em biologia senão o mecanis­mo físico sob algumas das circunstâncias complexas.

Uma dificuldade dessa posição é a atual confusão sobre a concepção fundamental da ciência física. A mesma dificul­dade também se relaciona com a teoria oposta do vitalismo,

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

pois nessa última teoria o fato do mecanismo é aceito - quero dizer, mecanismo baseado no materialismo - e um controle adicional e vital é introduzido para explicar as ações dos corpos vivos. Não pode ser claramente compreendido que as várias leis físicàs que parecem aplicar-se ao comportamento dos átomos não são mutuamente constantes como na presente formulação. O apelo ao mecanismo em favor da biologia foi em sua origem

um apelo aos conceitos físicos bem atestados e constantes por

si mesmos que expressam a base de todos os fenômenos natu­rais. Mas na atualidade não há tal sistema de conceitos.

A ciência está tomando um novo aspecto que não é nem puramente físico nem puramente biológico. Está transforman­do-se no estudo dos organismos. A biologia é o estudo dos orga­nismos maiores, ao passo que a física é o estudo dos organismos menores. Há outra diferença entre as duas divisões da ciência. Os organismos da biologia incluem como ingredientes os or­ganismos menores da física, mas não há atualmente nenhuma prova de que os organismos menores da física possam ser ana­lisados em organismos componentes. Que seja assim. Mas, de qualquer modo, somos confrontados com a questão de haver ou não organismos primários incapazes de análises posteriores. Parece muito improvável que pudesse haver alguma infinita re­gressão na natureza. Assim, uma teoria da ciência que exclua o materialismo deve responder à questão sobre o caráter des­sas entidades primárias. Só pode haver uma resposta com base nisso. Devemos começar com o acontecimento como a última unidade da ocorrência natural. Um acontecimento relaciona­se com tudo quanto há, e em particular com todos os demais acontecimentos. Essa interfusão de acontecimentos é influen­ciada pelos aspectos dos objetos eternos tais como cores, sons, cheiros, caracteres geométricos exigidos pela natureza e não decorrentes dela. Esse objeto eterno será um ingrediente de um acontecimento sob a aparência ou aspecto da qualificação de outro acontecimento. Há uma reciprocidade de aspectos, e há modelos de aspectos. Cada acontecimento corresponde a dois

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I A CIÊNCIA E o MUNDO MODERNO I

desses modelos; isto é, o modelo de aspectos de outros acon­tecimentos que apanha em sua própria unidade, e o modelo dos seus aspectos que outros acontecimentos respectivamente apanham nas suas unidades. Assim, uma filosofia da natureza não materialista identificará um organismo primário como a decorrência de algum modelo particular apanhado na unidade do acontecimento real. Tal modelo também incluirá os aspec­

tos do acontecimento em questão, como apanhado em outros acontecimentos, por meio do qual esses outros acontecimentos recebem modificação ou determinação parcial. Há, assim, uma realidade intrínseca e outra extrínseca de um acontecimento, isto é, o acontecimento em sua própria preensão, e o aconte­cimento na preensão de outros acontecimentos. O conceito de organismo inclui, portanto, o conceito de ação mútua dos or­ganismos. As idéias científicas comuns de transmissão e conti­nuidade são, falando de modo relativo, detalhes que concernem aos caracteres empíricos observados desses modelos através do tempo e do espaço. A postura aqui sustentada é a de que as relações de um acontecimento são internas no que diz respeito ao próprio acontecimento, o que significa que são constitutivas daquilo que o acontecimento é em si mesmo.

Também como no capítulo anterior, chegamos á noção de que um acontecimento real é uma realização cabal por si mes­ma, um apossar-se de diversas entidades em um valor decorren­te da razão da real condição de estarem juntas nesse modelo, com exclusão de outras entidades. Não é a mera conjugação

lógica de meras coisas diversas, pois, nesse caso, modificando as palavras de Bacon, "todos os objetos eternos seriam seme­lhantes entre si". Essa realidade significa que cada essência in­

trínseca, isto é, o que o objeto eterno é em si mesmo, torna-se importante para um valor limitado que se destaca da aparên­cia de acontecimento. Mas os valores diferem em importância. Assim, embora o acontecimento seja necessário à comunidade dos acontecimentos, o alcance da sua contribuição é determi­nado por algo intrínseco em si. Temos agora de discutir o que

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

vem a ser essa propriedade. A observação empírica mostra que é a propriedade que todos chamamos indiferentemente "reten­ção", "duração" ou "reiteração". Essa propriedade importa no restabelecimento em favor do valor em meio à transitoriedade da realidade, da entidade em si que é também experimentada

pelos objetos eternos primários. A reiteração de determinada forma (ou formação) de um valor em um acontecimento OCorre

quando o acontecimento como um todo repete alguma forma

também apresentada por cada sucessão de suas partes. Assim, como quer que analisemos o acontecimento de acordo com o

fluxo de suas partes através do tempo, há a mesma coisa em si apresentando-se diante de nós. Sendo assim, o acontecimento em sua própria realidade reflete-se como derivado de suas pró­prias partes, aspectos do mesmo valor modelar como se realiza em sua completa essência. Assim se realiza sob a aparência de uma entidade individual duradoura como uma história de vida contida em si mesma. Além disso, a realidade extrínseca de tal acontecimento refletida em outro acontecimento toma a mes­

ma forma de uma individualidade duradoura; só nesse caso a individualidade é implantada como uma reiteração de aspectos de si mesma nos outros acontecimentos que constituem o am­biente.

A duração temporal total de tal acontecimento que con­tém e conserva o modelo constitui o seu presente ilusório. Nesse

presente ilusório, o acontecimento atualiza-se como totalidade

e, ao fazer isso, agrupa em conjunto certo número de aspectos de suas próprias partes temporais. Um e o mesmo modelo é

atualizado no acontecimento total e é apresentado por cada

uma das suas várias partes através de um aspecto de cada parte apanhada no conjunto do acontecimento total. Igualmente, a história anterior de vida do mesmo modelo é apresentada em seus aspectos nesse acontecimento total. Há, portanto, nesse acontecimento, uma lembrança da história anterior de vida de seu próprio modelo dominante como constituindo um elemen­to de valor em seu próprio ambiente antecedente. Essa pre-

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I A CI~NClA E o MUNDO MODERNO I

ensão concreta de dentro de uma história de vida de um fato

duradouro é divisível em duas abstrações, uma das quais é a entidade duradoura que ressalta como um fato para ser tomado em conta por outras coisas, e o outro é a incorporação individu­alizada da energia fundamental de atualização.

A consideração da marcha geral dos acontecimentos con­duz a essa análise de uma energia fundamental eterna em cuja

natureza ressalta uma configuração do domínio de todos os

objetos eternos. Tal configuração é o terreno dos pensamentos individualizados que ressaltam como aspectos de pensamentos

apanhados na história de vida dos mais sutis e mais complexos modelos duradouros. Também na natureza da atividade eterna deve estender-se uma configuração de todos os valores a serem obtidos pelo conjunto real dos objetos eternos configurados em situações ideais. Tais situações ideais, separadas de qualquer realidade, são privadas de valor intrínseco, mas valem como elementos propostos. A preensão individualizada em aconteci­mentos individuais de aspectos dessas situações ideais toma a forma de pensamentos individualizados, e como tais tem valor intrínseco. Assim surge o valor porque não há uma conjugação real dos aspectos ideais, como em pensamento, com os aspectos reais, como no processo de ocorrência. Desse modo, nenhum

valor deve restringir-se á atividade básica divorciado dos acon­tecimentos de fato do mundo real.

Finalmente, para resumir o meu pensamento, a atividade

básica concebida á parte da realização tem três tipos de confi­

gurações, que são: primeiro, a configuração dos objetos eternos; segundo, a configuração das possibilidades de valor a respeito

da síntese dos objetos eternos, e por último a configuração do fato real que deve entrar na situação total que se completa COm o acréscimo do futuro. Mas, abstraindo-se da realidade, a ativi­dade eterna é divorciada do valor, porque a realidade é o valor. A percepção indiVidual decorrente de objetos duradouros varia em sua profundidade e largura, de acordo com a maneira como o modelo domina o seu próprio caminho. Pode representar a

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mais leve ondulação diferenciadora da energia substrata geral;

ou, no Outro extremo, pode surgir para o pensamento cons­ciente, que inclui a ponderação antes do juízo consciente, as possibilidades abstratas de valor inerente a várias situações de

conjunto ideal. Os casos intermediários agrupam-se em torno da percepção individual, configurando (não conscientemente) aquela possibilidade de realização que representa a mais pró­

xima analogia com o seu próprio passado imediato que tem relação com os aspectos atuais apresentados à preensão. As leis da física representam o harmonizado ajustamento de desen­

volvimento resultante desse único princípio de determinação. Assim, a dinâmica é dominada por um princípio de menor ação cujo caráter detalhado deve ser aprendido na observação.

As entidades atômicas consideradas na ciência física são simplesmente essas entidades duradouras, concebidas com abs­tração de tudo, exceto o concernente à sua recíproca influência que determina os caminhos da história de vida de cada uma das outras. Essas entidades são parcialmente formadas pela inerên­cia de aspectos de outros acontecimentos que constituem o seu ambiente. As leis da física são as que declaram como os aconte­

cimentos reagem mutuamente. Para a física, essas leis são arbi­trárias, pois essa ciência prescindiu do que as entidades são em si. Vímos que esse fato do que as entídades sejam em si é passí­vel de modificações pelo ambiente. Por conseguinte, a afirmação

de que nenhuma modificação dessas leis deva ser procurada em ambientes que tenham qualquer diferença marcante com res­

peito a ambientes para os quais as leis tenham sido observadas

não tem fundamento. As entidades físicas podem ser modifica­das de maneiras muito essenciais, no que concerne a essas leis.

Pode até ocorrer que elas se desenvolvam em individualidades de tipos mais fundamentais, com mais larga incorporação de configuração. Tal configuração pode alcançar a consecução da ponderação de valores alternativos com o exercício de escolha para além das leis físicas e que só se pode exprimir em termos de desígnio. Pondo à parte tais possibilidades remotas, perma-

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1 A CltNCIA E o MUNDO MODERNO 1

nece uma dedução imediata de que uma entidade individual cuja própria história de vida é uma parte dentro da história de vida de algum modelo maior, mais profundo e mais completo, é suscetível de ter aspectos desse modelo maior que domina o seu próprio ser, e de experimentar modificações desse modelo maior refletido como modificações do seu próprio ser. Essa é a teoria do mecanismo orgânico.

De acordo com essa teoria, a evolução das leis da natu­reza concorre com a evolução do modelo duradouro, porque

o estado geral do universo, tal como é atualmente, em parte determina a verdadeira essência das entidades cujos modos de função são expressos por essas leis. O principio geral é que em um novo ambiente há uma evolução de todas as entidades em novas formas.

Esse rápido esboço de uma teoria sistemática da natureza habilita-nos a compreender os principais requisitos da teoria da evolução. O principal trabalho, dando prosseguimento durante essa pausa no século XIX, foi a absorção dessa teoria como guia

metodológico de todos os ramos da ciência. Por uma cegueira quase judicial como uma penalidade imposta ao pensamento superficial e apressado, muitos pensadores religiosos opuseram­se à nova teoria, muito embora, na verdade, uma filosofia radi­calmente evolucionista seja incompatível com o materialismo. O estofo ou material originário de que parte uma filosofia ma­

terialista é incapaz de evolução. Esse material é em si a subs­

tância última. A evolução, na filosofia materialista, reduz-se ao papel de ser outro termo para a descrição das mudanças das

relações externas entre porção e matéria. Nada há para evoluir, porque um conjunto de relações externas é tão bom quanto

outro conjunto de relações externas. Pode haver simplesmente mudança, sem propósito nem progresso. Mas toda a tese da teo­ria moderna consiste na evolução dos organismos complexos com base nos estados antecedentes de organismos menos com­plexos. A teoria, pois, clama por uma concepção do organismo como fundamental para a natureza. Também exige uma ativi-

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dade básica - uma atividade substancial- que se expresse em

incorporações individuais, e que evolua em plenas realizaçõ('s de organismo. O organismo é uma unidade de valor salient~, uma fusão real dos caracteres dos objetos eternos, que surgeln por si mesmos.

Assim, no processo de analisar o caráter da natureza em si, verificamos que o aparecimento de organismos depende de

uma atividade seletiva que se assemelha ao propósito. O ponto é que os organismos duradouros são agora o resultado da evo­

lução; e que, para além desses organismos, não há nada mais que dure. No que diz respeito à teoria materialista, há material - como matéria de eletricidade - que dura. Quanto à teoria orgânica, as únicas durações são estruturas da atividade, e as estruturas são expandidas.

As coisas duradouras são, assim, o resultado de um pro­cesso temporal; ao passo que as coisas eternas são os elemen­tos exigidos para a verdadeira essência do processo. Podemos dar uma definição precisa da duração deste modo: admitamos

um acontecimento A ser penetrado por um modelo estrutural duradouro. Então, A pode ser exaustivamente subdividido em uma sucessão temporal de acontecimentos. Admitamos que B seja uma parte de A, que é obtido tirando cada um dos acon­tecimentos pertencentes a uma série que assim subdivide A. Então, o modelo duradouro é um modelo de aspectos dentro do modelo completo preendido na unidade de A e é também

um modelo completo preendido na unidade de qualquer frag­mento temporal de A, como B. Por exemplo, uma molécula é

um modelo apresentando num acontecimento de um minuto e de qualquer segundo desse minuto. É óbvio que esse modelo

duradouro pode ser de maior ou de menor importância. Pode exprimir algum fato insignificante em conexão com as ativida­des básicas assim individualizadas; ou pode expressar alguma conexão muito próxima. Se o modelo que dura é simplesmente derivado dos aspectos imediatos do meio exterior, refletido nos pontos de vista das várias partes, então a duração é um fato ex-

I 138 I

I A CI~NC1A E O MUNDO MODERNO I

trínseco de somenos importância. Mas, se o modelo duradouro é inteiramente derivado dos aspectos imediatos, das várias se­ções temporais do acontecimento em questão, a duração é um fato intrínseco importante. Exprime certa unidade de caráter unindo as atividades básicas individualizadas. Há, então, um

objeto duradouro com certa unidade em si e no resto da natu­reza. Usemos o termo duração física para exprimir a duração

desse tipo. Assim, duração físíca é o processo da herança con­

tínua de certa identidade de caráter transmitido mediante um caminho histórico de acontecimentos. Esse caráter pertence ao

caminho todo e a todos os acontecimentos do caminho. Essa é a exata propriedade. Se existiu por dez minutos, existiu em todos os minutos dos dez minutos e durante todos os segundos de to­dos os minutos. Só se tomarmos a matéria como fundamental, essa propriedade de duração será um fato arbitrário na base da ordem da natureza; mas, se tomarmos o organismo como funda­mental, essa propriedade é o resultado da evolução.

À primeira vista dir-se-á que um objeto físico, com o seu processo de herança de si mesmo, é independente do meio am­biente. Mas tal conclusão carece de justificação, pois admita­mos que B e C sejam dois fragmentos sucessivos na vida de

um objeto, de tal modo que C suceda a B. Então, o modelo duradouro em C é herdado de B e de outras partes análogas antecedentes da sua vida. É transmitido de B para C. Mas o que

é transmitido a C é o modelo completo de aspectos derivados de acontecimento como B. Esses modelos completos incluem

a influência do meio sobre B e sobre as demais partes antece­dentes da vida do objeto. Assim, os aspectos completos da vida

antecedente são herdados como o modelo parcial que dura por

todos os períodos da vida. Com isso, um ambiente favorável é

essencial à manutenção de um objeto físico. A natureza como a conhecemos compreende enormes

permanências. Há a permanência da matéria comum. As molé­culas nas mais antigas rochas conhecidas pelos geólogos podem ter existido imutáveis por mais de um bilhão de anos, não só

I 139 I

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

em si mesmas, mas na disposição relativa entre si. Nesse espaço de tempo, o número das pulsações de uma molécula a vibrar

com a freqüência da luz do sódio amarelo seria de cerca de 16,3 x 10"= 163.000 X (10')3 Até há pouco tempo, o átomo era aparentemente indestrutível. Conhecemo-lo melhor hoje em dia. Mas o átomo indestrutível foi sucedido pelo elétron aparentemente indestrutível e pelo próton indestrutível.

Outro fato a explicar é a grande similitude desses objetos

praticamente indestrutíveis. Todos os elétrons são semelhantes

entre si. Não precisamos exagerar essa evidência e dizer que eles são idênticos; mas o nosso poder de observação não pode vislumbrar diferença alguma. Analogamente, todos os núcle­os de hidrogênio são semelhantes. Também notamos o grande número desses objetos análogos. Há milhões deles. Poder-se-ia

dizer que certa similitude seria uma condição favorável para a duração. O senso comum também sugere essa conclusão. Para

que os organismos possam sobreviver, devem atuar juntos. Assim, a chave do mecanismo da evolução é a necessidade

de um ambiente favorável a evolução, conjugado com a evolu­ção de qualquer tipo especifico de organismos capazes de gran­de permanência. Qualquer objeto fisico que, por sua influência,

modifica o seu ambiente, se suicida. Um dos modos mais simples de envolver um ambiente

favorável em concorrência com o desenvolvimento do orga­nismo individual é o de que a influência de cada organismo no

ambiente deve ser favorável a duração de outros organismos do mesmo tipo. Além disso, se o organismo também favorece o

"desenvolvimento" de outros organismos do mesmo tipo, então

obteremos um mecanismo de evolução adaptado a produzir o estado observado de grandes multidões de entidades análogas, com altos poderes de duração, pois O ambiente desenvolve-se automaticamente com a espécie, e a espécie com o ambiente.

A primeira indagação a fazer é se há alguma prova dire­ta para tal mecanismo na evolução de organismos duradouros. Observando a natureza, devemos lembrar que não existem tão-

1 140 1

I A CI~NClA E o MUNDO MODERNO I

somente organismos básicos cujos ingredientes são meros as­pectos de objetos eternos. Há também organismos de organis­mos. Suponhamos, no momento e por questão de simplicidade, que afirmamos, sem nenhuma prova, que os núcleos de elétron e de hidrogênio são tais organismos básicos. Então, os átomos

e as moléculas são organismos do mais alto tipo, que também representam uma unidade compacta, definida e orgânica. Mas,

quando chegamos a maiores agregados de matéria, a unidade

orgânica é relegada ao segundo plano. Parece ser apenas fraca e elementar. Está presente, mas o modelo é vago e hesitante.

É um mero agregado de efeitos. Quando chegamos aos seres vivos, o caráter definido do modelo é recuperado, e o caráter orgânico adquire de novo preeminência. Assim, as leis caracte­rísticas da matéria inorgânica são principalmente as médias es­tatisticas resultantes de agregados conjugados. Tão longe estão de lançar luz sobre a natureza última das coisas, que mancham e obliteram o caráter individual dos organismos individuais. Se desejamos lançar luz sobre os fatos relativos aos organismos, devemos estudar ou as moléculas e elétrons individuais, ou os seres vivos individuais. Entrementes encontramos conjugação comparativa. Atualmente, a dificuldade de estudar a molécula individual é que conhecemos pouco sobre a sua história. Não

podemos manter nenhum indivíduo sob observação continua. Em geral, lidamos com eles em grandes agregados. No que diz respeito aos indivíduos, algumas vezes com dificuldades, um

grande experimentador projeta, por assim dizer, um feixe de luz em um deles, e só observa um fato de efeito instantâneo.

Assim, a história do funcionamento das moléculas ou elétrons

individuais é grandemente oculta para nós. Mas no caso dos seres vivos, podemos traçar a história dos

indivíduos. Então achamos exatamente o mecanismo aqui exi­gido. Em primeiro lugar, há a propagação das espécies a partir de membros da mesma espécie. Há também a cuidadosa pro­visão do ambiente favorável para a duração da família, da raça ou da semente no fruto.

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

É evidente, contudo, que expliquei o mecanismo da evo­

lução em termos demasiado simples. Achamos espécies asso­ciadas de seres vivos proporcionando para cada um deles um ambiente favorável. Portanto, exatamente como cada elemento da mesma espécie favorece o outro, assim também fazem os membros das espécies associadas. Achamos o fato rudimentar da associação na existência de duas espécies de núcleos de elé­

tron e de hidrogênio. A simplicidade da associação dual e a evidente ausência de competição de outras espécies antagôni­

cas são levadas em conta na duração maciça que encontramos

entre elas. Há, portanto, dois lados do mecanismo peculiar ao desen­

volvimento da natureza. De um lado, há um ambiente dado com organismos que se lhe adaptam. O materialismo científico

da época em análise acentuou esse aspecto. Desse ponto de vis­ta, há um dado conjunto de materiais, e só um número limitado

de organismos pode tirar proveito dele. O arranjo do ambiente domina tudo. Assim, a última palavra da ciência parece ser Luta

pela Vida e Seleção Natural. Os próprios escritos de Darwin são para todos os tempos um modelo de recusa a ir além da prova direta e da cuidadosa retenção de todas as hipóteses pos­síveis. Mas essas virtudes não são tão patentes em seus seguido­res e menos ainda em seus companheiros de luta. A imaginação

dos sociólogos e jornalistas europeus foi marcada pela exclusiva atenção para esse aspecto dos interesses em conflito. Prevaleceu

a idéia de que havia um peculiar realismo de espírito forte no afastamento das considerações éticas na determinação da con­

duta dos interesses comerciais e nacionais. O outro lado do mecanismo da evolução, o lado negli­

genciado, é expresso pela palavra criatividade. Os organismos podem criar o seu próprio ambiente. Para esse fim, o organismo de per si é quase sem serventia. As forças adequadas exigem sociedades de organismos em cooperação. Mas, em tal coopera­ção e em proporção com o esforço empregado, o ambiente tem uma plasticidade que altera todo o aspecto ético da evolução.

1 142 1

I A CI~NClA E O MUNDO MODERNO I

No passado imediato e no presente, um confuso estado de espírito é permanente. A crescente plasticidade do ambiente para a humanidade, resultante do progresso na tecnologia cien­tífica, está sendo construída em termos de hábitos de pensa­mento que acham a sua justificação na teoria de um ambiente fixo.

o enigma do universo não é tão simples. Há o aspecto da

permanência nO qual um dado tipo de consecução é infinita­mente repetido por si mesmo; e há o aspecto da transição para

outras coisas - pode ser de mais alto valor ou de mais baixo valor. Também há os seus aspectos de luta e de amigável auxí­lio. A crueldade romântica não está mais próxima da política realista do que está a abnegação romântica.

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Page 73: Whitehead, alfred north. a ciência e o mundo moderno

I CAPiTULO VII I

A RELATIVIDADE

No capítulo anterior deste curso consideramos as condi­ções antecedentes que levaram ao movimento cientifico e tra­çamos o progresso do pensamento do século XVII ao século XIX. No século XIX, essa história acontece em três partes, conforme seu agrupamento em tomo da ciência. Essas divi­sões são o contato entre o movimento romântico e a ciência,

o desenvolvimento da técnica e da física na primeira parte do século e, finalmente, a teoria da evolução combinada com o progresso geral das ciências biológicas.

A nota dominante de todo o periodo de três séculos é que

a doutrina do materialismo proporcionou uma base adequada ao conceito da ciência. Era algo praticamente inquestionável.

Quando se pediam ondulações, dava-se o éter, de modo a rea­lizar os deveres da matéria ondulatória. Para mostrar toda a

concepção que isso envolve, esbocei uma doutrina alternativa de uma teoria orgânica da natureza. No último capítulo afirmei

que os desenvolvimentos biológicos, a teoria da evolução, a teo­ria da energia e as teorias moleculares estavam rapidamente

abalando os alicerces da adequação do materialismo ortodoxo. Mas até o fim do século ninguém chegou a eSSa conclusão. O

materialismo reinou supremo. A marca da época atual é que tantas complexidades foram

desenvolvidas no que se refere à matéria, ao espaço, ao tempo

e à energia, que a simples segurança de antigas afirmações orto­

doxas acabou por definhar. Claro que não ficarão como Newton

I 145 I

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Page 74: Whitehead, alfred north. a ciência e o mundo moderno

I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

as deixou, nem mesmo como as deixou Clerk Maxwell. Deve

haver uma reorganização. A situação nova do pensamento h2:. diemo resulta do fato de que a teoria científica está ultrapassan­do o senso comum. O enunciado tal como nos legou o século

XVIII, foi um triunfo do senso comum organizado. Livrara-se

das fantasias medievais e dos vórtices cartesianos. Como resulta­

do, deu pleno desenvolvimento às suas tendências anti-raciona­

listas derivadas da reviravolta histórica do período da Reforma. Assentou-se sobre o que todo homem comum pode ver com os

seus próprios olhos, ou com um microscópio de poder razoável.

Media as coisas claramente mensuráveis, e generalizava as coi­

sas claramente generalizáveis. Por exemplo, generalizava as no­

ções ordínárias de peso e de massa. O século XVIII iniciou com a confiança completa de que a tolice tinha sido evitada. Hoje estamos no pólo oposto do pensamento. Sabe-se que aquilo que parece sem sentido hoje pode tornar-se amanhã uma verdade

demonstrada. Retomamos algo do tom do principio do século XIX, só que em nível imaginativo mais alto.

A razão por que estamos em nível imaginativo mais alto

é não que temos imaginação mais refinada, mas sim que temos

melhores instrumentos. Em ciência, a coisa mais importante

que aconteceu durante os últimos quarenta anos foi o progresso

na forma dos instrumentos. Esse progresso é em parte devido a

alguns homens de gênio como Michelson e os ópticos alemães.

Também se deve ao progresso dos processos técnicos de manu­fatura, particularmente no domínio da metalurgia. O projetista

tem agora à sua disposição uma variedade de materiais de dife­rentes propriedades físicas. Pode assim contar com o material

que deseja; e isso pode ser a base das formas que deseja dentro de estritos limites de tolerância. Esses instrumentos puseram

o pensamento em novo nível. Um instrumento faz o mesmo

que uma viagem ao estrangeiro: mostra as coisas em combina­

ções inusitadas. O lucrn é mais do que simples adição: ~ transformação. Ó progresso na engenhosidade experimental é talvez devido à maior proporção do talento público que agora é

11461

I A CI~NCIA E O MUNDO MODE:RNO I

aplicado nas pesquisas cientificas. De qualquer modo, seja qual for O propósito, experiências sutis e engenhosas abundam na

última geração. O resultado é que uma grande quantidade de informação foi acumulada em regiões da natureza removidas

para muito longe da experiência comum da humanidade.

Duas famosas experiências, uma projetada por Galileu no princípio do movimento científico, e a outra por Michelson ,.

com o uso do seu famoso interferômetro, empreendida pela

primeira vez em 1881, e repetida em 1887 e em 1905, ilustram as afirmações que acabo de fazer. Galileu deixou cair corpos pesados do alto da torre inclinada de Pisa e demonstrou que

corpos de diferentes pesos, soltados simultaneamente, alcança­riam o solo juntos. No que se refere à habilidade experimental e à delicadeza do aparelho, essa experiência podia ser feita em qualquer tempo dos cinco milênios anteriores. As idéias em questão concernem meramente ao peso e à rapidez no trajeto,

idéias que são familiares na vida ordinária. Todo conjunto de idéias podia ter sido familiar ao rei Minas de Creta, quando atirava pedras ao mar do alto das muralhas que se elevavam na praia. Não conseguimos compreender completamente que a

ciência começou com a organização das experiências ordiná­

rias. Foi desse modo que ela se uniu tão estreitamente ao ponto

de vista anti-racionalista da reviravolta histórica. Não andava

à procura de significações últimas. Limitava-se a investigar as

conexões que regulam a sucessão dos acontecimentos óbvios.

Já a experiência de Michelson não poderia ter sido feita antes. Ela requeria o progresso geral da técnica e o gênio expe­

rimentaI de Michelson. Diz respeito à determinação do movi­

mento da Terra através do éter e afirma que a luz consiste em ondas de vibração avançando em uma razão fixa através do éter em qualquer direção. Também, naturalmente, a Terra move-se através do éter, e o aparelho de Michelson se move com a Ter­ra. No centro do aparelho, um raio de luz é dividido de modo que meio raio vai em uma direção ao longo do aparelho por uma distância dada, e é refletido no centro por um espelho no

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

aparelho. O outro meio raio cobre a mesma distância em dire­

ção transversal ao aparelho em uma direção em ângulos retos com o raio-padrão, e também é refletido no centro. Esses raios reunidos são então refletidos em um anteparo no aparelho. Se são tomadas as precauções, vemos faixas interferentes, isto é,

faixas de escuridão onde as cristas das ondas completaram os intervalos dos outros raios, devidas a uma diferença diminu­

ta nos comprimentos dos caminhos dos dois meios-raios até certas partes dos anteparos. Essas diferenças de comprimento

serão afetadas pelo movimento da Terra, porque são os com­primentos dos caminhos no éter que contam. Assim, desde que o aparelho esteja se movendo com a Terra, o caminho de um meio-raio será desviado pelo movimento de maneira diferente do caminho do outro meio-raio. Imaginem-se movendo em um vagão de trem, primeiro ao longo do trem, e depois em direção transversal ao trem; e marquem O caminho no itinerário do trem que, nessa analogia, corresponde ao éter. Agora, o movi­mento da Terra é muito lento comparado ao da luz. Assim, na

analogia podem imaginar o trem quase em completo repouso, e vocês mesmos movendo-se muito rapidamente.

Na experiência, esse efeito do movimento da Terra afe­taria as posições das faixas de interferência sobre o anteparo. Também, se vocês rodarem o aparelho através de um ângulo reto, o resultado do movimento da Terra sobre os dois meios­raios será trocado, e as posições das faixas interferentes seriam deslocadas. Podemos calcular a pequena deslocação que resulta do movimento da Terra em redor do Sol. Também a esse efeito

devemos acrescentar o devido ao movimento do Sol através do éter. A delicadeza do instrumento pode ser experimenta­

da, e pode ser provado que esse efeito dos deslocamentos são suficientemente grandes para serem observados por ele. Ora, o ponto é que nada foi observado. Não há nenhum deslocamento quando o instrumento é girado.

A conclusão é que ou a Terra está sempre estacionária no éter, ou existe algo errado nos princípios fundamentais dos

1 148 1

I A CltNClA E o MUNDO MODERNO I

quais depende a interpretação da experiência. É óbvio que nessa experiência estamos muito longe dos pensamentos e dos brinquedos dos filhos do rei Minos. As idéias de um éter com ondas de interferência, do movimento da Terra através do éter e do interferômetro de Michelson encontram-se distantes. Mas, por mais remotas que estejam, são Simples e óbvias comparadas com a explicação aceita do resultado fútil da experiência.

