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PEDRO POMAR UMA VIDA EM VERMELHO Wladimir Pomar

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PEDRO POMARuma vida em vermelho

Wladimir Pomar

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Wladimir Pomar

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PEDRO POMARuma vida em vermelho

Wladimir Pomar

São Paulo, 2013

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Copyright © Wladimir PomarPrimeira edição: EJR Xamã Editora Ltda., 2003.

Segunda edição: Editora Fundação Perseu Abramo, 2013.

Fundação Perseu AbramoInstituída pelo Diretório Nacional do Partido dos Trabalhadores em maio de 1996.

DiretoriaPresidente: Marcio Pochmann

Vice-presidenta: Iole IlíadaDiretoras: Fátima Cleide e Luciana MandelliDiretores: Artur Henrique e Joaquim Soriano

Editora Fundação Perseu AbramoCoordenação editorial

Rogério ChavesAssistente editorial

Raquel Maria da CostaCoordenação desta edição

Valter PomarRevisão e preparação de originais

Cecília LuedemannPedro Estevam da Rocha Pomar

Edição de arte, capa e editoração eletrônicaCaco Bisol

P784p Pomar, Wladimir. Pedro Pomar : uma vida em vermelho / Wladimir Pomar. – São Paulo : Editora Fundação Perseu Abramo, 2013. 360 p. : il. ; 23 cm. Inclui bibliografia. ISBN 978-85-7643-134-3

1 1. Pomar, Pedro, 1913-1976. 2. Comunistas - Brasil - Biografia. 3. Comunismo - Brasil. 4. Revolucionários - Brasil - Biografia. 5. Brasil - Política e governo - Séc. XX. I. Título. 2 3 CDU 929:329.14(81) CDD 920.9364131

(Bibliotecária responsável: Sabrina Leal Araujo – CRB 10/1507)

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Este livro obedece às regras do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Editora Fundação Perseu AbramoRua Francisco Cruz, 244

04117-091 – São Paulo – SP – BrasilTelefone: (11) 5571 4299 – Fax: (11) 5571-0910

Correio eletrônico: [email protected]

Visite a página eletrônica da Fundação Perseu Abramowww.fpabramo.org.br

www.efpa.com.br

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Para todos os que conviveram com Pomar e sabem queo homem foi muito maior do que sua biografia.

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SUMÁRIO

Apresentação à edição digital 9Apresentação à 1ª edição impressa 15 Nunca estás só com o povo miúdo 19

2 Possante é a lei, necessidade o é mais 31 3 Mas quem me segue nunca tem repouso 494 O que se ignora é o que mais faz falta 61

5 Sem erros jamais chegas à razão 736 Em tudo há formação e vida ativa 83

7 Contudo, nunca é a morte aparição bem vista 93 8 Se queres ser, sê por tua própria mão 105

9 Cem ilusões e um raio de verdade 11910 Entre homens sentirás ser homem 133

11 Revelas-me a mim mesmo 14712 Toda a miséria humana aqui me oprime 163

13 Só vejo como se atormenta o humano ser 17914 Nossas ações nos obstruem o curso da vida 19315 Hás de saber viver, assim que em ti confiares 207

16 Parte da parte eu sou 217 17 Qual barro aguado molho o ouro e o transmudo 229

18 É a fábrica do pensamento, qual máquina de tecimento 241 19 Do espírito me vale a direção 251

20 De outra interpretação careço 26121 Com o hábito é que vem o apreço 275

22 Erra o homem, enquanto a algo aspira 287 23 É curto o tempo, é longa a arte 301

24 Ecos de outrora estão no nada imersos 31725 Esse é a quem amo, quem almeja o impossível 329

26 Haveis de ser sempre o que sois 343Referências Bibliográficas 353

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APRESENTAçãO DA EDIçãO DIgITAl

Entre os que tiveram papel relevante na história dos comunistas brasileiros, Pedro Pomar parece ir ganhando, com o tempo, crescente relevância. A primei-ra tentativa de não deixar a memória de sua vida cair no esquecimento ocorreu em 1980, com o lançamento da coletânea Pedro Pomar. Somente bem depois, em 2003, após uma extensa pesquisa iniciada anos antes, é que conseguimos lançar a primeira edição, impressa, de Pedro Pomar – Uma Vida em Vermelho. Uma década depois, por motivo do centésimo aniversário do nascimento de Pomar, o jornalista Osvaldo Bertolino, com o apoio da Fundação Maurício grabois, lançou Pedro Po-mar – Ideias e Batalhas. E a Fundação Perseu Abramo decidiu publicar esta edição digitalizada de Pedro Pomar – Uma Vida em Vermelho.

Como frisamos na Apresentação da primeira edição impressa deste livro, Pomar era não só um comunista revolucionário profissional, cuja sobrevivência dependia do trabalho partidário e dos recursos pecuniários decorrentes, mas igual-mente alguém que se dedicava completa e totalmente à perspectiva e à ação de transformar a sociedade e mudar as condições de trabalho e de vida das classes que considerava exploradas e oprimidas pela burguesia e por outras classes dominantes.

A sua vida familiar e a sua vida pessoal eram irremediavelmente subor-dinadas àquele profissionalismo especial de vida, de tal modo que não era pos-sível distinguir um “lado político” e um “lado humano”. O seu ser político era impregnado de humanismo. Por isso, era tão apegado a autores como goethe, Shakespeare e Marx, para os quais nada do que é humano era indiferente. E o ser humano de Pomar era um ser político, no qual chocavam-se, harmonizavam--se, dissolviam-se e amalgamavam-se as qualidade e defeitos de sua época, de seu povo e de seu partido.

Em muitas ocasiões, ele parecia ser um intelectual orgânico fora de lugar. Numa época em que a autoridade do poder partidário era norma entre a maio-ria dos dirigentes comunistas, a maior parte deles intelectuais, ele era capaz de procurar convencer, com argumentos compreensíveis, àqueles que divergiam das orientações partidárias. Isso, mesmo no caso de ele próprio também discordar delas. Era de sua natureza.

Também por isso, nos trabalhos escritos de Pomar é preciso distinguir o que era a explanação de uma decisão partidária daquilo que ele próprio pensava a respeito. Ele era e sempre foi um homem de partido. Isto é, alguém que se submetia às decisões da maioria, e das direções partidárias, mesmo não concordando com elas. E que era capaz de aplicar tais decisões tanto na elaboração teórica quanto na

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prática cotidiana. Essa atitude foi posta à prova em muitos momentos de sua vida. É evidente que essa distinção não é fácil. Ela necessita de um extenuante proces-so de garimpagem e de comparação entre, por um lado, documentos elaborados nos processos de debate interno, e por outro lado documentos que exprimem as decisões coletivas.

Pomar nunca abandonou, na preocupação e na prática partidária, a con-vicção de que revoluções e ações transformadoras dependem da participação de grandes massas. Essa convicção ganhou consistência nos anos 1940, quando ele se tornou o principal dirigente do comitê estadual do Partido Comunista (PCB) em São Paulo, e se convenceu de que a mobilização de grandes massas só seria possível se o partido estivesse enraizado nas fábricas, bairros, escolas, sindicatos, associações e outras formas de organização da base da sociedade.

Em outras palavras, sem estar ligado, através de inúmeros fios, laços e pon-tes, às massas trabalhadoras, populares e democráticas, conhecendo suas reivin-dicações, suas demandas e sua força, a ação do partido seria o que ele costumava chamar de blanquista. Isto é, poderia gerar ações heroicas, mas que levariam ine-vitavelmente ao fracasso e a danos na organização partidária e na consciência das grandes massas. Para evitar isso, a preocupação permanente do partido deveria ser a criação de bases políticas, onde quer que seus militantes estivessem. Essa linha de pensamento esteve presente durante a fase de reestruturação partidária dos anos 1940; na fase de ascensão das lutas operárias dos anos 1950; durante o processo de criação e organização do PCdoB nos anos 1960; e na preparação e posterior avaliação da luta armada, nos anos 1960-1970.

Mesmo nos anos 1960, em que a luta armada era chamada de quinta tarefa mas, na prática, se tornava crescentemente a primeira, deve-se em grande parte a Pomar o fato de a 6ª Conferência Nacional do PCdoB adotar uma tática de alian-ça com as mais diversas forças políticas antiditatoriais, propugnando a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. Essa tática se tornou predominante nas ações de quase todas as forças antiditatoriais no final dos anos 1970 e início dos anos 1980.

O problema consistiu sempre no fato de que a linha de pensamento que preconiza a participação inarredável das grandes massas é inatacável do ponto de vista teórico, mas pode ser colocada de lado na atividade prática, criando uma contradição cujos resultados só se tornam visíveis com o desastre. A história dos comunistas e outros revolucionários, no Brasil e no resto do mundo, está coalhada de fracassos relacionados à falta de aplicação rigorosa daquela linha de pensa mento em suas atividades práticas.

A política de luta armada contra a ditadura militar foi um exemplo trágico dessa dicotomia entre a ausência de uma prática de construção de bases políticas e a prática das ações militares. Isso nada tem a ver com o fato de que a luta armada

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no Brasil, que levou à morte heroica muitos combatentes revolucionários, co-munistas e não comunistas, deu sua contribuição de sangue para que a ditadura militar colocasse a nu sua brutalidade antipopular e antidemocrática e apressasse seu fim. Hoje, essa contribuição começa a ser admirada pelas novas gerações que tomam conhecimento dela, mas não desfaz o fato de que foi derrotada.

A prática da luta armada poderia ter contribuído ainda mais para o fim da ditadura se houvesse construído bases políticas em muitas regiões do país e houvesse adotado a estratégia defensiva de resistência. No entanto, desligadas da realidade política das massas populares, e confundindo a luta armada restrita dos posseiros com a luta contra o regime, as forças guerrilheiras do Araguaia adota-ram uma estratégia ofensiva de combate frontal às forças repressivas, na errônea suposição de que as condições objetivas para a revolução estavam maduras e as massas seguiriam os combatentes.

A crítica cuidadosa de Pomar, tanto à guerrilha do Araguaia, quanto às outras formas de guerrilha que não contaram com bases de massa, tinha como fio condutor aquela linha de pensamento sobre o papel das massas, que considerava como um dos princípios da ação partidária. Crítica tanto mais cautelosa quanto aquela avaliação colocava em risco a unidade do partido, já que alguns dirigentes de então se articulavam e trabalhavam no sentido de repetir a mesma política que levara a guerrilha ao desastre.

Tal unidade era fundamental. Sem ela seria difícil reorganizar o partido, adotar a tática de fingir-se de morto, para escapar da sanha da repressão, enfrentar as novas políticas de distensão da ditadura, colocar de lado o boicote às eleições, começando a apoiar candidatos do MDB, e retomar o trabalho sindical. Embora Pomar continuasse repetindo que a ditadura não seria derrotada sem a luta arma-da, na prática ele procurava preparar o partido para novas condições ainda não totalmente claras no horizonte político brasileiro.

O massacre de 16 de dezembro de 1976, no bairro da lapa, em São Paulo, destruiu todo o processo em curso e criou uma situação partidária totalmente nova. Tal situação se mostrou ainda mais complexa quando Pomar, no final da reunião da direção do PCdoB, confidenciou que Jover Teles, por questões de segurança do partido no Rio de Janeiro, não deveria ter sido convocado. Em vista das explicações esquivas dadas por Jover na reunião da comissão executiva, Pomar considerava que a direção do partido corria o risco de “cair” a qualquer momento, pela ação repressiva das Forças Armadas, e que seria necessário escla-recer quem autorizara um emissário do Comitê Central, Sérgio Miranda, a passar àquele dirigente o ponto de encontro.

logo depois do massacre, alguns dirigentes que se encontravam no exte-rior atribuíram a queda da reunião a um possível liberalismo de Pomar diante das regras de segurança clandestina. Essa suposição se manteve forte apesar do co-

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municado de um dos dirigentes presos na operação do Exército, de que havia mais de uma evidência de que Jover praticara um ato de traição. Preferiu-se afirmar que esse preso havia falado tudo durante os interrogatórios, com o intuito de desquali-ficá-lo. Porém, a verdade é que, embora os dirigentes comunistas presos na ocasião tenham sido brutalmente torturados, não houve prisões posteriores. Vale dizer, o Exército não conseguiu obter deles informações que permitissem novas capturas.

Somente após a anistia, em 1979, com a descoberta casual de Jover em Porto Alegre, vivendo ainda com nome clandestino, houve mudança na aprecia-ção das causas da queda da reunião de dezembro de 1976. Porém, mesmo assim, jamais foi esclarecida a responsabilidade pela convocação de Jover Teles para as reuniões da comissão executiva e do Comitê Central do PCdoB. Apesar da re-velação de Pomar em contrário, Sérgio Miranda manteve sua versão de que fora autorizado pela comissão de organização e, ao falecer em 2012, levou consigo a verdade para o túmulo.

A suposição de Pomar de que havia risco de “queda” concretizou-se imedia-tamente, com o assassinato dele, de Ângelo Arroyo e de João Baptista Drummond, e com a prisão dos demais membros da reunião, com exceção de Jover Teles e de José gomes Novaes. Este, por uma eventualidade, escapou de ser preso por sair da casa na mesma viagem do traidor, a quem os órgãos de repressão deixaram fugir, cumprindo o trato de não realizar uma queima de arquivo, como às vezes aconte-cia. Desse modo, foi possível identificar mais rapidamente quem havia passado ao Exército as informações sobre a reunião do Comitê Central. O que permitiu supe-rar as acusações levianas feitas a Pomar, referentes a uma suposta responsabilidade direta sua na descoberta da casa da lapa.

Por outro lado, paradoxalmente, continuam em voga algumas hipóteses sobre mudanças do pensamento de Pomar a respeito de outras questões que per-maneceram pendentes, ou foram superadas de modo diferente do que ele pensava. Embora sejam hipóteses impossíveis de verificação, podendo ser utilizadas apenas como construções retóricas, elas tentam justificar políticas contra as quais Pomar se rebelava. Para ajudar as novas gerações a conhecerem boa parte da história do desenvolvimento capitalista no Brasil e das dificuldades da luta de classes, seria muito mais coerente fazer a crítica histórica de seu pensamento real, em compara-ção com a realidade de seu tempo.

No final de sua vida, ele teve a coragem de prestar uma sentida e ele-vada homenagem aos que tombaram na guerrilha do Araguaia. Ao mesmo tempo, não vacilou em apontar que uma guerrilha desligada da ação de gran-des massas, e sem base política, estaria fadada à derrota. Tal visão se chocava, então, contra a tentativa de retomar a mesma política de preparação militar desligada da construção de bases políticas de massa. Olhando em retrospecti-va, esta política foi varrida pelas mudanças que sacudiram o Brasil. Mas a maior

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parte do pensamento de Pomar manteve suas condições superiores de adapta-ção à emergência de uma forte classe trabalhadora industrial e aos demais acon-tecimentos que levaram à democratização do país e ao fim o regime militar. Portanto, Pomar merece ser homenageado, no centésimo aniversário de seu nasci-mento, principalmente pelo que foi, fez e deixou escrito para as gerações futuras. Em meio aos cenários de sua época, ele levantou preocupações sobre questões humanas universais, como a necessidade de caráter e de princípios ideológicos, de estudar as ciências e a realidade concreta das sociedades humanas, em especial da sociedade brasileira, e de obter cultura para servir ao povo e à classe trabalhadora, e não para deleite próprio. E sustentou, principalmente, a necessidade de evitar a tendência de erigir pessoas e grupos heroicos como salvadores do povo. Este, tendo à frente a classe trabalhadora, deveria ser encarado como o único capaz de salvar a si próprio e, massivamente, construir uma nova sociedade.

Wladimir PomarRio de Janeiro, agosto de 2013

Apresentação à edição digital 13

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APRESENTAçãO DA 1ª EDIçãO IMPRESSA

A fim de imaginarmos, de forma aproximadamenteprecisa, determinada pessoa, temos antes de mais nada

de estudar sua época, fase em que podemos até mesmo ignorá-la, para depois, a ela retornando, encontrar o maior agrado

na sua contemplação. J. W. goethe, carta a K. F. Zelter, 1828

A ideia de elaborar uma biografia de Pedro Pomar nasceu de caminhos varia-dos e inesperados. Inicialmente, na tentativa, quase imediata, de não deixar que sua morte trágica caísse no esquecimento, com a publicação, em 1980, do livro Pedro Pomar, organizado por luiz Maklouf Carvalho, com uma apresentação feita por mim, depoimentos de Clóvis Moura, João Amazonas, Reinaldo laforgia (Arnaldo Mendez) e uma coletânea de textos do próprio Pomar. Depois, no longo e nem sempre indolor amadurecimento a que fomos forçados, em virtude de comentários esparsos e da historiografia publicada no Brasil, que nos apresentavam um homem diferente do que conhecêramos.

Talvez o primeiro desses comentários, simples e sincero na sua forma, mas agudo em seu conteúdo, tenha sido o de Milton Temer quando me perguntou, numa roda de amigos e companheiros, no final dos anos 1980: “Que diria o velho Pomar se visse o filho como dirigente petista?” A intenção pode ter sido outra, mas aquilo soou a meus ouvidos como “que diria o velho, sectário, mandonista e stalinis-ta Pomar se visse seu filho como dirigente de um partido democrático como o PT?”.

Nos anos posteriores, ao tomar conhecimento paulatino das memórias e re-constituições históricas do Partido Comunista Brasileiro, PCB (o Partido Comu-nista do Brasil, PCdoB, por um viés preconceituoso que às vezes acomete nossos historiadores, ainda não foi objeto de muitos estudos idênticos), fui-me dando conta de que, invariavelmente, meu pai era um homem fora do lugar em pratica-mente todas elas. Não se tratava de nada premeditado, tendencioso ou malévolo, a não ser raramente, mas de desinformação mesmo, de desconhecimento da própria história vivida, em virtude das condições de clandestinidade e de um sistema orga-nizativo que funcionava como espelho deformante da realidade refletida.

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Seja também por isso, seja por outros motivos, meus filhos começaram a pressionar-me para prepararmos uma biografia do avô. Um pequeno projeto foi esquematizado em 1994, mas os custos previstos para as pesquisas e o trabalho de elaboração mostraram-se elevados para as condições em que vivíamos. Embora continuássemos reunindo documentos e entrevistando pessoas que haviam conhe-cido ou convivido com Pomar, não se poderia dizer que isso viesse a levar, mesmo a médio prazo, ao texto que desejávamos.

A partir de 1996, a possibilidade de contarmos com a indenização a que as famílias dos mortos e desaparecidos políticos vítimas da ditadura militar (1964-1985) tiveram direito – pois Pedro Pomar fora assassinado por forças policiais e militares em 16 de dezembro de 1976, no bairro da lapa, em São Paulo – abriu as condições para que acelerássemos aquela atividade e pudéssemos ter a biografia pronta ao se completarem 25 anos de sua morte. Foi o que fizemos a partir do momento em que tal indenização materializou-se, ainda que apenas em parte, isto devido a um processo judicial que contestou a utilização daqueles recursos nos trabalhos de preparação da biografia.

Antes mesmo de empreendermos o trabalho de elaboração propriamente dito, demo-nos conta, mais até do que quando convivemos com Pomar, que a maior parte de sua vida correu paralela e integrada à vida do PCB e, depois, do PCdoB. Pomar não era apenas um comunista revolucionário profissional, no sen-tido de que sua sobrevivência dependia do trabalho partidário e dos recursos pecu-niários daí advindos, mas um ser humano que se dedicava completa e totalmente à perspectiva e à ação de transformar a sociedade e mudar as condições de trabalho e de vida das classes que considerava exploradas e oprimidas pela burguesia e por outras classes dominantes.

A sua vida familiar e a sua vida pessoal eram irremediavelmente, então, subordinadas àquele profissionalismo especial de vida, lampejos que emergiam de sua vida comunista, mas que também estavam iluminados por ela. Em Pomar não é possível distinguir um “lado político” e um “lado humano”. O seu ser po-lítico era impregnado de humanismo: talvez por isso fosse tão apegado a goethe, Shakespeare e Marx, aos quais nada do que é humano lhes era indiferente. E o ser humano de Pomar era um ser político, no qual chocavam-se, harmonizavam-se, dissolviam-se e amalgamavam-se as qualidades e defeitos de sua época, de seu povo e de seu partido.

Em tais condições (e buscando seguir a recomendação de goethe que consta da epígrafe acima), enveredamos pela história do PCB e do PCdoB, os partidos de Pomar, ao mesmo tempo um e vários outros. E caminhamos por longos trechos da história de nosso país e de nosso povo, assim como das influências externas

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que agiam sobre eles, na esperança de compreender a época, as possibilidades e os limites que condicionavam os sonhos, a vida e as ações de Pomar.

Foram inúmeras as pessoas que me ajudaram nessa tarefa, concedendo entrevistas, transmitindo informações, fornecendo documentos, sem os quais provavelmente não teríamos tido condições de trazer à luz várias das facetas que compunham a personalidade de nosso biografado.

Deixo registrados meus agradecimentos aos antigos militantes comunis-tas Apolonio de Carvalho, Armênio guedes, Carlos Alberto Ferrinho, Carlos Aveline, Davi Rosenberg, Jorge lemos, Joseph Schneider, luiz Vergatti, Ma-noel Costa e Maurício Caldeira Brant, pelas entrevistas que concederam; a Carlos Eduardo Carvalho, Fernanda Coelho, Horácio Martins de Carvalho e Mariaugusta Caio Salvador, por nos fornecerem memórias escritas; a Antonio Draetta, pelas fotografias que cedeu.

Minha gratidão se estende aos paraenses de Óbidos, Santarém e Belém, que muito ajudaram o autor. Adelson Moraes, Antonio Araújo Aquino, Cha-guita Pantoja, Dantas Feitosa, Edmilson Rodrigues Brito, Haroldo Amaral de Souza (que nos cedeu a correspondência de Pedro e Roman e diversas foto-grafias), Haroldo Tavares da Silva, Heráclito Andrade, João Augusto Picanço Farias, João Oliveira, José Figueiredo, José Figueiredo D’Assumpção (Zeca), Manuelina Araújo Aquino, Olavo Marinho, Orlandina Ferreira (Dinoca), Oziel Martucelli, Paulo André Barata, Rochele Ferreira Martucelli, Waldir de Azevedo Bentes e Pery Araújo Filho (Perizinho, falecido em 2001).

Sou grato, ainda, a João Candido Portinari e ao Projeto Portinari, pela colaboração valiosa e espontânea; ao militante comunista e ex-deputado lucia-no lepera; aos pesquisadores Marcos Del Roio e Paulo Fontes, pelas sugestões; a Plínio de Arruda Sampaio, por seu depoimento; a Rogério Yamamoto, por sua ajuda na preparação da iconografia; à jornalista Rosa Maria de Paiva leal, pela pesquisa nas Cadernetas de Prestes; aos funcionários do Museu de Piura (Peru), em especial a Juan Zurita; a Teresa luna Revoredo de Cossio e luis Cossio Marino, pela hospitalidade; a Carmen Souza, Hélio Campos Mello, Nair Benedicto, Samuel Iavelberg e Vladimir Sacchetta, pelas fotografias que enriquecem este trabalho.

Sem a colaboração voluntária de Pedro Estevam, Vladimir Milton, Valter e Rachel Pomar dificilmente teria sido possível realizar as pesquisas necessárias ao trabalho e corrigir muitas das imprecisões dos rascunhos originais.

Sem os documentos da polícia política e dos serviços militares de infor-mação, colocados à nossa disposição pelo Arquivo do Estado de São Paulo e pelo Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, e sem o relativamente rico

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acervo bibliográfico já existente no Brasil sobre os movimentos sindicais, po-pulares e sobre os comunistas, dificilmente teria sido possível tentar a pintura dos cenários de época.

De qualquer modo, cabe apenas ao autor toda a responsabilidade pelas interpretações decorrentes. Só espero que os leitores saibam perdoar os possíveis deslizes filiais num trabalho em que, para ser inteiramente isento, o autor deveria manter distanciamento adequado em relação a seu objeto de estudo.

Wladimir Pomar Rio de Janeiro, 25 de setembro de 2001

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1 NUNCA ESTÁS SÓ COM O POVO MIÚDO

Os vestígios de meus dias, na Terra passados Nem em milênios poderão ser apagados.

J. W. goethe (Fausto)

1976, São Paulo: dezembro, noite do dia 11 1973-1974, Brasil. A gente crê que empurra, e vai sendo empurrada

Mário seguia alerta pelas ruas da Vila Mariana, na parte que descambava para o Parque do Ibirapuera. Sempre gostara de manter seu escritório por ali. Por um lado, a iluminação era insuficiente, fazendo com que todas as pessoas parecessem pardas, como gatos matreiros esgueirando-se pelas sombras. Por outro, havia uma boa mistura de sobrados residenciais e pequenas casas de comércio, com muita gente circulando pelas ruas, principalmente no horário que ia das seis até oito e meia, nove horas da noite. Alguns, apressados, talvez ansiosos para chegar logo em casa, ou atrasados para algum encontro, nem sequer olhavam para os lados. Outros, simplesmente passeando, fazendo hora para algum programa mais tarde, como ele próprio, ou indo para um bar, beber uma cerveja e bater papo com os amigos.

Sentia-se mais seguro onde havia mais gente. Preferia andar de ônibus, ou trafegar no meio dos aglomerados humanos, como uma sardinha no cardume. Mas não se permitia baixar a guarda e, como um coelho arisco, arriscava olhadas rápidas para verificar se estava sendo seguido ou observado. Nos seus sessenta e três anos, Mário vivera pelo menos trinta e dois na clandestinidade, nos subterrâneos da vida política, como militante comunista. Agora, no final do ano da graça de 1976, vivendo em São Paulo, quase como um náufrago solitário em mar revolto, atravessava um dos períodos mais difíceis e cruciais de sua existência. Tinha que selecionar cuidadosamente os encontros com outros companheiros, em pontos de rua, escritórios itinerantes, durante os quais conversava o essencial.

Pressentia o cerco apertar-se. Sua organização, o Partido Comunista do Bra-sil (PCdo B), transformara-se em alvo preferencial da máquina repressiva do gover-

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no. Nutria a certeza de que essa máquina, como um triturador ensandecido, esta-va determinada a destruí-los. No começo, a repressão política os considerou um grupo inexpressivo, sem muito peso no universo das organizações revolucionárias. Depois, dera-se conta de que o PCdoB, com a guerrilha do Araguaia, fora capaz de pregar um susto inesperado ao regime. E passara a desmantelá-lo por partes, ao mesmo tempo que liquidava as demais. Até o ponto em que já não havia muita coisa a destruir entre as organizações clandestinas de oposição à ditadura e, do partido que ajudara a reorganizar em 1962, restara muito pouco.

Considerava-se condenado à morte. Não, não era uma simples suposição. Em 1968, recebeu um recado claro e direto de um militar de alta patente do Exército:

– Saiam do país, não haverá contemplações, nem prisioneiros. De lá para cá, as quedas e os assassinatos de militantes das organizações

clandestinas, mesmo daquelas não envolvidas com a resistência armada, vieram num crescendo. Mal ou bem, com as medidas de segurança e com a decisão de não cometer ações armadas urbanas, muito menos assaltos a bancos, que amea-çavam transformar-se em simples banditismo, seu partido não sofrera golpes profundos por algum tempo. Mas, desde 1972, após os organismos de repressão militar e policial descobrirem que o partido preparava, de fato, a guerrilha rural, eles descarregaram sua fúria, como uma avalanche destruidora, sobre a parte da direção que se encontrava nas cidades, enquanto realizavam suas campanhas militares contra os guerrilheiros.

Cortavam a cabeça para liquidar o corpo. Os órgãos de repressão tinham uma longa experiência e uma incomparável folha corrida de degoladores, que atravessava a história. Mário lembrou-se dos bandeirantes mercenários contra os quilombolas, do esquartejamento do Inconfidente mineiro, do enforcamento dos alfaiates insurretos e do fuzilamento dos padres confederados nordestinos. Reme-morou as cabeças cortadas dos balaios e cabanos do norte, dos paraguaios, dos federalistas gaúchos, e dos camponeses de Canudos, Contestado e Pau de Colher. O assassinato de posseiros em Porecatu e Trombas-Formoso era apenas a conti-nuidade histórica de uma prática que vinha da época colonial. Com a ditadura militar, voltara a ser transformada em política terrorista de Estado.

Na razia desencadeada, em pouco mais de um ano os aparelhos de repressão prenderam um grande número de militantes e praticamente a metade do Comitê Central (CC). Abateram, sem qualquer contemplação e sob torturas terríveis, Da-nielli, lincoln, guilhardini, Frutuoso e Bicalho Roque. No Araguaia liquidaram o Maurício e mais de sessenta companheiros, alguns muito jovens. Da sua geração, ainda vivendo clandestinamente no país, haviam sobrado o Cid, o Rui e ele. Jota e Valdir eram da segunda geração, que também já sofrera um bocado de baixas. As medidas de proteção que haviam adotado mostraram-se ineficazes, incapazes de proteger o partido do sistema de extorsão de confissões sob torturas brutais.

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O diabo, pensava, é que havia companheiros aferrados à ideia de que a fúria repressiva era apenas sinal da fraqueza do regime. Para eles, bastaria reorganizar o dispositivo militar, numa região favorável, para espalhar o incêndio revolucionário pelos cerrados, florestas e cidades. O “milagre econômico” e a derrota do Araguaia não lhes ensinara nada. Cid e Jota, mesmo por motivos diferentes, teimavam em não aceitar a influência política do “milagre” e em não reconhecer o significado da derrota no sul do Pará. Achavam que as condições objetivas para o desencadea-mento da luta armada, como uma fruta que chega ao ponto de ser comida sem o travo da cica, continuavam maduras. No caso do Araguaia, aceitavam apenas a existência de erros militares e táticos, facilmente evitáveis no futuro. Queriam começar tudo de novo, do mesmo jeito.

O Rui, por seu lado, recusava-se a sair do Rio de Janeiro e podia cair a qual-quer momento. Seu dispositivo era um queijo suíço, com mais furos que ralador de mandioca. No Rio de Janeiro foram paulatinamente desbaratados o Comitê Marítimo, o pessoal que formou a Ala Vermelha, a União da Juventude Patriótica, o Comitê Rural, até descerem a espada sobre o Comitê Regional leste e liquida-rem com vários membros do Comitê Central. Mesmo assim, o Rui ainda jurava de pés juntos que estava seguro. E o Cid, para fazer média, ainda concordava com ele.

O pessoal da AP (Ação Popular), que se incorporara ao partido há pouco, era um bom reforço humano. Mas também vinha de uma série de perdas e divi-sões, pegara o bonde do partido andando e se desconjuntando, e tinha dificuldade em situar-se no debate interno. Não, não estava fácil implantar uma política para proteger a organização. Tinham que definir uma nova tática geral, transmiti-la rapidamente a todos que haviam restado e, no trabalho de organização, fingir-se de morto, ligar-se e incorporar-se à vida e ao cotidiano do povão, se dispersar, e evitar ajuntamentos por um longo período, para não sofrer golpes, e sobreviver.

Não dava mais para fazer reuniões como a que teriam nos próximos dias. Mas como evitá-las antes de definir a política? E como definir a tática sem com-pletar a avaliação crítica do Araguaia, que já ia para dois anos? Era uma roda-viva e Mário pressentia que acabariam caindo antes de conseguir tais definições.

E Santa, sua mulher, como ficaria? Sobreviveria? Tivera que pinçar as caró-tidas para evitar o rompimento do aneurisma cerebral, sem qualquer garantia de sobrevida. O médico falara em um mês! três! seis! Um ano? Quem sabia? Podia perdê-la a qualquer momento. Não teria mais a companheira que estivera sempre com ele, havia mais de quarenta anos. Primeiro, cheia de vigor, entusiasmo juvenil e muito amor. Depois, com um crescente travo de amargura por não entender as divisões e as injustiças internas. Em hipótese alguma a deixaria nessa situação para se ausentar do país e ir à Albânia e à China, como a direção acertara. Cid tivera que se curvar à evidência e, mesmo a contragosto, ir em seu lugar. Fora difícil conseguir outro passaporte e montar o esquema de saída, mas afinal funcionara.

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Mário notou que estava adiantado para o ponto de encontro. O jeito era continuar andando, olhando vitrinas como pássaro ciscando em busca de miga-lhas, testando se não arrastava nenhum rabo estranho e divagar sobre os perigos que os rondavam. Quanto mais o ditador de plantão falava em distensão, mais tenazmente o sistema militar aplicava a política de limpar o terreno, varrendo dele os líderes da oposição revolucionária. Tornara-se uma constância a eliminação e o desaparecimento das lideranças clandestinas que haviam restado após a matança promovida por Médici.

Militantes da AlN (Ação libertadora Nacional) foram fuzilados num cam-po de futebol em goiás, na presença de todo mundo, sob a justificativa de que eram terroristas. Ninguém sabia onde estavam presos Honestino, Wright e ou-tros dirigentes da Ação Popular Marxista-leninista. lamarca havia sido fuzilado e Onofre e os demais dirigentes da VPR (Vanguarda Popular Revolucionária) esta-vam desaparecidos. Com certeza haviam caído e sido liquidados. O partido tivera o cuidado de alertar a VPR sobre o trabalho policial do Anselmo. Arruda conver-sara com Onofre no Chile, mostrara por a + b que o Cabo era agente infiltrado, mas ele simplesmente não quisera ouvir.

O mesmo ocorreu com o Partidão, o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Não quis nem conversar sobre o fato de que a guerra suja do regime não era apenas contra os grupos armados, mas contra todos os que se opunham, até frouxamen-te, ao regime. Acreditou na conversa do golbery e no anúncio da distensão, sem compreender que ela se destinava a consolidar o domínio dos grupos no poder por meio da democratização entre eles, mas não da democratização geral. Assim desa-pareceram Capistrano, Maranhão, Massena, Hiran, Elson, Nestor Vera e Bonfim, todos companheiros com quem militara durante muitos anos. Rui Frazão, que viera da AP para o PCdoB, recebera o recado das quedas que o punham em peri-go, mas não acreditou que corria perigo iminente. Pegaram-no em plena feira de Petrolina, na frente de várias testemunhas, e desapareceram com ele.

As direções das organizações revolucionárias estavam sendo ceifadas de seus quadros mais experientes, com uma meticulosidade digna dos matadores em série, uma espécie de solução final para impedir que desempenhassem qualquer papel ativo na reorganização popular e de esquerda, caso o regime militar tivesse que recuar. Calculava que já deveriam existir mais de trezentos militantes abatidos, dos quais somente uns cinquenta em combate real. Os demais haviam sido aprisio-nados e, após torturas e sevícias, assassinados. Muitas famílias não tiveram nem a chance de resgatar os corpos de seus entes.

Mário sempre acompanhara com atenção as notícias e informações sobre quedas, não só do partido, mas das demais organizações clandestinas. Ainda man-tinha contatos sigilosos com amigos e simpatizantes de velha data que trabalhavam na máquina pública e, em alguns casos, até mesmo muito próximos dos sistemas

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de informação. Não os abria para ninguém e, quando era inquirido sobre a fonte da informação de quedas, torturas e assassinatos, simplesmente respondia:

– Alguém falou para um companheiro. Realizava, então, esforços até temerários para que essas informações fos-

sem tornadas públicas e para que as instituições que ainda possuíam condições de atuação legal fossem avisadas e procurassem fazer alguma coisa em defesa dos presos. Pressionava os membros do partido no exterior a informar os exilados e suas organizações sobre quedas ou problemas de infiltração policial. lia com aten-ção as cópias dos processos dos presos políticos preparados em cartório, mesmo entendendo que ali só se encontrava uma parte do que a máquina repressora sabia. E ficava cada dia mais apreensivo com o fato de que a ditadura conseguira fazer um mapeamento minucioso de todas as organizações revolucionárias, inclusive de seu partido. Pouco adiantaram os alertas de que se tratava de uma guerra em que as convenções humanitárias nada valiam. O que sobrara estava por um fio.

Apesar de tudo, também nunca estivera tão esperançoso. Os milicos haviam acreditado em seu próprio “milagre econômico” e prometido um Brasil Potência. Mas um e outro assemelhavam-se mais a uma tempestade e a um pesadelo de verão. A produção industrial e a produção bruta do país ainda eram elevadas mas, como as marés, estavam em refluxo. A construção civil, com o dinheiro do Fundo de garantia dos Trabalhadores transformado em créditos do Banco Nacional de Habitação (BNH), multiplicara os apartamentos de luxo e as moradias para as classes médias, arrastando o crescimento das indústrias de material de transporte, material elétrico e de bens duráveis. Isso havia impulsionado a siderurgia, a meta-lurgia, a mecânica, a construção naval e aeronáutica, a química.

De trambolhada com a conquista da Copa do Mundo de 1970, a propagan-da oficial levou o povão a crer que o crescimento desses setores, de 15%, 20% ou mais ao ano, seria para sempre. Estariam, então, criadas as condições para distri-buir entre todos o bolo da riqueza. Primeiro crescer, depois distribuir, foi o mote cunhado pelo czar da economia, Delfim Netto, e repetido sem cessar. E muita gente depositou sua fé nesse milagre, ignorando o que se passava com as indústrias produtoras para o mercado de baixa renda, como a têxtil, a de produtos alimenta-res, a de vestuário e a de calçados, que cresciam bem mais devagar e, mesmo assim, porque exportavam grande parte da produção.

A propaganda do Brasil Potência só falava da transformação do Brasil de país exportador de produtos primários para um potente exportador de manufa-turados. De importador de carros, navios, aparelhos domésticos, havíamos nos tornado produtores e exportadores de tudo isso. Como acreditar que o futuro não era risonho?

Por trás dessa propaganda escondia-se uma realidade pouco lisonjeira. As importações de manufaturados estrangeiros haviam aumentado muito, uma de-

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monstração de que o país não produzia bens de produção e nem dominava todas as cadeias produtivas e tecnologias necessárias. Nosso crescimento dependia, em grande parte, do endividamento externo e dos investimentos estrangeiros. Se estes falhassem, estaríamos em maus lençóis. Haviam se tornado necessários como as sanguessugas, que aliviam os doentes, mas podem levá-los à morte.

O poder aquisitivo do mercado de baixa renda, formado pelos trabalha-dores sem qualificação profissional e pelos migrantes desamparados do campo, com salários comprimidos ou simplesmente sem salários, era uma miragem. O povo que inchava as grandes cidades mal conseguia comprar o que necessitava para comer. Somente os trabalhadores especializados e as classes médias instruídas conseguiam salários razoáveis para participar do mercado, comprar bens duráveis e completar a imagem de uma economia pujante e em expansão.

A maioria dos trabalhadores e das camadas populares amontoava-se em fa-velas e periferias urbanas e vegetava na miséria, aguardando a repartição do bolo, na suposição de que a ditadura iria realizar o milagre da multiplicação dos pães. Quanta ilusão! Até Médici, num desses momentos de lucidez que às vezes acomete os tiranos, reconhecera que a economia ia bem, mas os pobres estavam mal.

Mário não se conformava com a incapacidade da oposição, tanto a clandes-tina quanto a consentida, de desmascarar a teia de ilusões construída em torno do milagre econômico brasileiro. Por isso, quando a crise do petróleo de 1973 se aba-teu como uma tormenta sobre os fluxos de capitais e levou os países importadores do ouro negro, como o Brasil, a se confrontarem com fortes desequilíbrios em suas balanças externas, vislumbrou que os panos coloridos que encobriam a economia brasileira seriam descerrados.

– No Brasil, sempre que há crise e os de baixo não têm força, são eles que pagam a conta. lembram do acordo de Taubaté?, dizia, rememorando como os la-tifundiários socializaram as perdas do café com o restante da sociedade, enquanto se apropriavam dos ganhos.

Na crise de 1973, os principais índices mundiais entraram em convulsão e, em 1974, o crescimento das nações capitalistas desabou. As exportações dos países industrializados caíram, enquanto as dos subdesenvolvidos declinaram ainda mais. Em compensação, os exportadores de petróleo acumularam saldos superiores a 500 bilhões de dólares. Não querendo investir essa dinheirama na industrialização de seus próprios países, nem deixá-la ser corroída pela inflação mundial, entrega-ram-na de mão beijada ao sistema financeiro internacional, que a transformou em petrodólares para serem emprestados a juros aparentemente atrativos. Os Estados Unidos, que estremeciam com déficits descomunais, lançaram no mercado inter-nacional títulos do seu Tesouro, como quem joga confete em dia de carnaval, cap-tando boa parte do dinheiro em oferta no mundo. Conquistaram, assim, o poder de exportar sua inflação, por meio do controle dos próprios juros.

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Já a economia brasileira, em 1973, tivera um déficit de mais de 1 bilhão de dólares em sua balança de pagamentos. Ao mesmo tempo, vira a inflação retor-nar, com os preços se elevando, e perdera a capacidade de continuar importando máquinas e equipamentos indispensáveis ao crescimento da produção. Diante do naufrágio iminente, o Estado militar se aferrou à oferta de petrodólares, não só como uma boia de salvação, mas como o novo rebocador capaz de levar o projeto Brasil Potência e os lemas “Brasil: ame-o ou deixe-o” e “Pra frente, Brasil” a seu destino manifesto. Como o visionário que acredita na materialidade do que a própria mente produz em sonhos, transformou a boia em superpetroleiro e supôs poder continuar ditando os rumos da economia, decidir a vida e a morte das em-presas, definir os setores que deviam ou não ser beneficiados pelos investimentos e subsídios e determinar os privilegiados do “milagre”.

Sua burocracia tinha à frente militares acostumados a vencer jogos de guer-ra, que se concebiam infalíveis na condução de homens e coisas. Eram eles que dirigiam as empresas estatais e ocupavam as quase quatro centenas de postos mais importantes do país. Por meio de sua hierarquia verticalizada, tinham olhos e ou-vidos em todos os órgãos públicos e empresas estatais, suas divisões de segurança e informação, sem cujo aval ninguém era admitido e, por seu despacho, muitos eram demitidos, na melhor das hipóteses. Essa imensa rede de espionagem e re-pressão, a “comunidade de informações”, transbordava suas malhas para toda a sociedade, por intermédio de 250 mil agentes e cerca de 1 milhão de colaborado-res, para manter o comandante em chefe, o general de plantão na Presidência da República, a par dos acontecimentos e a salvo de surpresas alienígenas.

Apesar disso, ainda durante o governo Médici, que preferia ser conheci-do como O Sanguinário em lugar de O Benevolente, começaram a aparecer os primeiros sinais de resistência popular, paralela à resistência armada. Setores da Igreja, remanescentes de grupos de esquerda, e também setores das organizações clandestinas, passaram a realizar um trabalho de conscientização e de organização nas fábricas, nos bairros urbanos e nas zonas rurais. Os sindicatos de trabalhadores rurais se disseminaram ainda mais. Surgiram ações populares contra os salários achatados, o custo de vida e a falta de liberdade sindical. Multiplicaram-se as “ope-rações tartaruga” e outras formas de pressão dos trabalhadores. Mário se animava com todas e estimulava seu partido a participar delas, integrar-se com as camadas populares e avançar à medida que a estratégia do regime militar mostrasse suas debilidades e suas distorções.

Membros do partido começaram a participar de diretorias sindicais, comuni-dades de base e associações populares de diversos tipos, num trabalho de longo prazo. Mário também estava convencido de que as medidas adotadas pelo governo geisel para superar os desequilíbrios da economia e completar a indústria de base do país eram muito vulneráveis aos ventos internacionais e acabariam agravando a situação do país.

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Duvidava que os investimentos do II Plano Nacional de Desenvolvimen-to em infraestrutura, exploração petrolífera, mineração, indústria petroquímica e siderurgia renovassem a pauta de importações e exportações e fossem capazes, ao mesmo tempo, de abastecer o mercado interno, eliminar a escassez e compe-tir no mercado internacional. O endividamento externo, de 5 bilhões de dólares em 1973, 12 bilhões em 1974 e provavelmente 24 bilhões em 1976, tornaria a carga do petroleiro Brasil maior do que o peso líquido de sua estrutura, acaban-do por afundá-lo.

Também tinha a sensação difusa de que a burguesia, a nativa e a estrangeira, parecia haver se dado conta de que o “milagre” se esgotava e de que teria prejuízos com os privilégios que o governo militar de plantão propiciava ao setor estatal. Acostumada a privatizar os lucros, essa burguesia não gostara de ver as grandes esta-tais receberem os principais investimentos do plano de desenvolvimento e poderem se transformar em corporações com capacidade de disputar o mercado internacio-nal. Eugênio gudin, um inatacável para os homens do regime, verbalizou com con-tundência as preocupações burguesas diante da estatização crescente da economia.

E foi além. Exigiu que as Forças Armadas retornassem à sua tradicional con-dição de Poder Moderador, uma experiência legada por Pedro II, e devolvessem ao Poder Judiciário as garantias de inteira independência, com o restabelecimento da vigência dos direitos fundamentais. Admitia que se promulgassem leis eficazes de salvaguarda do regime, mas contra os subversivos, não contra as elites dirigentes, que deveriam ter participação entre os responsáveis pelo poder e pelas decisões e rumos do país. Em consequência, participação proporcional nos investimentos financiados pelo Estado.

Mário ficou impressionado com o vulto da campanha de gudin contra a estatização e de sua repercussão entre os setores empresariais e a imprensa. Era de uma hipocrisia pura. Sem a estatização, a burguesia não teria tido o “milagre”, nem teria se aproveitado dos lucros que ele proporcionara aos setores privados. Então, essa grita era sinal de que a crise deveria ser mais profunda do que aparentava. Mas não acreditava que a elite endinheirada chegasse às vias de fato com os militares. Como sempre, eles chegariam a algum tipo de conciliação por cima, a um acordo oligárquico, cuja conta os pobres deveriam pagar, de uma forma ou outra. geisel, com sua distensão, estava disposto a ceder algo na política. Como dissera, podia aumentar a participação das “elites responsáveis”, mediante um “gradual, mas se-guro aperfeiçoamento democrático”, que conduzisse a um consenso básico e à “institucionalização acabada dos princípios da revolução de 1964”.

Prometera, então, transformar os instrumentos excepcionais permanentes de segurança em instrumentos potenciais de ação repressiva ou de contenção, até que fossem “superados por salvaguardas eficazes dentro do contexto constitucio-nal”. Não parecia disposto, porém, a ceder na economia. Dava sinais de que julga-

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va a burguesia imediatista, com seu hábito de satisfazer-se ou desgrenhar-se com o lucro ou o prejuízo do dia, sem enxergar os cenários de longo prazo. Não a su-punha, pois, capaz de completar a industrialização nem de enfrentar a conjuntura que se armava no mundo.

Havia guerras no Oriente Médio e no sudeste da Ásia, a aceleração dos preços do petróleo, as tentativas norte-americanas de sair da decadência econô-mica e aumentar seu poder de concorrência no mercado internacional, a queda dos preços das matérias-primas e o aumento dos excedentes financeiros. Para o prussiano geisel, somente com uma determinação férrea e centralizada, típica do estilo militar, seria possível conduzir a economia e enfrentar com sucesso todas as turbulências já em curso.

Mário achava que o regime não iria além dessas promessas e que a burguesia se reacomodaria com algumas migalhas, mas mudou de opinião quando viu os resultados das eleições de novembro de 1974. Percebeu que as urnas haviam mos-trado não só uma divisão mais profunda das forças no poder, mas principalmente uma agradável propensão popular para votar contra o regime, à medida que ia fi-cando claro que o “milagre” só beneficiara alguns, deixando a maioria em situação pior do que se encontrava antes.

As pessoas começavam a enxergar que as cidades haviam inchado, em vez de crescer, com os mais de 25 milhões de camponeses expulsos dos campos. Os trabalhadores sentiam que trabalhavam mais para comprar a mesma feira que fa-ziam anos atrás. As epidemias, que se alimentavam da miséria, multiplicavam-se, espalhando a apreensão e o medo. Durante um bom tempo a propaganda realizou o milagre de enganar a maioria, mas as eleições legislativas daquele ano tinham mudado os ventos. Até candidatos da Aliança Renovadora Nacional (Arena) pro-curaram mostrar-se de oposição, fazendo discursos radicais contra os militares.

O PCdoB tomara a decisão de apelar ao voto nulo, que afinal chegara a 6 milhões, mas não era realista deixar de reconhecer que candidatos ao Senado, desconhecidos até então, como Orestes Quércia e Álvaro Dias, que atacaram aber-tamente a ditadura, levaram o MDB (Movimento Democrático Brasileiro) a ter uma votação bem superior à da Arena. Naquele mesmo ano, uma oposição sin-dical, com participação de liberais e esquerdistas, vencera as eleições no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo. Então, já não era só a esquerda revolucionária que estava na oposição e se movimentava.

Apesar disso, as evidências eram muito confusas. Pressionado pela burgue-sia e também pela surda resistência popular, o poder militar ainda prometia dis-tensão. Por outro lado, ao longo de 1975, além de continuar a caça implacável aos militantes clandestinos, eliminando muitos deles fisicamente, usava de toda a truculência contra a oposição liberal e legal. Cassou o mandato de parlamenta-res, demitiu ou aposentou juízes e funcionários do Judiciário, anunciou o fim da

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política de distensão e declarou abertamente que a democracia era uma fórmula ultrapassada e inadequada para o Brasil. Procurava mostrar, assim, que a oposição tivera forças para vencer uma eleição, mas não as tinha para mais nada.

Cometeu, porém, não só um sério erro de avaliação, como um ato que demonstrava curtos-circuitos na sua cadeia de comando. No arrastão de assas-sinatos e prisões de dirigentes do PCB, em outubro de 1975, o Destacamento de Operações de Informações - Centro de Operações de Defesa Interna (DOI--Codi) suicidou Vladimir Herzog. O velório do jornalista transformou-se num movimento de protesto. Personalidades da oposição, dos mais diferentes cantos do país, deslocaram-se para São Paulo de forma espontânea e destemida. O culto ecumênico da catedral da Sé reuniu milhares de pessoas, apesar da pressão poli-cial, na primeira manifestação urbana de massa, após a decretação do Ato Insti-tucional no 5 (AI-5). Em novembro, 1.004 jornalistas assinaram um manifesto denunciando as absurdas conclusões do inquérito policial-militar que tentava corroborar a versão do suicídio.

Tornava-se claro que setores amplos das classes médias e da intelectuali-dade pareciam haver perdido o medo do monstro repressor. Este, em tais condi-ções, para continuar com sua ditadura, teria que prender e matar aos milhares, não mais seletivamente. E isto poderia ter consequências difíceis de prever. Nova morte no DOI-Codi de São Paulo, desta vez de um operário, Manoel Fiel Filho, só fez aumentar o isolamento do regime e o tom dos protestos contra as torturas e os assassinatos. geisel viu-se obrigado a demitir o comandante do II Exército, o duro Ednardo D’Ávilla Mello, e colocar em seu lugar o general Dilermando gomes Monteiro, com a promessa de dar um basta às ações descontroladas da comunidade de informações e repressão.

Mário não se iludia. O pecado do DOI de São Paulo não fora ter assassi-nado mais dois subversivos do PCB. Fora haver liquidado dois militantes que não ocupavam posição de direção. Pior, no caso de Herzog, um militante que tinha uma inserção profissional e social cuja eliminação causaria problemas com os quais o regime tinha dificuldades crescentes em tratar. Era justamente isso que geisel não perdoara em Ednardo. Uma falta de controle e de afinação com seu plano estratégico de limpar o terreno de forma estudada e seletiva.

Assim, antes que o movimento político de contestação ao regime se am-pliasse, que o general de plantão fosse obrigado a convocar uma Constituinte, decretar a anistia aos presos políticos e revogar a lei de Segurança Nacional, e que fosse desmontado o Serviço Nacional de Informações (SNI) e o aparelho de repressão política, o partido não poderia nem pensar em depor as armas. O inimigo não ia mais tão bem das pernas e não poderia continuar dominando por muito tempo da mesma forma, mas ainda era suficientemente forte para causar prejuízos incalculáveis.

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O mais importante, nessas condições, era salvaguardar o partido, fazê-lo incorporar-se ao movimento operário, popular e democrático, colocá-lo numa situação em que pudesse interferir positivamente no novo movimento social e político que despontava no país. A luta armada seria determinada por esse curso, e não por dispositivos conspirativos. Por que era tão difícil entender isso?

A noite era fresca e propícia a essas divagações, embora já estivessem em dezembro. Imerso em seus pensamentos, Mário não deixava porém de realizar as paradas necessárias, olhar as vitrinas decoradas para o Natal, ler as manchetes dos jornais e revistas pendurados nas bancas, e vasculhar as ruas com os olhos. Corpo esguio e ereto, com os ombros levemente recurvados, ele usava o mesmo terno surrado de sempre. Uma boina preta cobria a cabeça calva. Paradoxalmente, mantinha a elegância dos que, mesmo empobrecidos, jamais perdem a postura. Olhando-o, ninguém pensaria que ali estava um homem procurado e jurado de morte pelo regime militar.

Porém, ao contrário dos míopes vaidosos, que nunca usam óculos diante do espelho, não se deixava enganar por sua aparência. Dava volteios, prestava atenção nas pessoas e nos carros, procurava indícios de que alguém acompanhava seus pas-sos, fazia de tudo para certificar-se de que estava realmente com a retaguarda livre, sem rabo. Nos últimos anos redobrara as precauções.

À medida que se aproximava do ponto em que deveria encontrar Maria, para ser levado ao aparelho da reunião, ficava ainda mais atento. Não se permitia descuidos. Entrou pela rua Humberto I e foi se aproximando da quadra que fazia esquina com a avenida Rodrigues Alves. Maria deveria estar vindo em sentido con-trário. Certo, lá vinha ela. Parou ao ver o gesto de que estava tudo bem. Começou a voltar devagar sobre os próprios passos até que ela o alcançou e seguiram juntos, sem qualquer palavra, para pegarem o carro algumas esquinas adiante.

Somente ao entrar e sentar-se no banco de trás, Mário saudou Maria e Jaques, o motorista. Fechou então os olhos, como fazia sempre, entregando-se totalmente aos cuidados dos dois.

Nunca estás só com o povo miúdo 29

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2 POSSANTE É A lEI, NECESSIDADE O É MAIS

Cercada de perigos é assim a vivência Dessas crianças, adultos e velhos a se agitar.

J.W. goethe (Fausto)

1976, São Paulo, dezembro: noite do dia 11 1913 e antes, Pará: os tempos passados

A clandestinidade tinha algumas regras de ouro, invioláveis. Casas uti-lizadas para reuniões, os aparelhos, principalmente das direções, apenas eram conhecidas pelo dirigente responsável e pelos que nela moravam, os caseiros. Os demais, sem exceção, não deveriam saber sua localização. Eram conduzidos de olhos fechados, e de olhos fechados eram retirados do carro até se encontrarem dentro do imóvel. A confiança era, então, total. Cada um que fosse levado a algum desses aparelhos, como um cego conduzido por um São Bernardo, ficava completamente à mercê das medidas de segurança adotadas pelos companhei-ros que conheciam o trajeto e a casa.

Mas, como tudo na vida, havia um outro lado. Tanto os responsáveis pelo aparelho, quanto os que eram levados para lá, dependiam da atenção e dos cuida-dos que cada um destes últimos, como uma raposa perseguida por cães, empregava em seu deslocamento para encontrar-se com os que o transportariam para a casa. Vários aparelhos haviam caído, ou foram estourados, como comunicava a ditadura, por descuido de camaradas que foram seguidos e permitiram, sem notar, sua loca-lização pelos órgãos da repressão política. Quanto mais esta apertava seus cravelhos contra as organizações do partido, mais difícil ficava manter os aparelhos e maior deveria ser a prevenção com a segurança dos militantes.

O aparelho para o qual Mário estava sendo levado pertencia à direção cen-tral do partido e estava sob a responsabilidade do Cid, aliás João Amazonas. Era também onde este morava, juntamente com a Maria, nome de guerra de Elza Monnerat; a Mara, aliás Maria Trindade; o Jaques, aliás Joaquim Celso de lima; e o Jota, que vinha a ser Ângelo Arroyo. Maria e Cid desempenhavam o papel

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de donos da casa, enquanto Mara e Jaques o de casal de empregados. Jota não aparecia para ninguém de fora, só saía em casos excepcionais e também ignorava a localização da casa. Sua condição de sobrevivente do Araguaia, caçado como uma onça acuada, exigia cuidados especiais.

Na ausência de Cid, em viagem ao exterior, Mário era o dirigente responsável, mas isso não lhe dava a prerrogativa de romper a regra da clandestinidade. Olhos fechados, ouviu Maria lhe comunicar que todos já haviam entrado, maneira de dizer que todos os que iam participar daquela reunião haviam sido levados do mesmo modo que ele. Ela era sempre a encarregada de conduzir os dirigentes para o aparelho e, terminadas as reuniões, retirá-los de lá e soltá-los em diversos pontos da cidade.

Nos anos 1950, quando só havia um partido comunista como corrente he-gemônica na esquerda brasileira, Maria se notabilizara por praticar alpinismo e ha-ver escrito na pedra lisa do morro Dois Irmãos, no Rio de Janeiro, uma saudação a Stálin. Depois, no início dos anos 1960, quando a maioria da direção do PCB adotou uma linha pacifista de colaboração com a burguesia e mudou o nome da organização para Partido Comunista Brasileiro, ela acompanhou aqueles que ha-viam ficado contra, foram expulsos e refundaram o Partido Comunista do Brasil. Era uma ativista de primeira ordem. Por isso, e por sua fidelidade, fora deslocada para a região do Araguaia, onde o partido preparava o dispositivo militar que servi-ria de suporte para a luta armada rural contra a ditadura. Várias vezes voltara a São Paulo e ao Rio de Janeiro, não só para participar de reuniões da direção como para conduzir, no retorno, companheiros e companheiras que tinham se apresentado como voluntários para os destacamentos armados.

Em abril de 1972, como uma seriema arisca, salvou-se por pouco de ser apanhada na caçada montada pela primeira campanha do Exército no Araguaia. Ela participara da reunião do Comitê Central que comemorou os 50 anos de fundação do partido e retornava ao sul do Pará com dois jovens, Eduardo e Ana, que deveriam integrar-se a um dos grupos. Ao deparar-se com a campanha mili-tar, assistir à detenção de Eduardo numa das barreiras e notar que a área toda fora cercada por tropas militares e policiais, a única coisa que a preocupou foi retornar para avisar o Cid, antes que ele pegasse o ônibus e se deslocasse, sem saber, para a ratoeira montada pelo aparato repressivo da ditadura.

Recomendou a Ana – cujo verdadeiro nome era Rioco Kayano – que achas-se outro meio de voltar a São Paulo, por Belém, e fez a viagem de volta com o co-ração opresso, menos pelo que estaria ocorrendo com os companheiros da região e mais pelo perigo que ameaçava Cid. Ainda teve expediente para aguardá-lo na rodoviária de Anápolis, vindo de São Paulo, e sinalizar para ele, com o gesto roma-no do polegar para baixo, que o Araguaia caíra. Tê-lo salvo nessa ocasião passou a ser o ato de que mais se orgulhava desde então e, sempre que tinha oportunidade, repetia o relato desse fato para os demais companheiros.

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Mário tratava-a com deferência e atenção, como era seu hábito de tratar as pessoas. Mas sabia que ela era daquelas que, fiéis a Cid, pretendiam evitar uma avaliação crítica da guerrilha e uma inflexão profunda do trabalho do partido. Sabia, também, que a exagerada demora em completar esse processo colocava a organização diante de um risco ainda maior. Mas esperava que a reunião da Co-missão Executiva, a realizar-se no dia seguinte, e a do Comitê Central, logo após, representassem um avanço expressivo.

Jaques era o motorista e o faz-tudo. Baixo, seu jeito singelo disfarçava a compleição robusta de sua origem camponesa. Eletricista de profissão, viera do Rio grande do Sul para São Paulo com a tarefa de servir de apoio aos aparelhos da direção. Pegava serviços avulsos quando não havia transportes ou trabalhos do partido, o que o ajudava a manter uma boa cobertura social e ainda contribuía para sua manutenção pessoal. Por sua direção passaram vários carros de segunda mão, que comprava em seu nome e mantinha com zelo. Era ele também que fazia todos os consertos internos da casa, evitando a intrusão de estranhos.

Nas ocasiões em que transportava militantes, invariavelmente dirigia com a cabeça coberta por um boné e, como os famosos macacos da fábula, nada dizia, nada ouvia e nada enxergava em relação aos que conduzia. Só rompia essa regra quando quem estava no carro era um dos dirigentes que o conheciam, como Cid, Mário ou Jota. Mesmo assim, apenas respondia quando era perguntado e rara-mente tomava a iniciativa de dar alguma opinião. Tinha de manter-se sempre alerta para ver se não estava sendo seguido. Aprendera a entrar e sair de ruas que lhe davam uma visão nítida de sua retaguarda e propiciavam a feliz sensação de que tudo estava bem, além de deixar completamente confuso qualquer passageiro que pretendesse, por acaso, orientar-se às cegas.

O carro subiu pela rampa da casa e estacionou ao lado da porta da cozinha. Conduzido por Maria, olhos já abertos, mas mirando o chão, Mário, como sempre, entrou pelo pequeno conjugado que formava a cozinha e a copa, onde Mara os rece-beu com um boa-noite amigável. Era uma gaúcha cujo sangue charrua espelhava-se nos traços do rosto redondo, na tez morena e no olhar permanentemente triste dos descendentes de qualquer povo dizimado. Mário interessou-se em saber como estava, se a saúde estava em ordem, se havia algum problema a ser resolvido. “Não, está tudo bem, não tens com o que te preocupar”, respondeu com seu sotaque característico.

Mário seguiu então diretamente para a sala, através do corredor que dava acesso ao banheiro, ao quarto lateral e à sala frontal. Nesta, entretidos na leitura de textos datilografados, encontravam-se Jota, Rui (na verdade, Jover Teles), Zé Antonio (Haroldo lima) e Dias (Aldo Arantes), sentados num sofá e em duas poltronas de tecido cinza azulado, que rodeavam uma mesa de centro, baixa e comprida. levantaram-se quando notaram a presença do chegante, saudando-o, como de costume, em silêncio.

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Estavam, assim, presentes os cinco membros da Comissão Executiva que iriam participar daquela reunião de dois dias. Fazia tempo que as reuniões da dire-ção do partido, a cada seis meses, contavam apenas com uma parte de seus mem-bros. Em caso de queda – perigo cada vez mais constante no período recente – haveria outra parte a salvo, pelo menos teoricamente, para realizar o trabalho de reorganização. Dessa feita, além de Cid, havia ficado de fora o Resende (Renato Rabelo), que o acompanhava na viagem ao exterior.

As atividades dentro de um aparelho exigiam, mais do que tudo, a norma do silêncio e da discrição. O mundo exterior, os vizinhos, os passantes, não deve-riam notar qualquer som diferente, qualquer movimentação estranha. Como num claustro, nos encontros entre camaradas estava excluída a efusão e, nas reuniões, qualquer debate acalorado ou voz altissonante. Mário acostumara-se a essas regras, mas não se furtava de demonstrar afeição ao cumprimentar os companheiros. Foi o que fez, antes de ir até o quarto, deixar sua pequena pasta e o paletó, e voltar para a sala, trazendo uma cadeira, onde se sentou. Sem preâmbulos, dirigiu-se aos demais:

– Como vocês já sabem, o Cid teve que ficar de fora, em meu lugar. As razões estão ligadas a problemas meus, de ordem pessoal. Sobre a ordem do dia, acho que hoje não precisamos adiantar nada. Veremos isso amanhã. Os documen-tos que estão aí são as opiniões dos membros do CC a respeito da avaliação do Araguaia. Alguma questão?

Rui quis saber se ocorrera algo grave para mudar a composição da reu-nião. Estivera descontatado desde a última, refizera a ligação com o Zecão (Sérgio Miranda, aliás) em cima da hora e não tivera notícia alguma nesse meio tempo. Mário respondeu que não, não houvera nada de grave, simplesmente a impossibi-lidade de ele próprio fazer a viagem programada. Tudo o mais fora acertado com o Cid. Rui assentiu e, como os demais, voltou à leitura.

Mário, porém, ainda permaneceu por bom tempo perscrutando o sem-blante daquele antigo mineiro de carvão e dirigente sindical gaúcho, por mui-tos apelidado de “Príncipe Espanhol”, por seu porte altivo e sua ascendência castelhana. Estava com a fisionomia mais grave do que da última vez que o vira. E deixara crescer uma barba esquisita, que lembrava a de Soljenítsin, embora mais discreta. Teriam que conversar melhor sobre os pontos não cobertos e a situação do Rio de Janeiro.

Há quase dois anos, Mário vinha se empenhando em persuadir Rui sobre a necessidade de ele deslocar-se dali, por segurança. Todas as discussões, porém, ha-viam sido infrutíferas. A Comissão de Organização concordava que a permanência dele naquela região era insustentável, mas Rui agarrava-se, como uma craca, ao argumento de que estava seguro. E não arredava pé. Contava com o apoio de Cid, que buscava aliados a qualquer preço e fazia concessões numa área em que sempre primara por cuidados extremos.

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Só há pouco Cid concordara em rever sua posição, com a condição de que ainda se tentasse um último ponto para fazê-lo participar da reunião da Executiva e do CC. Mário achara uma temeridade mas, quando se deu conta, a ordem para a renovação do contato já fora dada. Ainda não conseguira esclarecer exatamente como isso se passara. Só quando Cid e Resende voltassem seria possível colocar as coisas em pratos limpos. Onde estariam eles agora? Já teriam chegado a Beijing? Ou ainda estariam na Europa? No último bilhete que recebera, informavam já haver saído da Albânia, preparando-se para rumar até a China. Esperavam apenas as passagens. Como eles iriam explicar a derrota do Araguaia para os chineses?

As coisas por lá também não pareciam muito claras, dados os zigue-zagues da Revolução Cultural. Zhu Enlai, primeiro-ministro desde a fundação da Re-pública Popular, morrera no início do ano. Depois haviam ocorrido os confusos conflitos na Praça Tiannamen, em Beijing, e em outros lugares da China, em abril, com manifestantes querendo homenagear Zhu e, ao que parece, protestan-do contra Jiang Qing e outros dirigentes do partido. Deng Xiaoping, que pri-meiro fora destituído do cargo de secretário-geral do Partido Comunista Chinês (PCCh) e, depois, trazido de volta pelo próprio Mao para ser o braço direito de Zhu Enlai, como vice-primeiro-ministro, foi responsabilizado pelos conflitos e não só afastado do governo, como expulso do partido.

logo depois falecera Zhu De, um dos grandes generais da revolução chinesa e um dos mais íntimos companheiros de armas de Mao. E, em julho, acontecera o terrível terremoto de Tangshan, com mais de 200 mil mortos e feridos, quando o governo chinês, a pretexto de demonstrar sua capacidade, não aceitou ajuda humanitária de ninguém. Em setembro morreu Mao Zedong, causando comoção nacional, deixando inacabada a Revolução Cultural e sem definição a sucessão da primeira geração revolucionária do PCCh pela segunda.

Em outubro, Hua Kuofeng, que substituíra Zhu Enlai na chefia do governo e fora indicado pelo próprio Mao como vice-presidente do partido, mandou pren-der Jiang Qing e outros três membros do birô político, aparentemente numa dis-puta palaciana pelo poder. O verdadeiro carnaval que encheu as ruas de Beijing e outras cidades chinesas, com a notícia da prisão do chamado “Bando dos Quatro”, foi surpreendente, principalmente levando-se em conta que quem enchia os pul-mões para proclamar que dirigia as grandes massas eram justamente os dirigentes presos. Nessas condições, o mais provável é que os chineses dessem pouca atenção ao que Cid tinha a contar e se preocupassem mais em dar sua própria versão dos acontecimentos internos.

Cid viajara contrafeito. Não era uma missão agradável comunicar aos co-munistas albaneses e chineses que a guerrilha do Araguaia sofrera golpes rudes e profundos. Além disso, era tarefa que só algum dos antigos dirigentes poderia rea-lizar. Os partidos estrangeiros não compreenderiam que uma comunicação dessa

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envergadura fosse confiada a alguém da nova safra. E, dos antigos, Jota continuava abalado com o desastre da guerrilha e, como sobrevivente, mais procurado do que qualquer outro pelos agentes da repressão, enquanto Rui, desde agosto, falhara a diversos dos encontros acertados.

De início, Mário aceitara realizar a viagem e fizera todos os preparativos. Nada mais natural que comunicasse o revés, já que em 1971 fora ele a levar a decisão de dar início à luta guerrilheira. Naquela ocasião, os membros da Comis-são Executiva já tinham uma ideia clara de suas opiniões a respeito do trabalho no Araguaia. Haviam ouvido com evidente mal-estar sua afirmativa de que, com aquela preparação militarista, o partido substituiria as massas do povo e cometeria o erro mais grave e imperdoável de qualquer partido revolucionário. Isso não os impedira, porém, de enviá-lo. Todos conheciam muito bem sua retidão e não du-vidavam de que cumpriria fielmente a decisão coletiva.

E lá foi ele, mesmo sendo contrário ao tipo de trabalho levado a cabo nas matas do sul do Pará, comunicá-lo aos dirigentes de partidos estrangeiros. Na Al-bânia, expôs em detalhes para Enver Hoxha, Mehmet Seshu, Ramiz Alia e outros líderes os argumentos da maioria da Executiva do PCdoB para fundamentar o início da luta guerrilheira. A recepção foi entusiástica. O Partido do Trabalho da Albânia acreditava que o caminho seguido pelo Partido Comunista do Brasil era acertado e o único possível. Seus dirigentes esforçavam-se ao máximo para prestar apoio moral e estimular os camaradas brasileiros, sequer colocando dúvidas sobre a justeza de suas decisões. Afinal, eles próprios haviam iniciado a luta guerrilheira contra os ocupantes nazistas, durante a Segunda guerra Mundial, com um aten-tado contra o palanque em que se encontravam os comandantes militares alemães, passando em revista suas tropas invasoras.

Ao mesmo tempo que admirava essa solidariedade, Mário acabrunhava-se com o fato de que dirigentes tão experientes não questionassem os pontos que lhe pareciam frágeis e inconsistentes na argumentação que apresentara a mando do partido, pelo menos para terem mais certeza de que estavam apoiando algo de futuro. Foi com esse travo na garganta que se dirigiu à China, ainda às voltas com a Revolução Cultural. lá, como era de praxe, foi recebido pelo diretor do departa-mento de relações internacionais do Comitê Central do PCCh.

As reuniões com os chineses eram normalmente prolongadas, principal-mente naqueles tempos turbulentos de mudanças nas políticas interna e in-ternacional do país. Eles prestavam informações detalhadas de suas políticas, de modo a justificá-las e medir a reação dos interlocutores. Mas nada diziam, absolutamente nada, sobre as divergências internas. Ao mesmo tempo, procu-ravam inteirar-se das políticas dos chamados partidos irmãos dos outros países, embora evitassem imiscuir-se nos assuntos internos desses partidos. A uma das conversas de troca de informações com o pessoal do departamento de relações

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internacionais do PCCh compareceu, o que era muito raro, Kang Sheng, um dos membros do birô político.

Ele foi apresentado com a devida solenidade e tomou a palavra para incen-tivar os camaradas brasileiros a manter bem alto seu espírito revolucionário e sua capacidade de luta. Mas não era daqueles que olhavam diretamente nos olhos dos interlocutores. Enquanto falava, seus olhos vagavam, como uma mariposa espan-tada, por suas próprias mãos, pelo tampo da mesa, pelas paredes, pelo teto e pelo vazio, jamais pousando no rosto e nos olhos atentos de Mário. Sua voz denotava uma falsa suficiência e sua boca às vezes contorcia-se em esgares, dando uma im-pressão desagradável.

Mário não gostou dele. Não gostava de quem fugia de encará-lo. Sua per-cepção e sua experiência lhe diziam que pessoas desse tipo ou não tinham caráter, ou o tinham muito fraco. Além disso, considerou que sua presença e suas pala-vras, mesmo não tendo feito qualquer referência direta ao início da guerrilha, haviam sido um gesto simbólico de apoio explícito dos chineses à política militar do PCdoB. Da mesma forma que uma foto às vezes valia mais do que mil palavras escritas, um gesto também poderia valer mais do que muitas declarações formais. Preferia que ele houvesse sido franco como os albaneses. O resto da reunião, já sem a presença de Sheng, não acrescentou nenhuma novidade e Mário, após o jantar, foi dormir com a sensação de que tanto os albaneses quanto os chineses não se davam conta da aventura em que os comunistas do PCdoB iriam se meter.

Antes das quatro da madrugada foi acordado por guo Yuanzeng, guia e intérprete do departamento, para ter “uma entrevista muito importante”. lavou o rosto, vestiu-se com a costumeira rapidez e acompanhou guo até o carro. Não perguntou de quem se tratava, mas supunha provável que fosse aquele mesmo membro do birô político com o qual não simpatizara. Pretenderia ele ser mais direto agora? Apresentar opiniões e observações que não quisera colocar sobre a mesa diante dos outros membros do departamento? E por que numa hora tão estranha e inusitada?

Àquela hora, as ruas e avenidas de Beijing, pouco iluminadas, tinham movi-mento escasso. Já havia pessoas praticando o tai-chi-chuan em calçadas e parques dos conjuntos habitacionais, mas raramente cruzavam com algum outro carro. Reconheceu apenas que estavam trafegando pela grande avenida central, que atra-vessava a praça Tiannamen, onde ficavam a Assembleia Popular Nacional e a Cida-de Proibida. Estava certo. O carro entrou por uma das avenidas ao lado da praça, rodou por algumas ruas laterais e entrou, após ser identificado, por um portão guardado por sentinelas armados.

Mário saltou e foi conduzido a um vestíbulo onde o aguardava ninguém menos do que Zhu Enlai, que apertou fortemente sua mão direita com o hábito chinês de usar as duas mãos, levando-o a fazer o mesmo. Um fotógrafo estava a

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postos e registrou esse momento que, para o primeiro-ministro, deveria fazer parte de seu dia a dia, mas para Mário era inesperado e histórico. Foi saudado com um sonoro ni hao e convidado a sentar-se numa das muitas poltronas que estavam dispostas pelo salão, ao mesmo tempo em que Zhu sentava-se na mais próxima. Entre as duas, uma mesinha com xícaras grandes de porcelana para o chá e, por trás dela, uma cadeira, onde guo se sentou para traduzir a conversa, da qual par-ticiparam também vários outros membros do birô político do PCCh: Jiang Qing, Yao Wenyuan, Zhang Shunqiao, Wang Hongwen, Kang Sheng, entre outros.

Mário sempre achara que os homens eram como estrelas, cada qual com sua grandeza. Zhu Enlai certamente era uma daquelas de brilho mais intenso, mas impressionava principalmente pela serenidade, simplicidade e tratamento afável. Vestido com a tradicional túnica Mao de cor cinza clara, abotoada até em cima, começou perguntando se Mário fizera boa viagem, se estava sendo bem tratado e se já tivera oportunidade de apreciar o caos em que a China se transformara com a Revolução Cultural. Acrescentou logo que o caos era bom, porque rompia com os velhos hábitos, pensamentos e tradições, abrindo terreno para novos, mais moder-nos e avançados. A China, aduziu, estava em meio a um processo revolucionário e, infelizmente, não era possível realizá-lo com luvas de pelica ou bons modos.

Seus olhos, encimados por sobrancelhas grossas e negras, fitavam Mário di-retamente, com um brilho juvenil e às vezes maroto, enquanto ouvia com atenção suas opiniões diplomáticas a respeito da situação da China. Depois, voltou a to-mar a palavra, dizendo que lera o relatório com a comunicação que Mário trouxera do Brasil. Agradeceu em nome da direção do PCCh a confiança dos camaradas brasileiros em comunicar-lhes, com antecedência, uma decisão tão importante e declarou que os chineses sentiam-se honrados com essa atitude. Relatou que o partido irmão da Índia também lhes dera a mesma honra.

Os camaradas indianos levaram vários anos realizando uma preparação séria e persistente em suas áreas montanhosas da região de Kerala, disse. A China dera guarida para realizarem cursos de preparação militar em seu território, transmitira--lhes a experiência da luta armada na China, como aliás fizera com vários mem-bros do PCdoB. No ocaso dos anos 1960, eles desencadearam a luta armada, mas ao fim e ao cabo não conseguiram mobilizar a população e foram esmagados.

O mesmo ocorrera na Birmânia, na Malásia, na Indonésia e também em di-versos países africanos. Quando as massas não estão dispostas a empreender a luta armada, não basta que o partido esteja. Zhu Enlai falava pausadamente, discorren-do sobre as diversas experiências recentes de lutas armadas e a constância maior de derrotas. levantou a suposição de que o movimento revolucionário internacional poderia estar ingressando num longo período de descenso, após os movimentos de descolonização que, como uma grande maré crescente, haviam se espraiado após a Segunda guerra Mundial.

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Do ponto de vista histórico, acrescentou, em algum momento a maré as-cendente cederia lugar a um descenso, à maré baixa. Embora a guerra de libertação vietnamita continuasse firme e tendesse para a vitória, e houvesse movimentos in-surgentes com algum sucesso em diversas partes, os vários e repetidos insucessos de então poderiam ser os primeiros indícios de que a revolução, em termos mundiais, poderia estar entrando em refluxo. A própria situação da União Soviética, com suas políticas erráticas em relação ao imperialismo e, também, em relação aos mo-vimentos de libertação, podia ser um reflexo dessa tendência ao descenso, acres-centou. De qualquer modo, isso não significava que movimentos revolucionários, nos quais as grandes massas do povo participassem ativamente, não pudessem ter êxito, mesmo num quadro geral de retração.

Zhu Enlai estendeu-se ainda sobre os problemas internacionais da China, suas contradições com a União Soviética e os Estados Unidos, a disputa de hege-monia entre as duas grandes potências e a necessidade da China de ter uma tática que detivesse as ameaças, tanto de mais de 1 milhão de soldados soviéticos na fronteira nordeste, quanto da frota americana no mar entre a Coreia e Taiwan. Foram quase duas horas de conversa com o segundo homem mais poderoso da China, na ocasião. E com um sentido que nada tinha a ver com a intervenção de Sheng na reunião da tarde.

Quando Mário retornou à casa de hóspedes, já havia passado das seis da manhã. Ainda tentou dormir um pouco, mas não conseguiu. Achou melhor pas-sear nas alamedas plantadas de caquizeiros, enquanto aguardava a abertura do refeitório para tomar o café. Jamais imaginara que Zhu Enlai tivesse aquele ritmo de trabalho. Quantas horas trabalhava por dia? A que horas dormia? Em nenhum momento, em sua relativamente larga experiência de contatos com líderes de di-versos partidos socialistas e comunistas, tivera uma reunião como aquela, numa hora tão imprópria e com uma riqueza de análise tão abrangente e concreta. Em geral, eram trocas formais de informações, em que cada um dava seu recado e expressava seu desejo de que a política do outro tivesse sucesso, ambos se conten-tando com uma amizade em que nenhum metia a colher no prato do outro.

Desta vez fora bem diferente. Não que Zhu houvesse dito alguma palavra sobre a justeza ou não da decisão de desencadear a guerrilha. Em nenhum mo-mento ele fez referência explícita a isso. Apenas arrolou argumentos e mais argu-mentos condicionantes do sucesso de um empreendimento revolucionário e, mais do que tudo, da necessidade imprescindível, indispensável, inarredável, de contar com a participação efetiva de grandes massas, argumentos que se somavam ao que Mário já vinha pensando há muito sobre a política que estavam implantando no Araguaia. Reforçaram sua convicção de que o partido estava ingressando numa aventura militarista. Foi bom que tivesse vindo e tomado conhecimento, em de-talhes, da opinião de Zhu.

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Porém, quantos mais no partido chinês pensavam igual? Havia uma diver-gência evidente, embora difusa, entre Zhu e Chen. Isso dizia apenas respeito a visões diferentes quanto ao movimento revolucionário internacional? Ou relacionavam-se também ao conjunto das questões internacionais e à própria evolução interna da China? Em alguns momentos tivera a impressão de que Zhu Enlai dava indica-ções de que a Revolução Cultural esgotara seu potencial e precisava ser retificada, a exemplo da extinção da guarda Vermelha e da nova proposta de Tríplice Aliança na condução do poder. Em outros, ele parecia acreditar que a Revolução Cultural ainda continuaria por um bom tempo, alternando caos e ordem. Teve dificuldade em entender sua afirmativa de que “o caos é bom”, principalmente porque muitos de seus argumentos logo a seguir insinuavam que o caos era uma desgraça.

Talvez essa situação parecesse com os sentimentos que então se misturavam em sua mente. Por um lado, sem dúvida, fora muito bom que tivesse a oportu-nidade de manter essa conversação. Mas, por outro lado, também não fora bom que tivesse sido ele o enviado. A coincidência da opinião do líder chinês com as suas, contada por ele no retorno, certamente seria vista com desconfiança pelos membros da Executiva do PCdoB e aguçaria as divergências, que já o haviam leva-do a ser afastado, paulatinamente, da Comissão Militar e de qualquer organismo operacional da Comissão Executiva.

Além disso, seria mais uma ocasião para demonstrar que o PCdoB seguia suas próprias decisões. Pelo menos para si, a Comissão Executiva poderia vanglo-riar-se de sua independência diante das opiniões dos outros partidos, não indo a reboque de qualquer força externa. E assim foi. Os pontos de vista de Zhu Enlai foram depositados numa das gavetas privativas da Comissão Executiva e quase nenhum membro do Comitê Central tomou conhecimento delas, mesmo porque não era hábito repassar àquele órgão dirigente informações desse tipo.

Os alertas do líder chinês foram simplesmente ignorados e quase tomados como uma interferência na política do partido. Mário ficou ainda mais isolado em sua posição crítica e o PCdoB meteu-se na trilha sem retorno das selvas do Pará. Mas agora, depois do desastre, o partido precisava voltar à Albânia e à China para explicar que as coisas não haviam saído exatamente como se esperava.

Zhu Enlai havia morrido e jamais poderia ouvir o reconhecimento de que suas advertências haviam se mostrado acertadas. Por outro lado, a situação no PCdoB, em 1976, já não era a mesma daquele ano de 1971. As cristas haviam se abaixado, diante dos golpes sofridos, e as visões triunfalistas da guerrilha do Ara-guaia estavam mudando. Pela primeira vez, em toda a vida de Mário no partido, as opiniões escritas da maioria dos membros do Comitê Central iam no mesmo rumo das suas. Mas, se isso parecia representar um avanço, erigira-se também como um perigo de divisão interna, diante das resistências sérias de alguns às mu-danças políticas necessárias.

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Mário pensava que era fundamental quebrar o velho e constante círculo perverso de que qualquer divergência interna teria que descambar em racha. Era preciso romper com o hábito de que opiniões contraditórias dentro do partido sig-nificavam, inevitavelmente, uma luta entre o certo e o errado, entre o verdadeiro e o falso, entre a esquerda e a direita, entre o proletário e o burguês, que deveria conduzir os bolcheviques a expulsar os mencheviques, ou seja lá o que fosse. Nas condições em que se encontravam, não seria possível reestruturar o partido e evitar maiores golpes sem conservar a unidade interna.

Isso exigia, feliz ou infelizmente, mais paciência e tempo, algo difícil de conservar na situação de extrema perseguição política terrorista em que viviam. Ainda mais que o Cid, num esforço temerário para não ficar em minoria, vinha apoiando o Rui na pretensão suicida de continuar no Rio de Janeiro e realizando contatos diretos com a Joana (Maria Amélia Teles) e a Carla (Criméia Almeida), que haviam saído da prisão fazia pouco tempo e poderiam estar sendo vigiadas. Diante disso, Mário às vezes sentia que seus esforços poderiam não vingar e ser levados de roldão por qualquer golpe do azar. Sempre temera o acaso, aquela re-sultante de milhares ou milhões de causas aparentemente desconexas, que emergia repentinamente diante dos homens e os tornava impotentes para enfrentá-la. E costumava repetir que os acasos, as famosas coincidências que achávamos impossí-veis de acontecer, eram muito mais comuns do que a maioria supunha.

Alem disso, os problemas da avaliação do Araguaia não se reduziam às di-vergências com Cid e Jota. Havia ainda outro aspecto, extremamente sensível e importante, cujo tratamento merecia cuidados especiais. Não se podia jogar fora todo o idealismo, o desprendimento e o exemplo dos mais de sessenta companhei-ros que haviam morrido lá. Isso não era fácil de evitar. Os erros tinham sido de tal ordem, e alguns tão estúpidos, que era preciso um esforço redobrado para não cair no mais puro negativismo e para não desdenhar a experiência fatal vivida por aquele grupo de companheiros.

Eles faziam parte de uma geração que não vacilara em colocar em risco suas vidas, nas selvas paraenses do Araguaia, para tentar o caminho da rebelião armada. Na história brasileira, todas as tentativas desse tipo foram esmagadas a ferro e fogo pelo poder, embora a seu modo, mesmo na derrota, tenham contribuído para o avanço social. Por isso, Mário alimentava a certeza de que, mais cedo ou mais tarde, a história os colocaria na linha sucessória dos guerreiros indígenas que resistiram à ocupação e à escravidão portuguesa, de Zumbi e dos negros rebelados contra a escravidão, de Felipe dos Santos, Tiradentes, lucas Dantas, Cipriano Barata, Frei Caneca, Vinagre e tantos outros que deram a própria vida na luta pela liberdade.

Não conhecera todos os mais jovens que haviam se incorporado à guer-rilha. Mas guardara uma bela recordação do Haas (João Carlos Haas Sobrinho), da Helenira (Helenira Resende), da Dina (Dinalva Conceição Oliveira) e, espe-

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cialmente, do Osvaldão. Osvaldo Orlando da Costa era um gigante de ébano, impressionante pelo porte e, mais ainda, pelo sorriso cândido que fazia seus dentes alvos contrastarem com a negritude da pele. Mário também se impressionara com a disposição com que abandonara o final de seu curso de engenharia, na Tcheco-eslováquia, assim como a perspectiva de uma carreira profissional de sucesso, pelas incertezas e riscos da luta revolucionária.

Mário espantava-se ainda com a simplicidade com que Osvaldo contava as mais incríveis experiências da floresta e do valor humano como se fossem simples atos do cotidiano. Sentir a noite cair rapidamente sobre a floresta, sozi-nho como uma andorinha desgarrada após uma chuva torrencial, acender uma fogueira, desnudar-se, colocar a roupa para secar ao calor do fogo, comer alguns biscoitos para afugentar a fome e deitar-se calmamente para dormir, ouvindo o esturro da pintada, para ele era como se estivesse na casa dos seus, em Passa Quatro, perto do forno de assar pães e ao som do latido do cão que pertencera ao pai. Dormia o mesmo sono solto.

De certo modo, foi com ele que Mário começou a entender melhor que o medo era apenas o egoísmo feroz dos homens. Sem esse egoísmo, o medo reduzia-se e a morte passava a ser encarada como parte da própria vida, ou vice--versa. Talvez por isso, quando as águas subiam e o povo tinha dificuldade de atravessar o vau dos igarapés, com a mesma naturalidade Osvaldo ficava alerta a noite inteira e era ele que se postava no meio da correnteza, ajudando o pessoal a passar de uma margem para a outra, ou carregando os mais idosos ou as grávi-das, como se estivesse somente praticando um exercício físico. Depois de viver anos e anos como ser urbano, adaptara-se às matas amazônicas como se sempre houvesse estado lá. E sem jamais perder aquela solidariedade própria do povo pobre, sem a qual dificilmente sobreviveriam sob o peso opressivo da natureza e das classes humanas exploradoras. Como chamar alguém como ele a não ser por seu aumentativo?

O problema presente não consistia, pois, em apenas avaliar criticamente a experiência desastrosa do Araguaia, as causas estratégicas e táticas, políticas e militares, de sua derrota. Era necessário, ao mesmo tempo e muito além disso, ressaltar toda a generosidade e desprendimento dos que participaram dela, res-gatando essas qualidades como um tesouro do partido, a ser conservado e esti-mulado. O que só seria possível com um esforço sem precedentes para realizar uma avaliação equilibrada ou, como costumava dizer, “tratando o doente para salvá-lo e eliminar a doença”.

Foi mais uma vez pensando nisso que Mário dormiu naquela noite de 11 para 12 de dezembro de 1976. Antes de cair no sono, ainda relembrou que era filho daquela mesma terra que o sangue vivo de inúmeros de seus camaradas tin-gira. Nascera no Pará, e não na Bahia, como constava no documento que portava.

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Aliás, seu nome também não era Mário, nem mesmo lino Villas Boas, conforme identidade que carregava. Era Pedro Pomar, ou mais precisamente Pedro Ventura Felippe de Araújo Pomar, nascido em Óbidos, à margem esquerda do rio Amazo-nas, no dia 23 de setembro de 1913.

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Naquela ocasião, esse porto fluvial ainda vivia, como muitas outras cidades da região, o surto de riqueza propiciado pela borracha. A cidade fora construída nos platôs da Serra da Escama, um dos contrafortes que desciam do Tumucuma-que no rumo da planície amazônica. Era justamente ali o lugar em que as terras desabavam numa fenda de mais de 80 metros de profundidade, por onde se es-premiam as águas do Amazonas, antes esparramadas, a montante, por dezenas de quilômetros de baixios de planície.

Todo esse caudal de mar doce via-se, de repente, forçado a comprimir-se em dois quilômetros de largura, por dentro de um emparedado de barrancos altos, para ter acesso às planícies orientais que se estendiam até o mar salgado. Óbidos ficava, assim, a cavaleiro de qualquer navegação que ligava a foz a todo o alto Ama-zonas e Solimões. Nenhum outro lugar parecera mais adequado aos portugueses, nos idos de 1697, para instalar um forte e garantir a colonização amazônica.

As águas eram os verdadeiros senhores dos viventes dessas paragens. Quan-do lhes dava na veneta, cobriam as terras ou, com o trabalho subterrâneo de sua cobra-grande, arrancavam árvores e pedaços de seus barrancos, transformando-os em ilhas flutuantes a vagar, como Moisés em sua cesta bíblica. Mas esse mundo de águas e selvas não impediu os portugueses, desde que foram incorporados à Coroa espanhola, em 1580, de se lançarem na descoberta de seus mistérios e segredos e, acima de tudo, em nome do rei castelhano e sob a letra do Tratado de Tordesilhas, proteger a região das investidas de flamengos, anglos e francos.

Assim, sob a benção real espanhola, os portugueses espraiaram-se pelo in-terior, enfrentaram as feitorias holandesas no Xingu e no Tapajós e as investidas de outras companhias de comércio europeias em busca das drogas do sertão e, também, do Eldorado, cuja lenda dominava os sonhos dos exploradores, imagi-nando batéis e batéis de ouro, esmeraldas e pedras preciosas, depositados no fundo de uma lagoa encantada. Expulsar os intrusos era vital, não apenas pelo domínio das águas, terras e riquezas naturais, mas principalmente pelo domínio sobre os “únicos instrumentos” com que contavam para apropriar-se daquelas riquezas: os índios, fossem os aruás e tupinambás, na foz do grande rio, fossem os tapajós, pauxis e outros, no interior.

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Quando Portugal se separou da coroa espanhola, em 1640, e reivindicou as terras amazônicas a pretexto do uti possidetis, ao lado de seus colonos e sol-dados já se encontravam missionários religiosos, que conquistavam os índios opondo-se à sua escravização e protegendo-os em aldeamentos. A Aldeinha de Óbidos reunia índios de todos os afluentes da margem esquerda do rio Ama-zonas, desde o Trombetas até o Negro, onde criavam gado, plantavam algodão, mandioca, cana, tabaco, produziam panos, farinha, açúcar, aguardente, fumo e chocolate e de onde partiam em canoas para a pesca do peixe a ser salgado e para a coleta das drogas do sertão.

As missões religiosas tornaram-se mais importantes para o monopólio colonial português à medida que o transporte das especiarias orientais para a Europa sofreu o bloqueio otomano e, depois, a pirataria das armadas inglesa, holandesa e francesa nas rotas asiáticas. Ao superar em muito a capacidade dos colonos em fornecer para a metrópole volumes crescentes das drogas mais pro-curadas, as missões transformaram a Amazônia no novo entreposto americano de fornecimento de especiarias.

Os missionários trabalhavam junto com os índios e ensinavam-lhes não só a “língua geral”, os rudimentos da língua portuguesa e os mistérios de Deus, como os ofícios úteis à produção. Mais importante que tudo, mantinham os indígenas como aliados ao permitir que eles continuassem utilizando suas técni-cas nativas, participassem nos frutos da produção, se sentissem recompensados pelo trabalho realizado e tivessem a sensação de continuarem livres, embora as missões funcionassem sob uma centralização estrita.

Ao chegar à província do grão Pará em 1750, na posição de governador e capitão-general, Francisco Xavier de Mendonça, irmão do marquês de Pom-bal, teve sua atenção despertada pela opulência que o “comércio das drogas do sertão” possibilitava aos missionários, principalmente jesuítas, com suas “feiras grossíssimas” através dos barcos “que davam fundo no porto”, contrastando com o resto da província, que “se achava reduzido à extrema miséria”. A ordem de Pombal era mudar essa situação, secularizando as aldeias, afastando os jesuítas, estimulando a agricultura, trazendo mais colonos livres e, para compensar a fal-ta de braços de trabalho, importando escravos africanos através da Companhia geral de Comércio do grão Pará e Maranhão. Ele também queria que Portugal lucrasse com o tráfico negreiro.

A política pombalina levou as aldeias das missões ao fracasso e à disper-são. Em compensação, os colonos, cuja qualificação social era pautada pela posse de escravos e da terra, revigoraram-se através da agricultura, da pecuária e de algumas atividades industriais ligadas ao comércio com a metrópole, per-mitindo que parte dos produtos de subsistência da população colonial fosse produzida na própria terra.

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Estaleiros da companhia de comércio construíam diversos tipos de embarca-ções, tanto para a navegação interior, quanto para enfrentar mar alto. E o sonho de construir engenhos concretizou-se em diversos pontos do Baixo Amazonas, na es-perança de que a província se tornasse rica com a produção do ouro branco. Porém, tanto a força histórica das drogas do sertão, quanto os acontecimentos europeus do final do século 18 e início do 19, conspiraram para manter o Pará apenas como um centro quase exclusivo de produção e fornecimento de matérias-primas florestais.

Na segunda metade do século 19, ali já se conformara uma sociedade de ca-racterísticas diferentes das demais províncias brasileiras. Era um enclave colonial, ao mesmo tempo ligado ao Brasil e isolado de seu todo. Além de as matas e rios que faziam fronteira com o Nordeste serem uma barreira natural à ligação interior do Pará com as demais províncias, o monopólio português impunha-lhe relações diretas com a Europa. Assim, por volta de 1830, Óbidos, um dos maiores centros produtores de cacau e outras drogas do sertão do Pará, exportava sua produção, através de Belém, diretamente para liverpool, Amsterdam, gibraltar, Nova York, O Porto, Trieste, Marselha, Caiena, Martinica e Bordéus.

Nessa época, o colono nortista continuava uma combinação de coletor de especiarias e comerciante, na esperança de que a coleta e o comércio do cravo (tão bom ou melhor do que o da Índia), da canela (idêntica à do Ceilão), da quina, da canafístula, da baunilha, das gomas, do cacau, das raízes aromáticas, dos óleos vegetais e animais e das outras especiarias, lhe desse acesso à porta da riqueza, es-condida nas águas e florestas. Principalmente porque a essas drogas juntara-se uma seiva vegetal, o látex, há muito utilizada pelos índios para fabricar objetos elásticos, procurada crescentemente pela Europa e Estados Unidos.

Os portugueses, que inicialmente chamaram de pau de seringa as árvores que o produziam, haviam aprendido as técnicas indígenas e também produziam bombas, garrafas e botas. Na Inglaterra, desde 1770, a goma elástica importada da Amazônia era utilizada para apagar traços de lápis no papel, em lugar do miolo de pão. E, em 1800, haviam se tornado corriqueiras as exportações clandestinas da indian-rubber para os Estados Unidos, na forma de garrafas e sapatos.

Entretanto, como no período do monopólio das missões, a riqueza e a opulência geradas pela floresta concentravam-se agora nos traficantes e grossistas lusitanos, ligados às casas britânicas. Aos demais era dado apenas apreciar o fluir das águas. O conflito entre os interesses locais e o monopólio luso intensificou-se, seja pela disparidade dos lucros metropolitanos em relação aos dos comerciantes e proprietários de escravos e terras, seja pela disseminação da nova ideologia liberal, que tornaram o Pará um solo fértil para o antilusitanismo e o independentismo.

Esses sentimentos já haviam explodido em 1821, no processo da Indepen-dência, com lutas políticas de rua e a intervenção, em 1823, da esquadra merce-nária inglesa, comandada pelo almirante John grenfell, que sufocou as revoltas

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queimando em cal, no brigue Palhaço, mais de 300 amotinados. Elemento novo nesses conflitos, que opunham as elites brasileiras às fiéis a Portugal, foi a interfe-rência dos segmentos populares que formavam a população paraense de então: os setores médios, constituídos por pequenos comerciantes e amanuenses; o popula-cho caboclo, descendente dos índios, composto por estivadores, coletores, serin-gueiros, castanheiros, carregadores, barqueiros, artesãos e trabalhadores diversos; e a minoria de escravos africanos, domésticos e dos eitos.

As camadas populares viviam em permanente indisposição contra as eli-tes locais e estrangeiras. As agitações, com a sua participação direta, tornaram-se constantes em diferentes pontos da província, conduzindo, em 1833-34, ao mais amplo e profundo movimento social e político da história paraense, a Cabanagem, que se irradiou de Belém para todo o Baixo e Médio Amazonas e dominou a pro-víncia até 1840.

Dirigida inicialmente por latifundiários e comerciantes antilusitanos, e mais tarde pelos setores médios e populares, a Cabanagem suscitou intensa participação popular, com suas bandeiras de liberdade e vida digna. Sua fraqueza jazia, porém, em seu isolamento do resto do país e até mesmo das lutas do vizinho Maranhão, sendo finalmente derrotada por tropas mercenárias e à custa de 30 mil mortes, numa população de 100 mil habitantes.

Embora grande parte da economia paraense tenha sido destruída durante a revolta, é notável que as exportações de objetos de borracha tenham até se expan-dido no período. Em 1837, foram enviados para Boston mais de 7 mil pares de sapatos, para Salem mais de 69 mil e para Nova York mais de 35 mil. Entre 1836 e 1856, o Pará exportou 4,7 milhões de pares de sapatos, 27 milhões de libras (cerca de 12 mil toneladas) de borracha fina e 6 milhões de libras (cerca de 2,7 toneladas) de sernambi, um látex de qualidade inferior.

Ao mesmo tempo que isso ocorria, na Europa e nos Estados Unidos os empreendedores capitalistas pesquisavam novas maneiras de utilizar-se das pro-priedades da goma elástica. O grande salto aconteceria entre 1839 e 1844, com a descoberta do processo de vulcanização, levando a demanda pela borracha a cres-cer vertiginosamente, justamente no momento em que a economia e a sociedade paraenses estavam às voltas com a sua recuperação.

À medida que a borracha transformou-se, a partir de 1840-1850, no ouro negro da selva, o comércio amazônico tornou-se intenso, atraiu o interesse e a dedicação da maioria da antiga elite ligada à terra e ao comércio, criou novas opor-tunidades de trabalho e abriu a região a uma inigualável perspectiva de progresso. Mas em 1854 o governo da província dava-se conta de que os braços estavam se voltando quase exclusivamente para a extração e fabrico da borracha, abandonan-do as outras drogas do sertão e as lavouras de subsistência. O Pará viu-se obrigado a importar gêneros que antes produzia com sobras para exportar.

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Esse quadro agravou-se repentinamente em 1856-1857, quando aconte-ceu a primeira queda séria dos preços do látex e, como disse Manoel Barata, “os dólares foram-se como as andorinhas no inverno”. Porém, apesar desse sinal e do que ocorria no mundo com outras matérias-primas procuradas pelos países indus-triais, as elites locais e as classes dirigentes nacionais, como pião cravado no chão, giravam suas ideias e discussões exclusivamente em torno de seus lucros e perdas imediatos. Nem se tocavam para o fato de que os Estados Unidos, em 1850, pos-suíam trinta e quatro manufaturas de produtos de borracha, enquanto o Pará não tinha nenhuma. O máximo de progresso que vislumbravam era a modernização dos portos e dos transportes, e a abertura da navegação interior aos navios de ban-deiras estrangeiras, para melhorar a vazão da seiva e atender à crescente demanda externa. Sequer conseguiam enxergar que os serviços não produzem riquezas, ape-nas facilitam seu escoamento.

Os antigos barcos de madeira e à vela, que singravam com dificuldade as correntes do Amazonas e de seus tributários, foram então substituídos por embar-cações a vapor. Em Óbidos, as canoas das casas aviadoras, a remo ou a vela, foram substituídas pelos regatões a motor, com casco de ferro, que subiam os igarapés, o Trombetas e outros tributários próximos para levar querosene, sal, arroz, ferra-mentas, fazendas e outros bens para os barracões dos seringais e castanhais próxi-mos e também para os de Faro, Alenquer, Oriximiná e outras localidades. Depois, desciam carregados com as bolas de seringa, e também com paneiros de castanhas e pimentas, amarrados de couros de jacaré e peixes secos, óleos vegetais e animais, cacau e ervas medicinais.

Tudo isso era enviado para os aviadores ou grossistas de Belém, que em troca forneciam aos aviadores de Óbidos os produtos que importavam, principalmente da Inglaterra e da França, mas também da Holanda, Alemanha e Estados Unidos. Da diferença entre o preço pago pela seringa (e outros produtos extrativos) e o preço que os coletores pagavam pelas mercadorias fornecidas nos barracões, era extraída a riqueza que fluía até mesmo entre os pequenos intermediários de Óbi-dos, permitindo-lhes ostentar roupas importadas e uma vida social normalmente impensável para a selva.

Era lá que estavam fincadas as raízes de Mário, ou Pedro Pomar, das quais nunca se desgarrou totalmente.

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3 MAS QUEM ME SEgUE NUNCA TEM REPOUSO

Nasce o que brilha apenas para o já; Para o porvir, o que é real viverá.

J.W. goethe (Fausto)

1976, São Paulo, dezembro: noite de 11 para 12 1900-1926, Óbidos: antecedentes

Mário não sabia se estava dormindo ou sonhando. Por sua mente desfila-vam, como os rios de sua infância, as histórias que ouvira contar e que lera sobre sua gente e o cio de sua terra, numa época em que a riqueza ostensiva da seringa espalhava suas sobras pelas classes intermediárias e parecia beneficiar a todos.

Em 1890, recém ingressada na República, a região já estava, assegura José Veríssimo, sob o império da borracha. Esta tornara-se o segundo produto mais im-portante da pauta de exportações do Brasil. Criara não só uma elite endinheirada, que mandava os filhos estudarem na Europa, e uma classe média com chances de ascensão, mas também um poder público provincial com recursos próprios para fazer investimentos em melhorias urbanas, ao ter o direito de reter os impostos advindos das exportações.

Foi assim que, no início do século 20, com mais de 100 mil habitantes, Belém, o porto de entrada da Amazônia, espantou Euclides da Cunha com suas “avenidas monumentais, largas de 40 metros e sombreadas de filas sucessivas de árvores enormes”, e com seu movimento intelectual, onde pontificavam artistas, escritores, poetas e jornalistas, que enchiam com seus textos as páginas dos jornais A Província do Pará, Folha do Norte, O Pará e A República e, com sua presença, lotavam os espetáculos do Teatro da Paz. Datada de praças amplas, arborizadas e ajardinadas, prédios públicos de vários andares, escolas primárias e secundárias, faculdades, hospitais, um porto moderno instalado com capitais e tecnologia ingleses, serviços de telégrafo, telefonia, bondes elétricos e uma estrada de ferro ligando-a às cidades da zona bragantina, a capital paraense podia ser considerada uma das melhores cidades do Brasil.

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O Teatro da Paz era a expressão mais forte da evolução cultural da cidade e da província, apresentando companhias estrangeiras que vinham ao Brasil apenas para se apresentar nele e no Teatro Amazonas, em Manaus, retornando depois à Europa. As elites e as classes médias vestiam-se conforme as modas parisienses, utilizavam louças inglesas, adoravam sapatos de cromo alemão. Muitos dos navios europeus iam até Manaus, fazendo escala em Óbidos, com as mais recentes novidades de Paris, londres e lisboa. As notícias do Rio de Janeiro, a capital brasileira, às vezes demoravam mais tempo a chegar do que as notícias das capitais europeias.

Funcionários públicos civis e militares consideravam uma promoção serem destacados para servir no que antes parecera somente o lendário inferno verde, onde corriam as guerreiras amazonas e o curupira, e rastejavam ou voavam a co-bra d’água e outros monstros que assustavam os viajantes menos preparados. Pelo menos foi isso que pensou Pedro Francisco de Araújo, um subtenente engenheiro oriundo do Piauí, que servira na Bahia na fase final da guerra de Canudos, e depois no Maranhão, ao ser enviado pelo Ministério da guerra para concluir a construção do quartel e do depósito de material bélico do Batalhão de Artilharia de Costa, de Óbidos, em 1900.

Óbidos já não era mais aquela povoação “com uma igreja ordinária coberta de folhas e muitas casas do mesmo modo”, como a descrevera o frei João de São José, bispo do Pará, em 1762, poucos anos após haver sido elevada à categoria de vila pelo governador e capitão-general Mendonça Furtado. Já era uma cidade na qual, no dizer de Ferreira Pena, as casas “branquejavam ao longe por entre a rama-gem das mangueiras, laranjeiras e outras árvores frutíferas que na província for-mam o mais belo ornato das povoações” e que “se estende desde a margem do rio Amazonas, por um terreno bastante inclinado, até quase ao alto de um pequeno monte que a domina. O primeiro edifício que se distingue de longe é o do forte, construído sobre uma espécie de promontório que, avançando em semicírculo para dentro do rio, dá lugar do lado oriental, a uma pequena enseada ou remanso que é o único porto da cidade”.

Durante todo o século 19, Óbidos experimentara um progresso quase inin-terrupto, apesar de ter sido palco de todas as turbulências sociais e políticas do período. Sustentada nas lavouras de cacau, café, tabaco e guaraná, na coleta das drogas do sertão, na criação de gado e na coleta da goma elástica, tinha um porto ativo e movimentado. Quando Pedro Araújo e sua família se mudaram para lá, a cidade havia se tornado ainda mais próspera, já bafejada pelo ouro da borracha. Subindo do trapiche, nas barrancas altas da curva do rio, um pouco acima de onde o igarapé Pauxis jogava suas águas transparentes no barrento Amazonas, cortava-se as travessas Beira Rio e João Marcelino para subir a ladeirosa Raimundo Chaves até a travessa Bom Jesus, que desembocava na praça da Matriz.

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Todo o traçado da cidade era regular, a partir da praça central, com a maio-ria das ruas descendo para as margens do rio. As transversais, paralelas ao rio, ru-mavam para as periferias, coalhadas de sítios e fazendolas e cortadas por igarapés, para onde a população, principalmente a petizada e as lavadeiras, se dirigia para tomar banho, nadar ou lavar roupa.

As casas do centro, no típico estilo português, rentes à rua nua de árvores, eram construídas umas grudadas às outras, em geral estreitas na frente e compridas para o fundo, com quintais onde as sentinas às vezes se erguiam à sombra das man-gueiras, abricozeiros, abacateiros, bacurizeiros, cupuaçuzeiros, cacaueiros e dos pés de açaí e pupunha, que se espalhavam sem ordem pelo terreno. Os mais ricos ou abastados, proprietários de comércio aviador, terras, gado, cacauais e castanhais, possuíam imóveis mais afastados do centro, mais arejados, construídos com espa-ços frontais e laterais que permitiam a existência de varandas e janelas em volta de toda a casa, separada das vizinhas por cercas de taquara ou lascas de madeira.

Pedro Araújo nascera em Teresina, por volta de 1870, lá mesmo iniciara sua carreira militar, casara-se com Henriqueta Rosa Procópio e tivera sua primeira filha, geraldina, em 1890. Transferido para o Maranhão, ali viu nascer outra filha, Rosa, a 4 de setembro de 1892. Em 1896 estava na Bahia, quando nasceu Peri. Voltando para o Piauí, em 1898, ganhou Maria Iracema, a Cota, e foi transferido novamente, desta vez para Óbidos, onde o último rebento da família, o José, ou Zeca, veio ao mundo em 1902. A influência do nacionalismo nativista, que tinha em José de Alencar seu maior expoente literário, vicejava em Pedro Araújo através dos nomes dos três filhos mais novos.

Araújo, como se tornou mais conhecido, era um daqueles tipos espigados e brancos, cuja ascendência não parecia haver experimentado a mistura com o sangue indígena e caboclo. Henriqueta, por seu turno, era filha de espanhóis da Catalunha migrados para a região de Parnaíba, e tinha pele branca, cabelos pretos e postura majestática. Acompanhados dos quatro filhos, ocuparam uma das casas destinadas pelo Exército a seus oficiais e suboficiais.

O subtenente tornou-se figura conhecida no lugar, até com rapidez. Ele ocupava a posição de vagomestre, oficial responsável pelas construções militares, o que o obrigava a ter contato com os comerciantes, empreiteiros e trabalhadores e lhe dava acesso a praticamente todas as camadas sociais do lugar. No momento de maior trabalho, a guarnição do Batalhão chegou a ter 4.000 homens, a maior parte dos quais era de pedreiros e ajudantes.

Araújo gostava de ler, tinha uma conversa fácil e agradável, enfrentava os oficiais superiores com uma independência pouco comum, não fumava nem be-bia. Tanto ele, quanto a mulher, tinham paciência com as crianças e não gostavam de castigá-las, procedimento que ele estendia aos recrutas e soldados sob suas or-dens, a quem costumava chamar de filhos. Era mulherengo e, como todos os nor-

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destinos e nortistas, deixava-se enlevar por qualquer rabo de saia que atravessasse seu horizonte de tiro, embora não se conheça nenhum caso escandaloso durante todo o tempo que viveu em Óbidos.

O casal foi para ficar, beneficiando-se da derradeira década de fortuna da borracha. Os Araújos eram identificados como uma das famílias respeitadas do lugar, embora não fossem ricos. O soldo de Pedro Araújo, acompanhado das eco-nomias que fazia com os privilégios e benefícios extras, comuns aos militares que serviam em regiões tidas como excepcionais, permitiu que amealhasse alguns re-cursos, comprasse algumas propriedades, os filhos se apresentassem na moda da época e todos reputassem a família como “remediada”.

Dos filhos, Rosa destacava-se não só pelo porte e beleza, como pela elegân-cia que herdara da mãe. Alta de 1,70 m e de brancura mais alva que as areias do Trombetas, contrastava com a maioria da população. Vaidosa, aprendera a cos-turar, bordar e fazer rendas, preparando os próprios vestidos copiados das revis-tas francesas que lhe chegavam às mãos. Além disso, era exigente. A maioria dos rapazes de Óbidos, incluindo os estrangeiros, pareciam-lhe doidivanas e desen-gonçados. Não por acaso, numa terra e numa época em que as moças que não se casavam até os 16 anos já se consideravam velhas e destinadas a tias solteironas, aos 18 ainda não encontrara o príncipe encantado de seus sonhos.

Mas por volta de 1911, em pleno auge da produção e exportação do ouro elástico, aportou na cidade, vindo da França, um mancebo de chamar atenção, tanto pelo porte varonil, quanto pela elegância dândi no vestir e dirigir-se às pessoas. Felipe Cossio y Pomar era peruano, de uma linhagem aristocrática de espanhóis. Era filho de Juan Mariano Cossio e Rosa del Pomar, esta descendente de Manuel del Pomar y de la Canal, natural de Ruibola, na Espanha. Esse Ma-nuel del Pomar y de la Canal havia se aproveitado da condição de sobrinho de Manuel de la Reguera y del Pomar, arcebispo de lima, para dirigir-se ao Peru, em 1778, tornando-se mais tarde Conde de San Izidro.

Com esse passado às costas, e com o nome inicial de Juan Mariano Cossio Pomar, Felipe nasceu a 30 de abril de 1888 numa das fazendas da família em San Miguel de Piura, no litoral noroeste do Peru, por onde haviam desembarcado os conquistadores espanhóis para dominar a terra dos Incas. Estudou história na Universidade de San Marcos, em lima, saindo pelo mundo em busca de uma irresistível vocação pela história das artes, atração certamente influenciada por seu parentesco um pouco distante com o pintor Paul gauguin.

A avó deste, Flora Tristan, filha do coronel peruano Mariano Tristan y Mos-coso e da francesa Teresa laisneys, foi uma das precursoras do socialismo e do feminismo na Europa, havendo depois viajado ao Peru em busca de suas origens. Os Tristan, Moscoso, Pomar e Cossio eram todos famílias aristocráticas com forte base na cidade de Arequipa e intrincados laços familiais.

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Qualquer que tenha sido o motivo de sua peregrinação, Felipe Cossio y Pomar tinha recursos familiares suficientes para, em 1908, deslocar-se entre Paris e Bruxelas a fim de estudar pintura e história das artes e privar da convivência de muitos dos pintores e escultores do início do século, já famosos por seu talen-to e originalidade, como Diego Rivera, Paco Durrio, Pablo Picasso, Modigliani, Apollinaire, Utrillo, Alfonso Reys, José Vasconcelos e Arquipenko. Através de Ri-vera, Felipe descobriu o México e a Revolução Mexicana, sob impulso da qual aderiu à APRA, movimento revolucionário peruano, fundado por Haia de la Torre justamente em seu exílio nas terras de Zapata e Pancho Villa.

Não se sabe bem por quê Felipe veio para o Brasil e foi bater com os cos-tados em Óbidos. Especula-se que ele teria acertado preparar uma exposição so-bre a região amazônica e, a pretexto de restaurar os afrescos da Igreja Matriz de Sant’Anna, em Óbidos, datada de 1827, deixara-se ficar no bulício daquela peque-na cidade envolvida na emergência enriquecedora da seringa. Se podem ser vários os motivos ou pretextos que o fizeram aportar em Óbidos, foram os encantos de Rosa Araújo, uma Rosa como sua mãe, que o fizeram adernar e o prenderam irre-sistivelmente por mais tempo que porventura planejasse.

Não foi um namoro fácil nem tranquilo. O assédio feminino ao janota Cossio y Pomar desencadeou rusgas e rompimentos tempestuosos. Rosa era ciu-menta e possessiva, não admitindo deslizes. O velho Araújo – pois naquela época, aos quarenta anos os chefes de família já eram considerados velhos, seja porque o aparentassem, seja porque fosse uma forma respeitosa de considerar sua longevi-dade e experiência de vida – também não estava disposto a entregar a filha a um forasteiro e passante. Mesmo porque a origem, motivações e enlevos daquele pin-tor, por mais nobres, inocentes e sinceros que se apresentassem ou aparentassem, não estavam claros para aquele nordestino e militar que atravessara tantos transes na vida e, a bem da verdade, não acreditava que pintores fossem pessoas normais.

Bastava-lhe a filha geraldina, que se casara com um desconhecido e fora para Belém, desaparecendo do convívio da família. Não queria que o mesmo acon-tecesse com a segunda, a mais bonita e a mais prendada de todas. Foram quase dois anos de batalhas árduas, até que Felipe conseguiu o consentimento para se casar com Rosa, no Natal de 1912. Foi um casamento concorrido, tendo como teste-munha a nata da sociedade local, que encheu tanto a Igreja de Sant’Anna, quanto a casa da rua general Teodoro. O casal passou a lua de mel na fazenda Santa Rita, do velho Araújo, e depois ficou morando na casa 258 da rua Marcos Rodrigues de Souza, antiga Treze de Maio. A 23 de setembro de 1913 nasceu o primeiro filho, Pedro Ventura, daí em diante chamado Ventura, para distingui-lo do avô.

Mas o pintor, que vira Paris e conhecera outras capitais europeias, não se satisfazia com a vida provincial e provinciana de Óbidos. Já então fala de si mesmo como yo, caminante. Em 1915, a pretexto de uma exposição de pintura em Belém,

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ausenta-se de Óbidos, Rosa grávida. De Belém, viaja para os Estados Unidos e não assiste ao nascimento do segundo filho, a 2 de fevereiro de 1916. Quem o registra como Roman Cossio Pomar, em homenagem ao irmão de Felipe, como este que-ria, é o velho Araújo, tendo a avó Henriqueta como testemunha.

Ninguém sabe ao certo o que Rosa e Felipe conversaram e trataram sobre a ida dele para os Estados Unidos, nem mesmo se ela sabia dessa decisão. Na corres-pondência para a família no Peru, especialmente para a mãe, com quem mantinha uma relação afetiva muito forte, não existe qualquer referência de Felipe a Óbidos e à família que então constituíra. A única menção ao Pará e à viagem para Nova York, durante a qual travou conhecimento e fez amizade com Martin Taw, um negociante portenho, encontra-se em seus manuscritos inéditos, mesmo assim de passagem.

De qualquer modo, havia razões suficientes para Felipe querer novos ares. Embora fosse uma dádiva estar na Amazônia, a salvo dos horrores da Primei-ra guerra Mundial, a riqueza de sua borracha murchava rapidamente, após a entrada da produção asiática no mercado. A hévea fora cotada a 15 mil réis o quilo em 1910, desabando para 3 mil réis em 1914. A decadência da região tornou-se a cada dia mais palpável. Os vapores escasseavam e já não era tão fácil para Felipe estar a par das notícias do mundo e acompanhar, como queria, as viragens internacionais e as novas tendências artísticas e culturais. O excesso de riqueza, que antes dera azo ao sustento de artistas capazes de pintar retratos dos filhos das elites, ou decorar seus palacetes com murais, sumia no torvelinho das falências de seringalistas e aviadores.

Felipe deve, então, ter decidido ir para os Estados Unidos, apesar das re-sistências de Rosa e da oposição do velho Araújo. Rosa negaceava porque aquele mundo prometido não era o seu. Em Óbidos era uma espécie de rainha, reconhe-cida por sua elegância e por suas prendas. lá, o que seria ela? Quanto ao velho Araújo, era não só apegado à filha, como ao neto. Venturinha fazia a alegria da casa, com suas tiradas que não sabiam onde aprendia. E Rosa estava grávida. Como iria ter o novo filho longe de sua mãe? Mas a decisão de Felipe foi inabalável.

Somente em 1918, Rosa, Ventura e Roman embarcaram numa gaiola até Belém e, daí, pegaram o paquete Campos Sales, rumo ao Rio de Janeiro, onde deveriam pegar outro vapor diretamente para Nova York. Mas esse não foi um ano divisor apenas para Rosa Araújo Pomar. Foi o ano em que a decadência de Óbidos atingiu um ponto lamentável.

O agrimensor francês Paul le Cointe, que viveu na cidade nesse período e escreveu L’Amazonie Brasillienne, conta que embora estivesse numa localização favorável para tornar-se o centro comercial de maior importância entre Belém e Manaus, Óbidos já perdera essa condição para Santarém, em virtude do fracasso de suas colônias agrícolas, da proibição de exportar diretamente suas especialida-des, como cacau, castanha, peixe seco, gado e doces e alimentos regionais (tama-

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rindo, taperebá, chocolate, licores, farinha de banana) e da falta de escrúpulos que grassava na administração municipal.

O aspecto das ruas e praças se tornara deplorável, invadidas pelo mato e repletas de imundices, cães errantes em “homéricos combates” e “animais domés-ticos de todas as espécies”. A rampa de sustentação de acesso à cidade ruíra e o cais sofria o inexorável processo de demolição pela ação da cobra-grande líquida. As amendoeiras plantadas para arborização das ruas haviam sido cortadas por or-dem de um mairie intelligent e as atividades culturais minguavam, com o desapa-recimento dos jornais, do teatro, do clube literário, da biblioteca, da sociedade filarmônica e até do Tiro de guerra. Segundo le Cointe, de toutes ces tentatives interessantes de progrés il ne reste rien.

Ao chegar ao Rio de Janeiro, Rosa deparou-se com as notícias das primei-ras grandes greves operárias e da terrível gripe espanhola, que ceifava vidas como quem cortava medas de arroz, disseminando o pânico entre a população. O país entrava numa época nova de convulsões sociais e militares, e o clima político da capital do país era agitado e cheio de expectativas. Mas tudo aquilo não passou de um relance no coração apreensivo da moça que jamais saíra de Óbidos. Apesar da grandiosidade do Rio de Janeiro e das notícias alarmantes que ouvia, ali todos falavam a sua língua e ela sempre teria como se comunicar com os demais. Em Nova York, porém, o que a esperava? Tudo era mistério.

As cartas de Felipe eram lacônicas e nem todos os seus termos espanhóis eram fáceis de entender. Dizia que alugara um estúdio em Nova York e que estava com muitos trabalhos contratados para pintar retratos e murais. Mas nada disso a animava, seja porque tinha medo daquele mundo desconhecido, seja porque esta-va propensa a repelir a nova vida no exterior e preferir o seu cantinho provinciano. Foi, assim, predisposta à aversão, que desembarcou em Nova York, carregando Roman ao colo e puxando Ventura pelo braço.

Os dois anos e pouco que Rosa e as crianças passaram nos Estados Unidos, ela os viveu como um pesadelo. Foram morar em Filadélfia, Pensilvânia, onde Feli-pe conseguira o lugar de professor de História da Arte Peruana na Universidade de Villanove e fora contratado para pintar um mural em Harrisbourg. Ele ausentava--se o dia inteiro, a trabalho, e só se viam à noite, num ritmo de vida totalmente diferente do que desfrutavam em Óbidos.

Enclausurada em sua casa, como numa fortaleza medieval cercada de bár-baros, Rosa não tinha senão as crianças com quem conversar. Temia fazer amizade com os vizinhos, por desconhecer-lhes a língua e por não se acostumar com seus hábitos. O nascimento de Eduardo, ou Edward Mary, nos Estados Unidos, não serenou seus dissabores e ciúmes, que se tornaram um fel corrosivo de discórdia entre ambos. Até que, em meados de 1920, ela tomou a decisão unilateral e inar-redável de retornar ao Pará, mesmo separando-se de Felipe Cossio y Pomar.

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Chegou em Óbidos, ficou uns tempos na casa dos pais, mas depois mudou--se para a casa da rua Raimundo Chaves, que fora da família lago da Costa. Seu orgulho não lhe permitia viver às custas de outros, mesmo dos pais. “Tenho o meu préstimo, que é a minha costura”, dizia ela para os parentes e amigos, únicos a quem se permitia dar alguma explicação sobre sua vida.

A essa altura, a irmã Cota também havia casado, com Antônio Prata de Aquino, um aviador da cidade, e morava num sítio à beira do igarapé Pauxis, onde ficavam seus regatões e a lancha liberdade, de casco de ferro, do velho Araújo. A filha mais velha de Cota, Manuelina, foi morar “sob o poder de dona Rosa” e, anos depois, ao perguntar à tia sobre o marido, espantou-se ao receber um seco “Mor-reu!”. Na sua inocência infantil, ainda perguntou “de quê?”, ao que Rosa fuzilou: “Quando alguém morre, não se costuma perguntar de quê!”

Rosa não só considerava o marido morto, como não admitia sequer que se perguntasse a causa de sua morte. Sua amargura explodiu numa doença de pele que a crendice da época diagnosticou como erisipela, um mal contagioso que enrubesce e torna a pele cheia de tumefação. A “doença de pele” de Rosa era, porém, diferente: deixava sua pele seca, cheia de escamas e com rachaduras, atingindo os braços e o rosto e indo e vindo de tempos em tempos, algo mais parecido com psoríase, moléstia de remissões e recidivas, que pode ter sido causada por trauma psicológico. Para proteger-se do sol e dos olhares, Rosa passou a confeccionar para si vestidos de mangas compridas e gola alta, o que destacava ainda mais seu porte ereto, com a cabeça sempre erguida e encarando as pessoas nos olhos.

Aos poucos tornou-se a modista mais famosa do Médio Amazonas. Rui, filho de Alarico Barata, que fora com os pais morar em Óbidos, tornando-se colega e amigo de Roman e Ventura, considerava-a também “a mais formosa” e, além disso, “boníssima”, por fazer as fantasias para os blocos carnavalescos que ele inventava. Era, ao mesmo tempo, estilista, cortadeira e costureira. Mas já não podia, como antes, acompanhar as últimas modas de Paris e Nova York. Os navios haviam escasseado de vez e nem sempre aportavam em Óbidos. As famílias, mesmo as de Belém, já não viajavam com facilidade a lisboa, Madri e Paris. No máximo, iam ao Rio de Janeiro. Não havia, pois, revistas recentes para acompanhar os progressos nos estilos e nos cortes. Rosa, então, passou a criar.

Combinava rendas e bordados nos vestidos e nas roupas infantis, rece-bendo encomendas não só dos abastados de Óbidos, como dos de Oriximiná, Alenquer e até de Santarém, na outra margem do grande rio, na embocadura do Tapajós, a mais de um dia de viagem de motor. Talvez sem ter noção exata do que fazia, impulsionada apenas por seu próprio orgulho, ela era seu próprio modelo. Os “seus” vestidos, aqueles que usava, eram os mais bem talhados, os mais vistosos e atraentes. As mangas compridas e as golas altas, ao invés de des-

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merecerem as confecções, davam-lhes um toque aristocrático, que disfarçava a decadência financeira da elite de Óbidos e do médio Amazonas.

Seu andar esguio de modelo foi aos poucos sendo acompanhado por um sorriso estudado, que com o tempo voltou a ser franco e aberto como nos idos da juventude. Descobrira, um pouco pelas fotos das modelos das revistas de moda, um pouco com a própria experiência, que as roupas às vezes pareciam mais bonitas do que eram pelo porte e pela atitude das modelos que vestiam. Corpos encur-vados e rostos tristes tornavam os paramentos pesados e desagradáveis. Modelos empinados e sorridentes davam leveza e realçavam a beleza das criações. Era o que fazia, e o que a ajudou a retomar um pouco da alegria de viver.

Ventura era seu principal entregador. Pelas manhãs ia às aulas do Colégio Brasil, do professor Tostes. À tarde, fazia os deveres de casa e, depois que o sol amainava, saía para entregar as encomendas que a mãe aprontara, ou também para vender os doces que a avó preparava. As entregas eram sempre demoradas, porque na volta ele se perdia, invariavelmente, no terreno baldio onde a criançada jogava péla, uma bola de seringa que se adaptava facilmente às necessidades de uma boa partida de futebol. Ventura era enfeitiçado pelo futebol. Esquecia-se das horas e, às vezes, do próprio tabuleiro de doces, que deixava encostado e coberto a um canto, enquanto corria atrás da péla com seu corpo enxuto e ágil.

Tornou-se um dos jogadores mais requisitados. Sabia defender, armava as jogadas do time e, mesmo quando atacava, voltava no momento certo para o meio de seu campo. Firmou-se, entre a garotada obidense, como o melhor centerhalf do lugar, num tempo em que os times, ou teams, eram formados por goalkeepers, backs, centerhalfs, halfs, centerfors (centerforwards), middles e pointers. O que lhe valia, em casa, reprimendas e a severidade de Rosa, amaciadas pelo velho Araújo e por Henriqueta, que sempre intercediam pelos netos, aconselhando paciência e opondo-se inflexivelmente a qualquer desforço físico contra as crianças.

O velho Araújo foi o avô e o pai dos filhos de Rosa durante o tempo em que moraram em Óbidos. Não só pelas atitudes que tomava diante dos aconteci-mentos do lugar, mas também pela maneira com que conversava e tratava os netos, exerceu grande influência na formação inicial deles. Pedro Araújo era destemido e não se curvava aos galões. Em 1924, durante os levantes militares tenentistas, o tenente Magalhães Barata levantou a sua tropa em Manaus e deslocou-se de vapor para o médio Amazonas. A notícia espalhou-se rapidamente e os oficiais do batalhão de Óbidos simplesmente desapareceram, exceto Pedro Araújo, que permaneceu em seu posto.

Ele não acreditava nem tinha confiança no governo, mas também não esta-va envolvido nas movimentações dos tenentes e capitães que, no sul, haviam reali-zado o levante de São Paulo e Alegrete. Conhecia vários desses tenentes e também não confiava neles. Entre fugir e aderir, achou mais digno permanecer à frente da

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tropa e enfrentar os acontecimentos conforme eles se apresentassem. Pedro Araújo também era severo em seus negócios e no trato do dinheiro que não era seu.

Durante todo o tempo em que exerceu a função de vagomestre jamais se levantou suspeição sobre qualquer deslize seu nos contratos, compras e requisições para os obras que estavam sob seu comando. Isso numa época em que era comum que os batelões, transportando materiais e víveres para os quartéis da Amazônia, “afundassem” nas corredeiras. Toda a carga normalmente se perdia, embora os oficiais no comando do transporte, e os sargentos ou suboficiais que os acompa-nhavam, sempre saíssem ilesos e, em geral, secos.

A postura rígida de Pedro Araújo levou-o a ter uma altercação séria com o então tenente-intendente Mendes de Moraes, que bem mais tarde alcançaria o marechalato e se tornaria, mesmo, prefeito do Rio de Janeiro. Araújo descobriu que o tenente não estava agindo lisamente na direção da intendência do Batalhão e decidiu resolver as coisas com franqueza e sem burocracia. Isso lhe valeu ficar sob a mira e a ira dos oficiais envolvidos nas bandalheiras de então.

O velho Araújo também tinha a mania da verdade. Não admitia mentiras, dava extremo valor quando as pessoas reconheciam seus erros ou diziam o que pensavam, mesmo sabendo que isso não seria do agrado dos que as ouviam. Ven-tura passou o final da infância e o início da puberdade frente a frente com esse caráter firme. Era destemido no futebol, nos estudos, nos mergulhos e na natação nos igarapés. Era também o que se poderia chamar de “galinho de briga”, quando decidia contrapor-se aos garotos mais velhos afeitos a maltratar os mais novos, principalmente em defesa dos manos Roman e Eduardo.

Nunca inventava lorotas para escapar das admoestações da mãe, quando ficava no futebol, ao invés de ir vender os doces de macaxeira no atracador do rio. E não gostava dessas fofocas, tão comuns nas crianças, de falar mal de um colega para os outros, ao mesmo tempo passando-se por seu amigo e confidente. Botava os dois frente a frente e abria o leque do disse-me-disse, às vezes saindo chamusca-do pela ira de ambos. Na contabilidade geral, era um menino feliz, que ainda não entendia bem por quê o pai ficara tão longe, de vez em quando escrevendo-lhe uma carta na qual, invariavelmente, vinha pelo menos uma nota de 100 dólares.

Metia-se na conversa dos adultos quando achava que não estavam falando a verdade, o que muitas vezes causava um fingido constrangimento ao velho Araújo. Era franco nas suas opiniões, travando inusitadas discussões com o velho professor Tostes sobre temas de aula que considerava diferentes de como estavam nos tex-tos. Foi assim que descobriu a verdadeira história dos índios, cujas andanças pelas trilhas de Óbidos, atrás dos campos de caça e das coivaras para plantar suas roças, costumava acompanhar com admiração. Como parte dos moradores da cidade considerasse os índios indolentes e incapazes e, também, perigosos, isso era motivo para constantes discussões em sala de aula.

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Bastava que algum dos alunos fizesse comentário a respeito para que o pro-fessor Tostes brandisse um dos sermões do padre Vieira: “Os moradores deste novo mundo”, escreveu o sacerdote, “ou são portugueses ou índios naturais da terra. Os índios, uns são gentios, que vivem nos sertões, infinitos no número e diversidade de línguas; outros são pela maior parte cristãos, que vivem entre os portugueses. Destes que vivem entre os portugueses, uns são livres (...) outros são parte livres e parte cativos, que moram com os mesmos portugueses e os servem em suas casas e lavouras, e sem os quais eles de nenhuma maneira se podem sustentar”.

“Ouviram?”, repetia ele, “sem os quais eles, os portugueses, de nenhuma maneira se podem sustentar”. E continuava: “O que interessava ao colono era usufruir o trabalho gratuito, dispor do índio como escravo”, “remeiros e tripu-lantes para as canoas que iam às drogas, escravos domésticos”, “pois os colonos se pejavam em realizar trabalhos manuais, que no seu conceito de vida era assunto de servos”. Mais: “Na vida dos índios consiste toda a riqueza e remédio dos morado-res e é muito ordinário virem cair em pouco tempo em grande pobreza os que se têm por mui ricos e afazendados, porque a fazenda não consiste nas terras, que são comuns, senão nos frutos ou indústrias com que cada um os fabrica, e de que são os únicos instrumentos os braços dos índios”.

“Entenderam?”, continuava Tostes. “Vagabundos eram os colonizadores portugueses. Empregavam os indígenas para sobreviver e arrancar daqui as rique-zas que Portugal e as outras metrópoles europeias precisavam. Utilizavam os silví-colas para construir canoas, servir de remeiros, pescadores, caçadores, coletores de produtos florestais ou derrubadores de árvores para fazer a coivara e plantar roças. Enquanto os holandeses, ingleses e franceses comerciavam com os indígenas as especiarias silvestres e animais em troca de ferramentas, tecidos e quinquilharias, os portugueses os aprisionavam e os transformavam em escravos para servi-los. Mas uns e outros dependiam dos braços dos índios, ‘os únicos instrumentos’ de trabalho que empregavam.”

O velho Tostes também não perdoava as missões religiosas: “Elas proibiram a escravização indígena e ofereceram aos nativos proteção nas missões, arrancando

dos colonos ‘os únicos instrumentos’ que ‘lhes podiam fornecer a subsistên-cia, o afazendado e a riqueza’, como dizia o padre Vieira. Mas os religiosos também tornaram cativos quase todos os índios, embora sob o nome de livres, e com o trabalho deles só fizeram enriquecer.”

Mas voltava logo aos colonos portugueses. “Eles sentiam uma ofensa ter que trabalhar com as próprias mãos, mesmo que fosse para não morrer à míngua. Quando acabou o monopólio das ordens religiosas, os colonos não podiam escra-vizar os índios porque isso continuou proibido. Mas eles arranjaram um jeito de burlar essa proibição, pagando ‘três varas de pano’, a título de salário, pelo trabalho de dias e dias dos indígenas. Estes remavam, subindo e descendo rios, para os co-

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lonos mascatearem gêneros e drogas do sertão. Trabalhavam na roça, ou pescavam, para produzir gêneros de subsistência, e fabricavam as canoas, o ‘cavalo dos rios’, em cima das quais levavam o patrão, ou regatão.”

“Aí”, prosseguia, “vêm esses escritores estrangeiros, como o tal de Henry Bates, dizer que o proprietário rural era ‘um João-faz-tudo, agricultor, negocian-te, pescador e construtor de canoas (...) quase sempre ausente, comerciando ou colhendo produtos naturais pelos rios’, que não conseguem enxergar a sombra desse proprietário, a sombra que trabalhava e produzia, o índio. Todas as riquezas geradas na Amazônia são o resultado do trabalho do índio, da mesma forma que no resto do Brasil são resultado do trabalho do escravo africano.”

Essas digressões do velho Tostes tinham forte impacto na mente de Ventura, gerando novas e maiores indagações. Óbidos, é verdade, era então um cadinho cultural. Seus professores de talento, como Tostes, Kepler, Saladino de Brito, que também era poeta, Emanuel Rodrigues e Mendonça Valente, eram uma referência educacional para a região do Baixo Amazonas. Entretanto, a cidade não possuía ginásio. E o avô e a mãe projetavam para o menino inteligente e vivaz um futuro que dependia de uma mudança para Belém, onde poderia fazer o curso secundário e preparar-se para ingressar numa faculdade.

Rosa não pretendia mudar-se logo. Tinha clientela segura em Óbidos. Se fosse para Belém, teria que refazer tudo, conseguir nova freguesia e tão cedo talvez não conseguisse garantir o sustento e o estudo dos filhos. Concordaram que pre-cisavam encontrar outro modo de resolver o problema, como apelar para Phila-delpho Cunha, que era tenente na época do casamento de Rosa e fora testemunha no cartório civil.

Agora era major, servia e morava em Belém, mas continuava muito amigo dos Araújo. Conhecera Ventura pirralho e decerto não se negaria a recebê-lo em casa para que pudesse estudar na capital. Aliás, no Pará essa era uma prática co-mum entre parentes e famílias conhecidas. Os que moravam em Belém sempre tinham o filho de algum parente ou amigo do interior, enviado para estudar no ginásio ou na faculdade que lá faltava.

Foi dessa forma que Ventura deslocou-se sozinho, doze anos completos, no início de 1926, para a cidade do forte Presépio. Ficou um bom tempo no balaustre da gaiola em que viajou, olhando Óbidos cada vez mais distante, com os avós, a mãe, irmãos, tios, primos e amigos no trapiche, acenando mãos e lenços, até que a cidade sumiu de repente na primeira curva do paraná de baixo. O coração pareceu--lhe um punho cerrando-se fortemente e lembrou-se vagamente da outra viagem que fizera com a mãe e Roman, para cidades que não compreendera, onde viviam pessoas cuja fala não entendia. Seria igual em Belém?, suspirou conformado.

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4 O QUE SE IgNORA É O QUE MAIS FAZ FAlTA

De outra interpretação careço;Se o espírito me deixa esclarecido,

Escrito está: No início era o Sentido!Pesa a linha inicial com calma plena,

Não se apressure a tua pena!É o Sentido então, que tudo opera e cria?

Deverá opor: No início era a Energia! J.W. goethe (Fausto)

1976, São Paulo, dezembro: madrugada do dia 12 1926-1933, Pará: revoltas e descobertas

Mário voltou a acordar, mas não como da vez anterior. Apenas entreabriu os olhos, reparou na escuridão e mergulhou novamente em seus sonhos. Como quem torna do futuro, retomou sua vida no tempo em que ainda estava em Óbi-dos. Naquela época em que era Ventura e só através dos comentários vivos do avô tinha uma leve ideia do que ocorria.

As notícias dos levantes militares de 1922 e 1924 causaram impacto em sua cabeça de criança que ingressava na adolescência. Fazia indagações às quais o velho Araújo em geral respondia culpando a amoralidade e a ambição dos poderosos. Nessas ocasiões Ventura lembrava, vagamente, do pai folheando li-vros para encontrar respostas, sempre que tinha dúvidas a respeito de alguma coisa. Talvez por isso, começara cedo a escarafunchar as revistas e os volumes da biblioteca do professor Tostes, às vezes só os largando pelo chamado selvagem e irresistível do futebol de péla. Mas as leituras de Óbidos eram limitadas e lhe ofereciam esclarecimentos muito aquém de sua curiosidade.

Num salto, seus sonhos o fizeram cair outra vez em Belém. Ao chegar lá, sentiu abrir-se um mundo cheio de surpresas. Não foi só a imensidão do rio Pará, o braço sul da foz do Amazonas, que o impressionara. Apesar de tudo que di-ziam ter sido a cidade nos tempos áureos da borracha, Belém ainda parecia uma

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metrópole. Continuava com avenidas largas, alamedadas por mangueiras, igrejas monumentais, praças com várias espécies de plantas, árvores e pequenos lagos. E prédios e casas comerciais que misturavam produtos importados do Rio de Janeiro com artigos provenientes da Europa e dos Estados Unidos, além de palacetes per-tencentes a antigos e abastados seringalistas, ou a novos ricos que se aproveitaram das falências causadas pela queda do preço da borracha. Havia ainda os bondes elétricos, o porto, o incrível Ver-o-Peso, e os carros a motor, como aqueles em que andara nos Estados Unidos.

Todavia, foram principalmente as estantes de livros da casa do major Phila-delpho, onde passou a morar enquanto estudava no ginásio Nazareth e se prepa-rava para ingressar no ginásio Paraense, assim como as da livraria Martins, onde podia se encostar numa parede e ler um texto inteiro sem ser importunado, que lhe descortinaram um mundo até então desconhecido. Foi aí que descobriu José Veríssimo, obidense a exemplo de Inglês de Souza, e passou a saber como, durante a era áurea da borracha, se faziam “fortunas numerosas e rápidas, grandes mesmo”, e se desfaziam porque não havia ali riqueza acumulada, “capital bastante às neces-sidades do já importantíssimo tráfego da região”. Como esta vive exclusivamente de um único produto, “está por isso mesmo sujeita às oscilações do valor comercial desse produto”, “às suas crises que logo resultam nos da mesma região”.

O império da borracha gerou uma crise de alimentos, uma crise de lenha para os vapores, uma crise de saúde pública e várias crises menores. Sob o império da borracha, cujo déspota imediato era o patrão seringalista, o vassalo seringueiro, pressionado também pela ilusão da riqueza que corria em suas mãos, não prepa-rava coivaras, não fazia roçados nem produzia o mínimo para sua subsistência. No barracão encontrava conservas de carne, sardinhas, toucinhos, atum, ervilhas, bacalhau e até queijos franceses, sem saber que a ausência de alimentos frescos e verduras iria lhe causar o beriberi, aquela avitaminose fatal.

O que importava era o látex, na eterna esperança febril de que, da mesma forma que aquela seiva leitosa se transformava em ouro negro, um dia este se trans-formaria em ouro amarelo e lhe permitiria a redenção. Mas, quando a produção inglesa da Malásia fez desabarem os preços da hévea, já durante a Primeira guerra Mundial, toda aquela esperança desvaneceu-se numa miséria sem volta. As cidades amazônicas, incluindo Belém, pararam no tempo, deixando que sua opulência an-terior se degradasse sob a ação da umidade e do mormaço equatorial. Com a econo-mia de subsistência e de coleta de drogas do sertão destruída pela própria insensatez, tiveram que apelar cada vez mais para o Nordeste e o Sul brasileiros, integrando-se paulatinamente ao resto do país sob o constrangimento da necessidade.

Ventura devorava os textos com a avidez dos neófitos. Mas não era rato de biblioteca: queria viver plenamente a vida que pululava na escola, nas casas, nas ruas e, tão ou mais importante, nos campos de futebol. Enturmou-se logo para jo-

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gar no time do Nazareth e adorava apanhar as mangas que caíam durante a chuva. Mais do que em Óbidos, no começo da tarde a chuva desabava impreterivelmente, quase sem aviso, cheia, bagos grossos, molhando sem comiseração os que se aven-turavam a enfrentá-la. Rolava em enxurrada pelas canaletas das telhas e sarjetas das ruas e avenidas calçadas e batia pesada nas folhas e galhos das mangueiras, enfileiradas como ornamento e guarda-sol das vias públicas e praças, derrubando as frutas maduras e espalhando sua fragrância forte.

Belém era um mangueiral urbano, e uma festa permanente para a garotada, com seus paneiros, disputando as frutas mais maduras e maiores, nem bem a chuva estiava. Mesmo porque, com a rapidez e força com que chegava, ela se ia, deixando atrás de si um ar fresco e cheiroso, em que os odores das mangas se misturavam aos dos bacuris, sapotas, cupuaçus, cacaus e outras frutas, presentes em todos os quintais.

Pairava também um ar de rebeldia, mesclado aos outros aromas da cidade, espalhando-se de forma diferente entre as diversas camadas da população. Mui-tos dos endinheirados, na ladeira abaixo da queda da borracha, não encontravam meios de salvar-se da ruína e pressionavam o governo para canalizar para eles os di-videndos das exportações. Aqueles que tinham terras e gado ainda se sustentavam, mas distanciavam-se cada vez mais do fausto que a seringa lhes proporcionara.

As classes médias, envolvidas com o comércio e os serviços, principalmente os serviços públicos, também viam minguar a sua renda e, do mesmo modo que o velho Araújo, descarregavam sua ira sobre o corrupto mais próximo, na hipótese de que, como um raio, ela poderia atingir todo o sistema e o transformar.

Já os trabalhadores urbanos, cujo número havia se expandido, desde o início do século, com a construção do porto, da termelétrica, da estrada de fer-ro, das linhas de bonde, da eletrificação, dos sistemas de água e esgotos, assim como das oficinas de manutenção e reparo dos equipamentos, navios, bondes e carros, pressionavam por salários mais decentes, por jornadas menores, pelo direito de associação e para serem tratados como cidadãos.

Havia, ainda, uma massa dispersa, habitando palafitas nos alagados e baixa-das da maré, que sobrevivia da pesca, da cata de caranguejos nos manguezais, da coleta e beneficiamento do açaí, de pequenas roças de mandioca e da fabricação de farinha d’água, tapioca, tacacá, biju, cuscuz e outras iguarias vendidas por toda a cidade, cuja situação a rigor não piorara, porque antes não haviam chegado até ela as migalhas gordas da riqueza seringalista. Ela há muito vivia da economia natural e continuava vivendo da mesma forma.

O principal foco evidente de descontentamento eram mesmo as classes mé-dias, nas vertentes militar e estudantil, uma mergulhando na conspiração e a outra transbordando na agitação febril das escolas secundárias e das faculdades. No mes-mo ano de 1927 em que Ventura ingressou no ginásio Paraense, o conflito ainda

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surdo dos quartéis fez com que o velho Araújo, já então major, e seu filho, o sargento Peri, fossem banidos e deslocados para Macapá. O capitão Mendes de Moraes viu--se vingado e o núcleo familiar dos Araújo em Óbidos sofreu, com isso, o primeiro golpe verdadeiramente rude, deixando Rosa apenas com o apoio de Cota e Zeca.

Ventura recebeu a notícia em Belém e, mesmo sem entender exatamente o que ocorrera, foi despertado para algo a que, até então, prestara apenas algu-ma atenção: o conflito latente e às vezes explícito que grassava na sociedade. Em alguns livros já notara a presença desse tipo de assunto, mas só diante desse fato familiar confrontou-se cruamente com a própria realidade em que vivia.

Em meio a descobertas sucessivas como essa torna-se um estudante aplicado e, à medida que cresce, vai conquistando não só a fama de inteligente e bom joga-dor de futebol, mas principalmente de interessado nos problemas da vida cotidia-na. João Malato, que foi seu contemporâneo e depois se tornou jornalista, lembra--se dele como “moço tranquilo, de aparência quase bela e com um sorriso infantil e afetuoso que conquistava qualquer pessoa que dele se aproximasse”. Cecyl Meira, também menino nessa época e mais tarde advogado famoso, recorda que Ventura era “um menino muito bonito, muito benquisto”. Ambos também se lembram de que ele tinha muito bom gosto na escolha dos livros, com mais leitura e cultura do que a maioria dos colegas.