A base da experiência é que as idéias de tempo e de es­

paço empregadas na ciência são simples demais e devem ser modificadas. Essa conclusão é um golpe direto no senso co­

mum, porque a ciência antiga sempre fez questão das noções ordinárias do homem comum. Semelhante reorganização ra­dical das idéias não deve ser adotada, a menos que tenha sido confirmada por muitas outras observações que não necessita­mos considerar. Certa forma da teoria da relatividade parece ser o meio mais simples para explicar um grande número de fatos que de outra forma exigiriam alguma explicação ad hoc. A teoria, portanto, não depende meramente da experiência que lhe deu origem.

O ponto central da explicação é que todos os instrumen­tos, como o aparelho de Michelson usado na experiência, re­gistram necessariamente a velocidade da luz como tendo uma e a mesma rapidez definida, a ela relativa. Quero dizer que o interferômetro em um cometa e o interferômetro na Terra revelariam necessariamente a velocidade da luz relativamente a ambos com o mesmo valor. Isso é obviamente um paradoxo, uma vez que a luz move-se com velocidade definida através do

éter. Assim, é de esperar que tenham velocidades diferentes dois corpos, como O cometa e a Terra, movendo-se em velocidade desigual através do éter. Por exemplo, consideremos dois carros em uma estrada, correndo a dez e a vinte milhas por hora res­pectivamente e que foram ultrapassados por outro carro cor­rendo a cinqüenta milhas por hora. O carro rápido passará um dos dois carros com a velocidade relativa de quarenta milhas por hora e o outro com a média de trinta milhas por hora. Da

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

aplicação à luz resulta que, se substituímos o carro rápido por um raio de luz, a velocidade da luz ao longo do caminho seria a mesma que a velocidade de qualquer dos dois carrOS consi­derados. A velocidade da luz é imensamente grande, sendo de uns trezentos mil quilômetros por segundo. Devemos ter sobre o espaço e sobre o tempo noções tais que só essa velocidade tenha esse caráter peculiar. Segue-se que todas as nossas noções

de velocidade relativa devem ser reformuladas. Mas essas no­

ções são o resultado imediato de nossas noções habituais sobre espaço e tempo. Assim, voltamos à posição de que houve algu­

ma coisa de que não se cuidou na presente exposição do que entendemos por espaço e por tempo.

Sendo assim, nossa suposição habitual e fundamental é que há um único significado para ser dado ao espaço e um úni­co significado para ser dado ao tempo, de sorte que, seja qual for o significado dado às relações espaciais com respeito ao ins­trumento na Terra, o mesmo significado deve ser dado a elas com respeito ao instrumento no cometa} e o mesmo significado ao instrumento em repouso no éter. Na teoria da relatividade,

isso é negado. No que concerne ao espaço, não há nenhuma dificuldade em concordar, se pensamos nos fatos óbvios do movimento relativo. Mas mesmo aqui a mudança de signifi­cado tem de ir além do que teríamos sancionado pelo senso

comum. Também a mesma exigência se faz quanto ao tempo, de sorte que as datas relativas de acontecimentos e os lapsos de

tempo entre elas devem ser calculados como díferentes quanto ao instrumento na Terra, quanto ao instrumento no cometa e

quanto ao instrumento no éter. Esse é um esforço maior para a nossa credulidade. Não necessitamos provar a questão além

da conclusão de que para a Terra e para o cometa, espacialida­de e temporalidade têm cada uma significado diferente dentro de condições diferentes, tais como as apresentadas pela Terra e pelo cometa. Assim, a velocidade tem significados diferentes para os dois' corpos. Assim, a afirmação científica moderna é de que, se alguma coisa tem a velOcidade da luz em referência a

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I A CI~NClA E o MUNDO MODERNO I

qualquer significado do espaço e do tempo, então terá a mesma velocidade de acordo com qualquer outro significado de espaço e de tempo.

Esse é um pesado golpe contra o materialismo cientifico clássico, que pressupõe um instante presente definido, no qual toda matéria é simultaneamente real. Na teoria moderna, não há essa unidade de instante presente. Podemos achar um signi­

ficado para a noção do instante simultâneo ao longo de toda a

natureza, mas será um significado diferente para noções dife­rentes de temporalidade.

Há certa tendência de fazer uma interpretação extrema­

mente subjetivista dessa nova teoria. Quero dizer que a relati­vidade do tempo e do espaço foi construida como se fosse de­pendente da escolha do observador. É perfeitamente legítimo

ter em vista o observador, se ele facilita as explicações. Mas é o corpo do observador que queremos, e não a sua mente. Mas esse corpo só é útil como um exemplo de aparelho muito fami­liar. No todo, é melhor concentrar a atenção no interferômetro de Michelson e deixar o corpo e a mente de Michelson fora do exemplo. A questão é a seguinte: por que o interferômetro tinha faixas negras no anteparo, e por que essas faixas não se deslocavam levemente enquanto o instrumento girava? A nova

relatividade associa espaço e tempo com uma intimidade até agora não contemplada: e pressupõe que a sua separação no fato concreto pode ser conseguida por modos alternativos de

abstração, tendo significações alternativas. Mas cada modo de

abstração dirige a atenção para alguma coisa que existe na na­tureza e portanto a isola com o propósito de a considerar. O fato relevante para a experiência é a importância do interferô­metro para só um dentre os muitos sistemas alternativos dessas

relações espaciotemporais que aparecem entre entidades na­turais.

O que agora devemos pedir à filosofia é dar-nos uma in­terpretação do status do tempo e do espaço na natureza, de modo que seja preservada a possibilidade de significados alter-

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

nativos. Esses capítulos não comportam o exame dos detalhes, mas não há dificuldade em apontar onde se deve procurar a

origem da discriminação entre o espaço e o tempo. Pressupo­nho a teoria orgânica da natureza, que esbocei como base de

um objetivismo radical. Um acontecimento é a consideração em unidade de um

modelo de aspectos. A efetividade de um acontecimento para

além de si mesmo surge dos seus próprios aspectos que vão formar as unidades preendidas de outros acontecimentos. A

não ser nos aspectos sistemáticos das formas geométricas, essa efetividade é trivial, se o modelo refletido liga-se simplesmente ao acontecimento como um todo. Se o modelo dura através das partes sucessivas do acontecimento e também se apresenta no conjunto, de modo que o acontecimento seja a história de vida

do modelo, então, em virtude desse modelo duradouro, o acon­tecimento ganha em efetividade externa, porque a sua própria

efetividade é reforçada pelos aspectos análogos de todas as suas partes sucessivas. O acontecimento constitui um valor mode­lado com uma permanência inerente através de suas próprias partes. E, em razão dessa duração inerente, o acontecimento é

importante para a modificação do seu meio. Nessa duração do modelo é que o tempo se diferencia do

espaço. O modelo é espacialmente agora, e a sua determinação

temporal constitui a sua relação com cada acontecimento par­cial, pois é reproduzido nessa sucessão temporal dessas partes

espaciais de sua própria vida. Quero dizer que essa norma par­

ticular da ordem temporal permite que o modelo seja reprodu­zido em cada fragmento temporal da sua história. De certa for­

ma, cada objeto duradouro descobre na natureza e dela exige um princípio de discriminação entre espaço e tempo. A parte o

fato de um modelo duradouro, esse principio pode estar nisso, mas seria latente e trivial. Assim, a importância do espaço em confronto com o tempo e do tempo em confronto com o es­paço afirmou-se com o desenvolvimento dos organismos dura­douros. Os objetos duradouros apresentam uma diferença entre

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I A CJ~NCJA E o MUNDO MODERNO I

o espaço e o tempo, com respeito aos modelos, componentes

dos acontecimentos, e, de outra parte, a diferenciação entre o espaço e o tempo nos modelos componentes de um aconteci­mento expressa a conformação da comunidade de aconteci­

mentos para com objetos duradouros. Pode haver comunidade sem objetos, mas não pode haver objetos duradouros sem uma peculiar conformação à comunidade por parte deles.

/ É muito necessário que esse ponto não seja mal compre­

endido. Duração significa que um modelo que é apresentado na preensão de um acontecimento é também apresentado na

preensão daquelas entre as suas partes que foram discriminadas por certa norma. Não é verdade que qualquer parte da totali­dade do acontecimento apresentará o mesmo modelo que o todo. Por exemplo, consideremos o modelo corporal comple­to apresentado na vida do corpo humano durante um minuto. Um dos polegares durante o mesmo minuto é parte de todo o acontecimento corporal. Mas o modelo dessa parte é o modelo do polegar, e não o modelo do corpo todo. Assim, a duração

exige uma norma definida para obter as partes. No exemplo anterior, sabemos imediatamente qual é a norma: devemos to­mar a vida do corpo humano durante qualquer porção desse mesmo minuto; por exemplo, durante um segundo ou um dé­cimo de segundo. Em outras palavras, o significado da duração

pressupõe um significado para o lapso de tempo no continuum

espaciotemporal. A questão agora levantada é se todo objeto duradouro re­

vela o mesmo princípio de diferenciação entre o espaço e o

tempo: ou mesmo se, em diferentes estágios de sua história de vida, um objeto não pode variar em sua discriminação espacio­

temporal. Até há alguns anos, todos, sem hesitação, afirmavam que havia somente esse princípio a descobrir. Assim, lidando com um objeto, o tempo teria exatamente o mesmo significado com a duração de outro objeto. Seguir-se-á que as relações es­paciais teriam um único significado. Mas agora parece que a ob­servada efetividade dos objetos só pode ser explicada afirman-

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

do-se que os objetos em estado de movimento relativamente a cada um dos outros utilizam, para a sua duração, significados do tempo e do espaço que não são idênticos de um objeto para outro. Todos os objetos duradouros devem ser concebidos em repouso em seu próprio espaço, e em movimento através de qualquer espaço definido de modo que não é inerente à sua duração peculiar. Se dois objetos estão mutuamente em repou­

so, utilizam o mesmo significado de espaço e de tempo para o fim de expressarem a sua duração; se em movimento relativo,

os espaços e os tempos diferem. Segue-se que, se queremos conceber um corpo em um estágio de sua história de vida, em movimento relativamente a si mesmo em outro estágio, o cor­po nesses dois estágios utiliza significados diferentes de espaço

e, correlativamente, significados diferentes de tempo. Em uma filosofia orgânica da natureza, não há que optar

entre a velha hipótese da unicidade da discriminação temporal

e a nova hipótese da sua multipliCidade. É pura e simplesmente

matéria para prova extraída de observações.' Em capítulo anterior, disse que um acontecimento tem

contemporâneos. A questão é interessante se, na nova hipótese, tal afirmação pode ser feita sem a qualificação de uma referên­cia a um definido sistema espaciotemporal. É possível fazê-lo, no sentido de que "num" ou noutro sistema temporal os dois

acontecimentos são simultâneos. Em outros sistemas temporais, os dois acontecimentos contemporâneos não serão simultâneos,

embora um possa cobrir o outro. De modo análogo, um acon­

tecimento precederá o outro sem qualificação, se em "todos" os sistemas temporais ocorrer tal precedência. É evidente que,

se partirmos de um dado acontecimento A, os outros aconte­cimentos em geral serão divididos em dois grupos, isto é, os

que indiscriminadamente são contemporâneo~ de A, e aqueles que precedem ou seguem A. Mas haverá um grupo a mais) isto

1 Cf. meu PrincipIes ofNatural Knowledge, seção 52:3.

1 154 1

1 A CI~NcrA E O MUNDO MODERNO I

é, os acontecimentos que limitam os dois grupos. Eis aqui um caso crítico. Vocês devem estar lembrados de que tivemos de considerar uma velocidade crítica, isto é, a velocidade teórica da luz in vacuo.'Vocês também devem estar lembrados de que a utilização de diferentes sistemas espaciotemporais significa o movimento relativo dos objetos. Quando analisamos essa rela­ção crítica de determinado grupo de acontecimentos com um

dado acontecimento A, encontramos a explicação necessária

da velocidade crítica. Suprimo todos os detalhes. É evidente que a exatidão na afirmativa deve ser introduzida pela inclusão de pontos, linhas e instantes. Também a origem da geometria

demanda discussão: por exemplo, a medida dos comprimentos, a retidão das linhas, a chateza dos planos e a perpendicularida­de. Esforcei-me por desenvolver essas investigações em outros livros, sob a égide da teoria da abstração extensiva; mas são demasiado técnicas para a presente ocasião.

Se não houver nenhum significado definido para as rela­ções geométricas da distância, é evidente que a lei da gravita­ção necessita ser revista, pois a fórmula que exprime essa lei é que duas partículas se atraem mutuamente em proporção

ao produto da sua massa e em relação inversa ao quadrado de suas distâncias. Essa enunciação afirma tacitamente que há um significado definido para ser atribuído ao instante em que a atração é considerada, e também um significado definido para

ser atribuído à distância. Mas distância é uma noção puramente

espacial, de modo que na nova teoria há um número infinito de tais significados de acordo com o sistema espaciotemporal que

adotarmos. Se as duas partículas estão relativamente em repou­

so, então podemos contentar-nos com ambos os sistemas es­paciotemporais utilizados. Infelizmente nessa sugestão não há nenhuma indicação sobre o processo quando não estão mutua-

1 Essa não é a velocidade da luz no campo gravitacional ou em um meio de moléculas ou elétrons.

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

mente em repouso. É, portanto, necessário formular novamente a lei de modo que não pressuponha nenhum sistema espacio­temporal determinado. Foi o que fez Einstein. Naturalmente o resultado é mais complicado. Ele introduziu na fisica mate­mática certos métodos de matemática pura que oferecem as

fórmulas independentes dos sistemas determinados de medida adotados. A nova fórmula introduz vários resultados pequenos

que não figuram na lei de Newton. Mas nos efeitos maiores a lei

de Newton e a de Einstein estão de acordo. Sendo assim, esses efeitos extraordinários da lei de Einstein servem para explicar a

irregularidade da órbita do planeta Mercúrio, inexplicável pela lei de Newton. Essa é uma forma de confirmação da nova teoria. É bastante curioso que haja mais de uma fórmula alternativa baseada na teoria do múltiplo sistema espaciotemporal, tendo a propriedade de incorporar a lei de Newton, e em acréscimo de explicar as peculiaridades do movimento de Mercúrio. O único meio de escolha entre elas é esperar pela prova experimental no que respeita a esses efeitos em que as fórmulas diferem. A

natureza é, com muita probabilidade, inteiramente indiferente às preferências estéticas dos matemáticos.

Só resta acrescentar que Einstein provavelmente rejeitaria a teoria dos sistemas espaciotemporais múltiplos que venho ex­pondo até aqui a vocês. Interpretaria a sua fórmula em termos

de desvios em espaço-tempo que alteram a teoria da não-va­riação para as propriedades de medida, e dos tempos próprios

de cada caminho histórico. Seu modo de enunciar tem a maior simplicidade matemática e permite tão-somente uma lei da

gravitação, excluindo as alternativas. Mas não posso reconciliar

isso com os fatos dados da nossa experiência quanto à simulta­neidade e ao arranjo espacial. Há outras dificuldades de caráter

mais abstrato. A teoria da relação entre acontecimentos à qual agora

chegamos é baseada primeiro na doutrina de que as ligações de um acontecimento são todas relações inteiramente internas, na medida em que concerne a esse acontecimento, embora não

1 156 1

I A CIENCtA E o MUNDO MODERNO I

n'ecessariamente na medida em que concerne a outros relata.

Por exemplo, os objetos eternos, assim envolvidos, são externa­mente ligados aos acontecimentos. Essa ligação interna é a ra­zão pela qual um acontecimento só pode ser encontrado onde está e como está, ou seja, em apenas um grupo definido de relações, pois cada relação entra na essência do acontecimento; sendo assim, pondo-se à parte essa relação, o acontecimento ,~

não seria ele mesmo. Isso é o que significa a verdadeira no­ção de relações internas. Entretanto, tem sido comum e geral

sustentar que as relações espaciotemporais são externas. Essa

doutrina é negada aqui. A concepção de ligação interna envolve a análise do acon­

tecimento em dois fatores, um deles a atividade básica e subs­tancial de individualização, e o outro o complexo de aspectos

- isto é, o complexo de ligações como entrada na essência do acontecimento dado - que são unificados por essa atividade in­dividualizada. Em outras palavras, o conceito de relações inter­nas requer o conceito de substância como a atividade que sin­

tetiza as relações em seu caráter de resultado. O acontecimento é o que é devido à unificação em si de uma multiplicidade de relações. O esquema geral dessas relações mútuas é uma abstra­ção que pressupõe cada acontecimento como uma entidade in­

dependente, o que de fato não é, e questiona qual remanescente dessas relações formativas é então deixado na forma de relações externas. O esquema das ações assim expresso imparcialmente

toma-se o esquema de um complexo de acontecimentos varia­

velmente ligados como todos a suas partes e como partes uni­das em algum todo. Mesmo aqui, a relação interna nos desperta

a atenção, pois a parte é evidentemente constitutiva do todo.

Mesmo um acontecimento isolado que tenha perdido a sua si­tuação em qualquer complexo de acontecimentos é igualmente excluído pela verdadeira natureza de um acontecimento. As­sim, o todo é evidentemente constituido pelas partes. Por isso, o caráter interno das relações mostra-se realmente através do esquema imparcial de relações externas abstratas.

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

Mas essa apresentação do universo real como extensível e divisível omitiu a distinção entre o tempo e o espaço. De fato, omitiu o processo de realização, que é o ajustamento das ativi­

dades sintéticas em virtude do qual os vários acontecimentos transformam-se nas suas próprias realizações. Esse ajustamento é o das substâncias ativas básicas, por onde essas substâncias apresentam-se com as individualizações ou os modos da subs­

tância única de Spinoza. Esse ajustamento é o que introduz o processo temporal.

Assim, em certo sentido, o tempo, em seu caráter de ajus­tamento do processo de atualização sintética, estende-se além do continuum espaciotemporal da naturezaJ Não há necessida­de de que o processo temporal, nesse sentido, deva ser consti­tuído de uma única série de sucessão linear. Em razão disso, de modo a satisfazer as exigências presentes da hipótese científica, introduzimos a hipótese metafísica de que não é este o caso. Supomos, porém (com base na observação direta), que o pro­cesso temporal de realização pode ser dividido em um grupo

de processos lineares. Cada uma dessas séries lineares é um sis­tema espaciotemporal. Em defesa dessa hipótese de processos definidos em série, apelamos para: (I) a imediata apresentação através dos sentidos de um universo que se estende para além de nós e simultaneamente conosco; (2) a apreensão de uma sig­

nificação para o ponto consistente no que está acontecendo ago­ra imediatamente nas regiões além do cognoscível pelos nossos

sentidos; (3) a análise do que está implícito na perduração de objetos notados. Essa perduração de objetos envolve o arranjo

de um modelo como se atualiza agora. Esse arranjo é o de um

modelo enquanto inerente a um acontecimento, mas também enquanto apresentador de um fragmento temporal da nature­za, o qual empresta aspectos aos objetos eternos (ou, igual­mente, enquanto os objetos eternos emprestam aspectos aos

l Cf. meu Concept ofNature, capfrulo 111.

1158 1

I A CI~NCIA E O MUNDO MODERNO I

acontecimentos). O modelo é espacializado em uma duração completa em benefício do acontecimento em cuja essência o modelo entra. O acontecimento é parte da duração, ou seja, é

parte do que é apresentado nos aspectos que lhe são inerentes; e, inversamente, a duração é o todo da natureza em simultanei­dade com o acontecimento, naquele sentido de simultaneidade. Assim, um acontecimento, ao realizar-se, arranja um modelo,

e esse modelo demanda uma duração definida determinada

por uma significação definida de simultaneidade. Cada uma de

tais significações de simultaneidade relaciona o modelo assim disposto em um sistema espaciotemporal definido. A realidade dos sistemas espacíotemporais é constituída pela realização do modelo; mas é inerente ao esquema geral dos acontecimentos enquanto constituidora de sua passividade em relação ao pro­cesso temporal de realização.

Notem que o modelo demanda uma duração que envolva um lapso definido de tempo, e não simplesmente um momen­to instantâneo. Tal momento é mais abstrato pelo fato de que simplesmente denota certa relação de contigüidade entre os acontecimentos concretos. Sendo assim, uma duração é espa­

cializada; e por espacialização compreende-se que a duração é o campo do modelo realizado que constitui o caráter do acon­tecimento. Uma duração, como o campo do modelo realizado na realização de um dos acontecimentos contidos, é uma épo­

ca, ou seja, uma parada. Perduração é a repetição do modelo em acontecimentos sucessivos. Assim, a perduração demanda

uma sucessão de durações, cada uma apresentando o modelo. Segundo esse raciocínio, o "tempo" está separado da "extensão"

e da "divisibilidade" que surge do caráter do que há de espacio­

temporal na extensão. De acordo com isso, não devemos con­ceber o tempo como outra forma de extensividade. O tempo é a pura sucessão de durações epocais. Mas as entidades que se sucedem nessa apresentação são durações. A duração é o que se requer para a realização de um modelo em um dado aconteci­mento. Assim, a divisibilidade e a extensividade estão em uma

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

dada duração. A duração significativa não é realizada através de suas sucessivas partes divisíveis, mas é dada com as suas par­

tes. Desse modo, a objeção que Zenão poderia fazer à validade conjunta de duas passagens da Critica da razão pura de Kant é encontrada abandonando-se a primeira das duas passagens. Refiro-me às passagens da seção "Dos Axiomas da Intuição"; a primeira das subseções sobre "A Quantidade Extensiva", e a

outra da subseção sobre "A Quantidade Intensiva", em que as

considerações a respeito da quantidade em geral, extensiva e

intensiva, são resumidas. A primeira passagem diz assim:

Chamo quantidade extensiva aguela em gue a representação

do todo torna-se possível por meio da representação de suas

partes, e portanto necessariamente precedida por esta. 4 Não posso

apresentar a mim mesmo nenhuma linha, por peguena que

seja, sem traçá-Ia no pensamento, isto é, sem mostrar as suas

partes uma após a outra, partindo de um ponto dado e, as­

sim, primeiro de tudo traçando a sua intuição. O mesmo se

aplica a todas as porções do tempo, até mesmo as menores.

Só posso imaginar dentro dele o progresso sucessivo de um

momento a outro, mostrando, assim, no fim, por todas as

partes do tempo, e suas adições, uma quantidade definida

de tempo.

A segunda passagem diz assim:

Essa propriedade peculiar das guantidades de gue nenhuma

de suas partes é a menor parte possível (nenhuma parte in­

divisível) é chamada de continuidade. O tempo e o espaço

são quanta continua, pois não há nenhuma parte deles gue não

esteja incluída entre limites (pontos e momentos), nenhuma

parte que não seja ela mesma, além disso, um espaço ou um tempo.

O espaço consiste tão-somente em espaços; o tempo, tão-somente em

tempos. Os pontos e os momentos são tão-somente limites, meros lu­

gares de limitação, e como lugares pressupondo sempre aquelas

4 Realces meus, tanto aqui como na segunda citação.

I 160 I

I A CI~NCIA E O MUNDO MODERNO I

intuições que, supostamente, limitam e determinam. Meros

lugares ou partes que poderiam ser dados antes do tempo e

do espaço nunca poderiam ser compostos de tempo ou de

espaço.

Estou de pleno acordo com a segunda citação se "tempo e espaço" forem o continuum extensivo; mas ela é incompatível .~

com a outra passagem, pois Zenão objetaria que aqui está impli­

cada uma regressão viciada. Todas as partes do tempo incluem alguma parte menor de si mesmas e assim por diante. Também

essa série retrocede até chegar a nada, desde que o momento inicial seja sem duração e marque simplesmente a relação de contigüidade com um tempo primitivo. Assim, O tempo é im­

possível se as duas citações se correlacionam. Aceito a segunda

e rejeito a primeira. Realização é a transformação do tempo no

campo da extensão. Extensão é o complexo de acontecimen­

tos como suas potencialidades. Realizando-se, a potencialidade torna-se fato. Mas o modelo potencial demanda a duração; e a duração deve ser apresentada como um todo epocal, pela rea­

lização do modelo. Assim} o tempo é a sucessão de elementos

divisíveis e contíguos em si mesmos. Tornando-se temporal} a

duração atrai sobre si} portanto} realização com respeito a al­

gum objeto duradouro. Temporalização é realização. Tempora­lização não é outro processo continuo. É uma sucessão atômica.

Assim, o tempo é atômico (isto é, constituído de épocas)} pois

o temporalizado é divisível. Essa doutrina deriva da referente

aos acontecimentos e da natureza dos objetos duradouros. No próximo capítulo, consideraremos a sua importância para a teo-

ria do quantum da ciência moderna.

Deve-se notar que essa doutrina do caráter epocal do tempo não depende da doutrina moderna da relatividade e per­manece da mesma maneira - e na verdade com maior simpli­cidade - se essa doutrina for abandonada. Depende da análise do caráter intrínseco de um acontecimento} considerado como

a entidade mais concreta e mais finita.

I 161 I

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

Ao rever esse argumento) notamos primeiro que a segun­

da. citação de Kant, na qual aquele está baseado, não depende de nenhuma doutrina peculiar de Kant. A última das duas está de acordo com Platão como contrário a Aristóteles.s Em segun­

do lugar, o argumento declara que Zenão abrandou seu argu­

mento. Devia insistir nele contra a noção corrente de tempo

em si) e não contra o movimento) que envolve relações entre

o tempo e o espaço) pois o que se transforma tem duração.

Mas nenhuma duração pode transformar-sé até que uma dura­ção menor (parte da precedente) antecedentemente se tenha

transformado em um ser (primeira afirmação de Kant). O mes­mo argumento aplica-se à duração menor) e assim por diante.

Igualmente a regressão infinita dessas durações converge para

nada - e mesmo na concepção aristotélica não há primeiro

momento. De acordo com isso) o tempo é uma noção irracio­

nal. Em terceiro lugar, na teoria epocal, a dificuldade de Zenão é cumprida concebendo-se temporalização como a realização

de um organismo completo. Esse organismo é um aconteci­

mento tendo em sua essência suas relações espaciotemporais

(tanto dentro como fora de si mesmo) por todo o continuum

espaciotemporal.

5 Cf. Ewclid in Greek, por SirT. L. Heath, Camb. Univ. Press, em uma nota sobre Pontos.

1 162 1

I CAP[TULO VIII I

A TEORIA DO QUANTUM

A teoria da relatividade provocou justamente enorme atenção por parte do público. Mas, a despeito de toda a sua importância) não foi o principal ponto que absorveu o recen­

te interesse dos físicos. Inquestionavelmente, essa situação foi

auxiliada pela teoria do quantum. O ponto de interesse nessa teoria é que, de acordo com ela, alguns efeitos que parecem

capazes de aumento gradual devem na realidade aumentar ou decrescer só por certos saltos definidos. É como se pudéssemos caminhar a três ou quatro milhas por hora) mas não a três e

meia milhas por hora. Os efeitos em questão são concernentes à radiação da luz

de uma molécula excitada por alguma colisão. A luz consiste em ondas de vibração no campo eletromagnético. Depois que uma onda completa passou determinado ponto, tudo nesse ponto é

restaurado em seu estado original e está pronto para a próxima

onda que se seguir. Imaginem ondas do mar e pensem nas ondas sucessivas de crista em crista. O número de ondas que passam

por determinado ponto em um segundo é chamado de a freqü­

ência desse sistema de ondas. Um sistema de ondas de luz de freqüência definida corresponde a uma cor definida no espectro. Ora) uma molécula, quando excitada, vibra com um número

definido de freqüências definidas. Em outras palavras, há um conjunto definido de modos de vibração da molécula, e cada modo de vibração tem uma freqüência definida. Cada modo de vibração pode agitar no campo magnético ondas de sua própria

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

freqüência. Essas ondas levam consigo a energia da vibração, re­sultando que, por fim (enquanto essas ondas são produzidas), a

molécula perde a energia de seu excitamento e as ondas cessam. Assim, uma molécula pode irradiar luz de algumas cores defini­das, vale dizer, de algumas freqüências definidas.

Vocês poderiam pensar que cada modo de vibração pode­ria ser excitado a qualquer intensidade, de modo que a energia

despertada pela luz dessa freqüência pudesse ser de qualquer quantidade. Mas não é isso que acontece. Nesse caso, parecem

existir certas quantidades mínimas de energia que não podem ser subdivididas. O caso é análogo ao do cidadão americano que, pagando sua dívida em moeda de seu país, não pode di­vidir um cêntimo de modo a corresponder a uma subdivisão exata das mercadorias obtidas. O cêntimo correspondente à

quantidade mínima da energia da causa de excitamento. Essa causa de excitamento é ou suficientemente forte para produzir

a emissão de um cêntimo de energia ou fracassa na produção de uma energia, qualquer que seja ela. Em qualquer caso, a molécula só emitirá um número integral de cêntimo de ener­gia. Há mais uma peculiaridade que podemos ilustrar trazendo um inglês para a cena. Ele paga sua dívida em moeda inglesa, e a sua menor unidade é um farthing, que difere em valor do

cêntimo. O farthing é, de fato, cerca de meio cêntimo, em cál­culo aproximativo. Na molécula, diferentes modos de vibra­

ção têm diferentes freqüências. Comparem cada modo a uma nação. Um modo corresponde aos Estados Unidos, e outro à

Inglaterra. Um modo só pode irradiar a sua própria energia em

um número integral de cêntimos, de modo que um cêntimo de energia é a menor quantia que ele pode oferecer, ao passo que

o outro modo só pode irradiar a sua energia em um número integral de farthings, de modo que um farthing de energia é a menor quantia que ele pode oferecer. Além disso, pode-se achar uma regra para nos dar o valor relativo tanto do cêntimo de energia de um modo, como do farthing de energia de ou­tro modo. A regra é de uma simplicidade pueril: cada uma das

11641

I A CIÊNCIA E O MUNDO MODERNO I

menores moedas de energia tem um valor em estreita relação com a freqüência pertencente a esse modo. Conforme essa re­gra, comparando fanhings com cêntimos, a freqüência de um americano seria duas vezes a de um inglês. Em outras palavras, um americano faria em um segundo duas vezes mais coisas que

faria um inglês. Deixo vocês julgarem se isso corresponde às caracteristicas das duas nações. Também sugiro que há méritos'"

ligados a ambos os lados do espectro solar. Algumas vezes pre­

cisamos de luz vermelha, outras vezes de luz violeta.

Não houve, espero, nenhuma dificuldade em compreender o que a teoria do quantum afirma sobre as moléculas. A perple­xidade foi suscitada pelo esforço em adaptar a teoria ao corrente quadro cientifico do que se passa na molécula ou no átomo.