Além dos autores amazônicos, navegava na prosa de Dickens, Vitor Hugo, Balzac, Zola, Sthendal, london, Cronin, Tolstoi, Eça e outros que encontrava na Martins. leu Alencar, gonçalves Dias e tomou contato com Machado de Assis justamente no momento em que descobria os conflitos políticos e sociais, não simpatizando com ele. Achou-o morno demais para uma realidade tão gritante.

Como grande parte da juventude de sua época, sentiu-se fortemente in-fluenciado pela figura e pelo mito de luiz Carlos Prestes, constantemente nas páginas dos jornais paraenses, como o “Cavaleiro da Esperança”. Ventura discutia com os colegas, emprestava livros, levantava problemas, organizava movimentos, embora suas ideias ainda não tivessem uma direção definida. Em 1930, ao ocorrer a Revolução liberal, já era ativista estudantil e havia tomado contato com os pri-meiros livros de inspiração comunista e socialista, como ABC do Comunismo, de Bukharin, e A Mãe, de gorki.

Nutriu esperanças nas promessas reformadoras dos tenentes liberais, mas logo se desiludiu com a sua revolução, no Pará representada por Joaquim Magalhães Barata, para quem a doutrina do tenentismo baseava-se na ideia de que, quando o governo estava com a lei, as forças armadas deveriam apoiá-lo, ainda que devessem combater o próprio povo. Quando, porém, os governos mutilavam a lei e desres-peitavam a Constituinte, competia às forças armadas colocar-se ao lado desta, ainda que fosse mister destruir o poder constituído. Embora essa doutrina tivesse muito de embuste, o povo seria sempre perdedor se não estivesse ao lado da lei.

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Magalhães Barata vinha de uma família de classe média que encontrara na carreira militar a forma de ascensão social. Ingressara nas conspirações tenentistas desde antes de 1924, quando tentou levantar as guarnições do Amazonas e do Pará contra o governo. Em agosto de 1930, transferiu-se clandestinamente para Belém, tornando-se dirigente da conspiração liberal. Foi preso, porém, antes do levante militar, e transferido para o Espírito Santo, só retornando ao Pará após a vitória do movimento dirigido por Vargas, em outubro. É, então, nomeado Interventor, em lugar da Junta Revolucionária chefiada pelo coronel landry Salles.

Ao mesmo tempo que decretou a redução dos aluguéis, a isenção das taxas de casamento civil para os pobres e o aumento de 50% nos impostos de indús-trias e profissões que não tivessem em seu pessoal dois terços de brasileiros, Ba-rata tomou medidas para atingir a velha oligarquia. Mandou executar a cobrança de impostos atrasados de vários coronéis paraenses, como José Júlio de Andrade e Francisco Chamié, extinguiu os contratos de enfiteuse, que possibilitavam o monopólio do solo urbano de Belém por duas grandes famílias latifundiárias, os lobos e os guimarães, alterando-os para contratos de aforamento com os mora-dores dos terrenos, e extinguiu os latifúndios nas terras devolutas do Estado que contivessem seringais, castanhais, balatas e outras riquezas naturais.

Essas terras passavam a ser cedidas em arrendamento de um ano, renovável, ficando proibida a locação de mais de três sortes de terras, no mesmo município, para parentes até o sexto grau. Com isso ele pôde anular as concessões de velhos oligarcas, como a de 500 mil hectares de José Antunes, no rio Tapajós, a de um milhão de hectares do tenente-coronel Faria Coelho, a de 700 mil hectares de Il-defonso Albano e as de 100 mil hectares de Wolfgang Hostman, no rio Capim, e Raimundo Costa lima, em Óbidos.

Todas essa medidas tiveram grande repercussão e apoio popular, mas na prática eram limitadas e serviram apenas de instrumento para substituir parte da antiga oligarquia por uma nova, que passou a ter as benesses do aparelho de Estado baratista. Ao mesmo tempo, a democracia prometida pela revolta liberal só existia para as manifestações de apoio ao Interventor. As demais, de acordo com os atos não revogados da Junta Revolucionária, poderiam resultar na “passagem pelas ar-mas, em praça pública, de todo aquele que, estrangeiro ou não, propalasse ou desse curso a boatos de propaganda comunista, tentando assim enxovalhar os grandes e nobres princípios da Revolução Brasileira”.

Barata também desmobilizou a Força Pública, demitiu grande parte do fun-cionalismo e começou a montar um novo aparato de poder com base em apenas algumas das forças sociais e políticas que haviam apoiado o movimento militar liberal. Sua perseverança na montagem de corte própria e personalista conduziu a desavenças internas e intrigas palacianas, ao tempo que se chocavam com as aspi-rações de liberdade e democracia de setores crescentes das classes médias.

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No início de 1932 o clima em Belém já era de conflito aberto. Barata atacou pelos jornais “a nefasta política dos decaídos”, mandou suspender o feriado come-morativo da Revolução Francesa, que se tornara uma festa tradicional em Belém desde que a República fora proclamada, suspendeu os jogos de futebol e embarcou tropas paraenses para lutar contra os constitucionalistas paulistas.

Desde o ano anterior, Ventura já estava envolvido em contatos e articulações com figuras cassadas pela Revolução liberal, como Alarico Barata, e com universi-tários e representantes de outras camadas sociais que se opunham ao que chamavam “ditadura do Barata”. Para Salermo e Eidorfe Moreira, irmãos que participavam com Ventura das articulações visando um levante armado em Belém contra o gover-no Barata, ele “ainda não tinha ideias esquerdistas”, nem “atitudes radicais”, sendo apenas, como os demais estudantes, “contra a ditadura, sofrendo as pressões que não deixavam os estudantes se manifestarem”. “Éramos todos constitucionalistas”. Como o era o Partido Comunista no Pará, organizado a partir de 1931 com tra-balhadores da Pará-Elétrica e das docas, e que tinha representantes na conspiração.

Um deles, Henrique Santiago, motorneiro de bondes, conheceu Ventura na faina conspiratória. “Tinha um poder extraordinário de comunicação, um poder medonho. Sabia conquistar a todos, e tinha grande influência sobre os estudan-tes”. Influência que se manifestou quando os estudantes do ginásio Paraense se levantaram em solidariedade aos revoltosos de São Paulo, em agosto de 1932, e entraram em choque com os bombeiros enviados para reprimi-los a jatos de água. Ventura é um dos líderes que assaltam o carro tanque, e volta as mangueiras contra os soldados e oficiais, colocando-os em fuga.

À tarde os ginasianos juntaram-se aos acadêmicos de medicina e direito no largo de Santa luzia para protestar contra a ação dos bombeiros, sendo atacados pela cavalaria, com inúmeros presos e feridos. “A bem da disciplina do ensino”, Salermo e outros estudantes do Paraense foram excluídos da matrícula e alguns suspensos, enquanto os jornais A Crítica e O Imparcial tiveram suas edições proibidas de cir-cular. Nada disso arrefeceu, porém, a atividade conspirativa, nem as manifestações.

Em Óbidos, a maior parte dos sargentos da remanescente bateria de artilha-ria se rebelou, ganhou o apoio de alguns oficiais e soldados, mas foi sufocada de-sonrosamente ao se deixar envolver por um falso coronel Pompa, um aventureiro que se apresentara com credenciais do general Klinger. Os revoltosos presos foram transportados para Belém pelo vapor Poconé, aportando no dia 6 de novembro. Nesse mesmo dia, os conspiradores da capital conquistaram o Batalhão de Infan-taria, armaram barricadas, tomaram a Central de Polícia e sustentaram combates por 15 horas contra as tropas governistas.

O principal articulador da conspiração, João Botelho, acadêmico de di-reito e amigo de Ventura, fora preso. E o Partido Comunista decidira, em cima da hora, negar seu apoio à revolta por considerá-la uma “revolução burguesa”.

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Ventura, porém, manteve seu compromisso e comandou uma trincheira no bair-ro do Reduto, armado de fuzil, sendo também encontrado por Salermo na trin-cheira do Areão, antes do cerco final. Os revoltosos contabilizaram pelo menos cinco mortos e dezenas de feridos e prisioneiros. Eidorfe Moreira perdeu um dos braços, arrancado por um balaço.

Ventura conseguiu conduzir um grupo de estudantes combatentes através das linhas inimigas, indo esconder-se com eles na zona do meretrício, onde foram protegidos pelas prostitutas e escaparam das perseguições policiais que se seguiram ao fim dos combates. À fama de bonito, alegre, generoso, dotado de espírito crítico e liderança, Ventura acrescentou a de corajoso. Mas, pressionado pela mãe, já mo-rando com os três filhos na rua Boaventura da Silva, em Belém, ele teve que viajar “em férias” para o Rio de Janeiro. Vai para a casa de Eneida de Morais, jornalista com quem fizera amizade desde que começara sua vida de agitador estudantil e político.

Eneida, que lançara seu primeiro livro de poemas, Terra Verde, em 1929, era uma pena afiada contra o sistema dominante, apoiando e estimulando os estu-dantes em suas aspirações democráticas e rebeldes. Quando Barata se instalou no poder, fecharam-se as portas para sua atividade profissional em Belém e ela decidiu mudar-se para o Rio de Janeiro. Não participou, assim, dos acontecimentos de 1931-32 no Pará, mas mesmo de longe os acompanhou através de correspondên-cia intensa com os amigos. Vivia então com um advogado trabalhista, Benigno Fernandes, militante do Partido Comunista, e morava com ele e o irmão guilher-me (guilhito) num casarão da rua Mosqueira, no bairro da lapa, com inúmeros quartos que alugava para estudantes.

Quando Ventura apareceu, ela o recebeu com alegria e relembrou com ele os cheiros e os gostos da terra verde. Não há nada mais indicativo do reencontro de dois paraenses do que a conversa descambante, com rapidez sem travas, para o tacacá, o açaí, o cupuaçu, o pato no tucupi, a maniçoba, o vatapá, a farinha d’água, a tapioca, o tucunaré, o tambaqui, o pirarucu, a pupunha. Depois, vem o repassar dos “encontros depois da chuva”, dos passeios no Ver-o-Peso e no Bosque, dos ba-nhos no Outeiro e no Mosqueiro, ou em Salinas ou Soure, das representações no Teatro da Paz, dos blocos do último carnaval. E a relembrança dos amigos, quase sempre famílias inteiras de muitas almas, cada uma com suas histórias próprias, mas sem segredos, naquela grande taba cabana onde ainda está incrustado o Forte do Presépio, sem mais serventia alguma para vigiar a navegação do rio Pará.

Só então, depois dessa catarse completa, se os paraenses são daqueles envol-vidos nas lides políticas, de qualquer natureza, é que eles vão conversar a respeito. E a estada de Ventura, durante os três meses que passou no Rio de Janeiro, foi de muita conversa política. Eneida era colaboradora do Diário de Notícias e havia ingressado no Partido Comunista. Esse foi o centro das parolas dela e de Benigno com Ventura, parolas não de catequese, mas de discussão. Além disso, Ventura

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devorou os textos de Plekanov, lênin e Engels que Eneida tinha em sua estante. Maravilhou-se com Os Dez Dias que Abalaram o Mundo, de John Reed, e fuçou as livrarias do Rio de Janeiro à procura de livros e escritores. Descobriu lima Barreto e encantou-se com sua prosa sarcástica.

Não era uma época fácil para o Partido Comunista. Fundado, em 1922, por um reduzido congresso de representantes de grupos comunistas, compostos por operários e artesãos oriundos do anarco-sindicalismo, vivera apenas três meses e pouco de vida legal, sendo logo jogado na clandestinidade. Tentando representar uma classe operária de força social reduzida, na maioria dispersa por inúmeras pequenas empresas e oficinas e que mal despontara na sociedade brasileira, os comunistas brasileiros não contavam com qualquer tipo de intelectualidade re-volucionária que houvesse estudado o marxismo e adotado seu método de análise para investigar a realidade brasileira, descobrir suas principais tendências históricas e propor transformações conformadas a essas tendências.

Empurrados para o comunismo pela crise da liderança anarquista, após as primeiras grandes lutas operárias do Brasil, entre 1917 e 1920, e pela influência da Revolução Russa de 1917, os militantes operários e revolucionários dos anos 20 mal distinguiam os princípios anarquistas dos comunistas. Antonio Canellas, um dos fundadores do partido, ao mesmo tempo que acusava com razão a Inter-nacional Comunista de desconhecer a realidade brasileira, negava-se a aceitar a crítica justa dessa mesma IC, de que os dirigentes do PCB debatiam-se em “extre-ma confusão teórica”. Seu argumento era simples e razante: “composto quase que exclusivamente de operários que militam no sindicalismo revolucionário desde muitos anos”, a direção do PCB não poderia estar em “confusão teórica”.

Nesse período, se Canellas afastou-se do partido por discordar das obser-vações da IC, o secretário-geral do PCB, Abílio Nequete, deixou-o por conside-rar que a revolução não devia se apoiar na classe operária e sim na tecnocracia. A incapacidade para analisar as classes sociais presentes na sociedade brasileira e sua luta real, assim como as interferências externas que as influenciavam, fez com que os comunistas brasileiros navegassem à deriva dos principais aconteci-mentos que ocorriam no país, ora em confronto com eles, ora a reboque deles, sem entender exatamente do que se tratava.

O tenentismo da pequena burguesia, as divisões entre as oligarquias latifun-diárias regionais, as divisões na nascente e ascendente burguesia industrial, os mo-vimentos reformadores e as conciliações e acordos por cima entre alas e segmentos das classes dominantes, nada disso era entendido como parte de uma evolução impulsionada pelo quase sempre surdo, mas às vezes estridente, movimento dos de baixo. E, muito menos, como uma evolução realmente objetiva, na qual os comunistas deveriam integrar-se, apesar dos esforços permanentes do Estado para manter o povo e suas representações excluídos de qualquer participação e decisão.

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Os poucos intelectuais engajados no partido, que procuraram refletir sobre a realidade brasileira, capengavam no método e produziram teses de pouca consis-tência. Otávio Brandão, por exemplo, tomava como método de análise, que supu-nha marxista, um movimento cíclico de tese-antítese-síntese que estava a milhões de anos-luz do método dialético, para contrapor agrarismo e industrialismo no Brasil. E chegava à conclusão de que o movimento tenentista de 1924 teria resul-tado de uma situação revolucionária (tese) que contrapunha a burguesia às forças feudais (antítese). Deveria ocorrer, então, uma “terceira revolta”, capaz de criar a síntese daquela contradição.

O Partido Comunista teve, assim, enorme dificuldade em situar-se no curso principal das tendências contraditórias que desembocaram na Revolução liberal de 1930, ficando totalmente à parte dos acontecimentos. O mesmo ocorreu com Prestes, que aderira ao comunismo um pouco antes, sob influência da literatura marxista que Astrojildo Pereira, um dos fundadores do PCB, lhe fornecera em 1927, durante visita a seu exílio na Bolívia. Prestes procurou adequar-se à política do PCB, rompeu as negociações para comandar a revolução liberal, colocou-se to-talmente a serviço da possível revolução proletária, mas não foi aceito como mem-bro do partido, por ser considerado “pequeno burguês” e “autor de quarteladas”.

logo após a Revolução de 1930, leôncio Basbaum, intelectual que se in-corporara ao partido ainda nos anos 1920, reconheceu “as contradições entre a burguesia e o feudalismo”, e supôs que os dois eram levados a se unir “num bloco feudal-burguês” apenas por medo da revolução social. Concluiu, daí, que a revolu-ção de caráter nacional praticamente não mais existiria e que a Revolução liberal não passara de uma “outubrada”, “um golpe militar”. Desse modo, ele via a luta de classes como um conflito mecânico do bloco operário-camponês contra o bloco feudal-burguês, desdenhando o fato de que, naquela “outubrada”, uma parte da oligarquia rural assumira os interesses da burguesia industrial contra a oligarquia cafeeira, à qual a maior parte da burguesia industrial paulista se mantivera unida.

Esta confusão de classes em transformação talvez fosse complicada demais para um pensamento cartesiano, ainda por cima altamente influenciado pelas ver-dades cientificistas do positivismo. Nessas condições, nem os comunistas, nem Prestes, nem a Internacional Comunista, conseguiram apreender, durante os anos 1920, o sentido geral das agitações e movimentações sociais que tornaram tão ins-tável a República e que confluíram para um rearranjo das classes no poder, tendo em vista o fortalecimento da burguesia industrial e, com esse fortalecimento, a ampliação das classes médias e o reforçamento de um novo ator social no panora-ma brasileiro, a classe operária.

Os operários não haviam ainda conquistado visibilidade nacional como classe, nem tinham forjado qualquer laço com o campesinato. O PCB, por seu turno, tinha pequena inserção na classe operária e, ainda menos, no campesinato,

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além de ter aversão à pequena burguesia. Como diria Hermes lima, “não possuí-mos jamais nenhum partido que fosse, de fato, instrumento político do povo, vivendo do contato e do apoio direto do povo”. Assim, dificilmente o proletariado e os comunistas conseguiriam criar um movimento revolucionário independente daquele que uma parte das oligarquias, da burguesia e da pequena burguesia pre-parava para reformar o poder e o país. Ou se integravam no processo para criar sua própria força política e militar, ou ficavam de fora, na esperança da “terceira revolta”. Ficaram de fora.

O mais impressionante é que, enquanto os comunistas recusavam a adesão de Prestes e, através do Bloco Operário e Camponês, faziam campanha cerra-da contra Vargas, este e sua Aliança liberal divulgavam as palavras de ordem do Cavaleiro da Esperança e reforçavam a impressão de que Vargas e Prestes eram aliados, apesar do repúdio deste ao levante liberal. Com a participação de massas varguistas e prestistas, o movimento armado de 1930 transformou-se de quartela-da em marcha popular armada, sem os comunistas.

Ao retornar a Belém, no início de 1933, já como membro do Partido Comu-nista, Ventura levava consigo essas perplexidades que inquietavam os comunistas brasileiros. A marcha lenta do vapor, singrando as águas, lhe dava tempo para refle-xões e devaneios. Completara 17 anos em meio aos movimentos da Aliança liberal e logo aprendera que, no rearranjo dos poderosos no poder, não havia lugar para os que pretendiam acabar com as oligarquias e, muito menos, para as camadas popula-res. A democracia liberal, de que tanto falavam, continuava a ser a democracia das, e para as, elites, para alguns poucos privilegiados. Estes, como defendia Oliveira lima, tinham o regime oligárquico como a única forma de democracia possível no Brasil. O povão e as classes médias, com algumas raras exceções, deveriam perma-necer sem vez e também sem voz.

Foi por isso que logo, logo, Ventura meteu-se na conspiração constitucio-nalista e foi nela até o fim, tomando parte nas barricadas da revolta de 1932. Não entendera por quê os comunistas haviam tirado o corpo na última hora. Está bem que a direção da revolta estava em mãos da oligarquia paulista derrotada em 1930, mas supunha que se a democracia fosse implantada, abrindo vez para os que tinham voz, mas nunca foram ouvidos, isso poderia contribuir para criar maior divisão nas oligarquias e impedir que elas chegassem a novo acordo. Como a briga ficou apenas entre elas, e o povão permaneceu dividido sob a tutela de ambas, Var-gas e a oligarquia paulista puderam fazer um acerto de conciliação. Foi frustrante.

De qualquer modo, apesar das confusões políticas, via os comunistas como os únicos que não só apontavam as principais mazelas do país, como tinham prin-cípios de luta pela emancipação dos trabalhadores, pelo fim da opressão de uma classe sobre as outras e pela implantação de uma democracia que não fosse uma fachada, mas um regime em que todos tivessem as mesmas oportunidades econô-

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micas, sociais e políticas. O resto, deduzia, a luta ensinaria e, lembrando gonçal-ves Dias, repetia que viver é lutar. Então, não titubeou quando Eneida e Benigno o convidaram para ingressar no partido.

Achava que um movimento que, desde seu nascimento, fora perseguido sem cessar e, apesar de todos os erros e problemas, permanecera vivo por mais de dez anos e continuava sendo uma referência para os trabalhadores e aqueles que se indignavam com a exploração predominante no país, devia possuir uma força latente que ia muito além da sua atualidade. Decidiu, assim, dedicar-se de corpo e alma a ele, mas não como profissão ou meio de vida. Teria que preparar-se para garantir sua sobrevivência e, ao mesmo tempo, relacionar-se com os trabalhadores, com o povo pobre e sofredor, tanto para conquistá-lo, como para contribuir no dia a dia de sua vida. A medicina poderia ajudá-lo.

gostava da arte de curar. Fazia tempo que se interessava pelo tratamento dos doentes, antes mesmo de se preocupar com a doença de pele da mãe. Ao contrário de muitos colegas de infância, que tinham prazer em matar passarinhos e infernizar gatos e cachorros, procurava mezinhas que curassem asas e patas que-bradas e acompanhava com atenção as recomendações do médico quando havia algum doente na família. Na viagem de volta a Belém, Ventura tomou duas deci-sões de vida: militar no Partido Comunista e tornar-se médico.

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5 SEM ERROS JAMAIS CHEgAS À RAZãO

Vivem-se duas almas, ah! no seio,Querem trilhar em tudo opostas sendas;

Uma se agarra, com sensual enleioA órgãos de ferro, ao mundo e à matéria;

A outra, soltando à força o térreo freio,De nobres manes busca a plaga etérea.

J. W. goethe (Fausto)

1976, São Paulo: dezembro, madrugada do dia 12 1932-1940, Belém: o tempo todo

Mário ainda continuava envolto nas névoas de seus sonhos quando o dia começou a clarear e infiltrar seus primeiros raios de luz pelas frestas da janela. Mo-mentaneamente pareceu despertar, mas o que se apresentou à sua frente foi o cais da Port of Pará, onde o vapor em que navegavam suas lembranças iria atracar. As ondas verdes do mar salgado haviam sido substituídas pelas águas barrentas do mar doce, que naquele momento corriam rio acima, acompanhando o crescimento da maré.

Quando desembarcou, Belém parecia esquecida dos acontecimentos de 1932. Ninguém o incomodou. Pôde preparar-se para os exames da Fa-culdade de Medicina, nos quais foi aprovado, e aos poucos começou a reatar os contatos com os antigos companheiros. Procurou Henrique Santiago, um dos principais dirigentes do partido no Estado, já conhecido da conspi-ração de 1931-1932, e passou a tomar parte das atividades do PC na cidade.

A presença do Partido Comunista no Pará era recente, mas seus membros haviam aprendido alguma coisa com os duros embates travados contra a ditadura de Barata. Operavam com cuidado, na perspectiva de construir o partido entre os trabalhadores, estudantes e intelectuais. Ventura ficou encarregado de organizar os universitários e, na medida do possível, fazer a ponte com os intelectuais.

Era o avesso da imagem de “comedores de crianças”, que as elites e a im-prensa divulgavam dos comunistas. Na faculdade, além de estar na linha de frente

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dos estudos, tornou-se estrela do time de futebol e chamariz das meninas dos gi-násios. A torcida feminina era presença constante nos jogos do time da Medicina: nenhuma queria perder as jogadas daquele louro “alto, bonito, dentes perfeitos e gargalhada sonora”, no dizer de Rui Barata, Dinoca Ferreira e muitos outros que o conheceram na ocasião.

A sua gargalhada era, certamente, a manifestação mais eloquente de seu ca-ráter franco, sem disfarces, bondosamente contagiante, de alegria incomum, sem medo de colocar suas verdades na arena e incapaz de realizar uma falseta, como qualificavam amigos e inimigos da época. Passou a jogar no Clube do Remo, onde se destacou como centerhalf. Mas já não era mais apenas o Ventura dos amigos e dos íntimos. Tornara-se o Pomar dos bancos de faculdade e dos campos de futebol, numa vida transparente que, paradoxalmente, encobria suas atividades políticas de militante comunista.

A morte prematura do irmão caçula, Eduardo, que não suportara o tifo que também o acometera, foi porém um choque que só conseguiu absorver em virtude das múltiplas atividades que o mantinham ocupado. O futebol, a medicina e o partido eram os três amores, entre os quais se dividia, e entre os quais, mais cedo ou mais tarde, teria que se decidir. Para complicar, em 1934, ano da fundação da Aliança Nacional libertadora (ANl) no Pará, os sentimentos amorosos de Ventu-ra se embaralharam quando travou conhecimento com Catharina, uma moça na flor de seus 17 anos, miúda, mas de um rosto formoso e uma cabeleira loira que, certamente, ganhara de presente de alguma ascendência galega.

Ela morava na rua João Balby, quase no canto da rua Almirante Wan-denkolk, não muito longe da Boaventura da Silva, onde Pomar vivia com sua mãe e Roman. Cruzavam-se constantemente nos caminhos de cada um para o ginásio e a faculdade, mas foi numa sessão do cinema Olímpia, talvez assistindo a A Mulher Divina, com greta garbo, em oito atos, que iniciaram um flerte, logo transformado em paixão.

A casa 181 da João Balby era de dona luiza Cardoso de Figueiredo Torres, mãe de Catharina. Toda de madeira trabalhada, estava colocada no centro de um terreno amplo, onde os pés de frutas forneciam sombra. Seu porte era uma de-monstração de abastança, resultado ainda da herança paraense deixada pelo por-tuguês Manuel de Figueiredo, aviador rico que possuía um comércio grossista na praça de Belém, com empregados lusos e escravos africanos. Depois da Abolição, com medo do que aconteceria com a escravaria livre, vendera quase tudo, voltando para Portugal. Já viúvo, deixou no Brasil, porém, não só as filhas do casamento, Virgínia, luiza e Rosa, como um filho de sua relação com uma cabocla paroara.

Fornira todas com casas de aluguel, que lhes garantiam uma renda certa, e lhes enviava complementos financeiros religiosamente. Deserdara, porém, o filho, para quem não enviava sequer uma noz. luiza é que repartia sua mesada com ele,

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permitindo-lhe não só subsistir com a mãe, como estudar e, mais tarde, aventurar--se pela cacauicultura baiana. luiza era miúda e, quando jovem, tinha corpo e fei-ções de chamar atenção, despertando olhares cobiçosos. Matreira, quando alertada para o fato de que estava sendo observada, aumentava o requebro dos quadris e dizia seu invariável “Deixa-los penar!”.

Nascida em 21 de junho de 1880, casou tarde, com João Torres Corrêa, um comerciante descendente de portugueses, com quem teve a primeira filha, Catha-rina, aos 37 anos, e a segunda, Orlandina, aos 41, esta seis meses após a morte do marido, vítima de uma pneumonia galopante. Dois anos mais tarde voltou a se casar, desta vez com um motorneiro português da Pará-Elétrica, a empresa inglesa que monopolizava a geração de energia e os transportes urbanos. Com o novo marido, as duas filhas e mais a irmã Rosa, que também enviuvara cedo, habitava o casarão da João Balby. Foi aí que Catharina cresceu, ganhou o apelido de Santa, quando teve visões que a credulidade da época viu se materializarem em fatos ocorridos na vizinhança, e virou moça com sonhos de tornar-se artista.

Enfeitiçara-se pelo rádio, pelo cinema e pelo teatro e colocara na cabeça que seria atriz, numa época em que esta era uma profissão de má fama, embora todos adorassem assistir às representações de sucesso. Tornara-se, assim, uma constante dor de cabeça para dona luiza, visceralmente contrária aos projetos da filha. O apoio do padrasto, José, às proibições maternas, apenas aguçava a aversão de Santa àquele homem que viera tomar o lugar do pai, levando-a a implicar com Dinoca por chamá-lo de “papai”. “Não é teu pai, é teu padrasto! E padrasto não é coisa boa!”.

Coisa que Dinoca jamais entendeu, pois não conhecera o pai biológico e, quando se dera conta de si, quem lhe fazia carinho, a ninava no colo, a alimentava e a levava para passear, era aquele homem esguio, quase sempre sério e calado, que ainda por cima comandava um bonde. A discussão “Não é teu pai!”, “É meu pai!” quase sempre descambava para um choro sentido de Dinoca, e para a retirada enfurecida de Catharina.

É provável que os pendores artísticos de Catharina tenham crescido com as conversas, confidências e sonhos que compartilhava com uma das primas por parte de pai, Osmarina, que anos mais tarde, já depois de casada e com filhos, tor-nou-se atriz famosa no Rio de Janeiro com o nome de Mara Rúbia. De qualquer modo, além das resistências da mãe, Santa batera de frente com aquele acadêmico de medicina e futebolista, cheio de ideias esquisitas, cujo entendimento parecia--lhe impossível. Como é que as propriedades precisavam ser distribuídas entre os que não tinham nada? Então sua mãe ia perder suas casas e sua renda? Como ela e as filhas iriam viver?

Ventura tentava explicar-lhe que não era bem assim. As propriedades que precisavam passar para as mãos dos trabalhadores eram as fábricas, as fazendas, o comércio, os meios de produção e de circulação. E isso não seria distribuído entre

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as pessoas, mas dirigido pelo governo para que a riqueza produzida revertesse em be-nefício de todos, e não somente de alguns poucos. Mas, retorquia Santa, quer dizer que a venda do seu Cardoso vai ser tomada pelo governo? Não, voltava Ventura, as pequenas propriedades continuarão com seus donos enquanto a sociedade não tiver capacidade para produzir e distribuir tudo que for necessário para a vida das pessoas.

O certo é que, entre beijos e juras de amor, quase sempre suas conversas derrapavam para a atividade e as ideias políticas de Pomar. Ele se esforçava para que ela lesse, se interessasse por literatura e pelos jornais, mas Santa não era muito afeita a se concentrar num livro. Acabou lendo A cidadela, de Cronin, e A mãe, de gorki. Impressionou-se com ambos, chegou a ler outros, mas isso não a transfor-mou em leitora assídua. De qualquer maneira, quando teve início 1935, os dois já estavam namorando firme. Ela, embora continuasse cheia de dúvidas sobre o destino das propriedades – esse era seu ponto sensível – tinha uma noção razoá-vel das ideias e atividades políticas dele. Ele, por sua vez, possuía noção clara das limitações dela, mas admirava sua combatividade, mesmo quando a usava sob o impulso irracional do ciúme.

O amor parece não se guiar por racionalidades e, à medida que se agravavam os problemas políticos que marcaram aquela década, exigindo maior empenho e tempo dele na vida partidária, mais ela se espinhava imaginando concorrentes femininas, exigindo explicações e desconfiando delas. As brigas tornaram-se parte do namoro e, numa delas, Catharina esbofeteou Ventura na frente dos parentes que se encontravam na casa de dona luiza. Ele levou a mão ao rosto dolorido, olhou para ela com olhos que só o amor produz numa situação dessas e, antes de sair, sem qualquer rancor na voz, disse: “Quem me bateu não foi tua mão, foi tua ignorância. Eu te perdoo. Amanhã conversaremos”.

Ao torvelinho amoroso agregara-se o político, ou vice-versa, o que dava no mesmo. A Constituição de 1934, imposta a Vargas por um quadro de forças que barrava seus intentos, mandava que se realizassem eleições indiretas para os governos estaduais. No Pará, o Partido liberal, de Magalhães Barata, dividira--se e uma parte se bandeara para a Frente Única Paraense, ou União Popular Paraense (UPP), de oposição. Para complicar, os secundaristas e universitários se lançaram numa campanha por 50% de desconto nas taxas escolares, nos ci-nemas e nos transportes, com manifestações de rua num crescendo, voltadas principalmente contra Barata.

Em 5 de abril, depois de ficarem refugiados no batalhão do Exército, os de-putados da oposição foram atacados quando se dirigiam ao prédio da Assembleia legislativa, dando ensejo à intervenção federal no Estado. Barata foi derrotado por José Malcher, candidato da UPP, da qual também participavam os aliancistas da ANl e os comunistas. No entanto, à medida que Barata fora desbancado e o novo governo apenas procurava reacomodar no poder as divisões oligárquicas lo-

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cais, mais uma vez deixando o povo de lado, instaurou-se um processo de disputa interna na Frente Única. As forças políticas que a compunham se dividiram para disputar as eleições municipais de novembro.

A Ala Moça da UPP tornou-se independente e fundou um partido, o Par-tido da Mocidade Paraense, lançando uma chapa que tinha Pomar e Solermo Moreira à frente. Outros grupos da UPP também se transformaram em partidos independentes, lançando chapas, a exemplo do Partido Trabalhista do Pará, Traba-lhador para Trabalhador e Vanguarda Operária e Popular, dos quais faziam parte aliancistas e comunistas como Henrique Santiago, João Amazonas, Dalcídio Ju-randir, Ritacínio Pereira, João Botelho e outros. Da disputa eleitoral participavam, ainda, a UPP, o Partido liberal e a Ação Integralista.

A presença e atuação desta última introduziu nas disputas políticas locais a repercussão do que ocorria na Europa, especialmente na Itália e Alemanha. Os integralistas difundiam sua própria versão sobre os acontecimentos europeus e, com sua arrogância, preconceitos e brutalidade, tornavam bastante real o signifi-cado do fascismo, que pouco a pouco se materializava como inimigo principal dos aliancistas e comunistas. Provocados e atacados pelos integralistas, revidavam. As manifestações populares geralmente desandavam em conflitos.

Como, para os fascistas locais, os liberais e os democratas confundiam-se com os comunistas, não era raro que os baratistas e os adeptos da UPP também fossem atacados. Os integralistas, porém, não tinham apelo popular. O ruído que promoviam era bem maior do que a força que tocava o bumbo, o que diluía o perigo fascista. A política de frente popular, incorporada à linha do Partido Comunista como proposta de ação unitária, tinha assim muita dificuldade de se concretizar. Nas terras paraenses as questões regionais sobrepujavam as influên-cias nacionais e a associação que os comunistas faziam entre Vargas e o fascismo, na tentativa de unificar os antifascistas, não aparecia claramente para a maior parte das forças políticas locais.

Na prática, qualquer que fosse o diagnóstico que os aliancistas e comunis-tas paraenses tivessem sobre a evolução do quadro nacional, viram-se obrigados a se envolver completamente nas disputas municipais, pelo vigor com que estas apontavam para a reconfiguração das forças políticas. Mesmo porque, totalmente à parte dos preparativos para a revolta militar de 1935, dirigidos por Prestes e pelo comitê militar do PCB no Rio de Janeiro, não tinham em mira qualquer outra ação que não fosse a conquista de posições que a frágil democracia liberal ofertava.

Desse modo, foram apanhados de surpresa pela irrupção dos movimentos armados em Pernambuco e no Rio grande do Norte, em 26 de novembro, e no Rio de Janeiro, em 27 de novembro, em nome da ANl. A decretação do estado de guerra no país todo encontrou-os despreparados para evitar a prisão, pela polícia paraense, de grande número de aliancistas. No entanto, mesmo com as medidas

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de exceção, os estudantes realizaram novas manifestações pelos 50%, em Belém. E as eleições foram realizadas, como programado, no dia 30 de novembro, havendo o governo suspendido provisoriamente o estado de guerra.

A UPP conquistou 4.888 votos, seguida pelo Partido liberal, com 4.460. A chapa Trabalhador para Trabalhador, unificada com a Vanguarda Operária e Popular, conquistou 844 sufrágios, enquanto a Ação Integralista obteve 219 votos e o Partido da Mocidade, de Pomar e Solermo, míseros 64. A tática de dividir a ação dos comunistas por várias chapas foi abandonada no curso da campanha, concentrando-se esforços na performance da Trabalhador para Trabalhador.

A revolta armada de 1935 e a repressão que se seguiu, incluindo a pena de morte para os revoltosos, tiveram grande impacto em Belém, mas os aliancistas e comunistas ficaram muito tempo sem saber exatamente o que havia acontecido. Apenas deduziram sua extensão pela amplitude da política repressiva. E sua pri-meira reação foi realizar um ato que repercutisse na opinião pública, em solidarie-dade à ANl e aos revoltosos presos e ameaçados de morte.

Na madrugada do dia 18 de dezembro, uma equipe do partido içou uma bandeira vermelha no mastro do reservatório existente no canto da rua lauro Sodré com a 1º de Março, contendo uma inscrição contra a pena de morte e em apoio à ANl. O reservatório tinha posição preponderante, sua cúpula sendo en-xergada de todos os pontos da cidade. Foi impossível ignorar a ação, que mereceu manchetes e comentários por muito tempo.

A polícia não encontrou pista alguma que a levasse aos autores. A maioria dos membros do partido também ignorava quem tinha realizado a ação. Henrique Santiago garantiu que Pomar teria participado do feito, mas que João Amazonas é quem teria colocado a bandeira. levy Hall de Moura sustentava que, ao ingressar no partido, ficara sabendo ser Pomar o autor da façanha.

Pouco antes de tudo isso, em 5 de dezembro, Pomar havia se casado com Catharina Patrocínio Torres, tendo como testemunhas Joseph Culerre, Maria No-vaes Culerre, Ary Tupinambá Penna Pinheiro, Rosa Cardoso de Mattos e Epílogo gonçalves Campos. Em consequência, passara a viver provisoriamente no casarão da rua João Balby, com o que dona luiza pôde ter uma visão mais real das ativida-des do genro, enchendo-se de preocupações.

Suplicou, então – esse era o jeito dela quando desejava conseguir alguma coisa – para que ele abandonasse “aquelas ideias” e “aquela vida política de peri-gos”. Pomar gostava da sogra, mas lhe respondeu de maneira a cortar o assunto pela raiz: “Se não atendi minha mãe, não atendo a mais ninguém. Santa virá comi-go se quiser”. E, antes de findar o ano de 1935, participou da única e memorável ação paraense relacionada com o movimento armado dirigido por Prestes.

A partir do final de 1935, o país tomou um rumo que parecia comprovar a irrefreável vocação fascista de getúlio Vargas e seu governo. O estado de guerra

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foi prolongado a cada noventa dias, a repressão aos comunistas estendeu-se pau-latinamente a todos os que faziam oposição ao governo, os governos estaduais alinharam-se com as políticas do presidente e este utilizou o medo que as elites e parte do povo tinham do comunismo para cercear cada vez mais as liberdades públicas e individuais e conduzir o país para um regime fechado.

O “combate ao perigo vermelho” assumiu dimensões inusitadas: segundo leôncio Basbaum, a selvageria policial não respeitava categoria social ou política, idade ou sexo. Sob tortura, alguns dos comunistas presos entregaram elos da organi-zação que permitiram à polícia política desmantelar boa parte da estrutura do par-tido. Seu secretário-geral, Miranda (Antonio Maciel Bonfim), foi detido quase ao mesmo tempo que os assessores da Internacional Comunista que estavam no Brasil, como Henry Berger, leon Vallée, Paul gruber, Rodolfo ghioldi e Victor Baron.

luís Carlos Prestes e Olga Benário foram presos no dia 4 de março de 1936, um dia antes de Baron ser atirado da janela do segundo andar da Polícia Central, na Rua da Relação, no Rio de Janeiro. Tarde demais descobriu-se que gruber era agente do Serviço de Inteligência Britânico e, por meio deste, mantivera a polícia brasileira informada dos principais movimentos e preparativos para o levante ar-mado de 1935. As vastas e minuciosas anotações e a correspondência encontradas com Prestes forneceram informações sobre as ligações do PCB, tanto as internas quanto com personalidades públicas, a exemplo do prefeito Pedro Ernesto, do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo que deram o pretexto ao governo para difundir que estava em preparação uma nova insurreição, tendo por base a ação e a organização de grupos guerrilheiros no nordeste do país.

A vaga repressiva atingiu realmente o Pará a partir de fevereiro de 1936, coincidindo com a greve dos gráficos de Belém por aumento salarial. A campanha anticomunista começou com uma Festa da Pátria, continuou com manchetes afir-mando que Prestes estivera no Pará, e se espraiou depois da prisão e confissão sob torturas de Estevam Jesus Filho, um dos dirigentes do PC no Estado, que entregou os companheiros. Entre os vinte e três militantes comunistas presos em maio, leva-dos para o Presídio São José, “o antigo e inqualificável pardieiro, uma ignomínia”, no dizer da Folha do Norte, estava Pomar.

Ele participa, então, de uma greve de fome contra as terríveis condições de alimentação da prisão, greve que resultou no direito dos presos políticos de recebe-rem uma comida melhor. Já no terceiro ano da escola de Medicina, dava aulas so-bre o assunto, estudava inglês e marxismo em grupo, incentivava os companheiros a lerem e discutirem literatura. Nessa época já se enraizara nele a convicção de que a literatura era a porta da cultura e de que, sem cultura, dificilmente seria possível entender o marxismo e, principalmente, seu método dialético.

Como mote de discussão, provocava os demais quando afirmavam não gos-tar de uma ou outra comida. Dizia que esse era o exemplo mais banal da falta

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de cultura. “gosto é hábito cultural, depende da absorção da cultura”, repetia. Começou então a descortinar o valor de goethe, Shakespeare, Balzac, Tolstoi, Dostoievski e outros autores, considerados clássicos universais, e não regateava esforços para fazer com que os demais os lessem e aprendessem com eles.

“literatura é expressão da vida humana”, dizia Pomar, “ela nos ajuda a en-tender nossos próprios atos e projetos”. Com isso em mente, ajudava os compa-nheiros que não entendiam espanhol (grande parte dessa literatura estava disponí-vel apenas nessa língua) a ler os livros que indicava e conseguia. Muitas vezes ele próprio lia em voz alta, parágrafo por parágrafo, discutindo o texto com o grupo. Em julho nasceu seu primeiro filho, Wladimir, que foi visitar no Hospital da Ca-ridade, acompanhado por uma escolta policial.

Sua vida de prisioneiro se estendeu por quase um ano mais, sendo libertado em 16 de junho de 1937, quando, sob pressão do ministro Macedo Soares, da Justiça, interessado em criar um ambiente eleitoral que aparentasse tranquilidade, o Tribunal de Segurança Nacional considerou que não havia provas suficientes para condená-lo e arquivou o processo nº 51, que o incriminava. A “macedada” devolveu às ruas boa parte dos presos políticos. A sensação de liberdade, porém, durou pouco.

Em outubro, o general góes Monteiro, chefe do Estado-Maior do Exérci-to, montou o Plano Cohen, com o auxílio do capitão integralista Mourão Filho, criando uma farsa sobre o suposto desencadeamento de uma nova insurreição comunista. Tomando isso como pretexto, Vargas decretou novo estado de guerra, ordenou mais prisões e instalou uma Comissão do Estado de guerra para preparar um programa de combate ao comunismo, incluindo campos de concentração e a reeducação moral e cívica nas escolas e fábricas. Os candidatos à presidência, Armando Sales de Oliveira e José Américo, assim como os partidos que os susten-tavam, engoliram a farsa e apoiaram as medidas contra os comunistas, embora os viessem namorando em busca de votos. Convalidaram, portanto, o plano golpista de Vargas que, em 10 de novembro de 1937, cancelou as eleições presidenciais, fechou o Congresso e outorgou uma nova Constituição, a Polaca.

No Pará, foram novamente presos Henrique Santiago, Dalcídio Jurandir e Ritacínio Pereira, enquanto Pomar e outros viram-se na contingência de passar à clandestinidade. Assim, à primeira experiência de prisão segue-se, quase imediata-mente, a primeira experiência de vida clandestina. Perseguido pela polícia política, Pomar abandona definitivamente a Faculdade de Medicina e transforma-se em revolucionário profissional a serviço do Partido Comunista.

Não era fácil para ele ser clandestino numa cidade de pouco mais de 150 mil habitantes. Mudou-se, às escondidas e sob nome falso, com Catharina e Wladimir, para uma casa no Marco da légua, numa rua próxima ao Bosque Rodrigues Alves, na época um subúrbio afastado de Belém. Rosa, tia de Catharina e viúva sem filhos que se apegara a Wladimir, foi morar com eles e lhes dava um apoio inestimável.

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Santa estava grávida e acabou perdendo a criança, uma menina, no sétimo mês, com complicações pós-parto que quase a levaram à morte. Sua juventude sadia e sua combatividade a ajudaram a superar as infecções e sobreviver à tormenta.

Foram quase três anos de vida clandestina em que Pomar, utilizando o nome de Wandick, tinha como tarefa organizar o partido entre os trabalhadores e prepará-los para uma futura revolução. Esse tipo de vida exigia cuidados de toda ordem. Precisava ter cuidado para não andar em locais onde pudesse encontrar co-nhecidos. Tinha que aparentar um trabalho normal e manter uma relação a mais natural possível com os vizinhos, de modo a não levantar suspeitas. Os demais companheiros não podiam saber onde morava, por mais que confiasse neles. A ex-periência com Estevam mostrara que a polícia era capaz das maiores barbaridades para arrancar uma informação, um endereço. Então, como norma de segurança, nem ele sabia o endereço dos demais dirigentes, nem eles o seu.

Com as famílias também ocorria o mesmo. No seu caso, somente Zeca, um primo de Santa, sabia onde eles moravam e servia de elo de ligação. Também não deveriam realizar trabalho partidário no bairro onde moravam, pois isto poderia chamar a atenção da polícia. Para complicar as agonias desse tipo de vida, as no-tícias do país e do mundo chegavam truncadas e distorcidas e o partido no Pará já há tempos não tinha ligações regulares com a direção nacional. Mesmo porque esta entrara numa roda-viva desde a detenção de Prestes e Miranda.

A direção nacional que escapou às prisões, formada por Bangu (lauro), Martins (Honório), Abóbora (Eduardo) e Tampinha (Adelino Deícola dos Santos) se dispersou e não conseguia se reorganizar. Bangu tentou estruturar um novo Secretariado Nacional com base no Comitê Estadual de São Paulo e conseguiu enviar Abóbora à União Soviética para informar a IC sobre a insurreição de 1935. Queria também informações sobre a situação internacional e detalhes sobre a nova tática de frente popular antifascista, que parecia cada vez mais confusa, tanto na Europa como no Brasil.

A discussão sobre a tática de luta contra o Estado Novo e o fascismo, em lugar de unificar o partido com outras forças, parecia agir no sentido de fragmen-tá-lo ainda mais. Sem haver sequer conseguido avaliar com serenidade os aconte-cimentos de 1935, muitos setores do partido, como o Comitê Estadual do Rio de Janeiro, continuavam afirmando que a situação do país era “objetivamente revolu-cionária”, consideravam transitória a derrota de novembro de 1935, e afirmavam que a vanguarda devia se organizar e se mobilizar para a ação, deixando de persistir no erro de “esperar o movimento espontâneo” das massas.

Uma circular da ANl falava em “numerosas colunas de guerrilheiros” no nordeste que, “dentro de muito pouco tempo” transformar-se-iam de “chamas esparsas” em “grande fogueira revolucionária”. logo depois, em discordância com o Comitê Estadual de São Paulo, o do Rio de Janeiro mudou de posição e propôs

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que o objetivo de governo popular fosse substituído pelo de governo de salvação nacional, com ou mesmo sem a participação do partido. A tarefa imediata deste deveria ser a de deter o avanço da reação. O Comitê Estadual da Bahia, por sua vez, emitiu uma circular, em julho de 1937, conclamando os militantes a con-quistar as massas para a luta pela democracia, contra o fascismo e o imperialismo, abandonando os métodos sectários e as diretivas para a luta guerrilheira e assumin-do as reivindicações gerais de todo o povo.

Nessa mesma linha, o novo Secretariado Nacional ordenava que Prestes fosse apresentado como um democrata antifascista e que o partido lutasse pelo respeito e pela aplicação da Constituição brasileira, “único caminho para salvar a nossa grande pátria da invasão fascista”. Apesar de toda essa guinada no rumo de uma frente única ou frente nacional, o Secretariado Nacional asseverava que a “preocupação prática central” do partido deveria ser “a organização do Destaca-mento do Exército Popular de Defesa da população contra a invasão fascista”.

Se no centro político do país as coisas navegavam às tontas, imagine-se o que ocorria nas regiões marginalizadas e distantes, como o Pará.

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6 EM TUDO HÁ FORMAçãO E VIDA ATIVA

Faz jus à liberdade e à sua existênciasó quem diariamente a conquista com destemor.

J. W.goethe (Fausto)

1976, São Paulo: dezembro, manhã do dia 12 1934-1941, Brasil e mundo: dias convulsos

Mário voltou a despertar sobressaltado, ao ouvir barulho na cozinha. O quarto já estava mais claro, mas o relógio ainda apontava seis e dez. Pensou haver dormido uma eternidade, depois que acordara de madrugada. Decidiu se levantar. Ajeitou logo a cama e rumou para o banheiro. Fez a barba, tomou banho, vestiu--se, escovou os dentes, passou o pente sobre a calva e os cabelos ralos da nuca, pe-gou seus apetrechos e voltou para o quarto, arrumando-os em silêncio e de forma metódica na pasta.

Os demais ainda dormiam. Foi para a cozinha. Mara havia colocado a água no fogo para fazer o café e enchia uma vasilha com leite para ferver. Os pães esta-vam sobre a mesa, com as xícaras em volta e um pote de margarina meio de lado. Mário deu um “bom-dia” em voz baixa, quase cochichando, e foi olhar a água.

– Queres fazer o café?, perguntou Mara, já sabendo a resposta. O bule e o coador estão em cima da pia. O pó está no armário.

Fazer café, para Mário, era um prazer, não só pela bebida, mas também pelo ritual com que o preparava. Com a solenidade de um mestre de cerimônia, suspendeu o coador para ver se não havia qualquer resto de água no fundo. Re-colocou-o então no bule e depositou este sobre o fogão, ao lado do fervedor com água. Apanhou a lata do café e verificou a quantidade de pó. Procurou a colher de pau e deixou-a à mão, enquanto esperava que a água chegasse quase ao ponto de fervura. levantou então o coador, jogou um pouco de água quente no bule, reduziu a chama e voltou a colocar o fervedor no fogo. Com as duas mãos, tocou a parede externa do bule para sentir a propagação do calor, enquanto seus olhos continuavam controlando a água.

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Quando as primeiras bolhas subiram, indicando que ela começava a ferver, Mário jogou o líquido do bule fora e derramou no coador um jato da água em iní-cio de fervura, apenas para molhar o pano. Imediatamente, também transportou oito colheradas de pó de café para o fervedor, mexendo o líquido com a colher de pau. Quando este começou a borbulhar e ameaçou subir, voltou a jogar fora a água que restava no bule e derramou um pouco de café fervente no coador, voltando com o fervedor para o fogo. Somente quando a água misturada com pó de café en-trou realmente em ebulição, subindo e ameaçando transbordar, é que ele encheu o coador até a borda, alimentando-o até esvaziar o fervedor.

O cheiro da bebida tomou conta da cozinha. Mário pegou então duas xí-caras pequenas, derramou café fumegante em ambas, entregou uma para Mara e saboreou a outra, devagar, gole por gole. Tomar um cafezinho em jejum, feito por ele próprio, era um de seus contentamentos, e ele o fazia sem disfarce, onde quer que estivesse e houvesse oportunidade para tanto.

Voltou para a sala ainda vazia e sentou-se. Olhou os documentos sobre a mesinha e repassou-os um a um. lá estavam os textos de Jota, Zé Antonio, Dias, Jorge, Evaristo, Valdir e o seu. Cid, Rui, Maria e outros ainda não haviam entrega-do os seus, como ficara acertado na última reunião do Comitê Central. Pensou no significado de, àquela altura dos acontecimentos, travar tal discussão e viu-se, de repente, transportado para a situação que enfrentavam em meados dos anos 1930. Naquele período, à fragmentação orgânica do partido, causada pela ação repressi-va da polícia do regime, juntava-se também a fragmentação política, influenciada em grande parte pela pressão dos acontecimentos internacionais e pelas ações do governo Vargas.

O fascismo italiano no poder concluíra, em 1934, um pacto com a Hungria e a Áustria para rever as zonas de influência e as colônias da Europa, em especial as pertencentes à grã-Bretanha. Nesse mesmo ano, Hitler acumulou os cargos de chanceler e presidente, completando o projeto nacional-socialista (nazista) de unificar os alemães sob sua direção centralizada, de acordo com as leis de “defesa do povo e do Estado”, de “proibição de partidos e sindicatos” e de “unidade do partido e do Estado”.

Ainda em 1934, Hitler decretara as leis de “preparação do desenvolvimento orgânico da economia” e de “ordenação do trabalho nacional”. Por meio delas, integrava todas as associações e pessoas e criava “empresas coletivas” e “agentes fiduciários do trabalho” para desenvolver a agricultura, construir grandes rodovias e realizar um ambicioso plano de rearmamento, baseado no endividamento inter-no. Criava, assim, por meio da política de “canhões e manteiga”, as condições para superar a crise econômica e gerar empregos, ampliar seu poder hegemônico sobre as grandes massas trabalhadoras da Alemanha e preparar-se internamente para empreender seu plano de domínio mundial.

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Ao mesmo tempo que se lançou nessa empreitada, rasgando o Tratado de Versailles, Hitler jogou na arena internacional a reivindicação de um “novo espaço vital” para a Alemanha. Com isso, pretendia legitimar aos olhos do povo alemão seus futuros atos de guerra e pressionar os demais governos imperialistas para que lhe fizessem concessões territoriais, políticas e militares. A retórica extremada e a brutal perseguição aos comunistas, que apontavam sua disposição agressiva contra a União Soviética, mascaravam suas ações destinadas a enfraquecer também a grã--Bretanha e a França.

Entre 1935 e 1936, ao tempo que assinava um pacto de não-agressão com a Polônia, Hitler reincorporou o Sarre, ocupou a Renânia, instaurou o sistema militar obrigatório, assinou com o Japão o pacto Anticomintern e, juntamente com tropas italianas, interveio na guerra Civil Espanhola utilizando sua nova aviação de combate e testando sua eficiência. Assim, paralelamente ao avanço da Itália sobre a Abissínia e do Japão sobre a China, tudo indicava que a Alemanha preparava-se velozmente para uma nova guerra de redivisão do mundo.

A Inglaterra e a França, porém, preferiram adotar a política de “apazigua-mento” diante da política nazista. Trabalhavam no sentido de que esta se voltasse para conquistar seu “espaço vital” no extenso território da União Soviética, e che-gasse a um acordo com elas quanto ao novo mapa-múndi que daí resultaria. Assim, dispuseram-se mesmo a fazer concessões à Alemanha na Europa Central, aceitando as “revisões” territoriais reivindicadas por Hitler. Em consequência, mantiveram-se “neutras” na guerra Civil Espanhola, assinaram acordos que permitiram à Alema-nha reconstruir sua armada e acataram a “divisão” da Abissínia pela Itália.

Os Estados Unidos, por seu turno, ainda estavam às voltas com a recu-peração de sua economia. O New Deal de Roosevelt só aos poucos, e à custa de grandes investimentos estatais, começava a superar os brutais estragos da depressão de 1929, exigindo todas as atenções e reforçando uma tendência política isolacio-nista e de neutralidade diante dos problemas e conflitos mundiais. No entanto, a expansão japonesa na China e na Ásia prejudicava os interesses norte-americanos no Pacífico, pressionando-os por uma política mais ativa na arena internacional.

Nesse contexto, os Estados Unidos vacilavam entre o isolacionismo neutra-lista, expresso na proibição de venda de armas a qualquer dos beligerantes, e uma política de colaboração contra os fascismos japonês, alemão e italiano, materiali-zada na normalização das relações com a União Soviética, na renúncia dos direitos americanos sobre Cuba e sobre o Haiti, na garantia da independência das Filipinas e na declaração de solidariedade dos Estados americanos, na Conferência de lima, contra qualquer invasão externa. Os círculos dominantes mais esclarecidos dos Estados Unidos tinham consciência de que estavam diante de um processo que deveria desembocar numa nova conflagração mundial e procuravam se preparar para essa eventualidade.

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Já a União Soviética, tendo plena ciência de que a política de expansão nazi-fascista tinha seu território como alvo principal, acelerara os esforços para se trans-formar num Estado industrial moderno, capaz de enfrentar um esforço de guerra, e procurava criar um colchão diplomático para se proteger contra aquela ameaça ou, pelo menos, ganhar tempo. A partir do início dos anos 1930, a URSS desenvolveu esforços ainda mais concentrados para ampliar sua indústria pesada e estruturar uma indústria bélica de primeira ordem. A dificuldade de capitais e a escassez de mão de obra industrial a levaram não só a intensificar o trabalho excedente operá-rio, por meio do movimento stakanovista, como a apressar a coletivização agrícola, para contar com a força de trabalho necessária à industrialização rápida.

No campo diplomático, a União Soviética conseguiu romper o isolamento anterior, estabeleceu pactos de não-agressão com os países europeus (França, In-glaterra, Polônia), reatou relações diplomáticas com os Estados Unidos e ingressou na Sociedade das Nações. Do ponto de vista político geral, fez inflexões ainda mais radicais em relação a suas políticas precedentes. Em função da necessidade de defesa do Estado soviético, passou a apoiar, por intermédio da Internacional Comunista, a política de frentes populares, não só nos países europeus, mas em todos os países onde a ameaça fascista estivesse presente.

No VII Congresso da Internacional Comunista, de julho a agosto de 1935, os dirigentes soviéticos propugnaram abertamente políticas de frente única dos co-munistas com os social-democratas e os liberais antifascistas, independentemente dos conflitos anteriores com essas forças, até então consideradas vendidas à bur-guesia ou simplesmente burguesas. A perspectiva de aliança do Estado soviético com Estados imperialistas do ocidente, para enfrentar o perigo imperial nazista, tornou-se não apenas viável como necessária, trazendo múltiplas complicações para os diversos partidos comunistas em todo o mundo.

No distante Pará, as mudanças bruscas no contexto internacional e nas orientações dos diferentes partidos comunistas chegavam aos retalhos. Ainda por cima, os comunistas paraenses tinham dificuldade em manter contato com a di-reção nacional e de estar a par da própria evolução política nacional. Viam-se, desse modo, obrigados a um esforço concentrado para definir sua própria conduta política e orientar-se diante de fatos como a tentativa de assalto dos integralistas ao Palácio do Catete, em maio de 1938, a subsequente congratulação de Agildo Bara-ta e mais doze militares presos no Rio de Janeiro, com Vargas, pelo “esmagamento da bárbara intentona”, e a concordância que manifestaram ter com o ditador sobre a necessidade de uma “nova ordem”.

Essa posição de dirigentes da ANl em relação a Vargas e ao regime coloca-va em dúvida, pela primeira vez no interior do PCB, a caracterização do regime brasileiro como “fascista”. Paralelamente, em agosto, a direção nacional do parti-do advogou uma grande frente democrática pela abolição da carta constitucional

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totalitária, pela promoção da indústria pesada nacional, por um salário-mínimo efetivo, pela anistia aos antifascistas e pela saída dos fascistas do governo.

No final de 1938, em grande parte sob o impacto dos acontecimentos de setembro na Europa (anexação da Áustria, Pacto de Munique, cessão dos Sude-tos, ocupação da Tchecoeslováquia), Prestes assumiu a ideia de uma grande frente democrática e o secretariado nacional do PCB elogiou Roosevelt e a Conferência Pan-Americana de lima, conclamando a uma aliança dos comunistas com as po-tências ocidentais contra o fascismo.

O PCB alinhava-se, desse modo, à orientação geral da IC, mesmo antes de Vargas decidir-se em que campo se colocaria em definitivo. Apesar dos es-forços comunistas para enredá-lo na frente única antifascista, ainda em 1939 o ditador se mantinha no afinco de salvar o Brasil não do fascismo, mas do comunismo. Transferiu os presos políticos para a ilha de Fernando de Noronha, destruiu as principais organizações do partido no Rio de Janeiro e em São Pau-lo, continuou o namoro com a Alemanha e a Itália e vários de seus ministros e oficiais graduados, como Dutra, góes Monteiro e outros, eram declaradamente germanófilos. Para os comunistas brasileiros esse quadro tornou-se ainda mais confuso com o advento do Pacto de Não-Agressão entre a União Soviética e a Alemanha, em agosto de 1939. As reações de muitos pecebistas foram exaltadas. Alguns romperam com a IC. Outros passaram a apoiar a Alemanha, acreditan-do que o gume da luta anti-imperialista havia se voltado contra o imperialismo anglo-francês. Ao invés de acreditar na versão simples e sensata de um acordo tá-tico para a União Soviética ganhar tempo e se preparar melhor para a inevitável invasão alemã, deram curso a ilações absurdas. Quanto aos trotskistas, alguns concordaram em parte com a tática staliniana, já que defendiam a luta contra todos os imperialismos e suas guerras, enquanto outros acusaram a União Sovi-ética, ao realizar aquele acordo, de ser responsável pela eclosão de uma Segunda guerra Mundial.

Uns e outros simplesmente pareciam desconhecer que, entre outubro e de-zembro de 1938, como desdobramento do Pacto de Munique, a Alemanha, a Inglaterra e a França haviam assinado declarações de não-agressão e de reconhe-cimento definitivo das fronteiras. Em março de 1939, também como decorrência do “apaziguamento” franco-britânico, a Alemanha ocupara a Tchecoeslováquia, exigira que Dantzig fosse anexada à Alemanha e que a Prússia Oriental pudesse se comunicar com o III Reich sem quaisquer barreiras territoriais, e também anexara o território de Memel, na lituânia.

Pareciam desconhecer, ainda, que em maio de 1939 a Alemanha firmara pactos de aliança com a Itália (Pacto de Aço) e de não-agressão com a Estônia, letônia e Dinamarca. E, principalmente, que as delegações francesas e inglesas, em suas negociações com a parte soviética, em Moscou, entre maio e julho de

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1939, haviam recusado todas as propostas de uma ação conjunta de enfrenta-mento do nazismo, a pretexto da necessidade do “apaziguamento” de Hitler.

Num cenário como esse, o mais singelo observador internacional diria que a Alemanha, com a cumplicidade da França e da Inglaterra, começara a fechar o cer-co de ataque à URSS. Nessas condições, a proposta de um pacto de não agressão com Hitler, se por um lado deixava este livre para resolver suas pendências com a Polônia, sem envolver a União Soviética num confronto imediato, por outro dava algum tempo mais a esta, antes da esperada invasão. Só uma rigidez ideológica canhestra poderia ter levado Stálin a recusar essa oportunidade.

Ao Pacto de Não-Agressão germano-soviético, de agosto de 1939, seguiu-se a invasão alemã à Polônia e, 16 dias depois, o avanço das tropas soviéticas nos territó-rios da Polônia oriental. logo após, novo pacto com a Alemanha estabeleceu os ter-ritórios da letônia, Estônia e lituânia como zonas de influência da União Soviética, e esta exigiu da Finlândia a cessão de bases que lhe dessem novos acessos ao Báltico, o que resultou na guerra entre ambas, entre novembro de 1939 e março de 1940.

Visto fora do contexto de um conjunto de medidas defensivas e de uma si-tuação de pré-guerra, ou já de guerra declarada, as ações soviéticas parecem não ter sentido ou se chocar diretamente contra seus princípios. No entanto, os ingleses e franceses acabaram sendo mais realistas do que muitos comunistas e as tomaram pelo sentido que realmente tinham, tanto que declararam guerra apenas à Ale-manha, ao mesmo tempo que desembarcaram tropas na Noruega, bloquearam o comércio sueco-alemão e retomaram as negociações com a URSS para o enfrenta-mento conjunto contra a expansão nazista.

A invasão da Polônia liquidou a política de “apaziguamento” franco-britânica e qualquer dúvida quanto ao alastramento mundial do estado de guerra, incluindo a inevitável invasão da URSS pelas tropas alemães. Todo esse quadro pressionou Pomar e seus companheiros no Pará, apesar da confusão generalizada em torno das ações da União Soviética e da Internacional Comunista e da política de frente única, a intensificarem as atividades com vistas a uma mobilização contra o fascismo.

Não tinham, porém, clareza sobre como isso deveria se concretizar em ter-mos de forças políticas aliadas, em especial em relação a Vargas. Nesse afã, eles cometeram um erro fatal, ao intensificar a propaganda clandestina mimeografada, inclusive nos bairros em que moravam, despertando a atenção dos órgãos repressi-vos para sua atividade. A polícia política local já vinha realizando um trabalho de rastreamento das atividades comunistas desde maio de 1940, quando prendeu, em Belém, Francisco Natividade lira, o Cabeção. Ele era ligado ao Secretariado Na-cional dirigido por Bangu e estava envolvido no assassinato de Elza Fernandes, que vivia com Miranda, secretário do partido, e fora acusada de traição por Martins e Prestes. Nessa mesma ocasião caíra toda a estrutura partidária do Rio de Janeiro e de São Paulo, inclusive o Secretariado Nacional, deixando o partido acéfalo.

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Até setembro de 1939, a polícia paraense conseguiu identificar diversos militantes e dirigentes locais do partido e desencadeou operações que levaram à prisão de João Amazonas, Cícero de Almeida, o marinheiro João de Cruz e Souza, José Dias do Nascimento, Agostinho Dias de Oliveira, o estudante Raimundo Serrão de Castro, Constância Borges e Henrique Santiago (este em Capanema). Wandick, segundo a Folha do Norte, “rapaz de estatura regular, meio alourado, de boas maneiras, distinto mesmo”, morador à Estrada do Souza, 1885, onde foi en-contrado um mimeógrafo, também foi preso na ocasião, sendo identificado depois como Pedro de Araújo Pomar.

levados inicialmente para o Presídio São José, os comunistas desenvolve-ram intensa pressão para terem condições prisionais menos terríveis. Foram então transferidos, no início de 1941, para o Posto Policial do Umarizal, entre as ruas Jerônimo Pimentel e Bernal do Couto, um velho e grande casarão avarandado, onde os próprios presos cozinhavam, faziam todo o serviço de faxina das celas e organizavam suas próprias atividades. Pomar revelou-se então como cozinheiro, ao mesmo tempo que retomou seu papel de estimulador dos estudos do grupo, seja de marxismo, seja de literatura nacional e estrangeira.

Vários dos presos de então tomaram contato, pela primeira vez, com Germi-nal, de Zola, A Tempestade e O Rei Lear, de Shakespeare, A Catequese dos Índios do Pará, de Domingos Rayol, À Margem da História, de Euclides da Cunha, Amazônia, de José Veríssimo e com alguns textos do Padre Vieira. Pomar costumava deliciar--se com o perfil que Vieira traçava dos colonos portugueses na província colonial do grão-Pará e Maranhão e brincava que a literatura poderia ajudar todos a serem brindados com o mesmo “estalo” que favorecera Vieira durante seus estudos.

Mas sua tese de que, sem cultura, não seria possível entender o marxismo, que defendia com paixão, não era levada muito em conta, nem aceita amplamente. Alguns sustentavam cabalmente que bastava ler bem as obras de lênin e Stálin para entender e assimilar o marxismo e aplicá-lo às condições concretas do Brasil. Embo-ra Pomar nutrisse veneração especial por lênin, ele defendia que Marx era a base dos textos de ambos e insuperável no estudo do sistema de produção capitalista.

Além disso, argumentava que Marx só pudera elaborar seu método cien-tífico e realizar a análise do capitalismo porque conseguira abarcar boa parte da cultura de sua época e das épocas anteriores. Pomar citava sempre a atenção que Marx dera à cultura grega antiga, em especial aos trabalhos de Aristóteles e de dra-maturgos como Sófocles, às obras de Shakespeare e Balzac e a uma gama enorme de literatos e estudiosos, para desenvolver e ilustrar suas próprias teses. Parece não haver notado, então, que tais opiniões eram apenas recebidas com certa indulgên-cia, não como sugestões a serem tomadas a sério.

Foi em meio a essa vida reclusa e quase totalmente voltada para atividades educativas que, numa das visitas de Catharina, Pomar recebeu a notícia de um

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contato partidário enviado do Rio de Janeiro. Tratava-se de Paulo Roppe, um ex-oficial, expulso da Marinha por participar da ANl. Ele trabalhava na Panair do Brasil: piloto comandante, fazia viagens regulares entre o Rio de Janeiro e Be-lém. Na Panair também trabalhava Maurício grabois, comunista proveniente da Bahia, um dos estados onde o partido se mantivera relativamente incólume à onda repressiva, e que fora para o Rio de Janeiro com o objetivo de tentar reconstruir a organização partidária.

grabois e Amarílio de Vasconcelos, como sobreviventes que não se abatem diante da catástrofe, haviam iniciado no Rio de Janeiro uma operação de longo curso, que incluía evitar ligações com militantes visados ou controlados pela polí-cia, ou com estruturas partidárias que pareciam minadas por infiltrações policiais, transferir quadros novos para São Paulo e Rio de Janeiro, enraizar o partido entre os operários industriais e as camadas populares e formar uma comissão nacional de organização provisória.

Com base nesse trabalho, eles pretendiam reorganizar o partido nacional-mente e convocar uma conferência que reestruturasse a direção partidária. Mas batiam-se com a escassez de quadros com alguma experiência partidária. Foi en-tão, por intermédio de Roppe, que ambos tomaram conhecimento das atividades dos paraenses. Em suas viagens ao Pará, o antigo oficial naval mantinha contatos com Samuca, Isaac e Suzana levy, amigos de velha data e que eram, também, amigos e companheiros de Pomar. As conversas entre eles e as informações que transmitiram a Roppe convenceram grabois e Amarílio de que alguns dos presos paraenses poderiam ser úteis aos objetivos que haviam traçado. Decidiram, assim, solicitar a ele que os abordasse, com vistas a uma possível fuga e transferência para o Rio de Janeiro, principalmente de Agostinho, Amazonas e Pomar.

Mas Roppe, para cumprir sua missão, deveria entrar em contato direto com os três por meio de Catharina, deixando todos os demais na ignorância da proposta de fuga. Não foi difícil para ele pedir aos levy que lhe apresentassem Catharina, a pretexto de prestar uma solidariedade mais direta à família de Po-mar. Solidariedade fazia parte da sua natureza e os amigos nem desconfiaram de seus objetivos adicionais. De qualquer maneira, foi o aval dos levy que deu a Catharina a certeza de que o contato era confiável, quando Roppe expôs os motivos maiores de sua presença.

A sugestão do grupo do Rio de Janeiro, e suas razões, foram discutidas ape-nas entre Pomar, Amazonas, Agostinho e Santiago, e as negociações exigiram de Roppe várias visitas à casa de Catharina, na rua Almirante Wandenkolk, sempre a pretexto de ser amigo da família e levar presentes para as crianças – o segundo filho do casal Pomar, Eduardo, havia nascido em setembro de 1939, nove dias após a prisão de Wandick. Em meados de 1941, o plano de fuga já estava delinea-do quando chegou a notícia da invasão da União Soviética pelos panzers alemães.

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Este foi apenas um motivo a mais para consolidar a determinação de retornarem à ativa e tomarem parte num processo de luta antifascista que se tornara mundial.

A fuga somente ocorreu, porém, após a segunda tentativa. Na primeira vez, em junho, o sonífero ministrado aos guardas não fez efeito, frustrando o plano. Depois disso, pensaram em realizar a evasão através da casa lindeira ao fundo, mas desistiram da ideia após constatar que os cães que a guardavam eram bravios e infensos a iscas. Decidiram-se então por um plano mais simples, que envolvia o afastamento da maior parte dos guardas para atendimentos externos e a fuga por baixo da casa, através de um espaço aberto no assoalho, ao despregar duas tábuas.

A nova tentativa foi marcada para 5 de agosto, dia do jogo entre as seleções de futebol do Pará e da Bahia. Catharina providenciou as passagens em barcos que saíam para Marabá, Monte Alegre e São Benedito do Faro. Chovia fino quando o jogo começou, no início da noite, e apenas quatro guardas encontravam-se no posto. Dois deles tiveram que se deslocar para resolver uma “desordem na Vila da Barca”, comunicada por um telefonema. Enquanto Santiago servia chá para os dois restantes, entretidos na escuta do jogo pelo rádio, Serrão, Amazonas e Pomar escaparam pelo caminho planejado. Retido pelo retorno de um dos guardas que havia ido atender à “desordem”, que realmente estava ocorrendo, Santiago viu-se obrigado a fugir com Marujo pela casa dos fundos, apesar dos cachorros que, para sorte deles, estavam presos.

No caminho para o atracadouro, onde tomariam o barco para Marabá, Po-mar e Amazonas só tiveram tempo de pegar suas malas e algum dinheiro, a meio caminho, que o primo Zeca lhes entregou. Passando-se por estudantes em via-gem de estudos, quase não dormiram, cheios de apreensão, chegando pela manhã àquela cidade do Tocantins. Jamais souberam como os estudantes de Marabá to-maram conhecimento da presença de dois “acadêmicos” de Belém na embarcação, mas o fato é que foram recebidos com festa.

Tiveram que participar do baile preparado pela estudantada local e Pomar viu-se tirado para dançar. É verdade que ele era um bom pé de valsa, mas naquela situação aquilo se tornou um suplício. A toda hora tentavam arranjar um pretexto para escafeder-se, mas havia sempre algum grupo que os segurava. Quase não se livraram antes de a polícia local tomar conhecimento das fugas em Belém e co-meçar a investigar os forasteiros que haviam chegado à cidade. O chefe de polícia do governo paraense, Salvador Rangel de Borborema, enviara circular a todos os delegados locais e também aos chefes de polícia dos demais estados, comunicando a evasão dos presos extremistas e solicitando medidas severas para sua captura. Mas Pomar e Amazonas conseguiram alugar um motor e subir o Tocantins no rumo de Carolina, no Maranhão.

Rio acima, viajaram de motores e de canoas, passaram fome, enganando o estômago com água morna pela manhã e, às vezes, uma rapadura que com-

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pravam em alguma casa à beira-rio. Em Peixe, no centro de goiás, conseguiram um caminhão que inaugurara a estrada recém-aberta e seguiram na boleia até goiânia, de onde partiram logo para Araguari, no Triângulo Mineiro. Che-garam no dia 23 de setembro, quase dois meses após haverem escapulido do Umarizal, e tomaram, como um luxo, uma cerveja em comemoração aos 28 anos que Pomar completava naquela data.

Quando passaram por São Paulo, aproveitaram a pausa para ir até uma feira agropecuária no Parque da Água Branca. Tiveram que enfrentar, com roupas de linho, uma daquelas frentes frias temporãs que costumam descer sobre a capital paulista sem avisar. Só arribaram no Rio de Janeiro no final do mês, indo morar numa pensão na rua Maxwell, em Vila Isabel.

Enquanto não estabeleciam contato com os companheiros do Rio de Janei-ro, trataram de procurar um modo de sustentar-se. Pomar conseguiu empregar-se como pintor de parede na construção de um prédio no largo do Machado, entre o Catete e o Flamengo, onde iria funcionar o cine Politeama, e Amazonas arrumou um lugar como auxiliar de contabilidade, no Centro da cidade. Para maior segu-rança, decidiram separar-se e Amazonas mudou-se para outra pensão.

Sozinho, Pomar esperou pelo dia em que deveria tentar o primeiro en-contro com alguém do partido no Rio. Possuía a forma de identificação e a senha para evitar as coincidências e as confusões da vida, mas aguardou impa-ciente, apesar de não ser cuíra.

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7 CONTUDO, NUNCA É A MORTE

APARIçãO BEM VISTA

Gris, caro amigo, é toda teoria, E verde a áurea árvore da vida.

J. W. goethe (Fausto)

1976, São Paulo: dezembro, manhã do dia 12 1972-1974, Araguaia: cedo caiu a noite

Mário voltou a si lentamente, ainda sob a sensação de que precisava com-parecer ao ponto para fazer contato com o grupo do partido no Rio de Janeiro. Olhou, porém, para a mesinha de centro e caiu na realidade ao ver os documentos arrumados sobre ela. Aguçou os ouvidos e não captou qualquer sinal de que os com-panheiros houvessem acordado. Apanhou então um dos textos ao acaso e o folheou como se o visse pela primeira vez. Era o de Evaristo, escrito quase certamente numa máquina portátil, pelo tipo de letra, e se lembrou da intervenção dele e dos demais na reunião do CC, no final de 1974. Era a primeira, após terem a notícia do desastre do Araguaia, em dezembro de 1973, e da morte do Osvaldão, tido por muito tempo como o último remanescente da guerrilha na área, em abril de 1974.

Evaristo não devia ter sequer quarenta anos. Era magro, anguloso, tez more-na, e todo o seu ser denotava seriedade. Desculpou-se por ter dificuldade em abor-dar o problema militar, confessando não ter conhecimentos nesse terreno. Como a maioria dos membros do partido, não estudara devidamente os assuntos militares. Antes pensava que o justo era combinar o trabalho de construção do partido com o trabalho de massas e com os grupos armados. Com o tempo, convenceu-se que a ditadura estava perseguindo tudo, reprimindo tudo e, que a massa estava abafada, expressando-se apenas do jeito que era possível. Supôs, então, que o Araguaia seria a superação das tendências espontaneistas e direitistas, a tentativa de romper com a tradição de imobilismo. Mas o Araguaia foi derrotado de uma forma arrasadora e não havia como fugir desse fato, acentuou.

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Dera-se conta, então, de que essa derrota se tornara inevitável porque as condições políticas eram desfavoráveis. O movimento camponês era fraco e o pro-grama da guerrilha não passara de um inventário, não correspondendo ao nível de luta das massas. A proposta de formar áreas contíguas em forma de ferradura, ten-do o fundo como refúgio, na suposição de que a luta poderia se dar sem um ascen-so geral do movimento de massas, mostrou-se uma ideia irreal. Nessas condições, completou, se persistíssemos na política do Araguaia, fracassaríamos novamente.

Fora implacável em sua apreciação, da mesma forma que Valdir, logo de-pois, para quem a guerrilha do Araguaia não passara de uma experiência foquista e voluntarista. Aduzira que criticávamos e combatíamos o foquismo urbano, mas praticamos o foquismo rural, na errônea suposição de que as massas nos segui-riam, como um rebanho que segue o pastor. Apresentávamo-nos como salvadores do povo e pensávamos que, por sermos boas pessoas, tratarmos bem todos os lavradores, os ajudarmos no trabalho e na hora das doenças, e mesmo quando es-tavam ameaçados pelos grileiros, eles iriam nos seguir quando nos anunciássemos como forças armadas guerrilheiras.

O trabalho de amizade com os camponeses era necessário, indispensável, mas jamais suficiente, acrescentou Valdir. Nosso pessoal teria que haver trabalha-do por um longo tempo, juntamente com os indivíduos combativos da massa, como grupos de autodefesa contra os grileiros. Deveríamos ter evitado qualquer combate sério com as forças do Exército e recuado para longe, durante as ofensivas militares. Só depois, muito depois, de esses grupos haverem sido reconhecidos pela população como “suas” forças de defesa, aí talvez fosse a hora de anunciar alguma coisa diferente. Mas nós fizemos tudo ao contrário e, pior, alguns de nós querem repetir o mesmo desastre.

Diante dos olhos de Mário apareciam nitidamente os participantes daquela reunião. Sérgio fora mais complacente. Considerava o Araguaia a manifestação mais alta do caráter revolucionário do partido, uma demonstração de sua coerên-cia. Segundo ele, o Araguaia ajudara a melhorar a linha do partido, trazendo à luz a importância da floresta e do papel das massas. O prestígio do partido crescera, os ensinamentos eram grandes e o esforço para aplicarmos a linha fora consistente. Entretanto, reconhecia, ocorreram desvios sérios nessa aplicação.

Embora os erros militares tenham sido gritantes, aduziu que os erros principais haviam sido de concepção. O principal deles fora a subestimação do papel das massas, a ausência de uma concepção acertada a respeito. Não con-cordava, todavia, que se caracterizasse o caminho como foquista – estávamos buscando um caminho revolucionário proletário e isso fazia a diferença, disse. Inesperadamente, porém, concluiu que a experiência do Araguaia fora derro-tada, não era válida, e o fundamental era que nossa concepção de luta armada fosse de massas e de todo o partido, nesse sentido concordando com o que

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haviam dito Evaristo e Valdir – nomes de guerra dados a João Batista Franco Drummond e Wladimir Ventura Torres Pomar, respectivamente.

Era bem o reflexo de nossas dificuldades para compreender o que se passara, raciocinou Mário, lembrando-se a seguir do quase nada que dissera Augusto, que se limitara a frisar a necessidade de examinar os problemas políticos e a repercussão da guerrilha do Araguaia, quando o que o partido precisava era justamente que cada um de seus dirigentes realizasse tal exame.

Depois dele, Jota voltou a reiterar que a avaliação e a preparação eram pro-cessos ligados, sendo difícil chegar a uma conclusão. O importante para ele era chegar a um acordo para decidir como encaminhar o trabalho, tomando como base a experiência do Araguaia, a maior de nosso partido. Repetiu que o mais importante foi haver ganho o apoio das massas. Onze homens da massa tinham ingressado na guerrilha e havia a perspectiva de entrarem de vinte a vinte e cinco. Já existiam treze núcleos da União pela liberdade e Defesa do Povo, a UlDP. O nível de consciência da população crescera.

Acontece, acrescentou, que a massa foi reprimida pelo inimigo, com cerca de mil presos. A guerrilha só podia ganhar as grandes massas passo a passo. Tínha-mos o apoio da Igreja e dos terecôs, esse o nosso êxito principal. Jota repetia esses argumentos incansavelmente, culpando o inimigo pela nossa derrota. Sequer se dava conta de que ao inimigo não cabia outra coisa. Esse era o papel dele. O nosso, pensava Mário, era entender perfeitamente isso e derrotá-lo. Jota, porém, parecia embotado. Com a derrota e a morte dos companheiros tornara-se um homem acabrunhado, que parecia carregar a culpa de haver sobrevivido.

Como exigir dele que fosse crítico, se isso envolvia os camaradas que vira cair, ceifados pelas balas do Exército e dos bate-paus? Como discutir com alguém que se martirizava justamente por não haver morrido, como os demais? Mário entendia seu drama e se condoía. Ali estava ele, cabisbaixo, com sua cabeleira ainda negra, a demonstrar que o sangue espanhol que corria em suas veias tinha a mistura moura, tão rica na paixão avassaladora quanto na nostalgia debilitante. E era nostalgia profunda o que via em seu rosto e no olhar baço, sem a vivacidade e o brilho de outrora.

Mário achou melhor não dizer nada nessa primeira rodada de opiniões e abriu as inscrições para uma segunda. Evaristo retomou a palavra e frisou a neces-sidade de o partido chegar a uma solução rápida sobre a tática de trabalhar com os camponeses, de modo a se criar uma ligação profunda entre o partido e essas mas-sas. Para ele, as áreas deveriam ser definidas com base num plano estratégico geral. Se forem de massa e mata, melhor. Mas seria preciso mudar a concepção, a prática do erro cometido, tomando as massas como o aspecto principal. Precisávamos fazer uma autocrítica corajosa, do contrário dificilmente saberíamos mobilizar os camponeses para as novas tarefas, finalizou.

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Valdir também voltou a enfatizar a necessidade de tirar todas as lições da experiência do Araguaia. Para ele, definir as áreas de luta armada e de luta de massas não dependia por inteiro do partido. Tratava-se de um processo de passagem da luta política para a luta armada, que requeria a combinação dos diversos tipos de lutas de massa com ações armadas, em que as próprias massas participassem. Teria que ser um processo que só poderia ocorrer passo a passo, dependendo da evolução da luta de massas e não do desejo do partido. Então, seria necessário acabar com o volun-tarismo, com a ideia de que os revolucionários poderiam tutelar as massas. Só com essa compreensão seria possível situar adequadamente o papel do partido e definir as áreas de concentração de seu trabalho.

Sérgio, ou antes Péricles dos Santos Souza, referiu-se à sugestão de encami-nhar o trabalho militar antes de completar a avaliação da experiência do Araguaia como uma fuga da autocrítica sobre a concepção que presidiu aquela experiência de luta armada. Propôs, então, que se definissem melhor as atividades da Comissão Militar, com vistas a evitar erros idênticos. Augusto (na verdade, Ronald Freitas), por sua vez, considerou que era necessário ter em vista as áreas mais favoráveis para desenvolver a guerra popular, mas que essa definição não seria fácil com a crise exis-tente no Comitê Central. Não havia unidade de pontos de vista, a avaliação estava difícil, mas era indispensável chegar a um acordo e ir para a prática.

Era verdade. Mário lembrou que a Executiva praticamente rachara na avalia-ção da guerrilha do Araguaia, logo que Jota havia retornado e informado detalha-damente todos os acontecimentos. Tendo a honestidade como parte indissociável de sua personalidade, Jota fizera um relatório factual cru, no qual se destacava, com realismo, o retrato da derrota e dos erros cometidos. Ele próprio não se dera conta de que fizera uma pintura em preto e branco, na qual apenas apareciam como borrões desconexos os riscos coloridos com que tentara melhorá-la, em sua ânsia de preser-var o despojamento, o desprendimento e a coragem dos companheiros que haviam sucumbido ao fogo inimigo.

Mário creditou a essa ânsia, e também ao fato de que Jota desconhecia alguns detalhes das ações do próprio comando a que pertencia, muitas das informações incorretas ou parciais que escreveu em seu relatório. Talvez por isso tenha acusado Pedro Albuquerque, um dos companheiros destacados para o dispositivo militar do Araguaia, de haver não só desertado do destacamento C com a mulher, como entre-gado o trabalho do partido na região, ao ser preso no Ceará. Ignorava totalmente, desse modo, o papel que uma militante de nome Regina parecia haver desempenha-do na delação do trabalho do partido no sul do Pará. Doente, ela fora levada, sem conhecimento do conjunto do Comando, para se tratar fora da área, devendo re-tornar a seu destacamento justamente em abril, quando teria um ponto com o Cid.

De qualquer modo, era certo que Pedro Albuquerque havia desertado, em março de 1972, e ao tomar conhecimento disso o comando militar da guerrilha

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em preparação teria colocado os destacamentos de sobreaviso. Jota reconhecia que nesse momento, assim como quando teve início a primeira ofensiva do Exército, em abril, os três destacamentos do dispositivo militar do partido ainda não estavam pre-parados para a luta. Faltavam treze combatentes para completar os efetivos e vários companheiros admitiam não estar em condições para desempenhar aquela tarefa, a exemplo do próprio casal desertor e de outros. Havia também falhas nas reservas de alimentos, no abastecimento das armas, no conhecimento do terreno e na organiza-ção de uma rede de informações, pela total ausência de organizações do partido nas áreas periféricas ou mesmo nos estados vizinhos.

Jota também pareceu estar mal informado sobre o que acontecera com as áre-as de goiás e do Maranhão. Elas, hipoteticamente, deveriam servir de apoio à área central do Araguaia. E, para ele, teriam sido desmobilizadas por culpa dos quadros que estavam à frente delas. Não se deteve em analisar melhor o fato de que quase todos os quadros que se encontravam naquelas áreas haviam sido deslocados para compor os destacamentos do sul do Pará. Nem se perguntou como elas poderiam haver se mantido mobilizadas, após tais deslocamentos e esvaziamento.

Quaisquer que fossem, porém, as causas, tinha havido uma desmobilização das áreas dos estados próximos, o partido estava ausente das áreas limítrofes ao Ara-guaia e havia falhas mais do que evidentes na preparação. Mas, contrariamente ao que seria recomendável diante da constatação dessas deficiências, o comando do dis-positivo militar do partido no Araguaia aproveitou a primeira campanha do Exército para colocar em prática a decisão que havia adotado em 1971: começar a guerrilha em 1972, por sua própria iniciativa.

Jota talvez não achasse recomendável abrir para o Comitê Central essa decisão da Executiva. Mas Mário não podia esquecer que fora precisamente ele, Mário, o encarregado de comunicá-la aos partidos irmãos estrangeiros. Uma decisão de tal tipo supunha uma preparação completa, independentemente de a iniciativa caber ao inimigo ou ao partido. E espantava-se com as consequências que uma concepção incorreta podia ter em termos de decisões práticas desastrosas.

O próprio Jota, que sempre fora zeloso do papel do partido, acabara por aceitar que a existência de organizações partidárias nas áreas periféricas deveria estar voltada para suprir a guerrilha apenas com uma rede de informações. Na mente do comando guerrilheiro, por essas artes que nem o diabo explica, o parti-do passara a ser um apêndice, e bastante secundário. Os companheiros não inver-teram somente o papel de direção, do aspecto político para o aspecto militar. Eles descartaram o partido como expressão dos sentimentos e aspirações das massas populares e como mobilizador, orientador e dirigente da luta pela concretização de tais sentimentos e aspirações.

Como decorrência, a ideia de que a luta armada, por si mesma, constituiria fator de mobilização das massas pelo partido tornou-se um dogma, aplicável a

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qualquer situação. Pouco importava, pois, reconhecer as lacunas do dispositivo militar do partido. Diante da oportunidade de iniciar a luta armada, tudo o mais se tornava insignificante, conduzindo a uma situação em que mesmo camaradas visceralmente honestos e ligados ao povo, como Jota, tornaram-se incapazes de analisar em profundidade as falhas que eles próprios reconheciam e de adotar de-cisões apropriadas diante delas.

Mário estimou que a avaliação de Jota sobre a ação do Exército na primeira campanha, entre abril e julho de 1972, era um caso típico dessa obliteração. Ele dissera que as tropas haviam ocupado as estradas e se emboscado nas proximida-des das casas de moradores, roças, capoeiras, grotas, castanhais, mas não tinham entrado nas matas. Haviam prendido muitos lavradores, acusando-os de serem amigos dos guerrilheiros, mas depois os haviam soltado. Ao mesmo tempo, ha-viam forçado alguns deles a servirem de guias e contrataram os bate-paus da região para agir como cães farejadores e caçadores de aluguel. Tudo indicava que as Forças Armadas ainda não tinham noção precisa do que realmente estavam enfrentando e davam golpes no ar.

Apesar disso, e das lacunas na preparação de suas próprias forças, o co-mando militar do partido decidiu emitir um comunicado público sobre a exis-tência das Forças guerrilheiras do Araguaia. Ao lado disso, ordenou aos des-tacamentos que adotassem a tática de recuar para os refúgios, buscar contato com as massas e realizar ações de fustigamento e emboscada contra o inimigo. Mesmo assim, Jota criticou o destacamento B por haver permanecido mais tempo que o necessário na área de refúgio e teceu comentários ácidos sobre o destacamento C por haver se mantido mais tempo ainda naquela condição, só refazendo contato em janeiro de 1973.

Mário ficou impressionado com tudo isso. Como o Comando Militar do partido na área declarou-se Forças guerrilheiras do Araguaia sem saber exatamen-te como estavam dois dos seus três destacamentos? Como, além disso, traçou uma tática militar que era contraditória por natureza – defensiva ao ordenar o recuo e ofensiva ao exigir os fustigamentos – e não levou em conta a real disposição das massas para empreender um tipo de luta que ia muito além de seu habitual con-fronto com grileiros e jagunços?

Mário também custou a se convencer de que Jota estivesse realmente convicto de que, a partir de junho, ao voltar-se para as massas, os destacamen-tos A e B teriam sido recebidos com entusiasmo, quando ele próprio informava que muitos posseiros, inclusive vários que eram amigos dos guerrilheiros, ha-viam se deixado seduzir com a promessa de mil cruzeiros pela captura de cada “terrorista”. Pessoas da própria massa passaram a avisar o Exército sobre as visi-tas dos combatentes às suas roças e casas, e Jota tomou isso como uma questão de somenos, sem acrescentar nenhum comentário crítico.

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Diante disso, tornara-se quase inevitável que Jota também não fizesse qual-quer observação de maior profundidade sobre seu próprio balanço trágico a res-peito desses contatos com as massas e dos fustigamentos realizados pelos destaca-mentos. Numa campanha em que o inimigo não penetrou nas matas, e em que as tropas eram compostas de recrutas, nove companheiros foram presos ou mortos. Isto é, a guerrilha perdeu mais de 10% de seus efetivos, o que atingiu fundo um dos princípios fundamentais da guerra de guerrilhas – a conservação das próprias forças – e isso aconteceu sem abalar a convicção do comando sobre a correção de suas decisões estratégicas, bem como de sua tática. Como tal coisa pode ter acon-tecido?, lastimou-se Mário.

Ele supôs que, talvez por completa obliteração quanto à gravidade do que ocorrera, Jota tenha passado, como quem atravessa o vau de um igarapé, do relato do final da primeira campanha para o relato da segunda, iniciada em setembro de 1972. Nessa nova campanha, o Exército empregou de 8 mil a 10 mil soldados, em geral recrutas, que operaram da mesma forma que na primeira, acrescentando a suas ações apenas maior propaganda e atividades sociais: as Operações Aciso, para conquistar a população.

Ao mesmo tempo que procuravam minar o moral da guerrilha, jogando panfletos de helicópteros, nos quais contavam atos de traição de guerrilheiros apri-sionados, os militares distribuíam remédios, faziam atendimento médico e den-tário, levavam doentes de helicóptero para hospitais em Marabá e anunciavam a distribuição e a legalização das terras dos posseiros pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).

Foram apenas três meses, durante os quais o comando guerrilheiro manteve a sua paradoxal tática de refúgio, contato com a massa e fustigamento. Como não podia deixar de ser, repetiram-se os problemas com que haviam se confrontado na primeira campanha, tanto ao tentar contatos com a massa quanto ao realizar os fustigamentos. É bem verdade que estes, dessa vez, resultaram na eliminação de alguns soldados inimigos. Entretanto, no conjunto, essa tática permitiu a morte e ou aprisionamento de mais nove companheiros. Assim, em novembro de 1972, sete meses após haver começado, a guerrilha havia perdido mais de 20% de seus efetivos e vários dos seus problemas estruturais, como apoio social, rede de infor-mações, armamentos, alimentos e remédios haviam se agravado.

Além disso, os golpes infligidos pela repressão sobre a estrutura do partido em vários pontos do país, atingindo o Comitê Central, haviam cortado as ligações en-tre o Comando Militar da guerrilha e a direção do partido nas cidades e, portanto, qualquer possibilidade de auxílio. Carlos Danielli, que era o responsável da Comissão Executiva pela logística de apoio à guerrilha, foi preso, torturado e assassinado.

Nesse mesmo período, também foram presos, torturados e assassinados outros membros da Executiva do partido, enquanto as direções estaduais de São

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Paulo, Rio de Janeiro e outros estados sofreram perdas consideráveis e ficaram desestruturadas. O partido nas cidades perdia as condições operacionais de pres-tar qualquer apoio efetivo à guerrilha e esta só podia contar com suas próprias forças. O comando militar do Araguaia sabia disso, pois ouvia as emissões inter-nacionais não só das rádios Tirana e Pequim, como da BBC e outras emissoras europeias, que furavam o bloqueio da ditadura e noticiavam prisões e mortes de militantes de esquerda no Brasil.

É evidente que a repressão militar estava convencida da existência de um hipotético serviço de comunicações da guerrilha, que permitiria seu contato direto e diário com as rádios Tirana e Pequim, fornecendo-lhes informações frescas sobre a luta. Essa lenda consta de quase todos os relatos dos oficiais e praças que falaram sobre sua participação nas operações militares no Araguaia. Tudo não passou, po-rém, de uma lenda mesmo, criada talvez com o propósito de justificar a própria dificuldade das Forças Armadas, que precisavam colocar em campo quase duzentos soldados para cada guerrilheiro, sem sucesso completo, até então.

De qualquer modo, embora não existisse o lendário transmissor, os rece pto-res funcionavam razoavelmente bem e possibilitavam à guerrilha manter-se razoa-velmente informada sobre vários aspectos do que acontecia no país. Por isso, Mário mal pôde acreditar que, mesmo assim, o comando guerrilheiro apenas tenha toma-do como período de trégua o que se seguiu a novembro de 1972, quando o grosso das tropas foi retirado da região do Araguaia. Os golpes sofridos pelo partido nas cidades teriam que tê-lo alertado para as novas hipóteses de ação do inimigo.

Além disso, na própria região era mais do que notória a multiplicação de agentes disfarçados da Polícia Federal, a construção de quartéis de infantaria da selva do Exército em Marabá, Imperatriz, Itaituba, Altamira e Humaitá, o recrutamento de mateiros, a construção de novas estradas na área e o alargamento das existentes e o aparecimento de indivíduos estranhos, comprando terra, abrindo serviços de roça e instalando-se em fazendas. Nada disso parecia haver alertado os camaradas do Araguaia para mudanças substanciais na estratégia e na tática do inimigo.

Não que o comando guerrilheiro tivesse dúvidas sobre nova campanha do Exército. Jota conta que havia certeza de que estava em preparação uma nova cam-panha, para abril ou maio. Para enfrentá-la, os destacamentos foram orientados a aproveitar a trégua para intensificar sua ligação com as massas e preparar locais para ações de emboscada e para refúgio. Deveriam ainda aumentar o conhecimen-to do terreno e melhorar a preparação militar, os armamentos e os depósitos de alimentos e remédios. O comando também teria recomendado que os destaca-mentos eliminassem os bate-paus, jagunços odiados pela massa, responsáveis por inúmeros crimes, que estavam então a serviço do Exército. Por fim, precisavam manter vigilância sobre todos os estranhos que andavam pela área, obedecendo ao princípio estratégico fundamental de sobrevivência da guerrilha.

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Mário não se conformava com o fato de que muitas das orientações do comando militar, desde o início, estivessem em confronto com esse princípio es-tratégico e os companheiros nem se dessem conta disso. Nem que, com tantos indícios de uma mudança profunda no comportamento da ditadura em relação ao partido, tanto nas cidades como na área, os companheiros achassem que a próxima campanha seria “mais uma” operação. Quanto mais ele relembrava os termos do relatório de Jota, mais seu coração se apertava, fazendo seu corpo tremer de dor.

O que fez o comando no período de trégua?, perguntava-se Mário. Fundiu e desfundiu os destacamentos B e C, editou materiais de propaganda, elaborou normas sobre segurança no trabalho de massa, acampamentos, recrutamento para a guerrilha, nas marchas e na organização dos núcleos da UlDP. O maior êxito desse período teria sido a ligação com as massas, quando a influência da guerri-lha teria se estendido, passando a contar, segundo Jota, com o apoio de mais de 90% da população. A massa teria fornecido apoio moral, comida, redes, calça-dos, roupas, informação. Teriam aderido à guerrilha, até setembro de 1973, onze “elementos de massa”. Nesse mesmo período, os destacamentos também haviam realizado várias operações militares contra pistoleiros, mateiros do Exército, fazen-deiros e um posto da Polícia Militar.

Em agosto de 1973, numa reunião com os comandantes dos três destaca-mentos, o comando teria constatado êxitos importantes, principalmente no traba-lho de massa, embora continuassem débeis em armas e informações. Ao examinar as táticas que o inimigo poderia utilizar na próxima campanha e as medidas a ado-tar para enfrentá-lo, o comando reiterara a necessidade de cada destacamento agir diante de informações concretas e concentrar todos os seus efetivos, tendo sempre presente a conservação das forças, evitando baixas.

Ainda no entender do comando, dependendo da envergadura da operação inimiga, os destacamentos poderiam recuar para as áreas de refúgio, ou continuar fazendo o trabalho de massas ou realizar ações de fustigamento ou emboscadas. Se a campanha do inimigo não tivesse início até outubro, possivelmente não seria reali-zada no período das chuvas, em virtude dos problemas de logística. O inimigo tam-bém não entraria nas matas, por não possuir tropas especializadas suficientes para isso. O mais provável é que continuasse nas estradas e batendo as grotas, sem cercar toda a área. Mas ele atacaria mais seriamente as massas. Os destacamentos deveriam preparar-se, então, para ajudá-las a se proteger, recrutando para as forças guerrilhei-ras os que se haviam comprometido a fazê-lo, se o Exército ocupasse as roças.

Meu Deus, quanta ingenuidade! – lastimava-se novamente Mário. Como se pode ter uma mesma tática geral para várias hipóteses táticas do inimigo? Como ter a ilusão de que o Exército não faria a campanha durante as chuvas, quando eram evidentes as preparações logísticas que fizera durante o período de trégua? Como supor que as Forças Armadas fossem incapazes, durante quase um ano in-

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teiro, de preparar tropas especializadas para o combate dentro das matas? E onde já se viu recrutar combatentes para a guerrilha sem qualquer trabalho organizativo e experimental prévio, como grupos de autodefesa e coisas semelhantes?

Que êxito enorme havia sido aquele do trabalho de massa, em que durante um ano nem sequer se conseguira preencher os claros nos efetivos perdidos na primeira e na segunda campanhas? Nem se conseguira melhorar substancialmente os armamentos e munições e as reservas de alimentos? Segundo o que informara o próprio Jota, as reservas alimentares suportariam apenas quatro meses. Não havia calçados, nem bússolas, isqueiros, facas, querosene, pilhas e plásticos para todos os combatentes. Num quadro como esse, somente uma completa ilusão sobre o que estava por vir poderia levar o comando a considerar que bastava o moral muito bom – apesar de uma deserção – e todos se mostrarem confiantes e entusiasmados.

Jota reconheceu que, na terceira campanha, o inimigo agiu de modo dife-rente de qualquer das hipóteses que o comando havia considerado. Primeiro, en-trou no dia 7 de outubro, justamente para operar no período das chuvas. Depois, penetrou nas matas, a partir de vários pontos. Além disso, a repressão contra as massas foi muito mais longe do que o imaginado: foram presos quase todos os ho-mens válidos, deixando nas roças e nos comércios apenas as mulheres e as crianças.

Mário lembrou que nem se podia alegar que isso tivesse algo de original ou de surpresa. Os franceses e os americanos haviam aplicado essa tática em larga escala, principalmente no Vietnã. Repetindo seus mentores, o Exército implantara o terror por meio de espancamentos, torturas, queima de casas e paióis e obrigou moradores presos a servirem de guias. Com suas tropas, ocupou fazendas, casta-nhais, roças, estradas e grotas. Cercou todo o perímetro da área e estabeleceu bases de operação no meio da mata, apoiadas por aviões e helicópteros. E a maior parte das tropas era especializada em combate na selva, com mateiros experientes, prin-cipalmente os índios suruís recrutados à força.

Mário não se cansava de lastimar que os camaradas do comando do Ara-guaia, apesar de tudo isso (e embora em outubro mesmo a guerrilha tenha perdi-do mais cinco companheiros, inclusive um comandante de destacamento), tenha se reunido em meados de novembro de 1973 e chegado à conclusão, Santo Deus! – de que a ofensiva do inimigo não era tão grande, aparecia com pouca força. Afligia-se só em pensar que as observações dos elementos de massa e dos próprios guerrilheiros não tenham conseguido detectar as tropas descaracterizadas, vestidas com roupas comuns e disfarçando o porte das armas, embora os resultados de sua ação sobre a população da região sinalizassem para uma operação de vulto.

Consumia-se com o fato de que o comando, na suposição da pequena força ofensiva do inimigo, tivesse chegado a tomar a decisão temerária de jun-tar os três destacamentos num só, para ter maior potência de fogo. Só não a implementou em virtude dos problemas de logística da própria guerrilha e da

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série de incidentes com grupos inimigos que, durante o resto de novembro e dezembro, foi ceifando a vida de diversos combatentes.

Tanto os destacamentos quanto o comando continuaram recebendo notí-cias esparsas da movimentação das tropas, de prisões de populações de lugarejos inteiros e de pessoas com as quais mantinham contato, além de localizarem rastros crescentes de soldados por toda a área. Mário perguntava-se como nada disso os alertara para a armadilha a que estavam sendo levados, nem os impelira a mudar seus planos e sua tática. Os destacamentos se movimentavam concentrados, em colunas de até vinte e oito combatentes, deixando rastros fortes por onde passa-vam, dirigindo-se para o ponto de reunião com o comando no final de dezembro. Iam para o centro da teia que o Exército, como uma aranha assassina, tecera para capturar e matar suas presas.

Foi com crescente angústia e emoção que Mário lera, no relatório de Jota, que a partir do dia 20 de dezembro os destacamentos e o Comando Militar con-centraram-se em áreas relativamente próximas. No dia 25, um helicóptero co-meçou a sobrevoar a área de acampamento do comando, onde começou logo depois um intenso tiroteio. Durante todo o resto do dia, um avião e mais dois helicópteros realizaram inúmeras viagens de sua base até aquele local, enquanto os comandantes dos destacamentos procuravam se encontrar para avaliar a situação de crescente pressão inimiga.

No dia 27, sem notícias concretas do que havia ocorrido com o coman-do, decidiram iniciar medidas de dispersão e retirada. Enviaram dois combatentes com ordens de encontrar um grupo remanescente, que ainda estava se dirigindo para o encontro, e deslocá-lo para uma área de refúgio. O contato com o comando ficava transferido para fevereiro, mesmo assim somente se se sentissem seguros. Os demais levantaram acampamento para se juntar ao destacamento A, reunindo vinte e cinco combatentes.

Porém, apesar de todas as evidências do perigo, somente no dia 29 decidiram se dividir em pequenos grupos de cinco, abandonar o local e ir para as áreas que melhor conhecessem. Voltaram a acertar que não deveriam dar sinal de presença, só ligar-se a pessoas de confiança, evitar os rastros e só tentar novo contato a partir de março, se a situação estivesse tranquila. Ou seja, sob imensa pressão inimiga, com avi-ões e helicópteros sobrevoando suas cabeças como abutres famintos, finalmente de-cidiram adotar uma tática que deveriam ter empregado desde a primeira campanha.

Mário compreendia as razões que levaram Jota, a despeito de tudo, a ainda permanecer na área entre os dias 29 de dezembro e 19 de janeiro, ouvindo, por várias vezes, ruídos de metralha no rumo em que alguns grupos haviam seguido. Tentava, a todo custo, fazer contato com o comando, ou com o que sobrara dele. O resultado foi que, no dia 14, seu próprio grupo foi desfalcado ao ser atacado por uma patrulha inimiga, sobrando ele e mais dois. No dia 18, encontrou um sobrevivente de outro

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grupo que fora dizimado. No dia 19, dividiram-se em duas duplas e ele tentou, mais uma vez, estabelecer contato com algum remanescente do comando. A mata, po-rém, estava sendo esquadrinhada por tropas inimigas e sobrevoada por helicópteros, obrigando-os a se retirar. Não voltou a encontrar os outros dois combatentes.

Jota não informou no relatório que foi somente sob intensa pressão de Zezi-nho, o companheiro que o acompanhava, que decidiu se deslocar para São Paulo e tentar contato com a direção do partido, para informar o que acontecera com as Forças guerrilheiras do Araguaia. Mário tinha certeza de que ele preferia ter sido morto como os demais. Por isso, considerava um ato heróico que ele tivesse conseguido chegar a São Paulo e ter escrito um relatório que, apesar das interpreta-ções distorcidas de seu próprio envolvimento angustiado, fornecia as informações básicas para uma avaliação objetiva daquela luta. Estava seguro de que o final melancólico do texto de Jota era apenas a expressão do sentimento, que fincara raízes profundas em sua alma, de que ele também deveria ter ficado no sul do Pará.

Ao concluir que, “em poder do camarada Mário, responsável pela Comis-são Militar, havia uma espécie de diário, onde ele anotara os principais fatos e as medidas adotadas na guerrilha, desde o seu início, [anotações que] refletiam as opiniões do comando em diferentes ocasiões, [e] também cópias de todos os mate-riais editados, assim como os hinos, poesias etc.”, Jota talvez quisesse dizer que ali estava a verdadeira história daquela luta, na qual, como repetira mais de uma vez, “nossa gente havia demonstrado que sabia morrer, mas não sabia matar”.

Mário, responsável pela Comissão Militar, principal dirigente do comando guerrilheiro, o mesmo nome de guerra que Pomar usava em 1976, era Maurício grabois, o mesmo grabois com quem se encontrara em 1941, por intermédio de Paulo Roppe, para discutir o trabalho de reconstrução do partido sob as difíceis condições da ditadura Vargas.

Pomar compreendia as razões profundas de Jota, mas não podia aceitar que a morte apagasse tudo, ainda mais para os que haviam ficado. “Se o governo continua escondendo as mortes, principalmente a de grabois (que fora deputado constituinte em 1946 e líder da bancada comunista no Congresso), e nós também, quem as anun-ciará?”, perguntara mais de uma vez durante as discussões na Comissão Executiva.

Havia trinta e cinco anos que se encontrara pela primeira vez com aquele ju-deu baiano que, no perfil correto traçado por Jorge Amado, era inteligente, simpá-tico, de trato agradável, educado, não exibindo o azedume e a prepotência habituais aos mandatários do partido. Embora em contextos diferentes, Pomar sentia viver uma situação em muitos pontos semelhante à daquela época e, em certa medida, idêntica à que grabois enfrentara em dezembro de 1973. Não tinha qualquer dúvi-da de que o cerco sobre o partido se apertava. Conseguiria safar-se?

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8 SE QUERES SER, SÊ POR TUA PRÓPRIA MãO

Deixe-se aos homens seu rebelde ser. Defenda-se cada um como puder

Desde menino, e homens se tornarão. J. W. goethe (Fausto)

1976, dezembro, São Paulo: manhã do dia 121941, Rio de Janeiro: amadurecendo

Mário sentia comoção toda vez que se lembrava de Maurício. Não raro,

sentia até mesmo vontade de chorar. Quantas vezes ficaram em campos opostos nas discussões e nos debates? Não recordava. Mas eram sempre diferenças trans-parentes, um jogo aberto, sem subterfúgios. Nunca sentira nele as negaças que marcaram muitos outros, capazes de dizer uma coisa pela frente e preparar uma rasteira por trás. Considerou sua perda uma lacuna difícil de ser preenchida.

Também jamais entendera por que, sendo como era, deixara-se levar, pri-meiro pela política de Prestes e Arruda e, depois, pela do Araguaia. A anterior a 1957 era até possível compreender, pela falta de experiência e pelo peso que a União Soviética e Prestes representavam. Mas a segunda, que rompia com todas as experiências históricas que haviam vivido, era quase uma incógnita. Ou seria inevitável que as condições se impusessem aos homens e determinassem seus pró-prios caminhos?

Conhecera-o em 1941, quando chegou ao Rio de Janeiro, o partido acéfalo, sua estrutura orgânica desmantelada, muita insegurança quanto a infiltrações po-liciais e toda sorte de divergências sobre a tática de sobrevivência e sobre a política de organização a seguir. Encontrou-se com ele uns vinte dias após haver aportado de sua fuga de Belém. Era um desses tipos físicos de ascendência judaica inconfun-dível pelo nariz grande e adunco, altura mediana, cabelos castanhos curtos, olhos muito vivazes, que falava sem parar, se o deixassem à vontade para tanto. Pomar ainda se encontrou com ele diversas vezes, em pontos de rua, para discutirem as preliminares do trabalho comum.

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gostou da franqueza com que ele exprimia seus pontos de vista, mesmo que fossem aparentemente absurdos, e pela simplicidade com que reconhecia haver dito alguma bobagem. Ele achava que era preciso trabalhar no sentido de reorga-nizar o partido nos principais centros urbanos do país, como Rio de Janeiro e São Paulo, e com base nesse trabalho convocar uma conferência que reestruturasse a direção nacional. Pomar concordava com isso, mas considerava que seria necessá-rio, ao mesmo tempo, discutir a tática política e realizar uma reorganização que não chamasse a atenção das forças repressivas antes de ter uma estrutura suficien-temente forte para aguentar qualquer repuxo.

Durante o dia Pomar trabalhava na obra do Politeama e, à noite, encontra-va-se com grabois ou Amazonas, ou com algum dos novos contatos que fizera, para trocarem ideias sobre a situação e as atividades de reorganização. Também refez contato com Eneida, então vivendo com Maurício Caldeira Brant, outro militante comunista, que trabalhava como gerente de uma oficina de preparo e exportação de malacacheta. Quando retornava a seu quarto, ainda procurava ler algum jornal ou enfiava-se nos livros que conseguira, para estudar. Não podia manter textos marxistas no alojamento. Embora fechasse o quarto a chave, não tinha confiança nos donos da pensão e qualquer deslize poderia colocá-lo em pe-rigo. Então, só pegava um livro de cada vez e carregava-o consigo para o trabalho, embora isso também não fosse muito seguro.

Dedicou-se, na maior parte do tempo, a ler Joaquim Nabuco, Machado de Assis, Sílvio Romero, Rui Barbosa e outros autores brasileiros acima de qualquer suspeita, embora o simples fato de um pintor de paredes ler livros já fosse, em si, suspeito. De qualquer modo, o que realmente preocupava Pomar era o quadro mundial, ainda bastante confuso, mas evoluindo num sentido que teria influência decisiva sobre a luta no Brasil.

As tropas alemãs continuavam avançando sobre o território soviético e tinha--se a impressão de que Moscou cairia a qualquer momento, embora ingleses e so-viéticos houvessem assinado um acordo de operações bélicas conjuntas. Em agosto de 1941, Roosevelt e Churchill haviam enviado uma mensagem a Stálin, propondo uma conferência de cúpula para enfrentar Hitler. Configurava-se assim, no cenário internacional, uma aliança da União Soviética com a Inglaterra e os Estados Unidos para enfrentar a Alemanha nazista. Em termos estritamente comunistas, configura-va-se uma aliança entre o único país socialista da Europa e dois dos maiores países imperialistas do mundo, para conjurar a ameaça do imperialismo alemão.

Esses fatos estavam jogando por terra as inúmeras suposições suscitadas até então por muitos comunistas brasileiros. Alguns haviam considerado impossível que a Alemanha invadisse a União Soviética, justamente por achar que as contradições interimperialistas eram um impeditivo a tal ação. Essa suposição foi simplesmente esmagada pelos quatro exércitos panzers e mais de duzentas divisões alemãs, hún-

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garas, romenas e espanholas que iniciaram a Operação Barba Ruiva, romperam as linhas de defesa soviéticas na Polônia e na Romênia, e marcharam céleres não só em direção a Moscou, mas também a leningrado, ao norte, e a Karkov e Rostov, ao sul.

Outros, após a invasão da União Soviética, acharam que tivera início a revo-lução mundial contra todos os imperialismos. O Pacto de Neutralidade da União Soviética com o Japão, firmado em 13 de abril de 1941, já deveria ter alertado a esses comunistas que os soviéticos levavam a sério tomar o nazismo alemão como seu principal inimigo. Depois, os pactos com os ingleses, os norte-americanos e o governo polonês no exílio em londres, entre julho e agosto de 1941, confirmaram que a frente única contra o imperialismo alemão perseguida pela União Soviética incluía não só os imperialismos ocidentais, mas também governos burgueses e reacionários, como o polonês, desde que em oposição aos nazistas.

Outros membros do PCB refizeram sua impressão sobre o pacto germano--soviético e passaram a concordar com Rodolfo ghioldi, que dizia que Stálin apenas fizera o pacto com Hitler para ganhar tempo e se preparar para a inevitável invasão alemã. Os trotskistas, por seu turno, dividiam-se entre os que seguiam Trotski na necessidade de dar apoio incondicional à URSS contra o imperialismo alemão e os que, como Mario Pedrosa e Edmundo Moniz, condicionavam esse apoio à transfor-mação da União Soviética de “Estado empresário” num “Estado proletário”.

Criava-se, de qualquer modo, um certo consenso de que estava em jogo, para a humanidade, não só a sobrevivência do Estado socialista soviético, mas tam-bém do capitalismo de corte liberal, que não utilizava os métodos de terrorismo de Estado com a brutalidade e a escala destrutiva do imperialismo nazista. Para os comunistas, desse modo, estava em questão não apenas a preservação da primeira experiência socialista, mas também a evolução da própria democracia liberal, que os trabalhadores de diferentes países haviam imposto à burguesia com suas lutas, no correr da história.

Divididos em grupos autônomos pela ação repressiva da ditadura varguis-ta, os comunistas procuravam situar-se nessa nova conjuntura internacional, ao mesmo tempo que precisavam considerar e tratar a própria conjuntura nacional, tutelada por um governo de fortes pendores fascistas. Mas, ainda em 1941, Vargas evoluiu para uma composição com os aliados contra Hitler, buscando obter uma neutralidade bélica, e propôs uma união nacional para defender o Brasil.

John F. Dulles Jr. conta que, em setembro desse ano, veio a público uma carta aberta a Vargas, assinada pelo PCB, dando apoio ao Estado Novo e à união nacional proposta pelo ditador. Em outubro, uma outra carta, agora assinada pelo Secretariado Nacional do PCB – Seção da III Internacional, clamava que a união nacional deveria ser democrática, com a volta à Constituição de 1934, restabe-lecimento do Congresso, direito de greve e liberdade de expressão, libertação de Prestes e demais presos políticos e extermínio da quinta-coluna fascista.

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Qualquer que tenha sido a origem dessas cartas, elas representavam a opi-nião de duas das correntes que aglutinavam alguns dos agrupamentos comunistas dispersos. Na prática, o PCB deixara de existir, desde as prisões de 1940, como estrutura nacionalmente organizada. Não existia, portanto, secretariado nacional algum. Isso não impedia, é lógico, que em São Paulo, no Rio de Janeiro, na Bahia e em outros estados os grupos comunistas procurassem falar em nome do partido e se lançassem na campanha antifascista dos estudantes e na onda de manifestações contra os ataques de submarinos alemães às frotas mercantes de países americanos, assumindo como bandeira as posições de Roosevelt contra Hitler.

Essa campanha tomou vulto com o ataque japonês a Pearl Harbour, em dezembro de 1941, que obrigou os Estados Unidos a entrar na guerra e tornou a situação do governo Vargas extremamente delicada. Além das ações alemãs nas costas brasileiras, que levaram a uma inusitada mobilização popular contra o Eixo nazifascista, a posição beligerante dos Estados Unidos introduziu uma cunha no governo brasileiro, que, sob pressão da grande nação do norte e da mobilização popular, teve que romper relações com os países do Eixo em janeiro de 1942.

As mudanças nos quadros internacional e nacional deram ensejo a que lí-deres comunistas, presos em São Paulo, enviassem uma carta ao ditador, empe-nhando seu apoio na defesa do continente americano e insistindo que a defesa nacional impunha a união da nação em torno do governo. Em abril desse mesmo ano, numa reunião em Buenos Aires com Rodolfo ghioldi e Vitório Codovila, que eram, ao lado de Prestes, as lideranças mais destacadas da Internacional Co-munista na América do Sul, alguns dirigentes do PCB da Bahia e outros militantes comunistas, como Pedro Motta lima, também chegaram à conclusão de que era necessária a união nacional em torno de Vargas para a defesa do Brasil.

Foi com base nessa decisão que João Falcão, um dos baianos presentes à reu-nião, escreveu um artigo para a revista Seiva, no qual argumentava que a guerra, originariamente disputa de grandes interesses e capitais em jogo, chegara à Amé-rica com a invasão covarde e traiçoeira ao país irmão, aos Estados Unidos. Ela se transformava, assim, numa guerra entre a liberdade e a civilização, de um lado, e a opressão e a barbárie, de outro.

Falcão considerava que a Conferência Interamericana, realizada no Rio de Janeiro por aquela época, fora um dos maiores acontecimentos históricos da huma-nidade, sendo as manifestações de rua uma expressão da onda de ódio e indignação contra o afundamento de navios brasileiros e sul-americanos pelo Eixo. O caminho natural seria, então, a união nacional, também defendida por Prestes numa carta escrita, em junho, para Agildo Barata, na qual considerava urgente convencer o povo brasileiro a fazer o sacrifício de participar ativamente na guerra contra o fascismo.

No governo brasileiro acirraram-se as contradições entre suas alas germanó-fila e americanófila. Enquanto Vargas chegava a admitir que o povo russo preferia

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a forma soviética de governo, Dutra, seu ministro da guerra, o alertava contra a propaganda comunista a pretexto da guerra. Dutra se insurgia particularmente contra um manifesto, de mais de cem intelectuais, que descrevia a guerra como “o choque histórico decisivo” entre as forças progressistas e as forças retrógradas. Contra isso, afirmava que a propaganda comunista de então representava uma ameaça mais grave do que a de 1935.

Na mesma linha de delírio anticomunista do ministro da guerra, que coloca-va na cesta comunista todos os antifascistas, o chefe de polícia, Filinto Müller, ten-tou proibir uma passeata estudantil pró-Estados Unidos, entrando em choque com o ministro da Justiça, Vasco leitão da Cunha. Este, mais Osvaldo Aranha e outros, faziam parte da corrente americanófila do governo e aproveitaram a ocasião para fazer a balança pender definitivamente para seu lado. Filinto Müller, um dos mais pervertidos fascistas do governo Vargas, foi então demitido e substituído pelo co-ronel Alcides Etchegoyen, um antifascista declarado. O primeiro racha no governo Vargas tornou-se realidade, colocando os germanófilos numa situação defensiva.

É nesse contexto que Pomar atuava, juntamente com grabois e os demais militantes do grupo do Rio de Janeiro, na tentativa de reorganizar o partido, criar raízes entre os trabalhadores e as camadas populares e forjar um poderoso mo-vimento antifascista. Ele insistia principalmente em que o partido não tentasse aparecer demais, atuando entre as grandes massas principalmente com as palavras de ordem antifascistas unificadoras. Para ele, o que diferenciaria os comunistas das demais forças políticas seria a tenacidade na luta contra o fascismo e na defesa dos interesses dos trabalhadores, e não a propaganda comunista estreita e de pouca penetração nas camadas populares.

Enquanto o baiano Maurício, o carioca Amarílio e os paraenses Pomar e Amazonas tentavam isso no Rio de Janeiro, em São Paulo um outro grupo de baia-nos, formado por Milton Caires de Brito, Armênio guedes e Diógenes Arruda Câ-mara, formava uma comissão executiva provisória, tendo Arruda como secretário, e decidia trabalhar principalmente entre os operários, utilizando-se da palavra de ordem de União Nacional pela guerra e Paz com Vargas, e deixando de lado os gru-pos paulistas que pareciam minados pelo divisionismo e pelas infiltrações policiais.

Esse mesmo grupo, proveniente do Comitê Estadual da Bahia, já tentara antes, entre outubro e dezembro de 1941, reorganizar nacionalmente o partido em uma conferência, mas esta gorou pela participação apenas de representantes de Pernambuco, Alagoas e da própria Bahia. Foi o que levou alguns deles a se deslo-car para São Paulo e tentar levantar o partido com base no maior centro operário do país. Arruda, por meio de Falcão, fizera contato com a seção sul-americana da IC e, numa nova reunião em Buenos Aires, conseguira a aquiescência dos demais participantes para articular-se com o grupo do Rio de Janeiro, já denominado Comissão Nacional de Organização Provisória (CNOP), e trabalhar no sentido da

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reorganização nacional. Por intermédio de leôncio Basbaum, encontrou-se com Amarílio e grabois, no segundo semestre de 1942, iniciando uma prolongada e cuidadosa negociação para juntar esforços da CNOP e do grupo de São Paulo.

A primeira e mais séria preocupação era a infiltração policial em ambos os lados. Depois, a linha de ação para reconstruir o partido principalmente nas bases operárias e populares, evitando bazófias que chamassem a atenção da repressão. Embora o governo Vargas estivesse formalmente aliado contra o nazismo, fascistas escrachados como Dutra continuavam em postos importantes.

O reconhecimento do estado de guerra contra o Eixo, em agosto de 1942, que levara muitos comunistas presos a imaginar a liberdade para breve, e incen-tivar muitos exilados a retornar ao Brasil, somente teve como resultado a prisão dos retornados que haviam sido condenados em processos anteriores. Pomar, em particular, sustentava que qualquer ilusão a esse respeito poderia ser fatal para o trabalho de reconstrução partidária. Mas, logo depois, quando foram afundados seis navios brasileiros na costa nordestina, as manifestações contra o nazismo se transformaram em explosões populares.

A ativa e destacada participação dos diferentes grupos comunistas de todo o país nessas manifestações apontou para eles que estava aberto o caminho para criar um poderoso movimento contra o nazismo. Presos da Ilha grande, sob a direção de Agildo Barata, enviaram então um telegrama a Vargas, pedindo a declaração de guerra e reivindicando postos de combate. A proposta de união nacional com Vargas para a guerra contra o nazismo ganhou corpo entre as grandes massas da sociedade e entre muitos comunistas.

Mas existiam comunistas que consideravam uma traição de classe unir-se a Vargas, mesmo a pretexto de fazer a guerra. Boa parte deles pendeu para a Frente Democrática Nacional, que procurava mobilizar a opinião pública em favor da guerra e contra os fascistas e, ainda, contra qualquer forma de ditadura e pela exal-tação da democracia. Na prática, sua tática era pela guerra e contra Vargas.

Na CNOP ocorria o mesmo tipo de divergência interna sobre a tática de apoio a Vargas no esforço de guerra. Amarílio era um dos que se opunham a isso, afirmando que era necessário impor condicionantes para o apoio a Vargas. Mas a maioria considerava que, nas condições brasileiras, não era possível ser, ao mesmo tempo, contra a guerra e contra Vargas, e que a condição para o apoio a Vargas era justamente que ele realizasse o esforço de guerra.

Pomar supunha que essa interpretação sobre apoio condicional ou incon-dicional estava mal colocada. A linha de união nacional em torno do governo para a guerra contra o nazifascismo resultava da avaliação sobre o deslocamento do inimigo principal. E este era o nazismo, embora Vargas fosse o inimigo de ontem, e ainda estivesse pronto a fazer tudo a seu alcance para derrotar e des-truir os comunistas no próprio processo de união nacional. Um problema adi-

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cional é que, a esses ataques, os comunistas não poderiam responder rompendo a frente única ou partindo para respostas desabridas, já que isto enfraqueceria a luta contra o nazismo.

Nesse contexto, a tática de frente única com o governo varguista devia ser flexível no sentido de aparar os golpes de Vargas e dos fascistas enrustidos dentro do governo, respondendo na medida certa e voltando-se principalmente para se incor-porar ao grande movimento de massas. O fundamental é que estas se apercebessem dos comunistas como os grandes combatentes da causa contra os nazistas. As pro-vocações contra os comunistas tenderiam a chocar-se com a mobilização popular.

A tática de fazer a guerra junto com Vargas possuía essa dubiedade, mas era a única capaz de levar os comunistas a conseguir unificar os esforços contra o nazis-mo e o fascismo, e acumular forças para o futuro, para quando houvesse uma nova mudança na posição dos inimigos e Vargas, ou outro, voltasse a assumir o papel de inimigo principal. Nesse sentido, seria necessário definir as questões estratégicas, de modo que a tática, mesmo correta naquele momento, não se perdesse nos desvãos de uma estratégia nebulosa.

Afora essa dificuldade relacionada com a tática política, havia ainda resistên-cias difusas ao trabalho de reorganização do partido. Uns achavam que não era o momento, outros que o partido simplesmente não deveria ser reorganizado e uma grande parte não confiava na capacidade dos membros da CNOP para realizar essa missão. Ao lado de tudo isso, havia ainda a questão do papel de Prestes no partido reorganizado. Embora por motivos diferenciados, ambos os grupos consideravam que o papel dele seria fundamental no partido reorganizado, pelo grande prestígio popular que detinha. Prestes era o único a possuir um prestígio tão vasto quanto o próprio Vargas. A maior parte dos membros da CNOP era formada de comunistas prestistas, mas havia também aqueles que faziam restrições à forma como seu in-gresso no partido e, pior, na direção, fora imposto pela Internacional Comunista.

Entretanto, todos tinham plena consciência de que seria muito difícil qual-quer trabalho de reorganização partidária que não contasse com o seu apoio. Além disso, as posições políticas do antigo comandante da Coluna concordavam em li-nhas gerais com a tática de fazer a guerra junto com Vargas, facilitando, e muito, o trabalho desenvolvido pela CNOP. Prestes deveria, portanto, ser eleito secretário--geral do partido, mesmo não estando presente à conferência projetada e mesmo não se sabendo a posição que tomaria no futuro.

Foi com base nessas negociações que os grupos comunistas do Rio de Janeiro e de São Paulo decidiram unificar esforços em torno da CNOP e preparar a conferên-cia nacional de reorganização partidária com dois objetivos básicos: unificar sua tática política na nova conjuntura de guerra e eleger uma nova direção, com vistas a recons-truir o partido em âmbito nacional. Juntamente com Amarílio, grabois e Ivan Ra-mos Ribeiro, Pomar foi um dos membros da comissão organizadora da conferência.

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Isto incluía não só os trabalhos preparatórios de discussão e eleição dos parti-cipantes, nas regiões ou estados onde existiam comitês do PCB, como a escolha de um local apropriado e seguro, a organização dos pontos de encontro e de traslado dos participantes, o abastecimento prévio do local com acomodações e alimentos para cerca de cinquenta pessoas, a montagem do serviço de segurança e dos planos de retirada, na contingência de algum perigo, e de uma série de outras minúcias nem sempre fáceis de resolver nas difíceis condições em que o grupo operava.

Foi também nesse período que Pomar conseguiu organizar a transferência de sua família de Belém para o Rio de Janeiro. Por meio de contatos seguros que deixara em Belém, mantinha correspondência constante com Catharina e com-binou com ela todos os passos para o embarque e a viagem. Primeiro, tinha que providenciar outros documentos para ela e as crianças. Depois, ela não deveria, de forma alguma, comprar as passagens ou preparar e sair com suas malas de casa. A compra das passagens seria feita, como foi, por Joaquim Seixas, um jovem compa-nheiro do partido que também deveria viajar no mesmo navio, enquanto as malas deveriam ser levadas por outra pessoa e de outra casa.

Assim, ela sairia com as crianças normalmente para passear e, após verificar que não estava sendo seguida, aí sim deveria ir para o cais e embarcar. Era preciso preparar as crianças para os nomes que iam usar, já que poderiam se atrapalhar se alguém perguntasse como se chamavam, embora o mais novo fosse ainda muito pequeno e quase não falasse. No final de maio de 1942, Pomar recebeu uma carta em que Catharina lhe comunicava que deveria viajar no Itapé, um navio da Com-panhia Costeira de Navegação, programado para zarpar em 10 de junho, devendo aportar em quase todas as capitais entre Belém e o Rio de Janeiro.

Daí em diante viveu momentos de susto e agonia com as notícias dos afunda-mentos de navios na costa brasileira. Soube, por intermédio de companheiros marí-timos, que os navios da Costeira e do loyde navegavam, durante a noite, com todas as luzes apagadas, inclusive as das cabines, para evitar sua localização por submarinos alemães, mas isso não o aquietou. Finalmente, por meio de um companheiro em quem confiava plenamente, conseguiu acompanhar passo a passo as atracações e zarpagens do Itapé a partir de Natal, no Rio grande do Norte. E teve a notícia da hora certa em que o Itapé deveria aportar no Rio de Janeiro, no dia 6 de julho. Ao mesmo tempo que se alegrava com essas informações, dava-se conta de que infor-mantes alemães também poderiam tê-las e avisar a seus submarinos a movimentação das embarcações brasileiras. Foi assim, com um misto de apreensão e alegria, que Pomar não resistiu e foi esperar Catharina e os meninos no píer da praça Mauá.

Ficou meio afastado, olhando o movimento e reparando se havia alguém seguindo os três ao descerem do navio e se dirigirem para fora do porto. Quase não reconheceu Catharina, com cabelos negros ao invés dos antigos loiros. Quan-do teve certeza de que estava tudo limpo e recebeu um sinal positivo de Seixas,

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abordou a mulher e os filhos e os levou para uma pensão na praça da Bandeira, para onde se mudara havia pouco. Os meninos, porém, não poderiam ficar lá. Os donos da pensão não permitiam, a não ser para visitas breves aos pais, e eles teriam que ser alojados na casa de uns amigos, enquanto Pomar não achasse outra pensão ou uma casa para morarem juntos.

Foi um trabalho de Hércules convencer Catharina de que não havia outra alternativa no momento. Só a muito custo ela deixou que os meninos fossem leva-dos para a casa de Campos, um dentista que morava com a família num sobrado, onde tinha também seu consultório, entre o largo do Machado e a praça José de Alencar, entre o Catete e o Flamengo. Essa situação durou cerca de um mês, até que o casal conseguiu mudar-se para uma pensão na rua Marquês de Abrantes e levar as crianças.

Também ficaram pouco tempo ali, mudando-se para Madureira, numa rua em ladeira, onde trafegavam, o dia todo, caminhões vindos de uma pedreira, cujas explosões faziam tremer as paredes e os telhados das construções do entorno. Não muito longe dali morava o Zeca, irmão de Rosa, que viera para o Rio trabalhar numa função civil no Ministério da guerra. Foi por intermédio dele que Pomar soube do casamento de Roman, dos seus preparativos para vir de Belém para o Rio de Janeiro, e pôde retomar o contato com ele e com sua mãe.

O círculo de amizades de Pomar ampliava-se à medida que as ligações par-tidárias iam se estendendo e eram facilitadas pela mobilização em torno da guerra. Ele conheceu Eline e Arcelina Mochel, médicas que tinham vindo do Maranhão e começaram a ter papel de destaque na reorganização do partido no então Dis-trito Federal. Com Eline e seu marido leopoldo, em especial, Pomar estabeleceu uma relação de profunda amizade. Era estreita também sua relação com Francisco gomes, um sapateiro estudioso, cuja capacidade para abrir canais de diálogo com os operários e estruturar células do partido nas fábricas constituíam para ele uma escola importante.

Por meio de Maurício Caldeira Brant, marido de Eneida, conseguiu traba-lho para Catharina na oficina de preparo da malacacheta, na rua Dom gerardo, perto da praça Mauá. Ela cortava as peças segundo um molde padrão, a partir do material bruto trazido das minas, ganhando por peça produzida. Depois de corta-das, as peças eram exportadas para os Estados Unidos, sendo usadas como isolan-tes em ferros elétricos e outros equipamentos. Brant também era o responsável por uma tipografia no bairro de Fátima que, ao mesmo tempo que imprimia milhares de santinhos, por encomenda de comerciantes e igrejas, também preparava pan-fletos e outros materiais de divulgação clandestina.

O trabalho de Catharina para ajudar na manutenção da casa fez com que Pomar não só pedisse à mãe que fosse morar com eles, de modo a cuidar das crianças, como também o levou a mudar-se mais uma vez, para um lugar de acesso

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mais fácil à Praça Mauá. Encontrou, perto de onde morara antes, na rua Maxwell, em Vila Isabel, uma casa numa vila próxima ao rio Maracanã, permanecendo aí o resto do tempo em que ficaram no Rio de Janeiro.

São desse período suas primeiras rusgas com seu companheiro de fuga e com Arruda. Em desabafos com Catharina, contou-lhe que Amazonas, ou “Ser-tão”, como era seu apelido na ocasião, parecia mais propenso a valorizar as novas amizades do que as antigas e não estava sendo franco com ele numa série de di-vergências em torno do trabalho partidário. Para Pomar, o problema não consistia em haver divergências ou posições políticas diferentes. Considerava isso normal na vida, não apenas na atividade política. O problema consistia em se aproveitar dessas diferenças de opinião para costurar alianças políticas sigilosamente, sem discuti-las e esclarecê-las abertamente.

E isso era o que Amazonas e Arruda estavam fazendo em relação a diversas questões. Armênio guedes, que era muito próximo a Arruda, até por questões de parentesco, conta que as divergências entre Arruda e Pomar, embora não explici-tadas claramente, remontam a esse período. Ele as atribuía fundamentalmente a questões de personalidades fortes, o que em parte parecia verdadeiro.

Pomar tinha o caráter e a amizade como questões de princípio. Para ele, a amizade não era algo fortuito, uma manga da qual se rói o caroço e que se joga fora como imprestável. Aprendera a dar-lhe valor com o velho Araújo, que a considerava mais valiosa que o ouro. O avô sempre lhe dizia que, sem o ouro, os homens ainda sobreviviam. Mas sem amizades com que contassem nas ho-ras difíceis estariam jogados ao léu. A amizade não podia, então, ter um liame frágil, que não suportasse os ventos. Tinha que ser como os cipós que enlaçam as grandes sumaúmas e as ajudam a resistir aos terríveis vendavais amazônicos, tendo raízes profundas na franqueza e na solidariedade. Na ausência destas, a amizade se esgarçaria, e não haveria pontos políticos e ideológicos comuns que pudessem recompô-la.

Sentiu que uma amizade, que parecia haver se estabelecido na prisão e na fuga, estava se esvaindo em função das novas alianças políticas firmadas no pro-cesso de reconstrução partidária, no qual afloravam não só o desprendimento e o espírito de luta por uma nova sociedade, mas também os velhos e persistentes defeitos humanos da vaidade e da ambição. E isso o preocupava porque, além de descobrir uma série de novos companheiros, que considerava honestos em seus propósitos, também conhecera alguns de cujo caráter desconfiava. E, num contex-to desses, era mau não ter amigos em quem confiar.

Por outro lado, Pomar desenvolvera uma rara perspicácia para conhecer rapidamente o caráter das pessoas e aprendeu, muito cedo, que era melhor ter um inimigo com caráter do que um aliado sem caráter. Isso, às vezes, lhe causava dis-sabores no trabalho político, já que não podia descartar as pessoas por achá-las sem

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caráter ou de mau caráter. Só a vida e a luta prática podiam desnudar as qualidades intrínsecas de cada um e, na maioria das vezes, era necessário um longo período para que elas se revelassem.

Mais do que em qualquer outro momento de sua vida, foi durante os prepa-rativos da conferência de reorganização do partido, entre 1942 e 1943, que Pomar se deu conta de que o partido não era, e não poderia ser, senão uma amostra do próprio povo brasileiro, com suas qualidades e seus defeitos, com seus heroísmos e suas covardias, com suas alegrias e suas tristezas, com seus lampejos de sabedoria e suas ignorâncias, com seu conformismo e suas explosões de indignação, com sua subordinação à religião oficial e sua crendice capaz de aceitar com tranquilidade qualquer heresia e assimilá-la num total sincretismo religioso, com seu patriotismo local e xenófobo e sua doçura no trato com qualquer estrangeiro.

Qualquer pretensão de ter em suas fileiras apenas os puros seria não só infrutífera como desastrosa. Transformaria o partido numa seita, desligada das grandes massas dos trabalhadores e do povo pobre, mesmo assim sem conseguir se desfazer dos supostos defeitos que pretendesse evitar. E isto se chocava com certa ideia, que aos poucos ganhava força, de entender o monolitismo do partido como cláusula pétrea de organização e hierarquia, e não como unidade política trabalha-da e burilada no próprio processo da luta social e política.

Pomar não tinha solução para isso. Mas a percepção do caráter das pessoas pelo menos o ajudava a se manter alerta diante daqueles de cuja firmeza desconfia-va. Não os tratava mal nem os discriminava, mas não se abria, não os considerava amigos, tomando-os apenas como parceiros políticos, que podiam se despedir na primeira esquina da vida, assim que o vento mudasse. Passou a supor, então, que o mais importante de tudo era manter a ligação estreita com os principais con-tingentes operários e populares e aprender a combinar o trabalho da vanguarda política com o movimento real desses contingentes. Somente a mobilização social, a luta operária e popular, era capaz de colocar à prova as pessoas, por mais comu-nistas que se proclamassem, e fazer com que sua verdadeira natureza viesse à tona.

Foram essas considerações, entre outras, que reforçaram nele a ideia de que era correta a tática de unidade com Vargas contra a guerra. Além de permitir concentrar o fogo contra o inimigo principal, ela exigia, para ter sucesso, que os comunistas saíssem de seus casulos e se ligassem àqueles grandes contingentes populares, podendo então ampliar sua influência e reorganizar o partido. Já antes da conferência nacional de reorganização, com base naquela tática, os comunistas reunidos em torno da CNOP trabalharam duro na mobilização de operários, estu-dantes, intelectuais e outras camadas populares na luta pela participação na guerra e contra os setores fascistas no governo.

Durante todo o ano de 1942 tiveram participação importante nas mani-festações populares de indignação contra o afundamento de navios brasileiros, na

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eleição de Hélio Almeida para a presidência da União Nacional dos Estudantes (UNE), na transformação da liga de Defesa Nacional num centro de atração e mobilização para a guerra contra o nazismo, nas tentativas de mobilização da intelectualidade em torno dos pontos comuns de luta contra o fascismo, na orga-nização da Sociedade Amigos da América e numa série de outras iniciativas que ampliavam o raio da ação comunista entre os grandes segmentos da população.

Ao mesmo tempo, sem descurar da segurança, Pomar e os demais membros da CNOP entregavam-se de corpo e alma ao trabalho no interior das empresas in-dustriais, onde se concentravam setores importantes da classe operária, com vistas a montar uma estrutura partidária baseada principalmente em células de empre-sas. Eles mudavam, dessa forma, toda a estrutura anterior, que realizava o trabalho partidário nas fábricas e outros locais de trabalho por meio de células externas, organizadas por ramos profissionais. Passaram a formar e a destacar quadros, tanto de extração operária como de outras camadas sociais, para trabalhar nas empresas que consideravam mais importantes e realizar um trabalho de longo prazo, não só para mobilizar os trabalhadores para a luta antifascista, mas também para des-cobrir os que simpatizavam com o comunismo e organizá-los partidariamente.

Nesse sentido, também romperam com a política anterior, que desprezava o trabalho nos sindicatos dominados pelos pelegos. Passaram a atuar dentro des-ses sindicatos, não só para fazer com que os operários das empresas tivessem um canal externo onde desaguar suas queixas e reivindicações, mas também para criar as condições de levar os sindicatos a participar ativamente na mobilização pela guerra. É verdade que não abandonaram de todo o trabalho de organização de sindicatos paralelos, já que alguns dos sindicatos oficiais não passavam de arapucas policiais montadas para caçar comunistas, mas o alvo principal de sua atividade sindical eram os sindicatos oficiais.

Embora a CNOP houvesse reduzido ao máximo seu estardalhaço propa-gandístico em torno dos ideais socialistas e comunistas, a mobilização que empre-endeu não passou despercebida, levando o general Dutra a reiterar a Vargas que as atividades comunistas tornavam a situação semelhante a 1935. A época, porém, era outra e Dutra não tinha sustentação nem no generalato para montar um novo Plano Cohen. O general Manuel Rabelo, que presidia a Sociedade Amigos da América e defendia o envio de uma força expedicionária brasileira à Europa, criti-cava Dutra abertamente, afirmando que ele se referia ao “perigo comunista” como um “espantalho e duende imaginário que servia para distrair as atenções e deixar o povo desprevenido contra o inimigo real”.

Numa entrevista a Jacob gorender, para a revista Seiva, e depois numa carta a Vargas, Rabelo afirmou que o Brasil declarara a guerra ao Eixo, mas deixava o litoral desprotegido e não fazia qualquer contribuição efetiva para o esforço aliado. Ainda segundo ele, nas instruções aos oficiais Dutra falava sem-

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pre em perigo comunista, mas nada advertia contra o nazismo ou o fascismo, contra os quais estávamos em guerra.

Desse modo, quando a conferência nacional conseguiu se reunir, no final de agosto de 1943, num sítio no sopé da Serra da Mantiqueira, em Barra do Piraí, no Estado do Rio de Janeiro, a CNOP já tinha uma considerável experiência, tanto no trabalho de frente única para a guerra contra o nazismo quanto de or-ganização do partido na base da sociedade, principalmente entre os trabalhadores das empresas industriais. E, mais ainda, tinha um considerável acervo de trabalho clandestino, que lhe permitiu organizar o sistema de transporte, pontos de en-contro e de traslados dos delegados até o local do evento, com plena segurança.

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Felippe Cossio Del Pomar, pai

de Pedro Pomar. Início do século

XX, Peru.Arquivo pessoal de

Haroldo Amaral

Rosa de Araújo Pomar com os filhos Venturinha (Pedro) e Roman. Nova Iorque, 1918.Arquivo pessoal de Haroldo Amaral

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Felippe Cossio Del Pomar. Década de 1930, Peru.Arquivo pessoal de Haroldo Amaral

Felippe Cossio Del Pomar. Início do século XX, Peru.

Arquivo pessoal de Haroldo Amaral

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Felippe Cossio Del Pomar. Década de 1980, Peru.Museu de Piura. Reprodução Milton Pomar

Felippe Cossio Del Pomar. Início do século XX, Peru.

Arquivo pessoal de Haroldo Amaral

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Biblioteca Municipal de Óbidos.Fotos de Óbidos: Valter Pomar

Uma das casas em que residiu a família Araújo (com bandeira e placa em homenagem a Pomar).

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Roman e Pomar passeiam em Belém. 1933.

Área central de Óbidos.

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Polícia do Pará comunica à Polícia de São Paulo a fuga de Pomar e companheiros, 1941.Fac-símile de documento. Habeas-data PP

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Pomar aos 32 anos, em 1945Arquivo do Estado-SP, acervo do DOPS

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Pomar (à esquerda) com Prestes (no centro), Amarílio Vasconcelos (ao microfone) e outros líderes do PCB, em 1945, durante comício. Cia. da Memória

Eleito pela legenda do PSP com mais de 135 mil

votos, Pomar discursa na tribuna da Câmara

Federal, em 1947.Câmara dos Deputados

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Pedro Pomar com Cândido

Portinari, uma relação de amizade e

respeito. 1947.

Pomar com Maurício Grabois, líder do partido na Câmara, em viagem a São Paulo. Março de 1947.Arquivo do Estado-SP, acervo do DOPS

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Pedro Pomar e Caio Prado Jr. no enterro de Monteiro Lobato.5 de julho de 1948, São Paulo/SP.

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Catharina e filhos: Wladimir , Eduardo, Joran e Carlos, em 1952.

O irmão Roman, sua esposa Jandyra

e um amigo. Rio de Janeiro, sem data

Arquivo pessoal de Haroldo Amaral

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Carta de Pomar a Roman. 1960Arquivo de família

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Ângelo Arroyo (primeiro à esquerda) e a esposa, Lola (última à direita), com um casal de amigos. Data não definida.Arquivo da família Arroyo

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Da esquerda para a direita: Antonio Duarte (de paletó e gravata), Catharina(de colar escuro), Pomar e Miguel Draetta. Ao lado de Catharina, ao fundo, Luiz Vergatti. Estão presentes os filhos mais novos de Pomar: Carlos, de colete eJoran, ao centro. São Paulo, 1960.Arquivo pessoal de Antonio Draetta

Pedro Pomar com os netos Pedro Estevam e Vladimir. 1963, Iaçu, BA.Wladimir Pomar

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Pomar visita o primeiro-ministro chinê Zhu En Lai, em Beijing,1972.Arquivo do PCCh

Conferência sobre Cuba, em 1962. João Amazonas (de pé), Jethero Faria (1º à esq.), Cid Franco, Pedro Pomar, Armando Gimenes e Armando Mazzo. Cia. da Memória

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Folheto elaborado por Wladimir Pomar, distribuído no dia do ato em homenagem a Pedro Pomar, realizado na ABI-SP em 1980.