O fato de os acontecimentos da natureza precisarem ser explicados em termos de locomoção de material foi a base da teoria materialista. Em conformidade com esse princípio, as on­das da luz devem ser explicadas em termos da locomoção de um éter material, e os acontecimentos internos de uma molé­

cula são agora explicados em termos da locomoção de partes materiais separadas. Com respeito às ondas da luz, o éter ma­terial é retirado para uma posição indeterminada ao fundo, e é raramente considerado. Mas, com respeito às suas aplicações no átomo, o princípio é indiscutível. Por exemplo, um átomo

neutro de hidrogênio é suposto como sendo formado por dois grupos de materiais: um grupo é o núcleo, que consiste em um

material chamado eletricidade positiva, e o outro é um único elétron, que é eletricidade negativa. O núcleo apresenta sinais

de ser complexo e de ser sub divisível em grupos menores, uns

de eletricidade positiva e outros eletrônicos. A hipótese é de que, seja qual for a vibração ocorrida no átomo, deve ser atri­buída à locomoção vibratória de alguma parte do material, des­tacável do restante. A dificuldade na teoria do quantum é que, nessa hipótese, temos de conceber o átomo proporcionando um número definido de sulcos, que são os únicos caminhos ao longo dos quais a vibração pode ocorrer, ao passo que a clássica

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

configuração científica não proporciona nenhum desses sulcos. A teoria do quantum necessita de um tipo de trem que tenha um número definido de linhas, e o quadro científico proporcio­na cavalos galopando pelos campos. O resultado é que a dou­trina física do átomo alcançou um estado fortemente sugestivo dos epiciclos da astronomia antes de Copérnico.

Sobre a teoria orgânica da natureza, há duas espécies de

vibrações radicalmente diferentes umas das outras. Há locomo­

ção vibratória e há deformação vibratória orgânica; e as condi­ções para os dois tipos de mudanças são de caráter diferente.

Em outras palavras, há locomoção vibratória de um modelo dado como um todo, e há mudança vibratória de modelo.

Um organismo completo na teoria é o que corresponde a uma parte de material na teoria materialista. Haverá um gênero primário, compreendendo um número de espécie de organis­mos, de tal modo que cada organismo primário, pertencente a uma espécie de gênero primário, não é passível de decom­

posição em organismos subordinados. Qualquer organismo de gênero primário chamarei de um primaz. Pode haver diferentes espécies de primazes.

Deve-se ter em mente que estamos lidando com as abs­trações da física. Assim, não estamos pensando no que seja um primaz em si, como um modelo resultante da compre­

ensão dos aspectos concretos; nem estamos pensando no que um primaz é com relação ao seu ambiente, com respeito aos

seus aspectos concretos compreendidos ali. Pensamos nesses

vários aspectos simplesmente à medida que seus efeitos so­bre modelos e sobre a locomoção são expressáveis em termos

espaciotemporais. De acordo com isso, na linguagem da físi­ca os aspectos de um primaz são simplesmente a sua contri­

buição ao campo eletromagnético. Isso é exatamente o que sabemos dos elétrons e dos prótons. Um elétron para nós é simplesmente um modelo de seus aspectos em seu ambiente, à medida que esses aspectos são importantes para o campo

eletromagnético.

I 166 I

I A CI~NClA E O MUNDO MODERNO I

Há pouco, ao discutir a teoria da relatividade, vimos que

o movimento relativo de dois primazes significa apenas que os seus modelos orgânicos estão utilizando diferentes sistemas espaciotemporais. Se dois primazes não permanecem mutua­mente, seja em repouso, seja em movimento relativo uniforme, pelo menos um deles está mudando o seu sistema espaciotem­poral inerente. As leis do movimento expressam as condições .::

nas quais são efetuadas as mudanças desses sistemas espacio­temporais. As condições para a locomoção vibratória fundam-se

sobre essas leis gerais do movimento. Mas é possível que certas espécies de primazes sejam

suscetíveis de se dividirem em pedaços em condições que as levem a efetuar mudanças de sistemas espaciotemporais. Es­Sas espécies só poderiam experimentar um longo período de perduração se tivessem conseguido formar uma associação fa­vorável entre primazes de diferentes espécies, de tal modo que nessa associação a tendência ao colapso fosse neutralizada pelo ambiente de associação. Podemos imaginar o núcleo atômico como composto de um grande número de primazes de diferen­tes espécies e talvez com muitos primazes da mesma espécie, sendo de tal modo a associação completa que favoreça a esta­

bilidade. Como exemplo de uma tal associação pode-se citar a associação de um núcleo positivo com elétrons negativos para obter um átomo neutro. O átomo neutro está, por causa disso,

protegido de qualquer campo elétrico que, de outro modo, pro­duziria mudanças no sistema espaciotemporal do átomo.

As exigências da física sugerem agora uma idéia em perfei­ta consonância com a teoria filosófica orgânica. Exponho-a em

forma de pergunta: Nossa teoria orgânica teria sido corrompida

pela teoria materialista, na medida em que esta afirma sem dis­cussão que a perduração deve significar uma identidade indi­ferenciada por toda a respectiva história de vida? Talvez vocês

tenham notado que (em um capítulo anterior) usei a palavra "reiteração" como sinônimo de "perduração". É óbvio que não são sinônimos perfeitos em sua significação; e agora quero su-

I 167 I

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

gerir que reiteração, no que difere de perduração, está mais pró­xima daquilo que a teoria orgânica requer. A diferença é muito semelhante àquela entre galileanos e aristotélicos: Aristóteles diz "repouso" onde Galileu acrescenta "ou movimento retilíneo

uniforme". Assim, na teoria orgânica, um modelo não necessita perdurar em identidade indiferenciada através do tempo. O mo­delo pode ser essencialmente um dos contrastes estéticos que

demandam um lapso de tempo para o seu desenvolvimento. O tom é um exemplo de tal modelo. Assim, a perduração do mo­

delo agora significa a reiteração da Sua sucessão de contrastes. Isso é claramente a noção mais geral de perduração sobre a teo­ria orgânica, e "reiteração" é talvez a palavra que a expressa de modo mais direto. Mas, quando traduzimos essa noção nas abs­trações da física, toma-se imediatamente a noção técnica de "vi­bração". Essa vibração não é a locomoção vibratória: é a vibração da deformação orgânica. Há certas indicações na física moderna de que, para o papel dos organismos corpusculares na base do

campo físico, necessitamos de entidades vibratórias. Esses cor­púsculos seriam os descobertos como expelidos do núcleo dos átomos, que depois se decompõem em ondas de luz. Podemos conjeturar que tais corpúsculos não têm grande estabilidade de perduração quando isolados. Com isso, um ambiente desfavorá­vel que leve a rápidas mudanças no próprio sistema espaciotem­

poraI, ou seja, um ambiente lançando-se em violenta aceleração, faz com que os corpúsculos se despedacem e se decomponham em ondas de luz do mesmo período de vibração.

Um próton, e talvez um elétron, seria uma associação de tais primazes, uns superpostos aos outros, com as suas freqü­ências e dimensões espaciais arranjadas de modo a promover

a estabilidade do organismo complexo, quando impulsionado em movimento acelerado. As condições de estabilidade forne­ceriam as associações de período possíveis para os prótons. A expulsão de um primaz viria de um impulso que conduz o próton ou a estabelecer-se em uma associação alternativa, ou a gerar um novo primaz Com a ajuda da energia recebida.

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I A CI~NClA E O MUNDO MODERNO I

Um primaz deve associar-se com uma freqüência definida de deformação orgânica vibratória, de modo que, quando feito em pedaços, decompõe na luz ondas da mesma freqüência, que então desprendem toda a sua energia proporcional. É muito fácil (como hipótese particular) imaginar vibrações estacioná­

rias do campo eletromagnético de freqüência definida, e di­retamente irradiada de um centro e para ele, que, de acordo ~

com as leis eletromagnéticas aceitas, consistiria em um núcleo

vibratório esférico que satisfaça um conjunto de condições, e um campo vibratório externo que satisfaça outro conjunto de

condições. Esse é um exemplo de deformação orgânica vibra­tória. Além disso (nessa hipótese particular), há duas maneiras de determinar as condições subsidiárias de modo a satisfazer as exigências ordinárias da física matemática. A energia total, de acordo com uma dessas maneiras, satisfaria a condição do quan­tum; de modo que consiste em um número integral de unida­des ou cêntimos, tais que o cêntimo de energia de um primaz é proporcional à sua freqüência. Não expus em minúcias as condições para a estabilidade ou para uma associação estável. Mencionei a hipótese particular explicando mediante exemplo que a teoria orgânica da natureza apresenta possibilidades para a reconsideração das leis físicas fundamentais, possibilidades es­sas inacessíveis à oposta teoria materialista.

Nessa hipótese particular dos primazes vibratórios, su­põe-se que as equações de Maxwell abrangem todo o espaço,

até mesmo o interior de um próton. Expressam as leis que go­

vernam a produção e a absorção vibratórias da energia. Todo o processo para cada primaz resulta em certa energia média

caracteristica dos primazes e proporcional à sua massa. De fato, a energia é a massa. Há correntes vibratórias de energia, tanto

dentro como fora do primaz. Dentro do primaz, há a distribui­ção vibratória de densidade elétrica. Na teoria materialista tal densidade indica a presença da matéria; na teoria orgânica da vibração, indica a produção vibratória da energia. Essa produ­ção é restrita ao interior do primaz.

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

Toda ciência deve começar COm algumas afirmações quanto à última análise dos fatos com os quais trabalha. ESS'lS

afirmações são justificadas parte pela fidelidade dela aos tipe,s de ocorrência de que temos consciência direta, parte pelo êxi­to em representar os fatos observados com certa generalidade, privados de suposições ad hoc. A teoria geral da vibração dos primazes, que esbocei, é apresentada simplesmente como um

exemplo do tipo de possibilidades que a teoria orgânica abre à ciência física. O principal é que ela aCrescenta a possibilidade

da deformação orgânica à da mera locomoção. As ondas da luz formam um grande exemplo da deformação orgânica.

Em qualquer época, as afirmações da ciência estão ce­dendo, quando apresentam sintomas do estado epiciclico do qual a astronomia se salvou no século XVI. A ciência física está apresentando agora tais sintomas. Para reconsiderar os seus fundamentos, deve recorrer a uma concepção mais concreta do caráter das coisas reais e deve conceber as suas noções funda­

mentais como abstrações derivadas dessa intuição direta. Desse modo é que ela serve às possibilidades gerais de revisão que se abrem para ela.

As descontinuidades introduzidas pela teoria do quan­

tum exigem revisão dos conceitos físicos para que possam ser

conhecidos. De modo particular, indicou-se a necessidade de alguma teoria da existência descontínua. O que essa teoria rei­vindica é que uma órbita de um elétron possa ser considerada

como uma série de posições destacadas, e não como uma linha contínua.

A teoria de um modelo primaz ou vibratório dada ante­

riormente, combinada com a distinção entre temporalidade e extensividade no capítulo anterior, produz exatamente esse re­sultado. Vale lembrar que a continuidade do complexo de acon­tecimentos resulta da relação de extensividade, ao passo que a temporalidade resulta da realização em um acontecimento em causa de um modelo que demanda, para a sua disposição, que a totalidade de uma duração seja espacializada (isto é, parada)

I 170 I

I A CIt:NCIA E O MUNDO MODERNO I

como dada por seus aspectos no acontecimento. Assim, a reali­zação procede por via de uma sucessão de durações epocais; e a contínua transição, isto é, a deformação orgânica, está dentro da duração já dada. A deformação orgânica vibratória é efeti­vamente a reiteração do modelo. Um período completo define

a duração exigida para o modelo completo. Assim, o primaz é

atomicamente realizado em uma sucessão de durações, deven- ç.

do cada duração ser medida de um máximo a outro. Com isso,

conforme o primaz é considerado como entidade total perdurá­vel, ele deve ser atribuído a essas durações sucessivamente. Se é considerado como uma coisa, a sua órbita deve ser apresentada

diagramaticamente por uma série de pontos destacados. Assim, a locomoção do primaz é descontínua no espaço e no tempo. Se formos abaixo dos quanta do tempo, que são os sucessivos períodos vibratórios do primaz, achamos uma sucessão de cam­pos eletromagnéticos vibratórios, cada um estacionário no es­paço-tempo de sua própria duração. Cada um desses campos apresenta um só período completo da vibração eletromagnética que constitui o primaz. Essa vibração não deve ser considerada como resultado da realidade: é o que é o primaz em uma de suas atualizações descontínuas. Igualmente as durações suces­sivas em que o primaz é atualizado são contíguas; segue-se que

a história de vida do primaz pode ser apresentada como desen­volvimento contínuo de ocorrências no campo eletromagnéti­co. Mas essas ocorrências entram em realização como blocos

atômicos totais, que ocupam períodos definidos de tempo. Não há necessidade de conceber que o tempo seja atômi­

co no sentido de que todos os modelos devem ser realizados

nas mesmas durações sucessivas. Em primeiro lugar, ainda que

o período seja o mesmo no caso dos dois primazes, as durações da realização não podem ser as mesmas. Em outras palavras, os dois primazes podem estar fora da fase. Da mesma forma, se

os períodos forem diferentes, o atomismo de qualquer duração de um primaz é necessariamente subdividido pelos momentos­

limite de durações do outro primaz.

I 171 I I

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Page 87: Whitehead, alfred north. a ciência e o mundo moderno

I ALFRED NORTH WH!TEHEAD I

As leis da locomoção dos primazes expressam sob quais condições qualquer primaz mudará o seu sistema espaciotem­poral.

É desnecessário levar adiante essa concepção. A justifica­ção do conceito de existência vibratória deve ser puramente experimental. O aspecto ilustrado por esse exemplo é que a concepção cosmológica adotada aqui é perfeitamente compa­

tível com as exigências da descontinuidade encaradas na fisi­ca. Igualmente, se se adotar esse conceito de temporalização

como realização sucessiva de durações em épocas, a dificuldade de Zenão desaparece. A forma particular, que foi dada aqui a esse conceito, foi simplesmente com o propósito de o ilustrar e deve necessariamente exigir nova formulação antes de poder ser adaptado aos resultados da física experimental.

1172 1

I CANTULO IX I

CIÊNCIA E FILOSOFIA

No presente capítulo, meu objetivo é considerar algumas reações da cíência sobre a corrente do pensamento filosófico durante os séculos modernos dos quais tratamos. Não farei ne­nhuma tentativa de comprimir a história da filosofia moderna nos limites de um capítulo. Considerarei apenas alguns conta­tos entre a ciência e a filosofia, à medida que se referirem ao es­quema do pensamento que é propósito destes capítulos desen­volver. Por essa razão, será omitido todo o grande movimento

idealista alemão, visto que ele está fora de contato efetivo com a ciência contemporânea no que se refere à recíproca modifica­ção dos conceitos. Kant, de quem parte esse movimento, estava saturado da física newtoniana e das idéias dos grandes físicos franceses - como Clairaut,6 por exemplo, que desenvolveu as

idéias newtonianas. Mas os filósofos que desenvolveram a esco­la kantiana de pensamento, ou que a transformaram no hege­

lianismo, ou não tinham a base que Kant tinha do pensamento cientifico, ou não tinham a potencialidade dele para ser um

grande físico, caso a filosofia não tivesse absorvido as principais

energias dele.

6 Cf. a curiosa prova da leitura cientffica de Kant na Critica da razão pura, Analit;02 Transcendental, Segunda Analorja da Experiência, onde ele se refere ao fenõmeno da ação capilar. Esse é um esclarecimento desnecessariamente complexo; um livro em repouso sobre a mesa seria igualmente suficiente. Mas o assunto fora adequadamente tratado pela primeira vez por Clairaut em um apêndice de seu Figura da Terra. Kant lera evidentemente esse apêndice, e o seu espirito estava cheio dele.

1173 1

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Page 88: Whitehead, alfred north. a ciência e o mundo moderno

I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

A origem da filosofia moderna é análoga á da ciência e sua contemporânea. A tendência geral de seu desenvolvimento

foi estabelecida no século XVII, em parte através das mãos dos mesmos homens que estabeleceram os princípios científicos.

Esse estabelecimento de propósitos aconteceu após um perío­

do de transição que data do século Xv. Houve, de fato, uma mudança geral da mentalidade européia, que carregou na sua

torrente religião, ciência e filosofia. Pode ser brevemente carac­

terizada como sendo a clara repetição das fontes originárias da

inspiração grega por parte dos homens cujo caráter espiritual era derivado de herança da Idade Média. Não houve, portanto, revivescência da mentalidade grega. As épocas não nascem do que está morto. Os princípios da estética e da razão que anima­

ram a civilização grega revestiram-se de mentalidade moderna.

Entre as duas se acham outras religiões, outros sistemas jurídi­

cos, outras anarquias e outras heranças raciais separando o vivo

do morto. A filosofia é peculiarmente sensivel a tais diferenças. Por­

que, embora se possa fazer a réplica de uma estátua antiga, não

há réplica possivel de um antigo estado de espírito. Não pode

haver aproximação maior que aquela que uma máscara permi­

te com relação à vida real. Pode haver compreensão do passado,

mas há uma diferença entre as reações modernas e as antigas ao

mesmo estímulo.

No caso particular da filosofia, a distinção em tonalidade fica na superfície. A filosofia moderna está marcada de subjeti­

vismo, em contraste com a atitude objetiva dos antigos. A mes­

ma mudança percebe-se na religião. Na história primitiva da

Igreja cristã, o interesse teológico centralizava-se em discussões

sobre a natureza de Deus, o sentido da Encarnação e as supo­

sições apocalípticas do destino final do mundo. Na Reforma, a Igreja foi dilacerada por dissensões quanto a experiências indi­

viduais dos crentes com respeito à justificação. O drama inteiro

de toda a realidade fora substituído pelo sujeito indivídual da experiência. Lutero indagou: "Como eu sou justificado?". Os

1174 1

I A CltNCIA E O MUNDO MODERNO I

filósofos modernos têm indagado: "Como eu tenho conheci­mento?". A ênfase está no sujeito da experiência. Essa mudan­

ça de ponto de vista é a tarefa do cristianismo no seu aspecto

pastoral de apascentar o rebanho dos crentes. Século após sé­

culo ele insistiu no valor infinito da alma humana indiYiilllli!. Assim, ao egotismo instintivo dos desejos físicos acrescentou

um sentimento instintivo de justificação por um egotismo de'~

concepção intelectual. Cada ser humano é O guardião natural de sua própria importância. Sem dúvida, essa direção moderna

da atenção enfatiza verdades do mais alto valor. Por exemplo, no campo da vida prática aboliu a escravidão e imprimiu no

imaginário popular os direitos humanos fundamentais. Descartes, no seu Discurso do método e nas suas Medita­

ções, desvendou com grande clareza as concepções gerais que

desde então têm influenciado a filosofia moderna. Há um sujei­to que recebe experiência. No Discurso do método, esse sujeito

cé sempre mencionado na primeira pessoa, ou seja, como sendo

o próprio Descartes. Descartes parte de si mesmo como sen­

do uma mentalidade que, em virtude da consciência de suas

próprias apresentações inerentes de sentido e de pensamento,

está, portanto, consciente de sua existência como entidade una.

A subseqüente história Qa filosofia revolve a ~()rmulação c~r­tesiana do dado primário. O mundo antigo teve como ponto

de partida o drama do Universo; o mundo moderno, o drama

interior da Alma. Descartes, em suas Meditações, baseia expli­

citamente a existência desse drama interior na possibilidade do

erro. Não pode haver correspondência com o fato objetivo e, portanto, deve haver uma alma com atividades cujas realidades

são puramente derivadas dela mesma. Eis aqui para exemplo

uma citação da Meditação lI:·

• Tirada da edição brasileira, traduzida por Enriço Corvesieri (São Paulo, Nova Cultural,

2000). (N. T.)

11751

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Page 89: Whitehead, alfred north. a ciência e o mundo moderno

I ALFRED NORTH WHITEHEAO I

Contudo, ao menos, é bastante certo que me parece que vejo,

que ouço e que me aqueço; e é propriamente aCjuilo que em

mim se chama sentir (sentire), e isto, tomado assim precisa·

mente, nada é a não ser pensar. De onde começo a conhecer

o que sou, com um pouco mais de clareza e de discernimento

do que anteriormente.

De novo na Meditação III:

Porque, assim como notei acima, se bem Cjue as coisas que

sinto e imagino talvez não sejam nada fora de mim e nelas

mesmas, tenho certeza de Cjue essas formas de pensar, Cjue

denomino sentimentos e imaginação apenas na medida em

que são formas de pensar, se encontram em mim.

o objetivismo da Idade Média e do mundo antigo passou para a ciência. A natureza é aí concebida por si mesma, com as

próprias reações mútuas. Sob a_influênsia receIlte da relativi: dai" houve tendência para posteriores formulações subjetivas. Mas,.à parte essa exceção recen!~ a na~ureza do pensamento

cientifico teve as suas leis formuladas sem nenhuma referência .---------

à dependência de observadores individuais. Há, porém, essa di-ferença entre a atitude moderna e a ~~tiga para com a ciência. O anti-racionalismo dos modernos impediu toda e qualquer tenta­

tiva para harmonizar os conceitos finais da ciência com as idéias

resultantes de uma visão mais concreta do conjunto da realida­

de. A matéria, o espaço, ? tempo e as várias leis concernentes à

transiçã?_5~~~ __ cO~§ê1!~~ões_~~~~Ii~is ~ªº_j.idos COmo fatos irre­

dutíveis fiI?-~~~_~~~_?S q~ai~ !l~_o~~~ev~I!los pre~cupar. O efeito desse antagonismo com a filosofia foi igualmente

infeliz tanto para a filosofia como para a ciência. Neste capítulo nos interessará a filosofia. Os filósofos são racionalistas. Andam à procura de fatos irredutíveis e inflexíveis. Desejam explicar

à luz de princípios universais a mútua referência entre vários

detalhes que entram no fluxo das coisas. Também procuram tais princípios como propósito de eliminar a mera arbitrarie-

1176 1

I A C1tNCIA E O MUNDO MODERNO I

dade, de modo que qualquer que seja o fato aceito, ou dado, a existência do restante das coisas satisfará alguma exigência

da racionalidade. Exigem significação. Nas palavras de Henry Sidgwick,7

o primeiro objeto da filosofia é unificar completamente e tra·

zer à clara coerência todos os departamentos do pensamento

racional, e esse objeto não pode ser realizado por nenhuma .~

filosofia que deixe fora de sua análise o importante corpo de

juízos e raciocínios que formam o objeto da ética.

Assim, a propensão para a história da parte das ciências físicas e das sociais, com a recusa destas em refletir sob algum

mecanismo final, desviou a filosofia da corrente efetiva da vida moderna. Perdeu o seu próprio papel como constante crítica

das formulações parciais. Retirou-se para a esfera subjetiva do espírito, por ter sido expulsa pela ciência da esfera objetiva da

matéria. Assim, a evolução do pensamento no século XVII co­operou com a crescente significação da personalidade individu­

al procedente da Idade Média. Vemos Descartes tomar como

ponto de partida o próprio espírito do qual a sua filosofia o certificava e investigar as suas relações com a matéria última

- exemplificada, na Meditação 11, pelo corpo humano e um pedaço de cera - que a sua ciência afirmou. Há a vara de Aarão

e as serpentes dos mágicos; e a única questão para a filosofia é

qual a coisa que destrói a outra; ou se, como pensava Descartes,

todas elas viviam felizes juntas. Nessas correntes de pensamen­

tos devem ser encontrados Locke, Berkeley, Hume e Kant. Dois grandes nOmes estão fora dessa lista, Spinoza e Leibniz. Mas

há certo isolamento de um e outro a respeito de sua influência

filosófica no que concerne à ciência; como se vagueassem nos

extremos que estão além dos limites da sã filosofia, Spinoza retendo modos mais antigos de pensamento, e Leibniz pela no­

vidade das suas mônadas.

? A Memoir, Apêndice I.

1177 1 L

Page 90: Whitehead, alfred north. a ciência e o mundo moderno

I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

o interessante é que a história da filosofia corre paralela­

mente com a da ciência. Para amJ:,as, o século XVII determinou

a cena para os seus dois sucessores. Mas no século XX um novo

ato tem início. É um exagero atribuir mudança geral no clima

de pensamento a qualquer trecho escrito ou a qualquer autor.

Sem dúvida, apenas Descartes exprimiu definidamente e de forma decisiva o que já estava no ar desse período. Analoga­

mente, ao atribuir a William James a estréia de uma nova Cena

na filosofia, estaremos negligenciando outras influências de seu tempo. Mas, admitindo isso, haverá ainda certa congruência em

contrastar seu ensaio A consciência existe?, publicado em 1904, com o Discurso do método de Descartes, publicado em 1637. James tirou do palco o equipamento antigo; ou, antes, alterou­

lhe inteiramente a iluminação. Tomemos para exemplo esses

dois períodos do seu ensaio:

Negar categoricamente que a "consciência" existe parece tão

absurdo em face disso ~ pois inegavelmente os "pensamen­

tos" existem -, que temo que alguns leitores não me seguirão

por muito mais tempo. Deixem-me então, desde já, explicar

que quero apenas negar que a palavra significa uma entida­

de, mas insistir mais enfaticamente que ela representa uma

função.

o materialismo cientifico e o ego cartesiano foram ambos

refutados na mesma ocasião, um pela ciência e outro pela filo­

sofia, representadas por William James com os seus anteceden­

tes psicológicos; e a dupla objeção marca o fim de um período

que durou mais ou menos duzentos e cinqüenta anos. Natural­

mente, tanto a "matéria" como a "consciência" expressam algo

tão evidente na experiência comum, que qualquer filosofia

deve proporcionar algumas coisas que correspondam à sua res­

pectiva significação. Mas o ponto é que, a respeito de ambas, o

pensamento do século XVII estava afetado de um pressuposto agora censurado. James nega que a consciência seja uma enti­

dade, mas admite que seja uma função. A diferenciação entre

1178 1

I A CI~NCIA E O MUNDO MODERNO I

entidade e função é, portanto, vital para compreendermos a

refuta~ão que James manteve contra os antigos moldes de pen­

samento. No ensaio em questão, o caráter que James atribui à

consciência é cabalmente discutido. Mas James explicou com ambigüidade o que entende pela noção de entidade, a qual se recusa a aplicar à consciência. No trecho que vem imediata­

mente após o citado, afirma: "'

Não há, penso, nenhuma matéria original ou qualidade do

ser, contrastada com aquela da qual são feitos os objetos

materiais, da qual nossos pensamentos sejam feitos; mas há

uma função na experiência que os pensamentos efetuam, e

para cuja efetivação é invocada essa qualidade do ser. Essa

função é conhecer. Supõe-se a "consciência" necessária para

explicar o fato de que as coisas não só existem, mas também

são registradas, são conhecidas.

Assim, James está negando que a consciência seja uma

"matéria".

O termo "entidade", ou mesmo o termo "matéria", não se

explica por si próprio. A noção de "entidade" é tão geral, que pode ser tomada para significar qualquer coisa de que falamos.

Não se pode pensar sobre mero nada; e aquilo que é um objeto de pensamento pode ser chamado entidade. Nesse sentido, a função é uma entidade. Evidentemente, não era isso que James

tinha em mente.

De acordo com a sua teoria orgânica da natureza, que ten­

tei evidenciar nesses capítulos, para meus próprios propósitos

apresentarei James negando exatamente o que Descartes afir­

mou no seu Discurso do método e nas suas Meditações. Descar­

tes discrimina duas espécies de entidades, "matéria" e "alma".

A essência da matéria é a extensão espacial; a essência da alma

é a sua cogitação, no pleno sentido que Descartes atribuiu à

palavra cogitare. Por exemplo, na Seção 53 da Parte I dos seus Principias de filosofia, afirma

1179 1

Page 91: Whitehead, alfred north. a ciência e o mundo moderno

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

gue de todas as substâncias há um atributo principal, como

pensamento do espírito, extensão do corpo.

Anteriormente, na Seção 51, Descartes declara:

Por substância podemos entender nada mais gue uma coisa

gue existe de tal modo gue não tenha necessidade de nada

além de si mesma, no gue se refere à sua existência.

Além disso, um pouco adiante, Descartes diz:

Por exemplo, porque qualquer substância que cessa de durar

cessa também de existir, a duração não se distingue da subs·

tância, exceto no pensamento.

Assim, concluímos que, para Descartes, espíritos e corpos existem de tal modo que não tenham necessidade de nada além de si mesmos individualmente (Só Deus é exceção, como sen­do o fundamento de todas as coisas); que tanto o corpo como o espírito duram, porque sem duração eles cessariam de existir;

que a extensão espacial é o atributo essencial dos corpos; e que a cogitação é o atributo essencial dos espíritos.

É difícil louvar demasiadamente o gênio ostentado por Descartes em todas as seções dos seus Principias de filosofia que tratam dessas questões. O seu gênio é digno do século em

que escreveu e da clara inteligência francesa. Descartes, na sua distinção entre tempo e duração, e no seu modo de basear o

tempo no movimento e em sua estreita relação entre matéria e extensão} antecipou} tanto quanto possível em sua época} as

doutrinas modernas sugeridas pela teoria da relatividade, ou por alguns aspectos da doutrina de Bergson sobre a geração das

coisas. Mas os princípios fundamentais foram apresentados de modo a pressupor substâncias existentes independentemente, com a posição simples na comunidade das durações temporais, e no caso dos corpos, com a posição simples na comunidade das extensões espaciais. Esses princípios cond~zem dir~tamente à

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I A CI~NcrA E o MUNDO MODERNO I

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.' teoria de um~ natureza materialista e meca.~içisg ~~~lP:inada F_or es~í~itos a cogitar. Depois do fim do século XVII, a ciência encarregou-se da natureza materialística, e a filosofia, dos espi­ritos a cogitar. Algumas escolas de filosofia admitiam um dua­

lismo final; e as várias escolas ideali~tas su~l~I!.~.!:ªº:L9.!J~ a n-,~.­tureza era o principal exemplo das cogitações do espírito, Mas

Tõdãs -;~ ~sc~la~-" ~dmitia~··~ anális~ cartesiana dos elementos':

últimos da natureza. Excluo Spinoza e Leibniz dessas anrma­

ções sobre a principal corrente da filosofia moderna, derivada de Descartes, embora sejam naturalmente influenciados por ele e, por sua vez, influíssem nos filósofos. Penso principalmente

nos contatos efetivos entre a ciência e a filosofia. ,/ Essa divisão do território entre a ciência e a filosofia não

foi tarefa simples; de fato ilustrou a fraqueza do puro e simples pressuposto sobre o qual repousa. Temos em vista a natureza como um jogo entre corpos, cores, sons, cheiros, gostos, tatos e outras variadas sensações corporais, dispostas no espaço, em modelos de mútua separação por volumes interferentes e de forma individual. Também o conjunto é um fluxo, ~e._muda com o lapso de ternQ9. Essa totalidade sistemática nos é reve­lada como um complexo de coisas. Mas o dualismo do século

XVII cortou-o pela raiz. O mundo objetivo da0êIlc~ali.rr:!it.av~=­se à simples matéria espacial com posição si!'lJ21.~.no espaço e ~o tempo, e s~j~it; -a normas defi;idas q':1ant<? à ~uaJ()~qmo­çã~ O mundo subjetivo da filosofia anexou cores) sons, cheiros} gostos, sensações corporais, formando o conteúdo subjetivo da

cogitação das inteligências individuais. Ambos os mundos par­tilhavam do fluxo geral; mas o tempo, medido, é atribuido por

Descartes às cogitações do espírito do observador. Claro que

há uma fraqueza fatal nesse esquema. As cogitações do espíri­to apresentam-se como trazendo entidades, tais como as cores} por exemplo, perante o espírito como termos da contemplação. Mas, nessa teoria, as cores são, afinal de contas, apenas a mobília do espírito. Assim, o espírito parece confinar-se ao seu próprio mundo privativo de cogitações. A conformação da experiên-

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Page 92: Whitehead, alfred north. a ciência e o mundo moderno

I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

cia, ao mesmo tempo subjetiva e objetiva, na sua integridade está no eS.E,írito como uma de suas paixões particulares. Essa ------- --_ .. ~,~_.-._-------- - - --conclusão tirada dos dados cartesianos é o ponto de partida do

qual Berkeley, Hume e Kant desenvolveram os seus respectivos sistemas. E, anteriormente a eles, é o ponto no qual Locke se concentrou como sendo a questão vital. Assim, a questão sobre como se obtém o conhecimento do verdadeiramente mundo

objetivo da ciência torna-se um problema de p~;;;'ordial im­p()rtância. Descartes afirma qu;~ ~;;,:p~cl;j-~ti~~';-percebicfo pelo intelecto. Diz (Meditação 11):

t necessáriO, portanto, que eu concorde que não poderia

mesmo conceber pela imaginação o que é essa cera e que é

apenas o meu entendimento que o concebe; refiro-me a este

pedaço de cera em particular, porque para a cera em geral é

ainda mais evidente. Então, qual é esta cera que não pode

ser concebida a não ser pelo entendimento ou pelo espírito?