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9 CEM IlUSÕES E UM RAIO DE VERDADE

Por reino deste-me a infinita natureza, E forças por senti-la, penetrá-la.

Não me outorgaste só contato estranho e frio, Deixaste-me sondar-lhe o fundo seio,

Como se fosse o peito de um amigo. Expões-me a multidão dos seres vivos,

E a conhecer, na plácida silveira, Nos ares, na água, os meus irmãos, me ensinas.

J. W. goethe (Fausto)

1976, dezembro, São Paulo: manhã do dia 121943-1945, Mantiqueira

Mário ouviu os ruídos dos demais companheiros se vestindo, arrumando as camas e os viu indo e vindo ao banheiro. Breve tomariam o café e ele teria de dar início à reunião. Mas não se incomodou. Deixou que seu pensamento continuasse viajando pelo passado, na Maria Fumaça que o levara a Barra do Piraí para organizar a conferência de reorganização nacional do partido, em 1943. Esse era então o único transporte possível, saindo do Rio de Janeiro, de São Paulo ou de Belo Horizonte, e tinha o defeito de deixar os delegados apenas nas estações ferroviárias.

Barra do Piraí era um entroncamento ferroviário importante, com muita gente sempre em trânsito, mas nem isso possibilitaria diluir a passagem dos que se dirigiam à conferência, se todos saltassem lá, mesmo em dias e horários diferentes. Foi preciso organizar a descida tanto nessa cidade como em algumas paradas en-tre ela e Volta Redonda, e também aí, onde começava a ser erguida a companhia siderúrgica. Dois pequenos caminhões recolheriam os companheiros perto das estações e os conduziriam, sentados na carroceria e de olhos fechados, até o sopé da serra. Dali em diante todos iriam a pé até a casa, quase no centro de um sítio cercado de árvores frutíferas e de mata nativa.

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O esquema, felizmente, funcionou a contento. Os quarenta e seis repre-sentantes, de pelo menos oito estados, foram transportados com segurança para o local e a II Conferência Nacional do PCB, montada pela Comissão Nacional de Organização Provisória, foi iniciada no dia previsto. Sua ordem do dia se-guiu a tradição das reuniões do PCB: análise da situação internacional e nacio-nal e decisões políticas; análise da situação do partido e decisões organizativas; eleição do novo Comitê Nacional e da Comissão Executiva Nacional.

Na análise da situação internacional, houve uma certa polêmica sobre o caráter da guerra. Para uns, ela tinha um cunho eminentemente imperialis-ta, embora envolvendo a União Soviética; para outros, ela se transformara de guerra imperialista em guerra de resistência contra os imperialismos alemão, italiano e japonês; para outros, ainda, ela se tornara uma guerra de libertação dos povos nacionalmente oprimidos pelo fascismo.

Embora esses três componentes contraditórios estivessem todos presentes na Segunda guerra Mundial, foi a definição da guerra como luta de libertação dos povos nacionalmente oprimidos pelo fascismo que acabou prevalecendo no debate e no documento final da conferência. Isso trazia embutido o perigo de que a vitória na guerra fosse considerada como uma vitória contra todos os imperia-lismos, mas naquele momento esse perigo não pareceu tão sério para a maioria.

Na análise da situação nacional, houve consenso em torno da ideia de que, sob a poderosa pressão da mobilização popular, e também dos Estados Unidos, o governo Vargas realizara uma verdadeira reviravolta em sua política externa, a partir de 1942. No entanto, a conclusão de que tal reviravolta pos-sibilitara levar à prática uma linha de união nacional com Vargas para a luta contra o nazifascismo e pela anistia aos presos políticos foi motivo para que viessem à luz as controvérsias então existentes. Alguns, como Amarílio Vascon-celos, continuavam achando que era preciso impor condições a Vargas, como o afastamento de Dutra e de outros fascistas do governo e a anistia e a democra-tização imediatas, para aceitar a união nacional.

Eles argumentavam que o apoio incondicional a Vargas poderia facil-mente descambar para o tipo de posição que Fernando lacerda expressara numa entrevista à revista Diretrizes, de Samuel Wainer, em maio daquele ano, aproveitando-se da dissolução da Internacional Comunista. lacerda simples-mente defendera que os comunistas cerrassem fileiras com o povo e com Vargas, numa cooperação com o governo pela união nacional, eximindo-se de restabe-lecer qualquer espécie de organização ilegal. Essa posição era a mesma de vários dos comunistas presos, como Carlos Marighella.

Outros, entre os quais Pomar, argumentavam que o partido não tinha ain-da forças para impor nada. Além disso, as mobilizações populares tinham um caráter espontâneo de luta contra o nazismo, mas não contra o governo. Embora

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de forma demagógica, Vargas aparecia como o homem que declarara guerra ao nazismo, fizera acordos com os aliados, conseguira o projeto da siderúrgica nacio-nal e estava propenso a aceitar a organização da força expedicionária.

No imaginário das grandes massas da população, o inimigo a derrotar era o nazismo e não Vargas. Também, do ponto de vista da tática geral do partido, não se podia ter dois inimigos principais. O inimigo principal era o nazismo. Para o partido tratava-se, então, de adotar uma tática que lhe permitisse acu-mular forças, tendo como foco principal a guerra contra Hitler. Nesse processo, poderia-se empurrar o governo não só para posições mais decididas no esforço de guerra, mas também para maior abertura política.

Durante esse debate, os participantes da Conferência discutiram ainda as resistências internas e externas à política de união nacional. Os escritores católicos, como Tristão de Athaíde (Alceu Amoroso lima), recusavam aliar--se aos comunistas contra o nazi-fascismo, porque tratava-se de “uma aliança impossível entre atitudes substancialmente irreconciliáveis”. A proposta, levada por Jorge Amado, fora repelida liminarmente.

Os trotskistas do agrupamento de Herminio Sacchetta, por seu turno, analisavam que o capitalismo estava na fase final de sua decadência. A partir dessa visão, opunham-se ao esforço de guerra e apelavam ao operariado para aniquilar o fascismo, tanto interna quanto externamente, porque o governo brasileiro entrara na guerra como caudatário do imperialismo americano, que também deveria ser derrotado. A oposição liberal, por sua parte, avaliava como secundário o esforço de guerra, jogando-se com todo peso nas articulações para derrotar Vargas e o Estado Novo.

Essas divergências reais no processo de luta no período da guerra de-veriam causar deslocamentos nas forças políticas à medida que a mobilização popular crescesse. Elas deveriam criar clivagens tanto entre os conservadores, com os quais Vargas ainda se alinhava, quanto entre os liberais e entre a esquer-da em geral. Em vista disso, a maioria dos participantes da Conferência tinha a convicção de que a política de unidade nacional seria o principal fator de mo-bilização social, colocando os comunistas numa posição de destaque e abrindo condições para a anistia, a democratização política e a legalização do partido.

Foi nesse contexto que a Conferência aprovou a política de união nacio-nal em torno do governo para o esforço de guerra e a luta contra o nazifascismo e pela anistia aos presos políticos. A luta para derrubar Vargas e o Estado Novo foi colocada de lado e considerada nefasta no combate ao inimigo principal. Ao mesmo tempo, a Conferência condenou o que chamou de tendências liqui-dacionistas, isto é, as propostas que, tomando a união nacional como pretexto, pretendiam impedir a reorganização do partido e “privar o proletariado de seu estado-maior”.

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Os informes sobre a constituição de células do partido nas empresas in-dustriais e sobre a evolução do trabalho sindical e de massas da CNOP con-venceram a maioria dos participantes da Conferência de que a linha geral do trabalho de organização e de massas deveria ter continuidade. A conferência também elegeu um Comitê Nacional e, dentro deste, uma Comissão Executiva, da qual faziam parte José Medina, Diógenes Arruda, Milton Caires, Maurício grabois, João Amazonas, lindolfo Hill e Pedro Pomar.

Medina, estivador, foi escolhido secretário-geral interino, Arruda secre-tário de organização e grabois secretário de agitação e propaganda. Amazonas, eleito secretário sindical e de massas, foi ao mesmo tempo deslocado para or-ganizar o partido em Minas gerais. Pomar, que já havia se mudado para São Paulo, foi confirmado na direção do partido naquele Estado, considerado estra-tégico em virtude de sua concentração operária.

Além desses dirigentes da Comissão Executiva, foram escolhidos para o Comitê Nacional luís Carlos Prestes, também eleito secretário-geral, embora estando preso, Amarílio Vasconcelos, Francisco gomes, Agostinho Dias de Oli-veira (que faltara à Conferência), Abílio Fernandes, Carlos Marighella (ainda preso na Ilha grande), Ivan Ramos Ribeiro, Álvaro Ventura, Jorge Herlein Fi-lho, Júlio César, Sérgio Holmos, Armênio guedes, Dinarco Reis, José Militão Soares, leivas Otero, Mário Alves e Celso Cabral. Sete dos membros eram operários, principalmente da construção civil e da estiva, seis eram militares (Prestes, Ivan Ramos, Júlio César, leivas Otero, Dinarco Reis e José Militão), e os outros onze possuíam uma formação intelectual diferenciada.

Pomar foi um dos que se bateram para que companheiros que discorda-vam da orientação geral aprovada, como Amarílio, no caso da união nacional, e Marighella, no caso do trabalho ilegal de reconstrução do partido, fossem conduzidos ao Comitê Nacional, não só por seu reconhecido passado de mili-tância mas também porque era preciso sinalizar um tratamento adequado das divergências e demonstrar confiança no sucesso das políticas traçadas. Porém, Marighella, a princípio, rejeitou a homeação.

Quanto a seus objetivos e a sua realização, a Conferência da Mantiqueira – nome pelo qual a II Conferência Nacional do PCB passou a ser chamada – foi um sucesso. Ela coroava um trabalho duro de mais de dois anos, sob as difíceis condi-ções da ditadura Vargas e de importantes modificações políticas no campo nacional e internacional, em que os comunistas reunidos em torno da CNOP contaram úni-ca e exclusivamente com seus próprios esforços, seja na análise da situação política, seja na definição da linha de atuação.

Foi a primeira vez na história do PCB que seus quadros cometeram seus erros e acertos sem qualquer interferência externa, a não ser as notícias e infor-mações internacionais truncadas, que voejavam como moscas tontas. Entretanto,

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o novo Comitê Nacional ainda teria que suar muito a camisa e trabalhar pesada-mente para superar as resistências que encontrava, seja pela esquerda, em relação à linha política de união nacional, seja pela direita, contra a reorganização ilegal do partido.

A suposição de que a Conferência colocara o partido a reboque do getu-lismo levou, ainda no final de 1943, à formação do Comitê de Ação, organiza-do por Dinarco Reis, Eneida de Moraes, Maurício Brant e outros, tendo como eixo a luta pela anistia e a oposição a Vargas. Em vários estados, células, grupos e personalidades comunistas, como Paulo Emílio Salles gomes, Caio Prado Júnior, Mário Schenberg e Tito Batini, alinharam-se com esse Comitê na supo-sição de que a maior parte dos comunistas pretendia participar do movimento democrático anti-Estado Novo, pretensão que estaria sendo desestimulada pela Conferência da Mantiqueira, com sua linha de união nacional e apoio incon-dicional a Vargas.

Eloy Martins, um destacado dirigente metalúrgico do Rio grande do Sul, conta que numa das reuniões de sua célula, em 1943, tomou conheci-mento da palavra de ordem do Comitê Central recém-reestruturado, de prestar ao governo Vargas apoio sem restrições na paz ou na guerra. Ela foi repudiada como absurda para um partido proletário, que não podia admitir que o “sacri-fício na luta contra os poderosos fosse perdido” porque os “pequenos burgueses da direção haviam decidido se curvar para as classes dominantes”.

Por outro lado, Marighella e outros militantes e dirigentes partidários encarcerados continuavam intransigentes contra o trabalho clandestino, en-quanto o Comitê Estadual da Bahia, tendo à frente Antonio Passos guimarães, giocondo Dias e João Falcão, opunha-se à Conferência da Mantiqueira a partir do pressuposto de que o birô sul-americano da Internacional Comunista havia estimado que o comitê baiano era o órgão mais autorizado para falar em nome do PCB.

A Executiva e o Comitê Nacional eleitos na Mantiqueira acharam mais conveniente, porém, resolver essas polêmicas no curso do trabalho de mobilização social e de construção de células nas empresas e regiões de maior concentração ope-rária. Os dirigentes do novo Comitê Central envolviam-se diretamente no trabalho dessas organizações de base, ajudando-as a resolver os problemas concretos que enfrentavam no dia a dia, seja dentro das fábricas, seja nos bairros operários, seja ainda nos sindicatos.

Pomar descobriu a vida prática de um mundo que só conhecia de leitura e de ouvir falar, que era o das empresas gigantes da época, como a Nitroquí-mica, a Jafet, a Alpargatas e as ferrovias paulistas. Ele conhecia os principais dirigentes das células dessas empresas, participava diretamente das reuniões de muitas delas, fazia questão de conversar com militantes de base do partido e

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ouvir suas queixas, críticas e sugestões e dedicava um bom tempo ao esforço de formar cultural e politicamente aqueles que demonstravam maior capacidade de trabalho e mais interesse.

Apesar das divergências, ele e os demais dirigentes organizados em torno das decisões da Conferência da Mantiqueira procuravam envolver os dissiden-tes no trabalho concreto do esforço de guerra e na luta pela anistia, ao mesmo tempo que estimulavam os militantes sob sua orientação a participar dos mo-vimentos pela anistia organizados pelo Comitê de Ação e grupos semelhantes.

É interessantíssima a forma como o mesmo Eloy Martins foi convencido por Tapajós (Agostinho Dias de Oliveira) a incorporar-se ao trabalho que consi-derava uma traição ao proletariado. Tapajós reconheceu para Eloy que um bom número de militantes discordava do apoio irrestrito a Vargas e se declarou, ele próprio, contrário a essa posição do partido, por considerá-la uma colaboração de classe com um governo burguês responsável pelo terror ditatorial.

No entanto, assegurou, essa palavra de ordem deveria mudar assim que a situação político-social se modificasse. Então, continuou, temos que dar todo o apoio ao governo no esforço de guerra, com o objetivo de primeiro derrotar o nazifascismo internacionalmente. Depois, as questões internas se tornariam mais fáceis de modificar. O Comitê Central estava preparando o terreno para a legalidade do PCB e o momento era decisivo para o povo brasileiro, exigindo um pouco de sacrifício de cada um dos comunistas. Eloy, confiante de que seria im-portante conquistar a legalidade e de que a política de conciliação de classes iria terminar, incorporou-se com armas e bagagens ao trabalho de unidade nacional.

Pomar, ao contrário de Tapajós, não considerava que a posição de colabo-ração de classes naquele momento fosse um erro nem uma traição ao proleta-riado. Enxergava-a como resultante de uma contingência histórica, que deveria se alterar com a mudança dessa própria contingência. Tentava explicar isso para os companheiros com os quais mantinha contato, principalmente com os ope-rários que apresentavam as mesmas questões que Eloy Martins. Citava o exem-plo da União Soviética, em aliança com os imperialismos inglês, americano e francês e com uma série de governos burgueses para derrotar o imperialismo alemão. Citava, também, o exemplo do Partido Comunista da China, que fi-zera aliança com o inimigo de ontem, Chiang Kai-Shek, contra o qual estivera em guerra civil, para lutar contra os agressores japoneses. Procurava explicar o significado de saber determinar o inimigo principal em cada contingência histórica, para não cometer erros graves e evitar a derrota. Era um trabalho co-tidiano de convencimento, que só se consolidava à medida que as mobilizações populares ganhavam vulto e arrastavam os indecisos.

Pomar se mudara para São Paulo em pleno inverno paulista de 1943. Via-jara de trem, com Catharina e as crianças num vagão, e ele em outro. Dois outros

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companheiros viajaram na mesma composição, como apoio. A Maria Fumaça saiu cedo do Rio de Janeiro e chegou à noite em São Paulo, com todos tendo que enfrentar, pela primeira vez na vida, um frio com o qual não estavam acostuma-dos. Foram levados para uma pensão na rua Augusta, a mesma em que Arruda e sua família estavam vivendo. De imediato, as crianças pegaram sarampo.

Mas a maior preocupação de Pomar era mesmo, nas condições de clan-destinidade, estar morando num alojamento em que se encontrava um outro dirigente do partido. Sua noção de segurança lhe dizia que isso estava errado. Em pouco tempo, conseguiu alugar o sobrado 7 da vila, de número 564, da rua Borba gato, em Pinheiros, onde se instalou com o nome de João Vicente gomes. Era, para todos os efeitos externos, um representante comercial, obrigado a se deslocar para os mais diferentes bairros da capital e viajar pelas cidades do inte-rior. Quando a Conferência da Mantiqueira se realizou, Pomar já havia assumido o trabalho que antes era realizado por Arruda e foi confirmado como secretário político do Comitê Estadual.

Em novembro de 1943, o governo finalmente tomara a decisão pública de organizar a Força Expedicionária Brasileira, a FEB, e o partido passara a orientar seus militantes a se inscrever como voluntários, não só para demonstrar seu es-pírito de sacrifício e dar o exemplo como para pressionar o governo a efetivar a decisão. Mesmo assim, enquanto o trabalho de organização e mobilização das bases operárias e populares avançava, o trabalho de unidade com as demais forças políticas pelo esforço de guerra contra o nazismo ainda encontrava grandes resistências.

Isso levou Prestes a pedir, em meados de 1944, a união nacional em torno do governo, criticando a linguagem “esquerdista e sectária” de membros da antiga ANl, que concentrava todo o fogo contra Vargas e não contra o nazismo, e condenando as atitudes que propugnavam a liquidação do traba-lho ilegal do partido. Isso coincidia basicamente com a posição majoritária na Conferência da Mantiqueira.

Num ataque duro às forças democráticas que não apoiavam o esforço de guerra, Prestes acusou-as de estarem ao lado do nazismo e quererem a substi-tuição de Vargas por um aventureiro, esquecendo-se de que o “inimigo único desta hora é o nazismo”. Essa posição de Prestes abalou um grande número de prestistas que militavam no PCB e não aceitavam, até então, nem a II Confe-rência, nem a orientação que esta propugnava. Por outro lado, eriçou a aversão daqueles comunistas que, a exemplo de Basbaum, jamais haviam aceitado seu ingresso no PCB.

Para piorar o quadro de confusão e as dificuldades dos que batalhavam pela união nacional, Vargas acelerou suas manobras visando isolar, cercear e re-primir as atividades comunistas. Ainda em 1943 ele havia tomado uma série de

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medidas no campo trabalhista, que tiveram como ápice a publicação da Con-solidação das leis do Trabalho (ClT), numa clara intenção de impedir que os trabalhadores caíssem sob a influência comunista. Ao mesmo tempo, ordenara ao Ministério do Trabalho que intensificasse o controle sobre os sindicatos e re-forçasse a posição dos pelegos, de modo a realizar uma sindicalização de acordo com seus próprios interesses.

Nessa mesma linha, em julho de 1944 ele nomeou para a chefia de polí-cia do Distrito Federal o homem responsável pela chacina de uma manifestação estudantil em São Paulo, Coriolano de góes, com a missão de instituir um programa de arregimentação dos comunistas conhecidos. A polícia os intimava a comparecer à polícia central, na Rua da Relação, no Rio de Janeiro, e em geral os prendia por curto espaço de tempo, para averiguações. Maurício Brant con-tou cerca de quatorze ocasiões em que Eneida e ele foram detidos em virtude dessa nova modalidade de controle dos comunistas que viviam vida legal. O próprio grabois chegou a ser detido numa ocasião.

Ainda a pretexto desse programa, a polícia varguista multou jornais, fe-chou órgãos de imprensa, como Ilustração e Diretrizes, impediu a solenidade de posse de Osvaldo Aranha na Sociedade Amigos da América, voltou a dar aten-ção à movimentação comunista, manteve sob constante vigilância cem pessoas arroladas como inimigas do regime e prendeu, em dezembro, dezoito delas, das quais treze eram comunistas e cinco eram figuras liberais de destaque.

Esses movimentos de Vargas ocorreram, contraditoriamente, num mo-mento em que já houvera uma viragem completa na situação internacional. Não só os exércitos soviéticos estavam em ofensiva desde dezembro de 1943, como a frente ocidental fora finalmente aberta, em julho de 1944, com o de-sembarque aliado nas praias da Normandia. As tropas da Força Expedicionária Brasileira combatiam na frente italiana, apesar da resistência e das sabotagens de Dutra e de outros fascistas que continuavam em postos importantes no Exér-cito. Os jornais já não aceitavam mais a censura desde a entrevista de José Américo de Almeida, no final de 1943, e publicavam com destaque as notícias da frente oriental e os feitos das tropas soviéticas. E a mobilização popular con-tinuava crescendo.

E era essa mobilização, apesar de Vargas, que dava suporte à linha pro-pugnada pelo comitê eleito na Mantiqueira. Maurício Brant reconheceu que, à medida que a tática de frente única se desenvolveu e ganhou consistência de massa, concentrando esforços no apoio à FEB e na luta pela anistia, o Comitê de Ação foi se dissolvendo naturalmente e se incorporando às atividades dirigi-das ou orientadas pelo comitê daquela II Conferência Nacional do PCB.

A atividade prática consumia a maior parte das energias de Pomar e de seus companheiros do Comitê Estadual de São Paulo, como Milton Caires de

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Brito e Moisés Vinhas. Armênio guedes conta que Vinhas, cujo nome de ba-tismo era Moise Vaisencher, teve um papel essencial na estruturação do partido entre a colônia judaica, que forneceu um grande contingente para o partido em São Paulo, na época, por influência da luta antifascista. As bases do partido se consolidavam não apenas na capital, o maior centro operário da época, e San-tos, mas também em importantes cidades do interior, como Sorocaba, Marília, Ribeirão Preto, Bauru e outras. Pomar viajava constantemente em virtude de suas atividades “comerciais”, fazendo recair sobre Catharina as tarefas de edu-cação dos filhos.

Também não tinha condições de manter contato direto com a mãe, que ficara no Rio de Janeiro morando com Roman, e preocupava-se com a falta de notícias. Sempre que podia, enviava bilhetes para Amazonas, já então residente no Distrito Federal, pedindo que ele encontrasse formas de saber como dona Rosa estava.

Quase no final de 1944, Pomar recebeu a notícia de que ela morrera e fora enterrada no cemitério do Caju, o que o levou a ter uma altercação séria com alguns companheiros da direção nacional, em especial com Amazonas. Responsabilizou-os por não o haverem avisado a tempo da situação de saúde dela e não aceitou, de forma alguma, as justificativas sobre as razões de seguran-ça que os levaram a impedi-lo de vê-la. Durante o resto de sua vida lamentou-se por não haver estado com a mãe antes de sua derradeira viagem.

As exigências do momento, porém, não permitiram que Pomar chorasse a perda da mãe como desejava. Os movimentos repressivos de Vargas, em vez de inibirem as ações e atividades dos comunistas, já não tinham efeito contra eles, chocando-se muitas vezes contra a própria base social de apoio do Estado Novo e acelerando deslocamentos no interior do regime. góes Monteiro admitiu, em outubro de 1944, a existência de uma ansiedade geral para a volta do país a um regime constitucional legítimo, declarando-se disposto a acabar com o Estado Novo. Quase ao mesmo tempo, o general Dutra passou a instar Vargas a tomar medidas de normalização constitucional antes do fim da guerra.

Conscientes de que o fascismo estava com seus dias contados no mundo e no Brasil, os germanófilos do regime adotavam medidas para evitar que Vargas estreitasse seus laços com os comunistas e permitisse uma mudança no regime fora das próprias regras e iniciativas de seus condestáveis. Quando, na passagem do ano de 1944 para 1945, Vargas advertiu contra a “agitação prematura” e as “perturbações demagógicas”, sua ambiguidade foi incapaz de elucidar os des-locamentos dentro do regime e de qual seria sua posição diante deles. Por seu lado, a nova direção do PCB, assim como inúmeros militantes comunistas em posição de destaque, parece também não haver se dado conta desses desloca-mentos políticos e das novas alianças que estavam sendo costuradas.

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No I Congresso Brasileiro dos Escritores, realizado na segunda quinzena de janeiro de 1945, a delegação do partido era composta por Dyonélio Macha-do, Dalcídio Jurandir, Moacyr Werneck de Castro, Aparício Torelly, Raul Riff, Alina Paim e Jorge Amado. Por meio de contatos diretos e de acertos com Jorge, Pomar acompanhou o tempo todo o desenrolar e os debates internos do encon-tro, procurando transmitir a visão da direção do partido quanto aos problemas políticos então presentes.

O tom de oposição aberta ao Estado Novo foi dado por Astrojildo Pereira e Cristiano Cordeiro, ambos ainda contrários à orientação da Conferência da Mantiqueira. Cristiano ainda acusou a CNOP, pela imprensa, de estar infiltra-da “de elementos do governo Vargas”. Isso aconteceu justamente no momento em que, pela primeira vez desde que haviam proposto a união nacional com Vargas, os comunistas viam essa possibilidade acercar-se.

No entanto, mal notavam que ela ocorria no contexto de uma profunda rearticulação das forças conservadoras, que haviam sustentado o Estado Novo, com as forças liberais, que haviam lutado contra o regime. Ambas pretendiam disputar o poder apenas entre si, por meio das candidaturas presidenciais de Dutra e do brigadeiro Eduardo gomes. Dutra tinha por trás todos os conser-vadores, civis e militares, que representavam principalmente o velho latifúndio, as oligarquias rurais e uma parte da burguesia. O Brigadeiro tinha o apoio dos liberais, uma representação das classes médias urbanas e de setores da burguesia, que haviam se oposto ao varguismo, menos por sua ditadura do que por seu populismo em relação às classes trabalhadoras.

Essa oposição liberal, de qualquer modo, se aproximara dos comunistas que participavam das uniões democráticas, que haviam se multiplicado desde 1943. Sob a liderança dos liberais, elas tendiam a apoiar o Brigadeiro, mas precisavam ampliar suas bases, mediante a cooptação dos comunistas. Apesar de desprezá-los e detestá--los, os liberais se viam obrigados a cortejá-los, como quem é obrigado a conquistar com balas de mel os empregados domésticos que necessita contratar. Afonso Arinos de Mello Franco deslocou-se para São Paulo, em missão do brigadeiro Eduardo gomes, para encontrar-se com Pomar e convidar o Partido Comunista a se integrar na frente que pretendiam criar para, segundo disse, democratizar o país.

Mas os comunistas tinham sua proposta de Assembleia Constituinte ex-clusiva, com eleição presidencial somente após a elaboração da nova Constitui-ção. Essa proposta era vista como um duplo perigo tanto pelos conservadores quanto pelos liberais, por trazer embutida a ideia de que Vargas comandaria a transição da ditadura para a democracia e por assanhar a paranoia liberal sobre um novo golpe varguista.

Entretanto, uns e outros sabiam que Vargas não tinha mais base militar para tentar qualquer aventura desse tipo. O que fazia tremer conservadores e

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liberais como um perigo a ser evitado a qualquer custo era a aliança, mesmo não formalizada, entre Vargas e os comunistas em torno daquela proposta, criando uma força política de base popular que ameaçava o tradicional rodízio das oli-garquias no poder.

A conspiração para apear Vargas do poder cresceu nas vagas do temor de que os comunistas se tornassem um força imbatível – e unificou condestáveis da ditadura estadonovista e liberais oposocionistas para preparar e realizar um golpe militar. Não podiam, porém, implantar uma outra ditadura, a não ser que quisessem desmoralizar-se. Embora seu objetivo oculto fosse garantir a eleição presidencial antes da Constituinte, de modo a tomar medidas que im-pedissem o crescimento do PCB, o golpe deveria aparecer como a garantia da democratização contra pretensas manobras continuístas de Vargas. Foi sob esse pretexto que os liberais romperam com os comunistas na questão da Consti-tuinte exclusiva.

Para o PCB, porém, este era um ponto fundamental para a consolidação do processo democrático, o que os levou a acercar-se de Vargas quando este mudou de posição e passou a adotar uma série de medidas visando dar continuidade à transição do regime estadonovista para a democracia. Aboliu oficialmente a cen-sura, emendou a Constituição, permitindo as eleições parlamentares e presiden-ciais, estabeleceu relações diplomáticas com a União Soviética, aceitou a anistia e nomeou para a chefia de polícia do Distrito Federal, em março de 1945, João Alberto lins e Barros, ex-tenente que participara da Coluna Prestes e era favorá-vel a uma anistia incondicional. A Constituinte exclusiva tornou-se, desse modo, uma Constituinte com getúlio.

Sem dar-se plena conta do que estava ocorrendo nos bastidores das classes dominantes, o PCB dirigido pelo Comitê Nacional da Conferência da Manti-queira intensificava suas atividades no sentido de mobilizar os trabalhadores. A realização dos congressos sindicais desembocou na criação do Movimento Uni-ficador dos Trabalhadores (MUT), em abril de 1945, que congregava comunis-tas e getulistas. Embora não colocassem em xeque a estrutura sindical existente e ainda se mantivessem dentro dos estreitos limites do sindicalismo oficial, os comunistas infundiram nova vida aos sindicatos, passaram a competir com o prestígio difuso de Vargas e, ao criar o MUT, introduziram uma cunha na legis-lação corporativista, criando condições para uma futura organização autônoma da classe operária.

Nessa mesma ocasião emergiram as opiniões de Prestes, em entrevista a Pedro Motta lima, sobre as perspectivas da luta dos comunistas em seu apoio a Vargas, contra o fascismo e pela democratização do país. Prestes rejeitou o sistema socialista para o Brasil e propôs a instauração de uma república capi-talista, a pretexto de que, num país atrasado como o nosso, sua classe operária

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sofria muito menos da exploração capitalista do que da insuficiência do desen-volvimento capitalista.

Acompanhando essas opiniões e a inflexão do movimento varguista em sua direção, os comunistas do Rio de Janeiro e de São Paulo, estimulados pelo Comitê Nacional, lançaram manifestos em que conclamavam à união nacional com Var-gas, com democracia, com eleições, com anistia e com desenvolvimento industrial e agrícola. Isso acentuou não só a divisão com os liberais, tendo Vargas como pivô, mas também a dissensão de comunistas que discordavam da linha da Mantiqueira.

Paulo Emílio e outros, que haviam organizado a União Democrática Socialista, um similar paulista do Comitê de Ação, atacaram violentamente a linha do PCB. Para eles, este renunciara à luta de classes do operariado, baseara--se exclusivamente na política externa soviética e colaborara com a burguesia, mesmo quando a ditadura varguista estava no auge, ao invés de exigir um regi-me socialista e uma democracia sem classes. Outra parte dos comunistas, que se opunha à união nacional com Vargas, migrou para a Esquerda Democrática, aliada da União Democrática Nacional (UDN), partido que sustentava a can-didatura do Brigadeiro.

A decretação da anistia, em abril de 1945, foi o sinal tácito de que a aliança getulista-comunista estava em curso, permitindo aos comunistas terem vida legal e ampliar livremente sua influência na sociedade. De imediato, per-mitia a inclusão ativa de cento e quarenta e oito quadros experientes, ex-presos políticos, no PCB legalizado, e a unificação das forças comunistas que, apesar de tudo, ainda sofriam da pendência entre o Comitê Nacional oriundo da Con-ferência da Mantiqueira e o Comitê de Ação. E essa parte dependia fundamen-talmente da posição de Prestes.

A base prestista que afluiu ao PCB logo que o partido foi legalizado era certamente maior que a base comunista. O prestígio de que ele gozava faria pender a balança, inexoravelmente, para um dos lados, mas o próprio Prestes era suficientemente sagaz para medir o trabalho realizado, seja pelo Comitê Nacional, que muitos ainda chamavam de CNOP, seja pelo Comitê de Ação.

Enquanto o primeiro reorganizara o partido em quase todo o território nacional, constituindo uma base operária que o PCB jamais tivera em toda a sua história, o Comitê de Ação não ultrapassara os limites de agrupamentos dispersos. Além disso, a linha adotada pela Conferência da Mantiqueira, apesar de discrepâncias pontuais com a linha idealizada por Prestes, tinha menos pon-tos de atrito com ela do que a de oposição a Vargas, praticada pelo Comitê de Ação. Mesmo assim, para aumentar seu cacife e se colocar como unificador do partido, Prestes avaliou que este tivera certa razão em se opor à transformação da CNOP em comitê central, embora reconhecendo que a CNOP agira “com fidelidade” e, “nas circunstâncias”, encarnara o PCB.

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De outro lado, a aliança getulista-comunista levou milhares de traba-lhadores às ruas e deu consistência ao movimento queremista de Constituinte com getúlio, movimento em que se misturavam operários que eram, ou se consideravam, ao mesmo tempo, getulistas, prestistas e comunistas, como re-conheceram mais tarde inúmeros militantes que antes opunham-se à unidade com Vargas. Nessas condições, as diferenças de opinião existentes sobre a tática política adotada pela Mantiqueira, embora continuassem latentes e irresolvidas, foram não só congeladas pela presença de Prestes como literalmente afogadas pela avalanche de mais de 100 mil pessoas que o PCB levou para ouvir Prestes e as novas lideranças partidárias, lotando o estádio de São Januário, no Rio de Janeiro, em maio de 1945. Foi a primeira vez que Pomar teve ocasião de conhe-cer e falar com o Cavaleiro da Esperança.

Em junho, o PCB, legalizado, espraiava seus comitês por todo o terri-tório do país, aparecendo no cenário político brasileiro como um partido de massas, enraizado entre os operários industriais e as camadas populares e com grande prestígio entre a população. Seu líder máximo era aclamado e, em certo sentido, venerado por parcelas consideráveis do povo. Em julho, Prestes deslo-cou-se para São Paulo com o objetivo de participar do comício preparado pelo Comitê Estadual do PCB, a ser realizado no estádio do Pacaembu.

Antes do comício, juntamente com outros dirigentes nacionais e esta-duais do partido, entre os quais Arruda, Amazonas, Mário Scott, Milton Cai-res, Domingos Marques e Armênio guedes, dirigiu-se para a casa de Pomar, em Pinheiros, onde almoçou. Foi aí que João Vicente gomes, como era conhecido pelos vizinhos, transformou-se em Pedro Pomar, um dos dirigentes do partido de luís Carlos Prestes.

Mas o comício do Pacaembu, também com mais de 100 mil pessoas, no qual Pomar desfilou ao lado do Cavaleiro da Esperança em carro aberto, foi sua última ação como principal dirigente do Comitê Estadual de São Paulo do PCB. logo depois do comício, teve que se mudar para o Rio de Janeiro com a família, para assumir a direção nacional do trabalho de educação e propaganda do partido, ao qual estava subordinada a imprensa partidária.

É a partir desse período que a polícia política começa a realizar um per-sistente trabalho de rastreamento das suas atividades. Segundo relatórios reser-vados do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), entre 14 de julho e 17 de setembro de 1945, Pedro Pomar compareceu e foi orador em reuniões, comícios e sabatinas com luís Carlos Prestes nas ruas José Paulino e Mooca, na Cooperativa dos Empregados da Estrada de Ferro Sorocabana, nos salões das Classes laboriosas, em Campinas, no Teatro Municipal e no Anhangabaú.

Como a craca que se gruda no casco das embarcações, a polícia política não estava mais disposta a perder de vista aquele paraense que tinha fugido de suas

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garras em 1941 e emergira como líder comunista em 1945. Mesmo porque, toda aquela mobilização de base operária e direção varguista-comunista havia transfor-mado em pânico os temores dos conservadores e dos liberais, reunidos em torno das candidaturas do general Dutra e do brigadeiro Eduardo gomes.

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10 ENTRE HOMENS SENTIRÁS SER HOMEM

Que sabes do homem, do que anela?Teu ser de aguda, hostil pesquisa,

Sabe do que o homem precisa?J. W. goethe (Fausto)

1976, São Paulo: dezembro, ainda manhã do dia 12 1945, Rio de Janeiro: Legalidade

Quando Mário se deu conta, Rui e Jota já se encontravam aboletados nas poltronas e no sofá, enquanto Dias e Zé Antonio terminavam de arrumar seus pertences. Pegou então suas anotações, aguardou que todos estivessem a postos para poder começar a reunião e propôs, como pontos da ordem do dia, a discus-são da situação política do Araguaia e das questões de organização. Houve um assentimento tácito com o gesto afirmativo das cabeças e Mário mesmo deu início ao primeiro ponto, enfatizando as eleições municipais de novembro de 1976 e as crescentes dificuldades que a ditadura enfrentava para se manter no poder.

Candidatos apoiados pelo PCdoB, como Marcos Dias, em Belo Horizonte, Ivan Barbosa, em Juiz de Fora, José Maria, em Contagem e Benedito Cintra e Flá-vio Bierrenbach, em São Paulo, haviam sido eleitos. Durante o trabalho eleitoral, disse, o partido pudera se concentrar na difusão das palavras de ordem que con-siderava centrais no momento: abolição da lei de Segurança Nacional, Anistia, Constituinte e eleições diretas para presidente. Essas palavras de ordem, acentuou, já constantes de nossa tática desde a conferência de 1966, permaneciam válidas. Com ou sem a nossa ajuda, iam conquistando setores crescentes da sociedade e isso era um sinal de que se tornavam uma necessidade premente dos diversos seto-res do povo brasileiro para dar fim à ditadura.

Mário referiu-se ainda à luta contra a carestia, ou contra a alta do custo de vida, orientada por setores da Igreja, que estava mobilizando parcelas crescentes da população. Mas considerou que as notícias mais alvissareiras do campo popular eram as crescentes movimentações da classe operária industrial, principalmente

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no ABC e em São Paulo. Por meio de operações tartaruga e outros tipos novos de luta, os trabalhadores pressionavam por negociações salariais diretas, aumento de salários e outras reivindicações próprias. Aumentava a pressão da base operária sobre as diretorias sindicais para assumirem as reivindicações e as lutas das fábri-cas, e haviam aparecido novos dirigentes dispostos a fazer com que os sindicatos voltassem a ser órgãos reais de representação classista.

O partido, pela primeira vez em muitos anos, voltara a ter participação em eleições sindicais e eleger alguns diretores de sindicatos operários. Mais importante ainda, começara a reconstruir organizações de base entre a classe operária. Mário deliciava-se com a ideia de que, se a nova classe operária brasi-leira entrasse na luta, isso representaria um golpe profundo no regime, prova-velmente muito mais profundo do que a divisão ocorrida no seio da burguesia durante as eleições de 1974.

Ele considerou importante o destemor de setores da intelectualidade e das classes médias urbanas contra os assassinatos, as torturas, a censura e as leis repres-sivas. Esse destemor se manifestara de forma contundente nos protestos contra o assassinato de Herzog e, em certa medida, de Manoel Fiel Filho, pelo DOI-Codi de São Paulo. geisel fora obrigado a trocar o comando do II Exército e nomear um general afinado com sua política de distensão. Nós, entretanto, enfatizou, não devemos nutrir ilusões com essas manobras. A política de geisel visa manter a di-tadura sob outras formas. Faz uma abertura para maior participação da burguesia nas decisões políticas e, em lugar da repressão massiva, que golpeava a tudo e a todos, quer implantar uma repressão seletiva, para liquidar somente as lideranças revolucionárias.

Nós estávamos condenados à morte, e continuamos condenados a essa pena com a política de distensão do geisel. A ditadura pode até se ver obrigada a afrouxar os cordéis, mas antes disso vai fazer tudo que puder para nos liqui-dar como força política efetiva. Deus protege os inocentes, mas não tenhamos ilusões, frisou.

Mário se empolgava quando falava dos assuntos que diziam respeito à so-brevivência partidária. Seu tom de voz alteava-se e os demais acenavam para ele, no sentido de que o abaixasse. Não acreditava que a ditadura terminasse sem ser efetivamente derrubada. A tática de luta contra ela, no sentido de efetivar a Cons-tituinte, a Anistia, a abolição da legislação repressiva e a eleição democrática para o parlamento e os governos, inclusive para presidente, só poderia se efetivar com uma luta armada em aliança com todas as forças de oposição ao regime militar.

Continuava convencido de que essa luta teria que combinar uma guerra popular nos campos e nas cidades, guerra que incluía mobilizações pacíficas e movimentos armados, manifestações legais e atos clandestinos, e ações abertas e atividades secretas. E a base mais propícia para construir esse processo ainda era o

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campo, onde o movimento camponês começava a tomar vulto, seja pela sindica-lização, seja por meio de diversos tipos de luta de resistência contra latifundiários, grileiros, jagunços, polícia e Exército.

Acreditava seriamente que a luta pela terra estava aprofundando as contra-dições, não só entre a maioria do campesinato, sem nenhum pedaço de chão para plantar e viver, e a minoria de donos de grandes latifúndios, que concentrava em suas mãos a maior parte de todas as terras do país. Também a estava aguçando en-tre a Igreja e o governo, permitindo melhores condições para ajudar o campesinato a se organizar e lutar por seus direitos. Precisamos, acentuou, superar nosso atraso histórico na ligação com o campesinato, compreender suas formas de viver e de lutar e participar de sua organização.

Mário se referiu ainda a alguns fatores internacionais que agiam sobre o país. Achava que não se devia levar muito a sério a política de direitos humanos do presidente americano Jimmy Carter. Fora o imperialismo americano que impusera e sustentara a maioria das ditaduras sanguinárias do mundo e, ainda há pouco, tra-vava uma guerra de destruição contra o povo vietnamita, só saindo de lá quando se viu derrotado.

O imperialismo norte-americano entrara numa corrida desabalada de ex-portações de capitais e penetração nos países atrasados, buscando mão de obra e matérias-primas mais baratas, só possível com governos subservientes e repressivos. À medida que encontravam resistência crescente dos povos, os americanos procu-ravam adaptar sua tática, faziam recuos pontuais, mas não mudavam a natureza de sua política. Eles iriam continuar apoiando a ditadura enquanto fosse possível e iriam se preparar para todas as saídas, mas o centro de sua política continuaria sendo a destruição das forças democráticas e populares.

Mário via melhores condições políticas para aplicar a tática de frente única contra a ditadura. As bandeiras defendidas pelo partido eram bandeiras também defendidas por setores crescentes da classe operária, do campesinato, da intelec-tualidade, da pequena-burguesia e da própria burguesia, da Igreja, do MDB, do sindicalismo e de outras instituições civis. A proposta de luta armada do partido não deveria nos impedir, ponderou, de atuar junto com essas diversas forças, de forma ampla e diversificada, desde pequenas lutas reivindicatórias, até amplas mo-bilizações legais de massa.

Não devemos tentar queimar etapas, enfatizou, da mesma forma que não devemos abandonar nosso trabalho visando encontrar o caminho mais correto para a concretização da luta armada. Nesse sentido, deveríamos dar ao trabalho de construção partidária e mobilização da classe operária industrial a mesma impor-tância que temos dado ao trabalho no campo. Afinal, desde 1968, no documento sobre a guerra popular, rejeitamos a ideia do cerco das cidades pelo campo e fa-lamos da combinação entre as cidades e o campo, tendo em vista a importância

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fundamental que os centros urbanos desempenham no Brasil, diferentemente de outros países. E finalizou dizendo que era chegado o momento de recuperar o papel da classe operária na luta para derrubar a ditadura.

Rui pediu logo a palavra. Achou que era preciso levar em conta a crescente importância do imperialismo japonês no contexto internacional e em suas aplica-ções de capitais no Brasil. A médio prazo, tendia a superar o imperialismo ame-ricano e tornar-se o imperialismo mais perigoso. Tinha sido derrotado na guerra, se recuperado, avançado muito rapidamente nas áreas tecnológicas e já ombreava com o imperialismo americano em muitos terrenos. Estava, porém, atrasado nas exportações de capitais e via-se obrigado a competir na conquista dos mercados dominados pelos Estados Unidos. Isso inevitavelmente descambaria para guerras comerciais e conflitos de diferentes tipos, seja com os países que pretendia domi-nar economicamente, seja com os imperialismos americano e alemão, seja ainda com a União Soviética e a China.

Sem levar isso em conta, ficaríamos sem entender as diversas manobras tá-ticas do imperialismo americano em nível internacional e local. Quanto à situação interna, não concordava que nossa tática de frente única pacífica fosse dar certo. Os setores de oposição à ditadura só viriam para a luta se contassem com um forte respaldo armado, se sentissem que a guerra popular não era um simples discurso, mas uma realidade. Está bem que se participasse de sindicatos, de pequenas lutas, até de eleições, mas nada disso valeria coisa alguma sem uma força poderosa por trás. Também não acreditava que a ditadura fosse amainar as repressões. Ela estava apenas dando um pequeno recuo para depois vir com força total contra todos. geisel, com sua política de distensão, talvez já tivesse matado mais gente do que Médici. Assim, o fundamental era encaminhar a política de luta armada.

Dias disse concordar, no fundamental, com o informe de Mário. A situação política ainda permanecia difícil, mas havia sinais de renascimento do movimento social. O movimento camponês, principalmente, tomava uma envergadura que não tivera antes. O governo não pudera impedir o impulso da sindicalização ru-ral, estimulada pela Igreja, e agora fazia tudo para transformar os sindicatos de trabalhadores rurais unicamente em agências de inscrição e pagamento de aposen-tadorias rurais e de promotores do Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mo-bral). Mesmo assim, surgiam lutas por outras reivindicações e muitos camponeses descobriam que não era o latifundiário que lhes dava emprego, mas sim que eles é que sustentavam o latifundiário. Em muitos lugares do interior o partido também conseguira indicar candidatos a vereador e eleger alguns.

Zé Antonio também concordava com a linha geral do informe, em especial com a parte que se referia à movimentação da classe operária. Fora pessoalmente ao Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo e pudera verificar que a classe ope-rária estava saindo de sua letargia e prometia bastante. Não se espantaria que em

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breve ocorressem grandes movimentos operários, pelo menos nas regiões indus-triais de São Paulo. Também achava que era preciso persistir na tática de unidade com as demais forças contra a ditadura, embora sem o respaldo da luta armada também achasse muito difícil avanços significativos.

Jota começou dizendo que o principal já fora dito, embora sentisse um descolamento entre a situação e a luta armada. Se esta não existia em termos con-cretos, já que todas as tentativas nesse sentido, inclusive a experiência no Ara-guaia, haviam sido derrotadas, como avaliar que a situação política avançava fa-voravelmente? Concordava com a tática de unidade, concordava com as palavras de ordem, concordava com o trabalho operário e o trabalho camponês, mas para ser franco achava que tudo isso seria simplesmente varrido se não conseguissem resolver o problema da luta armada. Este era o problema estratégico, repisou, cujo nó precisávamos resolver. E não era apenas um problema de ter uma linha correta a esse respeito, era também o de avaliar se havia condições objetivas para trans-formar essa linha em sucesso. Achava que havíamos aplicado a linha correta no Araguaia, mas mesmo assim fomos derrotados porque às vezes isso é inevitável. Então, o mais importante mesmo é a discussão do segundo ponto.

Já era quase meio-dia quando Mário retomou a palavra, dizendo que havia um certo consenso em torno de algumas questões e que isso poderia ser a base do informe para a reunião do Comitê Central, a partir do dia 14. As demais questões poderiam continuar em aberto, tanto na Executiva quanto no CC. Concordou com Jota que o problema da luta armada e, mais especificamente, do Araguaia, era um nó que eles precisavam desatar para poder apreciar com mais consistência as demais possibilidades que vinham ocorrendo na evolução da situação política, independentemente da nossa vontade. Mas, como já estava perto da hora do al-moço, seria conveniente suspender a reunião e retomá-la a partir de uma e meia.

Depois do almoço, cada um se recostou como quis. Mário sempre gostava de fazer uma sesta, nem que fosse de dez minutos, um hábito que tinha raízes em suas origens nortistas e que conservara, apesar de não haver retornado ao Pará senão esporadicamente. Em 1945, após a Anistia, não pudera estar lá durante o ato de instalação do Comitê Estadual do partido, realizado em agosto, no Teatro da Paz lotado, mas fora a Belém em novembro, para defender sua candidatura a deputado federal. Tivera, porém, que voltar rapidamente ao Rio de Janeiro, para dar conta das novas tarefas que assumira como secretário de educação e propagan-da do Comitê Central.

O PCB estava crescendo rapidamente – de algumas centenas de células e alguns poucos milhares de militantes, antes da legalidade, passava a ter milhares de células e os números da secretaria de organização já falavam em quase 200 mil militantes. O PCB se transformara num partido de massa, e era preciso transfor-mar todo esse contingente em militantes e dirigentes ativos, utilizando diferentes

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meios de educação e propaganda. Montar jornais diários, para difundir as políticas do partido; possuir semanários e revistas, para fornecer elementos de educação teó rica para os quadros e militantes; instituir sistemas de palestras e cursos para dar maior consistência a esse processo de educação política e ideológica – tudo isso era uma tarefa nova e urgente, que tinha que colocar em primeiro plano. Esperava que o partido no Pará pudesse contribuir em alguma coisa para sua candidatura, mas não poderia permanecer lá em campanha.

Não foi eleito nas eleições de dezembro de 1945, mas, nesse meio tempo, o PCB voltara a editar, semanalmente, A Classe Operária como seu órgão central, tinha jornais diários em oito estados, possuía editoras em vários deles, publicando livros, opúsculos e folhetos, e organizava uma razoável quantidade de palestras e cursos para a militância. Ao todo, o partido contava com 25 jornais de diferentes tipos, tinha influência em várias revistas e contava com a participação militante ou amiga de inúmeros intelectuais e profissionais do jornalismo. Sob sua responsa-bilidade direta estavam A Classe Operária e A Tribuna Popular, ambas editadas no Rio de Janeiro. Pomar estava, assim, numa área que prezava como estratégica para o futuro do partido.

Os quase três anos que passara em São Paulo, num ativismo implacável, sem quase tempo para ler e estudar, o haviam convencido ainda mais de que sem teoria era muito mais difícil resolver os problemas que a vida política estava colo-cando todo dia diante dos comunistas. E não apreciava as atitudes que voltaram a aparecer na fala de muitos dirigentes, como Moisés Vinhas, para quem bastava conhecer o que Stálin escrevera, e um pouco de lênin, para resolver qualquer pro-blema. Ou como a atitude de Arruda, diante das considerações de Ignácio Rangel sobre a necessidade da capacitação teórica, quando afirmou que “para as nossas necessidades teóricas o nosso camarada Prestes nos basta”. Quanto mais lia Marx e Engels, mais apreciava o quanto eles se referenciavam na cultura acumulada pela humanidade, e mais achava impossível entendê-los sem ter um mínimo de cultura e capacitação teórica geral.

Por isso, causa estranheza um caso contado por Eloy Martins. Segundo ele, logo depois da Segunda guerra Mundial, numa reunião com a presença de Pomar, este retrucara a uma intervenção de Eloy, dizendo que àquela altura dos acontecimentos não se podia mais falar de ditadura do proletariado. À resposta de Eloy de que se baseava em Marx, Pomar teria perguntado ironicamente: “Qual Marques?”.

Um diálogo desse tipo, no período indicado, era relativamente impensável. O PCB ainda mantinha sua linha de colaboração de classes, mas certamente seus dirigentes não colocavam dúvidas sobre a categoria, então sagrada, de ditadura do proletariado. Tais dúvidas só surgiram após o XX Congresso do Partido Comu-nista da União Soviética (PCUS) e, mesmo então, Pomar não a abandonou como

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categoria teórica. Quanto a Marx, Pomar também jamais se permitiu ironias do tipo citado em relação ao teórico comunista que mais respeitava. O mais provável é que Eloy tenha se confundido de personagem e de época.

Ao mudar-se de São Paulo para o Rio, Pomar fora instalado no apartamen-to 1.312, no 13o andar do bloco C do edifício Zacatecas, à rua das laranjeiras, 210, na esquina com a rua Pereira da Silva. Aristóteles Moura, um economis-ta, membro do sindicato dos bancários e também do PCB, havia comprado um apartamento nesse prédio novo e conseguiu alugar outro para uso do partido. lá de cima tinha-se uma visão razoável do bairro, pelo lado que se espraiava até o Parque guinle e o largo do Machado, já que a maioria dos outros prédios ainda era de gabarito baixo. Exatamente sob as janelas laterais do apartamento, separada da área de circulação do prédio por um muro alto, encimado por cacos de vidro, descortinava-se o amplo terreno de um convento de freiras, com sua horta, árvores frutíferas, prédios usados para aulas e a capela. Por trás, só havia a visão do morro São Judas, onde terminava a rua Pereira da Silva e crescia uma favela.

Era um apartamento de três quartos, dois ocupados por Pomar, Catharina e os filhos, e um por Amazonas, que fora morar com eles, e onde, eventualmente, ficavam companheiros vindos de outras regiões para reuniões da direção ou para outras atividades partidárias no Rio de Janeiro. Jacob gorender, que participara da FEB e voltara com um ferimento em uma das pernas, ficou uma boa tempo-rada nesse apartamento, enquanto se tratava. Por intermédio dele, Pomar pôde enfronhar-se um pouco mais na música clássica, que gostava de ouvir, mas jamais tivera oportunidade de estudar.

Do prédio até a sede do Comitê Central, na rua da glória, era relativamente perto. Pomar pegava um bonde na rua das laranjeiras e em menos de meia hora estava na glória. Mal mudou e assumiu sua nova função, começaram a preocupá--lo não só as mudanças que ocorriam na situação política, mas também certas concepções e práticas que saltitavam no partido. Ainda em 1944, Prestes sugeria que, liquidado o nazismo, não haveria nenhuma outra grande nação imperialista, altamente industrializada, que pudesse sustentar qualquer ditador contra a von-tade dos povos. Pomar considerara que essa afirmação, feita por Prestes quando ainda estava preso, talvez houvesse sido dita no contexto da união nacional contra o nazismo, para não espantar aliados.

No entanto, em pleno comício de São Januário, em maio de 1945, Prestes afirmara que o imperialismo estava moribundo e, ao mesmo tempo, clamara por uma república que pudesse ser instituída sem maiores choques e lutas, dentro da ordem e da lei, uma república que não seria, de forma alguma, soviética, isto é, socialista, mas capitalista, já que no caso particular do Brasil faltavam, para uma revolução socialista, não só as mais elementares condições subjetivas, como as im-prescindíveis condições objetivas.

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Repetindo o que dissera a Pedro Motta lima, Prestes declarou que, objeti-vamente, num país industrialmente atrasado como o Brasil, a classe operária sofre-ria muito menos da exploração capitalista do que da insuficiência do desenvolvi-mento capitalista e do atraso técnico de uma indústria pequena e primitiva. Então, deduziu, o que convinha à classe operária era a liquidação dos restos feudais para o rápido desenvolvimento do capitalismo, podendo-se afirmar, com lênin, que nada poderia haver de mais reacionário do que pretender a salvação da classe ope-rária em qualquer coisa que não fosse o desenvolvimento ulterior do capitalismo.

Pomar ficou muito impressionado com essas opiniões e, por mais que lesse O Desenvolvimento do Capitalismo na Rússia e outros textos de lênin, não encon-trava nada parecido com a interpretação de Prestes a respeito. E, como era do seu feitio, levantou suas objeções em reunião do secretariado. Concordava com Prestes que a nossa revolução ainda tinha um caráter democrático-burguês, mas achava que isso não queria dizer, necessariamente, que por meio dela devêssemos desen-volver o capitalismo para, depois, fazer outra revolução e implantar o socialismo.

Também achava que a direção do partido não estava acompanhando como devia as mudanças na situação política e os deslocamentos de forças que ocorriam no campo conservador, deixando tudo sob o comando de Vargas e segurando as mobilizações e lutas populares, sob o argumento de que qualquer tumulto poderia afastar o processo de democratização dos caminhos institucionais. Nesse sentido, achava ambígua a diretiva de “ordem e tranquilidade” e errônea a de “apertar os cintos”. Defendia que o partido não poderia ficar omisso diante da conspiração em curso, que tinha como objetivo explícito derrubar Vargas e como objetivo im-plícito impedir o crescimento da organização popular e dos comunistas.

Pomar foi duramente criticado por essas posições. Foi a primeira vez que sentiu o verdadeiro poder de Prestes sobre o partido, poder que ele também ajudava a propagar, embora considerasse que isso não deveria ser confundido com sub-missão total e impedimento do debate de ideias. A reação dos outros membros do secretariado foi, para ele, inesperada e intempestiva, dando-lhe a impressão de que dissera uma monstruosidade. Deu-se conta, pelas argumentações, que eles também não tinham segurança sobre o que Prestes dissera e que o propósito de cada um era defender o secretário-geral, como se discordar dele fosse um ataque pessoal.

Vários desses membros da Comissão Executiva, principalmente Arruda, cri-ticaram seu pouco empenho no estudo de Stálin, cujo pensamento representava um novo patamar no desenvolvimento do marxismo-leninismo e um guia seguro para a determinação da linha política. Não era costume de Pomar atemorizar-se no debate político, mas considerou seriamente que se instalava, de uma forma espontânea, sem alarde e sem uma imposição aberta, um sistema em que Prestes, baseado no grande prestígio de que gozava, dava a primeira e a última palavra na direção e, portanto, em todo o partido, a respeito de tudo.

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Não achou isso bom, embora continuasse convencido de que Prestes era um gênio e um exemplo a ser seguido, que estudara e dominava o marxismo-leninismo como poucos no mundo. Aceitou que poderia estar enganado, mas reiterou que não estava convencido da justeza daquelas teses e que se dedicaria e estudar melhor os ensinamentos do camarada Prestes para clarificar seu pensamento. E, como era de hábito, manteve suas divergências estritamente no âmbito do secretariado e da Comissão Executiva.

Essa situação refletiu-se no primeiro encontro público do partido com seto-res da intelectualidade, por ocasião da visita de Pablo Neruda ao Brasil, em junho de 1945. Falando em nome da direção nacional, Pomar recordou a advertência de Prestes aos intelectuais quanto aos perigos que os ameaçavam e rememorou a con-versa dele com Monteiro lobato, na qual explicitara que só era possível construir o socialismo com um forte Partido Comunista e assegurara que tínhamos, no Brasil, todas as condições para forjar rapidamente um partido bolchevique.

Pomar frisou que Prestes havia indicado aos membros do partido o dever de esclarecer os intelectuais. Estes, segundo o secretário-geral, eram predispos-tos a acreditar nos “escribas do fascismo” e a se tornar vítimas mais fáceis dos esquerdistas e trotskistas. Acentuando que a doutrina marxista do partido, a ciência do estudo da vida social, tornava-se para as grandes massas dos povos o guia fiel e consequente, e que os comunistas sentiam-se à vontade em conviver com os homens de cultura porque sua filosofia e seu trabalho também tinham um fundo científico e artístico, Pomar pediu, então, permissão a todos para fazer aquele esclarecimento.

Os comunistas, disse, podiam errar por omissão, mas nunca por má-fé. A posição do partido em face da ciência, das artes e mais propriamente do pensa-mento humano, criador e livre, já fora definida com suficiente clareza por uma vasta literatura. Podia apelar, então, para o sentimento democrático dos intelec-tuais, para seu espírito de combate a favor do avanço da cultura, contra a into-lerância e o preconceito e pela compreensão da linha política do partido, que objetivava conquistar e garantir a independência e a liberdade do país, e consultar aos interesses fundamentais da classe operária e do povo brasileiro.

Em política, argumentou, era preciso não olhar para o que morria e sim para o que nascia. E o que nascia em nossa pátria, o que cobrava energias no mun-do, era a democracia, a força do povo organizado, só possível por meio da unidade de todas as classes e camadas sociais porque, conforme os ensinamentos da guerra patriótica e antifascista, este era o único meio de defender, de conquistar e de con-solidar a democracia. Pomar se atinha, assim, estritamente à linha de colaboração classista da união nacional, reiterando que ela era uma forma revolucionária de luta porque, naquele momento, era a única capaz de conduzir rapidamente os brasileiros a uma fase superior de progresso social.

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No esforço para justificar aquela linha, que já recebia críticas e golpes de vários lados, Pomar chegou a afirmar que o método materialista dialético indicava que a sociedade, como a natureza, não dava saltos em sua evolução, justamente o contrário do que supunham Marx e Engels. Rebateu, a seguir, a qualificação de pacifista, retru-cando que os comunistas jamais haviam sido partidários da violência pela violência. Segundo ele, com base na vitória militar das nações unidas contra o fascismo, os comunistas defendiam o caminho de desenvolvimento pacífico, de um novo tipo de cooperação, que visava sobretudo defender os interesses de toda a humanidade.

Dessa forma, na prática ele defendia o pacifismo predominante no Comitê Nacional, e entre a esmagadora maioria dos dirigentes do partido, embora nutrisse crescentes dúvidas a respeito. A partir desse momento, porém, Pomar introduziu algo que, no momento, contrapunha-se às diretivas de ordem e tranquilidade. Deu ênfase à ideia de que a linha do partido também era baseada no princípio de não esconder os antagonismos de classe, de não dissimulá-los, seguindo a mesma consequência proletária, a intransigência em relação aos princípios e aos interesses do proletariado.

Para ele, a união nacional não deveria negar ou encobrir as contradições de classe existentes no regime capitalista, sendo apenas uma forma de luta que elevava essas contradições a um plano superior, ao plano mundial. Em sua fala, Pomar também deixou subentendido que a união nacional era uma forma de luta subor-dinada aos interesses da União Soviética, preocupada em reconstruir sua sociedade após a destruição da guerra, o que seria difícil, de acordo com o pensamento dos dirigentes soviéticos, num novo contexto mundial de corrida armamentista e con-flitos internacionais.

Ao mesmo tempo, Pomar apelou a lênin para esclarecer os intelectuais so-bre o esquerdismo, frisando que para estudar o comunismo estávamos ameaçados por toda uma série de perigos que se manifestavam a cada instante, desde que o estudo do comunismo era mal apresentado ou unilateralmente compreendido. Alguém só se tornava comunista quando enriquecia sua memória com os conheci-mentos de todas as riquezas elaboradas pela humanidade e quando se detinha nos fatos da prática diária, do convívio com a realidade e com as massas, e os conside-rava com um justo senso crítico.

Ele frisava, assim, como para convencer a si próprio, algumas linhas de pen-samento e ação que achava indispensáveis não só aos intelectuais mas a todos os comunistas: embeber-se dos conhecimentos elaborados por toda a humanidade, construindo uma cultura sólida; conviver com a realidade e com as massas, com a prática social, examinando-as com o senso crítico que só a cultura fornece e reti-rando dos fatos dessa prática suas linhas de atuação.

No curso dessa preleção, Pomar fez um hiato em que procurou prestar es-clarecimentos sobre a posição do partido diante de dois fenômenos que, segundo

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Prestes, encontrava nos intelectuais vítimas fáceis: os trotskistas e os preconceitos contra os comunistas. Pomar repetiu, então, o que se tornara senso comum no partido, conforme a avaliação de Prestes: que a formação do PCB não havia sido das melhores, em virtude da influência anarquista e trotskista nos seus primeiros passos e da extração pequeno-burguesa de seus quadros dirigentes. Tal situação cau-sara prejuízos muito sérios ao partido e a seus intelectuais, particularmente em São Paulo, com o fracasso de 1935, a repressão e o descenso do movimento de massas.

É verdade que esse senso comum era reforçado pela ação prática dos trotskistas, que tomavam o PCB como seu inimigo principal. Naquele momento, intensificavam seus ataques, difundindo a ideia de que os comunistas do PCB estavam não só a serviço de Stálin e da União Soviética como também a serviço da burguesia brasileira e imperialista. Assim, se os trotskistas faziam descambar suas divergências com os comunistas, que denominavam stalinistas, estes também respondiam na mesma moeda, como fez Pomar ao reconhecer que os intelectuais tinham certa razão em confundir a vigilância dos comunistas com desconfiança. Ele justificou ambas por considerar que os trotskistas haviam se transformado, de uma corrente política, num bando de agentes terroristas do fascismo, segundo provas que o PCB reunira, embora não as tenha apresentado.

Pomar também discutiu a acusação de que os comunistas seriam autoritá-rios, não admitindo críticas nem liberdade aos militantes. Admitiu que o conceito de liberdade dos comunistas era diverso do conceito burguês-liberal e que eles não concebiam nenhuma liberdade absoluta. Mas seu método de trabalhar, de discer-nir as coisas e os fatos repelia a intolerância na discussão sobre a verdade objetiva. Para ele, os comunistas não temiam a verdade, jamais tiveram medo de confessar seus erros, e o partido nunca foi nem seria um partido autoritário.

Ninguém era obrigado a aceitar a disciplina do partido, sua forma de pen-sar, sua maneira de trabalhar, já que a imposição de tal obrigação seria negar a própria interpretação dos comunistas sobre a necessidade e a liberdade como ca-tegorias da dialética materialista. Nessa mesma linha de argumentação, Pomar fez uma defesa cerrada da contribuição dos comunistas na conservação “de tudo que a humanidade criou de belo e heroico”, tendo sido “os maiores inimigos do mais odioso inimigo da cultura – o fascismo”.

Ele pediu aos intelectuais presentes para continuarem a se inspirar na vida do povo, nas lutas do povo, nas aspirações do povo. Os “maiores intelectuais de nossa pátria sempre foram homens ligados ao povo, defensores do povo contra os reacionários de todas as épocas”. Citou Monteiro lobato, resgatou gregório de Matos e os poetas da Inconfidência Mineira, e relembrou os intelectuais da Independência, do abolicionismo e os republicanos. Destacou Euclides da Cunha, Manoel Bonfim, lima Barreto, João Ribeiro e Domingos Ribeiro Filho, que che-garam a ler Marx, assim como Otávio Brandão e Astrojildo Pereira, que foram

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fundadores do partido. Valorizou, ainda, o recente período revolucionário, desde 1922, que “trouxe aos novos combates a favor da emancipação nacional e da re-novação da literatura e da arte, do progresso técnico e científico, uma geração de intelectuais do mais alto valor”.

E, embora considerando que todo intelectual devesse ter uma compreensão exata dos fenômenos e uma visão realista dos problemas da sociedade, reiterou que os comunistas não confundiam literatura com propaganda política, com arte e li-teratura de tendência. “Uma obra de arte, mesmo que reflita opiniões contrárias às nossas, nunca deixou de ser admirada por nós como obra de arte”, o que podia ser testemunhado pelo entusiasmo com que admiravam Dante, Shakespeare, Tolstói, Castro Alves, Diderot, Balzac e outros.

Então, proclamou, “para serdes bem julgados pelos comunistas, não preci-sais fazer literatura de endeusamento nem de elogios descabidos à classe operária. O de que precisamos... é que a vossa arte e a vossa literatura, com o vosso espírito de pesquisa, nos ajudeis a realizar a grande tarefa que estamos chamados a cumprir na história... com o povo, com a cultura, com a liberdade de criar e de pensar”.

Coerente com essas considerações, no diário A Tribuna Popular, do qual era o principal responsável, Pomar incentivava, ao lado de reportagens e crônicas sobre os assuntos políticos e o cotidiano popular, páginas dedicadas à cultura, com poemas de Manoel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Vinicius de Moraes, lila Rippol guedes, Pablo Neruda, gabriela Mistral e Bertold Brecht, e textos de graciliano Ramos, Jorge Amado, Astrojildo Pereira, Orígenes lessa, Ralph Fox, Franz Mehring, louis Aragon, Máximo gorki, Haldane, Carlos Rafael Rodrigues, Monteiro lobato, Dalcídio Jurandir e outros.

Em comentário de julho de 1945, A Tribuna Popular afirma taxativamente que os comunistas estendiam seu respeito à intelectualidade que divergia “hones-tamente” deles, como gilberto Freyre, luiz Jardim, Sérgio Milliet, José lins do Rego, Otávio Tarquínio de Souza, lúcia Miguel Pereira, Prudente de Moraes Neto e Sérgio Buarque de Holanda. E, em várias ocasiões, trouxe para suas páginas a criação dos artistas populares, como os compositores das escolas de samba, inde-pendentemente de eles serem comunistas ou não.

Responsável pelo setor de educação e propaganda do partido, Pomar se es-forçava para ampliar as relações do partido com a intelectualidade, compreenden-do que ela, mesmo discordando das teses do PCB, poderia dar uma contribuição importante na compreensão da realidade do povo e do país. Por isso, preocupava--se também com os problemas práticos que afligiam os intelectuais, em especial os intelectuais comunistas ainda submetidos a uma série de impedimentos, como os sofridos por Cândido Portinari, proibido de ir à França, onde faria uma exposição de seus quadros. Foi Pomar quem articulou o trabalho dos advogados do partido para obterem o habeas corpus com o qual Portinari pôde viajar ao exterior.

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Pomar, sem dúvida, como ele mesmo vai dar-se conta mais adiante, ideali-zava sua própria visão do partido diante dos intelectuais e de uma série de questões transcendentais. Partia da interpretação das leituras que fazia dos autores marxis-tas, procurava agir em consonância com elas e supunha que todos os demais diri-gentes partidários esforçavam-se no mesmo sentido. No fundo, considerava que as diatribes de Arruda, o silêncio de Prestes diante delas, as reduções de Vinhas e outros fenômenos idênticos que observava eram apenas exteriorizações momen-tâneas e passageiras de incompreensões que seriam superadas no devido tempo.

Nesse sentido, num tempo em que a prática de citar o “genial guia dos povos” já se tornara obrigatória nos discursos, palestras, artigos e documentos par-tidários, foi marcante que sua intervenção nesse primeiro encontro público da direção do PCB com os intelectuais tenha citado, além de Prestes e dos pensadores brasileiros, apenas lênin, Rosental, gorki, Marx, Engels, o padre Ducatillon (sic) e Vaillant-Couturier, em nenhum momento chamando Stálin em seu auxílio.

Pomar batia na tecla de que, como condição para entender e aplicar o mar-xismo, e, ao mesmo tempo, apreender a realidade do próprio Brasil e resolver os problemas concretos que essa realidade colocava diante da classe operária, do povo e dos comunistas, não bastava apropriar-se do conhecimento somente de alguns autores e de algumas correntes de pensamento. Era preciso apropriar-se de todo o conhecimento da humanidade e das mais diferentes correntes de pensamento. Talvez por isso tenha adotado como bordão a interpretação de lênin de que o marxismo era a análise concreta de uma situação concreta.

Mas esse não era um tempo favorável para que as questões pudessem ser resolvidas, não a partir de teorias pré-estabelecidas, mas a partir do estudo das próprias condições que as haviam feito surgir.

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11REVElAS-ME A MIM MESMO

Gostaria eu de tal multidão vislumbrar E conviver com homens livres em terra livre

Para poder dizer no momento fugaz: Continua aqui. És belo! Não te vás!

J. W. goethe (Fausto)

1976, São Paulo: dezembro, início da tarde do dia 12 1945-1947, Rio de Janeiro: sob fogo

Mário despertou de sua sesta e de seu sonho, mas ainda havia tempo para continuar naquela modorra antes de reiniciar a reunião. lembrou-se de que, em 1945, a realidade já aparecia mais complicada do que supunha. O golpe militar de outubro, por exemplo, lhe dera alguma razão. A direção do partido fora alertada e não podia alegar surpresa ou a ocorrência de um “fato inesperado”, como anos mais tarde interpretou José Segatto. O golpe estava dentro das hipóteses do rearranjo das forças políticas na transição do Estado Novo para um outro regime político.

Num quadro em que os comunistas trabalhavam como bombeiros das lutas econômicas e sociais que pipocavam por toda parte, e tomavam a maior parte de-las como provocações reacionárias, em que Vargas adotava medidas tímidas para a democratização do país, em que havia uma aliança explícita entre os condestáveis do Estado Novo e os antigos liberais oposicionistas para impedir a convocação da Constituinte antes da eleição presidencial, e em que os imperialismos americano e inglês implantavam novas medidas de contenção da União Soviética e do comu-nismo, a única maneira de conjurar o golpe teria sido uma forte mobilização de massas pela convocação imediata da Assembleia Constituinte. Como não houve nem uma nem outra, o golpe militar de outubro de 1945 parece ter desabado repentinamente, como um trovão em noite estrelada.

Nem os queremistas de Vargas, nem os comunistas, moveram uma palha sequer para resistir a ele e defender a palavra de ordem de Constituinte com Getúlio. Prestes, falando em nome da direção do partido, em novembro, culpou o ditador

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por não se aliar ao povo e não incentivar, como deveria, o processo de democra-tização, permitindo que o golpe se consumasse. Mas nada disse da inação dos comunistas e do abalo da militância diante da “surpresa” da ação militar, nem tirou as lições necessárias para reavaliar as táticas de união nacional e de ordem e tranquilidade. Mesmo porque, como os golpistas não puderam voltar atrás nas eleições, Prestes e a Comissão Executiva puderam deitar-se na ilusão de que o processo democrático seria irreversível.