Com certeza é a mesma que vejo, que toco, que imagino, e a

mesma que conhecia desde o início. Mas o que se deve notar

é que sua percepção, ou a ação pela qual é percebida, não é

uma visão, nem um tatear, nem uma imaginação, e nunca o

foi, apesar de assim parecer anteriormente, mas apenas uma

intuição (inspectio) do espírito.

Deve-se notar que a palavra latina inspectio está associada no

seu uso clássico com a noção de teoria em oposição à prática. As duas grandes preocupações da filosofia moderna agora

nos são apresentadas claramente. O estudo da inteligência divi­

de-se em psicologia ou estudo do funcionamento mental consi­

derado em ~~ ~ ~E1 suas "p'_~!..~~~.!el~Ç_?~_~,~e_ ~~ _~r~ste!ll?19g~ª ,Q.1!

teoria do conhecimento do mundo objetivo comum. Noutras palavras, há o estudo das cogitações como paixões da mente, e o estudo delas que nos leva a uma pesquisa (intuição) de um mundo objetivo. Essa divisão não é nada cômoda, pois dá lugar a numerosas perplexidades cuja consideração preocupou os sé­

culos que estão neste ínterim.

1182 1

I A CI~NClA E O MUNDO MODERNO I

Enquanto o homem pensou em termos de noções físicas em relação ao mundo objetivo e de mentalidade em relação ao mundo subjetivo, o enunciado do problema, como o rea­lizado por Descartes, bastava como ponto de partida. Mas

~

o equilíbrio foi abalado pelo aparecimento da fisiologia No

século XVII, oS homens passaram do estudo da física ao es­tudo da filosofia. Pelo fim do século XIX, notadamente na .'

Alemanha, os homens passaram do estudo da fisiologia ao da

psicologia. A mudança de tom foi decisiva. Naturalmente, no período primitivo a intervenção do corpo humano foi total-

mente considerada, por Descarte'if0r exemplo, na Parte V do __ c;. >0'

Discurso do método. Mas o instintôfisiológico não se tinha de-""I" ~ senvolvido. Considerando o corpo humano, Descartes pensou com o instrumental de um físico, ao passo que os psicólogos modernos se acham impregnados da mentalidade médica dos fisiologistas. A carreira de William James é um exemplo dessa mudança do ponto de vista. Também ele possuía o claro e in-cisivo gênio que podia estabelecer num relance o ponto exato

da solução final. A razão por que pus Descartes e James em imediata jus­

taposição agora se evidencia. Nenhum filósofo terminou uma época com a solução de um problema. Seu grande mérito é de

natureza oposta. Cada um deles abre uma época com a clareza dos enunciados de termos nOS quais o pensamento possa ser proficuamente expresso em determinados estágios do conhe­

cimento, um para o século XVII, outro para o século XX. A

esse respeito, devem ambos ser contrapostos a santo Tomás de Aquino, que expressa o ponto culminante da escolástica aris­

totélica. Em diversos aspectos nem Descartes nem James foram os

mais característicos de duas respectivas épocas. Tendo a atribuir essa posição a Locke e a Bergson respectivamente, pelo menos no que concerne às suas relações com a ciência do tempo. L,Q; cke desenvolveJ1 a linha do pensamento que mantém a filosofia em movimento; por exemplo, insistiu no apelo à psicologia.

1 183 1

Page 93: Whitehead, alfred north. a ciência e o mundo moderno

I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

Iniciou a época de pesquisas famosas sobre problemas de limi­

tado escopo. Sem dúvida, ao fazê-lo, infundiu na filosofia algo ~o anti-racionalismo da ciêq,çia. Mas a tarefa verdadeiramente

básica de uma metodologia proveitosa é começar daqueles cla­ros postulados que devem ser tomados como os últimos no que

diz respeito às ocasiões em questão. A crítica de tais postulados metodológicos está assim reservada para outra oportunidade.

Locke descobriu que a situação filosófica legada por Descartes

envolve problemas de epistemologia e psicologia. Bergson introduziu na filosofia a concepção orgânica da

ciência fisiológica. Mstou-se completamente do estático mate­

~smo do século XVl!:.QJ.eu protesto contra a_espacializasão... é um protesto contra a concepção newtoniana da natureza como

~o tudo menos uma eleva4a abstrasão. O seu chamado an­tiintelectualismo deve ser apresentado nesse sentido. Em alguns aspectos, recorre a Descartes, mas esse recurso vem acompanha­

do de uma compreensão natural da biologia moderna. Há outra razão para associar Locke e Bergson. O germe de

uma teoria orgânica da natureza deve ser procurado em Locke.

O seu mais recente expositor, o professor Gibson, S afirma que

o modo de Locke conceber a identidade da autoconsciência "como a de um organismo vivo envolve genuína transcendên­

cia da visão mecânica da natureza e do espírito incorporada

à teoria da composição". Mas deve-se notar que, em primeiro

lugar, Locke vacila ao tomar essa posição; e, em segundo lugar, o

que é ainda mais importante, só aplica essas idéias à autocons­

ciência. A atitude fisiologista ainda não se tinha estabelecido.

O resultado da fisiologia foi repor o espírito na natureza. Os ;;;urologjstas indicaram primeiro o efeito dos estímulos sobre ~--- ------ ~-~-----------

os nervos do corpo, depois a integração nos centros nervosos e

~t~_Q __ ile~~~!~ento de uma referência projetiva para além do corpo de qu-",--,""sultou um"e_ficácia motriz em reno-

sef. seu livro, Locke's TheoryofKnowledgeQf!d its HisroriCQ/ Relatiofls, Camb. Univ. Press, 1917.

1 1841

I A CI~NCIA E O MUNDO MODERNO I

vada excitação nervosa. Em bioquímica, aclara-se o delicado

~~tamento da comp~ição química das partes para preservar

todo o organismo. Assim a cognição mental é vista como ~~e~­riência refletiva de uma totalidade, expondo por si o que é em ~i meSmo como uma ocorrência de unidade. Essa unidade é ~a '

integração da soma dos seus acontecimentos parciais, mas não é I o seu agregado numérico. Tem a sua própria unidade como um'~ --r

"'ãêontecimento. Essa unidade total, considerada como entidade V

por si mesma, é a preensão em unidade dos aspectos-modelo

do universo dos acontecimentos. O conhecimento de si mesmo

surge de sua própria relevância para as coisas cujos aspectos

apreende. Conhece o mundo como um sistema de mútua re­

levância e assim o vê refletido em outras coisas. Essas outras

. coisas incluem mais especialmente as várias partes do seu pró-prio corpo.

É importante discriminar o modelo corporal, que dura, do

acontecimento corporal, ~~:~~ess .. do. pel()n:'0(leloc:l~radourº, e das partes do. acontecimento corporaL As próprias partes do aCo";tedmento-~~~oral são ~travessadas por seus próprios mo­

delos que constituem elementos do modelo corporaL As.l'ª!1"~

sl0.""rl'.()3ã().reaII11ente partes do ambiente .do acontecimen, to cOrporal inte~r..?, mas tão relacionadas que os seus aspectos mútuos são peculiarmente efetivos, modificando o modelo de

qualquer uma delas. Issº. resultado cará!!f}I1.timº_~~elaçful do .!odo.para com a parte. Assim, o corpo é uma porção do

~biente quanto à parte,.!3_parte é llf!Jª.porçi<Uh.Lm.bi.ell­~~~_~_ ao corp~; apenas são particularmente sensíveis, cada

um às modificações do outro. Essa sensibilidade é disposta de tal modo, que a parte se ajusta p~;ap~~;~-;:Y;;:r a estabilid;;de d~ ~().do.corpo. É um exemplo especial do ambiente favo­rável que protege o organismo. A relação da parte com o todo tem a especial reciprocidad~ a~~ci~d~-ã noç-ã~ de organism~

--em-que _a p~~~ está para ~ t.<?9.0;, n:t_a~ e~~_~ .. r~l~~EJ?E~y~~~~m -tOcla-a- n:~tureza e não se inicia no caso especial dos organismos mais desenvolvidos.-·-·----· ---------- --

1185 1

Page 94: Whitehead, alfred north. a ciência e o mundo moderno

I ALFRED NORTH WHrrEHEAD I

Além disso, encarando essa questão como matéria de quí­

mica, não há necessidade de construir as ações de cada molécula

em um corpo vivo por meio de sua referência particular exclusi­

va ao modelo do organismo vivo completo. É verdade que cada

molécula está afetada pelo aspecto desse modelo nela refletido, de modo a não ser senão o que poderia ser se posta em qual­

quer outro lugar. Do mesmo modo, em algumas circunstâncias

um elétron pode ser uma esfera e em outras circunstâncias um

volume oval. O modo de abordar o problema, no que conceme

à ciência, é simplesmente indagar se a molécula apresenta nos

corpos vivos propriedades que não devem ser observadas entre as coisas inorgânicas em torno. Do mesmo modo, em um campo

magnético, o ferro doce apresenta propriedades magnéticas que

estão ausentes em outro lugar. As ações autopreservativas ime­

diatas dos corpos vivos e a nossa experiência da ação física dos

nossos corpos que seguem a determinação da vontade sugerem a

modificação das moléculas no corpo como resultado do modelo total. Parece possível que possa haver leis físicas que expressem

as modificações dos últimos organismos básicos quando fazem parte dos organismos com adequada integridade compacta de modelo. Estaria, contudo, de pleno acordo com a observação em­pírica do ambiente, se os efeitos diretos dos aspectos entre o cor­

po e as suas partes fossem destituídos de importância. Devemos

esperar transmissão. Desse modo, a modificação do modelo total

transmitir-se-ia por meio de uma série de modificações, de uma

série descendente de partes, de modo que finalmente a modifi­cação da célula transforma o seu aspecto na molécula, efetuando

assim uma alteração correspondente na molécula - ou em outra

entidade mais sutil. Assim, para os fisiologistas a questão está na

física das moléculas em células de características diferentes. Podemos agora nos ater à relação da psicologia com a

fisiologia e çom a física. O ca;;Po particular da psicologia é apenas o acontecimento considerado de seu próprio ponto de

vista. A unidade desse campo é a unidade do acontecimento.

Mas é o acontecimento com uma só unidade, e nãó o aconteci-

1 186 1

I A CIÊNCIA E O MUNDO MODERNO I

mento como uma soma de partes. As relações das partes entre

si e com o todo são os seus aspectos, cada um no outro. Um

corpo para um observador externo é o agregado de aspectos

para ele do corpo como um todo, e também do corpo como uma soma de partes. Para o observador exterior, os aspectos da

forma e dos objetos dos sentidos são dominantes, pelo menos para a cognição. Mas devemos também admitir a possibilidade"

de podermos descobrir em nós mesmos aspectos diretos das

mentalidades dos mais altos organismos. A exigência de que a cognição de mentalidades alheias deve necessariamente fazer­

se por meio de inferências indiretas partindo de aspectos_~e forma e de objetos de sentidos é cOJ!lcletarneI)te dJ!sautoriz.'l-da por essa filosofia do organismo. O princípio fundamental é o de que o que quer que merg';lIie na realidade insere os seus aspect~~--e~-~;da ;cont.~s.i.~ento .indivi~ual.:_

Além disso, mesmo para o autoconhecimento, os aspectos

das partes de nossos próprios corpos em parte tomam a forma de aspectos da forma e dos objetos de sentido. Mas essa parte do acontecimento corporal a respeito da qual a mentalidade cognitiva é associada é por si mesma o campo psicológico da

unidade. Seus componentes não se referem ao próprio acon­

tecimento; são aspectos,do que está para além desse aconteci- ,I

mento. Assim,. ~ aut<:.c~~h~~~~~~~~~!:~re~c:<? __ ~~?!::~:~meI!to ;J~/ corporal é o conhecimento de si mesmo como uma unidade

" complexa, cujos component<:~.~:r~!vem toda~~ reali~~~~s_/"'Y' para além de si mesma, restritas sob a limita cão <lJLseu mo­del;;hpectos. As~im, conhecemo-nos como uma função de

unificação de uma pluralidade de coisas diferentes de nós mes mos. A cognição desvenda um acontecimento como sendo uma

~ade, organizando uma combinação real de coisas alheias.

Mas esse campo psicológico não depende de sua própria cog­nição, de modo que esse campo é ainda um acontecimento de

unidade abstraído de sua própria cognição. Desse modo, a consciência será o funcionamento do c~.:

nhecimento. Mas o que é conhecido já é uma preensão de

11871

Page 95: Whitehead, alfred north. a ciência e o mundo moderno

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aspectos de um universo real. Esses são aspectos de outros

acontecimentos modificados mutuamente. No modelo dos r '-acont~_ci~~_~~osJ.JiC;élm no seu modelo de mú-~uo --;elaciona-

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universo. Assim, nenhum sujeito individual pode ter realidade independente, ."isto que é uma preensão de asp,,<:!'5lS limitados ?e outro~ sujeitos que_IlãQ de-/... A expressão técnica "sujeito-objeto" é um termo inade­

quado p~ra a situação fundame~tal revelada na experiência. É real~-ent~--um~--;erniniscênci~do aristotélico ".sujeito,:QT~!::. cado". Já pressupõe a doutrina metafisica de sujeitos diversos

qualificados por seus predicados particulares. Essa é a doutrina dos sujeitos com os mundos particulares das experiências. Acei­

tando-o, n~o há como escapar do solipsismo. O ponto é que a

expressão "sujeito-objeto" indica uma entidade fundamental na

base dos objetos. Assim, os "objetos" concebidos desse modo

não passam de fantasmas dos predicados de Aristóteles. A si­

tuação primária revelada na experiência cognitiva é "eu-objeto

entre objetos". Com isso quero dizer que o fato primário é um

mundo sem partes que transcende o "aqui-agora" que marCa o

eu-objeto, e transcendendo o "agora" que é o mundo espacial de realização simultânea. É um mundo que também inclui a rea­

lidade do passado e a limitada potencialidade cio futuro, COm­binado com o mundo completo da potencialidade abstrata, o domínio dos objetos eternos, que transcende e encontra exem-

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I O eu-objeto, como o aqui-agora da consciência, é consciente

da essência experiente, constituída por seu relacionamento in­

terno com o mundo das realidades e com o mundo das idéias.

J! Mas o eu-objetoJendo assim constitJlído, está no mundo d~ __ realidades, apresenta-se como um organismo que requer a en­

trada de idéias com vistas a esse estado entre as realidades. Essa <

questão da consciência deve ser reservada para outra ocasião.

O ponto que se deve considerar na presente discussão é que uma filosofia da natureza como orgânica deve 2artir do ex-

,-------------

C' tremo -')I)()stoao_e.~giº9Qela filosofia materialista. O ponte) d~

:y partida materi~ista_é de su~stâE--"i~_~JCi.stentesJndepeIlge!1~e­mente, matéria e __ espírit~~ A matéria sofre modificações de suas ~eIações- exte-m;;, ~-o espírit~ sofre modificacões dos objetos

que contempla. Há nessa teoria materialista duas eSl'écies..de substâncias independentes, cadaUIna_q_ualificada por suas pai­xões apropriadas. O ponto de partida orgânico é da análise de processos como a realização de acontecimentos dispostos em

comunidades que se comunicam entre si. O acontecimento se­

ria a unidade das coisas reais. O modelo duradouro emergente é a estabilização da consecução emergente, de modo a tomar-se

um fato que retém a sua identidade através do processo. Será de notar que perduração não é primordialmente a propriedade de durar para além de si mesmo. Quero dizer que perduração

é a propriedade de achar o seu modelo reproduzido em par­tes temporais do acontecimento total. Nesse sentido é que um

acontecimento total traz um modelo duradouro. Há um valor

intrínseco idêntico para o todo e para as suas partes sucessivas.

A cognição é o patenteamento em alguma medida da realidade

individual, do substrato real da atividade, pondo diante de si

possibilidades, realidade e propósito. É também possível chegar a essa concepção orgânica do

mundo se partirmos das noções fundamentais da física moder­na, em vez de, como acima) da psicologia e da fisiologia. De

fato, por causa dos meus próprios estudos sobre matemática e

1189 I

Page 96: Whitehead, alfred north. a ciência e o mundo moderno

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física matemática, realmente cheguei à minha convicção desse

modo. A física matemática supõe em primeiro lugar um campo

eletromagnético de atividade que abrange espaço e tempo. As leis que condicionam esse campo são nada menos que as condi­

ções observadas pela atividade geral do fluxo do mundo, como se individualiza nos acontecimentos, Em fisica, há uma abstra-

, ção. A ciência ignora o que uma coisa é em si. Suas entidades

apenas são consideradas em relação à realidade extrínseca, vale dizer, com respeito aos seus aspectos em outras coisas. Mas a

:: abstração vai mais -~lém do gue i;~~i~E9;q~e-~ãotãc;:~~~ente 0;-1-------,----- -- -. - __ 'o •

1 aspectos em outras coisas, ~odificando as especificações __ ~.~---'--- -- - - _._--- -----

cíotemporais da história de vida dessas outras coisas tomadas,

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3/ que contam . .f\ realidad~ jntrínseca do observ~~()F é que .~ntra;

~;i~ero -dizer que se ape~-'p_~~~ __ ~_ gue o observador é e~ si ~es­mo, Por exemplo, o .fato de que ele verá vermelho ou azul entra

pas aIifIll.ções cientificas, Mas ~rrn~I~() que qobservad_or_:;:ê

naveraaáe não entra na ciênci<:. q_ q~~}~p"()_!:!~ (~~as_asil1?:­y!~ div~rsida~"c!..as_ ~xperiên<:ias de :;:ermelho d_o o_~~':fya~or de todas as suas outras experiênc.i~. De acordo com isso, o caráter

intríns~co do observador só tem importância para fixar a indivi- 1-'

'dualidade auto-idêntica das entidades físicas, Essas entidades só

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são considera~as c"mo agentes ~e Jixam,ocaminho_noternJJo ;-n;~spaço das histórias de vida de entidades duradouras.

A linguagem da fisica deriva das idéias materialistas do século XVII, Mas verificamos que, mesmo em suas abstrações

extremas, o que é realmente pressuposto é a teoria orgânica de

aspectos explicada anteriormente. Primeiro, considerem qual­

quer acontecimento em espaço vazio, tomando-se "vazio" como

privado de elétrons ou prótons, ou de qualquer outra forma de

carga elétrica. Tal acontecimento tem três papéis na física. Em

primeiro lugar, é a cena real de uma aventura de energia, quer

como seu habitat, quer como o lugar de determinada corrente

de energia: de qualquer modo, nesse papel a energia está pre­sente, ou localizada no espaço durante o tempo considerado, ou

corrend. o através do espaço. / , " , //j'

.i J./11901 --" "i. " )-

I A Cl~NClA E o MUNDO MODERNO I

Nesse segundo papel, o acontecimento é um liame ne­

cessário no' modelo da transmissão, pelo qual o caráter de todo acontecimento recebe alguma modificação de todos os outros

acontecimentos. No seu terceiro papel, o acontecimento é o repositório

de uma possibilidade, quanto ao que aconteceria a uma car-ga elétrica, ou por meio de deformação ou de locomoção, se <

acontecer que ela exista. Se modificarmos a nossa afirmação

considerando um acontecimento que em si mesmo inclui uma

porção da história de vida de uma carga elétrica, então ainda permanece a análise dos seus três papéis, não permanecendo,

porém, o fator de que a possibilidade incorporada no tercei-ro papel seja agora transformada em qualquer realidade. Nessa substituição da realidade pela possibilidade, obtemos distinção

entre acontecimentos vazios e plenos. Recorrendo aos acontecimentos vazios, notamos neles a

deficiência de individualidade de conteúdo intrínseco; Consi­derando o primeiro papel de um acontecimento vazio como um habitat de energia, notamos que não há discriminação

individual de um fragmento individual de energia, quer esta­ticamente localizada, quer como elemento de uma corrente.

Há simplesmente uma determinação quantitativa de atividade,

sem individualização da atividade em si. Essa falta de indivi­

dualização é ainda mais evidente no segundo e terceiro papéis.

Um acontecimento vazio é algo em si mesmo, mas deixa de

realizar uma individualização estável de conteúdo, Ntl que se refere ao seu conteúdo, o acontecimento vazio é um elemento

realizado em um esquema geral de atividade organizada, Faz-se necessária alguma qualificação quando o aconteci­

mento vazio é a cena da transmissão de uma marcha definida

de formas ondulatórias freqüentes. Há agora um modelo defi­nido que se conserva permanentemente no acontecimento. En­

contramos aqui o primeiro sinal esmaecido de individualidade duradoura, Mas é individualidade sem a mais fraca apresenta­ção de originalidade, pois é simplesmente uma permanência

1 191 1

Page 97: Whitehead, alfred north. a ciência e o mundo moderno

1

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

que resulta unicamente da implicação do acontecimento em

um esquema de modelação mais amplo.

Voltando agora ao exame de um acontecimento ocupado,

o elétron tem individualidade determinada. Pode ser traçada por toda a sua história de vida através de uma variedade de acontecimentos. Um conjunto de elétrons, combinado com as

análogas cargas atômicas de eletricidade positiva, forma um

corpo como ordinariamente percebido. O mais simples corpo dessa espécie é uma molécula, e um conjunto de moléculas for­

ma um agrupamento de matéria ordinária, tal como uma cadei­

ra ou uma pedra. Assim, uma carga de eletricidade é a marca de

individualidade de conteúdo, como adicional à individualidade de um acontecimento em si. Essa individualidade do conteúdo é o ponto forte da doutrina materialista.

Pode, contudo, ser igualmente bem explicado na teoria do organismo. Quando consideramos a função da carga elétrica, notamos que o seu papel é marcar o surgimento de um mo­

delo transmitido através do tempo e do esp"~ço. É a chave de alguns modelos determinados. Por exemplo, o campo de força

em qualquer acontecimento deve ser apresentado tendo-se em

conta as aventuras dos elétrons e prótons, e assim também são

as correntes e a distribuição de energia. Além disso, as ondas elétricas se originam nas aventuras vibratórias dessas cargas.

Assim, o modelo transmitido deve ser concebido como o fluxo

dos aspectos através do espaço e do tempo derivado da história de vida da carga atômica. A individualização da carga decorre

da conjunção de duas características, em primeiro lugar pela

continuação do seu modo de funcionar como chave para de­terminar a difusão de um modelo; e, em segundo lugar, pela unidade e continuidade de sua história de vida.

Podemos concluir, portanto. que a teoria orgânica ~re­

~~_nta d_i~e~~~nte o ~ue_a física realmente afirma aJS!_s_p_~itçu~k

sua~,,"tida<les últim~~. Notamos também a completa futilidade dessas entidades, se concebidas como indivíduos inteiramente _---o _. ___ " ___ " ~" __ o - ____ "' ____ .. " .. ___ . --concretos. No que se refer~ à física, est_ã?_~~t~iramente ocupa-

1192 1

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I A cíE:NClA E O MUNDOtMODERNO I (./~' 7.) ;.> jY-'~J~-

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realidade intrinseca, "-'É óbvioq;e-~ basear a filosofia no pressuposto do orga­

nismo deve remontar a Leibniz.9 Suas mônadas são para ele as

últimas entidades reais. Mas m".éeve as substâ.n.c.@uMxesianas. com as suas paixões qualificadoras, como também expressan- ti:

do-igualmente para ele a caracterização-fi~al da~~oisasreais. Assim, para ele não há realidade de relações internas. Tinha, "/ pois, em suas mãos dois pontos de vista distintos. Um era que a '-01---

entidade real final é uma atividade organizadora, fundindo em uma unidade, de modo que essa unidade é a realidade, O outro ponto de vista é que as entidades reais finais são substâncias que suportam qualidades. O primeiro ponto de vista depende da aceitação das relações internas ligando todas as realidades. A última é incompativel com a realidade de tais relações. Para combinar esses dois pontos de vista, suas mônadas são inteira-

mente inaptas; e as suas paixões refletem o universo pelo di-

vino arranjo de uma harmonia preestabelecida. Esse sistema,

assim, pressupunha um agregado de entidades independentes. Não discriminava o acontecimento, como a unidade da expe-

riência, do organismo duradouro como a sua estabilização em

importância, e do organismo cognitivo expressando uma per-

feição aumentada de individualização. Nem admitia relações variamente denominadas, relacionando dados de sentido com

vários acontecimentos em diversos modos. Essas relações va­

riamente denominadas são de fato as perspectivas que Leibniz

admite, mas só sob a condição de que sejam puramente qua-

lidades das mônadas organizadoras. A dificuldade surge real-mente da indiscutida aceitação da noção de posição simples

como fundamental para o espaço e o tempo, e da aceitação da noção da substância individual independente, como funda-

9Cf. Bertrand Russell, The PhilosophyofLeibniz, para a sugestão dessa linha de pensamento.

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1193 1

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Page 98: Whitehead, alfred north. a ciência e o mundo moderno

I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

mental para uma entidade real. O único caminho que se abria

a Leibniz era, assim, o mesmo mais tarde seguido por Berkeley

(numa interpretação prevalente do seu significado), isto é, um apelo a um Deus ex machina, capaz de ser superior às dificul­

dades da metafísica. Do mesmo modo que Descartes introduziu a tradição do

pensamento que guardou em alguma medida a subseqüente

filosofia do contato com o movimento cientifico, assim Leibniz introduziu a tradição alternativa de que as entidades, que são

as últimas coisas reais, são em certo sentido processos de orga­

nização. Essa tradição foi a base das grandes realizações da filo­sofia alemã. Kant refletiu as duas tradições, uma após a outra. Kant era um cientista, mas as escolas dele derivadas só tiveram

reduzido efeito na mentalidade do mundo científico. Devia ser

a tarefa das escolas filosóficas do século XX reunir as duas cor­rentes em uma expressão do quadro do mundo derivado da

ciência, e portanto acabar com o divórcio entre a ciência das

afirmações e as nossas experiências éticas e estéticas.

11941

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I CAP[lULO X I

A ABSTRAÇÃO

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Nos capítulos anteriores examinei a reação do movimen­

to científico com relação às mais agudas questões que têm pre­ocupado os pensadores modernos. Nenhum homem, nenhuma

-"s-"o,:-ci:.;e.c.de-ad_e=lim=i",tada_d_e ho.:n_e_n_s_e_n_e_nh_tlIIl~ép_o~c_a pode...mrefletir so~~".!~as as co~as ao mesmo tempo. Assim, procurando des­lindar os diversos impactos da ciência sobre o pensamento, o

tópico foi tratado historicamente. Nesse retrospecto, tive em mente que o resultado final de toda a história é a patente dis­solução do cômodo esquema do materialismo científico que domino,:! os três séculos el11 exame. De acordo com isso, várias 'es~oj';;-d~ ~rítica das opiniÕes dominantes foram esboçadas; e

esforcei-me por delinear uma doutrina cosmológica alternati­

va, \)ast,mte ampla. para i~;:J~ir o que é fundamental ta~t~ para a ciência como para os seus criticos. Nesse esquema alternativo,

) a noção de matéria como fundamental foi substituida pela sua

l/ J síntese orgânica. Mas a aproximação sempre se deu com base

na consideração das complexidades reais do pensamento cien­

tifico e das perplexidades peculiares que sugere.

No presente capítulo e no subseqüente, deixaremos de lado os problemas peculiares à ciência moderna e nos colocare­

mos ~~to de vista de tlIIla co~i~en,ção~e_~paixonada da natureza das coisas, ~_~te~i?!~s a q~~lg~er)nvestigaçãQ especial em seus detalhes. Esse ponto de vista é chamado "metafísico". Assim, aqueles leitores que acham a metafísica enfadonha, mesmo em dois breves capítulos, farão bem em passar imedia-

1195 1

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Page 99: Whitehead, alfred north. a ciência e o mundo moderno

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tamente para o capítulo sobre "Religião e ciência", que resume

o tópico do impacto da ciência em relação ao pensamento mo­

derno. Esses capítulos metafísicos são puramente descritivos. Sua ,.-

justificação deve ser procurada: (I ~ nosso conhecimento di-

!J reto das circunstâncias reais que constituem nossa expert~Q<;La imediata; (2) em seu êxito como base para harmonizar as nossas

, exposições sis~~_Q1jl!!~_aº;:t~ ge v~rios -gpos de experiência;eJ3) D-:-en,. seu êxito proporcionador dos conceitos em cujos temos se

c . pode esboçar urna epistemologia. Pelo (3) qlleroexprimir qu~

uma exposição do .. caráter geral daquilo que conhecemos deve -h;bilitar-nos a esboçar uma exposição de como o conhecimen­

to é possível CCIpO !ldjunto às coisas conhecidas. ... - - Em: q~lquer circunstância de cognição, aquela que é co­

nhecida é uma circunstância real de experiência, diversificada I

em referência a um domínio de entidades que transcendem

essa circunstância imediata __ nQ __ ~~º_!i_d_o _~~ q~~. têm cºI}~~ges

al:!áJ<?gas ou diferentes com outras circunstâncias de espécie.

Por exemplo, determinado matiz de vermelho pode, na cir­cunstância imediata, estar implicado com o volume da esferi­

cidade em algum modo definido. Mas esse matiz de vermelho e esse volume esférico apresentam-se como transcendentes a

essa circunstância no sentido de que qualquer uma delas tem

outras relações com outras circunstâncias. Do mesmo modo,

pondo de parte a ocorrência real das mesmas coisas em ou­

tras circunstâncias, cada circunstância real é colocada num do­

mínio de entidades entrelaçadas e alternativas. Esse domínio

é desvendado por todas as proposições falsas que podem ser o predicado significativo daquela circunstância. É o domínio

das sugestões alternativas, cujo terreno na realidade transcende

t/r cada circunstância real. A verd~dei.~~_ .. ~rr:'::portân~~a ~_a~_Y..!~RO~i­ções falsas para cada circunstância real.é_d"s",,:,clacia rela art~, pelo romance e pela crítica .~~ . .:~ferência a ide~~. A ~?mpre-

I Cf. ::neu Pr;nciplesofNatural Knowledge, capitulo V, seção 13.

/ ~ / -~) [y':/" : ... )- J //." .

I 196 I ·0·

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l} ; ensão da realidade requer ul'Il~ .. referência à idealidade. Eis o I -- - - -----------.- - ..

fundamento da posição metafísica que sustento. Os dois do-

mínios sã() intrinseca~_1'!te l.~er~s.~ _t9!ªLsituação metafí­~-VerdaJe·de· <Í~e alguma proposição a respeito de uma

r,-"', circunstância 'real é faisa pode exprimir a ,,:,~rdade vital qu~ /) à realização esté~~. Expressa a "gr~nde re~u's-a" qu-e Ta sua

característica primária. Um acontecimento é decisivo em pro­

porção à importância (para ele) das duas proposições falsas: a

sua importância para o acontecimento não pode ser dissociada

do que o acontecimento é em si, por meio de consecução. Essas

unidades transcendentes foram chamadas "universais". Prefiro ·,:usar o termo "objetos eternos", com o fim de me desvencilhar

de pressupostos que se prendem ao termo antigo em razão de sua longa história filosófica. Objetos eternos são assim, emsua natureza, abstE~ Por "abstrato" entendo que aquilC) que .um

obj~~~!~iº-º, é eI!L~i ~ ist~ é, a sua essência - é compreen:--- -L ' sível sem referência a nenhuma circunstância determinada de ./ .. . .

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experiênci~. ?~bstrato é transcender determinadas circuns­

tâncias concretas de acontecimento real. Mas transcender uma

-circu_I?:s~~nci~ 'real-não significa estar em desc~ne~ão com el~ Xõ--~ontrário, sustent~-que -Zad;-obf~to etern~--te~ a sua pró­

pria conexão com -cada u~à- dessas circunstâncias, que ~h;~o os-eu -mod"O de entrar nessa circunstância. Assim, um objeto

eterno deve ser compreendido pelo conhecimento: (I) de sua

individuali<lad~.sleter'!l.in",da; (2) de sua.'.. relações .ger:ais com. outros objetos eternos como ap~os para a re~lização em cir­

cunstâncias reais; e (3) do princípio geral que expressa a sua inclusão em determinadasci'~c~~stâncias reais.

Esses três pontos capitais expressam dois princíl'icl,,_ O primeiro princípio é que cada objeto eterno é um indivíduo

que, em sua própria feição peculiar, é o que é .. Essa individual~­

dade determinada é a essência individual do obje!o e não pode ser descrita de Outro modo a não ser como sendo ela mesma.

Assim, a essência individual é simplesmente a essência consi­

derada a respeito da sua unicidade e além disso a essência de ! . . 1 .

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Page 100: Whitehead, alfred north. a ciência e o mundo moderno

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um objeto eterno considerada ~_~:~E.4o ~ua pró~!i~" -7) contri~~~~~_i~.,,!_ ~_cc:~~ ... ~ir<:uns~ncia rt;_ª~. Essa contribuição ",~, ~

liniCa é idêntica para todas essas circunstâncias com respeito ao ~" '" , fato de que o objeto em todos os modos de introdução é ape- .i

nas a identidade de si mesmo. Mas varia de uma circunstância \\-\

para outra, com respeito às diferenças do seu modo de inclusão.

Assim, !_situ::ção rIle~aªsica.de um3bj"to et~,!,oé a da po,,- ~ sibilidade para uma realidade. Todas as circunstâncias reais são definidas quanto ao seu caráter mediante o modo como essas

possibilidades são realizadas para essa circunstância. Assim, re­alização é uma seleção entre possibilidades. Mais claramente,'

_ é uma seleçã"3'le re~ulta_"-IIl_uma gradação de.Qossibilidades ' . • ~---- ___ o_o· _.' ___ •••• _____ _

/1 com respeito à sua realização nessa circunstância. Essa conclu-

t-i y

são leva-nos ao segundo princípio metafísico: um obj~t~~em~,

~?_~i~~r_~? ~_~_~ __ ~_~~_ entidaci.~_~?s~E~~ não pode ser s~ar~­d()de Sua referência a outros objetos eternos, .nem de sua r!'Je:~,\

rênc~~~_~ealida~_~~l!!_~r~J, embora esteja em desc_onexão com '"

o modo real de inclusão em detelllli.nadas circunstâncias reais. ----------- - - -_. - "--._--- ------- _.- ---Esse princípio é expresso pela afirmação de que cada objeto~ : --- - -- --....

;;; eterno ~!E_._~_~_ "'_~~_~_sência relacio~al". ~ssa essência r~l~çi~~~l, ~ de~rmina comoé..E~~!vel que o objeto ~ejaiIlcluído em cir- . ~,

cun~t.ânci'!.s reªis.

/ Em outras palavras, se A for um objeto eterno, o que A é em si envolve a situação de A no universo, e A não pode

ser separado dessa situação. Na essência de A, existe uma de­terminabilidade quanto aos relacionamentos de A com outros

objetos eternos, e uma indeterminabilidade quanto aos relacio-

'\

'\ namentos de A com as circunstâncias reais. Visto que outros

objetos eternos se acham determinadamente na essência de A, " segue-se que há relações internas. Quero dizer com isso que"

essas relações são constitutivas de A, pois uma entidade que se -'",

acha em relações internas não tem de ser como uma entidade .~ que não esteja nessas relações. Em outras palavras, uma vez 0'.c

com relações internas, sempre com relações internas. As rela- (;<S ções internas de A formam conjuntamente a sua significação.

J) 9 ;;íJy :;.-. 1198 I

2,j,') (' jj,; /1;J I , ' . j /

) .

I A CI~NCLA E O MUNDO MODERNO I

Repitamos que uma entidade não pode apresentar rela­ções externas, a não ser que na sua essência tenha uma indeter­

minabilidade que está como paciente dessas relações eternas. A significação do termo "possibilidade" aplicado a A é simples­mente que se acha na essência de A uma passividade para as

relações com as circunstâncias reais. Os relacionamentos de A com a circunstância real são simplesmente o modo como os ,"

relacionamentos eternos de A com outros objetos eternos são

graduados quanto à sua realização nessa circunstância.

Assim, O principio geral que expressa a inclusão de A na de­terminada circunstância real ex é a indeterminabilidade que está na

essência de A quanto à sua introdução em ex; e é a determinabilida­de que está na essência de ex quanto à inclusão de A em ex. Assim,

a preensão sintética, que é ex, é a solução da indeterminabilidade de A na determinabjlidade~de ex. De acordo com isso, o rela­cionamento entre A e a é externo com relação a A, e é interno

com relação a ex. Toda circunstância real ex é a solução de todas as modalidades em inclusões categóricas atuais: a verdade e a

falsidade tomam o lugar da possibilidade. A completa inclusão de A em ex é expressa por todas as proposições verdadeiras que exis­

tem sobre A e ex, e também - pode ser - sobre outras coisas. O relacionamento determinado do objeto eterno A com

todos os outros objetos eternos é o modo como A é sistemati­

camente e pela necessidade de sua natureza relacionado com

todos os demais objetos eternos. Esse relacionamento represen­

ta uma possibilidade para a realização. Mas O relacionamento é um fato que concerne a todos os relata implicados, e não

pode ser isolado como se envolvesse somente um dos relata. De acordo com isso, há um fato geral de mútuo relacionamento

sistemático inerente ao caráter da possibilidade. O domínio dos objetos eternos é descrito propriamente como um "domínio",

porque cada objeto eterno tem a sua circunstância nesse com­

plexo sistemático geral de mútuo relacionamento.

Com respeito à inclusão de A em uma circunstância

eterna a, os mútuos relacionamentos de A com outros objetos

1199 I

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

eternos, assim graduados em realização, demandam para a sua expressão uma referência à situação de A e dos outros objetos eternos no relacionamento espaciotemporal. Também esse re­lacionamento não é expressável (para esse propósito) sem uma referência à situação de a e de outras circunstâncias reais no mesmo relacionamento espaciotemporal. De acordo com isso, o relacionamento espaciotemporal em cujos termos o curso

real dos acontecimentos deve ser expresso, não é senão uma limitação seletiva dentro dos relacionamentos sistemáticos ge­rais entre os objetos eternos. Por "limitação", aplicada ao conti­

nuum espaciotemporal, entendo aquelas determinações de fato

- tais Como as três dimensões do espaço e as quatro dimen­sões do continuum espaciotemporal - inerentes ao curso real dos acontecimentos, mas que se apresentam como arbitrários com respeito a uma possibilidade mais abstrata. A consideração dessas limitações gerais na base das coisas gerais, distintas das limitações peculiares a cada circunstância real, será mais com­pletamente resumida no capítulo sobre "Deus".

Além disso, a situação de todas as possibilidades em re­ferência à realidade demanda referência a esse continuum es­paciotemporal. Em qualquer consideração determinada de uma possibilidade, podemos conceber que esse continuum seja

transcendido. Mas, enquanto haja qualquer referência definida á realidade, requer-se o "modo" definido da transcendência des­se continuum espaciotemporal. Assim, primariamente, o conti­

nuum espaciotemporal é um lugar de possibilidade relacional,

selecionada de um domínio mais geral de relacionamento sis­temático. Esse limitado lugar do relacionamento das possibi­

lidades expressa uma limitação de possibilidade inerente ao sistema geral do processo de realização. Qualquer que seja a possibilidade geralmente coerente com esse sistema, ela está incluída nessa limitação. Também, o que quer que sej a possível abstratamente, em relação ao curso geral dos acontecimentos - como distintos das limitações determinadas introduzidas por circunstâncias determinadas -, abrange o continuum espa-

I 200 I

I A CI~NCIA E o MUNDO MODERNO I

ciotemporal, em todas as situações espaciais alternativas e em todos os tempos alternativos.

Fundamentalmente, o continuum espaciotemporal é o sis­tema geral de relacionamento de todas as possibilidades en­quanto esse sistema seja limitado por sua importância para o fato geral da realidade. Também é inerente á natureza da possi­bilidade que deve incluir sua importância para a realidade, pois ,­

possibilidade é aquilo em que se encontra o realizável, abstra­

ído da realização. Já se enfatizou que uma circunstância real deve ser con­

cebida como uma limitação e que esse processo de limitação

pode ser caracterizado ainda mais como uma gradação. Essa característica de uma circunstância real (digamos ) demanda maior elucidação. Uma indeterminabilidade está na essência de qualquer objeto eterno (digamos A). A circunstância real a sintetiza em si todo objeto eterno e, nessas condições, inclui o "completo" relacionamento determinado de A com todos os demais objetos eternos. Essa síntese é uma limitação da reali­zação, mas "não" do conteúdo. Cada relacionamento preserva sua própria identidade. Graus de entrada nessa síntese são ine­rentes a cada circunstância, como a. Esses graus só podem ser expressos como relevância de valor. Essa relevância de valor

varia - em comparação com diferentes circunstâncias - em grau de inclusão desde a essência individual de A como um elemento na sintese estética (em algum grau de inclusão) até

o mais baixo grau, que é a exclusão da essência individual de A como um elemento da síntese estética. Enquanto está no mais baixo grau, todo relacionamento determinado de A é

apenas ingrediente na circunstância com relação ao "modo" determinado como esse relacionamento é uma alternativa não completada, não contribuíndo com nenhum valor estético, exceto como formador de um elemento no substrato sistemá­tico de um conteúdo não completado. Em um grau mais alto, pode permanecer não completado, mas ser de importância

estética.

I 201 I

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

Assim, A, concebido só com respeito ao seu relaciona­mento com outros objetos eternos, é "A concebido como 'não­ser' "; onde "não-ser" significa "abstraido do fato determinado de inclusões em fatos reais e de exclusões deles". Também "A

como 'não-ser' " com respeito a uma circunstância definida a

significa que A, em todos os seus relacionamentos determina­dos, é excluído de a. Novamente, "A como 'ser' com respeito

a cc significa que A, em alguns de seus relacionamentos de­terminados, está incluído em ex. Mas não pode haver circuns­tância que inclua A em todos os seus relacionamentos deter­minados, pois alguns desses relacionamentos são contrários. Assim, quanto a relacionamentos excluídos, A será "não-ser" em a; mesmo quando a respeito de outros relacionamentos A seja "ser" em a. Nesse sentido, todas as circunstâncias são uma síntese de "ser" e "não-ser". Além disso, embora alguns objetos eternos sejam sintetizados em uma circunstância ex, simplesmente através do "não-ser", cada objeto eterno que é sintetizado através do "ser" está também sintetizado através do "não-ser". "Ser" aqui significa "individualmente efetivo na síntese estética". Também a "síntese estética" é a "síntese de experiência" encarada como autocriativa, sob as limitações lançadas sabre ela por seu relacionamento interno a todas as demais circunstâncias reais. Concluímos, pois - o que já foi afirmado anteriormente -, que o fato geral da preensão sin­tética de todos os objetos eternos em todas as circunstâncias apresenta o duplo aspecto do relacionamento determinado

de cada objeto eterno com circunstâncias em geral, e de seu relacionamento determinado com cada circunstância deter­minada. Essa afirmação resume o enunciado de COmo as rela­ções externas são possíveis. Mas o enunciado depende de ser desvencilhado do continuum espaciotemporal, de sua simples implicação em circunstâncias reais - de acordo com a expli­cação comum - e de apresentá-lo em sua origem da natureza geral da possibilidade abstrata, limitada pelo caráter geral do curso real dos acontecimentos.

1 202 I

1 A CI~NCIA E O MUNDO MODERNO 1

A dificuldade levantada a respeito das relações internas é explicar como uma verdade determinada é possível. Enquanto houver relações internas, todas as coisas devem depender de alguma outra coisa. Mas, se for esse o caso, não podemos co­nhecer nenhuma coisa enquanto não conhecermos tudo mais. Evidentemente, portanto, necessitamos dizer todas as coisas imediatamente. Essa suposta necessidade é claramente falsa. .,

Sendo assim, cabe-nos explicar como pode haver relações in­

ternas, visto que admitimos verdades finitas. Uma vez que as circunstâncias reais são selecionadas do

domínio das possibilidades, a explicação final de como as cir­cunstâncias reais têm o caráter geral que elas têm de fato deve ser procurada em uma análise do caráter geral do dominio da possibilidade.

O caráter analítico do dominio dos objetos eternos é a verdade metafísica primária a seu respeito. Por esse caráter se entende que qualquer objeto eterno A nesse domínio é passivel de análise em um número indefinido de relacionamentos su­bordinados de escopo limitado. Por exemplo, se B e C são dois outros objetos eternos, então haverá algum relacionamento perfeitamente definido R (A, B e C), que envolve tão-somente A, B e C, como para não exigir a menção de nenhum outro ob­jeto eterno na qualidade de relata. Claro que o relacionamento R (A, B e C) pode envolver relacionamentos subordinados que

são, eles mesmos, objetos eternos, e o próprio R (A, B e C) é

um objeto eterno. Também haverá outros relacionamentos que,

no mesmo sentido, envolvem apenas A, B e C. Temos agora de

examinar como, tendo em vista o relacionamento interno de objetos eternos, é possivel esse relacionamento limitado R (A, Be C).

A razão de existirem relacionamentos finitos no domínio dos objetos eternos é que o relacionamento desses objetos en­tre si é inteiramente impróprio para a seleção, e sistematica­mente completo. Estamos discutindo possibilidade; sendo assim todos os relacionamentos que são possíveis estão, portanto, no

I 203 I

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I ALFRED NORTH WHJTEHEAD I

domínio da possibilidade. Todos esses relacionamentos de cada

objeto eterno fundam-se na situação perfeitamente definida desse objeto como um relatum no esquema geral dos relaciona­

mentos. Essa situação definida é aquilo a que chamo a "essência relacional" do objeto. Essa essência relacional é determinável pela referência a esse objeto apenas e não exige referência a nenhum outro objeto, exceto os especificamente envolvidos na

sua essência individual quando essa essência é complexa (como

será explicado a seguir). A significação das palavras "todo" e "al­

gum" deriva desse princípio - ou seja, a significação da variável em lógica. O princípio todo é que uma determinação especial pode ser feita do modo de alguma relação definida de um objeto eterno definido A, com um número definido n de outros obje­tos eternos, sem nenhuma detenninação de outros objetos, Xl'

X 2, ... Xn, mas que têm, cada um deles, a situação exigida para

representar as suas respectivas partes nesse múltiplo relaciona­

mento. Esse princípio depende do fato de que a essência relacio­nal de um objeto eterno não é exclusiva a esse objeto. A simples essência relacional de cada objeto eterno determina o esquema completo e uniforme das essências relacionais, desde que cada objeto esteja internamente em todas as suas relações possíveis.

Assim, O domínio das pOSSibilidades proporciona um esquema uniforme de relacionamentos entre conjuntos finitos de objetos

eternos; e todos os objetos eternos estão em todos esses relacio­

namentos, confonne o pennite a situação de cada qual.

Sendo assim, as relações (como em possibilidade) não en­volvem as essências individuais dos objetos eternos; envolvem

todo objeto eterno como relata, sujeito á cláusula de que esses

relata tenham as essências relacionais exigidas. (É essa cláusula que, automaticamente e pela natureza do caso, limita o "todo"

da expressão "todo objeto eterno".) Esse é o princípio do Iso­lamento dos Objetos Eternos, no domínio da possibilidade. Os objetos eternos são isolados porque seus relacionamentos como

possibilidades são expressáveis sem referência às suas respecti­

vas essências individuais. Em contraste com o domínio da pos-

12041

I A CJ!:NClA E O MUNDO MODERNO I

sibilidade, a inclusão dos objetos eternos em uma circunstân-

cia real significa que, a respeito de alguns dos relacionamentos

possíveis, há uma combinação de suas essências individuais.

Essa combinação realizada é o que um valor patente definido - ou formado - perfaz pelo relacionamento eterno definido

a respeito do qual a combinação real efetua-se. Assim, O rela­cionamento eterno é a forma - o dõoç -; a circunstância real ,.

patente é o superjecto do valor informado: valor, abstraído de

qualquer superjecto determinado, é a matéria abstrata - a À~ - que é comum a todas as circunstâncias reais; e a atividade

sintética que apreende possibilidade sem valor em informado valor superjacente é a atividade substancial. Essa atividade é omitida em qualquer análise dos fatores estáticos na situação metafísica. Os elementos analisados da situação são os atribu-

tos da atividade substancial. A dificuldade inerente ao conceito de relações internas fini­

tas entre objetos eternos está, assim, afastada dos dois princípios metafísicos: (I) de que os relacionamentos de um objeto eterno A, considerados como constitutivos de A, apenas envolvem ou­

tros objetos eternos como simples relata sem referências a suas

essências individuais, e (2) de que a divisibilidade do relaciona­mento geral de A em uma multipliCidade de relacionamentos

finitos de A está por conseguinte na essência do objeto eterno. É

óbvio que o segundo princípio depende do primeiro. Compreen­der A é compreender o modo de um esquema geral de relaciona­

mento. Esse esquema de relacionamento não exige a unicidade

individual dos outros relata para sua compreensão. Esse esquema também se revela como analisável em uma multiplicidade de

relacionamentos limitados que têm a sua própria individualida­de e, contudo, ao mesmo tempo, pressupõem o total relaciona­

mento na possibilidade. Com respeito á realidade, há primeiro a limitação geral dos relacionamentos, que reduz esse ilimitado esquema geral ao esquema espaciotemporal quadridimensional. Esse esquema espaciotemporal é, por assim dizer, a maior me­

dida comum dos esquemas do relacionamento (limitado pela

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I ALFREO NORTH WHITEHEAD I

realidade) inerente a todos os objetos eternos. Com isso quer-se dizer que o modo como os relacionamentos selecionados de um

objeto eterno A são realizados em qualquer circunstância real é

sempre explicável expressando a situação de A com respeito a esse esquema espaciotemporal, e expressando-se nesse esquema

o relacionamento da circunstância real com outras circunstân­

cias reais. Um relacionamento finito e definido envolvendo os

objetos eternos definidos de um limitado conjunto de tais ob­

jetos é, ele mesmo, um objeto eterno; trata-se daqueles objetos eternos como nesse relacionamento. Chamarei de "complexos"

esses objetos eternos. Os objetos eternos que são os relata em um objeto eterno complexo serão chamados de "componentes" desse objeto eterno. Também, se quaisquer desses próprios relata são complexos, os seus componentes serão chamados de "com­

ponentes derivados" do objeto complexo original. Também os componentes dos componentes derivados serão chamados de componentes derivados do objeto original. Assim, a complexi­dade de um objeto eterno significa a sua divisibilidade em um

relacionamento de objetos eternos componentes. Da mesma for­ma, a análise do esquema geral do relacionamento dos objetos eternos significa a sua apresentação com uma multiplicidade de objetos eternos complexos. Um objeto eterno, como um deter­minado matiz de verde, que não pode ser dividido em um rela­cionamento de componentes, será chamado "simples".

Podemos agora explicar como O caráter analitico do do­

mínio dos objetos eternos permite uma divisão desse domínio

em graus.

No mais baixo grau dos objetos eternos devem ser colocados

os objetos cujas essências individuais sejam simples. Esse é o grau zero da. complexidade Em seguida, considerem qualquer conjun­

to de tais objetos, finitos ou infinitos, quanto ao número de seus membros. Por exemplo, considerem o conjunto de três objetos eternos A, B e C, dos quais nenhum é completo. Seja R (A, B e C) para alguns relacionamentos possíveis definidos de A, B e C Para usar um exemplo simples, A, B e C podem ser três cores definidas

I 206 I

I A CI~NC1A E O MUNDO MODERNO I

com o relacionamento espaciotemporal com cada uma das três

faces de um tetraedro, regular, em qualquer parte e em qualquer tempo. Assim, R (A, B e q é um objeto eterno do mais baixo grau complexo. Analogamente, há objetos eternos de graus sucessiva­mente mais altos. A respeito de qualquer objeto eterno complexo,

S (DI' ... Do)' os objetos eternos D" ... Do' cujas essências individu-ais são constitutivas das essências individuais de S (DI' ... DJ são ••

chamados os componentes de S (D" ... DJ Obviamente, o grau de complexidade que deve ser atribuído a S (DI' ... Do) deve ser tido como um dos mais altos graus de complexidade encontrados

entre os seus componentes. Há, assim, uma divisão do domínio da possibilidade em ob­

jetos eternos simples e em vários graus de objetos eternos com­plexos. Um objeto eterno complexo é uma situação abstrata. Há um duplo sentido de "abstração" no que se refere à abstração

dos objetos eternos definidos, isto e, abstração da possibilidade. Exemplo: A e R (A, B e C) são ambos abstrações do domínio da possibilidade. Notem que A deve significar A em todos os seus relacionamentos possíveis, e entre eles R (A, B e C). Tambem R

(A, B e C) significa R (A, B e C) em todos os seus relacionamen­tos. Mas essa significação de R (A, B e C) exclui outros relaciona­mentos nos quais A pode entrar. Portanto, A como em R (A, B e C) e mais abstrato do que A isoladamente. Assim, à medida que

passamos do grau dos objetos eternos simples para graus cada vez mais altos de complexidade, estamos possibilitando graus de

abstração cada vez mais altos do domínio da possibilidade. Podemos agora conceber os estágios sucessivos de um

progresso definido para algum determínado caminho de abs­

tração do domínio da possibilidade, que envolva um progres­so (no pensamento) atraves de sucessivos graus de crescente complexidade. Chamarei esse caminho de progresso de "uma hierarquia abstrativa". Qualquer hierarquia abstrativa, finita ou infinita, é baseada em algum grupo definido de objetos eternos simples. Esse grupo será chamado de a "base" da hierarquia. Assim, a base de uma hierarquia abstrativa é um conjunto de

I 207 I

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

objetos de complexidade zero. A definição formal de uma hie­rarquia abstrativa é como segue:

Uma "hierarquia abstrativa baseada em t', em que "g" é

um grupo de objetos eternos simples que satisfaçam as seguin­tes condições:

(I) os membros de "g" pertencem a ele e são os únicos objetos eternos simples na hierarquia;

(2) os componentes de qualquer objeto eterno complexo

na hierarquia são também membros da hierarquia; e (3) qualquer grupo de objetos eternos pertencente à hie­

rarquia, se todos do mesmo grau, ou se diferentes entre si quan­to ao grau, estão juntamente entre os componentes ou compo­nentes derivados de pelo menos um objeto eterno que também pertence à hierarquia.

Deve-se perceber que os componentes de um objeto eter­no são necessariamente de um grau inferior de complexidade do que o objeto mesmo. Com isso, qualquer membro dessa hierarquia, que é do primeiro grau de complexidade, pode ter como componentes tão-só membros do grupo "g"; e qualquer número do segundo grau pode ter como componentes apenas membros do primeiro grau e membros de "g"; e assim por dian­te nos mais altos graus.

A terceira condição que deve ser satisfeita por uma hie­rarquia abstrativa será chamada de condição da conexidade.

Assim, uma hierarquia abstrativa origina-se de sua base: inclui todos os graus sucessivos a partir de sua base, ou continuando

indefinidamente, ou até o seu máximo grau; e está "em cone­xão" COm o reaparecimento, em um grau mais alto, de qualquer

conjunto de seus membros que pertençam a graus mais baixos,

na função de um conjunto de componentes ou componentes derivados de pelo menos um membro da hierarquia.

Uma hierarquia abstrativa é chamada de "finita" se pára

em um grau definido de complexidade. É chamada de "infini­ta" se inclui membros pertencentes respectivamente a todos os graus de complexidade.

I 208 I

I A CI~NCIA E O MUNDO MODERNO I

Percebe-se que a base de uma hierarquia abstrativa pode conter qualquer número, finito ou infinito. Além disso, o infi­nito do número de membros de base nada tem que ver com a

questão de se a hierarquia é finita ou infinita. Uma hierarquia abstrativa finita possuirá, por definição,

um grau de complexidade máxima. É característico desse grau que um membro dele não é um componente de nenhum ou- ,~

tro objeto eterno pertencente a qualquer grau da hierarquia. Também é evidente que esse grau de complexidade máxima

deve possuir só um membro, pois, de outro modo, a condição de conexidade não seria satisfeita. Inversamente, qualquer ob­jeto eterno complexo define uma hierarquia abstrativa finita que deve ser descoberta por um processo de análise. Esse ob­jeto eterno complexo do qual partimos será chamado "vértice" da hierarquia abstrativa: é o único membro do grau de com­plexidade máxima. No primeiro estágio da análise, obtemos o componente do vértice. Esses componentes podem ser de complexidade variegada; mas deve estar entre eles pelo menos um membro cuja complexidade é de um grau mais baixo que o do vértice; um grau que seja mais baixo que um objeto eterno

dado será chamado de o "grau aproximado" desse objeto. To­mamos, pois, os componentes do vértice que pertencem ao seu grau aproximado; e, como segundo estágio, nós os dividimos em seus componentes. Acrescentem a eles os componentes do

vértice que também pertencem a esse grau de "segunda apro­ximação" partindo do vértice; e, no terceiro estágio, analisem

como anteriormente. Assim encontramos objetos pertencentes

ao grau de terceira aproximação partindo do vértice; e acres­centamos a eles os componentes pertencentes a esse grau, que

deixamos partindo dos estágios precedentes da análise. Proce­demos desse modo mediante os estágios sucessivos, até alcan­çarmos o grau dos objetos mais simples. Esse grau forma a base

da hierarquia. É de notar que, lidando com hierarquia, estamos inteira­

mente no domínio da possibilidade. Sendo assim, os objetos

I 209 I

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

eternos são privados de combinação real: permanecem no seu "isolamento".

O instrumento lógico que Aristóteles usava para a divi­são do fato real em elementos mais abstratos era a classificação em espécie e gênero. Esse instrumento tem a sua aplicação ex­traordinariamente importante para a ciência nos seus estágios preparatórios. Mas o seu uso na descrição metafísica distorce a

verdadeira visào da situaçào metafísica. O uso do termo "uni­

versal" está em relação íntima com essa análise aristotélica; a significação do termo foi ultimamente ampliada, mas ainda su­gere essa análise classificatória. Por essa razão o evitei.

Em qualquer circunstãncia real ex haverá um grupo "g" de objetos eternos simples que estão incluídos nesse grupo do modo mais concreto. Essa inclusão total em qualquer circuns­tância, de modo a conceder a mais completa fusão da essência individual patente, é evidentemente da sua própria espécie e não pode ser definida em termos de qualquer outra coisa. Mas tem uma característica peculiar necessariamente ligada a ela. Essa característica é que há uma hierarquia abstrativa infinita

baseada em "g", de modo que todos os seus membros estão igualmente envolvidos nessa completa inclusão em ex.

A existência de tal hierarquia abstrativa infinita é o que se pretende com a afirmação de que é impossivel completar a descrição de uma circunstância real por meio de conceitos. Chamarei a essa hierarquia abstrativa infinita que está associa­

da com ex de "a hierarquia associada de ex". É também o que se

pretende com a noção de conectividade de uma circunstância real. Essa conectividade de uma circunstância é necessária para

a sua unidade sintética e para a sua inteligibilidade. Há uma hierarquia correlacionada de conceito aplicável à circunstância, incluindo conceitos de todos os graus de complexidade. Tam­bém na circunstância real, as essências individuais dos objetos eternos envolvidos nesses conceitos complexos realizam uma síntese estética, produtiva da circunstância com uma expe­riência pela experiência. Essa hierarquia associativa é o volume,

I 210 I

I A CltNCIA E O MUNDO MODERNO I

o modelo, a forma da circunstância, conforme a circunstância seja constitutiva do que entra em sua realização total.