Tornava-se indispensável, então, manter inalteradas as táticas de união na-cional e de ordem e tranquilidade, para defender as liberdades democráticas. A prática autoritária do governo provisório de José linhares, de governar por decre-tos e permitir provocações e depredações contra as sedes do PCB, seria superada pela primeira Constituição democrática do país, a ser elaborada pelos deputados e senadores eleitos em 2 de dezembro.

Essa esperança cresceu com os resultados da campanha relâmpago de quin-ze dias: concorrendo com um candidato desconhecido à Presidência da República, o engenheiro Yeddo Fiuza, o PCB conquistou quase seiscentos mil votos (10% do eleitorado), elegeu um senador (Prestes) e quatorze deputados federais. Como evitar o triunfalismo e exigir a correção da tática com resultados desse tipo? Pomar teve esperanças de que isso fosse possível no Pleno Ampliado do Comitê Nacional, em janeiro de 1946, no qual Prestes apresentaria um informe político, corrigindo várias das posturas de acomodação do Pleno de agosto de 1945 e incentivando a luta e a mobilização da classe operária. Afinal, como notou Ricardo Maranhão, o movimento operário concreto, liderado na base por uma maioria de militantes do próprio PCB, exigia que não se condenasse mais as greves.

A Pomar coubera preparar o informe sobre o trabalho de massas, a outra ponta decisiva do trabalho partidário. Sua dificuldade consistia em partir do pres-suposto de que a tática havia se revelado justa, porque dera à classe operária cons-ciência de seu papel histórico como classe politicamente independente, e de que o processo de democratização do país chegara a um nível jamais alcançado e numa situação que deveria se encaminhar marcadamente contra as forças reacionárias.

Pomar, porém, contra a certeza que estagnava o partido, alertou que a batalha da democracia somente seria resolvida a favor do povo se este fosse organizado, se a classe operária, os camponeses, os jovens, as mulheres, cons-truíssem fortes organizações de massas, que permitissem ao povo lutar por suas reivindicações. Embora se possa alegar que este entendimento reduzia a ques-tão democrática ao direito de reivindicar, nas condições históricas daquele mo-mento isso representava um avanço considerável. Não somente no contexto de transição do Estado Novo populista, mas também na compreensão que parecia tomar conta do partido, segundo a qual as massas e as bases partidárias delega-vam aos dirigentes o papel reivindicante.

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Pomar defendeu firmemente a necessidade de dedicar atenção especial e carinhosa aos problemas do povo, de organizar as massas com urgência, liqui-dando o espontaneísmo nesse terreno, a partir da compreensão de que a defesa da linha política do partido só seria efetiva quando milhões de brasileiros estivessem dispostos a lutar por ela. Sem organizações de massa, a atividade parlamentar de-mocrática não teria apoio e o partido teria pouca eficácia se continuasse desligado das massas, não falasse a sua linguagem, nem houvesse ganho a sua confiança.

Reconheceu francamente que os comunistas eram criticados como gran-des agitadores e maus organizadores, que a reação zombava dessa debilidade do partido, e exigiu menos barulho, menos estrépito, mais contato com as massas e trabalho organizado. E desafiou o partido a sair daquela fase em que olhava mais para si mesmo, em que havia vanglória e mesmo jactância de apresentar-se com o nome de comunista, em que se dedicava principalmente à construção de sua estrutura partidária, e voltar-se para sua verdadeira função, para sua tarefa primordial de mobilizar e organizar as massas. Mesmo porque, acrescentou, o partido só comprovará a justeza de sua política quando as massas a aceitarem como sua, quando elas fizerem dessa política a sua arma de combate e se lança-rem à luta pela sua realização.

Para Pomar, a vinculação com as massas só poderia ser obra de um par-tido que abandonasse todo sectarismo, que soubesse refletir os anseios dessas massas, que soubesse formular seus menores direitos e que, além de formulá--los, sou besse defendê-los com firmeza e consequência. Nesse sentido, somente o trabalho de massas poderia diferenciar e polarizar as forças da união nacional em torno de um programa de ação comum em defesa dos direitos democráticos.

Desse modo, ele chamava a atenção para o fato de que a proposta de união nacional do partido naquele momento – um largo movimento democrático, visando conjugar os esforços da classe operária, camponeses e capitalistas que não estivessem presos a compromissos com o capitalismo estrangeiro reacionário e colonizador e se colocassem decididamente ao lado do progresso da indústria nacional e da eliminação do monopólio da terra – só poderia sofrer um processo de diferenciação e polarização à medida que as grandes massas se organizassem e entrassem na luta.

Por quê? Porque, dizia ele, faltava a compreensão exata de quais aliados deviam ser ganhos para a união nacional nesta etapa histórica, embora se tivesse a ideia de que as grandes massas camponesas eram o aliado mais importante e de que a burguesia progressista, por sentir o peso do atraso semifeudal, marcharia ao lado dos comunistas, à medida que estes fossem fortes e soubessem mobilizar as amplas massas.

Mesmo sem ter uma análise clara do desenvolvimento do capitalismo no Brasil, Pomar sugeria que o processo de diferenciação e polarização dos inimigos

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e aliados estratégicos fosse definido pelo processo de mobilização e organização das grandes massas, na medida em que o partido aprendesse a refletir os anseios e reivindicações dessas massas. Ele dizia explicitamente, em seu informe, que a polarização das diversas tendências dentro dos partidos burgueses só se processaria segundo a maior ou menor pressão que o movimento de massas exercesse sobre eles, separando os democratas dos reacionários.

Isso, segundo ele, queria dizer que a conduta do partido com as forças políticas aliadas não deveria continuar sendo sectária, nem continuar interpre-tando a diretiva de ordem e tranquilidade como política de braços cruzados, como política de passividade, porque a ordem que desejamos não é aquela em que se deve morrer de fome sem reclamar, sem o menor protesto. Queria dizer, ainda, que era preciso saber organizar as mais vastas massas do povo – como os camponeses, em cujo nome falam os representantes da oligarquia reacionária, que viviam na miséria e na ignorância, no maior obscurantismo quanto a seus direitos políticos – trazendo-as para a luta democrática. Com o povo desorga-nizado seria impossível ter democracia.

Pomar também mexeu com os brios dos comunistas ao dizer que um comu-nista vale justamente pela massa que representa, pelo prestígio de que goza e pela influência que exerce entre seus companheiros e amigos. O comunista deveria, en-tão, utilizar-se de métodos que educassem as massas a encontrar solução para seus próprios problemas, praticando a democracia nas organizações de massa e fazendo com que suas resoluções fossem adotadas após discussão democrática, deixando de lado as posturas sectárias e intransigentes.

Ele não poupou ninguém ao dizer que os comunistas se colocavam de uma maneira falsa em relação ao trabalho de massas e agiam de maneira sectária ao pretender levar a massa a adotar decisões que ela não compreendia e a chegar rapi-damente à compreensão da vanguarda. E criticou os comunistas por pensarem que sua atividade e sua vida nos movimentos de massas eram passageiras, uma tarefa para os que ainda não eram dirigentes, uma tarefa para os outros.

Analisou que a organização das massas no Brasil ainda estava muito atrasa-da, não se aprofundara como deveria em todas as camadas do povo, e que tanto o movimento operário e sindical como os movimentos camponês, juvenil, feminino e popular não encontravam expressão em sólidas e fortes organizações próprias. Em outras palavras, ao contrário dos informes baluartistas sobre a força da classe operária e do povo, ele chamava a atenção justamente para aquilo que, mais tarde, leandro Konder chamaria de “anemia da sociedade civil: o primeiro e o mais grave dos entraves com que se defrontou a democracia no Brasil”.

Para encontrar a verdadeira causa, do lado do partido, que impedia o desen-volvimento organizado da luta democrática do povo, Pomar chamava os comunis-tas a reconhecerem que o seu trabalho de massas não era realizado pelo conjunto

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da estrutura partidária, mas apenas por alguns camaradas, individualmente. Seria necessário, então, deslocar o centro do trabalho junto às massas das direções para as bases, entregando a realização e a direção desse trabalho às células.

Ele verberou outra vez contra o que chamou de subestimação muito séria das células de empresa, em virtude de que o partido via mais o êxito de certas campanhas políticas, estava empenhado muito mais a fundo na agitação da Cons-tituinte e da luta contra os golpes reacionários do que na conquista de melhorias econômicas para a classe operária e o povo. Nessas condições, os resultados posi-tivos que haviam obtido se deviam muito mais à confiança que o partido gozava junto às massas do que propriamente de sua atuação organizada.

Ele traçou, então, um quadro nada lisonjeiro do movimento sindical, o se-tor mais importante do trabalho de massa do partido. Embora reconhecesse que os comunistas haviam sido audazes na participação no movimento grevista do final de 1945, na luta a favor do Comando geral dos Trabalhadores (CgT), no au-mento do número de operários sindicalizados, na conquista de eleições sindicais, na fundação de uniões e federações sindicais, no desmascaramento de falsos líde-res, em barrar a presença da polícia e de representantes do Ministério do Trabalho nas assemblrias sindicais, em conquistar por meio de lutas a sindicalização dos marítimos e em levar os trabalhadores a compreender que suas lutas econômicas estavam vinculadas às reivindicações de ordem política, ele alertou para o fato de que os sindicatos no Brasil ainda não podiam ser chamados sindicatos de massa.

Os trabalhadores, em sua maioria, estavam desorganizados, não frequen-tavam os sindicatos e nem mesmo chegavam a compreender o que estes repre-sentavam. A atuação do Ministério do Trabalho continuava sendo negativa ao esforço de sindicalização e a liberdade sindical estava sendo conquistada so-mente à custa de muitas dificuldades, sem que o movimento sindical tivesse conse-guido, até então, levar o governo a reconhecer o direito de livre associação sindical.

Pomar se batia mais uma vez contra o ufanismo que cercava a realização dos congressos operários estimulados pelo partido. Afirmou que foram mais pro-priamente reuniões de dirigentes sindicais, mais congressos de cúpula do que de massa, voltando a reiterar que isto estava ligado à incompreensão da linha de or-dem e tranquilidade, que não significava que se deixasse de agir com energia pelo aumento de salários e por todas as reivindicações imediatas da classe operária.

Diante de um cenário nacional de crise econômica e política, na qual a carestia e a inflação aumentavam, os salários ameaçados constantemente de baixa e a fome se aprofundando, os trabalhadores tinham que lutar. Na prática, conde-nava a linha política estabelecida, mas, ainda fiel a ela, Pomar asseverava que os problemas daquela hora não podiam ser resolvidos a não ser pela ação comum e a partir do entendimento e da cooperação entre as classes interessadas no progresso do Brasil, e se a classe operária e o povo soubessem manter-se em ordem e tranqui-

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lidade, porque esta era a condição para a criação de um clima de liberdade, clima único para prosperarmos e derrotarmos os restos fascistas.

Dito isto, retomou as sugestões para incentivar a organização e a luta dos operários: a formação de comissões de fábrica como comitês de defesa dos inte-resses dos trabalhadores e o emprego da energia na luta contra a reação e as injusti-ças, sem nunca abandonar a defesa de seus direitos, inclusive com o apelo à greve, como último recurso, depois de esgotados todos os meios pacíficos.

E tentou desfazer a impressão de que os comunistas seriam contra as greves, a partir das observações do informe de João Amazonas, no Pleno do Comitê Na-cional de agosto de 1945, que chamava a atenção do partido para ter muito cuida-do com os insufladores de greves a todo custo, que visavam criar um ambiente de confusão e de violência para justificar medidas antidemocráticas. Assim, embora as evidências fossem outras, Pomar reiterou que o partido nunca foi nem seria contra as greves, tratando-se apenas de evitar provocações e agitações sem sentido, mas não de ficar de braços cruzados diante de salários de fome e de condições de trabalho desumanas.

Para solucionar essa questão, Pomar sugeria que no trabalho sindical o par-tido também se baseasse na democracia, na livre discussão e manifestação dos trabalhadores nas assembleias sindicais, no sentido de levar à prática cinco grandes tarefas: conquistar melhorias no nível de vida dos trabalhadores, com aumento de salários, contenção da carestia e maior eficiência da produção, em cooperação com os patrões progressistas; conquistar a liberdade sindical; transformar o MUT em uniões e federações sindicais, tendo por base congressos de massa; aumentar o intercâmbio sindical; e chegar ao congresso nacional dos trabalhadores, criando a CgTB como órgão central de unidade sindical.

Ele também apontou ser necessário destacar os mais hábeis militantes para o trabalho no campo, onde se encontrava o aliado fundamental da classe ope-rária, mais de 20 milhões de camponeses sem o menor trato de terra, vivendo de culturas de subsistência, sem higiene, conforto e cultura, trabalhando com equipamentos atrasados, vegetando no analfabetismo sob o patriarcalismo do latifúndio. Ele relatou que apenas durante o ano de 1944 cerca de 115 mil cam-poneses haviam migrado para a capital de São Paulo e que no Estado existiam 800 mil lavradores sem terra.

Constituíam uma massa diversificada de colonos, moradores, agregados, meeiros, posseiros, vaqueiros, peões de estância, trabalhadores de eito, sitiantes e arrendatários, e exigiam que o partido soubesse levar em conta seus proble-mas específicos, suas reivindicações mais sentidas, sua grande diversidade de costumes e superstições e começasse seu trabalho de organização pelas formas mais rudimentares de associação, incluindo as sociedades religiosas, os centros beneficentes e todos os tipos que levassem ao desenvolvimento da organização

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do movimento camponês. Pomar destacou, ainda, que era necessário dar im-portância ao trabalho entre os assalariados agrícolas, empregando os mesmos cuidados e a mesma dedicação.

Ele também deu importância à organização e à disseminação dos comitês democráticos, em cada bairro, fazenda e onde quer que fosse possível organizá-los, como união do povo para a luta democrática, contrapondo-se à transformação desses comitês de massa em comitês do partido. E conclamou os comunistas a terem uma tática eleitoral justa, subordinada a princípios e não a interesses mo-mentâneos, para transformar o voto, de meio de engano, num meio de luta para a emancipação, ligando a luta eleitoral à luta contra a carestia, contra o integralismo e pela união nacional, e solidarizando-se com as vítimas da reação, com os povos oprimidos, como os judeus, e com os mutilados, viúvas e órfãos de guerra.

graciliano Ramos, ao ouvir esse informe, intitulado “O PCB no trabalho de massas”, expressou em voz alta que era o mais importante e o melhor que o partido já produzira. Pode não ter sido, mas certamente jogou estilhaços para vários lados. Seja sobre o secretário-geral, o principal mentor da linha de ordem e tranquilidade, embora seu informe político também tentasse corrigir os aspectos negativos mais gritantes daquela linha; seja sobre Arruda, responsável pela orga-nização das células e comitês do partido; seja sobre Amazonas, o capo do trabalho sindical e de massas. É muito provável que, com esse informe, logo depois enga-vetado pela própria Executiva que o encomendara, Pomar tenha finalmente selado seu futuro na direção do PCB.

Qualquer que tenha sido, porém, a opinião dos demais dirigentes e militan-tes do partido sobre ele e, também, sobre os argumentos expendidos no discurso aos intelectuais, não há dúvida de que, em ambos, Pomar demarcou os pontos principais do que supunha ser a linha geral de trabalho do partido. Preparados no curto espaço de seis meses, e num momento crucial da transição política nacio-nal e internacional, seus argumentos continham muitos dos defeitos da visão dos comunistas sobre os problemas estratégicos, principalmente sobre seus inimigos e aliados estratégicos, e também sobre as mudanças conjunturais em curso e as novas táticas a serem adotadas.

Nesse sentido, tais argumentos não se diferenciavam muito dos demais que apresentavam um total desconhecimento do processo de desenvolvimento do ca-pitalismo no Brasil, processo que levara não a uma contradição inconciliável entre o imperialismo e o latifúndio, de um lado, e a burguesia industrial e o resto do povo, de outro, mas a um pacto de dominação entre a imperialismo, o latifúndio e a burguesia industrial brasileira, intermediado pelo Estado, que conduzia a indus-trialização por caminhos tortuosos e tomava a democracia liberal como empecilho.

No caso do Brasil, ao contrário de outros países, o latifúndio era em parte empecilho e em parte funcional ao desenvolvimento capitalista associado, o que

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fazia com que a reforma agrária não fosse de interesse da burguesia industrial, como faziam pensar algumas interpretações teóricas e a política do PCB. Em outras palavras, a burguesia brasileira, na forma como ela passara a existir em especial a partir dos anos 1930, não tinha interesse algum na revolução bur-guesa ou em qualquer revolução. Este foi um dos nós teóricos e práticos que estavam presentes nos tropeços estratégicos e táticos dos comunistas e dos quais Pomar também não se livrara.

Apesar disso, e de outras imprecisões, Pomar delineia naqueles dois do-cumentos uma linha de vida partidária que, supõe, devesse ser do conjunto dos comunistas. Solidifica a necessidade de um forte Partido Comunista. Toma o mar-xismo como um guia, não desligado da riqueza cultural amealhada pela humani-dade durante sua história, mas que se nutre dessa cultura e é parte do processo de evolução do conhecimento. Toma também o marxismo como instrumento para analisar, com senso crítico, a realidade e as massas com que se convive e descobrir seus caminhos concretos de desenvolvimento.

Vislumbra como necessidade para determinar os caminhos do PCB a aná-lise do desenvolvimento do capitalismo no Brasil, de modo a ter mais claros os aliados e inimigos. Acha fundamental não dissimular os antagonismos de classe e ter como parâmetro de orientação os interesses fundamentais da classe operária e do povo – povo, aqui, tomado em seu sentido restrito de massas populares. Consi-dera essencial conquistar e consolidar a democracia e praticá-la no movimento de massas e no partido, jamais sendo autoritário e tomando como base a organização e a mobilização da classe operária e do povo.

“Sem classe operária e povo organizados, não teremos democracia”, vatici-nava. E, como parte integrante da democracia, era preciso considerar a liberdade de criar e pensar, não confundindo a literatura com a propaganda política, admi-rando as obras de arte, mesmo que refletissem opiniões contrárias às dos comunis-tas, e respeitando a intelectualidade que divergia do partido. A tarefa fundamental do Partido Comunista deveria ser a organização e mobilização das massas, no sentido de comprovar a justeza de sua política: só quando as massas aceitassem essa política como sua e se lançassem à luta por sua realização, poder-se-ia supor estar no caminho certo.

Muitos dos historiadores que se debruçaram sobre a vida do PCB simples-mente ignoraram os aspectos principais desses documentos, preferindo generalizar as opiniões e concepções predominantes, em geral de Prestes, não só como as de-terminantes, mas como as únicas presentes na vida partidária. Para eles, as questões referentes à democracia interna e nas organizações de massas jamais teriam sido tratadas por quem quer que fosse no partido, o que tais documentos desmentem.

A pergunta que precisa ser respondida é: por quê preceitos que Pomar acreditava serem consequência lógica da opção comunista e, apesar dos erros e

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desvios do partido, mais cedo ou mais tarde devessem se tornar predominantes, sucumbiram durante a evolução histórica do PCB, a ponto de sua presença ser simplesmente ignorada?

Apesar de tudo, Pomar procurou se valer desses preceitos no tratamento de inúmeras contradições internas, inclusive aquelas que apareciam como questões de ordem pessoal, mas já sinalizando a cristalização de métodos e estilos de dire-ção nada democráticos e carregados de intransigência. O mais nebuloso de todos, nesse período, foi o caso de Mautílio Muraro, um metalúrgico paulista que se destacara no processo de reorganização partidária durante a guerra e, em julho de 1946, fora eleito membro do Comitê Central e suplente da Comissão Executiva.

Muraro conhecera e se apaixonara por uma militante do partido. Nada mal se ele não fosse casado e tivesse filhos. A decisão dele, de abandonar a família anterior e ir viver uma nova vida, transmutou-se, para diversos membros da Co-missão Executiva, num problema de princípios comunistas. Eles passaram a tratar Muraro como um renegado e traidor da causa. Pomar foi o único que manteve um tratamento solidário, disse entender as difíceis opções colocadas diante dele e, a muito custo, conseguiu evitar que fossem adotadas sanções extremas contra ele. Mas não pôde impedir que fosse rebaixado a pretexto de ferir a moral comunista.

Essa tendência de endurecimento em todos os terrenos cresceu à medida que o PCB via-se jogado no redemoinho das mudanças internacionais e nacio-nais que iriam dividir o mundo em dois campos antagônicos, representados pelos Estados Unidos e pela União Soviética. Amarrados na euforia da legalidade, no prestígio de Prestes e do partido, e na ilusão de que o imperialismo mudara sua natureza, sendo possível um longo período de desenvolvimento pacífico, como prognosticara Stálin, a maioria dos dirigentes e militantes comunistas tinha difi-culdade em fazer uma autocrítica serena de sua política de ordem e tranquilidade e enfrentar a ofensiva reacionária contra eles.

Em março de 1946, Churchill fizera um discurso em Fulton, nos Estados Unidos, acusando a União Soviética de erguer uma cortina de ferro no meio da Europa e escravizar, além dos russos, os povos da Europa central. logo a seguir, teve início no Brasil uma campanha diária contra os “teleguiados de Moscou”, os “quinta--colunistas bolcheviques”, os “vendilhões da pátria”, os “antipatriotas”, os “espiões soviéticos”. Os discursos de Prestes, no Senado, e dos deputados comunistas, na Constituinte, eram interrompidos com provocações, enquanto tomavam vulto a preparação da opinião pública e medidas repressivas concretas para fechar o PCB.

Durante todo o ano de 1946 o governo Dutra investiu contra a atuação e a existência do PCB de todas as formas possíveis, aproveitando-se da inexistência, até setembro, de uma nova Constituição. Um decreto tornando o PCB ilegal che-gou a ser elaborado no primeiro semestre, a pretexto de o PCB possuir um plano de subversão da ordem. Um comício do partido em maio, no largo da Carioca, foi

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reprimido pela polícia a bala e cargas de cavalaria, ferindo centenas de pessoas e levando à prisão outras dezenas, ao mesmo tempo que Dutra proibia a existência legal do MUT, intervinha em sindicatos, anulava eleições sindicais e dissolvia o Congresso Sindical, com 2.600 delegados de todo o país, para impedir a vitória de uma aliança entre comunistas e getulistas.

Às vésperas da votação da Constituinte, em 30 de agosto de 1946, um quebra-quebra na cidade do Rio, provocado pelo descontentamento dos estudan-tes secundaristas e insuflado também por agentes provocadores, serviu como mais um pretexto para ataques do governo aos comunistas. Vários dirigentes comunistas, como o deputado Trifino Corrêa, Agildo Barata, Hélio Valcacer, presidente do sindi-cato dos advogados, luciano Bacelar Couto, presidente do sindicado dos bancários, Amarílio Vasconcelos e Pomar, foram presos ou tiveram suas residências cercadas pela polícia. Amarílio chegou a ser alvejado pela polícia, enquanto esta tentou pren-der Pomar em laranjeiras, sob a alegação de que A Tribuna Popular estava incitando o ânimo belicoso da população contra o governo. Só não invadiu o apartamento porque nele também morava João Amazonas, um dos deputados constituintes. Para sair, Amazonas foi obrigado a empunhar um revólver e ameaçar os policiais.

Desde o início de 1946, já se delineava claramente, para o conjunto das forças políticas do país, a intenção do governo Dutra de fazer o PCB voltar à ilega-lidade. Hélio Costa nota que, nesse período, a polícia ainda tratava o PCB como partido proscrito e a greve como caso de polícia. As forças do centro político, incluindo uma considerável parcela dos liberais da União Democrática Nacional (UDN), deslizavam para a direita mais conservadora, criando uma grande frente contra a existência legal dos comunistas.

Essas forças não podiam admitir que a classe operária tivesse uma atitude independente, realizasse greves e manifestações e exigisse sequer seus direitos bá-sicos, relacionados ao trabalho e à vida cotidiana. Para elas, qualquer movimento operário tinha o dedo dos comunistas, apesar de muitas vezes estes agirem como moderadores e conciliadores. Por mais que o PCB proclamasse aos quatro ventos ser o fiel da ordem, os conservadores e grande parte dos liberais brasileiros simples-mente tomavam isso como uma tática diversionista e preparavam-se para retirálo do jogo político nacional.

Apesar de tudo, o PCB continuou batendo na tecla da união nacional. A III Conferência Nacional, em julho de 1946, que consolidou a hegemonia de Prestes em aliança com a maior parte do Comitê Central constituído na Conferência da Mantiqueira e completou a composição da direção com uma série de quadros que haviam estado presos ou se destacado na reorganização partidária, aconselhou os trabalhadores a lutarem por melhores salários com vistas a buscar uma saída pa-cífica para o descontentamento popular e desarmar os reacionários e fascistas que queriam o caos e a guerra civil.

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Assim, ao mesmo tempo que clamava por uma mobilização contra as arbi-trariedades policiais, a Conferência orientava todo o partido a “acatar as decisões das autoridades” e reafirmava a necessidade de reforçar a luta pela união nacional das forças que sentiam a pressão do imperialismo e desejavam o desenvolvimen-to do país. E, pior, entre essas forças, incluía a maior parte do governo Dutra, desqualificando ataques em bloco ao governo, embora também concluísse que a união nacional deveria ser uma união “sob a hegemonia do proletariado e não a falsa união (...) a reboque da burguesia e a serviço dos demagogos ‘salvadores’ e dos generais golpistas”. Sem esclarecer bem o que isso significava, esse trecho mais pareceu um adendo de última hora para salvar as aparências classistas do partido.

É verdade que algumas personalidades democráticas, como Érico Veríssimo e Osvaldo Aranha, sinalizaram o perigo que o PCB enfrentava, ao se declarar con-tra o seu fechamento. Mas, enquanto a coalizão reacionária clamava por medidas para extinguir a “epidemia comunista”, o partido não chegou a mobilizar nenhum movimento sério de oposição ao golpe institucional em preparação.

Ao contrário, certos de que crescia a divisão e o desentendimento no campo dos partidos das classes dominantes, ao mesmo tempo que a democracia avançava, cabendo a eles “agir com prudência e sangue-frio”, conforme assegurara Prestes em dezembro de 1946, na reunião do Comitê Nacional, os comunistas navegavam na sensação de que o curso de consolidação da democracia se reforçara, em setembro, com a promulgação da Constituição.

Assim, quando obtiveram expressiva vitória na campanha eleitoral de janeiro de 1947, eles acreditaram que essa consagração nas urnas seria o remé-dio que faltava para isolar os fascistas dentro do governo Dutra e consolidar o processo de democratização por meio da união nacional. Em São Paulo os co-munistas haviam se aliado ao ex-interventor do Estado Novo, Ademar de Bar-ros, do Partido Social Progressista (PSP), para o governo do Estado, e lançado Candido Portinari e José Maria Crispim ao Senado e Diógenes Arruda, Pedro Pomar, José Félix da Silva, Ramiro luchesi, Alonso gomes e Moacir de Freitas Amorim à eleição complementar para a Câmara Federal. Ao todo, haviam apre-sentado listas de candidatos para as assembleias legislativas de quinze Estados e para a Câmara Municipal do Distrito Federal, confirmando-se como a quarta maior força política do país.

Além de contribuírem decisivamente para a eleição do governador de São Paulo, os comunistas obtiveram 287 mil votos para Portinari, elegeram Pomar com mais de 135 mil votos e Arruda com cerca de 63 mil e levaram para a assem-bleia estadual paulista onze deputados. Para as assembleias dos demais estados, elegeram nove deputados em Pernambuco, seis no Rio de Janeiro, três em Alagoas e Rio grande do Sul, dois na Bahia, em goiás e em Mato grosso e um no Espírito Santo, em Minas gerais, no Pará, na Paraíba, no Paraná e Sergipe. E elegeram

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dezoito vereadores para a Câmara Municipal do Distrito Federal, de um total de cinquenta vagas. A euforia assolou diferentes setores do partido, que se convence-ram ainda mais de que sua linha de ordem e tranquilidade e de lutar dentro dos limites das decisões das autoridades era a mais adequada para derrotar os setores fascistas enquistados no governo Dutra e consolidar a democracia.

Pomar vira de certo modo reconhecido seu trabalho em São Paulo, no pe-ríodo da clandestinidade. Ao contrário de sua candidatura no Pará, desta vez ele dedicara uma parte importante de seu tempo em andar pela capital e viajar pelo interior do Estado, rever antigos companheiros e amigos, participar abertamente dos comícios da coligação PSP-PCB e falar para grandes contingentes populares. Dentro da linha aprovada pelo partido, praticou aquilo que no jargão popular se conhece “como bater uma no cravo e outra na ferradura”. Atinha-se à união nacio-nal e à necessidade de evitar qualquer provocação e, ao mesmo tempo, conclamava os trabalhadores a lutarem por suas reivindicações e direitos. É muito provável que estivesse convencido de que esse era o melhor caminho, apesar das dúvidas que nutria a respeito das alianças e da evolução da situação política nacional e interna-cional, dúvidas que se transformaram em algumas certezas logo depois.

Ao contrário das previsões comunistas, seus êxitos eleitorais, em vez de abrandarem, acirraram os ânimos belicosos, tanto dos setores abertamente fascis-tas do governo e do parlamento como de todo o governo e de setores considerá-veis dos diversos partidos políticos. As juras de pacifismo, ordem, tranquilidade e união nacional não tinham qualquer efeito positivo sobre as forças políticas que se congregavam cada vez mais no frentão anticomunista. As previsões de Prestes sobre o desentendimento e a divisão nos partidos das classes dominantes eram infundadas, mas mesmo assim ele não se deteve em acirrar ainda mais o processo de isolamento a que estava sendo conduzido o PCB.

Em fevereiro de 1947 ele fez ataques diretos e desabridos a Vargas e ao Par-tido Trabalhista Brasileiro (PTB), como se estes fossem os principais inimigos dos comunistas. Assim, quando um deputado debochado e sem decoro, e outro que fora esbirro policial durante o Estado Novo, entraram com representação contra o PCB no Tribunal Superior Eleitoral, usando como pretexto a existência de dois estatutos, a denominação Partido Comunista do Brasil em vez de Partido Co-munista Brasileiro, a utilização de símbolos internacionais (a foice e o martelo) e outras sandices menores, a sorte da legalidade do PCB estava selada. Já havia uma conjunção de forças reacionárias nacionais, que se amparava nas mudanças que o imperialismo operava, em escala internacional, para conter o avanço do comunis-mo. Em março, o presidente americano Harry Truman chancelara a divisão do mundo em dois campos, liquidando também com as esperanças e ilusões de Stálin e dos soviéticos de que teriam um longo período de paz para curar suas próprias feridas e realizar um desenvolvimento pacífico.

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Durante todo esse tempo, a polícia política continuara seguindo de perto os passos de Pomar. Anotara a constância com que Prestes e seu secretário Armênio guedes o haviam visitado em seu apartamento em laranjeiras durante o ano de 1946, o que foi corroborado pelo próprio guedes. Segundo ele, em 1945 e 1946, ambos iam constantemente à casa de Pomar, com quem Prestes se entendia, então, muito melhor do que com Arruda. Nessas condições, seja pela estruturação do partido em São Paulo, cujo número de filiados chegara a 50 mil, seja por sua pro-ximidade com Prestes, Pomar era então considerado o segundo homem do partido.

guedes conta que Arruda continuava lhe confidenciando as divergências, e que manobrava para retirar Pomar de seu caminho. Teria sido o próprio Arruda que obtivera a saída de Pomar da secretaria política do Comitê Estadual de São Paulo e sua transferência para a secretaria de educação e propaganda, no Rio de Janeiro, colocando em seu lugar Mário Scott, “uma dessas promoções” do Arruda: este, por não se considerar um “fiel representante da classe operária”, queria “proletarizar” o partido dessa forma, podendo então manipular as direções a seu talante.

As opiniões independentes de Pomar chocavam-se com as de Arruda, prin-cipalmente quando eram expressas em letra de forma, como no informe sobre o trabalho de massas, na palestra sobre a liberdade de criação e no prefácio a Proble-mas Atuais da Democracia, uma coletânea dos discursos e artigos de Prestes. Mas Arruda também sentia-se atingido porque Pomar, no mar de sectarismo e arrogân-cia que começava a afogar o partido, parecia um estranho no ninho.

Joseph Schneider, um judeu baixo e simpático, alfaiate, que nas horas vagas, além de dedicar-se ao canto lírico com sua bela voz de baixo-barítono, colaborava com a comissão de finanças do comitê central, não escondia sua opinião de que Arruda era um feitor, enquanto “o elegante Pomar era um diplomata, afável e modesto”. Maria Portinari, esposa do grande pintor, também não escondia sua opinião de que Pomar era uma “pessoa de fala muito mansa, muito delicado, sim-ples embora elegante”, e não era sectário, enquanto “Arruda era grosseiro, muito sectário e desagradável”.

Benedito Monteiro, então repórter no Palácio Tiradentes, sede da Câmara Federal, testemunhou que naquela época “o pessoal da direção do partido era meio inacessível. O Arruda era meio sectário, o Pedroso (Amazonas) meio prosista. O Pomar era o mais acessível. Tinha um sorriso largo e teve uma das mais brilhantes atuações como parlamentar”. Outros comunistas e não comunistas que conhe-ceram os dirigentes do partido nesse período são unânimes em reconhecer que Pomar era diferente dos demais.

Arruda sentia-se, assim, não só despojado da condição de segundo homem do partido como diminuído em sua postura, que considerava “bolchevique”. Pres-tes, por seu lado, sentia-se incomodado com as críticas francas que Pomar ex-pendia sobre as questões políticas e sobre a democracia interna no partido e foi

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aos poucos se distanciando dele e apoiando-se em Arruda, que não discutia suas opiniões e ordens e era capaz de executá-las no berro.

Ao mesmo tempo que tudo isso ocorria nos bastidores da direção do PCB, um relatório reservado do DOPS informa que Pomar, em abril de 1946, presidira a reunião do Comitê Metropolitano do Rio de Janeiro, que tratou da organiza-ção da Juventude Comunista. O delegado Eduardo louzada da Rocha, paralela-mente, esclarecia em outro relatório que a chegada do poeta cubano Nicolas guillen ao Rio de Janeiro e a São Paulo teria coincidido com a decretação de uma greve na Estrada de Ferro Sorocabana, na qual estariam envolvidos Pedro Pomar e Roberto Morena, “conhecidos agitadores comunistas”. O delegado do DOPS sugeria, então, a “expulsão do agitador cubano” por essa coincidência e por sua presença numa festa poética de desagravo ao senador chileno Pablo Neruda, ao lado de Pomar, Portinari e outros “elementos da agitação comunista”.

No prontuário policial de Pomar passa a constar, a partir de janeiro de 1947, seu comparecimento à casa do médico David Rosenberg e sua participação numa homenagem a Oscar Niemeyer. Mais do que isso, mesmo já tendo sido eleito deputado federal, ele é envolvido em processo instaurado por representação do ministro Sylvio de Noronha, da Marinha, por haver permitido, como diretor da Tribuna Popular, a publicação de uma carta-denúncia sobre as condições de trabalho dos marinheiros do cruzador Bahia, carta que se encerra chamando a marujada a se organizar. Era o crime dos crimes.

Mas os informantes policiais estavam realmente acompanhando os contatos de Pomar com aqueles intelectuais e artistas. Joraci Camargo, Oswald de Andrade, Panceti, Djanira, Di Cavalcanti, Oscar Niemeyer, graciliano Ramos, Candido Portinari e vários outros faziam parte de seu círculo de relações, estando constan-temente com ele para conversar e trocar opiniões sobre os mais diferentes assuntos.

Com Portinari, a quem tratava com muita cortesia, segundo testemunho de Maria Portinari, Pomar mantinha uma sólida amizade. Em fevereiro de 1947, em resposta a duas cartas do pintor, a quem chamava de querido amigo e com-panheiro, informa-o de que já tivera notícias das atividades dele em Brodowski, felicita-o pela iniciativa de contatar e conversar com os camponeses e estimu la-o a, “de acordo com as suas possibilidades e prestígio”, não ficar “tolhido nesse terreno por nenhuma espécie de formalidade ou burocracia”. E acrescenta que a colaboração dele, “em forma de artigos ou da simples remessa de documentação a respeito da vida camponesa, seria de enorme valia”.

Pomar reitera sobretudo que “devemos nos preocupar com os problemas de nossa gente, procurando soluções práticas e políticas para os mesmos”. E cobra de Portinari, ao mesmo tempo, a promessa de trabalhar com ele “na difusão de nossos pontos de vista sobre arte, tanto no que toca à forma como ao conteúdo”. Na verdade, é mais um apelo do que uma cobrança, lembrando

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a Portinari “o quanto tenho que aprender nesse terreno; e sou mais ávido de conhecimentos do que aparento”.

Em outra correspondência, de agosto de 1947, Pomar refere-se à situação de intranquilidade, desconfianças e ataques incessantes do grupo fascista, e sugere que as forças da democracia estariam reagindo melhor, confiando em que derro-tariam os reacionários, apesar de não nutrir grandes ilusões a respeito. Aproveita para comunicar a Portinari que Oscar Niemeyer havia chegado dos Estados Uni-dos, mas ainda não pudera dar suas impressões para a Tribuna.

Nas correspondências posteriores, do primeiro semestre de 1948, ao mesmo tempo que se envolve nas negociações de venda de quadros de Portinari para um “laboratório”, Pomar demonstra cada vez maior preocupação com a situação, que continuaria a andar no mau sentido e a apresentar aspectos e sintomas cada vez mais sérios, com muitas chantagens guerreiras.

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12 TODA A MISÉRIA HUMANA

AQUI ME OPRIME

É velha e nova, amigo, a arte; Semear o erro em vez da verdade.

J. W. goethe (Fausto)

1976, São Paulo: dezembro, ainda início da tarde do dia 121947-1950, Rio de Janeiro: ladeira abaixo

Como é rápido o fluir das lembranças, enquanto é lento o tempo real, con-cluiu Mário ao olhar o relógio e notar que ainda faltava um bom pedaço para o reinício da reunião. Deixou-se ficar recostado e retomou sua viagem ao passado.

No início de 1947 teve a certeza definitiva de que sua independência crítica e sua franqueza não agradavam a Prestes e muito menos a Arruda, com quem tinha atritos constantes em relação aos métodos de direção e a concepções polí-ticas de diferentes tipos. A pretexto de levantar a situação econômico-financeira da imprensa do partido, cujos déficits eram crescentes, Arruda propôs e Prestes encampou a ideia de chamar João Falcão, que dirigira com certo êxito econômico o jornal O Momento, da Bahia, para realizar aquela tarefa.

Depois de conversar com Arruda e Prestes, Falcão procurou Pomar para iniciar o trabalho pela Tribuna Popular, cujo déficit chegava a 1 milhão de cruzei-ros mensais. Recebido, como disse depois em suas memórias, por aquele dirigente “alto, louro, magérrimo, 34 anos, simpático mas reservado”, que “se assemelhava mais a um lord inglês do que a um paraense”, Falcão foi deixado inteiramente à vontade na sala e na mesa que lhe foi destinada para poder trabalhar.

Ele conta haver descoberto que, em seus dois anos de existência, a Tribu-na Popular havia sofrido grande queda na circulação, caracterizando-se como pouco noticiosa, sectária e mal impressa, e que nisso residiam seus problemas econômico-financeiros. Em seu relatório a Prestes e à Comissão Executiva, no dia 6 de maio de 1947, responsabilizou basicamente Pomar por essa situação,

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afirmando que sua atuação como diretor seria insuficiente, deixando a adminis-tração quase acéfala, em virtude de seus outros afazeres partidários.

A própria forma como Falcão preparou seu relatório e o encaminhou já mostra o método então vigente. Em nenhum momento ele discutiu com o próprio Pomar tais descobertas e problemas. Afinal de contas, este também era membro do secretariado nacional e responsável principal pelo jornal. Mas Falcão reportava-se não a ele, mas diretamente a Prestes e a Arruda, e apresentou de cho-fre suas conclusões à Executiva. É difícil dizer até que ponto Falcão foi induzido a concentrar em Pomar toda a responsabilidade de uma situação que dizia respeito à linha política, aos métodos e ao estilo de trabalho dominantes e ao próprio corpo de jornalistas que vivia o dia a dia da Tribuna Popular.

O próprio Falcão lista os membros do jornal, uma equipe que tinha Pe-dro Motta lima, Álvaro Moreyra, Dalcídio Jurandir e Carlos Drummond de Andrade em seu conselho diretor, Aydano do Couto Ferraz como redator-chefe, Walter Weissberg como gerente e, na redação, Osvaldo Peralva, Antonio Paim, Emo Duarte, Moacyr Werneck de Castro, Paulo Motta lima, Egydio Squeff, Wagner Cavalcanti e outros. Ele chega a confessar que “havia um ar de baiani-dade na cúpula do partido”, por serem encontrados muitos militantes baianos nos principais núcleos dirigentes.

Arruda, como secretário de organização e o novo segundo homem do par-tido, tendo militado na Bahia, fora buscar lá “quadros de sua confiança”. Falcão considerava-se um desses homens de confiança. Assim, conscientemente ou não, ele prestou uma ajuda substancial a Arruda e a Prestes em suas pendências com Pomar. Mas o relatório não chegou a ser apreciado, pelo menos naquela ocasião.

A cassação do registro do PCB pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em 7 de maio, pegou o partido de surpresa e ocorreu sem um ai sequer. Pomar ficou indignado com a inação do partido, a falta de qualquer mobilização em sua defesa, a ilusão na neutralidade da Justiça Eleitoral e a ausência de uma avaliação mais abrangente e mais realista sobre o governo Dutra e a frente anticomunista que voltara a reunir conservadores e liberais, como em outubro de 1945.

As diretivas de entendimentos com as forças locais, telegramas de pro-testo, caravanas a jornais, personalidades, autoridades e comícios em defesa da democracia, nada disso funcionou porque se chocava com a diretiva mais geral de ordem e tranquilidade. Os militantes não haviam sido orientados e não ado-taram sequer medidas concretas de defesa do patrimônio material do partido. Nos dias posteriores, os deputados comunistas se viram na contingência de subir à tribuna das câmaras estaduais e federal para denunciar a invasão e de-predação de sedes e de redações de jornais do partido, a apreensão de arquivos de comitês, a demissão de funcionários públicos suspeitos de serem membros do partido e a prisão de militantes.

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Pomar discordou, então, da decisão de Prestes de aguardar na maior calma e serenidade o recurso ao Supremo Tribunal Federal (STF), interposto por Sinval Palmeira e mais nove juristas (Prestes considerava que tudo não passava de uma provocação arquitetada por Dutra). E discordou também dos termos da entrevis-ta concedida por Prestes e publicada na Tribuna Popular em 5 de junho, na qual ele rompe violentamente com o governo Dutra, classificando-o de governo de traição nacional, ao mesmo tempo que exigia sua renúncia.

A adoção dessa palavra de ordem só demonstrava a total falta de avaliação realista da correlação de forças e das táticas políticas que deveriam ser empregadas para evitar mais danos à incipiente democracia brasileira e à atividade legal dos comunistas. Resultava de um misto de perplexidade, ufanismo e certa arrogância, que ainda se refletia na política da direção do PCB quando Prestes, embalado pela recusa do TSE em cassar os mandatos dos parlamentares comunistas, fez discurso no Senado, em agosto, retirando a exigência de renúncia de Dutra sem qualquer explicação plausível e declarando-se disposto a até colaborar com o presidente, se este se livrasse de seus colaboradores fascistas.

Em setembro, porém, num artigo para a revista Problemas, Prestes tenta expor os motivos daquela mudança, referindo-se a amplas mobilizações de mas-sas pela renúncia de Dutra, que teriam contribuído para isolar o pequeno grupo militar fascista enquistado no governo e modificado a situação política favoravel-mente à tática de união nacional, tática que poderia ter um sucesso mais signifi-cativo nas eleições municipais de novembro de 1947 se o PCB soubesse realizar uma política local realista e objetiva.

Os comunistas estavam privados do direito de registrar candidatos sob le-genda própria. Convencidos, entretanto, de que as eleições municipais poderiam contribuir decisivamente para a luta pela legalidade do PCB, pelo respeito aos mandatos parlamentares comunistas e pela consolidação da democracia, lança-ram-se, de acordo com a orientação de Prestes, na busca de entendimentos polí-ticos com os demais partidos. Para evitar o sucesso da reação nas posteriores elei-ções estaduais e nacional, os comunistas, tendo por base um programa mínimo, “sem sectarismos ou qualquer ideia preconcebida”, negociaram com uma ampli-tude jamais vista não só a eleição dos prefeitos como também a dos vereadores.

Com a política que o secretário-geral do partido chamara de “realista e ob-jetiva”, realizaram entendimentos com praticamente todos os partidos, inclusive com o Partido Social Democrático (PSD) de Dutra, para apoiar candidatos a prefeito e registrar candidatos “de Prestes” a vereador. Os comunistas ainda ten-taram fundar o Partido Popular Progressista, como alternativa legal, mas ela foi frustrada com a negação do seu registro pelo TSE. Assim, enquanto em grande número de cidades do país os membros do PCB praticamente ocuparam a legen-da do Partido Social Trabalhista (PST), do senador Vitorino Freire, em outras foi

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comum encontrá-los em legendas como Partido Socialista Brasileiro (PSB), PTB, PSP, PSD, UDN e Partido Trabalhista Nacional (PTN), embora se apresentas-sem ostensivamente como comunistas ou candidatos de Prestes.

logo depois, Dutra rompeu relações com a URSS e o Senado aprovou projeto do senador Ivo d’Aquino cassando os mandatos dos representantes co-munistas em todos os órgãos legislativos do país. Enviado para a Câmara para aprovação final, a tentativa reacionária de aprová-lo em rito sumário foi frustrada pelo deputado Agamenon Magalhães, presidente da Comissão de Constituição e Justiça que, embora anticomunista, proclamou a inconstitucionalidade do proje-to e assegurou o direito de defesa aos parlamentares comunistas.

A eleição de cerca de 250 vereadores comunistas em todo o Brasil, dos quais 150 apenas em São Paulo, e dos prefeitos de Santo André (SP) e Jaboatão (PE), foram uma demonstração clara de que o prestígio e a força do PCB conti-nuavam altos, apesar da cassação do registro do partido. Se isso era inegável, esse também foi o pretexto para os diversos recursos apresentados contra a diploma-ção dos comunistas eleitos. No final de dezembro, mesmo atropelando a decisão do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) de São Paulo, que confirmara os eleitos, o TSE destituiu todos os candidatos vitoriosos do PST e impediu a posse dos primeiros prefeitos comunistas do Brasil, Armando Mazzo e Manoel Calheiros.

Essa ofensiva para impedir o êxito eleitoral dos comunistas tivera início em outubro, com a lei 121, que retirava a autonomia de São Paulo, Santos, guaru-lhos e mais quinze cidades onde havia a forte possibilidade de eleição de prefeitos comunistas, declaradas de importância excepcional para a defesa externa do país. Ela continuou com o impedimento da posse dos prefeitos e de muitos vereadores comunistas eleitos e acirrou-se, no início de janeiro de 1948, com a cassação dos parlamentares eleitos pela legenda do PCB, comandada diretamente por Dutra.

Numa aliança do PSD com uma parte da UDN, contra os votos do PSB, PTB, PSP e uma ala da UDN, na qual se incluía o próprio brigadeiro Eduardo gomes, o Congresso expulsou os parlamentares comunistas, poupando apenas Diógenes Arruda e Pedro Pomar por haverem sido eleitos pela legenda do PSP. Pomar era, então, quarto secretário da mesa da Câmara.

O PCB, dessa forma, fez todas as tentativas para se manter dentro dos limi-tes da ordem e da tranquilidade legais permitidas pelo regime, para ser o “esteio máximo da lei e da ordem”, conforme proclamara Prestes em São Januário. Pediu aos trabalhadores que “apertassem os cintos” para evitar provocações que prejudi-cassem a consolidação da democracia e manteve uma política de união nacional, que tinha como suporte a colaboração das classes, mesmo após o fim da guerra contra o nazismo, e mesmo contra todos os indícios de que as classes “do lado de lá” não só não estavam dispostas a tal união, mas além disso pretendiam tirar os comunistas do caminho e impedir os trabalhadores de terem cidadania. Além

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disso, sempre no afã de mostrar-se “ordeiro e pacífico”, sustentara que a política repressiva de Dutra era resultado das pressões de “um pequeno grupo militar fascista” e não uma política deliberada de todo o governo.

Pois bem, apesar de tudo isso o PCB foi totalmente jogado na ilegalidade com o golpe final de cassação dos mandatos de seus parlamentares. Ao completar quarenta e seis anos de vida, o PCB tivera três meses de legalidade em 1922, me-nos de dois anos entre 1945 e maio de 1947 e mais oito meses de semilegalidade até o início de 1948. Despreparados para a ilegalidade e a clandestinidade que não desejavam e não previram, os comunistas tinham não só que se defender da repressão policial que se abateu sobre eles logo após a cassação dos seus parlamen-tares como reavaliar o completo fracasso de sua tática e começar a pensar melhor na própria estratégia.

A polícia invadiu e depredou as redações e oficinas de todos os jornais co-munistas, inclusive a redação da Tribuna Popular, localizada na avenida Aparício Borges, 207-13º andar, prendeu muitos jornalistas e gráficos e vários dirigentes. Um incêndio no 15º Regimento de Infantaria, em João Pessoa, foi tomado como vingança dos comunistas à cassação de seus mandatos e serviu de pretexto não só para a prisão dos deputados estaduais comunistas de Pernambuco como para que o próprio ministro da guerra, general Canrobert Pereira da Costa, decretasse a prisão de gregório Bezerra, que então morava na casa de Prestes, na rua gago Coutinho, no Rio de Janeiro.

O ato da prisão, em plena Cinelândia, no centro do Rio de Janeiro, foi violento e teria sido pior se Pomar não estivesse acompanhando gregório na oca-sião. Ainda deputado federal, Pomar tinha que se envolver não só nas atividades de rotina da Câmara, denunciando da tribuna a repressão violenta dos governos federal e estaduais contra os comunistas, como no apoio aos presos e no encami-nhamento dos camaradas que passavam para a clandestinidade. Além disso, ele ocupava então a secretaria política do Comitê Metropolitano do Rio de Janeiro, tendo que dirigir toda a atividade de recondução do partido no Distrito Federal para a nova fase de clandestinidade.

Nessas condições ficou difícil a continuidade da revista Literatura, sob a direção de Astrojildo Pereira, Álvaro Moreyra, Aníbal Machado, Arthur Ra-mos, graciliano Ramos, Orígenes lessa e Manuel Bandeira, por meio da qual o partido pensava estabelecer laços mais perenes com a intelectualidade e, em especial, com os escritores. lançada em janeiro de 1947, em julho ela encerrou suas atividades.

Em novembro desse ano, ao mesmo tempo que Pomar escrevia um artigo para a revista Problemas, qualificando o governo Dutra de ditadura terrorista, nascia seu terceiro filho, Joran, um prematuro que exigiu cuidados redobrados de Catharina. O apartamento de laranjeiras, como os apartamentos e casas de

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muitos militantes e amigos do partido nesse período conturbado, serviu de es-conderijo e casa de passagem para inúmeros dirigentes partidários, como Benedi-to de Carvalho, Antonio Paim e Armando Frutuoso, que se viram obrigados a se deslocar dos estados ou regiões onde atuavam legalmente para outros onde não eram conhecidos e poderiam escapar mais facilmente às perseguições policiais.

Como quarto secretário da Câmara, Pomar tinha direito a carro oficial e motorista. O Hudson preto chegava invariavelmente entre oito e nove horas para pegá-lo, mas nem sempre Pomar seguia nele. Muitas vezes tinha que aten-der atividades partidárias que não deviam ser do conhecimento do motorista da Câmara, saindo pela área oposta do edifício, onde pegava um carro do partido. A pretexto de estar examinando projetos, deixava o Hudson aguardando até retor-nar, ou mandava-o de volta para a garagem, onde deveria aguardar seu chamado e buscá-lo mais tarde.

Pomar era daqueles que considerava necessária uma avaliação mais cui-dadosa e mais profunda de todo o processo anterior, antes de definir a nova linha política. Mas Prestes já tinha tudo pronto e sua autoridade era incontestá-vel. Durante o período da legalidade, sua aura fora alimentada por qualificativos grandiosos. Jorge Amado afirmara que ele era “o próprio povo sintetizado num homem”, “a luz e a estrela”, “chefe inconteste, por isso mesmo menos sectário”. Amazonas o chamara de “grande chefe”, Marcos Zeida o denominara “o mestre”, Arruda dissera que ele era “o comunista mais consequente, o que enxergava mais longe, que queria com mais força que os outros”.

David Capistrano o considerara o “verdadeiro bolchevique, [que sabia] ou-vir os demais [e] sempre fazer-se entender”, Aydano do Couto Ferraz descobrira que “não há departamento do saber humano que ele não devassasse, nem há gê-nero artístico ou literário que não possa versar” e Ricardo Benzaquem o elevara a “símbolo máximo de uma ideologia”. Pedro Motta lima vira nele uma “têmpera inquebrantável”, grabois lhe reconhecera “fidelidade ao marxismo-leninismo”, Rui Facó aconselhara o partido a “seguir os passos de Prestes” e Astrojildo Pereira sintetizara tudo, denominando-o de “campeão”.

Pomar continuava considerando-o o grande líder inconteste do partido e até concordava com algumas daquelas qualificações. Mas não o considerava infalível e se achava no direito de discordar. Assim, em janeiro de 1948, quan-do Prestes, já na clandestinidade, enviou ao Comitê Central a proposta de um Manifesto, caracterizando o período anterior da atividade do partido como de “sistemática contenção da luta de massas proletárias em nome da colaboração operário-patronal e da aliança com a burguesia progressista”, de “pouca atenção às lutas dos trabalhadores rurais contra o latifúndio”, de “obscurecer os objeti-vos estratégicos revolucionários”, de “não manter uma atitude firme de oposição ao governo Dutra” e de “alimentar nas massas ilusões a respeito da composição

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reacio nária da Assembleia Constituinte e da Constituição”, descarregando sobre o Comitê Estadual de São Paulo as críticas mais duras pela perseverança nessas tendências e desvios reformistas, Pomar não se conteve.

Considerou que essa era uma forma de fugir da responsabilidade da Co-missão Executiva, que tinha Prestes como principal dirigente, na elaboração e execução da linha política. São Paulo errara por não haver sido bastante explícito nas críticas à linha geral, já que era lá que a militância via-se confrontada de forma mais direta, nas greves e nas lutas populares e da classe operária, com as contradições e as consequências negativas da linha traçada pelo Comitê Central.

Pomar também considerava prematuro o partido realizar uma guinada tão violenta na sua linha, forçado tanto pela reação quanto pela mudança da política da União Soviética, sem ouvir mais profundamente a militância e os quadros intermediários do partido e sem incorporar sua contribuição ao processo de au-tocrítica e de mudança. Se era incorreta a política de união nacional logo depois da guerra, isso não excluía a necessidade já existente de definir com mais clareza os inimigos e os aliados e, principalmente, de estudar o capitalismo no Brasil.

O Manifesto proposto por Prestes não introduzia qualquer mudança na estratégia de luta contra os monopólios estrangeiros e os resquícios feudais, que impediriam o desenvolvimento do capitalismo, mantendo inalterada a possibi-lidade tática de realizar alianças com os grandes capitalistas nacionais, desde que progressistas. Embora ainda não tivesse clareza suficiente do papel da burguesia brasileira, assim como de suas diferenciações internas e de suas relações com o imperialismo e o latifúndio, Pomar intuía que o partido se veria enredado, na tática, com os mesmos problemas anteriores, enquanto não resolvesse a questão da atitude da classe operária diante do capitalismo e da burguesia, já que o pró-prio Manifesto proposto reconhecia que a burguesia local e seu Estado já vinham sendo envolvidos pelo imperialismo, associando-se a empresas estrangeiras.

Além disso tudo, Pomar também considerava que a proposta de Prestes ali-mentava o mesmo tipo de interpretação que embasara a linha anterior, ao consi-derar que se acirravam as contradições entre as classes dominantes, aí englobando a disputa entre os interesses ingleses e norte-americanos, e que o governo Dutra estava minado pela fraqueza e pelo desespero. Só que, ao contrário do período anterior, quando se considerava que essas condições permitiriam a construção da união nacional e a consolidação da democracia, agora supunham-se dadas as con-dições favoráveis para que se instalasse no país um governo de que participassem todas as forças populares e progressistas.

Apesar de considerar que as eleições de novembro de 1947 haviam de-monstrado que o PCB ainda tinha prestígio e força nacionais, Pomar considerava que era a reação que estava em ofensiva, que o partido fora incapaz de resistir convenientemente aos golpes que ela desfechara e que o mais importante seria

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realizar uma retirada organizada, que impedisse a destruição das forças do partido e do movimento de massas, em especial do movimento sindical.

É evidente que as opiniões de Pomar não foram consideradas. A tática aprovada foi de orientar e desencadear a agitação, realizar lutas efetivas que impressionassem e abalassem todo o país e jogassem a maioria da população contra o governo, por meio das organizações já existentes ou, onde isso não fosse possível, mediante novas organizações nos locais de trabalho. Na prática, isso significava o afastamento de grande parcela dos comunistas das organiza-ções sindicais existentes, já que essas organizações tinham dificuldades em se adaptar à tática aprovada.

Os comunistas passaram a tentar a realização de greves de fora para den-tro, no apito ou no grito, nas quais piquetes e lideranças iam para a porta das fábricas estimular os trabalhadores a realizarem movimentos paredistas. Do mesmo modo que os estudantes comunistas, organizados na União da Juven-tude Comunista, recebiam como principal tarefa a realização de passeatas no centro das cidades, nas quais realizavam o “enterro” do imperialismo e do go-verno Dutra e faziam comícios relâmpagos.

Embora discordando de grande parte do Manifesto, Pomar acabou en-chendo-se de dúvidas ao ficar isolado, bombardeado por críticas de todos os lados e, principalmente, por ainda acreditar na genialidade de Prestes. Além disso, amoldara-se ao método de debater suas opiniões, mesmo francamente, apenas no âmbito dos organismos superiores a que pertencia, a Comissão Exe-cutiva e o Comitê Central. Transmitia, assim, estritamente o que fora decidido nesses órgãos aos demais âmbitos partidários, aí incluído o Comitê Metropo-litano do Distrito Federal e seu secretariado, dos quais fazia parte, omitindo o que realmente pensava.

Esse sistema, que já tinha certa raiz no passado, foi se implantando paulati-na e furtivamente no partido, tendo como principal fator o peso e a autoridade de Prestes na sua direção. Passou a predominar o método de tomar decisões sem ou-vir de forma sistemática, organizada e democrática as bases do partido. Com isso, bem mais do que no passado, criou-se uma situação interna em que era proibida formalmente a existência de correntes ou frações, mas na prática haviam dois ou mais PCs, que se dissociavam e se imbricavam de cima a baixo, sem conseguir forjar uma unidade ideológica e política sólida e duradoura.

Surgiu e se disseminou a prática de militantes e dirigentes confessarem en-tre si que não estavam de acordo com a orientação do partido, como se estivessem fora da organização partidária e nada tivessem com sua política, ao mesmo tempo que cumpriam rigorosamente as orientações emanadas da direção e exigiam dos demais a mesma postura. Pomar não escapou dessa contradição. Nos ativos – a forma mais comum de transmissão das orientações e diretivas para os diversos ní-

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veis da organização partidária, onde até era possível debatê-las, mas não modificá--las em nada, sendo o mais importante decidir como seriam levadas à prática – ele era um dirigente cioso das decisões e, muitas vezes, até mais inflexível do que o necessário, principalmente quando as divergências apresentadas coincidiam com seus próprios pontos de vista.

A única situação em que se permitia exprimir abertamente sua opinião fora do secretariado e da Comissão Executiva nacionais era quando se via compelido a cumprir uma decisão que dizia respeito diretamente a outro camarada, tendo a direção, a pretexto de preservar a segurança do partido, o intento de esconder os motivos da decisão. Como no caso de Muraro e, mais adiante, nos de Amarílio Vasconcelos e Apolonio de Carvalho, Pomar insurgia-se contra o segredo corpo-rativo e arrostava as consequências de sua atitude.

Em meados de 1948, já não ocupando mais qualquer cargo na secretaria da mesa da Câmara, Pomar, Catharina, os filhos e tia Rosa, que viera morar com eles, mudaram-se para o apartamento térreo de um prédio de três andares na rua Dias Ferreira, 78, no leblon, onde até então vivera Maurício grabois com sua família. Só possuía dois quartos e era bem menor do que o apartamento de laranjeiras, mas tinha a vantagem de estar num bairro mais sossegado e perto da praia, embora Pomar dificilmente conseguisse usufruir dela.

O bonde leblon, que vinha do largo da Carioca, através do Catete, Bo-tafogo, Humaitá e Jardim Botânico, passava pela Dias Ferreira e entrava na Ataulfo de Paiva, seguindo até o Bar Vinte, logo depois do Jardim de Alah, onde fazia o retorno. Na Ataulfo de Paiva, junto à Dias Ferreira, também fa-ziam ponto final os ônibus Central-leblon, os famosos Camões, que pareciam caolhos, com sua frente tendo a cabine do motorista separada da parte exposta do tampo do motor. Eram ônibus enormes, que tremiam demais, fazendo com que passageiros de estômago mais sensível enjoassem. Mesmo assim, Pomar os utilizava mais porque iam mais rapidamente até o Centro, onde ficava o escritório da Fração Parlamentar, no edifício Rio Branco, no número 257 da avenida homônima, esquina com a rua Santa luzia.

Pomar sempre achara engraçada a denominação que a Executiva escolhera para os grupos formais de dirigentes responsáveis pela coordenação do trabalho nas áreas parlamentar, sindical, popular, cultural, feminina e, em geral, de massa: “fração”. Um partido sempre ansioso, preocupado e avesso a qualquer tipo de “fra-cionismo”, o PCB criara a “fração parlamentar”, a “fração sindical” e outras, sem qualquer poder de deliberação, para encaminhar e orientar o trabalho nessas áreas, mas sob a supervisão e direção efetiva dos comitês a que estavam subordinadas.

Era como se quisesse alertar a seus membros, pela própria nomenclatura ambígua, que qualquer decisão própria, diferente das do comitê a que estavam ligados, poderia ser considerada uma atitude “fracionista”. A Fração Parlamentar

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federal, então restrita a Arruda e Pomar, funcionava num conjunto de três salas, servindo ainda como ponto de referência do trabalho legal do partido. Nela tra-balhavam, como funcionários permanentes, Almir Matos e Zacarias Sá Carvalho que, em 1937, ainda estudante, se envolvera nas disputas entre Sacchetta e Bangu pela direção do PCB na época.

Pomar, excetuando os momentos em que estava nas sessões da Câmara Federal, no Palácio Tiradentes, ou em contatos partidários, passava boa parte do tempo trabalhando ou estudando nas dependências da Fração Parlamentar. O apartamento do leblon oferecia um espaço muito reduzido para isso, obrigan-do-o a trabalhar na mesa da sala quando decidia permanecer em casa. Então, quando tinha que escrever discursos ou artigos para a nova Imprensa Popular, diário que substituiu A Tribuna Popular, ou para a Classe Operária ou a revista Problemas, ou mesmo estudar algum tema de interesse, permanecia na Fração até tarde. Muitas vezes Arruda lhe fazia companhia e ele se impressionava com o es-forço sincero que seu companheiro de partido fazia para estudar e entender o que lia. Não raro, já tarde da noite, Arruda colocava palitos de fósforo segurando as pálpebras, para espantar o sono. Por diversas vezes, Pomar trocou com ele ideias sobre os temas que estudavam e se espantava como interpretava diferentemente dele vários dos textos lidos. Chegou à conclusão de que havia algo de contraditó-rio nos fundamentos filosóficos que animavam a ambos.

Os novos rumos que a direção majoritária do partido vai consolidando con-somem Pomar. Ele bate na tecla de que, sem uma análise consistente do caminho seguido pelo desenvolvimento capitalista no Brasil, o partido estaria fadado a apli-car mecanicamente as experiências de outros países e a permanecer na generali-dade da luta contra o imperialismo e os resquícios feudais e contra os perigos de recolonização do país e traçar estratégias inadequadas. Ao mesmo tempo, vai se dando conta de que a genialidade de Prestes tinha lacunas importantes e que ele, como o capitão de um navio que não conhece bem os rumos a seguir, orienta-va-se exclusivamente por um grande farol, a União Soviética ou Stálin, que podia não levá-lo ao porto onde deveria chegar, mas sempre o levaria a um abrigo que considerava seguro.

Esforçou-se, então, para estudar mais profundamente a história do Brasil, desde a colonização, navegando não só através dos intelectuais jacobinos, popu-lares e revolucionários, mas também através daqueles considerados reacionários. Descobriu as análises aguçadas de Oliveira Viana sobre a própria monarquia que defendia, a visão perspicaz de Sérgio Teixeira de Macedo sobre as pretensões nor-te-americanas em relação ao Brasil, e o nacionalismo amazônico de Ferreira Reis. leu Nabuco, Capistrano, Taunay, gilberto Freyre e Sérgio Buarque. Mas não tinha tempo para sistematizar o que estudava, nem as ideias que iam se amonto-ando, partidas e embaralhadas, em seu cérebro.

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As tarefas práticas absorviam a maior parte de seu tempo. Além do Co-mitê Metropolitano do Rio de Janeiro, precisava atender tarefas em outros estados, principalmente em São Paulo, que conhecia bem e onde tinha uma teia de relações importantes. Não por acaso fora acusado pela polícia política de dirigir, em Santos, as greves e manifestações contra a visita de Dutra à cidade, e por uma série de outras atividades comunistas realizadas na capital e em outras cidades do Estado.

As preocupações desse período o mimosearam com uma úlcera, que teve que tratar com repouso e copos e mais copos de leite. Foi a primeira vez em muitos anos que Catharina e os filhos o tiveram por algum tempo. Durante cerca de três semanas, foi à praia com os meninos pela manhã e, à tarde, ia à Fração ou à Câmara, voltando mais cedo para casa. Em setembro de 1949, viajou ao México para participar do Congresso Mundial da Paz. A luta pela paz se transformara no centro político da luta dos comunistas em todo o mundo, uma exigência da União Soviética na tentativa de conter os preparativos de guerra das potências imperialistas. Pomar chefiava a delegação brasileira e fez um discurso em que denunciou o governo Dutra como mero instrumento da reação e do imperialismo americano, nada diferente do que sempre dissera em seus artigos e discursos públicos.

Mas o governo brasileiro, tendo como porta-voz inicial o jornal O Globo, armou um verdadeiro escarcéu. Colocou como principal manchete da primeira página do dia 11 de setembro, em caixa alta, “Repudiou a Pátria!”, e, como sub-títulos “O ministro da Justiça, em declaração a O Globo, anatemiza a conduta do deputado Pedro Pomar”, “Primeiras demarches em torno da possível cassação do mandato do parlamentar vermelho”. No texto da segunda página, o jornal informava que “A atitude do deputado Pedro Pomar no México, injuriando a nossa Pátria, causou indignação no Congresso. Há um movimento no sentido da cassação do mandato do parlamentar comunista”.

No dia 15, O Globo continuou nas manchetes de primeira página, em caixa alta: “Desagravo que se impõe!”. Segundo o jornal, “Perdura em todo o país a indignação causada pela afrontosa conduta do comunista e deputado Pedro Po-mar, que insultou o Brasil, suas instituições e especialmente suas classes armadas, perante uma assembleia tipicamente bolchevista na capital mexicana”.

Perguntado pelo jornal “se o Exército processaria o Sr. Pedro Pomar, dis-se o ministro Canrobert Pereira da Costa: ‘Essa tarefa cabe aos poderes compe-tentes. O Exército tem seu papel bem definido na Constituição’. Já o ministro da Aeronáutica, tenente-brigadeiro Armando Trompowsky, declarou: ‘A cir-cunstância que ocorreu de tais declarações terem sido feitas em terra estranha faz avultar a afronta que nos foi feita e justifica o clamor de toda a Nação pelo desagravo que se impõe’”.

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No dia 20, já em matéria de pé de página, mas ainda na capa, o mesmo O Globo traz o título “Acha interessante que lhe cassem o mandato” e noticia que Pomar havia desembarcado em Belém e, em declarações aos jornalistas, teria dito: “No meu discurso não me referi às Forças Armadas e sim às classes dominantes do país. Repeti no México o que digo na Câmara”. Indagado sobre a cassação de seu mandato, teria retrucado: “É o que desejam. Seria até interes-sante que tal acontecesse”.

No dia seguinte, 21 de setembro, em matéria de uma coluna no canto direito da primeira página, sob o título “O verdadeiro texto do discurso do Sr. Pedro Pomar”, é ainda O Globo que noticia: “Chegou ao Rio na manhã de hoje o deputado Pedro Pomar que tomou parte no Congresso da Paz, realizado no México, onde emitiu discursos ofensivos ao Brasil. Fomos informados que o em-baixador do Brasil no México, Sr. Camilo de Oliveira, mandou ao Itamaraty o verdadeiro discurso pronunciado pelo Sr. Pedro Pomar e que o texto não corres-ponde, na realidade, ao que foi divulgado pelos comunistas no Rio”.

O jornal não publicou nem o texto verdadeiro, como prometera no título, nem o falso, que teria sido divulgado pelos “comunistas do Rio”. Repetiu que os discursos haviam sido ofensivos ao Brasil, mas viu-se na contingência de silenciar e nada mais dizer a respeito de cassações e desagravos. Mas Pomar aproveitou o ensejo para repetir na Câmara o discurso que, com algumas variações, vinha há muito fazendo sobre as condições do Brasil e de seu povo.

Nessa viagem ao México, além desses acontecimentos, Pomar trouxe uma novidade que somente transmitiu à família em seus traços gerais. Encontrara-se com o pai, Felipe Cossio, na Cidade do México, hospedado no mesmo hotel em que ficou. Depois do retorno de Rosa e dos filhos ao Brasil, em 1921, Cossio retornara ao Peru e passara algum tempo em Cuzco e Arequipa, preparando sua tese de doutorado sobre a arte incaica. A pedido do presidente leguia, pintara vários murais no palácio Torre-Tagle, mas o próprio leguia mandara destruí-los quando soube das declarações de Cossio, em Havana, contra sua ditadura.

Estivera depois em Florença, onde pintara um retrato de Papini, retornan-do aos Estados Unidos em 1924, quando se tornou cônsul honorário do Peru na Filadélfia. Em 1925, fizera uma exposição em Paris e comprara vários quadros de gauguin, com o objetivo de estudar sua pintura e sua arte. Em 1926, estivera pela primeira vez em San Miguel de Allende, guanajuato, no México, encantan-do-se com sua paisagem e seu ar. Nos dez anos seguintes vagara por vários lugares. Estivera em Palm Beach, com o irmão Roman, em Havana para pintar e conhecer sua intelectualidade, em lima para visitar sua mãe Rosa, voltara a Paris, onde se tornou secretário da Sociedade de Artistas Católicos, fizera exposições sobre te-mas peruanos em Madri e vivera algum tempo lá com sua irmã Julia, casada com Juan Belmonte, um toureiro espanhol de fama legendária.

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Em 1937, retornara aos Estados Unidos com o firme propósito de estabele-cer uma sociedade com um de seus amigos da Universidade da Pensilvânia e fun-dar uma escola de artes em San Miguel de Allende. Stirling Dickinson aceitou a proposta e ambos rumaram para aquela cidade montanhosa para fundar a Escola Universitária de Belas Artes. Cossio conseguiu que lázaro Cárdenas, presidente do México, outorgasse valor oficial à escola e lhe concedesse as instalações de um antigo mosteiro, depois quartel, para abrigar o empreendimento. Dickinson fez convênios com universidades norte-americanas para enviar alunos para cursos de três a seis meses em San Miguel de Allende.

Os professores eram uma lista do que existia de melhor nas artes latino--americanas: luis Alberto Sanchez lecionava socioliteratura americana; Rufino Tamayo, pintura mural; Carlos Mérida, figura e composição; Felipe Cossio, his-tória da arte americana; José Mojica, história mexicana; Catharin Kuh, história da arte. Completam-na intelectuais que passavam por lá e ministravam cursos breves, palestras e conferências, como Pablo Neruda, léon Felipe, gérman Arci-niegas, Frances Toor, Juan larrea, gabriela Mistral, Salomon de la Selva, Pablo O’Higgins, Alberto Rembao, Juan de Encina, Ricardo Abascal, Angel Zárraga.

Esse pluralismo, em que se revezam liberais, marxistas e livres-pensa-dores, levou o clero e a aristocracia de San Miguel a reagir à escola e instigar a população contra os alunos de fora. Cossio recebeu telefonemas e bilhetes perguntando se ele era católico, protestante ou agente soviético. A participação de José Mojica e os benefícios que a escola levava à cidade, porém, fizeram com que a reação diminuísse.

A partir de 1941, com o ataque a Pearl Harbour e a queda do número de alunos americanos, a escola entrou em compasso de espera. Foi nesse período que viajou a Buenos Aires para assistir ao enterro de Anibal Ponce, de quem se tornara amigo, e retornou a lima para visitar a mãe, ficando preso por quinze dias sob a alegação de que estava conspirando contra o governo. Isto lhe rendeu, no retorno a San Miguel, novos ataques contra a escola. Panfletos anônimos alertavam a população contra o perigo comunista do qual ele era representante.