Certa confusão de pensamento foi causada pelo fato de que a abstração da possibilidade corre em direção oposta a uma abstração da realidade, quanto ao grau de abstração. Evidente­mente, ao descrever uma circunstância real /x, estamos mais per­to do fato concreto quando descrevemos ex, predicando algum <

membro da sua hierarquia associada, que é de um alto grau

de complexidade. Dissemos, pois, mais .sobre ex. Assim, como um alto grau de complexidade, alcançamos por aproximação a completa concreção de ex, e com um grau baixo perdemos nessa

aproximação. Com isso, os objetos eternos simples representam o extremo da abstração, partindo de uma circunstãncia real,

ao passo que objetos eternos simples representam o mínimo de abstração, partindo do dominio da possibilidade. Penso que, quando se falar de um alto grau de abstração, se achará que a abstração do domínio da possibilidade é o que usualmente se expressa - em outras palavras, uma elaborada construção

lógica. Até aqui considerarei apenas uma circunstância real do

lado de sua completa concreção. É esse lado da circunstância em virtude do qual é um acontecimento na natureza. Mas um acontecimento natural, nesse sentido do termo, é apenas uma

abstração de uma circunstância completa. Uma circunstância completa inclui aquela que, na experiência cognitiva, toma

a forma de memória, antecipação, imaginação e pensamen­to. Esses elementos em uma circunstância de experiência são

também modos de inclusão de objetos eternos complexos na preensão sintética, como elementos no valor patente. Diferem

da concreção de inclusão completa. Em certo sentido, essa dife­rença é inexplicável, pois cada modo de inclusão é de sua pró­pria espécie, não para ser explicação em termos de outra coisa. Mas há uma diferença comum que discrimina esses modos de inclusão da completa inclusão concreta que foi discutida. Essa "diferença" vem a ser a "ab-ruptude". Por "ab-ruptude" entendo

I 211 I

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

que aquilo que é recordado, antecipado, imaginado ou pensado é exaurido por um conceito complexo finito. Em cada caso, há um objeto eterno finito apreendido na circunstância como o vértice de uma hierarquia finita. Essa ruptura de uma ilimita­

bilidade real é o que, em qualquer circunstância, separa o que é chamado de mental daquilo que pertence ao acontecimento físico a que é referido o funcionamento mental.

Em geral, parece ser alguma perda de vivacidade na apre­

ensão dos objetos eternos em questão: por exemplo, Hume fala de "modelos fracos". Mas essa fraqueza parece ser um terreno

muito inseguro para diferenciação. Freqüentemente, as coisas realizadas em pensamento são mais vívidas do que as mesmas coisas em despreocupada experiência física. Mas as coisas apre­endidas como mentais são sempre sujeitas à condição de que chegamos a uma parada quando tentamos explorar graus de complexidade cada vez mais elevados nos seus relacionamen­tos realizados. Verificamos sempre que pensamos tão-somente nisso - seja o que for - e em nada mais. Há uma limitação

que separa, de um lado, o conceito finitó dos graus mais altos e, do outro, a complexidade ilimitável.

Assim, uma circunstância real é uma preensão de uma hierarquia infinita (sua hierarquia associada) junto a várias hie­rarquias finitas. A síntese na circunstância da hierarquia infinita

está de acordo com o seu modo especifico de realização, e o das hierarquias finitas está de acordo com outros modos específicos

de realização. Há um princípio metafisico essencial à coerência racional dessa exposição do caráter geral de uma circunstân­cia de experiência. Chamo a esse princípio de "Translucidez da

Realização". Com isso quero dizer que qualquer objeto eterno

é tão-somente ele mesmo, seja qual for o modo de realização em que esteja envolvido. Não pode haver desvio da essência individual sem como conseqüência produzir um objeto eterno diferente. Na essência de cada objeto eterno, está uma indeter­minabilidade que expressa sua passividade indiferente diante

de qualquer modo de inclusão em qualquer circunstáncia real.

I 212 I

1

I A CI~NClA E O MUNDO MODERNO I

Assim, na experiência cognitiva, pode haver a cognição do mes­mo objeto eterno como tendo entrada na mesma circunstância com implicação em mais de um grau de realização. Assim, a translucidez da realização e a possível multiplicidade dos mo­dos de inclusão na mesma circunstância formam juntas o fun­

damento da teoria da corr~l'ondência da verdade. Nessa apresentação de uma circunstância real em termos ,~

de sua conexão, com o domínio dos objetos eternos, voltamos à marcha de pensamento do nosso capítulo 2, em que foi discu­

tida a natureza da matemática. A idéia, atribuída a Pitágoras, foi ampliada e apresentada como o primeiro capítulo da metafísi­

ca. O capítulo seguinte trata do misterioso fato de que há um curso real dos acontecimentos que é em si um fato limitado, no sentido de que, em metafísica, poderia ter sido diferente. Mas outras investigações metafísicas foram omitidas; por exemplo, a epistemologia e a classificação de alguns elementos da insondá­vel riqueza do campo da possibilidade. Esse último tema toma a metafísica visível nos pontos especiais de várias ciências.

I 213 I

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CAPITULO XI

DEUS

Aristóteles achou necessário completar a sua metafísica com a introdução de um Primeiro Motor: Deus. Por duas ra­zões isso é um fato importante na história da metafísica. Em primeiro lugar, se conferimos a alguém o título de o maior me­tafísico, tendo em vista a genialidade de observação profunda,

a bagagem geral de conhecimento e o incentivo a seus descen­dentes metafísicos, devemos escolher Aristóteles. Em segundo lugar, na sua consideração dessa questão metafísica, ele se mos­

trou completamente imparcial; e é o último metafísico euro­

peu de primeira importância para quem isso pode ser reivin­

dicado. Depois de Aristóteles, os interesses éticos e religiosos começaram a influir nas conclusões metafísicas. Os judeus se

dispersaram, primeiro voluntariamente e depois forçadamente,

e a escola judaica de Alexandria apareceu. Depois interferiu o cristianismo, seguido de perto pelo islamismo. Os deuses gre­

gos que cercavam Aristóteles eram entidades metafísicas su­

bordinadas, bem dentro da natureza. Com isso, acerca do seu Primeiro Motor, não teria motivo, senão seguir a sua marcha

metafísica do pensamento, aonde quer que ela o levasse. Não o conduziu muito longe para produção de um Deus aproveitável

para fins religiosos. Pode-se duvidar se qualquer metafísica pro­priamente geral pode alguma vez, sem a ilícita introdução de outras considerações, chegar muito mais longe que Aristóteles. A sua conclusão, porém, representa um primeiro passo sem o qual nenhuma prova em mais estrita base de experiência pode

I 215 I

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

ser de maior proveito para enunciar o conceito. Isso porque nada, dentro de um limitado tipo de experiência, pode forne­cer-nos informações para adaptar nossas idéias de qualquer en­tidade na base de todas as coisas atuais, a menos que o caráter

geral das coisas exija que exista tal entidade. A expressão Primeiro Motor adverte-nos de que o pen­

samento de Aristóteles estava enredado numa física e numa

cosmologia incorretas. Na física de Aristóteles, causas especiais

eram exigidas para sustentar o movimento das coisas materiais. Isso poderia ser facilmente conformado em seu sistema, desde

que o movimento cósmico geral pudesse ser sustentado, por­que, então, em relação ao sistema geral de trabalho, cada coisa podia ser provida com o seu verdadeiro fim. Portanto, há ne­cessidade de um Primeiro Motor que sustente os movimentos das esferas dos quais depende o ajustamento das coisas. Hoje repudiamos a física e a cosmologia de Aristóteles, uma vez que a forma exata do argumento acima está manifestamente errada. Mas, se a nossa metafísica geral é em algum ponto semelhante à

delineada no capítulo anterior, surge um análogo problema me­tafísico, que só pode ser resolvido de um modo análogo. Em lu­gar do Deus aristotélico como Primeiro Motor, queremos Deus como Princípio de Concreção. Essa posição pode ser substan­ciada apenas pela discussão das implicações gerais do curso das

circunstâncias reais, ou seja, do processo da realização. Concebemos a realidade como em relação essencial com

uma possibilidade insondável. Os objetos eternos informam circunstâncias reais com modelos hierárquicos, incluidos e ex­

cluídos em todas as variedades de discriminação. Outra visão da

mesma verdade é que toda circunstância real é uma limitação imposta à possibilidade, e que, em virtude dessa limitação, o valor determinado desse conjunto formado das coisas aparece. Desse modo expressamos Como uma só circunstância deve ser vista em termos de possibilidade, e como a possibilidade deve ser vista em termos de uma só circunstância real. Mas não há circunstâncias únicas, no sentido de circunstâncias isoladas. Rea-

I 216 I

I A ClENCIA E o MUNDO MODERNO I

lidade é por toda parte combinação - combinação de objetos eternos isolados de outra maneira, e combinação de todas as circunstâncias reais. O capítulo anterior centralizou seu inte­resse no abstrato; o presente capítulo lida com o concreto, isto

é, aquilo que cresceu junto. Considerem uma circunstância a: - temos de enumerar

como outras circunstâncias reais estão em a, no sentido em qutf

seus relacionamentos com a são constitutivos da essência de a.

O que a é em si é que é uma unidade de experiência realizada;

de acordo com isso perguntamos de que modo outras circuns­tâncias estão na experiência que a é? Também para o presente

excluímos a experiência cognitiva. A resposta completa a essa pergunta é que os relacionamentos entre circunstâncias reais são como insondáveis em sua variedade de tipo como são aque­las entre os objetos eternos no domínio da abstração. Existem, porém, tipos fundamentais de tais relacionamentos em cujos termos toda a complexa variedade pode encontrar a sua des­

crição. Uma preliminar para compreender esse tipo de unidade

(de uma circunstância na essência da outra) é notar que estão envolvidas nos modos de realização das hierarquias abstrativas discutidas no capítulo anterior. Os relacionamentos espaciotem­porais, envolvidos nessas hierarquias como realizadas em a, têm

todos definição em termos de " e das circunstâncias entradas em a. Assim, as circunstâncias entrantes emprestam seus aspectos à

hierarquia e, portanto, convertem as modalidades espaciotem­porais em determinações categóricas; e as hierarquias empres­

tam as suas formas às circunstâncias e, portanto, limitam as cir­

cunstâncias entrantes a serem entrantes apenas sob essas formas. Assim, do mesmo modo (como se viu no capítulo anterior) que cada circunstância é uma síntese de todos os objetos eternos sob a limitação de gradações de realidade, assim cada circuns­tância é uma síntese de todas as circunstâncias sob a limitação de gradações de tipos de entrada. Cada circunstância sintetiza a totalidade do conteúdo sob a sua própria limitação do modo.

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I ALFRED NORTH WH!TEHEAD I

A respeito desse tipo de relacionamento interno entre a e outras circunstâncias, essas outras circunstâncias (como consti­tutivas de ,,) podem ser classificadas de muitos modos alternati­vos. Todos esses se referem a diferentes definições do passado, do presente e do futuro. Tomou-se comum em filosofia afirmar que essas várias definições devem necessariamente ser equivalentes.

A opinião atual em ciência física mostra de modo conclusivo que

essa afirmação é carente de justificação metafísica, ainda que tal

discriminação possa ser considerada desnecessária para a ciência física. Essa questão já foi tratada no capítulo sobre a relatividade.

Contudo, a teoria física da relatividade atinge somente de leve as várias teorias que são metafisicamente sustentáveis. É importan­te para minha argumentação insistir na liberdade irrestrita den­tro da qual o real é uma determinação categórica única.

Toda circunstância real apresenta-se como um processo; é um devir. Ao revelar-se, coloca-se como uma entre inúmeras outras circunstâncias, sem as quais ela não poderia ser o que é.

Ela também se define como uma realização indiVidual particu­lar que enfoca em seu modo limitado um domínio irrestrito de

objetos eternos. Qualquer circunstância ex resulta de outras circunstâncias

que conjuntamente formam o passado dela. Manifesta para si mesma outras circunstâncias que conjuntamente formam o pre­sente dela. É com relação a essa sua hierarquia associada, como

manifestada nesse presente imediato, que uma circunstância encontra sua própria originalidade. É essa revelação que consti­

tui sua contribuição própria à produção de realidade. Ela pode estar condicionada e até mesmo completamente determinada

pelo passado daquilo que ela emite. Mas sua manifestação no

presente sob essas condições é aquilo que diretamente emerge de sua atividade preensiva. A circunstância a também mantém dentro de si uma indeterminação sob a forma de um futuro, dotado de determinação parcial por causa de sua inclusão em " e também por ter determinada ligação espaciotemporal com" e com circunstâncias reais do passado e do presente de a.

I 218 I

I A CI~NC!A E O MUNDO MODERNO I

Esse futuro é uma síntese em a de objetos eternos como não-ser e como requerentes da passagem de a para outras in­dividualizações (com determinadas relações espaciotemporais

para a) em que não-ser toma-se ser. Há também em ex o que, no capítulo anterior, denominei

a realização "abrupta" de objetos eternos finitos. Tal realização abrupta exige quer uma referência dos obj etos básicos da hie-"

rarquia finita para circunstâncias determinadas diferentes de "

(como suas situações, no passado, presente e futuro); quer uma realização de objetos eternos em determinadas conexões, mas sob o aspecto de isenção da inclusão no esquema espaciotempo­ral de ligação entre circunstâncias reais. Essa sintese abrupta de

objetos eternos em cada circunstância é a inclusão na realidade do caráter analítico do domínio de eternidade. Essa inclusão

possui aquelas gradações limitadas de realidade que caracteri­zam toda circunstância por causa de sua limitação essencial. É essa extensão realizada da ligação eterna além da ligação mútua das circunstâncias reais que apreende em toda circunstância o alcance total da ligação eterna. Chamo essa realização abrupta de "configuração graduada" que toda circunstância preende em sua síntese. Essa configuração graduada é o modo como o real inclui o que (em um sentido) é não-ser como um fator positivo

em sua própria realização. É a fonte de erro, de verdade, de arte, de ética e de religião. Por ele, o fato é confrontado com as

alternativas. Esse conceito geral, de um acontecimento como um pro­

cesso cujo resultado é uma unidade de experiência, aponta para a análise de um evento na (I) atividade substancial, (2)

nas potencialidades condicionadas que existem para a síntese

e (3) no resultado alcançado da síntese. A unidade de todas as circunstâncias reais impede a análise de atividades substan­ciais em entidades independentes. Cada atividade individual é tão-somente o modo como a atividade geral é individualizada pelas condições impostas. A visualização que faz parte da sín­tese é também uma característica que condiciona a atividade

I 219 I

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

de síntese. A atividade geral não é uma entidade no sentido em

que circunstâncias ou objetos eternos o são. Ela é uma carac­terística metafísica geral que subjaz a todas as circunstâncias, de um modo particular para cada circunstância. Não há com o que compará-la; para Spinoza, é uma substância infinita. Seus atributos são seu caráter de individualização em uma multipli­cidade de modos, e o domínio dos objetos etemos que são di­

ferentemente sintetizados nesses modos. Assim, a possibilidade

eterna e a diferenciação modal na multipliCidade individual são os atributos da substância única. De fato, cada elemento geral

da situação metafísica é um atributo da atividade substancial. Contudo, outro elemento na situação metafísica é revelado

pela consideração de que o atributo geral de modalidade é limi­tado. Esse elemento deve situar-se como atributo da atividade substancial. Em sua natureza, cada modo é limitado, de maneira a não ser outros modos. Mas, além dessas limitações de particu­lares, a individualização modal geral é limitada de duas manei­ras: em primeiro lugar, é um curso real de acontecimentos, que

poderia ser de outra maneira, no que concerne à possibilida­de eterna, mas é este curso. Essa limitação assume três formas: (l) as relações lógicas especiais a que todos os acontecimentos devem conformar-se, (2) a seleção de relacionamentos com os quais os acontecimentos se conformam e (3) a particularidade

que afeta o curso mesmo nos relacionamentos gerais de lógica e causalidade. Assim, essa primeira limitação é uma limitação de

seleção anterior. No concernente à situação metafísica, podia

ter havido um pluralismo moda! indiscriminado à parte da ló­gica e de outra limitação. Mas não podia então ter havido esses

modos, pois cada modo representa uma síntese de realidades, li­mitadas a conformar-se a um padrão. Aqui chegamos à segunda

maneira de limitação. A restrição e o preço do valor. Não pode haver valor sem padrões anteriores de valor, para discriminar a aceitação ou a rejeição do que está perante o modo configu­rador de atividade. Assim, há uma limitação anterior entre os valores, que introduzem contrários, graus e oposições.

I 220 I I I

I A CI~NCIA E o MUNDO MODERNO I

De acordo com esse argumento, o fato de que há um pro­cesso de circunstâncias reais e o fato de que as circunstâncias são a manifestação de valores que exigem tal limitação, ambos exigem que o curso dos acontecimentos deva ser desenvolvido no meio de uma limitação anterior constituída de condições,

particularização e padrões de valor. Assim, como elemento posterior na situação metafísica, ~

foi exigido um princípio de limitação. Algum como determi­

nado é necessário, e alguma particularização no o que do fato é necessária. A única alternativa para essa aceitação é negar a realidade das circunstâncias reais. Sua aparente limitação ra­

cional deve ser tomada como prova de ilusão e devemos pro­curar a realidade atrás da cena. Se rejeitamos essa alternativa atrás da cena, devemos proporcionar uma base à limitação que está entre os atributos da atividade substancial. Esse atributo proporciona a limitação para a qual nenhuma razão pode ser dada, porque todas as razões decorrem dele. Deus é a última limitação, e a sua existência é a irracionalidade última. É que nenhuma razão pode ser dada só para a limitação que está na natureza dele impor. Deus não é concreto, mas é base da reali­

dade concreta. Nenhuma razão pode ser dada para a natureza de Deus, porque essa natureza é a base da racionalidade.

Nesse argumento, o ponto a ser notado é que o metafisi­camente indeterminado tem de ser, não obstante, categorica­

mente determinado. Chegamos ao limite da racionalidade, pois

há uma limitação categórica que não resulta de nenhuma razão metafísica. Há uma necessidade metafísica para um princípio

de indeterminação, mas não pode haver razão metafísica para o

que é determinado. Se houvesse tal razão, não haveria nenhu­ma necessidade de outro principio, porque a metafísica já teria proporcionado a determinação. O principio geral do empirismo depende da doutrina de que há um princípio de concreção g"S'

não pode seLjescQ~erto_pel~ _~azão ab~. Tudo quanto se pode saber a respeito de Deus deve ser procurado na região das experiêrwias dete~i~.;:d~~-~·portanto fica em base e~~i·ri~-~.

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

Com respeito à interpretação dessas experiências, a humanida­

de tem diferido profundamente. Foi chamado respectivamen­te: lahweh, Alá, Brahma, Pai do Céu, Ordem do Céu, Causa Primeira, Ser Supremo, Acaso. Cada nome corresponde a um sistema de pensamento derivado das experiências daqueles que o empregaram.

Entre oS filósofos medievais e modernos, ansiosos por es­

tabelecer a significação religiosa de Deus, prevaleceu o hâbito

infeliz de lhe fazer elogios metafisicos. Foi concebido como fundamento da situação metafísica em sua última atividade. Se se aderir a essa concepção, não pode haver nenhuma alternativa

senão nele discernir a origem de todo mal, tanto quanto de todo bem. Ele é, então, o supremo autor da peça, e a ele, portanto, devem ser atribuídos tanto os malogros como os sucessos dela. Se for concebido como a base suprema para a limitação, está em sua verdadeira natureza separar o Bem do Mal e estabelecer a Razão "dentro do supremo domínio dela".

I 222 I

I CAPiTULO XII I

RELIGIÃO E CIÊNCIA

A dificuldade em abordar a questáo das relações entre religião e ciência é que a sua elucidação exige que tenhamos em mente alguma idéia clara do que queremos dizer com os termos "religião" ou "ciência". Além disso, quero falar no modo

mais geral que for possível e manter em segundo plano toda e qualquer comparação de crenças particulares, científicas o~ religiosas. Temos de compreender o tipo de conexão que existe entre as duas esferas e então tirar algumas conclusões específi­cas a respeito da situação existente que no presente o mundo enfrenta.

O conflito entre religião e ciência é o que naturalmente ocorre à nossa mente quando pensamos nesse assunto. Tem-se

a impressão de que, durante a última metade de século, os re­sultados da ciência e as crenças da religião chegaram a uma po­sição de patente desacordo, da qual não pode haver escapatória,

e.xceto pelo abandono ou do claro ensinamento da ciência ou

do claro ensinamento da religião. Nessa conclusão insistiram os debatedores representantes de cada um dos lados. Nem todos

os debatedores, evidentemente, mas os de inteligência mais pe­netrante a quem toda controvérsia desperta para a abertura.

A inquietação das mentes sensiveis, o zelo da verdade e o senso da importância dos resultados devem guiar a nossa mais

sincera simpatia. Quando consideramos o que tanto a religião como a ciência constituem para a humanidade, não há nenhum exagero em dizer que o caminho futuro da história depende do

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

que esta geração decidir quanto às relações entre uma e outra.

Temos aqui as duas mais poderosas forças (pondo de parte o simples impulso dos vários sentidos) que influenciam o homem e parecem agir uma contra a outra - a força das nossas intui­

ções religiosas e a força do nosso impulso para a observação acurada e para a dedução lógica.

Um grande estadista inglês aconselhou um dia os seus

compatriotas a usar mapas de grandes escalas, cOmO modo de

precaução contra alarmes, pânicos e mal-entendidos gerais com

relação às relações legítimas entre nações. Do mesmo modo, lidando com o entrechoque dos elementos permanentes da natureza humana, é bom colocar a nossa exposição em mapa de grande escala e desligarmo-nos da absorção imediata nos presentes conflitos. Quando o fazemos, descobrimos imedia­tamente dois grandes fatos. Em primeiro lugar, sempre existiu um conflito entre religião e ciência; e, em segundo lugar, tanto religião como ciência sempre estiveram em estado de contínuo desenvolvimento. Nos primeiros tempos do cristianismo, havia uma crença geral entre os cristãos de que o mundo estava che­gando ao fim exatamente no período da existência das pessoas

que então viviam. Só podemos tirar inferências indiretas so­bre até onde essa crença era autorizada; mas o certo é que era amplamente aceita e que formava uma parte considerável da doutrina religiosa popular. Com o tempo, a crença mostrou-se

equivocada e a doutrina cristã ajustou-se à mudança. Também na mesma Igreja primitiva, teólogos muito fiducialmente dedu­

ziam da Bíblia opiniões concernentes à natureza do universo

físico. Em 535 d.C., um monge chamado Cosmas' escreveu um livro que intitulou Topografia cristã. Era um homem viajado,

que havia visitado a Índia e a Etiópia; e finalmente viveu em um mosteiro de Alexandria, que era então um grande centro de cultura. Nesse livro, baseando-se no sentido direto dos textos

2 Cf., de Lecky, The Riseand InfTuence ofRationa/ism in Europe, capitulo li!.

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I

I A Cl~NCIA E O MUNDO MODERNO I

bíblicos, encarado por ele de modo literal, negava a existência dos antipodas e afirmava que o mundo era um paralelogramo plano cujo comprimento é o dobro de sua largura.

No século XVII, a doutrina do movimento da Terra foi condenada por um tribunal católico. Há cem anos, a extensão do tempo exigida pela ciência geológica angustiava as pessoas religiosas, protestantes e católicas. E hoje a doutrina da evolu-"

ção é igualmente uma pedra no caminho. São apenas alguns

exemplos que ilustram um fato geral. Mas todas as nossas idéias estarão em perspectiva equivo­

cada se pensarmos que essa repetida perplexidade se restringiu

a contradições entre religião e ciência; e que, nessas contro­vérsias, a religião sempre estivesse errada, e a ciência sempre certa. Os verdadeiros fatos do caso são muito mais complexos e recusam-se a ser reduzidos a esses simples termos.

A própria teologia apresenta exatamente o mesmo ca­

ráter de desenvolvimento gradual, resultante de um aspecto de conflito entre as suas próprias idéias. Esse fato é um lugar­comum para os teólogos, mas é freqüentemente obscurecido no ímpeto da controvérsia. Não pretendo atribuir proporções exageradas a meu exemplo; assim, limitar-me-ei aos escritores católicos. No século XVII, um erudito jesuíta, padre Petavius,

mostrou que os teólogos dos três primeiros séculos do cristia­nismo faziam uso de expressões e afirmativas que do século V em diante passariam a ser condenadas como heréticas. Também

o Cardeal Newman consagrou um tratado à discussão do de­

senvolvimento da doutrina. Escreveu-o antes de se tomar um grande prelado católico; mas durante a sua vida o livro jamais

foi recolhido e continuou a ser reeditado. A ciência é ainda mais inconstante que a teologia. Nenhum

homem de ciência podia concordar sem restrição com aquilo em que Galileu acreditava, em que Newton acreditava ou nem mes­mo todas as suas próprias crenças cientificas de dez anos atrás.

Em ambas as regiões do pensamento, acréscimos, distin­ções e modificações foram introduzidos. De modo que agora,

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

mesmo quando a mesma asserção se faz como se fez há mil ou mil e quinhentos anos, está sujeita a limitações ou ampliações de sentido não contempladas nos primeiros tempos. Os lógicos nos dizem que uma proposição pode ser verdadeira ou falsa e que não há nenhum meio termo. Mas na prática sabemos que

uma proposição expressa uma verdade importante, mas que é sujeita a limitações e restrições que permanecem irreveladas

presentemente. É uma característica geral do nosso conheci­

mento o fato de que estamos insistentemente atentos a ver­dades importantes; e, ainda, que os únicos enunciados dessas

verdades que estamos em condições de fazer pressupõem um prisma geral de concepções que podem vir a ser modificadas. Fornecerei a vocês dois exemplos, ambos da ciência: Galileu afirmou que a Terra se move e que o Sol é fixo; a Inquisição disse que a Terra é fixa e o Sol se move; e os astrônomos ne'Wto­nianos, adotando uma teoria absoluta do espaço, disseram que tanto o Sol COmo a Terra se movem. Mas agora dizemos que qualquer dessas três afirmações é igualmente verdadeira, con­tanto que tenhamos estabelecido o nosso sentido de "repouso" e de "movimento" do modo exigido pela afirmação adotada. No

tempo da controvérsia de Galileu com a Inquisição, o modo de Galileu afirmar os fatos era, incontestavelmente, o processo frutuoso em proveito da investigação científica. Mas, em si, não

era mais verdadeiro que a formulação da Inquisição. Mas nesse tempo os conceitos modernos de movimento relativo não esta­vam no espírito de ninguém; de modo que as afirmativas eram

feitas na ignorância das restrições exigidas para a sua mais per­

feita verdade. Contudo, essa questão dos movimentos da Terra e do Sol expressa um fato real no universo; e todos os lados

adotavam importantes verdades a ela concernentes. Mas, com relação aos conhecimentos daqueles tempos, as verdades passa­ram a ser inconsistentes.

Novamente darei a vocês outro exemplo tomado da ciên­cia física moderna. Desde os tempos de Newton e Huyghens no século XVII, havia duas 'teorias' sobre a natureza física da

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I A CIÊNCIA E o MUNDO MODERNO I

luz. A teoria de Newton era que um raio de luz consistia em uma corrente de partículas ou corpúsculos muito pequenos e que temos a sensação da luz quando esses corpúsculos atingem nOssa retina. A teoria de Huyghens era que a luz consiste em ondas muito pequenas e oscilantes e um éter que tudo abrange e que essas ondas atravessam um raio de luz. As duas teorias são contraditórias. No século XVIII, a teoria de Newton era aceita,

e no XIX era-o a de Huyghens. Hoje, há um grande grupo de fenômenos que podem ser explicados apenas com a teoria on­

dulatória, e um grupo considerável que só pode ser explicado com a teoria corpuscular. Os cientistas têm de deixar as teorias nesse ponto e aguardar o futuro, na esperança de alcançar algu­ma visão mais ampla que reconcilie ambas.

Devemos aplicar os mesmos princípios às questões em que há uma variação entre ciência e religião. Em nada acredi­taríamos na história do pensamento que não se afigurasse a nós como comprovado por sólidas razões baseadas na investigação crítica nossa ou de autoridades competentes. Mas, admitindo que se tenha tomado essa precaução, um choque entre os dois sobre pontos do detalhe onde eles se situam não deve condu­zir-nos apressadamente a abandonar doutrinas das quais temos provas sólidas. Pode ser que estejamos mais interessados em um

grupo de doutrinas do que em outro. Mas, se tivermos qualquer senso de perspectiva e da história do pensamento, esperaremos e nos guardaremos de mútuos anátemas.

Devemos esperar, mas não esperar passivamente ou em

desespero. O entrechoque é um sinal de que há mais amplas verdades e mais delicadas perspectivas nas quais se achará a

reconciliação de uma religião mais profunda e com uma ciência mais sutil.

De certo modo, portanto, o conflito entre ciência e reli­gião é matéria de pouca importância que tem sido excessiva­mente enfatizada. Uma simples contradição lógica não pode por si mesma indicar mais do que a necessidade de alguns re­ajustamentos, possivelmente também de caráter mínimo de

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I ALFRED NORTH WH!TEHEAD I

ambos os lados. Devem ser lembrados os mais amplos aspectos

diferentes de acontecimentos com os quais temos de lidar em

ciência e em religião respectivamente. A ciência diz respeito às

condições gerais que se observam para regular os fenômenos

físicos, ao passo que a religião está inteiramente envolvida na

contemplação dos valores morais e estéticos. De um lado há a

lei da gravitação; do outro, a contemplação da beleza da santi­

dade. O que de um lado se vê, do outro se perde, e vice-versa. Considerem, por exemplo, a vida de John Wesley e a de

são Francisco de Assis. Para as ciências físicas, temos nessas vidas

exemplos simplesmente comuns da operação dos princípios da química fisiológica e da dinâmica das reações nervosas; para

a religião, temos vídas da mais alta significação na história do

mundo. Pode surpreender-nos que, na falta de uma expressão completa e perfeita dos princípios da ciência e dos princípios da religião que se aplicam a essas especificações, a exposição

dessas vidas de seus prismas divergentes deva envolver discre­pâncias? Seria um milagre se isso não se desse.

Seria, entretanto, desviar-se do nosso ponto pensar que

não necessitamos de nos incomodar com o conflito entre ciên­

cia e religião. Em uma era intelectual, não pode haver interesse

ativo que ponha de lado a nossa esperança de uma visão da harmonia da verdade. Concordar com a discrepância é destruir a sinceridade e a pureza moral. Pertence ao auto-respeito do

intelecto seguir todos os emaranhados do pensamento até o es­clarecímento final. Se detiverem esse impulso, não conseguirão

religião nem ciência de uma reflexão plenamente consciente.

O que importa é o seguinte: com que espírito encararemos o

resultado' Chegaremos, aqui, a algo absolutamente vital.

Um entrechoque de doutrinas não é um desastre, é uma

oportunidade. Explicar-me-ei com alguns exemplos tomados da ciência. O peso de um atomo de hidrogênio era bem co­nhecido. Também era uma doutrina cientifica estabelecida que o peso médio de tais átomos em uma massa considerável seria

sempre o mesmo. Dois experimentadores, o recentemente fa-

1228 I

1 A CII~NC!A E o MUNDO MODERNO 1

lecído (1919) Lord Rayleigh e o também recentemente faleci­do (1916) SirWilliam Ramsay, verificaram que, se obtivessem nitrogênio por dois métodos diferentes, cada um igualmente

adaptado a esse propósito, sempre observariam uma leve di­ferença persistente entre os pesos médios do átomo nos dois

casos. Agora pergunto eu, seria racional da parte desses homens desesperar por causa desse conflito entre a teoria química e a ,:

observação cientifica? Suponhamos que, por alguma razão, a doutrina química fosse tida em alta conta em toda uma região como fundamento de sua ordem social: seria prudente, seria

licito, seria moral proibir o descobrimento do fato de que as experiências produzem resultados discordantes? Ou, por ou-tra parte, deviam Sir William Ramsay e Lord Rayleigh ter pro­clamado que a teoria química era então uma ilusão evidente?

Vemos imediatamente que qualquer um desses modos seria um método de encarar o resultado com espírito inteiramente

errado. O que Rayleigh e Ramsay fizeram foi o seguinte: perce­beram imediatamente que tinham enveredado por uma linha de investigação que descobriria alguma sutileza da teoria quí­mica que até então tinha iludido a observação. A discrepância

não foi um desastre: foi uma oportunidade para incrementar o progresso do conhecimento químico. Todos sabem o desfecho do caso: finalmente descobriu-se o argônio, um novo elemento

químico, que andava despercebido e encoberto, misturado com

o nitrogênio. Mas o caso é uma continuação que forma o meu

segundo exemplo. Essa descoberta chamou a atenção para a

importância de observar cuidadosamente diferenças diminutas nas substâncias químicas obtidas por diferentes métodos. Pos­

teriores investigações com mais meticuloso cuidado foram em­

preendidas. Finalmente, outro físico, F. W. Aston, trabalhando no Laboratório Cavendish de Cambridge, na Inglaterra, desco­briu que ainda o mesmo elemento podia assumir duas ou mais

formas distintas, chamadas isótopos, e que a lei da constância do peso médio do átomo corresponde a cada uma dessas formas,

mas enquanto estiver entre os diferentes isótopos, difere leve-

I 229 I

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

mente. A pesquisa foi um grande passo no alcance da teoria química, ultrapassando muito em import2ncia a descoberta do argônio da qual se originou. A moral da história está ao alcance de todos, e eu lhes deixo a sua aplicação ao caso da religião e

da ciência. Na lógica formal, contradição é o sinal de derrota, mas na

evolução do conhecimento real marca o primeiro passo do pro­

gresso em direção a uma vitória. Essa é uma grande razão para a máxima tolerância da variedade de opiniões. De uma vez por

todas, esse dever de tolerância foi resumido nas palavras: "Dei­xai que ambos cresçam juntos até a colheita".' O malogro dos cristãos em proceder conforme esse preceito, da mais alta auto­ridade, é uma das curiosidades da história da religião. Mas ain­da não esgotamos a discussão do temperamento moral exigida pela busca da verdade. Há caminhos curtos que conduzem sim­plesmente a sucesso ilusório. É bem fácil descobrir uma teoria, logicamente harmoniosa e com importantes aplicações no âm­

bito do fato, desde que se contente em deixar de parte metade das provas. Todas as épocas produzem pessoas de lúcida inteli­gência e com a mais louvável compreensão da importância de alguma esfera da experiência humana, que elaborou ou herdou um esquema de pensamento que se adapta exatamente a essas experiências que provocaram o seu interesse. Essas pessoas es­tão resolutamente em condições de ignorar ou de menosprezar

todas as provas que confundem esses esquemas com exemplos

contraditórios. Aquilo com que não podem concordar é para elas tolice. Uma inamovível resolução de considerar a prova

completa é o único método de preservação contra os extremos flutuantes da opinião em moda. Esse conselho parece tão fácil,

e é na verdade dificílimo de seguir. Uma razão para essa dificuldade é que não podemos pen­

sar primeiro e agir depois. Desde que nascemos, estamos imer­sos na ação e só podemos guiá-la convenientemente pensando.

• Trata-se de uma afirmação de Jesus na parábola do joio e do trigo (cf. Mt 13,30). (N. T.)

1230 I

I A CIÊNCIA E O MUNDO MODERNO I

Temos, portanto, em várias esferas de pensamento, de adotar as idéias que parecem trabalhar nessas esferas. É de absoluta ne­cessidade confiar em idéias geralmente adequadas, muito em­bora conheçamos a existência de sutilezas e distinções que ul­trapassam a nossa capacidade. Também, à parte as necessidades da ação, nem podemos ter em mente a prova completa, a não ser com roupagem de doutrinas incompletamente harmoniza- "

das. Não podemos pensar em termos de uma multipliCidade indefinida de detalhes; nossa prova pode adquirir a sua própria

importância só se nos ocorrer com idéias gerais à frente. Essas idéias nós as herdamos, formam a tradição da nossa civilização. Essas idéias tradicionais nunCa são estáticas. Estão ou desapa­recendo em fórmulas sem significado, ou ganhando poder pe­las novas luzes lançadas por uma mais refinada apreensão. São transformadas pela exigência da razão crítica, pela vívida prova da experiência emocional e pelas frias certezas da percepção científica. Uma coisa é certa: não podemos conservá-las. Ne­nhuma geração pode simplesmente reproduzir os seus antepas­

sados. Podemos preservar a vida em um fluxo de forma, ou pre­servar a forma em meio a uma teia de vida. Mas não podemos incluir permanentemente a mesma vida no mesmo molde.

A situação atual da religião entre os povos europeus ilustra as afirmações que fiz. Os fenômenos estão misturados. Está havendo reações e revivescências. Mas, em conjunto, por

muitas gerações, houve gradual declínio da influência religiosa na civilização européia. Cada revivescência toca um pico mais

baixo que o predecessor; e cada período de fraqueza, uma pro­

fundídade mais baixa. A curva média marca uma firme queda na tonalidade religiosa. Em alguns países, o interesse pela religião

é mais alto que em outros. Mas nos países em que o interesse é relativamente alto, ainda decai à medida que as gerações pas­sam. A religião tende a degenerar em uma doutrina apropriada para embelezar uma vida confortável. Um grande movimento histórico dessa escala resulta da convergência de muitas causas . Quero sugerir duas delas que lanço no escopo desse capítulo.

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD 1

Em primeiro lugar, por mais de dois séculos a religião

esteve em defensiva, e numa fraca defensiva. O período foi de um progresso intelectual nunca visto precedentemente. Desse modo, uma série de situações novas foi produzida no pensa­mento. Cada uma dessas ocasiões encontrou desprevenidos os pensadores religiosos. Algo que, proclamado como vital, foi finalmente, depois de lutas, amarguras e anátemas, modi­

ficado e interpretado diversamente. A seguinte geração dos

apologistas da religião então congratulava-se com o mundo religioso pela visão mais profunda que tinham alcançado. O resultado da contínua repetição da retirada pouco digna, du­

rante muitas gerações, destruiu, afinal, completamente a auto­ridade intelectual dos pensadores religiosos. Considerem esse contraste: quando Darwin ou Einstein proclamam teorias que modificam as nossas idéias, é um triunfo para a ciência. Não iremos adiante dizendo que haja outra derrota para a ciência,

porque as suas velhas idéias foram abandonadas. Sabemos que

se galgou mais um degrau na visão científica. A religião não recuperará a sua antiga força enquanto não

encarar a mudança no mesmo espírito em que o faz a ciência. Os seus princípios podem ser eternos, mas a expressão desses princípios exige contínuo desenvolvimento. Essa evolução da religião é principalmente um desligamento das suas próprias

idéias das noções adventícias que nela se infiltraram, em conse­qüência da expressão de suas próprias idéias em épocas primi­

tivas. Esse desatar-se, por parte da religião, dos laços da ciência imperfeita é o que há de melhor. Delineia a sua genuína mensa­

gem. O grande ponto a ser observado é que, normalmente, um

progresso na ciência mostra que afirmativas de várias crenças religiosas exigem alguma espécie de modificação. Pode ser que tenham de ser expandidas ou explicadas, ou na verdade intei­ramente reformuladas. Se a religião é uma sadia expressão da verdade, essa modificação só apresentará mais adequadamente o ponto exato de importância. Esse processo é uma vantagem. Portanto, tendo em vista que a religião tem algum contato com

1232 I

I A CltNCIA E o MUNDO MODERNO I

os fatos físicos, é de esperar que o ponto de vista desses fatos deva ser continuamente modificado à proporção que o conhe­cimento cientifico progride. Desse modo, a exata relevância desses fatos para o pensamento religioso tornar-se-á cada vez

mais clara. O progresso da ciência deve resultar na incessante codificação do pensamento religioso, para a grande vantagem da religião.

As controvérsias religiosas dos séculos XVI e XVII puse­ram os teólogos em um estado de espírito muito infeliz. Esta­vam sempre atacando e defendendo. Eles mesmos se tinham

como guardiões de uma fortaleza cercada por forças hostis. Se­melhante quadro expressa meia verdade. Razão por que era tão popular. Mas era perigoso. Esse quadro especial estimulava um espírito belicoso de partido que realmente expressa, ao cabo, falta de fé. Não ousavam modificar, porque se esquivavam à

tarefa de livrar a sua mensagem espiritual das associações de determinadas imagens.

Deixem-me explicar por meio de um exemplo. Nos

primitivos tempos medievais, o Céu estava no firmamento, e o Inferno era debaixo da terra. Vulcões eram a garganta do

Inferno. Não afirmo que tais crenças entrassem nas formu­lações oficiais: mas entravam no entendimento popular das doutrinas gerais acerca do Céu e do Inferno. Todo mundo cifrava nessas noções a doutrina da vida futura. Entravam

nas explicações de abalizados expositores da fé cristã. Por exemplo, ocorriam nos Diálogos do Papa Gregório Magno,3

homem cuja elevada posição só é ultrapassada pela impor­

tância dos benefícios que prestou à humanidade. Não estou dizendo o que devemos crer acerca da vida futura. Mas, seja

qual for a doutrina certa, nesse exemplo, o entrechoque en­tre ciência e religião, que relegou a Terra a uma posição de planeta de segunda grandeza, ligado a um Sol de segunda

) Cf. Gregorovius, Hist6ria de Roma na Idade Média, uvro 111, capítulo 111.

1233 I

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

grandeza, beneficiou grandemente a espiritualidade da reli­gião, afastando essas fantasias medievais.

Outro modo de considerar essa questão da evolução do pensamento religioso é notar que qualquer forma verbal de afirmação que o mundo apresentou durante algum tempo revela ambigüidades e que freqüentemente tais ambigüidades atingem o âmago da significação. O sentido efetivo em que uma

doutrina foi sustentada não pode ser determinado pela simples análise lógica das afirmações verbais feitas na ignorância das

armadilhas da lógica. Temos de tomar em conta a reação real da natureza humana ao esquema de pensamento. Essa reação tem caráter misto, incluindo elementos de emoção derivados do mais profundo das nossas naturezas. Aqui é que a crítica pessoal da ciência e da filosofia chega à fase da evolução religio­

sa. Exemplos e mais exemplos podem ser dados dessas forças motoras em desenvolvimento. Por exemplo, as dificuldades his­

tóricas inerentes à doutrina da pureza moral da natureza hu­mana pelo poder da religião dividiram o Cristianismo no tempo de Pelágio e Agostinho, isto é, no início do século V Ecos dessa controvérsia ainda ressoam na teologia.

Até aqui, o meu ponto foi o seguinte: a religião é a expres­são de um tipo de experiências fundamentais da humanidade; o pensamento religioso desenvolve-se em crescente acuidade

de expressão, desimpedido de imagens adventicias. A ação re­cíproca entre ciência e religião é um grande fator que promove

esse desenvolvimento. Chego agora à minha segunda razão do moderno esmore­

cimento de interesse pela religião. Isso envolve a última ques­

tão que expus em meu parágrafo inicial. Devemos saber o que entendemos por religião. As Igrejas, na apresentação de suas respostas a essa indagação, evidenciam aspectos da religião ex­pressos em termos ora adequados a reações emocionais de tem­pos idos, ora dirigidos a incítar modernos interesses emocionais. O que desejo exprimir na primeira alternativa é que o apelo religioso é dirigido para incitar esse temor instintivo da ira de

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1

I A CI~NClA E o MUNDO MODERNO I

um tirano que se formou nas populações infelizes dos impérios arbitrários do mundo antigo, e particularmente a excitar esse

temor de um tirano todo-poderoso por trás das desconheci­das forças da natureza. Esse apelo ao instinto fácil de puro e

simples temor está perdendo a sua força. Falta-lhe o caráter direto de resposta, porque a ciência moderna e as condições modernas de vida nos ensinaram a encOntrar ensejos de apreen- "

são mediante uma análise critica das causas e das condições. A

religião é a reação da natureza humana à sua procura de Deus.

A apresentação de Deus sob o aspecto do poder desperta todos os instintos modernos de reação critica. É fatal, pois a religião decai a menos que as suas principais posições exijam assenti­mento imediato. A esse respeito, a linguagem antiga está em divergência Com a psicologia das civilizações modernas. Essa mudança em psicologia deve-se em grande parte à ciência e é uma das principais maneiras pelas quais O progresso da ciência enfraqueceu a firmeza das velhas formas religiosas de expres­são. Os motivos não religiosos que entraram no pensamento

religioso moderno são o desejo de uma organização confortável da sociedade moderna. A religião foi apresentada como valio-sa para a ordem da vida. As suas reivindicações detiveram-se na sua função essencial à reta conduta. Também o propósito da reta conduta depressa degenera na formação de agradáveis

relações sociais. Temos aqui uma sutil degradação das idéias religiosas, depois da sua gradual purificação sob a influência de

mais agudas intuições éticas. A conduta é um produto da reli­gião, um inevitável produto, mas não o ponto principal. Todos

os grandes doutrinadores se revoltaram contra a apresentação

da religião como uma simples sanção de normas de conduta.

São Paulo denunciou a Lei, e os teólogos puritanos falaram dos imundos farrapos da retidão. A insistência sobre as normas de conduta marca o declinio do fervor religioso. Acima e além de

todas as coisas, a vida religiosa não é uma procura de conforto. Devo agora afirmar, com a devida cautela, o que me parece ser o caráter essencial do espírito religioso.

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

Religião é a visão de alguma coisa que está além, atrás e dentro do perpassar das coisas imediatas; algo que é real e, todavia, está à espera de ser realizado; algo que é uma remota possibilidade e, todavia, o maior dos fatos presentes; algo que dá sentido a tudo quanto passa e, todavia, esquiva-se à apre­ensão; algo cuja posse é o último bem e, todavia, está além de todo alcance; algo que é o último ideal e a busca impossível.

A adoração é imediata reação da natureza humana à visão

religiosa. A religião surgiu da experiência humana misturada com as mais cruéis fantasias da imaginação bárbara. Gradati­vamente, lentamente, firmemente, a visão se repete na história

sob forma mais nobre e mais clara expressão. É o único elemen­to na experiência humana que mostra persistentemente uma tendência ascensional. Declina e depois ressurge. Mas, quando renova as suas forças, ressurge com riqueza acrescida e pureza de conteúdo. O fato da visão religiosa e a sua história de per­sistente expansão são o nosso motivo de otimismo. Quanto ao mais, a vida humana é um relâmpago de gozo passageiro que brilha por sobre uma grande quantidade de tormentos e misé­

rias, uma bagatela de experiência passageira. A visão exige apenas adoração; e adorar é submeter-se à

exigência de assimilação, acentuada pela força motriz de mú­tuo amor. A visão nunca ordena. Está sempre presente e tem

o poder de amor que apresenta o único propósito cujo cum­primento é a eterna harmonia. Tal ordem como a vemos na

natureza nunca é força; apresenta-se como o harmonioso ajus­tamento de um detalhe complexo. O mal é a força motriz pura

e simples do propósito fragmentário, que não leva em conta a

visão eterna. O mal domina, retarda e prejudica. O poder de Deus é o culto que Ele inspira. É forte a religião que, no ritual e nos modos de pensamento, evoca uma apreensão da visão ordenadora. A adoração a Deus não é uma norma de salvação, é uma aventura do espírito, um vôo em busca do inatingível. A morte da religião é acompanhada da repressão da sublime

esperança de aventura.

1236 I

I CAPfTULO XIII I

REQUISITOS PARA O PROGRESSO SOCIAL

O propósito destes capítulos foi analisar a reação da ci­ência formando esse fundo de idéias instintivas que controlam as atividades das gerações sucessivas. Esse fundo toma a forma de uma vaga filosofia quanto à última palavra sobre as coisas, quando tudo está dito. Os três séculos que formam a época da ciência moderna revolucionaram as ídéias de Deus, espírito, ma­téria, e também de espaço e de tempo no seu caráter de expres­sar posição simples para a matéria. A filosofia em conjunto en­fatizou o espírito, e assim esteve fora de contato com a ciência

durante os dois últimos séculos. Mas está voltando lentamente à sua antiga importância devido ao destaque da psicologia e da sua aliança com a fisiologia. Também, a reabilitação da filosofia foi facilitada pela recente derrocada da concepção seiscentis­

ta dos princípios da ciência. Mas, até esse colapso, a ciência apoiava-se seguramente sobre os conceitos de matéria, espaço,

tempo e por último energia. Também, houve leis arbitrárias da natureza determinando a mudança. Foram empiricamente ob­

servadas, mas por alguma razão obscura eram tidas como uni­

versais. Quem quer que, na teoria ou na prática, não as levasse em conta era denunciado com inexorável vigor. Essa posição por parte dos cientistas era puro blefe, se se pode atribuir a eles a crença em suas próprias declarações, pois a sua filosofia cor­rente falhou completamente ao justificar a afirmativa de que o conhecimento imediato inerente à circunstância presente lança alguma luz sobre o passado ou sobre o futuro.

I 237 I

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I ALFRED NORTH WH1TEHEAD I

Também esbocei uma filosofia alternativa da ciência, na qual organismo toma o lugar de matéria. Para esse fim, o espírito implícito na teoria materialista dissolve-se em uma função de organismo. O campo psicológico então apresenta o que o fato é

em si. O nosso acontecimento corpóreo é um tipo incomum de organismo e conseqüentemente inclui a cognição. Além disso, o espaço e o tempo, em sua mais concreta significação, tornam­

se o Iocus do acontecimento. Um organismo é a realização de

uma forma definida de valor. A importância de algum valor atual depende da limitação que exclui luzes cruzadas neutra­

lizantes. Assim, um acontecimento é um fato que, em razão de sua limitação, é um valor por si só; mas, em razão de sua verdadeira natureza, também requer todo o universo a fim de

ser ele mesmo. A importância depende da duração. Esta última é a re­

tenção através do tempo de uma realização de valor. O que dura é identidade de modelo, auto-herdada. A duração requer ambiente favorável. Toda a ciência insiste nessa questão dos

organismos duradouros. A influência geral da ciência no momento presente pode

ser analisada com base nestes tópicos: Concepções Gerais a Respeito do Universo, Aplicações Técnicas, Profissionalismo no Conhecimento, Influência das Doutrinas Biológicas nas Razões

de Conduta. Esforcei-me nos capítulos anteriores por dar um resumo desses pontos. Faz parte do objetivo deste capítulo de

conclusão considerar a reação da ciência sobre alguns proble­

mas concernentes às sociedades civilizadas. As concepções gerais introduzidas pela ciência no pen­

samento moderno podem ser separadas da situação filosófica

expressa por Descartes. Refiro-me à aceitação dos corpos e dos espíritos como substâncias individuais independentes, existin­do cada uma em seu próprio lugar, pondo-se de parte qualquer referência necessária uma à outra. Tal concepção estava mui­to de acordo com o individualismo que resultara da disciplina moral da Idade Média. Mas, embora a fácil recepção da idéia

12381

I A Cl~NC1A E O MUNDO MODERNO I

seja assim explicada, a derivação em si permanece em confusão, o que é natural, não obstante lamentável. A disciplina moral tinha encarecido o valor intrinseco da entidade individual. Esse encarecimento tinha posto a noção de indivíduo e de suas ex­

periências no primeiro plano do pensamento. Nesse ponto co­meça a confusão. O patente valor individual de cada entidade foi transformado na existência substancial e independente de ,.

cada entidade, o que é uma noção muito diferente. Não quero afirmar que Descartes tenha feito essa transi­

ção lógica, ou antes ilógica, em forma de raciocínio explícito. Longe disso. O que ele fez foi primeiro concentrar-se sobre a sua própria experiência consciente, como sendo fatos dentro do mundo independente de sua própria mentalidade. Foí leva­do a especular dessa maneira pelo corrente encarecimento do valor individual de sua essência completa. Transformou impli­citamente esse patente valor individual, inerente ao verdadeiro fato de sua própria realidade, em um mundo particular de pai­

xões ou modos de substância independente. Também a independência atribuída às substâncias corpó­

reas foi inteiramente tirada do domínio dos valores. Degene­

raram em um mecanismo totalmente sem valor, salvo como sugestivo de uma ingenuidade externa. Os céus tinham perdi­do a glória do Senhor. Esse estado de espírito é ilustrado pela

fuga do protestantismo aos efeitos estéticos dependentes de um meio material. Foi tomado para conduzir a uma atribuição de valor aquilo que era sem valor. Essa fuga já estava em plena

força antes de Descartes. Assim, a doutrina científica cartesia­

na de fragmentos de matéria, desprovidos de valor intrínseco, era simplesmente um enunciado, em termos explícitos, de uma

doutrina que era corrente antes da sua entrada no pensamento cientifico ou na filosofia cartesiana. Provavelmente, essa dou­trina estava latente na filosofia escolástica, mas não foi levada às suas conseqüências enquanto não encontrou a mentalidade do Norte da Europa no século XVI. Mas a ciência, como a equipou Descartes, deu estabilidade e situação intelectual a um

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

ponto de vista que tem tido efeitos muito variados sobre os pressupostos morais das comunidades modernas. Os seus bons

resultados surgem ,da sua eficiência como um método para as

investigações científicas nessas regiões limitadas então mais ap­

tas à exploração. O resultado foi uma limpeza geral do espirito europeu das manchas que lhe deixou a histeria das remotas

idades bárbaras. Esses efeitos foram sumamente bons e com­

pletamente exemplificados no século XVIII. Mas no século XIX, quando a sociedade sofria transfor­

mação em um sistema de manufatura, os maus efeitos dessas

doutrinas foram deveras fatais. A doutrina do espírito, como

substância independente, conduz diretamente não apenas ao

mundo particular da experi~ncia, mas também ao mundo

particular da moral. As intuições morais podem ser mantidas para se aplicarem tão-só ao mundo estritamente particular

da experiência psicológica. Assim, juntos, o respeito próprio

e a realização do máximo de nossas próprias oportunidades

individuais constituem a moralidade eficiente dos mentores

entre os industrialistas desse período. O mundo ocidental padece agora da concepção moral limitada das três gerações

anteriores. Também a afirmação da mera desimportância da simples

matéria levou a uma falta de reverência no tratamento da be­

leza natural ou artística. Justamente quando a urbanização do mundo ocidental estava entrando no seu estado de rápido de­senvolvimento e quando a consideração mais delicada e ansiosa

das qualidades estéticas do novo ambiente material era exigida,

a doutrina da irrelevância de tais idéias andava no auge. Nos

mais adiantados países industriais, a arte era tratada como uma

frivolidade. Um exemplo notável desse estado de espírito em meados do século XIX pode ser visto em Londres, onde a ma­ravilhosa beleza do estuárío do Tâmisa, tendo em vista que o rio serpenteia pela cidade, é ostensivamente desfigurada pela ponte da estrada-de-ferro de Charing Cross, construída em de­trimento dos valores estéticos.

1240 I

I A CIÊNCIA E O MUNDO MODERNO I

Os dois males são: um,· a ignorância da verdadeira relação

de cada organismo com o seu ambiente; e, o outro, o hábito de

ignorar o valor intrínseco do ambiente que deve ser. admitido, o

seu peso em qualquer consideração dos fins. Outro grande fato que o mundo moderno encama é o

descobrimento do método de preparar profissionais, os quais se especializam em determinadas âreas do pensamento e, por- j;.

tanto, acrescentam progressivamente à soma de conhecimentos

dentro das respectivas limitações de assunto. Em conseqüência

desse sucesso da profiSSionalização do conhecimento, há dois pontos para reter, que diferenciam nossa época presente do

passado. Em primeiro lugar, a linha do progresso é tal, que qual­quer ser humano individual, de idade média comum, será obri­gado a enfrentar novas situações que não encontram nenhum

paralelo no seu passado. A pessoa fixa para os deveres fixos, que nas sociedades antigas era uma dádiva divina, no futuro será um perigo público. Em segundo lugar, o moderno profissiona­lismo no conhecimento atua em direção oposta, no que con­

cerne à esfera intelectual. O químico moderno é provável que seja fraco em zoologia, mais fraco ainda no seu conhecimento

geral do drama elisabetano e completamente ignorante sobre os principios do ritmo na versificação inglesa. É, provavelmen­te, mais seguro ignorar sua compreensão da história antiga. Na­

turalmente estou falando de tendências gerais, pois os químicos

não são piores do que os engenheiros, ou matemâticos ou eru­

ditos. Conhecimento efetivo é conhecimento profissionalizado, sustentado por um conhecimento restrito dos assuntos úteis

que lhe são próprios.

Essa situação tem os seus perigos. Produz espiritos encai­xados. Cada profissão faz progresso, mas é progresso em seu próprio encaixe. Ora, estar mentalmente em um encaixe é vi­

ver na contemplação de um dado conjunto de abstrações. O encaixe evita andar à toa e a abstração abstrai de alguma coisa

à qual nenhuma atenção posterior se presta. Mas não há en­caixe de abstrações que seja adequado à compreensão da vida

I 241 I

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

humana. Assim, no mundo moderno, o celibato da classe culta medieval foi substituido pelo celibato da inteligência, que se divorciou da contemplação concreta dos fatos completos. el,.­ro que ninguém é simplesmente um matemático, ou simples­mente um jurista. As pessoas têm uma vida fora da profissão ou do negócio. Mas o ponto é a restrição do pensamento sério

em um encaixe. O restante da vida é tratado superficialmente,

com as imperfeitas categorias de pensamento derivadas de uma

só profissão. Os perigos resultantes desse aspecto do profissionalismo

são grandes, especialmente em nossas sociedades democráticas. A força diretiva da razão é enfraquecida. Os guias da inteligên­cia carecem de equilíbrio. Vêem esse aspecto ou aquele grupo de circunstâncias, mas não os dois grupos juntos. A tarefa de coordenação é deixada àqueles a quem falta ora a força, ora o caráter para alcançar êxito em alguma carreira. Em suma, as funções especializadas da comunidade são levadas a cabo melhor e mais progressivamente, mas a direção generalizada carece de visão. O progresso nos detalhes só aumenta o perigo produzido pelo enfraquecimento da coordenação.

Essa crítica da vida moderna vem muito a propósito, qualquer que seja o sentido em que tomarmos o sentido de comunidade. Dá certo se vocês o aplicarem a uma nação, a uma cidade, a um distrito, a uma instituição, a uma família,

ou mesmo a um individuo. Há um desenvolvimento de abs­trações determinadas e uma contração de apreciação concreta.

O todo é perdido em um dos seus aspectos. Não é necessário,

para meu objetivo aqui, sustentar que a nossa prudência di­retiva, ou como indivíduos, ou como comunidades, é menor

agora que no passado. Talvez tenha melhorado ligeiramente. Mas o novo ritmo do progresso requer maior força de direção se quisermos evitar desastres. O ponto é que as descobertas do século XIX estavam na direção do profissionalismo, de modo que somos deixados sem nenhuma ampliação da sabedoria e em grande necessidade dela.

1242 I

I A ClENClA E O MUNDO MODERNO I

A sabedoria é o fruto de um desenvolvimento equilibra­do. É esse equilíbrio do crescimento da individualidade que deveria ser o objetivo garantido pela educação. As mais úteis descobertas para o futuro imediato deveriam empenhar-se em fomentar esse objetivo sem o prejuízo do necessário profissio­nalismo intelectual.

A minha própria crítica aos nossos métodos tradicionais'"

de educação é que eles estão muitíssimo ocupados com análises

intelectuais e com a aquisição da informação formulada. O que quero dizer é que deixamos de fortalecer o hábito da aprecia­

ção concreta dos fatos individuais em sua plena interação de valores emergentes e que apenas enfatizamos formulações abs­tratas que ignoram aspectos da interação de valores diferentes.

Em todos os paises, o problema do eqUilíbrio entre a edu­cação geral e a especializada está sendo considerado. Só posso falar com conhecimento de primeira mão sobre o meu próprio

país. Sei que nele, entre educadores práticos, há considerável insatisfação com a prática existente. Igualmente, a adaptação

de todos os sistemas às necessidades de uma comunidade de­mocrática está muito longe de ser conseguida. Não penso que a solução esteja em termos de antitese entre, de um lado, a completude do conhecimento especial e, do outro, o conheci­mento geral de um caráter mais superficial. O excesso de peso

que contrabalança a completude da preparação intelectual de especialísta deveria ser de uma espécie radicalmente diferente

do conhecimento intelectual puramente analitico. Atualmente a nossa educação combina um estudo completo de algumas

abstrações com um mais rápido estudo de um maior núme­

ro de abstrações. Somos COm grande exclusividade livrescos em nossa rotina escolar. A preparação geral deveria satisfazer o desejo juvenil de fazer alguma coisa. Deveria haver alguma análise também nisso, mas só o bastante para ilustrar os modos de pensar em diversas esferas. No Jardim do Éden, Adão viu os animais antes de lhes dar nome: no sistema tradicional, as crianças nomeiam os animais antes de os ver.

1243 I

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

Não há uma solução única e fácil das dificuldades práticas da educação. Podemos, no entanto, guiar-nos por certa simplici­

dade na sua teoria geral. O estudante deve concentrar-se em um

campo limitado. Tal concentração deve incluir todas as aquisi­

ções práticas e intelectuais exigidas para essa concentração. É

esse o processo ordinário, e a respeito dele eu estaria inclinado

até a aumentar as facilidades para a concentração, em vez de

as diminuir. Com a concentração, encontram-se associados al­

guns estudos subsidiários, tais como as línguas para a ciência.