Não, assegurou Cossio a Ventura, como o tratava, ele não tinha a sua co-ragem para ser um comunista. Continuava um católico livre-pensador, aberto a todas as manifestações do pensamento. Adorara conversar com Anna Seghers, uma escritora alemã, comunista, que o visitara em 1943, autora de livros fabulo-sos como A Sétima Cruz e Visto de Trânsito. Mas achava Siqueros extremamente sectário, embora um muralista de grande talento.

Em 1945, com as notícias do Peru, a volta dos deportados e as mudan-ças políticas, decidira retornar para assumir, em lima, a secretaria nacional de cultura do Partido Aprista. Também foi nomeado catedrático titular de História da Arte do Peru da Universidade San Marcos e vice-decano da Faculdade de Fi-

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losofia e letras. Mas a alegria do retorno durou pouco. Em 1948, foi deportado novamente, dessa vez pelo general Odria, instalando-se na Cidade do México. Naquele momento, preparava-se para retornar a San Miguel de Allende, mas não para a escola que fundara. Alfredo Campanela, que era presidente da Sociedade Cervantina do México e, em 1945, ficara em seu lugar como diretor, impusera à instituição um sentido mercantilista com o qual não concordava. Projetava, en-tão, instalar outra escola, nos moldes da original.Pedro olhava seu pai, com o qual tinha grande semelhança física, e não conseguia saber que sentimento nutria em relação a ele. Esse foi o comentário sentimental mais explícito que fez perante os seus quando retornou da viagem. Talvez nem Catharina tenha sabido se ele tratou com o pai dos motivos da separação dele de sua mãe. A própria dona Rosa dissera que fora ela que o deixara, sem explicitar os motivos. Teria Ventura procurado ouvir a versão paterna? Ou deixara isso de lado, na certeza de que somente o acaso – ele repetia sempre que o acaso ocorria mais do que se pensava – fizera com que cruzasse uma vez mais com o pai, depois de tantos anos, somente para saber que estavam vivos e que cada um seguia o caminho que escolhera?

E o seu próprio caminho não estava fácil. Suas contradições com as novas tendências predominantes na Comissão Executiva iam num crescendo, embora continuasse um dirigente disciplinado e fiel às decisões adotadas naquele organis-mo do partido. Nem mesmo os membros do Comitê Central tinham ideia clara das divergências existentes. Pomar, fiel aos preceitos do seu informe de janeiro de 1946, continuava inflexível na ideia de que era preciso ouvir as massas, entender suas queixas e reivindicações, seu nível de consciência e de luta e não forçá-las a embates para os quais não estavam preparadas.

Considerava negativas e danosas as diretivas de arrancar greves a fórceps, como dizia, e propunha uma tática mais defensiva, que permitisse ao partido acumular forças e se preparar para jornadas mais combativas, mas com conte-údo de massas. Criticava acerbamente o velho hábito de fazer muita agitação e muita bulha, mas organizar e mobilizar pouco. Acentuava que esse era o cerne da estratégia e da tática propostas. Achava que as condições da classe operária, dos camponeses e das grandes massas do povo vinham piorando e, a médio prazo, deveriam desaguar em grandes jornadas de luta. No entanto, a forma de preparar melhor o partido para esse momento seria aprofundar o trabalho sindical e par-tidário nas empresas, reforçando as comissões de empresas e aproveitando todas as brechas legais para lutar com razão e com medida pelas reivindicações dos trabalhadores e do povo.

Não se pode dizer que Pomar tenha sido minoria de um nesse processo. Muitos militantes tinham pensamentos idênticos, mas a clandestinidade que o regime impusera ao PCB fez com que o sistema de decisão exclusiva pela direção se enrijecesse, entupindo cada vez mais a capilaridade possível entre os vários PCs

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que conviviam na prática política. Enquanto o PC da direção do partido se cris-talizava em torno de um novo núcleo dirigente, tendo Prestes como modelo na-cional e Stálin como modelo geral, embora esse tipo de autoritarismo caudilhesco fosse uma herança histórica bem brasileira, os PCs das direções intermediárias e das bases tendiam para uma dispersão generalizada e para cindir-se entre uma vassalagem explícita e uma resistência difusa e despersonalizada.

Essa cisão muitas vezes se manifestava num mesmo dirigente ou mili-tante, que aceitava disciplinadamente todas as ordens e diretivas e, ao mesmo tempo, em confiança, ou mesmo abertamente em ativos ou reuniões de seus organismos partidários, declarava-se em desacordo com as orientações do “par-tido”, cujo exemplo mais honesto e sincero, trazido a público, talvez tenha sido o de Eloy Martins.

Esse processo não poderia ser levado adiante sem feridos e caídos, prin-cipalmente porque a direção do partido decidira instituir o sistema de assisten-tes. As reuniões dos secretariados e comitês estaduais deveriam, como regra, realizar-se com a presença do assistente do Comitê Central. Assistentes dos comitês estaduais deveriam acompanhar as reuniões e atividades dos comitês municipais, que por sua vez deveriam designar assistentes para os comitês dis-tritais e estes assistentes para as bases.

Teoricamente, esse sistema deveria permitir uma ligação permanente en-tre as bases e as direções. Na prática, os organismos de base e intermediários do partido foram perdendo sua autonomia relativa, dependendo cada vez mais das orientações e diretivas dos assistentes, que se transformavam nos verdadei-ros dirigentes de uma série de bases ou comitês do partido. Suas reuniões não discutiam as questões concretas com que se defrontavam no dia a dia, mas sim as diretivas trazidas pelo assistente e como aplicá-las, mesmo que fossem exclu-sivas de sua cabeça.

O enrijecimento do núcleo dirigente central era acompanhado do enrijeci-mento de toda a estrutura partidária, que passava a ter como coluna vertebral os assistentes. Desse modo, não só o núcleo dirigente central se veria compelido a expelir os que duvidassem de sua própria linha como isso deveria funcionar, por efeito dominó, sobre toda a estrutura partidária, levando ao afastamento volun-tário ou compulsório daqueles que resistissem às diretivas e tarefas trazidas pelos assistentes, ou até mesmo dos próprios assistentes.

Assim, quando o Manifesto de Agosto de 1950 veio à luz, Pomar também já havia sido destituído de sua posição no secretariado e na Comissão Executiva nacional, continuando apenas como membro do Comitê Central, em função de suas divergências disseminadas com o novo corpo de ideias políticas e organizati-vas que predominavam no vértice partidário. As modificações nesses órgãos diri-gentes do partido eram feitas, porém, de forma sigilosa, sob o natural pretexto da

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segurança partidária, o que levou a maioria dos dirigentes e militantes do partido a continuar enxergando Pomar associado ao núcleo dirigente central e, invaria-velmente, a todas as decisões adotadas pela direção do partido nos anos 1950.

No entanto, desde o início daquela década, sua “carreira partidária” in-gressara num declive que o afastou, paulatina mas crescentemente, do núcleo comandado por Prestes e dos escalões superiores do partido. Na verdade, segundo ele próprio notou, acompanhava o próprio declive em que o PCB deslizava, ao não se dar conta da crescente dicotomia que suas políticas tinham em relação à realidade, à classe operária, aos camponeses e às grandes massas do país e, tam-bém, em relação a seus próprios militantes, que vagavam em vários partidos que pareciam um só, sem ter noção de como isso ocorria.

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13 SÓ VEJO COMO SE ATORMENTA

O HUMANO SER

Original, leva o esplendor contigo; Como te humilharia o fato!

Quem pensou de tolo, algo, ou de sensato, Que já não tem pensado o mundo antigo?

J. W. goethe (Fausto)

1976, São Paulo: dezembro, tarde do dia 121947-1951 – Rio, São Paulo e Rio Grande do Sul: voltando do futuro

Mário olhava atentamente, enquanto Rui, ao ser retomada a reunião, dis-corria sobre a necessidade de adotar uma resolução imediata a respeito da derrota do Araguaia. O Príncipe Espanhol destacara-se nas lutas dos mineiros do Rio grande do Sul, nos idos de 1940, e se tornara um intelectual operário, estudioso do movimento sindical. Na III Conferência Nacional, de 1946, fora eleito su-plente do Comitê Central e, desde então, transforma-se paulatinamente num dos principais quadros dirigentes do partido. Em 1957, no bojo da crise interna que levara à destituição de uma parte da Comissão Executiva e do secretariado, passara a ser membro da Executiva.

Não tinha vindo para o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) na pri-meira leva dos dissidentes com a linha prestista. Ficara na Executiva do PCB e só em 1968, durante o processo de desagregação partidária que se seguira ao golpe de 1964, rompera junto com parte do Comitê Central e parte considerá-vel do comitê regional do Rio de Janeiro e do comitê marítimo. Ele, Frutuoso, guilhardini, José Maria e outros dirigentes marítimos e do Rio de Janeiro, após uma nebulosa convergência com Mário Alves, Jacob gorender e Apolo-nio de Carvalho na formação do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), decidiram juntar-se ao PCdoB.

Rui fora o primeiro a tomar a palavra no segundo ponto da reunião e mos-trava-se radical na condenação aos erros da guerrilha. Não dizia nada de novo, mas

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embaralhava os argumentos. Reconhecia haver dificuldades para tirar os ensinamen-tos da luta e para esclarecer as opiniões sobre os dois camaradas em divergência, mas sugeria que só em última opção, caso estivesse em jogo a unidade da direção, seria conveniente chegar a esse esclarecimento. Antes seria preciso ver se existiam questões em torno das quais se poderia fazer a unidade. Estavam em jogo questões urgentes e importantes: como ficaria a comissão militar e o trabalho militar, perguntava.

Fazia críticas duras ao relatório de Jota e aos seus referenciais. Dizia ser ver-dade existirem posições comuns no Comitê Central. Todos eram a favor da luta armada e do papel e da direção do partido. Mas, acrescentava, isso foi subestimado no Araguaia. A expressão prática do papel do partido seria o comitê central con-tinuar discutindo, evitar a hipertrofia da comissão militar e garantir a segurança e a direção do partido. Era preciso em primeiro lugar chegar a um acordo sobre a preparação da luta armada, mas isso também exigia uma avaliação mínima sobre a preparação do Araguaia e reconhecer que perdemos. Para realizar os preparativos da luta armada era necessário ter um plano estratégico, vendo as áreas em função disso. Quais eram as áreas que tínhamos agora?, o que a Comissão Militar estava trabalhando?, voltou a perguntar. A Comissão Executiva e o Comitê Central de-veriam discutir a respeito e decidir.

Rui tomou fôlego. Pareceu momentaneamente contente consigo. A Comis-são Militar deveria ter uma feição mais ampla, disse, não operacional, e empenhar--se para que a luta armada fosse tarefa de todo o partido e de toda a massa. Só assim se poderia resolver o problema do seu desencadeamento, que deve brotar da luta local das massas. Não devemos nos amarrar em fases, sentenciou, tudo depen-dendo da evolução da preparação e da luta de massas. Mas a condição preliminar para avançar seria reconhecer o fato de que fomos derrotados e passar à ofensiva nesse reconhecimento, tomando decisões claras e imediatas.

Mário anotava apenas aquilo que achava fundamental na intervenção de cada um, em pequenas folhas de papel, com sua letra e suas contrações inconfun-díveis. Dias tomou a palavra logo a seguir. Chamou a atenção para que se vissem os dois aspectos existentes na avaliação do Araguaia, um fato político inquestioná-vel, para não cair no derrotismo. Avaliar tanto a sua repercussão quanto a própria derrota, e examinar o sentido dessa derrota, frisou. E estendeu-se numa longa digressão sobre o processo de derrotas como condição indispensável para chegar à vitória, um processo inevitável cujo exame era indispensável para superar as di-vergências que impediam uma solução imediata para o trabalho armado. Sugeriu então que se encarasse essa solução em dois planos: ou o partido realizava um congresso ou a direção chegava a proposições mínimas para um acordo, com um documento que servisse de base para isso.

Zé Antonio mal esperou Dias concluir. lembrou a necessidade de encami-nhar o processo de discussão no Comitê Central e perguntou como poderíamos

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sair do impasse, já que vagávamos entre oito e oitenta. Considerou existirem quatro diferentes pontos de vista ou tipos de questão em discussão. O primeiro referente à revisão do Araguaia, em que ponto a tarefa mais urgente era chegar não a uma visão comum, mas a uma perspectiva real. O segundo dizia respeito à preparação clandes-tina, a ser realizada mais ou menos como a do Araguaia. O terceiro, sobre a maior importância a ser dada às cidades, a exemplo da Colômbia. E a quarta, a atitude a adotar diante do Araguaia como fato político, na qual se incluía o comunicado da morte de grabois. A cada um desses pontos ele adicionava um ou mais argumentos de fundamentação, não raro repetindo-se e alongando-se na explanação.

Jota perguntou: por que levar a opinião do Araguaia para as massas? Ainda estávamos discutindo, argumentou. A Classe tinha dado notícias, não escondera a situação. Devíamos informar ao partido que sofremos uma derrota temporária, acrescentou, já que não adiantava contar vantagem, como fizera o lobo. Deve-ríamos manter a ideia de que a luta continuaria enquanto um se mantivesse de pé. Sofremos uma derrota, repetiu, mas apesar disso ganhamos as massas, que nos deram apoio moral e material. A discussão, então, era para chegar a um ponto de vista correto, e o terceiro documento poderia servir de base para ela, já que a maioria fora a favor dele. Concluiu dizendo que precisávamos chegar a algumas proposições sobre se deveríamos ou não ter áreas especiais ou de trabalho especial, definir os métodos e as táticas em cada área e partir do movimento de massas.

Essas intervenções se estenderam pela tarde toda. Houve uma parada para que se tomasse um cafezinho e às sete da noite Mário sugeriu que a reunião fosse suspensa para o jantar, continuando no dia seguinte para uma segunda rodada – ele ainda não falara – e para o terceiro ponto. O pessoal do Comitê Central deve começar a entrar às nove horas da noite, acrescentou, e temos tempo suficiente para fechar todos os pontos. Rui e Dias levantaram-se quase ao mesmo tempo, num sinal claro de que não só concordavam com a suspensão dos trabalhos, como estavam ansiosos por isso. logo depois Maria apareceu para avisar que o jantar estava pronto.

Após comer, Mário retornou à sala, mas permaneceu algum tempo em pé, recostado numa das paredes, na esperança de que isso ajudasse sua digestão. Co-mia pouco, e menos ainda desde que operara a úlcera e lhe fora cortado um nervo do estômago para impedir a formação de novas ulcerações. Ficou mais magro, mas pelo menos não tinha mais aquelas dores terríveis que o paralisavam.

Pensou em Catharina: como estaria? Desde que fora operada tornara-se um ente frágil, alquebrado, que parecia prestes a ruir por qualquer solavanco. lembrou-se de que poderia sucumbir repentinamente, segundo as previsões do cirurgião, e sentiu seu corpo comprimindo-se, como se costelas, pulmão e coração fossem pressionados por tenazes invisíveis. Tinha, porém, esperança de que ela se recuperasse e suportasse a viagem para passar o final do ano em Belém e ambos

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revissem a terra antes que se fossem de vez. Havia netos que estavam lá, havia onde ficar em segurança. Tinha que dar certo.

Sentou-se, então, e resolveu rever as anotações das últimas reuniões da Co-missão Executiva e do Comitê Central. Realmente, estavam num impasse. Repas-sou as opiniões de Cid na reunião de outubro de 1975. Ele dizia que a questão em discussão transcendia o Araguaia. O que estava em debate era o caminho da luta armada. Era preciso distinguir as nuances dos problemas de fundo, já que às vezes estas terminam como tendências, desde que certas opiniões se estratifiquem. Reconhecia que a questão não era fácil de solucionar e fez um histórico da busca do caminho da luta armada pelo partido.

Vivemos um longo processo, dizia, de discussão no Comitê Central até chegar ao documento sobre a guerra popular. Os camaradas que vieram da AP não viveram esse processo e a maioria dos que participaram dele não pode apreciar os resultados. O documento sobre a guerra popular é o nosso plano estratégico, frisava, e agora o que se depreende das opiniões genéricas de muitos camaradas é que trata-se de outro plano estratégico. Por isso, é preciso ter paciência em discutir e método para solucionar, evitando resolver por votos.

Cid falava bem, pausadamente, transmitindo segurança no que dizia. Ti-nha certeza do que falava, convicto de que a verdade estava a seu lado. Temos que analisar como sair dessa situação, continuara. O que significa nossa avaliação? É válida ou não a nossa experiência? Devemos nos lembrar do exemplo de 1935, é uma experiência que não podemos jogar fora, faz parte de nossa história. Com a derrota de então, veio a confusão. Compara, então, a derrota do Araguaia com a da Comuna de Paris. Também foi derrotada, porque a derrota pode vir, mesmo a causa sendo certa.

Nesse sentido, continuou, não podemos separar a avaliação e a preparação. Nesta, podemos seguir duas formas. Certas opiniões sugerem que o trabalho en-tre os camponeses deve levar ao desencadeamento da luta armada. Pago para ver sair luta armada do trabalho no campo, disse com ênfase. A outra forma é a do Araguaia. Tivemos grandes êxitos e grandes ensinamentos lá. É verdade que ocor-reram problemas de encaminhamento, mas foi uma iniciativa do partido. Como se poderia estimular a luta armada de outro modo? Foi militarismo? Então, há militarismo em lênin? Claro que o partido tem de prestar contas, fazer folheto de análise, elaborar um documento a respeito. É verdade que um trabalho conspira-tivo também pode ser descoberto, mas da outra forma também pode e será pior. De qualquer modo, não via contradição entre preparar de uma forma e de outra. Podemos desenvolver os dois tipos de trabalho paralelamente, discutir as experiên-cias das outras áreas e definir linhas de ação mais claras a esse respeito.

Mário pensava o quanto Cid estava desesperado para, na prática, admitir duas linhas de ação ou, como dizia, duas estratégias na preparação da luta armada. Isso

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não era de seu feitio. Por um lado, jogava toda a sua autoridade e todo o processo anterior de discussão a respeito da luta armada, até chegar ao documento “guerra Popular, Caminho da luta Armada no Brasil”, para amedrontar os camaradas que tinham vindo da Ação Popular para o partido e que emitiam pontos de vista crí-ticos a respeito da guerrilha do Araguaia. Por outro, desqualificava o trabalho de campo como base para a luta armada, esquecendo-se de que a forma do Araguaia só seria viável com o trabalho do partido, no campo e nas cidades, para fornecer quadros para a luta armada.

Por fim, admitia as duas formas, ou as duas linhas de preparação, o que incluía a exigência de que o conjunto do partido teria que continuar trabalhan-do para recrutar, selecionar e enviar militantes para o trabalho especial. E omitia que a subordinação completa do trabalho de todo o partido às necessidades de quadros e suprimentos do Araguaia abrira brechas importantes na segurança partidária, levara grande parte da direção do partido à morte e fizera com que, na prática, o Comitê Central chegasse a ter mais quadros oriundos da AP do que do próprio PCdoB.

Cid, na realidade, não aprendera com a história, nem mudara sua mente com as experiências vividas, pensava. O que tinha a ver lênin com o Araguaia? Mário recordou-se de quando emprestou para ele a biografia do líder russo, escrita por gerald Walter, e de seus comentários depois da leitura: “Esse livro está cheio de gatos! lênin jamais escreveu nada em conjunto com Kamenev e Zinoviev!”. Mário riu e o chocou:

– O melhor é que escreveu. Tu é que estás querendo uma história em linha reta, que não existe. Ambos trabalharam com lênin na elaboração de inúmeros documentos.

Cid calou-se e nada mais disse. Mas sua fisionomia mal disfarçava sua im-pressão de que Mário se mantinha nos mesmos desvios que já apresentava no final dos anos 1940, quando Cid, ou João Amazonas, retornara à clandestinidade, disposto a corrigir a ferro e fogo os desvios direitistas anteriores e Mário, ainda deputado Pedro Pomar, defendia que a direção do partido realizasse um trabalho de avaliação, ouvindo as bases do partido e as massas antes de adotar suas decisões.

Mário relembrou então os anos imediatamente posteriores a 1947 como anos difíceis em todos os sentidos. Foi um tempo de polarizações. De um lado, a Revolução Chinesa foi retomada e os partidos comunistas dos países do leste europeu chegavam ao poder, com o auxílio mais ou menos explícito das tropas soviéticas de ocupação. Os guerrilheiros iugoslavos e albaneses também chegavam ao poder, mas por sua conta e risco, enquanto os guerrilheiros gregos batiam-se contra as tropas monarquistas e inglesas. Os vietnamitas de Ho Chi Min haviam proclamado a república popular, e toda a Ásia e a África tremiam sob o impacto de movimentos de libertação e independência.

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De outro lado, o imperialismo americano crescia em agressividade, intervin-do em toda parte e realizando provocações de toda ordem contra a União Sovié-tica e os comunistas. Nos Estados Unidos, o macarthismo fazia a caça às bruxas, desenvolvendo no plano interno a mesma política anticomunista desenvolvida no plano externo, enquanto o papa Pio XII excomungava os comunistas para isolá-los dos católicos. O mundo se dividia em dois grandes campos, mas nem sempre as linhas divisórias eram totalmente visíveis.

Em 1948, enquanto os Estados Unidos e a União Soviética entravam em vias de confrontação na Berlim bloqueada, o Partido Comunista soviético decidiu lançar-se numa luta ideológica de condenação do formalismo musical, da filo-sofia hegeliana e de outras formas culturais consideradas decadentes. Procurava justificar, pela ideologia, sua interferência na política interna dos demais partidos comunistas e a expulsão do Partido Comunista iugoslavo do comitê de informa-ção dos partidos comunistas, o Cominform, por adotar um modelo de construção socialista diferente do soviético.

Ao assistir ao desmoronamento de sua política, que supunha que o mundo ingressara numa nova era de paz, levando-o inclusive a pressionar os chineses a aceitar qualquer acordo com Chiang Kai-Shek, Stálin dera uma guinada de cento e oitenta graus. Passara a concentrar seu fogo contra o imperialismo norte-ame-ricano mas, ao mesmo tempo, desferia ataques contra os aliados que considerava vacilantes e oportunistas, de tal modo que às vezes tinha-se a impressão de que os inimigos principais eram esses vacilantes e não o imperialismo. Processos e execuções de dirigentes de partidos comunistas do leste europeu – na Polônia, go-mulka, na Hungria, Rajk, e na Tchecoeslováquia, Slansky – sucederam-se como expressão do temor que enxergava em qualquer dissidente ou crítico um cavalo de Tróia da reação imperialista.

Por incrível que pareça, esse quadro ficou ainda mais complicado a partir de 1949, com a vitória da Revolução Chinesa e o alastramento da revolução vietnamita, esta contra as tentativas de recolonização dos franceses. A China procurou romper o bloqueio norte-americano ingressando, desde o início, nas negociações para criar um movimento de países não-alinhados, numa política que tratava os aliados, mesmo os vacilantes e oportunistas, de forma bem di-ferente dos soviéticos. Embora nenhum dos dois o declarasse, as relações entre ambos mantinham-se tensas e cheias de evasivas, em virtude de suas diferentes abordagens nacionais e internacionais.

A ascensão no rumo do conflito entre os dois campos chegou ao ápice com a guerra da Coreia, em 1950. Ao provocar os coreanos do norte e levá-los a aceitar o desafio da guerra, os Estados Unidos tinham em mente conter os chineses diante de Formosa (Taiwan) e envolvê-los numa confrontação de en-vergadura, num momento em que mal haviam chegado ao poder. Fazendo-os

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sangrar até sucumbir à contraofensiva dos exércitos de Chiang Kai-Shek, os Estados Unidos poderiam testar a disposição da União Soviética para um con-fronto direto.

A situação internacional, mesmo mediada por uma série de países que pro-curavam jogar com os dois lados, sem alinhar-se explicitamente a nenhum deles, era de guerra. É sob o impacto dessas tendências, e também sob as perseguições diretas aos comunistas brasileiros, que o PCB se vê obrigado a modificar sua linha, após ser jogado na ilegalidade. No entanto, ao invés de realizarem uma avaliação cuidadosa de todo o processo anterior, em especial do período legal do partido, Prestes e a maioria da Comissão Executiva decidiram lançar o Manifesto de Janei-ro de 1948 e completá-lo, em 1950, com o Manifesto de Agosto.

Em ambos, mantiveram a antiga leitura básica da realidade estrutural brasileira: o problema central continuava sendo o latifúndio, associado ao impe-rialismo norte-americano, que impedia a penetração do capitalismo na agricultura e o desenvolvimento capitalista no país como um todo – embora o capitalismo já viesse se desenvolvendo no país, em particular desde os anos 1930, em associação tanto com os capitais estrangeiros quanto com o latifúndio.

Se a dedução estratégica dessa análise era de direita (desenvolver o capitalis-mo nacional contra o latifúndio e o imperialismo), a tática era de um esquerdismo delirante. O partido passava a ter como tarefa única arrancar lutas a qualquer custo, independentemente da consciência e da disposição dos trabalhadores e das massas populares. É em meio a essas tentativas que o partido realiza, em novembro de 1950, um comício na esplanada do Castelo, no Rio, dispersado violentamente pela polícia, tendo como saldo trágico a morte de Zélia Magalhães, uma jovem militante grávida. Um ano antes, em Tupã, São Paulo, a polícia assassinara Miguel Rossi, Afonso Marma e Pedro godói.

Isso não impedia a direção de manter contatos estranhos com Adhemar de Barros, que era fortemente atacado pelo partido por sua política repressiva contra os trabalhadores e os comunistas. Ainda em fevereiro de 1949, um grampo policial capta um telefonema de Pomar para Aydano do Couto Ferraz, um dos responsáveis pela nova Imprensa Popular, no qual Pomar lhe pede um pouco mais de paciência quanto aos problemas financeiros, pois Milton Caires estaria em en-tendimentos com Adhemar para obter os recursos necessários. Armênio guedes confirmou que Adhemar, durante muito tempo ainda, enviava cerca de “cinquen-ta contos por mês”, por meio de um grupo de intelectuais ligados ao partido, do qual faziam parte João Pacheco e José Eduardo Fernandes.

Mas essa já era uma época em que Pomar, ao resistir aos métodos mando-nistas de decisão, ao conteúdo direitista da antiga e da presente estratégia, e ao conteúdo esquerdista da nova tática, usando de sua costumeira franqueza política, selara seu destino no Secretariado e na Comissão Executiva, seja pelas divergências

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políticas, seja pelos muito descaminhos a que a vaidade costuma empurrar até mesmo homens carregados de boas intenções.

O ataque crítico de Falcão à sua direção na Tribuna Popular, em maio de 1947, foi seguido depois pelo ataque de Prestes, no Manifesto de Janeiro de 1948, ao Comitê Estadual de São Paulo. Embora Pomar já não fosse seu principal di-rigente desde o final de 1945, a diatribe de Prestes era, na verdade, um ataque às “crias” que lhe haviam garantido, nas eleições complementares de 1947, mais do que o dobro dos votos obtidos por Arruda.

Assim, na volta do partido à clandestinidade, ao colocar Prestes e o se-cretariado no centro da necessária autocrítica, Pomar também feriu ainda mais fundo a vaidade do secretário-geral e deixou seu flanco aberto para o trabalho de solapamento levado a efeito por Arruda e outros dirigentes, que não gosta-vam da forma meio rude como ele costumava dar suas opiniões e realizar suas críticas aos dirigentes, enquanto era macio com os militantes de base. Ao que se saiba, não houve nenhum dos membros da Comissão Executiva e do Co-mitê Central que concordasse abertamente com sua avaliação, nem em 1948 nem em 1950.

Em fevereiro de 1950, a Câmara rejeitara o projeto de cassação de Pomar, elaborado pelo deputado Nobre Filho, tendo como pretexto o discurso feito por ele no Congresso Mundial da Paz, na Cidade do México. Mas esse era também o último ano de seu mandato e, com o partido sem registro, os comunistas de-cidiram, no afogadilho e apesar do Manifesto de Agosto, participar das eleições, tentando eleger seus candidatos pelo PTN e pelo PST.

Em São Paulo, Pomar, Arruda e Crispim registraram suas candidaturas a deputado federal, enquanto Roque Trevisan, lourival Villar, João Taibo Cadorni-ga, Zuleika Alambert, Caio Prado Junior, João Sanches Segura, Catulo Branco e Armando Mazzo disputavam a Assembleia estadual. Um anúncio de 12 de agosto, no jornal Hoje, informava que o escritório eleitoral de Pedro Pomar estava na Rua da glória, 111, sala 5, e apelava aos “amigos dos candidatos de Prestes” para se tornarem fiscais eleitorais.

Desde junho, Pomar deslocara-se para São Paulo com a tarefa de organizar a campanha eleitoral do partido. Segundo relatório do serviço reservado do DOPS, ele estaria hospedado nas casas de Palamede Borsari, Álvaro de Faria, Fued Saad ou Samuel Pessoa. Num ativo realizado no comitê de campanha, no final de setem-bro, Pomar transmitiu a orientação eleitoral do partido. Ela consistia basicamente em entrosar os diversos candidatos e transformar os quinze dias restantes até as eleições em meses para recuperar o tempo perdido. Não havia contradição entre apelidar de falsas as eleições e tomar parte nelas. A atitude dos camaradas que haviam rasgado o próprio título eleitoral era um erro e eles deveriam fazer autocrí-tica: o partido nunca dissera que não tomaria parte nas eleições.

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As classes dominantes iam às eleições porque não tinham força para ou-tra coisa. Então, havia três hipóteses para o partido: boicotar o pleito, o que só se justificaria se ocorresse um ascenso revolucionário; defender o abstencionis-mo, coisa que o partido não tinha força para fazer com sucesso; ou participar das eleições, considerando-as um fato político que bulia com o povo, que ainda acreditava em soluções por meio delas. Então, as eleições deveriam servir para acelerar a organização popular, considerando que o voto era um direito, não uma concessão.

Assim, as eleições eram uma farsa porque haviam suprimido o partido e cassado os mandatos dos parlamentares comunistas, mas também tinham sentido revolucionário, na medida em que eram uma oportunidade para desmascarar os candidatos da reação, espalhar a palavra de ordem de organizar os comitês de-mocráticos de libertação nacional e aproximar-se das massas, convertendo suas aspirações em ações.

Pomar frisou ainda que as eleições ocorriam numa situação de guerra (Co-reia), miséria, fome e perseguição aos democratas e a Prestes. Os partidos estavam controlados pela polícia e pelo Exército. getúlio não se aproximava das massas, nem dos pelegos guindados por ele no passado, mas as massas ainda acreditavam que ele podia fazer alguma coisa por elas. Então, perguntava, por que não apoiar getúlio? “Não é por ressentimentos, já que estivemos com ele quando avançou no rumo da democracia. O problema é que ele vem e não nos procura. Procura góes Monteiro. Depois diz que vai nos mandar para a Coreia. Em 1930, ele prometeu reforma agrária e não deu. Está apenas se aproveitando da oposição que fizemos a Dutra para conquistar nossos votos.”

“Então, não apoiamos ninguém. O brigadeiro é aquele racista que mandou fuzilar o cabo Mineirinho, secretário da célula do partido na Escola de Aviação; o Cristiano vai continuar o governo Dutra; o Mangabeira é o homem da lei Sindical, que vai arrebentar os socialistas. Nossa tática tem, nessas condições, que se adaptar a cada situação. Em alguns lugares, devemos nos apresentar como par-tido. O fundamental é que nos vejam como os candidatos de Prestes, candidatos populares, de libertação nacional. Não temos fórmulas rígidas. Precisamos atingir mais de cem mil votos, vencendo em São Paulo, Santos, Santo André e Sorocaba. E lutar pela libertação de Elisa Branco.”

Não houve tempo. As candidaturas foram cassadas, os comunistas proi-bidos de participar das eleições sob qualquer legenda e os escritórios eleitorais fechados pela polícia no dia 28 de setembro de 1950. Sem legenda para tentar a reeleição, Pomar foi obrigado a passar à clandestinidade, ao mesmo tempo que era desligado da Comissão Executiva e do Secretariado Nacional e enviado para ocupar a primeira-secretaria e a secretaria de agitação e propaganda do Comitê Estadual do Rio grande do Sul, para fazer autocrítica. Em termos par-

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tidários, naquela época, essa medida representou um sério rebaixamento. Ainda não totalmente convencido de suas próprias opiniões, Pomar aceitou a tarefa disciplinadamente.

A saída do Rio de Janeiro foi cercada de lances diversionistas. Afinal, nin-guém poderia ter ideia de que Pomar e a família estavam se preparando para mudar e passar à clandestinidade. Ao perder a imunidade parlamentar, quase certamente ele seria preso por suas atividades políticas. A polícia política continuava ativa e acompanhava permanentemente todas as suas atividades, as reuniões públicas de que participava e os contatos e visitas que fazia, procurando descobrir os despistes que utilizava para escapar da vigilância policial, quando se tratava de algum en-contro ou reunião sigilosa.

A repressão política desse período, porém, apenas conseguia seguir, como um perdigueiro idiota, as movimentações externas de Pomar. Em janeiro de 1947, o delegado José Piccorelli, do serviço de investigações do DOPS do Rio de Janeiro, enviou à 2a Vara Criminal, para fins processuais quanto ao jornal Tribuna Popular, um histórico de Pedro Araújo Pomar, no qual informava que ele era comunista ativíssimo, processado três vezes pelo Tribunal de Segurança Nacional, tendo sido condenado em 16 de junho de 1941 a dois anos de prisão celular. Em São Paulo, onde tinha organizado o respectivo Comitê Estadual, desenvolveu – é o delegado quem diz – invulgar atividade partidária. Foi o idealizador do Movimento de Aju-da à Imprensa Popular e, em junho de 1946, foi à Argentina em missão partidária, “incumbido de interferir junto aos membros do Partido Comunista argentino, no sentido de ser hipotecado apoio à candidatura Peron”.

Em setembro do mesmo ano de 1947, o delegado Cecil Borer, que se nota-bilizara como torturador durante o Estado Novo, adicionou a um relatório reser-vado que Pomar, já deputado federal, era “um indivíduo assaz perigoso, agitador, gozando de péssima reputação em círculos não-comunistas”. Os relatórios reserva-dos informavam que Pomar recebera seus subsídios de Prestes e de Álvaro Ventura (este era o tesoureiro do partido); embarcara para São Paulo pela Panair; realizara palestra no auditório das Classes laboriosas, em São Paulo; prefaciara o folheto sobre “Um ano de legalidade”; havia comprado quinhentas ações da Tribuna Po-pular; participara de comício em defesa do petróleo, no Rio de Janeiro; participara de pleno do PCB, em Friburgo; falaria sobre os problemas da democracia no Cen-tro guerra Junqueira; e participara, em São Paulo, como representante do PCB, na organização da liga de Defesa da Constituição (da qual faziam parte o vereador Jânio Quadros, os deputados Castro Neves e Porfírio da Paz, o acadêmico Omar Catunda e Abner laureano, Ubaldo de Maio, Carlos de Souza Barros, Caio Prado Junior, Helena Prado e Rio Branco Paranhos).

Depois do ato de organização da liga de Defesa da Constituição, em São Paulo, informa um agente policial frustrado, Pomar fora perseguido, no carro placa

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27.874, em que estava com Arthur Neves, João Taibo Cadorniga e “outros três ele-mentos comunistas não identificados”, mas conseguira despistar os perseguidores na altura da praça Osvaldo Cruz.

Em 8 de janeiro de 1948, o ministro da Justiça de Dutra determinou a apreensão do “órgão extremista” Tribuna Popular nas oficinas do próprio jornal, à rua do lavradio, no Rio de Janeiro. Pomar recusou-se a acatar a determinação e os gráficos cerraram as portas para impedir a entrada da polícia. A tropa, dirigida pelo delegado Fredgard Martins, invadiu as oficinas assim mesmo, empastelando tudo e, a pretexto de haver sido recebida a tiros e a granadas, prendeu o ex-oficial da FEB Salomão Malina, assim como Antonio Paim, Walter Weissberg e outros funcionários do jornal, vários dos quais saíram feridos. Pomar, mesmo sendo de-putado, teve instaurado contra si um processo com base no inciso IX, artigo 6º, do Código de Processo Penal.

Nessas condições, a clandestinidade não era uma opção a escolher, mas uma necessidade para manter-se em atividade política. Era uma imposição do sistema político que, de democrático, só tinha o nome. A democracia liberal do período Dutra, apesar do mito de que o marechal presidente tinha sempre à mesa a Cons-tituição de 1946, funcionou como uma ditadura contra o movimento operário e contra os comunistas. Durante o governo do antigo e renitente fascista, foram as-sassinados mais de 50 militantes. Então, como medida de segurança, antes mesmo de terminar seu mandato, Pomar deslocou-se para lugar ignorado.

Em janeiro de 1951, sua família foi transportada do Rio de Janeiro para São Paulo, ficando por quase um mês enfurnada na casa de Pena Malta, um militante do partido que morava no Alto de Perdizes. Um relatório do serviço reservado do DOPS, do mesmo período, dá conta de que Pomar teria viajado para a capital paulista acompanhado de Milton Torelly, “possível parente do Barão de Itararé”, o que não estava muito longe da verdade.

Em Porto Alegre, Pomar e a família foram morar numa casa de estilo califor-niano, com um cinturão de pedras sobre o qual se erguiam as paredes de madeira, na rua Belém, no bairro Teresópolis, quase no final da linha do bonde. Era uma rua de terra, com a maioria das casas construídas de madeira, que demandava o morro Santa Teresa. A meio caminho ficava o Clube Recreativo Teresópolis e, a partir da casa onde Pomar e a família foram morar, sob o disfarce social de comerciantes vindos de Itajaí, em Santa Catarina, havia uma chácara e terrenos baldios que se su-cediam até o final e permitiam o acesso ao alto do morro através de trilhas diversas.

O sotaque das crianças e de Catharina eram mais para o carioca, mas os cabelos aloirado e ruivo dos garotos mais velhos ajudavam a passar a história de sua procedência catarinense, embora sequer conhecessem Itajaí e tivessem que aprender às pressas nomes de localidades como Camboriú, Tubarão, Blumenau, Brusque e Navegantes.

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Pomar aproveitou o semiostracismo a que foi jogado para estar mais com a família e dedicar-se com mais afinco ao estudo. Embora nunca houvesse aban-donado de todo suas leituras, desde que fugira da cadeia em Belém não pudera realizar um estudo sistemático do marxismo, nem do Brasil, nem da cultura legada pelo passado da humanidade. Decidiu superar em parte essa deficiência, começan-do pela literatura gaúcha. Achava impossível realizar qualquer trabalho político sério no Estado sem entender a cultura própria do seu povo, sem apreender as raízes de que ela se nutria e conhecer o significado de sua linguagem específica.

leu os Contos Gauchescos e as Lendas do Sul, de João Simões lopes Neto, varou pelos romances de Érico Verissímo, releu Dyonélio Machado, apreciou os poemas de lila Ripoll e os trabalhos de Carlos Scliar e de outros intelectuais gaú-chos, ao mesmo tempo que mergulhava na leitura de todos os livros e documentos sobre a história do Rio grande do Sul, incluindo discursos de Vargas, textos escri-tos por Osvaldo Aranha, lindolfo Collor e João Neves, sem deixar de lado Borges de Medeiros e os versos sobre Antonio Chimango. Isso tudo o levou, também, a espraiar-se pelas culturas uruguaia e argentina, cuja influência era marcante no estado, deliciando-se principalmente com o Martin Fierro, de José Hernandez.

Talvez tenha sido essa a primeira ocasião, em muitos anos, em que Pomar pôde se dedicar a estudar O Capital, numa grossa edição argentina, e ler com me-nos pressa outras obras dos dois pensadores que formularam o socialismo como ciência. Se antes já era claro para ele que o entendimento científico só era possível por meio da construção de uma base cultural relativamente sólida, as leituras e os estudos de então só fizeram com que cristalizasse esse pensamento.

Decidiu-se, então, enfrentar a leitura de Hegel como se estivesse enfren-tando uma esfinge indecifrável, de modo a compreender melhor a principal obra de Marx. No final, mesmo achando intolerável o estilo hegeliano, saiu com uma razoável compreensão do papel do filósofo alemão e de sua obra na elaboração do pensamento marxista e, em especial, na elaboração do método de investigação utilizado em O Capital.

Os contatos com Carlos Scliar, lila Ripoll e outros intelectuais gaúchos lhe propiciavam não só acesso a livros, que lia avidamente, como se quisesse recupe-rar o tempo perdido, mas principalmente manter-se atualizado com a produção cultural do estado e do país. Eles constituíam um grupo de pensadores preocupa-dos com os rumos do país e do partido, especialmente culturais, cuja inquietude Pomar procurava suprir estimulando sua livre produção intelectual. Foi por inter-médio deles que, pela primeira vez, tomou contato, por meio de uma edição em francês, com os textos políticos, filosóficos e militares de Mao Zedong, que dirigira a Revolução Chinesa.

Aproveitou para ler ou reler todos os textos de lênin e de Stálin que pôde encontrar. Mas, já então, não colocava os dois no mesmo patamar. Quanto mais

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reconstruía sua cultura e ampliava seus horizontes, confrontando seu pensamento com os desafios da realidade, mais comentários fazia sobre a capacidade de divul-gador, popularizador e organizador de Stálin, em contraste com a capacidade te-órica e política de lênin. Também admirava os romances soviéticos, como os de Ilya Eremburg e Mikhail Chokolov, e dos franceses mais modernos, como Romain Rolland, Paul Eluard e louis Aragon, mas sempre fazia distinção entre esses textos e os clássicos, como chamava aqueles autores e obras com consistência universalista.

Foi ainda nessa ocasião que pôde voltar a eles. Releu Dickens (ria à solta com as trapalhadas de Mister Pickwick), Cervantes, Eça, Shakespeare, Dostoievski, Bal-zac, goethe e os gregos, em especial Aristóteles. Dessas leituras, voltou a impressio-nar-se, em particular, com Shakespeare e goethe. Não se cansava de admirar como eram atuais os dramas do bardo inglês e como eram universais os sentimentos e paixões humanos que ele retratava. Quando estava lendo em casa, a todo momento chamava quem estava perto, Catharina ou um dos filhos, para ler e comentar os trechos que considerava mais interessantes, hábito que conservou por toda a vida.

Para ele, os comunistas não poderiam estar imunes aos sentimentos e pai-xões que tornavam todos os homens muito mais complexos do que a simples divisão entre bons e maus. Só desse modo se poderia entender que homens politi-camente reacionários, como Balzac, ou até mesquinhos, como Chokolov, pudes-sem ter a grandeza de produzir obras literárias de alto valor. De todas, porém, foi Fausto, de goethe, que mais o impactou.

Repetia amiúde que apreendera muito pouco dele nas leituras anteriores. Acabou por comprar uma edição espanhola, em formato compacto, que volta e meia consultava, fazendo anotações nas margens e, a todo momento, chamando pela atenção dos seus para os trechos que considerava mais claramente realistas e dialéticos na obra do grande pensador alemão. Para Pomar, goethe conseguira condensar naquela obra todas as contradições humanas, com uma incomum visão de futuro. E adorava tomar como bordões, para comentar a vida cotidiana, várias das frases do poeta, a exemplo de “Cinza é toda teoria, verde é a árvore da vida”, “O que se ignora é o que mais falta faz”, “Vivem-se duas almas”, “No início era a ação”, “Entre homens sentirás ser homem”, “Nunca estás só com o povo miúdo”, “Toda a miséria humana me oprime”.

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14 NOSSAS AçÕES NOS OBSTRUEM

O CURSO DA VIDA

Mas, já, enquanto assim o retifico,Diz-me algo que tampouco nisso fico,

Do espírito me vale a direção,E escrevo em paz: Era no início a Ação!

J. W. goethe (Fausto)

1976, São Paulo: dezembro, noite do dia 12, madrugada do dia 13 1951-1954, Rio Grande do Sul e São Paulo: desinformações

Mário foi dormir por volta das 21 horas. Estava cansado e não havia ra-zão para continuar segurando o sono. Os demais ainda ficaram na sala, lendo ou conversando em voz baixa, e ele caiu rapidamente no sono. Acordou, porém, ou teve a impressão de haver acordado, em plena madrugada. Ficou com preguiça de levantar para ver as horas, mas sentiu que o sono havia se esgotado. Sem qualquer resistência, deixou-se então transportar para as lembranças do Rio grande do Sul.

Não fora um tempo apenas de leituras e estudos. As atividades práticas, embora menos intensas do que nos dez anos anteriores, continuavam exigindo sua presença e sua participação. A linha traçada pelo Manifesto de Agosto de 1950 era a diretriz básica a ser seguida pelo partido. Pomar dava-se conta de que, da mesma forma que as linhas anteriores, a nova orientação partidária, além de misturar tá-tica com estratégia, embaralhava sentimentos corretos com proposições incorretas e, às vezes, num mesmo parágrafo, continha visões direitistas e esquerdistas confli-tantes, talvez supondo alcançar com isso a unidade dos contrários.

O instrumento estratégico proposto pelo Manifesto era uma frente demo-crática de libertação nacional, cuja meta consistia em substituir a ditadura feudal--burguesa, serviçal do imperialismo, por um governo revolucionário, democrático e popular, sob a direção do proletariado. Essa frente democrática de libertação nacional deveria ser uma união de todos, democratas e patriotas, acima de diferen-ças religiosas e ideológicas, pela paz e contra a guerra, pela libertação imediata do

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jugo imperialista, pela entrega da terra a quem a trabalhava, pelo desenvolvimento independente da economia nacional, pelas liberdades democráticas, pela melhora das condições de vida dos trabalhadores e por instrução e cultura para todos.

O Manifesto revivia, assim, sob uma nova terminologia e com metas exclu-sivistas, a mesma união nacional que o partido aplicara durante a guerra contra o nazifascismo e tentara levar adiante no período da legalidade. Do ponto de vista social, suas bandeiras eram humanistas e eminentemente burguesas, sendo a di-reção do proletariado a única pitada socialista prevista. Era com base nessa linha que o PCB se jogaria na campanha pelo monopólio estatal do petróleo, contra a participação brasileira na guerra da Coreia, pela paz mundial e contra a carestia. Era também com base nessa linha política que o PCB se esforçava ao máximo para continuar participando da “legalidade burguesa”, seja apresentando candida-tos comunistas sob outras siglas partidárias, a exemplo de Roberto Morena, eleito deputado federal pelo PST, seja mantendo seus jornais e revistas legais.

Para dar um verniz revolucionário e de esquerda a uma política cujo conteúdo era direitista em termos marxistas, o PCB desenvolvia uma prática ideológica extremamente sectária, atacando os aliados que considerava vaci-lantes. À crítica de Domingos Velasco, do PSB, por não terem previsto a onda reacionária de 1947, os comunistas responderam chamando-o de lacaio do imperialismo, tom idêntico ao utilizado por Osvaldo Peralva para acusar Carlos Drummond de Andrade de desvios burgueses e de ser um anticomunista rai-voso. Em março de 1949, os comunistas aceitaram realizar uma disputa baixa pela direção da Associação Brasileira de Escritores, ao mesmo tempo que os mi-litantes eram instruídos a evitar os sindicatos dirigidos por pelegos e a organizar associações profissionais e centros operários como novas formas de organização sindical independente dos trabalhadores.

O caso da nova política sindical foi exemplar. Partindo do fato de que as medidas repressivas adotadas desde o governo Dutra, como o decreto 9.070, a exi-gência de atestado de ideologia e a interferência direta do Ministério do Trabalho na vida dos sindicatos, impossibilitavam os sindicalistas comunistas de disputar as direções dos sindicatos oficiais e até mesmo dialogar com a maioria dos dirigentes sindicais, que haviam se tornado anticomunistas para sobreviver, o Secretariado Nacional do PCB concluíra ser um erro atuar dentro desses sindicatos.

Já antes de 1950, Roberto Morena assegurava que os sindicatos podiam viver exclusivamente das contribuições voluntárias de seus associados e lançara, por orientação da direção partidária, uma campanha contra o imposto sindical. João Amazonas, membro do Secretariado Nacional do PCB, também afirmava em artigo na Imprensa Popular que os trabalhadores não tinham interesse em manter sindicatos como os existentes, em muitos casos arapucas para roubalheiras e poli-ciamento. Diante de sindicatos que haviam se transformado em instrumentos de

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dominação de classe, seria necessário que os trabalhadores construíssem organiza-ções de classe livres e independentes.

É verdade que Amazonas acrescentou que isso não implicava, necessaria-mente, o abandono dos sindicatos oficiais, “quanto mais não seja para desmascarar os traidores e apontar às massas o caminho a seguir”. Mas esta ressalva não modi-ficou a essência da nova linha sindical, que priorizava a construção de sindicatos paralelos, vermelhos, com uma clara conotação ideológica.

Mesmo a tentativa de grabois, no seu informe sindical e de massas de maio de 1949, de detalhar a importância das comissões de fábrica, em comparação com as associações e sindicatos paralelos, só aparentemente representa uma mudança em relação à orientação sindical. Ela mantém inalterada a linha de tomar as greves como “principal arma do proletariado nas atuais circunstâncias para conquistar suas reivindicações políticas e econômicas”. Não por acaso a reivindicação política vem em primeiro lugar e as greves transfiguram-se em tarefa central.

Esse enrijecimento ideológico na atuação entre os intelectuais e nos sin-dicatos era complementado por uma tática que tomava o novo governo Vargas, iniciado em 1951, como a expressão da ditadura feudal-burguesa serviçal do im-perialismo. Tomando-o como o inimigo principal a ser combatido, o PCB su-punha resolver os problemas delineados em sua estratégia mediante a derrubada de Vargas. Desconsiderava as contradições então em jogo, a existência de outras forças no cenário político, como as que o brigadeiro Eduardo gomes e Cristiano Machado haviam representado nas eleições presidenciais, e sequer avaliava as con-dições em que Vargas voltara ao governo. Afinal, o PCB adotara o voto em branco, acusando Vargas de ser agente do imperialismo, embora muitos de seus militantes houvessem votado no velho caudilho.

A situação era, então, muito diferente daquela com a qual Vargas se defron-tara nos anos 1930. De cara, os Estados Unidos exigiam do governo brasileiro uma posição externa clara de compromisso com sua política de guerra, incluindo o envio de tropas à Coreia. Depois, os países imperialistas estavam mudando seu padrão de exportação de capitais, pressionando o governo brasileiro a abrir mais as portas aos investimentos de suas empresas, garantir a infraestrutura necessária e permitir o repatriamento livre dos lucros das empresas estrangeiras.

Os capitais das grandes potências industriais não desejavam mais apenas explorar matérias-primas minerais e agrícolas para seus parques industriais, mas sim instalar parques industriais nos países subdesenvolvidos, de modo a tirar proveito dos custos baixos das matérias-primas e da força de trabalho. Esse novo padrão de exploração imperialista não tinha no ex-ditador o principal defensor. Quem o defendia era a UDN, que realizava uma oposição muito ativa pela direita, tomando como pretexto o passado ditatorial de Vargas e como bandeira as denúncias de corrupção.

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Essas pretensões imperialistas chocavam-se não só com as lutas dissemi-nadas dos trabalhadores brasileiros, principalmente por salários, contra a cares-tia e pela aplicação dos direitos assegurados na ClT, como com uma campanha nacionalista de vulto em defesa do petróleo. Esta acabou unificando comunis-tas, socialistas e nacionalistas de esquerda e de direita em torno da proposta de monopólio estatal, feita pelo general Horta Barbosa. Vargas debatia-se, assim, contra adversários pela direita e pela esquerda, ao mesmo tempo que procurava reeditar uma política que preservasse os interesses nacionais no novo pacto de dominação pretendido pelo imperialismo.

Não via saída senão abrir mais as portas à penetração dos capitais estrangei-ros, que aumentariam sua participação no bolo da economia brasileira, mas que-ria garantir uma participação mais equilibrada dos capitais estatais e dos capitais privados nativos, além de conservar a participação dos latifundiários. Os Estados Unidos, porém, não confiavam em Vargas, discordavam de seus pruridos naciona-listas e opunham-se a seus esforços para manter seu prestígio entre os trabalhado-res e as massas pobres, numa impressionante coincidência com os sentimentos que a UDN transformara em luta política.

Talvez o próprio Vargas não se tenha dado conta de que o momento era outro. O fato é que não conseguia realizar uma política clara de combate à carestia e aos baixos salários, fazendo aflorar os descontentamentos que empurravam os segmentos populares para a luta econômica. Também não apontava com nitidez qualquer desejo de realizar alianças pela esquerda para enfrentar a direita e as pre-tensões imperialistas. Seu governo se transformou num rio sinuoso, incapaz de ter um rumo definido, ainda por cima minado por incontáveis túneis de corrupção.

É nesse contexto que Pomar, sob o nome de guerra Ângelo, passa a atuar no Rio grande do Sul, onde então se multiplicavam as greves dos mineiros e de outros setores operários e os protestos dispersos contra os preços elevados dos gêneros alimentícios. Ele encontra lá a predominância de dois dos PCs que há muito conviviam no partido, mesclando-se, separando-se, andando paralelos ou em sentidos contrários.

Um, relativamente claro, aquele que seguia religiosamente a orientação da direção, que no momento era de arrancar greves e lutas de qualquer maneira, sem levar em conta as condições concretas das classes e do povo. Outro, difuso e espraiado, subdividindo-se em miríades de opiniões, aproveitando-se consciente ou inconscientemente das ambiguidades dos textos da direção, procurava organi-zar os trabalhadores urbanos e os assalariados rurais, os camponeses e as camadas populares dos campos e das cidades e incentivar lutas a partir de suas próprias condições e expectativas.

Enquanto o primeiro supunha que deixara de existir a possibilidade para a democracia no Brasil e não dava atenção à participação política nas instituições

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existentes, o outro procurava aproveitar todas as brechas possíveis nessas insti-tuições para ampliar os espaços democráticos e levar o povo a participar desse processo. Pomar chegou ao Rio grande do Sul justamente no momento em que acabara de ocorrer um choque entre os dois informais partidos, correntes ou fra-ções internas, o primeiro tendo à frente José Maria Crispim e Coutinho, ou Hen-rique, que procuraram aplicar a ferro e fogo a linha definida no Manifesto de 1950 e deflagrar a revolução no berro ideológico, e o outro sem cabeça aparente, mas materializando-se na resistência difusa contra as ordens emanadas dos dirigentes considerados ultrassectários, mandonistas e autossuficientes.

A ação de Crispim e Coutinho, associando o insucesso das greves por decre-to à falta de coragem política, fez com que o PC do cumprimento férreo das deci-sões de cima se recolhesse diante dos fracassos e resistências encontradas, abrindo campo para uma atuação política mais equilibrada. Pomar pôde então organizar com mais tranquilidade as campanhas de coleta de assinaturas em prol da paz mundial e, com base na evidente insatisfação com a carestia, orientar uma das campanhas mais interessantes do período.

Durante quase todo o mês de julho de 1952, milhares de panfletos com os dizeres “6, o que será?” foram distribuídos com certa liberdade por toda parte. Parecia mais uma promoção comercial do que qualquer outra coisa. Do dia 1º de agosto em diante, novos panfletos, chamando o povo a parar todas as atividades no dia 6, em protesto contra a carestia e pelo preço da carne a 6 cruzeiros, inundaram o Estado antes que a polícia pudesse fazer alguma coisa. Houve uma paralisação geral de protesto, em todo o Estado, contra o preço da carne.

Porém, enquanto no dia 7 o Diário de Notícias, de Porto Alegre, noticiava que a greve falhara, o Correio do Povo viu-se obrigado a reconhecer que a capital do Estado vivera “horas de inquietação”, com a concentração em frente ao edifício da Câmara Municipal, onde se reuniu “considerável massa”, conduzindo cartazes e faixas alusivas ao alto custo de vida. Ainda segundo esse jornal, os “manifestan-tes se concentraram na frente do edifício da Administração do Porto, onde fez-se ouvir o jornalista comunista Plínio Cabral, que criticou as autoridades pela alta do custo de vida”.

O secretário do Interior do governo estadual, Egídio Michaelsen, tam-bém falou, prometendo soltar os manifestantes presos, desde que os presentes se dispersassem logo após, e integrar uma comissão para se avistar com a direção do Instituto de Carnes. Falou ainda o ex-vereador comunista Eloy Martins, referindo-se às dificuldades do momento e “às plataformas políticas que não eram cumpridas”. Além da crise da carne, o Rio grande do Sul também vivia crises de água, energia, madeira, lã, leite etc. No dia 10 de agosto entrou em vigor nova tabela da carne, representando uma vitória do movimento popular e dando novo ânimo à ação partidária de massa.

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No resto do país, porém, a dicotomia entre os dois principais PCs se acirra-va, tendo como fulcro o Manifesto de Agosto. O Pleno do Comitê Central de abril de 1951 ainda avaliou que a fraca adesão aos sindicatos paralelos estava associada à fraqueza ideológica – um reconhecimento tácito de que a questão sindical havia sido elevada erroneamente ao nível da ideologia. Por outro lado, os “revolucioná-rios a qualquer custo”, como Crispim, exigiam o cumprimento estrito das diretivas do Manifesto de Agosto e voltaram-se contra o Comitê Central e o Secretariado Nacional por sua frouxidão no cumprimento do que haviam decidido.

Ironia das ironias, a Comissão Executiva e o Comitê Central se veem na contingência de expulsar Crispim, “por atividades fracionistas”, ao mesmo tempo que, na reunião de julho de 1952, criticam o sectarismo do Manifesto de Agosto e modificam a linha sindical, tomando como base não a resistência e a experiência de dupla militância sindical dos comunistas de base e das direções intermediárias, mas a “lição de Stálin”, para quem o simples operário via nos sindicatos, sejam bons ou maus, baluartes que o ajudavam a defender o salário e a jornada.

A mesma direção que elaborara os manifestos de 1948 e 1950 jogava sobre alguns dirigentes mais realistas do que o rei a responsabilidade pelos erros decor-rentes da orientação política, expelia-os brutalmente da organização partidária, e anunciava que fora buscar no guia genial dos povos a lição para corrigir os erros.

Na prática, foram os operários e a militância os que forçaram a direção do PCB a reconhecer, então, o papel dos sindicatos como organizações de massa e não como organizações de militantes revolucionários.

Primeiro, havia o fato histórico de que muitos sindicatos tinham sido criados pelos comunistas, juntamente ou não com os anarquistas, numa época em que a simples caracterização de sindicalista ou a presença numa assembleia sindical significavam atos de coragem, mesmo não sendo comunistas. Depois, os sindicatos haviam sido sempre, mesmo quando estavam sob a direção de trabalhadores sem ideologia ou sem política clara, ou mesmo sob os pelegos, um celeiro de formação de novos militantes comunistas, ao colocar os ativistas sindicais em confronto prático com a exploração capitalista. E havia ainda o fato irretorquível de que nos sindicatos oficiais estava a maior parte da massa de trabalhadores, o que funcionava como um ímã irresistível para a militância que pretendia realmente fazer mobilização de massas.

Assim, enquanto o PC dos sindicatos paralelos e das greves de apito se esforçava para aplicar a linha por meio da ação isolada de militantes abnegados, que acabavam aparecendo como tresloucados irresponsáveis, o PC do trabalho de massas também dizia esforçar-se para a aplicação da linha mediante a orga-nização de células de empresas e a formação de comissões de fábrica, dos mais diferentes tipos. É com base nessa organização de base por local de trabalho, a mesma experiência exitosa de 1942 a 1945, que os ferroviários e tecelões paulis-

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tas desencadearam as primeiras lutas operárias de envergadura, após a cassação dos parlamentares comunistas.

É também com base nesse tipo de organização que a União dos Bancários de São Paulo, em 1950, lançou uma chapa e conquistou a direção do sindicato com um programa audacioso de autonomia e liberdade sindicais, abolição do im-posto sindical e do decreto 9.070, e fim do atestado de ideologia e da interferência do Ministério do Trabalho no sindicato.

O ajuste da política partidária no âmbito sindical coincidiu com a ofensiva patronal contra conquistas anteriores dos trabalhadores, a pretexto da crise e do ra-cionamento de energia. Os empresários pretendiam anular a conquista do descan-so semanal remunerado, utilizando a cláusula de assiduidade integral. Os órgãos legais da imprensa do PCB tornaram-se os porta-vozes das reclamações operárias e firmes defensores das lutas e greves dos trabalhadores, exigindo participação ativa dos sindicatos contra as manobras patronais.

As pequenas lutas se multiplicaram e criaram um clima intenso de com-bate entre operários e patrões, entre as bases e as direções sindicais e, como não poderia deixar de ser, entre os dois principais partidos dentro do PCB. Elas culminaram, por um lado, na tentativa empresarial de extinguir os dispositivos da ClT que determinavam o pagamento extra por trabalho aos domingos e à noite e, por outro, nas mudanças internas na política do PCB, embora ofi-cialmente o Manifesto de Agosto de 1950 tenha vigorado até o IV Congresso, em 1954, e a verdadeira causa e a natureza dessas mudanças jamais tenha sido explicitada para a militância.

De qualquer modo, os comunistas tentavam se ajustar ao crescimento das reivindicações e lutas operárias e populares e colocar sua linha a serviço da classe que procuravam representar. A curta experiência de Pomar no Rio grande do Sul e seu histórico de trabalho de construção partidária e operária em São Paulo le-varam o Secretariado Nacional a considerar seriamente sua transferência para esse Estado, onde era maior a concentração industrial e operária e onde as possibilida-des de grandes lutas operárias apareciam com mais nitidez.

A essa altura, Catharina havia dado à luz o quarto filho do casal, Carlos, em Porto Alegre, enquanto o mais velho, já com quinze anos, mudara-se para São Paulo e estava trabalhando na metalúrgica Arno, no Cambuci. No início de 1953, Pomar foi destacado para integrar um comitê especial, diretamente ligado ao secretariado nacional, para dirigir as articulações relacionadas com a campanha pela Prefeitura de São Paulo e a preparação do movimento grevista em maturação. O trabalho de base do PCB, concentrado principalmente nas grandes empresas industriais, colocara seus militantes à frente da maioria das comissões de salário das fábricas e em condições de disputar a direção do movimento operário com as diretorias sindicais, nem sempre propensas a ir à luta.

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O comitê especial, composto por Calil Chade, Moisés Vinhas e Pomar, rea-lizou ativos em que participaram os principais dirigentes de células das empresas, para conhecer o real espírito de luta dos trabalhadores, suas reivindicações concre-tas, seu grau de organização, a influência das comissões de fábrica e outros aspectos relacionados com a possível eclosão da greve. Desde o final de 1952, os informes vindos das fábricas apontavam para uma fermentação operária com vistas ao au-mento de salários. Isso era comum aos têxteis, metalúrgicos, gráficos, vidreiros e outros setores industriais da capital.

O problema, porém, não se restringia à possível eclosão de movimentos grevistas por reivindicações econômicas. Naquele momento, uma greve que en-volvesse várias categorias, como parecia ser o caso, se chocaria inevitavelmente com o Decreto antigreve nº 9.070, imposto por Dutra aos trabalhadores e que continuava em vigor, apesar das evidentes concessões de Vargas. Apesar de todos os seus defeitos, o partido não podia ignorar o conteúdo político que uma greve, nas condições em que ela se anunciava, comportaria.

É verdade que alguns dirigentes chegaram a enxergar a possibilidade de trans-formar a greve em movimento insurreicional, mas essa hipótese foi descartada com base nas informações das principais lideranças operárias. Pomar, que mantinha ainda muitas ligações antigas com essas lideranças, empenhou-se em ouvir mais sobre o verdadeiro nível alcançado pela organização dos trabalhadores dentro das fábricas, sobre a consciência que a massa operária possuía a respeito de suas próprias reivindi-cações e dos problemas que a greve implicava, de modo a ter uma ideia mais clara das possibilidades e dos limites da luta. Ele era de opinião que saber desencadear uma greve e saber pará-la eram dois momentos de suma importância para consolidar as forças acumuladas e evitar desgastes, mesmo na vitória e, principalmente, na derrota.

As lutas operárias e a campanha por aumento salarial, esta iniciada em janeiro de 1953, eram o pano de fundo da disputa pela Prefeitura paulistana. A candidatura Francisco Cardoso era apoiada pelo governador lucas Nogueira garcez e por um bloco partidário composto pelo PSP, PSD, UDN, PRP, PR e PRT. Contra o candidato oficialista corriam Ortiz Monteiro, apoiado pelo PTN e por uma dissidência do PTB, Jânio Quadros, apoiado pelo Partido De-mocrata-Cristão (PDC) e pelo PSB, e André Nunes Jr., pelo PST, na verdade a sigla sob a qual ainda se escondia o PCB.

André Nunes Jr. fora vereador pelo PSP, passara para o PTB e destacara-se por defender os comunistas publicamente. Seu programa tinha como pontos prin-cipais o combate ao envio de tropas brasileiras para a Coreia e ao Acordo Militar Brasil-Estados Unidos, a encampação da light, responsável pelo racionamento de energia, e obras de calçamento, esgotos, luz e água.

Jânio Quadros fora vereador e era, então, deputado estadual, despontando como líder carismático e populista. Ao mesmo tempo que defendia os trabalhado-

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res, os pobres e oprimidos, apresentava tendências messiânicas e flertava com a di-reita como salvador da pátria. Seus movimentos causavam, na esquerda, tanto sim-patias como aversões. Não tendo qualquer ligação com os vermelhos, ou por isso mesmo, conseguia muitas vezes expressar as propostas dos comunistas melhor do que eles mesmos ou seus aliados, o que se refletiu na campanha eleitoral. Embora os comunistas fossem a grande força organizadora e impulsionadora da campanha salarial de 1953, os trabalhadores enxergavam em Jânio, e não em André Nunes Jr., a expressão política das propostas econômicas esposadas pelos comunistas.

A arrogância e a intransigência patronal apenas serviram para atiçar a cam-panha salarial e a organização e disseminação das comissões de fábrica, mesmo naquelas empresas até então consideradas quase inexpugnáveis às atividades sindi-cais, como a Alpargatas. Em meados de março, a campanha dos trabalhadores já havia unificado as reivindicações por salários com as de congelamento de preços e fim da carestia, transbordando para as ruas. As passeatas da Panela Vazia ocupa-ram o centro de São Paulo, dando maior impulso às assembleias de empresa. Estas tendiam a declarar greve antes do momento adequado, precipitando os aconteci-mentos, como aconteceu no dia 11 de março, quando os 200 operários do lanifí-cio Santista decidiram cruzar os braços. Antonio Chamorro, líder têxtil, teve que interceder para que retornassem ao trabalho.

Paul Singer também conta que os metalúrgicos da Atlas pretendiam entrar em greve mais cedo, mas que o PCB manobrou, de forma “extremamente incor-reta”, para evitar o estouro da greve dos metalúrgicos antes dos têxteis. Naquelas condições, em que o movimento sindical estava manietado pelos decretos repres-sivos e o PCB estava na ilegalidade, é muito difícil dizer qual seria a maneira mais correta para fazer com que as greves de têxteis e metalúrgicos, as duas mais podero-sas categorias operárias da capital paulista, coincidissem. Este era o trabalho-chave desenvolvido pelo comitê especial: operar para que a greve fosse conjunta e tivesse peso de massa suficiente para derrotar a política salarial dos patrões e a política sindical do Estado patronal.

Na parte eleitoral de sua tarefa, o comitê especial amargou, no dia 22 de março, a derrota de uma insignificante votação no candidato apoiado pelo PCB, que obteve apenas cerca de 20 mil votos, enquanto Jânio vencia com uma votação esmagadora. Mas no dia 25 daquele mês, a assembleia dos tecelões no Clube Pirati-ninga, na Mooca, decretou a greve por 60% de aumento sobre os salários de janeiro de 1952. O forte esquema repressivo foi driblado pelos piquetes, de mais de dois mil participantes cada. Dos 96 mil tecelões da capital, 85 mil estavam em greve.

No dia 31 de março, os metalúrgicos já em greve realizaram uma assem-bleia em sua sede, no Centro, e saíram em passeata, sendo espadeirados pela ca-valaria da polícia. O sentimento de que aquilo era parte do batismo da luta, em lugar de amainar o ânimo grevista, açula-o, e no início de abril estão em greve

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não apenas os têxteis e metalúrgicos, mas também os vidreiros, os trabalhadores no mobiliário, nas malharias e bebidas e os gráficos. São 300 mil operários, em greve até o dia 23 de abril, portanto por 27 dias. Embora não tenha nominado seus participantes, Antônio Chamorro, líder dos tecelões, enfatizou que existia “um comando de greve”, na verdade um comando-sombra no qual Pomar teve papel destacado.

A greve dos 300 mil em São Paulo teve desdobramentos em todos os ter-renos. Os patrões viram-se obrigados a combinar repressão e abusos com uma Campanha pelo Rearmamento Moral, segundo eles, uma “chama de cordialidade, capaz de estabelecer as boas relações entre empregadores e empregados, seriamente abaladas com (...) as últimas conflagrações”. Embora tendo como pontos funda-mentais dessa campanha a honestidade, a pureza, o altruísmo e o amor, os patrões desencadearam uma ofensiva contra as lideranças grevistas e os trabalhadores, re-alizando dispensas, impedindo contratações de trabalhadores identificados como insufladores de greves e procurando não cumprir os acordos acertados. Em res-posta, os operários foram obrigados a realizar inúmeras paralisações parciais para consolidar suas conquistas.

Nesse meio tempo, ainda em 1953, Pomar teve um verdadeiro choque ao receber a notícia da morte de graciliano Ramos, de quem se tornara amigo e com o qual costumava ter longas conversas, na época em que eram quase vizinhos, entre 1948 e 1950, no leblon. Pomar achava que ele não entendia que o partido era fruto da sociedade na qual nascera, e que era nessa sociedade que deveriam ser procuradas as qualidades e os defeitos do partido, mas considerava isso completa-mente secundário na avaliação que tinha do literato. Considerava, de longe, gra-ciliano o maior escritor brasileiro contemporâneo, que conseguira dar dimensão universal a personagens e situações não apenas brasileiras, mas circunscritas à re-gião nordestina. Quem dera o Brasil tivesse mais alguns graças para dar a mesma dimensão aos diversos perfis de seu povo, costumava comentar.

No movimento sindical, como decorrência das lutas operárias de 1953, ha-viam surgido condições para formar o Pacto de Unidade Intersindical, realizar a I Conferência Nacional de lavradores e Trabalhadores Agrícolas e desencadear, em 1954, uma greve geral contra a carestia, que mobilizou mais de um milhão de trabalhadores. Na política, o PCB continuava tendo getúlio como inimigo principal, na prática fazendo aliança com a UDN e com os setores reacionários e imperialistas que desejavam derrubá-lo e instaurar no país uma ditadura militar.

No dia 24 de agosto de 1954, o mesmo dia em que Vargas suicidou-se, causando uma reação popular como poucas vezes o Brasil tinha assistido, a man-chete do jornal diário do partido no Rio de Janeiro, Imprensa Popular, foi “Abaixo o governo de traição nacional de Vargas”. Os mesmos trabalhadores que haviam seguido a orientação dos comunistas nas comissões de fábricas, nos comitês de

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morros e favelas, nas associações de bairro e em outras organizações populares, voltaram-se contra os jornais e contra militantes comunistas por sua oposição a Vargas e pelo suicídio deste. Contingentes enormes de favelados, no Rio de Janei-ro, desciam as ladeiras chorando o assassinato de seu “paizinho” – não acreditavam que ele houvesse se suicidado –, enquanto trabalhadores e populares depredavam o jornal comunista em Porto Alegre.

Um documento, escrito às pressas por Prestes e publicado menos de uma semana após esses acontecimentos, mudou radicalmente a orientação tática do partido, apelando para a aliança dos comunistas e trabalhistas contra os objetivos dos golpistas. De inimigos mortais e agentes da ditadura feudal-burguesa a serviço do imperialismo, os getulistas e trabalhistas foram transformados em aliados estra-tégicos para impedir a instauração da mesma ditadura.

Todos esses acontecimentos e zigue-zagues não impediram que o PCB reali-zasse seu IV Congresso em novembro de 1954. Segundo voz corrente no partido, o programa emanado desse congresso seria o primeiro com bases científicas, tendo inclusive contado com o beneplácito de Stálin, antes de sua morte, em março de 1953. Sendo impedido de ser discutido ou emendado pela militância, o programa reiterava o caráter semifeudal e semicolonial do Brasil, com seu regime de latifun-diários e grandes capitalistas, sob o jugo imperialista, que impedia o desenvolvi-mento de suas forças produtivas.

A partir dessa constatação, também reafirmava a velha ideia de que o pro-grama do PCB não só não ameaçava os interesses da burguesia nacional como defendia suas reivindicações de caráter progressista, em particular o desenvolvi-mento da indústria nacional. A revolução brasileira seria democrático-popular, de cunho anti-imperialista e agrária antifeudal, portanto com a participação ativa da burguesia nacional.