Tal esquema da preparação profissional deveria dirigir-se a um

fim claro apropriado ao estudante. Não e necessário elaborar as especificações dessas afirmativas. Tal preparação deve, natu­ralmente, ter a amplitude requerida para o seu fim. Mas o seu desígnio não deve ser complicado pela consideração de outros

fins. Essa preparação profissional pode tocar apenas um lado da educação. O seu centro de gravidade está na inteligência, e a sua

principal ferramenta e o livro impresso. O centro de gravidade do outro lado da preparação deve estar na intuição sem um di­vórcio analitico do ambiente total. O seu objetivo e a apreensão imediata com o mínimo de análise visceral. O tipo de genera­

lidade, de que acima de tudo necessitamos, e a apreensão da variedade do valor. Refiro-me a um crescimento estético. Há al­

guma coisa entre os grosseiros valores especializados do homem

prático e o fino valor especializado do erudito. A ambos os tipos falta alguma coisa. E, se combinamos os dois grupos de valor,

não obtemos os elementos que faltam. O que se espera é uma

apreciação da infinita variedade dos valores vividos realizados por um organismo em seu próprio ambiente. Quando compre­

endemos tudo a respeito do Sol e da atmosfera e da rotação da Terra, ainda nos falta conhecer a radiação do pór-do-sol. Não há

nenhum substituto da percepção direta da concreta realização de uma coisa na sua realidade. Queremos fatos concretos com

uma forte luz lançada sobre o que importa para o seu valor. O que pretendo é arte e educação estética. É, porem, arte

em tal sentido geral do termo, que me e dificil chamá-Ia pelo

[244[

I A CI~NCIA E O MUNDO MODERNO I

próprio nome. A arte é um exemplo especial. O que queremos

é promover hábitos de apreensão estética. De acordo com a

doutrina metafísica que estou desenvolvendo, fazer isso é au­

mentar o abismo da individualidade. A análise da realidade in­dica os dois fatores, a atividade emergindo do valor estético in­

dividual. Também o valor patente é a medida da individualiza­

ção da atividade. Devemos estimular a iniciativa criadora pata .­

a manutenção de valores objetivos. Não obteremos a apreensão

sem a iniciativa, ou a iniciativa sem a apreensão. Já que nos

encaminhamos para o concreto, não podemos excluir a ação. A

sensibilidade sem o impulso acentua a decadência, e o impulso sem a sensibilidade acentua a brutalidade. Uso o termo "sensi­bilidade" na mais geral acepção, de modo a incluir a apreensão do que está para além: isto e, sensibilidade para todos os fatos em questão. Assim, "arte" no sentido geral que tomo é qualquer seleção pela qual os fatos concretos são de tal modo dispostos que chamam a atenção para os valores particulares realizáveis

por eles. Por exemplo, a mera disposição do corpo humano e do olhar de modo a conseguir uma bela visão do pór-do-sol é uma simples forma de seleção artística. O hábito da arte é o hábito

de deleitar-se com valores vividos. Mas nesse sentido, a arte diz respeito a algo mais do que

um pôr-do-sol. Uma fábrica com o seu maquinário, a sua comu­

nidade de operários, o seu serviço social para a população em geral, sua dependência do gênio organizador e planejador, sua potencialidade como fonte de riqueza para os possuidores do

seu sortimento é um organismo que apresenta uma variedade

de valores vividos. O que esperamos ensinar é o hábito de apre­ender tal organismo em sua totalidade. É muito discutivel que a

ciência da economia política, estudada em seu primeiro perío­

do depois da morte de Adam Smith (1790), fizesse mais mal do que bem. Destruiu muitas ilusões econômicas e ensinou como

considerar a evolução econômica em progresso. Mas implantou

nos homens certo conjunto de abstrações que foram desastro­sas na sua influência sobre a mentalidade moderna. Desuma-

[ 245 [

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

nizou a indústria. Isso é apenas um exemplo do perigo geral inerente à ciência moderna. O seu processo metodológico é

excludente e intolerante, e justamente assim. Fixa a atenção em um grupo definido de abstrações, negligencia tudo mais e faz questão da mais insignificante informação e teoria importante para o que foi considerado. Esse método triunfa, desde que as abstrações sejam judiciosas. Mas, ainda que triunfe, tem seus

limites. O desprezo desses limites leva a desastrosas concep­

ções. O anti-racionalismo da ciência é parcialmente justificado como preservação da sua eficaz metodologia; é em parte um preconceito irracional. O moderno profissionalismo é a prepa­

ração do espírito para se conformar com a metodologia. A revi­ravolta histórica do século XVII e a primeira reação de caráter naturalista foram exemplos de transcender as abstrações que fascinaram a sociedade culta na Idade Média. Essas épocas pri­mitivas tinham um ideal de racionalismo, mas não conseguiram alcançá-lo, pois se descuidaram de notar que a metodologia do raciocínio exige as limitações implicitas na abstração. Assim, o verdadeiro racionalismo deve sempre transcender a si mesmo recorrendo ao concreto em busca de inspiração. Um racionalis­

mo satisfeito de si é, com efeito, uma forma de anti-racionalis­mo. Significa uma parada arbitrária em determinado grupo de abstrações. Tal é o caso da ciência.

Há dois princípios inerentes à verdadeira natureza das

coisas, repetindo-se em algumas incorporações determinadas, qualquer que seja o campo explorado: o espírito de mudança

e o espírito de conservação. Nada real pode existir sem ambos.

A simples mudança sem conservação é uma passagem do nada para o nada. A sua integração final resulta em simples não-en­

tidades transitórias. A simples conservação sem mudança não pode conservar, pois afinal de contas há um fluxo de circuns­tâncias, e a novidade do ser desvanece com a mera repetição. O caráter da realidade existente é composto de organismos que duram através do fluxo das coisas. O baixo tipo de organismos realizou uma auto-identidade que domina toda a sua vida físi-

12461

I A CI~NCIA E O MUNDO MODERNO I

ca. Elétrons, moléculas, cristais pertencem a esse tipo. Apresen­tam uma identidade completa e maciça. Nos mais altos tipos, onde a vida aparece, há maior complexidade. Assim, ainda que haja um complexo modelo duradouro, retira-se para os mais profundos recessos do fato total. Em certo sentido, a auto-iden­tidade do ser humano é mais abstrata do que a de um cristal. É a vida do espíríto. Relaciona-se antes com a individualizaç~o da atividade criadora; de modo que as mudáveis circunstância; recebidas do ambiente são diferenciadas da personalidade viva

e são pensadas formando um campo percebido. Na verdade, o campo da percepção e o espírito que percebe são abstrações que, concretamente, combinam com os sucessivos aconteci­men,tos corpóreos. O campo psicológico, enquanto restrito aos objetos sensíveis e às emoções experimentais, é a menor per­manência, protegida simplesmente da não-entidade da mera mudança; e o espírito é a maior permanência, que abrange esse campo completo, cuja duração é a alma viva. Mas sem fertiliza­ção a alma perderia as suas experiências transitórias. O segredo dos organismos superiores reside nos seus dois graus de per­

manências. Por esse meio se absorve a novidade do ambiente na permanência da alma. O ambiente mudável já não é um inimigo da duração do organismo, em razão da sua variedade. O modelo do organismo superior retirou-se para os recessos da atividade individualizada. Tomou-se uma maneira uniforme de

lidar com as circunstâncias; e essa maneira só é fortalecida ten­do uma variedade própria de circunstâncias para considerar.

Essa fertilização da alma é a razão da necessidade da arte.

Um valor estático, por sério e importante que seja, toma-se não durável por sua impressionante monotonia de duração. A alma

brada por se livrar dele na mudança. Sofre as agonias da claus­trofobia. São-lhe necessárias as transições de humor, espírito, irreverência, jogo, sono e principalmente da arte. A grande arte é a disposição do ambiente, de modo a proporcionar valores à

alma vívida mas transitória. Os seres humanos exigem algu­ma coisa que os absorva por certo tempo, alguma coisa fora

12471

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

da rotina para a qual possam olhar. Mas não podemos subdivi­dir a vida, a não ser na análise abstrata do pensamento. Assim,

a grande arte é mais do que uma diversão transitória. É algo

adicionado à permanente riqueza das próprias consecuções da

alma. Justifica-se tanto pela fruição imediata como pela dis­ciplina do ser interior. Sua disciplina não é diferente da sua fruição, mas existe em razão dela mesma. Transforma a alma

em permanente realização de valores que se estende além da essência anterior. Esse elemento de transição na arte mostra-se

na ausência de repouso que a sua história apresenta. Uma épo­

ca fica saturada pelas obras-primas de um só estilo. Algo novo

deve ser descoberto. O ser humano vagueia ansiosamente. Con­tudo, há um equilíbrio nas coisas. A simples mudança antes de conseguir a adequação da realização, na qualidade ou na pro­

dução, destrói a grandeza. Mas a importância de uma arte viva, que não cessa de mover-se, mas deixa a sua marca permanente,

dificilmente pode ser exagerada. No que diz respeito às necessidades estéticas do mundo

civilizado, as reações da ciência foram infelizes. A sua base ma­

terialista dirigiu a atenção para as coisas enquanto opostas aos

vaÚJres. A antítese é falsa, se tomada em sentido concreto. Mas é válida no nível abstrato do pensamento ordinário. Esse en­carecimento mal colocado misturou-se com as abstrações da

economia política, que de fato são abstratas e em cujos termos

o comércio é levado a efeito. Assim, todo pensamento concer­

nente à organização social se expressava em termos de coisas

materiais e capitais. Os valores finais eram excluídos. Eram po­

lidamente respeitados e depois entregues ao clero para serem

guardados aos domingos. Desenvolveu-se um credo de mora­lidade de competição mercantil, em alguns aspectos surpreen­dentemente elevado; mas inteiramente desprovido da conside­ração do valor da vida humana. Os trabalhadores eram conce­bidos como simples mãos tiradas do mercado de trabalho. À

pergunta de Deus os homens deram a resposta de Caim: "Serei aCaso guarda do meu irmão?"; e incorreram na culpa de Caim.

1248 I

I A CI~NClA E O MUNDO' MODERNO I

Essa foi a atmosfera em que se efetuou a Revolução Industrial da Inglaterra e em grande parte em outros lugares. A história interna da Inglaterra durante o último meio século tem sido um esforço lento e penoso para desfazer os males cometidos na

primeira fase da nova época. Pode ser que a civilização nunca

se liberte do mau clima que envolvia a introdução do maqui­nismo. Esse clima penetrou todo o sistema comercial dos países ~

progressistas da Europa setentrional. Resultaram em parte dos erros estéticos do protestantismo, em parte do materialismo

cientifico, em parte da natural sofreguidão da humanidade, em parte das abstrações da economia política. Encontra-se uma

elucidação do que estou afirmando aqui no ensaio de Macaulay criticando a obra CoUoquies on Society, de Southey. Foi escrito em 1830. Ora, Macaulay é um exemplo favorável dos homens que viviam nesse tempo ou em qualquer tempo. Tinha gênio; tinha bom coração, era honrado e reformador. Eis um excerto:

Dizem que o nosso tempo inventou atrocidades além da ima­

ginação dos nossos pais; que a sociedade foi trazida a um

estado comparado com o qual o extermínio seria uma bên­

ção; e tudo porque as habitações dos fiadores de algodão

são desprotegidas e retangulares. O senhor Southey desco­

briu um meio, diz-nos, pelo qual os efeitos da manufatura e

da agricultura podem ser comparados. E qual é esse meio?

Ficar sobre uma colina, olhar para uma cabana e uma fábrica

e ver qual é a mais bonita.

Parece que Southey disse muitas bobagens no seu livro;

mas, no que diz respeito a esse excerto, veria que não estava tão

errado se voltasse à terra depois de quase um século. Os males

do antigo sistema industrial são agora um lugar-comum do co­nhecimento. O ponto em que desejo insistir é na cegueira com que mesmo os melhores homens daquele tempo consideravam a importância da estética na vida nacional. Uma causa que con­

tribui para a eficácia substancial em produzir erros desastrosos

foi o credo científico de que a matéria em movimento é a única

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I ALFRED NORTH WH1TEHEAD I

realidade concreta da natureza, de modo que os valores estéti­cos constituem um acréscimo estranho e irrelevante.

Há um outro lado do quadro das possibilidades de deca­dência. No presente momento, trava-se uma discussão sobre o futuro da civilização nas novas circunstâncias do adiantamento técnico e científico. Os males do futuro foram prognosticados de vários modos, a perda da fé religiosa, o uso maligno do poder

material, a degradação correspondente a uma média de natali­dade diferencial favorecendo os mais baixos tipos de humani­

dade, a supressão da criação estética. Sem dúvida, todos esses males são penosos e ameaçadores. Mas não são novos. Desde os alvores da história, a humanidade sempre perdeu a sua fé religiosa, sempre sofreu do uso maligno do poder material, sempre sofreu da esterilidade dos mais altos tipos intelectuais, sempre testemunhou periódica decadência da arte. No reina­do do egípcio Tutancâmon, travou-se desesperada luta religiosa entre modernistas e fundamentalistas; os quadros das cavernas apresentam uma fase de delicado acabamento estético segui­

do de um período de comparativa vulgaridade; os mentores religiosos, os grandes pensadores, os escritores e poetas, toda a casta clerical na Idade Média, foram notavelmente estéreis: finalmente, se nos ativermos ao que realmente aconteceu no passado e abandonarmos visões românticas das democracias, reis, generais, exércitos e comerciantes, o poder material foi geralmente exercido com cegueira, obstinação e egocentrismo, freqüentemente com brutal malignidade. E, ainda assim, a hu­manidade tem progredido. Mesmo se tomarmos um pequeno

oásis de peculiar excelência, o tipo de homem moderno que teria mais probabilidade de felicidade na Grécia antiga no seu

melhor período, é provavelmente (como agora) um comum boxeador profissional de peso pesado, e não um erudito em grego de Oxford ou da Alemanha. Verdadeiramente, a maior utilidade de um erudito de Oxford teria sido escrever uma ode em glorificação ao boxeador. Nada prejudica mais um homem de nervos fracos nOS seus deveres do presente do que a atenção

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I A ClENC1A E O MUNDO MODERNO I

consagrada aos pontos de excelência no passado comparados com o malogro comum do tempo presente.

Mas, afinal de contas, tem havido períodos de real deca­dência; e presentemente, comO em outras épocas, a socieda­de está em declínio e há necessidade de ação preservativa. Os

profissionais não são novos para o mundo, mas no passado os profissionais formaram castas não progressistas. O ponto é que I'

O profissionalismo agora coincide com o progresso. O mundo

agora se defronta com um sistema que evolui por si mesmo, que não pode parar. Há perigos e vantagens nessa situação. É

óbvio que o lucro em poder material apresenta oportunidade para melhoramento social. Se a humanidade puder aproveitar

a ocasião, sobrevirá uma idade de ouro de criatividade benéfica. Mas o poder material em si é eticamente neutro. Pode igual­mente ser bem trabalhado na má direção. O problema não é como produzir grandes homens, mas como produzir grandes sociedades. A grande sociedade fornecerá os homens para as ocasiões. A filosofia materialista encarecia a quantidade dada do material, e dai derivadamente a natureza dada do ambiente. Assim, operava mais prejudicialmente sobre a consciência so­cial da humanidade, porque dirigia a atenção quase exclusiva para o aspecto da luta pela vida. É insensato olhar para o uni­

verso com óculos cor-de-rosa. Devemos admitir a luta. A ques­tão é: quem deve ser eliminado? Como educadores, devemos ter idéias claras sobre esse ponto, porque apresenta o tipo que deve ser produzido e a ética prática que se deve inculcar.

Mas, durante as últimas três gerações, a exclusiva dire­ção da atenção para esse aspecto das coisas foi um desastre

da maior importância. As palavras de ordem do século XIX foram luta pela vida, competição, guerra de classe, antagonis­mo comercial entre as nações, assuntos bélicos e militares. A luta pela vida foi apresentada no evangelho do ódio. A total conclusão por tirar de uma filosofia da evolução é felizmente de caráter mais equilibrado. Organismos bem-sucedidos modi­ficam o seu ambiente. São bem-sucedidos os organismos que

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

modificaram o ambiente, de modo a se assistirem mutuamen­te. Essa lei é exemplificada na natureza em vasta escala. Por exemplo, os indios norte-americanos aceitavam o seu ambiente, com o resultado de que apenas uma escassa população conse­guiria manter-se em todo o continente. Quando chegaram ao

mesmo continente, as raças européias seguiram uma politica oposta. Desde logo cooperaram para modificar o seu ambiente.

O resultado foi que uma população mais de vinte vezes maior

do que a dos índios agora ocupa o mesmo território, e o con­tinente ainda não está cheio. Repitamos que há associações de

diferentes espécies, que cooperam mutuamente. Essa diferença de espécie é apresentada nas mais simples entidades físicas, tais como as associações entre elétrons e os núcleos positivos, e em todo o reino da natureza animada. As árvores de uma floresta brasileira dependem da associação de várias espécies de orga­nismos, cada uma delas dependente das outras espécies. Uma só árvore de per si é dependente de todas as probabilidades adversas de circunstâncias passiveis de mudança. O vento lhe

impede o crescimento; as variações de temperatura não per­mitem que tenha folhagem; as chuvas deslocam-lhe o solo; as suas folhas são dispersas e perdidas para o bem da fertilização. Podemos obter espécies individuais de árvores escolhidas em circunstâncias excepcionais ou onde intervém o cultivo feito

pelo homem. Mas, na natureza, o meio normal pelo qual as árvores florescem é a sua associação em floresta. Cada árvore

pode perder alguma coisa para a sua perfeição individual de

crescimento, mas todas mutuamente se auxiliam, preservando as condições de sobrevivência. O solo é preservado e sombrea­

do; e os germes necessários à sua fertilidade não são queimados, nem congelados, nem destruidos com a limpeza. A floresta é o triunfo da organização de espécies mutuamente dependentes. Além disso, a espécie de germe que mata a floresta também se extermina a si mesma. Ademais, os dois sexos apresentam a mesma vantagem de diferenciação. Na história do mundo, não se tributa louvor àquelas espécies que se especializam em

I 252 I

I A Clt:NCIA E O MUNDO MODERNO I

métodos de violência, ou mesmo em armas de defesa. De fato, a natureza começou por produzir animais encaixados em duras conchas como defesa contra os males da vida. Também expe­rimentou em tamanho. Mas animais menores sem armas ex­ternas, de sangue quente, sensíveis e alertas, expulsaram esses monstros da superfície da Terra. Também os leões e os tigres

• não são espécies bem-sucedidas. Há alguma coisa no uso rápido

da força que contraria o seu próprio objeto. O seu principal

defeito é o de impedir cooperação. Todos os organismos exigem um ambiente de amigos, parte para o defender de mudanças violentas, parte para o suprir às suas necessidades. O Evangelho

da Força é incompativel com a vida social. Entendo por força o antagonismo na mais geral acepção.

Quase igualmente perigoso é o Evangelho da Uniformi­dade. As diferenças das nações e das raças da humanidade são exigidas para preservar as condições nas quais o mais alto de­senvolvimento é possível. Fator precípuo no desenvolvimento progressivo da vida animal foi o poder de mudar de localidade. Essa é a razão por que os monstros chapeados de armas pas­savam mal. Não podiam deslocar-se. Os animais deslocam-se em novas condições. Têm de adaptar-se ou morrer. A huma­

nidade deslocou-se da floresta à planície, da planície ao litoral, de continente a continente, de hábito de vida a hábito de vida.

Quando os homens cessam de se deslocar, cessam de ascender na escala do ser. A locomoção física é ainda importante, mas maior ainda é o poder das aventuras espirituais do homem -

aventuras do pensamento, aventuras de apaixonado sentimen­

to, aventuras de experiências estéticas. A diversificação entre as comunidades humanas é essencial para a provisão do incentivo,

é material para a Odisséia do espírito humano. Nações de hábi­tos diferentes não são inimigas; são dádivas divinas. Os homens requerem dos seus vizinhos algo suficientemente familiar para ser compreendidos, alguma coisa suficientemente diferente para provocar a atenção, e alguma coisa bastante grande para forçar a admiração. Não devemos, contudo, esperar que tudo

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

sejam virtudes. Devemos dar-nos por satisfeitos se houver algu­ma coisa bastante atraente para ser interessante.

A ciência moderna impôs à humanidade a necessidade de locomoção. O seu pensamento e a sua tecnologia progressivos

fazem a transição através do tempo de geração a geração, uma verdadeira migração em ignotas praias de aventura. O verda­deiro benefício da locomoção é ser perigosa e necessita de ha­

bilidades para advertir dos males. É de esperar, portanto, que o futuro revele perigos. É próprio do futuro ser perigoso. E está

entre os méritos da ciência equipar o futuro para os seus deve­res. As prósperas classes médias que governaram o século XIX deram valor excessivo à placidez da existência. Recusaram-se a enfrentar as necessidades de reforma intelectual imposta por novos conhecimentos. O pessimismo da classe média sobre o

futuro do mundo veio de uma confusão entre civilização e se­gurança. No futuro imediato, haverá menos segurança que no passado imediato, menos estabilidade. Deve-se admitir que há um grau de instabilidade incompatível com a civilização. Mas, em conjunto, as grandes épocas foram épocas instáveis.

Esforcei-me nestes capítulos para dar um registro da gran­

de aventura na região do pensamento. Nele participaram todas as raças da Europa ocidental. Desenvolveu-se com a lentídão

de um movimento de massa. Meio século é a sua unidade de tempo. O relato é a epopéia de um episódio na manifestação da razão. Narra como determinado rumo da razão surge em

uma raça pela longa preparação de épocas antecedentes, como

depois do seu nascimento o seu assunto gradualmente se des­dobra, como atinge os triunfos, como a sua influência condicio­

na os verdadeiros surtos de ação da humanidade e finalmente como no momento de supremo triunfo as suas limitações se re­

velam e pedem renovação do exercício da imaginação criadora. A moral da história é o poder da razão, sua influência decisiva na vida da humanidade. Os grandes conquistadores, de Alexan­dre a César e de César a Napoleão, influiram profundamente na vida das gerações subseqüentes. Mas o resultado total dessa

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I A CI~NCiA E O MUNDO MODERNO I

influência apouca-se em insignificância, se comparado com a integral transformação dos hábitos e da mentalidade humanos produzidos pela longa linha de homens de pensamento de Ta­les aos nossos dias, homens individualmente sem poder, mas ao cabo os que dirigem o mundo.

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íNDICE REMISSIVO

Ab-ruptude (em Ingressão), 21 1,212 Absoluto, 0, 120 Abstração, 195s. Abstração (na Matemática), 35s. Abstrato, 197 Aceleração, 66 Acontecimento, 955.,1255. Acontecimentos vazios, 191 Alemanha, 59 Alexander, S., prefácio (p. I I) Algebra, 47, 48 Ampére, 127 Anselmo, santo, 77 Aquino, santo Tomás de, 22, 23,183 Argumentos (da função), 48 Aristóteles, 18, 20s.; 21, 26, 46, 64, 66,162,168,210 Arnold, Matthew, 107 Arquimedes, 18, 19;20s. Arte, 244, 245 Arte medieval, 28s. Aspecto,92, 132s. Aston, F. w., 229 Atividade substancial, 137-138, 157,205 Atomo, 128, 129 Atualização, 198

Bacoo, Francis, 21, 58; 59s.; 87,124 Bacon, Roger, 18 Belisário, 29 Bento, são, 30 Bergson, Henri Louis, 70; 183s. Berkeley, George, 88, 89s.; 99,112,177

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

Bichât, 128 Biologia, 59, 84, 132 Bizantino, Império, 28, 29, 30 Boaventura, são, 22 Boyle, Robert, 58 Bruno, Giordano, 13

Cálculo diferencial, 76 Cálculo integral, 46, 47 Campo fisico, 126 Carlyle,81 Cervantes, 58 Chaucer,31 China, 19, 100 Circunstância imediata, 42, 62, 63 Clairaut, Alexis Claude, 81, 173 Classificação, 46 Clough, A. H., 108 Cognição, 91, 189 Coleridge, 108 Colombo, Cristóvão, 31, 52 Componentes, 206 Conectívidade, (de uma circunstância) 210 Conexidade (de uma hierarquia), 208 Configuração, 135 Conservação de Energia, Física 129 Continuidade, 128 Copérnico, Nicolau, 13,31,58,166 Cosmas, 224 Cromwell, Oliver, 32

D'Alembert, 77, 81 Da Vinci, Leonardo, 61 Dalton, John, 128, 129 Darwin, 232 Deformação orgânica vibratória, 166 s. Demócrito, 128 Demos, R., 11 Densidade, 69s., 169 Desargues, 75 Descartes, 33; 47s.; 49, 58; 97,107, I 77s.; 238s. Destino,24 Determinismo, 103 Direito romano, 25, 29 Distância, 155

I 258 I

I A CI~NClA E O MUNDO MODERNO I

Divindade, Escolástica, 26 Divisibilidade, 159s. Duque de Alba, 14 Duração, 113; 1345s.; I 52s.; 167s.; 189

Educação, 243s. Egipcios, 29, 47 Einstein, 24, 46, 82, 84,156 Elemento primordial, 54, 55 Elétron, 53s.; 104,; l65s. Época, 159 Espacialização, 70, 159, 185 Espaço fisico, 126 Ésquilo,24 Essência, 157 Essência individual, 197s. Essência relacional, 198s. Éter, 165 Euripides,24 Evolução, 120, 129s. Existência descontínua, 54; 170s. Explicação mecânica, 32 Extensão, 159

Falácia da concreção deslocadaJ 71s.; 78 Faraday, 127 Fermat, 75 Filosofia, 113 Filósofos jônicos, 20 Fisica, 59 Força, 64s. Forma, 205, 87 Fourier, 81 Francisco de Assis, são, 228 Frederico, o Grande, 84 Freqüência, 163s. Fresnel, 127 Frost, Robert, 31 Futuro, 218, 219

Galileu Galilei, 14,20,22,26,47,49; 58s.; 84,147,168,226 Galvani,84 Gauss, 82, 84 Geometria, 37s. Gibson, 184

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

Giotto,31 Gravitação, 65s.; 155 Grêcia, 195. Gregório Magno, 30, 233 Gregorovius, 233

Harvey, 58, 59, 61, 62 Heath, SirT. L., 162 Hegel, Georg Wilhelm Friedrich, 45 Henry James, 15 Hierarquia abstrativa finita, 208, 209 Hierarquia abstrativa infinita, 207, 208 Hierarquia associada, 210 Hooker, Richard, 23s. Hume, David, 16, 17, 50, 62, 71, 72, 77, 101, 182 Huyghens, 49, 58, 59, 226, 227

Idealismo, 85,117,118 Indução, 40; 61s. Ingresso, 93s.; 197 Invenção, 1245. Isótopos, 229, 230 Itália, 58, 59

James, William, 15, 178s.; 182s. Jorge 11, 88 Josê de Habsburgo, imperador, 84 Justiniano, 28, 29

Kant,50;88s.; 112, 129, 160, 173 Kepler, Johann, 20, 49, 58, 66

Lagrange, Joseph Louis, 81, 82 Laplace, Pierre Simon, 81, 129 Lecky, 25, 224 Lei Periódica, 129 Leibniz, Gottfried Wilhelm, 47s.; 51, 58, 87, 107, 177 Leis da locomoção, 655. Leis da natureza, 48; 136s. Limitação, 200s. Lloyd Morgan, II Localização simples, 68s.} 78, 89 Lock~John,47,50,58,84,89, 107, 177 Locomoção vibratória, 166 Lógica abstrata, 43

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I A CI~NCIA E O MUNDO MODERNO I

Lucrêcio, 128 Luta pela vida, 142

Macaulay, 249 Massa, 67, 131 Matemática, 20, 31; 35s. Matemática aplicada, 395. Matéria, 54; 59s.; 88, 13ls. Matéria (filosófica), 206 Materialismo cientifico, 33 Maupertuis,81s. Maxwell, James Clark, 8Is.; 127, 146 Mecanismo, 101 s. Mecanismo orgânico, ]05, ]37 Meio ambiente, 140s. Memória, 71 Menor ação (teorema), 83, 136 Mente, 74s. Mersenne, 49 Mêtodo da exaustão, 46 Michelson,147s. Mil!, John Stuart, 103 Milton, 101 Modo, 92 Movimento cientifico, 21 Müller, Johannes, 128, 129 Müller, Max, 160

Não-ser, 202 Narses,29 Newman, John Henry, 108, 225 Newton, 19, 20, 25; 47s.; 58, 59; 8Is.; 145, 146; 225s. Noção aritmêtica árabe, 465.

Objetivismo, 115, 116 Objeto dos sentidos, 93 Objetos eternos, 113s.; 132s.; I97s. Objetos eternos complexos, 206 Objetos eternos simples, 205, 206 Oersted,l27 Ordem da natureza, 16s.; 44s.; 57, 71 Organismo, 54s.; 59, 85; 105s.; 132, 133; 166s.; 188

Pádua, Universidade de, 59, 60 Paley, 100, 101

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Page 132: Whitehead, alfred north. a ciência e o mundo moderno

I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

Papado, 23, 29 Pascal, 58, 75 Passado, 218s. Pasteur, Louis, I 295. Pelágio, 234 Percepção, 94 Periodicidade, 49s. Perspectiva, 92 Petavius, 225 Pitágoras, 45s.; 48, 213 Platão, 20; 45s.; 162 Ponto de vista, 93 Pope, Alexander 10 I Possibilidade, 199 Preensão, 91s.; 185 Preensão sintética, 199s. Presente, 218s. Presente ilusório, 134 Primaz, 166 Processo, 95 Profissionalismo,24Is. Proposições falsas, 196 Propriedade modal do espaço, 86s. Propriedade separativa do espaço, 85, 86 Próton, 54s.; I 66s. Psicologia, 84, 96 Pusey,108

Qualidade, 72s. Qualidades primárias, 74 Qualidades secundárias, 74, 118 Quantidade extensiva, 160

Racionalismo, 23s.; 57 Ramsay, Sir William, 229 Rawley, Dr., 60 Rayleigh, Lord, 229 Realidade extrínseca, 133 Realidade intrínseca, 133 Realismo, 117s. Reforma, 21 Reiteração, 134s.; 1675. Relações externas, 199 Relações internas, 156, 157, 198s. Relatividade, 67, 68, 149s.

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I A CI~:NCIA E ° MUNDO MODERNO I

Responsabilidade moral, 1025. Retenção, 134 Revolta histórica, 21, 33, 57, 70, 136 Rieman, 82, 84 Roma, 30 Romanos, 19 Rousseau, 53, 88, ]23 Royal Society, 47, 71, 72 RusseIl, Bertrand, 193

Santo Agostinho, 234 Sarpi, Paul, 22s.; 34 Schleiden, 129 Schwann, 129 Seções cônicas, 46 Sêneca,25 Ser, 202 Shakespeare, 58 SheIley, 108; II Os. Sidgwick, Henry, I 77 Simultaneidade, 156, 159 Smith, Adam, 245 Safodes, 24 Southey, 249 Spinoza,Baruch,47,58,92, 107, 108, 158, 177,220 Subjetivismo, 114, 115 Substância, 72s.; 158 Superjecto,

Tecnologia, I 24sa. Tempo, 152s. Temporalização, ] 6] Tennyson, 101; 102s. Teologia escolástica, 26 Teoria mecanicista, 70 Trabalho virtual, 83 Tragédia, 24 Translucidez da realização, 212 Trento, Concílio de, 22 Trigonometria, 48, 49, 50

Universais, 197

Valor, 114; 20Is.; 220, 221 Vasco da Gama, 31

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I ALFRED NORTH WHITEHEAD I

Velocidade, 645.; 1655. Vesálio, 13 Vibração, 1685. Vida, 59 Vitalismo, 104, 131, 132 Volta, 84 Voltaire, 59, 77, 130

Walpole,84 Walt Whitman, 31 Washington, George, 84 Watt, James, 123 Wesley, John, 88 Wordsworth, 31; 1015.

Young, Thomas, 127

Zenão, 1605.; 1 72

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