Nesse sentido, o IV Congresso só inovou em dois pontos. Primeiro, na forma como explicita, no programa, velhos conceitos do PCB sobre a revolução brasileira. Segundo, na cópia escrachada da nomenclatura dos órgãos dirigentes do Partido Comunista da União Soviética, fazendo com que a Comissão Execu-tiva passasse a se chamar presidium do Comitê Central. No mais, ele agravou a prática que se tornou comum após a legalidade de 1945 a 1947, de manipular desabridamente a participação nos órgãos dirigentes do Partido (o Congresso era, formalmente, seu órgão máximo), só permitindo a presença dos membros daquele PC que o secretariado não achava capaz de resistir às suas ordens ou, melhor, às ordens de Prestes.

leôncio Basbaum, Moisés Vinhas, gregório Bezerra e outros dirigentes e militantes contam em seus livros de memórias o que foi aquela manipulação. To-dos esses depoimentos, porém, no que se refere a Pomar, possuem um ponto ainda mais característico da desinformação e do desconhecimento sobre o que ocorria

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nos principais órgãos dirigentes do partido. Para quase todos eles, tudo o que acontecia no partido era de responsabilidade da mesma direção que fora sacramen-tada na III Conferência Nacional, em 1946.

Ao tratar da “grande farsa” do IV Congresso, Basbaum derrama sua amargu-ra contra os arrudas, grabois, pomares e marighellas que infestavam, como pulgas, a direção do partido, enquanto gregório Bezerra diz terem razão os comunistas que achavam ser necessária uma substituição nos quadros de direção nacional, pois eles violavam premeditadamente os estatutos, à mercê da vontade dos camaradas Arruda Câmara, grabois, João Amazonas e Pedro Pomar.

Era até admissível que, nas condições de clandestinidade, Basbaum, havia muito afastado das atividades de direção partidária, não estivesse a par das mo-dificações ocorridas na composição do secretariado e da Comissão Executiva do partido. Mas gregório Bezerra, não só um dos líderes históricos como um dos principais dirigentes do partido em Pernambuco, desconhecia que o Secretaria-do, na verdade o órgão mais poderoso da estrutura partidária, era então formado por Prestes, Arruda, Amazonas, grabois e Sérgio Holmos. E ignorava que Pomar, desde 1950, fora defenestrado do Secretariado e da Comissão Executiva nacional, sendo transformado num quadro intermediário estadual, embora capaz de realizar tarefas como a do comitê especial da greve de 1953, em que sua experiência não poderia ser apagada.

Além disso, Pomar não estava no Brasil, seja durante os acontecimentos anteriores e posteriores ao suicídio de Vargas, seja durante o IV Congresso. Se gregório foi afastado do evento de forma explícita, Pomar foi afastado sutilmente, ao ser enviado para fazer um curso em Moscou.

Depois de participar dos acontecimentos grevistas em São Paulo, Pomar mudou-se com a família para o Rio de Janeiro, no final de 1953, já na perspectiva de passar mais de um ano afastado dos seus. Instalou Catharina, Eduardo, Joran e Carlos na rua Pedro Álvares Cabral, no Caxambi, entre os bairros do Méier e Ma-ria da graça, e viajou para Moscou, antes mesmo de o filho mais velho juntar-se à mãe e aos irmãos, para apoiá-los durante o período que o pai passaria no exterior.

Durante todo o ano de 1954, Catharina manteve-se quase isolada. Quando precisava de alguma coisa ou tinha problemas mais sérios a resolver, mandava o filho mais velho procurar Zacharias Sá Carvalho na antiga e aparentemente ina-movível Fração Parlamentar, ainda funcionando no edifício Rio Branco. Era por intermédio dele que recebia, também, as cartas que Pomar enviava quando havia alguém do partido que viajava à União Soviética.

Enquanto isso ocorria, a polícia política parecia haver perdido as pegadas de Pomar, embora o DOPS de Porto Alegre talvez tenha farejado tardiamente sua presença no estado. Correspondência de seu diretor, delegado Henrique Henkin, datada de 28 de julho de 1953, pedia informações sobre ele ao DOPS de São

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Paulo. Recebeu do delegado auxiliar deste, Manuel Ribeiro da Cruz, uma resposta apenas burocrática, catalogada sob a referência SS-40/331: Pedro Ventura Felippe de Araújo Pomar era ex-deputado federal comunista, possuidor do título eleitoral nº 7.739, da 5ª Zona Eleitoral, filho de Felipe Cossio Thomaz (sic) e Rosa de Araújo Pomar, tendo residido em São Paulo, em 1945.

Entretanto, em dezembro de 1954, um informante da polícia denunciou que na fazenda Pau D’Alho, do coronel Amâncio Siqueira Campos, reuniam-se eminentes membros do PCB, tendo Pedro Pomar estado lá recentemente e, pos-sivelmente, também luís Carlos Prestes. O informante pedia cautela na investi-gação, pois o coronel Amâncio era homem desconfiado, tendo como elementos de ligação os engenheiros Antônio gomes lena e Portela, da estrada de rodagem, além de possuir na fazenda duas metralhadoras e outras armas automáticas.

Assim, não eram somente os dirigentes fora da Comissão Executiva do PCB que ignoravam a situação e as andanças de Pomar – que só retornou ao Brasil no primeiro semestre de 1955.

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15 HÁS DE SABER VIVER, ASSIM QUE

EM TI CONFIARES

A multidão vacila na incerteza, Depois flui aonde a arrasta a correnteza.

J. W. goethe (Fausto)

1976, São Paulo: dezembro, manhã do dia 13 1955, Rio de Janeiro: retorno do frio

Mário acordou cedo, fez as necessidades matinais, tomou um banho, mas não se importou com o cafezinho. Preferiu rever suas anotações e preparar seu esquema para o final da discussão sobre o Araguaia, na parte da manhã. Só foi quebrar o jejum quando a maioria já havia comido. Mara estranhou sua demora.

– Tu estás bem? Hoje o cafezinho é meu, não adianta reclamar. Mário riu. – Não, não vou reclamar. Precisava fazer algumas anotações antes de a reu-

nião recomeçar. Só isso. Enquanto comia, pensava em Catharina. Sem estar em casa, ninguém lhe

levaria o cafezinho na cama, como costumava fazer. Carlinhos estaria lavando a louça para a mãe? Ou ela é que estaria à pia, evitando que o filho fizesse o trabalho por ela? Preocupava-se com essa ideia. O médico recomendara repouso absoluto, mas ela era bem capaz de estar se movimentando.

Quando retornou à sala, os demais já estavam a postos. – Bem, da rodada anterior falta apenas eu. Acho que ainda vamos voltar a

discutir o assunto na reunião do Comitê Central. E vamos ter que encaminhar alguns problemas de organização, uma parte pela manhã e outra à tarde. Alguma outra sugestão?

Ninguém se manifestou. Mário começou então dizendo que gostaria apenas de repisar alguns aspectos do que já escrevera para a apreciação dos camaradas. Compreendia a demora em tirar as lições da luta guerrilheira, em vista das con-

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dições de dura clandestinidade e repressão e, também, das próprias debilidades e da inexperiência do partido nesse tipo de luta. Entretanto, acrescentou, não existe outra maneira de ficar à altura dos deveres que nos impusemos, a não ser empre-endendo a avaliação crítica e autocrítica dessa luta.

Reiterou a necessidade de tomar como ponto de partida o informe de Jota e, com base na capacidade de cada um, apreciar o significado do sacrifício dos que su-cumbiram no Araguaia. Rememorou o quanto tem sido difícil, no Brasil, determinar o caminho revolucionário. Este caminho, acrescentou, havia se tornado a pedra de toque não só dos marxistas-leninistas, mas de diferentes forças revolucionárias. Sabia que era polêmico considerar outras forças revolucionárias buscando livrar o povo bra-sileiro da exploração e da opressão, mas essa era sua opinião. E também tinha cons-ciência de que em torno do caminho, da concepção e dos métodos da luta armada sempre surgiram grandes divergências. Afinal, lembrou, foi em face da luta armada e da maneira de concretizá-la que havia se dado o rompimento com Prestes e que o partido se distinguira de outros agrupamentos revolucionários.

Ressaltou os aspectos que considerava positivos na experiência do Araguaia: a decisão de implantar no interior camaradas dispostos a suportar todos os sa-crifícios, a fim de preparar e desencadear a luta armada; o devotamento desses camaradas e o heroísmo de que efetivamente deram provas, devotamento e he-roísmo que merecem a justa valorização e são motivo de orgulho para o partido; a área escolhida, apesar da baixíssima densidade demográfica e de não possuir tradição política nem organizativa de massa, era propícia à estratégia de defesa; o empenho em conquistar as massas, organizando-as na UlDP com um programa que continha as reivindicações mais sentidas dos moradores da região e que fazia propaganda das ideias de liberdade, independência nacional e união do povo para derrubar a ditadura militar-fascista.

A luta guerrilheira do Araguaia, continuou Mário, ao procurar interpretar os anseios de amplas forças sociais e políticas, foi uma tentativa heroica para criar uma base política e dar continuidade ao processo revolucionário. Não obstante, como avaliar seu significado? Qual de fato seu alcance histórico? Deu o resultado que dela se esperava? Compensou o sacrifício dos camaradas que lá morreram, dos melhores que contávamos?

Não há dúvida de que ela teve o valor de uma iniciativa histórica, prosse-guiu, um esforço abnegado, de sangue, para abrir caminho ao impasse que o país vive. Entretanto, é preciso reconhecer a dura realidade de que a luta iniciada em 12 de abril de 1972 deixara de existir como forma organizada em fins de 1973 ou princípios de 1974.

Ao evocar esses fatos, emocionou-se. A terceira campanha do inimigo conse-guira, em menos de três meses, dispersar os destacamentos guerrilheiros, dizimar a maior parte dos combatentes e atingir e desmantelar a Comissão Militar, sem que se

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saiba quantos sobreviveram, ou se sobreviveram. Essa situação o deixava consterna-do. Há dois anos, o Comitê Central e o partido se achavam em compasso de espera, na esperança de que algo viesse desfazer as dúvidas sobre o destino dos camaradas. Jota e Cid reconheciam que desde fevereiro de 1974 estavam sem notícias e que a úl-tima informação que receberam, de Mané, supunha que havia um núcleo internado.

– Acontece que desse período para cá, frisou, as Forças Armadas se retiraram da área e não houve qualquer tentativa de contato. Mesmo assim, Jota julga que a guerrilha sofreu uma derrota, mas temporária, e supõe ser possível retomar a luta. Ele, porém, não tem razão. A derrota do Araguaia não pode ser considerada temporária. Não há como fugir da amarga constatação de que, ao cessar a resistên-cia organizada, ao não alcançar nenhum dos objetivos que se propôs, apesar dos resultados positivos apresentados, a guerrilha sofreu uma derrota completa.

– Infelizmente, acrescentou, o Comitê Central tem que aceitar essa dura verdade. Mesmo que consigamos retomar o processo armado iniciado em 1972, o lapso ter-se-á tornado tão grande, as condições se apresentam de tal modo dis-tintas, e haverá tantos outros fatores novos, que essa retomada não será no mesmo nível nem se identificará com o processo anterior, embora os personagens possam ser os mesmos – mata, massas, partido e tropas inimigas.

Que causas foram responsáveis pela nossa derrota?, perguntou Mário, ao mesmo tempo que recordou a avaliação de Jota a respeito, assim como a concep-ção geral que presidiu a preparação e a deflagração da luta armada. Tudo funda-mentava-se, sublinhou, na ideia de que o futuro do partido dependia do cumpri-mento dessa tarefa.

– Em princípios de 1971, quando a Comissão Militar julgou estar bem pró-ximo o momento da explosão da luta, ela propagou a imagem da mulher gestante que ao cabo de nove meses devia parir a criança.

Relembrou que, em função disso, o Comitê Central se reuniu e adotou medidas relacionadas ao desencadeamento da guerrilha a curto prazo, inclusive incumbindo a Comissão Militar de criar condições para instalar o resto da direção na área prioritária do Araguaia. A parte do Comitê Central nas cidades devia dar o máximo de apoio à área prioritária e as comunicações entre as duas direções dependiam exclusivamente da Comissão Militar.

– Toda a vida do partido ficou condicionada ao êxito da luta que se prepa-rava no Araguaia e os motivos e as decisões políticas para o desencadeamento dessa luta também dependiam da Comissão Militar – continuou. E, ao ser atacada, em abril de 1972, o que fez a Comissão? Optou pela resistência de acordo com as con-cepções e objetivos há muito decididos, sem levar em consideração a conjuntura nacional de então, nada favorável.

Mário reiterou que a Comissão Militar decidiu concentrar as forças e cen-tralizar o comando, desconsiderando outras opções, como a dos propagandistas

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armados, preconizada no documento guerra Popular. Ela tinha em mente dar início à luta armada por meio de uma ação de repercussão nacional, supondo que apenas as contradições sociais e políticas e as motivações locais respaldariam a ação nacional, servindo para atrair as massas e incoporá-las à luta.

– Isto não foi um erro tático, como supõe Jota, mas um erro estratégico, de princípio. E esse erro entrou em conflito com o problema fundamental de qualquer guerra, especialmente da guerra de guerrilhas, que é a sobrevivência e o desenvolvimento da mesma.

Elevava o tom da voz à medida que se empolgava ou se indignava, obrigan-do novamente à intervenção dos outros para voltar ao nível permitido na casa. Fez uma pequena pausa e continuou:

– A sobrevivência e o desenvolvimento da guerrilha dependiam da incorpo-ração das massas, de elas fazerem sua a causa, a bandeira da guerrilha. Nesse pro-cesso ocorrem fracassos, perdas, derrotas, mas pode-se avaliar seu resultado político pelo nível de incorporação das massas e seu apoio efetivo à luta. Ora, é exatamente com essa dificuldade que nos deparamos ao tratar da experiência do Araguaia.

Referiu-se aos próprios dados do informe de Jota para afirmar que o núme-ro de elementos de massa ganhos para a guerrilha foi insignificante e a atividade dos núcleos da UlDP não fora esclarecida, tudo levando a crer que a guerrilha se iniciou com um corpo a corpo dos comunistas contra as tropas da ditadura militar e assim continuou quase todo o tempo.

– Aí reside o maior erro, o mais negativo da experiência do Araguaia, pois a conquista política das massas não pode ser efetuada só depois da formação do grupo guerrilheiro. Tampouco este deve ser constituído única e exclusivamente de comunistas, mesmo que seja apenas no princípio.

Para Mário, os documentos e resoluções do partido eram cristalinos: a guer-ra popular é uma guerra de massas; a guerrilha é uma forma de luta de massas. Para iniciá-la, mesmo que a situação esteja madura, impõe-se que os combatentes tenham forjado sólidos vínculos com as massas. Sua preparação pressupõe o traba-lho político de massas. E os três aspectos – trabalho político de massas, construção do partido e luta armada – são inseparáveis e o partido, isto é, o político, é o pre-dominante destes aspectos. Numa palavra, o trabalho militar é tarefa de todos os comunistas e não apenas de especialistas.

– Então, acrescentou, a preliminar a esclarecer na senda da preparação da luta armada é a questão de se é ou não prioritária a formação da base política de massas. Não coloco o problema em si do movimento camponês, de efetivamente nos integrarmos nele para o desenvolvimento e a ampliação da luta pela terra. Apenas dou ênfase à preliminar de que se impõe realizar com antecedência um certo trabalho político de massas, a organização de um mínimo de partido e a conquista de alguma influência de nossas palavras de ordem.

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Este ponto de vista havia sido acusado de dogmático por alguns compa-nheiros, mas Mário o considerava o único capaz de corresponder à realidade.

– Aliás, qualquer grupo que tenha condições de constituir-se em destaca-mento armado, para depois ganhar as massas, com mais razão e facilidade poderá primeiro ganhar as massas, já que, como ensina a sabedoria popular, quem pode o mais, pode o menos.

Para ele, era uma questão crucial partir dos interesses das massas, utilizar to-das as formas de luta e levar as massas a tomar seu destino em suas próprias mãos.

– Não devemos achar, como os oportunistas de direita, que as massas por si mesmas, espontaneamente, devam, um dia, pegar em armas e se defender da violência reacionária. Nem adotar o princípio “esquerdista”, blanquista, foquista, de que são os comunistas que devem pegar em armas em lugar das massas.

Mário ainda repisou a necessidade de dar prioridade ao trabalho de massas e à construção do partido, de utilizar mais os critérios políticos, observar as exigên-cias da clandestinidade, combinando o trabalho legal com o ilegal e o aberto com o secreto. Achou que era possível pôr-se de acordo em alguns pontos básicos, para poder avançar, levando em conta a correlação de forças entre os fatores favoráveis e os desfavoráveis. Em especial, frisou, havia o fato de que o inimigo ainda se encon-trava relativamente forte, adquirira experiência e estava sobressaltado e temeroso de que surgissem novos desafios à sua prepotência, de que os conflitos no campo se alastrassem e de que nas cidades ocorressem explosões populares.

Um silêncio pesado acompanhou o final de sua exposição. O próprio Mário propôs, então, que se fizesse um intervalo para tomar café, antes de retomarem as discussões. Ficara claro que as divergências persistiam no mesmo ponto. De um lado, Cid, Jota e mais alguns continuavam achando que a experiência do Araguaia fora um esforço, com erros e acertos, para aplicar o caminho da guerra popular, conforme traçado no documento de 1969. Outros, com Mário à frente, afirmavam que aquela experiência rompera com as concepções básicas do documento guerra Popular e fora essencialmente foquista e blanquista. Havia um terceiro grupo que ficava no meio termo, embora aumentasse o número dos que concordavam cada vez mais com as apreciações de Mário. Como resolver essa situação sem causar pre-juízos ao partido, já enfraquecido ao limite com as perdas no Araguaia e as quedas nas cidades, se principalmente Cid permanecia irredutível em seus pontos de vista?

Era essa pergunta que povoava a mente dos membros da Comissão Execu-tiva. Ao retornarem, Mário sugeriu que a discussão sobre o Araguaia fosse transfe-rida para o âmbito do Comitê Central, sendo desnecessária uma terceira rodada, contra o que não houve nenhuma objeção. A partir de então, a reunião concen-trou-se nos problemas de organização, com Mário reiterando a necessidade de aplicar a linha estabelecida na reunião de fevereiro, cujo aspecto principal consistia em mergulhar no trabalho de massas e fingir-se de morto.

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Os militantes, acentuou, deveriam se voltar para os sindicatos e para os grupos de empresa, onde os houvesse, mesmo que fossem comissões de preven-ção de acidentes ou clubes de futebol, para ter acesso aos operários, conhecê-los, saber de suas queixas e aspirações e ter um quadro mais preciso do que estavam pensando a respeito de sua vida e da vida do país. Ao mesmo tempo, os comu-nistas deviam evitar qualquer panfletagem, qualquer ação que descobrisse sua condição partidária, qualquer movimento em falso que pudesse colocá-los em risco, bem como ao partido.

– Só devemos recrutar alguém para o partido quando houver certeza com-pleta sobre a integridade da pessoa em vista, de sua história no local em que tra-balha. Estamos lidando com um inimigo que não brinca em serviço, que é feroz e está disposto a liquidar o partido até o último homem e que já nos causou imensos prejuízos, não apenas prendendo militantes e dirigentes, mas matando-os. Repito que estamos condenados à morte e que nossa sobrevivência depende de sermos capazes de reconstruir o partido nessas difíceis condições em que fomos colocados.

Adicionou novos argumentos sobre essa política organizativa e fez um relato genérico das movimentações que começavam a ocorrer em vários sindicatos, com vistas à conquista das perdas salariais. Segundo ele, a classe operária industrial da grande São Paulo começara a sair da letargia e isso poderia resultar num movimen-to fundamental de oposição à ditadura. Então, o mergulho no trabalho de massas e o fingir-se de morto eram essenciais não apenas para salvaguardar o partido, mas para colocá-lo em condições de participar ativamente num possível ascenso do movimento operário.

Por outro lado, continuou, era imprescindível adotar formas de organização partidária que evitassem quedas em cadeia. As organizações de base não deveriam ter mais de três militantes e, se numa mesma empresa houvesse mais do que isso, seria recomendável ter duas ou mais organizações de base do partido, se possível uma desconhecendo as outras. Os contatos com elas deveriam ser verticalizados, e apenas com um de seus membros. Os dirigentes não deveriam conhecer todos os membros das organizações de base e vice-versa. E isto também era válido para os contatos e relações entre as direções intermediárias, de modo a reduzir os riscos de disseminação de quedas, se algum dirigente ou militante fosse preso.

Mário ilustrou essa necessidade com inúmeros casos, inclusive com os dos membros do Comitê Central que deveriam apreciar naquela reunião. Vicente, por exemplo, era um curioso compulsivo. Conhecia não só todos os dirigentes como a maioria dos militantes que estavam sob sua responsabilidade. Quando foi preso e não suportou a tortura, levou à completa destruição da organização partidária na região em que atuava, além de dar informações sobre vários membros do Comitê Central. Assim, finalizou, era imprescindível adotar um sistema organizativo total-mente verticalizado, tanto para salvaguardar as bases quanto as direções.

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Não houve divergências em relação à linha geral de preservação do partido. Mas os debates em torno das formas de organização se prolongaram. Rui reclama-va que a maior verticalização da estrutura agravaria a ausência de condições para o exercício da democracia interna e tornaria o centralismo ainda mais deformado. Jota considerou que, no fundo, o partido via-se obrigado a adotar a mesma linha organizativa e conspirativa do Araguaia. Zé Antonio procurou explicar a relação entre os trabalhos ilegal e legal para justificar a necessidade da linha organizativa e sua diferença em relação à linha do Araguaia, enquanto Dias sugeria que houvesse flexibilidade nesse processo, já que o partido estava desmantelado e era necessário não só preservar o que sobrara, mas também reconstruí-lo.

Mário achava que Rui tinha certa razão, mas não via outra maneira de pre-servar e ou reconstruir o partido nas duras condições da ditadura militar em que viviam. Por mais que os dirigentes procurassem ouvir os militantes, era impossível fazer com que a democracia interna no partido tivesse plena vigência nessa situa-ção do país. Ela deveria ser reconquistada junto com a conquista da democracia para todo o povo.

Ele também estranhou a assertiva de Jota, já que, a seu ver, a linha orga-nizativa do Araguaia só tinha similitude com a linha proposta na forma conspi-rativa, mas não no conteúdo. No Araguaia, os comunistas é que enfrentaram as forças militares. Seu trabalho de massa anterior à luta armada não tinha em vista construir organizações de massa, mas apenas tornar os comunistas amigos das massas, de modo a que estas depois pudessem ser abordadas para se incorpora-rem à luta dos comunistas.

– O que se propõe para este momento, disse Mário, é que os comunistas entrem fundo no seio da massa e se incoporem às suas próprias formas de orga-nização e de luta, confundindo-se com elas. Os comunistas não sairão sozinhos para lutar, substituindo as massas. O partido só poderá se destacar quando o inimigo não tiver mais condições de golpeá-lo profundamente. É o oposto do que foi feito no Araguaia.

A segunda metade da tarde foi dedicada ao exame da situação de três mem-bros do Comitê Central que, presos, haviam indicado como prender outros diri-gentes e militantes, causando a destruição de organizações do partido. Zé Antonio fez um relato circunstanciado do comportamento de Vicente, Ramos e Fernando, respectivamente luis Vergatti, Roberto Ribeiro Martins e José Maria Cavalcante, indicando as quedas que haviam resultado de suas prisões.

A avaliação de sua responsabilidade nas quedas não estava baseada nos de-poimentos cartoriais feitos no DOPS. Esses depoimentos, em geral, eram mon-tados pelo próprio DOPS, com base em informações de outros presos e de inter-pretações dos agentes policiais e se destinavam unicamente a agravar as penas dos presos pela justiça militar. Tinham muito pouco ou nada a ver com os depoimen-

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tos prestados ao DOI-Codi e ao próprio DOPS, que eram os que conduziam às quedas e eram mantidos secretos pelos órgãos de repressão.

Assim, para conhecer e julgar o comportamento daqueles dirigentes, o par-tido tinha que se valer de contatos e conversas com camaradas que haviam sido presos. Eles é que podiam esclarecer se as informações prestadas pelos dirigentes tinham contribuído para as suas quedas e as quedas de outros companheiros. Um levantamento desse tipo exigia cuidados e tempo. Alguns dos camaradas envolvi-dos continuavam presos e os que haviam sido soltos em geral permaneciam sob vigilância policial. Apesar disso, Zé Antonio considerou que já havia elementos para demonstrar que os três haviam sido responsáveis por inúmeras quedas de outros camaradas e citou os nomes de guerra dos que caíram por suas ligações com Vicente, Ramos e Fernando.

– Esse comportamento é incompatível com a permanência deles no CC e no partido. A proposta da comissão de organização é de expulsar os três, finalizou.

Dias disse concordar com a proposta pela existência de evidências compro-batórias, mas considerou uma falha não se ter ouvido a defesa dos três, embora considerasse existir uma dificuldade quase intransponível para isso. Jota também con-siderou que o melhor teria sido ouvi-los, mas que era indispensável dar uma satisfação para o partido sobre a responsabilidade de quedas que haviam atingido fundamente sua estrutura, em especial no caso de Vicente.

Rui não só estigmatizou os três como traidores vis, como sugeriu que os membros do partido que estavam presos juntos cortassem todo tipo de relação que porventura mantivessem com eles. Mário também disse concordar com a pro-posta, lamentando que as condições não permitissem ouvir a defesa dos três. E acrescentou que o ódio do partido não deveria se voltar contra eles, mas contra a ditadura que, por meio da tortura hedionda, forçava companheiros que tinham uma história de luta a sucumbir em suas próprias fraquezas, renegar seu passado e entregar outros companheiros à mesma sanha assassina.

A reunião terminou mais cedo do que o previsto. Cansado, Mário recostou--se na cama para descansar um pouco antes do jantar e deixou-se levar novamente para o passado, na busca de algum conselho para aquela situação. Não, a crise do partido no final dos anos 1950 não era igual a esta. Naquela época a situação do país e a natureza dos problemas eram diferentes.

Em 1956 já se vivia uma certa liberdade consentida: o PCB não era legal, mas os comunistas atuavam quase abertamente, como se estivessem na legalidade. E o partido estava engolfado, por um lado, pela necessidade de dar uma resposta aos problemas estruturais postos pelo desenvolvimento capitalista no Brasil e, por outro, pela enxurrada de erros, defeitos, deformações, mágoas e queixas que as denúncias do relatório de Nikita Krushev ao XX Congresso do PCUS haviam trazido à tona.

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Voltaram à mente de Mário os acontecimentos de seu retorno ao Brasil, em 1955, ainda antes da realização do XX Congresso do PCUS e da tormenta que este desencadearia. Para sua surpresa, além de não ter tido qualquer participação na elaboração dos documentos aprovados no IV Congresso do PCB, ele fora simples-mente destituído do próprio Comitê Central, a pretexto de haver sido responsável por irregularidades de um outro dirigente partidário, cometidas durante sua estada no Rio grande do Sul.

Depois de militar por mais de vinte anos no partido, tricas e futricas haviam conseguido transformá-lo, de um dos principais dirigentes partidários, num mi-litante sem organismo partidário, além de envolvê-lo em desconfianças nebulosas e espúrias e deixá-lo numa situação política extremamente difícil. Algo idêntico ocorreu com Armênio guedes, então na União Soviética em tratamento de saúde e participando do mesmo curso que Pomar. A pretexto de que estava muito doente e poderia morrer a qualquer momento, também foi afastado do CC.

Pomar tinha guedes como um comunista sincero. Embora considerasse que, em geral, ele expressava pontos de vista tidos como de “direita”, tinha-o como franco e transparente em suas opiniões. E reconhecia que inúmeras vezes demons-trara estar com a razão, dando contribuições importantes ao partido e devendo ser respeitado. Durante a estada de ambos na União Soviética tinham tido oportuni-dade de debater muitas questões teóricas e práticas, em geral ficando em campos opostos. Mas Pomar defendia ser indispensável que a direção do partido fosse composta justamente dessa diversidade, obrigando todos a argumentarem com conhecimento de causa e evitando os argumentos de autoridade.

Já começara a ter uma percepção mais nítida sobre a diversidade interna do partido e a necessidade de colocar em primeiro plano a unificação política, delegando à unificação ideológica um trabalho de cimentação de mais largo prazo. Confundir os dois planos, o ideológico e o político, era pior do que confundir a estratégia e a tática, e só poderia ter como resultado o estreitamento dos canais de aproximação com os diferentes segmentos sociais.

A política, mesmo a estratégia, argumentava, era muito mais plástica do que a ideologia. Esta operava com valores mais rígidos e perenes, alguns dos quais de difícil comprovação imediata. Supunha, por isso, que as seitas, pretendendo nutrir-se de ideologia pura, esbatiam-se com a realidade da vida e se dividiam e se subdividiam com mais facilidade que os grupos políticos irmanados por objetivos comuns claros, mesmo de pequeno alcance.

À medida que refletia sobre isso, Pomar se distanciava ainda mais de Prestes, por não sentir nele a vontade e a capacidade para agir como unificador político do partido. A unificação apenas mitológica, proporcionada por ele, era uma magia que só funcionava enquanto as contradições reais não colocavam a nu suas in-congruências políticas. Como a percepção dessas incongruências pelos dirigentes

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e militantes ocorria de forma diferenciada e desigual, os que num dia pertenciam ao PC dominante poderiam, no dia seguinte, transformar-se em dissidentes ou novos membros de um dos diversos outros PCs, que conviviam inconscientes ou dissimuladamente dentro do PCB.

lembrou-se de Crispim e de vários outros, num momento adeptos fervoro-sos da linha traçada por Prestes e, no outro, expulsos ou afastados por não enxer-garem mais o secretário-geral na posição que pensavam tê-lo visto. E recordou-se outra vez do velho graça, graciliano Ramos, um comunista fervoroso, mas cético, daqueles que não acreditavam na capacidade dos brasileiros de realizarem a revo-lução. “Será preciso que o Exército Vermelho venha em nosso auxílio”, costumava brincar, meio sério. Mas era um homem que tinha a verdade como natureza de vida. Morreu sendo criticado porque falara a verdade sobre o que vira em sua via-gem à União Soviética.

Na URSS, Pomar aproveitou o máximo de seu tempo para estudar. Apren-deu russo, aprofundou seus estudos de O Capital e da teoria marxista, embora concordasse com Armênio sobre o viés positivista das aulas ministradas pelos pro-fessores soviéticos. Apolonio de Carvalho conta que ele também aproveitou para rever os velhos tempos de futebolista, tornando-se técnico do time formado pelos brasileiros. É ainda Apolonio que narra haver descoberto, durante essa estada em Moscou, a faceta de Pomar de oposição aos métodos de direção que haviam se implantado no partido.

O principal dirigente do grupo brasileiro, Amazonas, desconfiou que Apo-lonio estava se engraçando com uma soviética que trabalhava na escola do partido e pretendeu destacar Pomar para vigiá-lo. Este não só se insurgiu contra a decisão, como comunicou a Apolonio a desconfiança existente, considerando inconcebível a utilização de métodos de espionagem entre companheiros.

Foi com esse mesmo espírito que Pomar se envolveu, ao retornar ao Brasil, numa das discussões mais sérias e difíceis de toda a sua militância. Primeiro, ele exigiu um esclarecimento completo das alegações que levaram à sua destituição do Comitê Central durante o IV Congresso. Segundo, exigiu participar de uma reunião do CC para discutir tais alegações. Terceiro, exigiu ser reconduzido ao CC logo que a falsidade das alegações ficasse comprovada.

Não conseguiu que nenhuma das duas primeiras exigências fosse atendida, mas foi reconduzido ao Comitê Central sem que as alegações fossem verificadas seriamente. Elas não passavam, como ficou claro para ele no decorrer das discus-sões que manteve, de manipulações de Prestes, Arruda e, quase certamente, dos demais membros do Secretariado, todos parecendo haver achado melhor colocar uma pedra sobre o assunto.

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16 PARTE DA PARTE EU SOU

Mas nunca falareis a um outro coração, Se o próprio vos não inspirar.

J. W. goethe (Fausto)

1976, dezembro, São Paulo: noite do dia 13 1955-1956, Rio, São Paulo e alhures: confusões

Mário acordou com Jota sacudindo seu braço. – O jantar está pronto. Você caiu no sono. Olhou meio espantado para o companheiro, mas logo sentou na cama. – É verdade, acabei emborcando. Já vou indo. Quando chegou à copa, os demais já estavam comendo em silêncio. Per-

guntou em voz baixa se haviam deixado alguma coisa para ele, enquanto sentava--se e se servia. Sem conversa, a refeição era relativamente rápida e cada um ia se retirando à medida que terminava. Mário quis saber de Mara se Maria já havia saído com o Jaques para pegar a primeira turma e recebeu resposta afirmativa.

Voltou sem pressa para a sala e sugeriu a Zé Antonio que ambos tivessem uma conversa para saber detalhes da situação do Rio de Janeiro com o Rui, que desde agosto falhara repetidamente aos pontos de contato, só aparecendo na úl-tima referência de novembro. Mário não concordara que, nessas condições, fosse dado a ele o ponto para a reunião da Comissão Executiva e do Comitê Central, mas Cid achara que ele deveria comparecer e o ponto fora dado. Então, era impor-tante ter uma ideia mais clara da situação, de modo que a comissão de organização pudesse avaliar o quadro. Zé Antonio concordou e ambos chamaram Rui para o quarto, de modo a conversarem mais à vontade.

Sentaram-se nas camas, frente a frente, e Mário explicou as razões da con-versa. Queriam ouvir um relato breve, antes que a turma do Comitê Central co-meçasse a entrar. Rui não se fez de rogado.

– Olha, não sei como os pontos falharam. Fui a todos, mas parece que hou-ve alguma confusão nos horários. Na última referência, fiz vários horários, até que deu certo. O Zecão estava lá e pudemos reatar a ligação.

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– Mas como você se virou nesses meses, perguntou Mário, sem a ajuda de custo e quase sem ter base de apoio no Rio? Ou você andou fazendo contato com o pessoal que foi solto, ou com alguém que está sob vigilância? Na minha opinião, o partido no Rio está pior do que peneira, todo furado, e acho uma temeridade você continuar lá nessas condições.

– Já discutimos isso várias vezes e tens razão em parte. Mas eu tenho um dispositivo, o da Titia, que está a salvo, não era conhecido por ninguém, e que está me servindo de apoio. É lógico que o problema da ajuda de custo ficou sério, mas eu consegui uns romances pornográficos para fazer e deu para o sustento.

– Romances pornográficos?, perguntou Zé Antonio, espantado. – É, romances pornográficos, sacanagem pura. Era o que tinha para fazer e

não pensei duas vezes. – Mas esse teu dispositivo não era conhecido pelo Frutuoso? Que garantia

você tem de que ele não entregou essa informação?, perguntou Mário. – Se ele tivesse entregue o dispositivo, teria caído logo. Eu só reatei o contato

depois que tive certeza de que ele estava seguro. Tanto que na reunião de julho eu já tinha refeito o contato e não houve nada. Estava tudo limpo.

– Pô, você fez isso e não comunicou nada a nós?, Mário ficou indignado. – O camarada deveria ter informado à direção essa situação particular, acres-

centou Zé Antonio, formal e gravemente. Você colocou a reunião do CC em perigo e sequer nos deixou saber da situação.

– Vocês estão fazendo tempestade em copo d’água, retrucou Rui. Primeiro, porque eu fiz todas as checagens possíveis. Depois, porque se houvesse algum furo, o rabo já teria vindo com o contato que foi me levar o ponto em junho. O disposi-tivo está seguro.

– Quem garante para você que a repressão não descobriu esse dispositivo após julho?, voltou a questionar Mário.

– Eu! Se eles houvessem descoberto o dispositivo, eu não estaria aqui. Rui falava com segurança, a mesma que sempre tivera em relação a tudo.

Mário ainda quis saber se ele tinha notícias de Frutuoso e de outros camaradas que haviam sido presos no Rio de Janeiro durante 1975. Também queria saber se ele tinha alguma ideia das quedas do Partidão e se era possível prestar alguma ajuda a eles. Rui respondeu que ainda não fora possível ter informações precisas sobre as quedas do Partidão, mas tudo indicava que a repressão matara vários.

– A coisa parece que estava ligada aos contatos deles com emissários do gol-bery, em função da distensão do geisel, mas a disputa interna nos órgãos de re-pressão acabou desabando sobre o elo mais fraco. Acho muito difícil ter qualquer contato com eles nessas condições. Mesmo porque o partido no Rio também foi realmente golpeado e dispersado e o trabalho de reconstituição vai demorar um

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bom tempo. Por isso é que eu não quero sair de lá. Conheço quase todo mundo e tenho condições de reatar todos os nós.

Zé Antonio ainda ia falar alguma coisa, mas ouviram o som de gente che-gando na sala e decidiram suspender a conversa. Teriam que examinar a situação com mais calma em outra ocasião. Quando saíram para a sala, encontraram Jorge e Evaristo, que haviam acabado de chegar. Cumprimentaram-se. Jota indicou aos dois as camas que deveriam ocupar, enquanto os demais liam ou conversavam em voz baixa. Mário foi até a copa e conversou com Maria.

– Como está o transporte do pessoal? Alguma coisa estranha? Maria olhou para ele com curiosidade. Sabia que Mário era muito cuidado-

so, mas que se lembrasse era a primeira vez que lhe fazia uma pergunta dessas. Se houvesse alguma coisa estranha, teria sido a primeira a avisar. Não, não havia nada de estranho. O pessoal estava nos pontos direitinho e o Jaques fizera os percursos de despiste sem que nada chamasse a atenção. Tinha que sair logo para buscar a segunda turma e se despediu.

Mário retornou para o quarto, ensimesmado. Algo não lhe cheirava bem. E, por uma dessas associações de ideias que nem o próprio cérebro é capaz de explicar, viu-se frente a frente com o incidente de 1955, que agravou a forma como passara a encarar Prestes. Até então, ainda tinha a ilusão de que o antigo Cavaleiro da Espe-rança, em função de seu isolamento, pelas imposições da clandestinidade, não esta-va a par do que ocorria no partido. Seria mais responsável por omissão do que por atuação. No entanto, deu-se conta de que Prestes estava não apenas a par de tudo que acontecia, por intermédio do Secretariado e da entourage que lhe dava suporte, como era o principal mentor das medidas políticas, organizativas e administrativas que orientavam o PCB, seus quadros e militantes.

Arruda e alguns outros, oportunisticamente sagazes, apenas haviam se amol-dado aos métodos e ao estilo do principal líder do partido, métodos e estilo que alimentavam as discrepâncias entre os PCs que, camuflados e ignorantes de si pró-prios, coexistiam internamente. Eles impediam-se de esclarecer francamente suas posições, justamente porque se utilizavam da fidelidade a Prestes como único ponto de união e critério da verdade. Assim, discordavam dos métodos e das políticas emanadas da direção, mas dissociavam-nos da figura de Prestes, a maioria guiando--se por ele quando as divergências mais graves afloravam a seus olhos, enquanto a minoria era sufocada ou expelida.

Pomar se espantou com essa conclusão. Deu-se conta de que, enquanto a verdadeira natureza dessa situação não fosse esclarecida, o partido corria o risco de se desagregar, mesmo que todos procurassem seguir fielmente as orientações ema-nadas do Secretariado dirigido por Prestes. Essas orientações tendiam a ser, como nos últimos vinte anos, conflitantes entre as diferentes estratégias, entre as estraté-gias e as táticas, entre as diferentes táticas, entre o marxismo dialético e o marxismo

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positivista e entre a disciplina voluntariamente consentida no processo democrático de discussão e a disciplina militarista que não admitia o contraditório.

Era uma situação muito diferente daquela enfrentada pelo partido no perío-do pré-1940, quando não existia o peso direto e diário de um mito sobre a direção do partido. A dificuldade não consistia, então, em definir erros e responsabilidades, mas em ter a capacidade teórica e prática de superá-los. Agora, porém, tal mito era onipresente, embora aparentasse o contrário. Espalhava que ficara segregado por Arruda, desinformado do que ocorria no partido, portanto incapaz de tomar as medidas necessárias para evitar os problemas criados no partido. Chegara a dizer que, como se estivesse preso, fora proibido de viajar à União Soviética.

Se não era fácil fazer com que as pessoas reconhecessem as fraquezas de um mito, pensava Pomar, mais difícil ainda seria fazer com que o próprio mito as reco-nhecesse. E, desde a primeira vez que discordara de Prestes, sentiu nele uma dificul-dade quase intransponível para admitir que estava errado e para recuar a tempo e com consciência. Toda vez que tivera que fazer mudanças nas orientações políticas do partido, o fizera sob a pressão de brutais evidências que as contraditavam e sem uma consciência clara de onde estavam os erros e as deficiências. E pior, em geral, encontrando um bode expiatório.

Pomar sentiu-se repentinamente cansado, quase velho, aos quarenta e dois anos de idade. Sentiu que o curso dos acontecimentos não era favorável ao esclare-cimento dos problemas e das ideias, a não ser que o movimento operário e popular ingressasse numa ascensão poderosa e que o partido obtivesse uma nova legalidade. Sob a pressão dos fatos criados pelas massas em luta, com a visibilidade pública dos dirigentes partidários e com o crivo sobre suas atitudes políticas, seus métodos e seu estilo de direção e trabalho, supôs que seria possível criar um clima de debate interno que não descambasse para a desagregação. Mesmo assim, duvidava que isso seria possível, tal a quantidade de partidos que coexistiam dentro do PCB, tendo um mito pouco consistente como elo de fidelidade ideológica e política. Era uma situação muito frágil.

Apesar disso, em nenhum momento pensou em desistir e abandonar uma vida de luta, diante desse obstáculo que considerava muito difícil de superar. De-cidiu se mudar para São Paulo, onde tinha um conhecimento mais amplo e um apoio mais efetivo da militância partidária, e ligar-se ao Comitê Municipal ou a algum comitê distrital de grande concentração operária e se preparar melhor para as dificuldades futuras.

Os anos que ficara à parte do núcleo central da direção e o período que pas-sou estudando em Moscou haviam lhe permitido não só aprofundar seus conheci-mentos teóricos, tanto gerais como marxistas, ou aprender a língua russa, mas prin-cipalmente formar um quadro mais preciso daquilo que considerava fundamental esclarecer quanto à política do partido.

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A sociedade brasileira se transformava rapidamente em uma sociedade ca-pitalista e não era mais possível continuar repetindo as velhas fórmulas sobre seu caráter. Mais cinza tornara-se a teoria do partido, enquanto a árvore capitalista e operária da vida reverdejava, costumava dizer, parodiando goethe. Era necessário estudar o desenvolvimento do capitalismo no Brasil, suas peculiaridades, e, com base nisso, definir o caráter da revolução brasileira. Recordava-se constantemente dos pensamentos embrionários que colocara no informe de 1946 a respeito do trabalho de massas e da necessidade de perseverar na questão democrática, e consi-derava cada vez mais premente explorar as dimensões econômica, social e política que essas questões possuíam no Brasil.

Entretanto, raciocinava, seria impossível e inócuo discutir tais problemas sem mudar radicalmente os métodos e o estilo de trabalho e de direção do partido, em que o centralismo democrático não passava de uma figura de retórica para jus-tificar o comando militarizado. O partido teria que exercer o exemplo da prática democrática para tratar com seriedade da questão democrática e de sua relação com as grandes massas operárias e populares.

Era no que pensava, preparando sua transferência para São Paulo, quando teve que cumprir uma incumbência do Secretariado, relacionada com as eleições presidenciais de 1955: realizar as negociações que visavam levar o apoio do partido à aliança Juscelino-Jango. Da mesma forma que gregório Bezerra, um dirigente partidário que deveria estar bem informado, ainda considerava Pedro Pomar um dos principais dirigentes do PCB, com muito mais razão deveriam considerá-lo os políticos da burguesia, completamente ignorantes das querelas e dos movimentos internos do partido. Assim, ainda no Rio de Janeiro, o deputado Pedro Pomar (era desse modo que os políticos de outros partidos o tratavam) realizou os contatos e conversações que permitiram a aliança do PCB com o PSD, de Juscelino, e o PTB, de Jango, para enfrentar Juarez Távora, da UDN, e Ademar de Barros, do PSP.

Seu principal contato foi o irmão de Juscelino, que era vice-presidente da Companhia Siderúrgica Nacional, o que possibilitava o entendimento direto com o próprio cabeça de chapa. Nessa condição, Pomar também participou ativamente das negociações e medidas para evitar o golpe civil-militar, que estava sendo prepa-rado para impedir a posse de Juscelino e Jango, no caso da vitória destes. As nego-ciações para o apoio do PCB não envolveram apenas uma mudança na avaliação tática dos comunistas em relação ao principal inimigo, que passou a ser a UDN. In-cluíram acordos em torno do desenvolvimento das forças produtivas, da ampliação das liberdades democráticas, inclusive da legalidade para os comunistas, do apoio ao desenvolvimento da Petrobrás e do enfrentamento com o imperialismo americano.

A percepção tática de que a UDN pretendia resolver suas contradições por meio de um golpe, tendo por esteio a direita militar, empurrou os comunistas para um apoio ainda mais decidido à dupla JK-Jg. Assim, quando o golpe foi desenca-

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deado, em 11 de novembro de 1955, não causou surpresa. Juscelino havia garan-tido o apoio da maior parte do Exército e de setores políticos que iam da direita à esquerda, isolando os golpistas e garantindo sua posse.

Pomar considerava que, nas condições dadas, o partido não tinha outras opções. Na verdade, pensava, o partido estava diante de dois projetos burgue-ses, ambos de inspiração imperialista, que visavam acelerar o desenvolvimento econômico do país por meio de grandes investimentos externos e de uma nova repartição na proporção em que os diversos grupos capitalistas participavam no domínio do país.

Enquanto os setores mais reacionários do imperialismo não acreditavam que as elites populistas brasileiras fossem capazes de controlar as reivindicações popu-lares com um governo formalmente democrático, nesse ponto coincidindo com a política golpista e ditatorial da UDN, outros coincidiam com segmentos considerá-veis do latifúndio e da burguesia brasileira, que se consideravam capazes de realizar a missão de abrir a economia e desenvolvê-la, sem precisar apelar para a ditadura formal. Com as forças minguadas que possuía, o PCB deveria se aliar ao projeto não-ditatorial, esforçar-se para ampliar as liberdades democráticas e tentar construir um projeto popular alternativo.

Dentro do partido, porém, essa suposição era menos evidente do que Po-mar poderia pensar. O Plano de Metas de cinquenta anos em cinco, lançado por Juscelino, foi visto por grande parte dos comunistas como um avanço poderoso no desenvolvimento das forças produtivas, o que era verdade. Mas deduzir daí que o partido deveria se incorporar com armas e bagagens nesse processo era bem mais problemático, do ponto de vista dos interesses de classe em jogo.

O quadro ficou ainda mais nebuloso em virtude da flexibilidade com que o novo presidente combinava a atração de investimentos estrangeiros e a criação de novos empregos com um discurso sensacionalista e de integração nacional, cujos símbolos eram a construção de Brasília e das novas rodovias, que abriam as vastas fronteiras econômicas do interior brasileiro, na suposta nacionalização dos capitais de empresas estrangeiras e, até, no rompimento com o Fundo Monetário Inter-nacional (FMI). As medidas ágeis de Juscelino começaram a mostrar efeito já no primeiro ano de governo, criando um ambiente de crescimento.

Assim, durante o primeiro semestre de 1956, ao mesmo tempo que espera-va e pressionava o novo governo para legalizar a atuação dos comunistas, o PCB começou a ser envolvido profundamente num debate sobre apoio ou não às políti-cas progressistas de Juscelino. O rápido desenvolvimento burguês introduzia, dessa maneira, uma cunha entre os vários PCs que compunham o partido, forçando-os a definir sua visão sobre os problemas brasileiros. Estimulava-os a um debate, há muito necessário, sobre as tendências de desenvolvimento do capitalismo no país, embora o núcleo dirigido por Prestes não se apercebesse disso.

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O PCB, de qualquer modo, estava em plena efervescência do debate sobre os vários projetos de sociedade para o Brasil quando fatores externos poderosos imiscuíram-se violentamente, fazendo com que essa discussão seguisse outros ru-mos. O XX Congresso do PCUS, realizado em fevereiro, trouxe à baila e para primeiro plano as teses relacionadas com a coexistência pacífica entre os sistemas capitalista e socialista e com o caminho pacífico para as transformações socialistas nos países capitalistas.

Aculturado na cópia mecânica das orientações emanadas do partido-guia, o PCB acabou por colocar também em primeiro plano, e como determinantes para o posicionamento em torno de todas as demais, essas duas questões, sem dúvida importantes, mas não fundamentais no quadro brasileiro daquele momento.

O quadro de debate interno, que até então se desenvolvia em torno do apoio ou não a Juscelino, da natureza de um projeto burguês ou democrático e popular, de uma estratégia de reformas e/ou de uma estratégia revolucionária, da aliança estratégica ou tática com a burguesia nacional, de tomar a burguesia nacional ou o proletariado como força dirigente ou força secundária, de realizar uma reforma agrária sobre todos os latifúndios ou apenas sobre os latifúndios improdutivos, e de diversas outras questões-chave da problemática brasileira, viu-se repentinamente abalado e abafado com a emergência das teses do XX Congresso.

Todas essas questões e as teses correspondentes misturaram-se às novas vi-sões sobre coexistência e caminho pacífico. Para embaralhar ainda mais a discussão, vieram à luz, em junho, as denúncias de Krushev, então secretário-geral do PCUS, sobre os crimes do culto à personalidade de Stálin na União Soviética. Como o som de uma poderosa banda militar que atravessa o batuque de uma pequena escola de samba, desorganizando-a, o chamado relatório Krushev não só atropelou o já mis-turado debate em curso como o virou de cabeça para baixo.

Pomar tinha ido morar em Indianópolis, perto do clube Sírio, em São Paulo, e fora incorporado ao Comitê Regional Piratininga, que dirigia o trabalho partidá-rio em toda a região metropolitana de São Paulo. Sua meta continuava sendo situar--se num bairro de concentração operária e reiniciar um trabalho de construção de longo prazo. Reconhecia, porém, que as ondas que assaltavam o movimento co-munista internacional eram muito maiores do que as forças internas que o partido possuía para conquistar um curso independente. Por isso, num primeiro momento, todos os seus esforços se dirigiram para que o Comitê Central organizasse o debate, de modo a direcioná-lo para as questões fundamentais da realidade brasileira.

Nos contatos que conseguia manter com alguns membros do Secretariado e da Comissão Executiva, pressionava-os para proporem os termos básicos em que o debate deveria se realizar, tendo como preocupação central, por um lado, permitir que todos expusessem suas queixas, preocupações e sugestões e, por outro, que o debate contribuísse para reforçar a unidade do partido e não para desagregá-lo.

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Preocupava-o o grau de descontentamento e insatisfação que grassava na base e nos setores intermediários do partido e o que isso poderia representar como força destrutiva, se não fosse assimilado. Nessa perspectiva de resistir à desagregação, du-rante certo tempo adotou a postura de continuar defendendo intransigentemente a União Soviética, aceitando acriticamente que as revoltas na Hungria e na Polônia haviam sido simples manipulações imperialistas. Ainda não se dera conta de que o socialismo de comando desandara e que, embora a presença ativa de agentes impe-rialistas fosse um fato, a cultura da revolta anticomunista naqueles países já tinha seu próprio ingrediente popular.

As revoltas na Hungria e seu sufocamento por tropas do Pacto de Varsó-via, em 1956, apenas agravaram o quadro de perplexidade existente no partido, sem que o Secretariado, a Executiva ou o Comitê Central emitissem qualquer sinal de vida, como órgãos dirigentes. Enquanto isso, Arruda Câmara, que fora ao XX Congresso e fizera uma vilegiatura por outros países socialistas do leste europeu e pela China, retornou totalmente mudado. Confirmou a autenticidade do relatório Krushev e passou a agir por fora dos próprios órgãos que dirigia, como secretário político, estimulando o debate e as críticas.

Não fazia isso no Secretariado, nem com Prestes, mas nos contatos que mantinha com membros do Comitê Central e dos comitês intermediários, para quem apresentava sua nova face de político flexível e aberto ao diálogo, face que espelhou mais fielmente na proposta de tática política, apresentada em meados do ano: apoiar as medidas progressistas de Juscelino e criticar as medidas rea-cionárias. Arruda, na verdade, procurava criar as bases para assumir a direção de um processo de discussão que supunha inevitável e do qual esperava que Prestes não se salvasse.

A relativa liberdade de trânsito que os comunistas conquistaram nos pri-meiros meses do governo Juscelino lhes permitia contatos mais intensos. Talvez por considerarem Pomar uma pedra em seus sapatos, ao instá-los insistentemente a encaminhar o debate, os membros do Secretariado tenham se aproveitado da realização do VIII Congresso do Partido Comunista da China para incluí-lo na de-legação que foi àquele país, em setembro de 1956, representando o PCB. Quando retornou, no final do mês seguinte, o debate já havia sido desencadeado à revelia da direção, tendo como centro o mandonismo, o dogmatismo, o uso de fórmulas externas e a cópia literal das orientações e experiências do PCUS.

Pomar procurou situar-se, mesmo atrasado, num tipo de discussão que con-siderava mais destrutiva do que construtiva, seja pela forma como fora desencade-ada, por omissão da direção partidária, seja por seu conteúdo. Mesmo inconscien-temente, ao colocar em primeiro plano as denúncias contra Stálin e as teses do XX Congresso, o debate jogava para plano totalmente secundário a experiência históri-ca e as estratégias e as táticas políticas do PCB, reproduzindo os mesmos métodos

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que eram criticados e caminhando, inevitavelmente, para a conclusão de que o erro estava na existência mesma do partido.

Nem tinha esclarecido para si próprio sua forma de participação, quando Prestes escreveu um artigo estipulando uma data para o encerramento do debate. Para que pudesse externar sua opinião antes do fechamento, Pomar pegou, então, um ônibus em São Paulo e, durante a viagem, escreveu seu único artigo aparecido na ocasião. Nele, assumiu a responsabilidade, como parte do coletivo partidário, pelos erros cometidos no período, e procurou relativizar as teses do XX Congresso, chamando a atenção para outros problemas importantes da situação brasileira.

Teria sido fácil para Pomar, como alguns outros fizeram, contar sua própria saga e derramar suas queixas contra o mandonismo, o stalinismo, a falta de demo-cracia interna, o centralismo do Secretariado. Afinal, ele sofrera as consequências de todos esses ismos. O problema é que, apesar disso, considerava-se parte dos erros e não uma simples vítima. Embora tendo estado cego para muitos deles, tinha consciência da existência de muitos outros, combatera-os até com decisão, mas não tivera capacidade política para contrapor-se a eles, de forma a evitá-los e a impedir que causassem prejuízos ao partido.

Foi com esse espírito que viu, surpreso, como alguns camaradas haviam se metamorfoseado, de um momento para outro, de mandonistas duros e implacá-veis, a exemplo de Arruda, Peralva e Agildo Barata, em defensores intransigentes da democracia interna e da legalidade socialista. E como vários outros se agrupavam em torno de Prestes, também sob a bandeira da democracia, no sentido de empol-garem a direção, no fundo sob métodos idênticos aos do passado. Viu em ambos os movimentos perigosos tão grandes para o partido quanto a continuidade aberta dos métodos e políticas anteriores.

Diante dessas duas opções, Pomar achou secundário aquilo que mais tarde Jacob gorender chamaria de “reanimação dos expoentes do stalinismo dentro do PCB”. Afinal, para si, o principal expoente do stalinismo ou do mandonismo tu-piniquim era Prestes. Estava convencido de que qualquer mudança ou pretenso movimento para superar o imobilismo político, se fosse dirigido por Prestes, seria à la lampedusa. Mas não se sentia com forças nem condições para conduzir uma saída própria e diferente das que se apresentavam.

A rigor, naquela época nenhum dirigente do PCB poderia se dizer imune aos métodos da vida orgânica, regidos implacavelmente por um sistema antide-mocrático, monitorado por Prestes e pelo Secretariado Nacional. Nessas condi-ções, ele se amalgamou à corrente que unificou, momentaneamente, tanto os ve-lhos quanto os novos stalinistas em torno do secretário-geral, contra a tendência que pretendia liquidar o partido, a pretexto de que estaria na própria natureza da organização partidária a origem de todos os erros, defeitos e crimes cometidos no processo de luta de classes.

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Ao mesmo tempo, porém, procurou situar-se para os desdobramentos futu-ros do debate. Ao contrário dos comunistas que haviam se incorporado ao Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e disseminavam as vantagens do desenvolvi-mento capitalista, buscando incorporar essas ideias às mudanças da linha política, Pomar pensava que o reconhecimento do desenvolvimento burguês não deveria escamotear suas contradições, a exploração dos trabalhadores, nem a luta de classes. E criticou franca e abertamente essas concepções, mesmo correndo o risco de con-tinuar sendo classificado como stalinista.

Mas os camaradas isebianos não eram apenas os principais arautos das mu-danças na linha política. Eles também defendiam deslocamentos na direção do PCB, como pré-condição para uma virada de orientação política. Mário Alves e gorender, por exemplo, consideravam impensável qualquer mudança tendo Arruda, Amazonas e grabois na Comissão Executiva. Embora especialmente delicado lhes parecesse o pro-blema do secretário-geral, segundo gorender tão stalinista quanto aqueles, ou mais, eles em nenhum momento sustentaram que tais deslocamentos deveriam incluir Prestes.

É certo que, tendo conhecimento da verdadeira situação de Pomar, nem Má-rio Alves nem gorender cometeram o mesmo engano de outros, que propunham sua retirada ou deslocamento de uma direção da qual não fazia parte. Apesar disso, Pomar divergiu deles. Não considerava que se pudesse cunhar alguns de stalinis-tas, e outros não, antes que todos passassem pelo crivo de uma séria autocrítica, o que ainda não havia ocorrido. Por que ele, que fora uma vítima no processo de enrijecimento do partido, seria menos stalinista? E por que camaradas que haviam participado ativamente da elaboração da linha e das medidas atrabiliárias do IV Congresso podiam despir-se dessa responsabilidade, acoimar os outros de stalinistas e travestir-se de renovadores?

Além disso, achava que eles invertiam o problema. Não era Prestes que era tão stalinista quanto os demais. Os demais é que procuravam imitar o stalinismo de Prestes. limar a rebarba sem retirar o núcleo não resolveria nada, ainda mais se isso fosse realizado mediante os velhos métodos mandonistas e antidemocráticos. Era preferível demorar mais tempo, abrir uma discussão de longo curso no Comitê Central, que avaliasse toda a experiência histórica do partido e, com base nisso, tirar as lições necessárias para uma nova caminhada.

Essa posição de Pomar lhe valeu ser colocado, na confusão teórica e na guerra desinformativa da época, entre os stalinistas de carteirinha. Essa mesma confusão permaneceu, mesmo para historiadores sérios e cuidadosos com os fatos, como le-andro Konder, que também o situou entre aqueles dirigentes, como Arruda, Ama-zonas e grabois, “muito comprometidos com o passado e que queriam que o PCB se recusasse a fazer qualquer autocrítica substancial”.

Neste caso, Konder comete outra injustiça. Embora extremamente compro-metido com o passado, na ocasião Arruda era um dos que mais desejavam que o PCB fizesse uma autocrítica substancial, condição fundamental para que seu pró-

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prio comprometimento fosse minorado, se o comprometimento e a responsabilida-de de Prestes fossem determinados em toda a sua extensão. Arruda, porém, assim como quase todos os que se abrigaram sob o mesmo guarda-chuva prestista para realizar as mudanças que advogavam, avaliou mal o poder do mito.

A essa altura, o PCB já estava novamente infiltrado de elementos policiais, que tinham condições de obter informações, embora atrasadas, junto a membros da direção partidária. Um deles, sob o codinome de Antônio Silva, teria conseguido de Agostinho Dias de Oliveira, em abril de 1956, a notícia de que Pomar, Armando Mazzo (o Chumbinho) e Wolney Rabelo encontravam-se na URSS.

Parece ser desse mesmo infiltrado a informação, de dezembro de 1956, de que haveria modificações na estrutura dirigente do partido, com a tendência de se retornar ao antigo esquema de comitês estaduais, comitês municipais e comitês distritais, em vez de comitês regionais e zonais. E de que o V Congresso deveria ser convocado para definir tais mudanças, sendo também certa a tendência para o afastamento dos dirigentes Diógenes Arruda, Pedro Pomar e João Amazonas, “apontados como responsáveis pela crise atual do partido”.

Ou seja, no final de 1956, a polícia política já possuía inside information quente sobre como o núcleo dirigente iria se orientar para contornar a crise. Na-quela época, porém, Pomar poderia ter se dissociado dos dirigentes mais compro-metidos com os erros e barbaridades do passado e posado de vítima. Ele conhecia como poucos o que significava se opor à absorção das funções do Comitê Central pela Comissão Executiva e, depois, por um esdrúxulo presidium. Fora, na socapa e silenciosamente, sendo destituído da direção partidária por não se calar diante do exercício da direção personalizada e do esmagamento de qualquer discussão e diver-gência de opiniões. Sofrera na carne ordens e diretivas burocráticas que afastavam do partido os quadros e os militantes, e estes das massas.

Quantas vezes não tivera, ele próprio, que ser arrogante e duro com dirigentes que só entendiam essa forma de ser e tratar os demais e que dogmaticamente se su-bordinavam a todas as fórmulas teóricas e práticas que vinham do PCUS, ou todas as ordens que vinham do Secretariado? Se Arruda e outros estavam sobressaindo como quadros renovadores, para Pomar teria sido bem mais tranquilo, ao contar sua verdadeira história, assombrar aos dirigentes e militantes que ainda o supunham o número dois, três, ou quatro da hierarquia partidária, e capitalizar boa parte dos descontentamentos.

Mas ele não nutria dúvidas de que esse caminho o levaria, inevitavelmen-te, a negar o próprio partido como associação de homens livres, que objetiva-vam contribuir para a libertação da classe operária e dos oprimidos. Se, como associados livres, eles não haviam sido capazes de evitar ou superar os defeitos e distorções de sua própria associação, nem tinham a capacidade de assumir sua própria responsabilidade, preferindo se apresentar como viúvas e carpideiras inconsoláveis de erros em que muitas vezes foram os campeões, eles então esta-

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riam apenas contribuindo para destruir e não para construir um instrumento essencial àquela libertação.

Por isso, desconfiava de que toda a autocrítica ensaiada por Prestes, Arruda e outros do Comitê Central era nada mais nada menos do que uma cópia mecânica da fórmula teórica inventada pelas novas lideranças soviéticas para eludir suas pró-prias responsabilidades nos erros de Stálin. Eles falavam da ausência de democracia interna, sufocamento da livre discussão e da luta de opiniões, afastamento das mas-sas, centralismo absoluto, mandonismo, arrogância e dogmatismo, como se nada tivessem a ver com o ocorrido. Então, com o mesmo dogmatismo com que antes praticavam seus erros, consideravam-se donos da nova verdade.

Diante disso, Pomar decidiu seguir outro caminho. Passou a bradar mais alto sua opinião de que, enquanto o mito, o método e estilo de direção prestistas não fossem desvendados, as divergências não seriam toleradas e o partido continuaria marchando inevitavelmente para expelir os discordantes e criar dissidentes dos mais diferentes tipos. Opinou que Agildo, Peralva e outros, que preconizavam a dissolu-ção pura e simples do partido, eram apenas a expressão daqueles que haviam com-pactuado com todo o dogmatismo e mandonismo anteriores e haviam descoberto, repentinamente, o horror de sua própria prática.

Empenhou-se, então, para que a discussão dentro do partido tomasse como leito principal a definição de um projeto de classe independente e uma autocrítica geral que escarmentasse os métodos e o estilo de trabalho correntes.

– Devemos ser duros na crítica, mas brandos nas medidas punitivas, dizia, defendendo abertamente que era preciso evitar medidas administrativas antes de esclarecer os problemas.

Exigia, em consonância com isso, que o debate fosse organizado de modo a permitir a livre discussão das ideias, sem ameaça de retaliações ou a procura de bodes expiatórios para os erros. Em várias reuniões do Comitê Central e em docu-mentos escritos, ele não apenas se considerava um dos portadores das concepções dogmáticas e sectárias que haviam predominado no partido e um dos responsáveis pelos erros cometidos, como afirmava explicitamente que era necessário evitar a repetição de tais erros por meio de um debate democrático, que envolvesse todo o partido e possibilitasse um novo acordo político entre seus membros.

Ele alertava, ainda, que o êxito no combate às concepções de esquerda era indissociável do combate às concepções de direita. Quando se falava em evitar a volta ao passado, seria preciso levar em conta que esse passado continha tanto os erros esquerdistas de 1948 a 1956, quanto as posições direitistas de 1945 a 47, para ficar apenas nos anos mais recentes.

– Como apagar da história nossos zigue-zagues para um lado e para o ou-tro, perguntava, e achar que vamos acertar justamente numa conjuntura em que o capitalismo avança e transforma as concepções de direita no maior perigo para o movimento comunista?

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17 QUAl BARRO AgUADO MOlHO O OURO

E O TRANSMUDO

Todo o ouro amalgama e amassa a fio,Até torná-lo bem macio.

Mas quanto mais o amolda e estica,Tanto mais ele informe fica.

J. W. goethe (Fausto)

1976, dezembro, São Paulo: noite do dia 131957-1958, São Paulo, Rio e Romênia: ignorância

Mário continuava no quarto, pensando em como não era nada ordeira a conjuntura da segunda metade dos anos 1950.

Os trabalhadores enfrentavam um processo inflacionário que tinha saltado do índice 100, em 1953, para 205, em 1957, conforme dados do FMI. Entre junho de 1956 e julho de 1957 a inflação havia subido 43,2%. Por outro lado, a produtividade industrial havia crescido mais de 100% entre 1949 e 1956, en-quanto os salários médios na indústria tinham se elevado menos de 30%. A insa-tisfação com as perdas salariais já era visível no final de 1956 e, em março de 1957, assembleias amplas e de massa de têxteis, metalúrgicos, gráficos e outras categorias exigiam aumentos salariais.

Independentemente de qualquer outro tipo de divisão interna, as tradi-cionais correntes camufladas que conviviam mescladas e confundidas no PCB se fizeram novamente presentes nessa situação, contribuindo para o desencadeamen-to das lutas operárias. Em São Paulo havia um grande enraizamento do partido nas fábricas, reforçado pela participação ativa das células no movimento grevista de 1953, colocando outra vez os militantes comunistas à frente de comissões de fábricas e da campanha salarial.

As campanhas de sindicalização e a adesão de sindicatos ao Pacto de Uni-dade Intersindical (PUI) ampliaram a campanha por aumento, que passou a ser articulada pelo PUI e desembocou na Aliança Intersindical por Aumento de Sa-lários e contra a Carestia. Os trabalhadores pediam 45% de aumento sem teto,

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aplicação da tabela da Coab para o preço da carne e medidas contra o aumento dos demais preços. Em agosto já havia paralisações espontâneas em várias em-presas têxteis e em setembro os sapateiros entraram em greve. Em outubro, finalmente, 400 mil operários, de seis categorias profissionais, paralisaram o trabalho e fizeram com que o movimento grevista assumisse uma proporção maior do que o de 1953.

Entretanto, mais que isso, essa luta operária tomou ares de rebelião popular. A população foi para as ruas com os grevistas, depredou fábricas e puxou outras categorias, como os químicos e os farmacêuticos, para aderir à greve. Diante desse vigor operário e às voltas com outros interesses em jogo, o empresariado e as forças no poder se dividiram. Enquanto os donos das metalúrgicas ofereceram 15% de au-mento, os empresários têxteis e gráficos se negaram a negociar, levando o ministro do Trabalho a acusá-los de intransigentes e sabotadores da política anti-inflacionista do governo. Os industriais aventaram a possibilidade de pedir a intervenção do II Exército, a pretexto de que o vice-presidente Jango, assim como o governador Jânio Quadros e o prefeito Ademar de Barros, incentivavam as paralisações.

Essa situação, no final de 1957, era uma demonstração clara de que o mo-delo de desenvolvimento implantado por Juscelino, de forte penetração de ca-pitais estrangeiros, ampliação da participação do Estado, destruição e criação de capitais nacionais, manutenção do latifúndio e aumento da exploração operária, encontraria resistências diversificadas e, em especial, por parte dos trabalhadores, se estes contassem com o mínimo de democracia para exprimir sua insatisfação e suas reivindicações.

Ao mesmo tempo, ela já delineava o quadro das disputas sucessórias de 1960, com os setores políticos procurando conquistar o voto operário, até mesmo explicitando sua simpatia com a luta dos trabalhadores, em contradição com os interesses da burguesia, que representavam. Jânio, em particular, preparava-se para disputar a Presidência, do mesmo modo que Ademar, que conquistara a Prefeitura da capital de São Paulo, derrotando o candidato janista.

A UDN, que flertava com o reacionarismo moralista de Jânio e repudiava seu populismo, ficava sem saber como montar uma candidatura em condições de disputar e vencer as eleições. Em tais condições ela tendia, o mais das vezes, a incentivar quarteladas que implantassem um governo forte, capaz de reprimir os trabalhadores e resolver por cima as disputas de participação dos capitais nacionais e estrangeiros na economia brasileira.

O PSD, no poder, aguardava melhor momento para decidir o futuro. Não poderia relançar Juscelino, já que a reeleição não era permitida. E não possuía em suas fileiras um candidato suficientemente forte para enfrentar Jânio.

De qualquer maneira, a força e a violência do movimento operário, associa-do a um ascendente movimento popular, chegando a colocar na rua um piquete

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monstro de 25 mil trabalhadores, assustou a todos eles, levando Jânio e o próprio Juscelino a interferirem mais diretamente na solução do impasse. Diante de uma situação idêntica à de 1953, o Secretariado Nacional do PCB decidiu utilizar no-vamente Pomar para formar, juntamente com Chamorro e Piotto, uma direção para o movimento grevista, desde julho.

Um informante do DOPS, infiltrado no partido, dá conta de que Eugênio Chemp o teria informado que Pomar estava em São Paulo, a mando do presidium, para estudar a situação política e aproveitar as oportunidades de luta. O mesmo agente infiltrado teria obtido de Fued Saad, em agosto, a confirmação de que Pomar e Chamorro fariam parte de um comitê ou Secretariado especial de três dirigentes. Outro informe reservado da polícia política aponta Pomar como “as-sistente” do Comitê Central e orientador e incentivador do movimento grevista.

Esse momento coincide com o processo de legalização dos dirigentes co-munistas, graças ao arquivamento paulatino dos processos a que respondiam na justiça criminal. Assim, no dia 11 de outubro de 1957, Pomar compareceu à audiência diante do juiz da 9ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, declarando que estava sendo processado por sua posição constante de defensor da democracia para todo o povo, da soberania e da independência nacional e contra o imperia-lismo norte-americano. Ao mesmo tempo, ele declinou de responder se era ou não membro da direção do PCB.

No dia 17 do mesmo mês, ele deu uma entrevista ao jornal Notícias de Hoje, do partido, na qual fala extensamente sobre a greve, de certa maneira corroborando as informações da polícia a respeito de seu papel no movimento paredista. Afirmou que a carestia era a preocupação fundamental dos trabalha-dores, diante da qual estes não tinham outra saída senão reclamar aumentos sa-lariais. Por isso, o movimento grevista associava a luta por salários à luta contra a carestia, batendo-se ainda pela isenção do imposto de vendas e consignações para gêneros de primeira necessidade.

Ele relembrou, na entrevista, que a greve geral estava marcada para 20 de julho e só foi adiada em função das promessas do governo federal, que não as cumpriu. E reafirmou o caráter legal e pacífico da greve, ao mesmo tempo que denunciava as tentativas de provocações antidemocráticas de agentes patronais, como as do americano da Ford, filmando os grevistas de revólver na mão e ati-rando contra os trabalhadores. Também justificou que a greve não poderia ser superada em 24 ou 48 horas, tendo em vista a intransigência patronal, e fez um apelo ao PTB, aos socialistas, aos jovens estudantes, aos esportistas e organiza-ções femininas, para que se solidarizassem com os trabalhadores e realizassem um combate unificado contra a carestia.

Mas a direção do PCB também se assustou com a envergadura do movi-mento, preferindo associar a violência grevista a agentes infiltrados e procurando

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tomar medidas para coibir os piquetes de massa e evitar novas confrontações. Po-mar, que reforçara sua posição como uma das referências políticas do partido ao participar da direção da greve, defendeu, porém, que era preciso interpretar de forma diferente a situação.

Achava que aquele movimento operário e suas repercussões eram um indí-cio de que estavam em gestação novos projetos para a sociedade brasileira. Para eles, tais projetos eram politicamente diferentes daquele que Juscelino estava im-plantando, sob a égide da associação capitalista estrangeira e nacional, dentro de uma moldura populista e formalmente democrática. Os movimentos operário e popular tendiam a colocar na pauta da sociedade um projeto democrático-popular não comandado pela burguesia. Era essencial, portanto, que o partido discutisse essa situação de modo profundo e sem travas preconcebidas, para definir aquilo que Pomar chamava teoria da revolução brasileira.

Ele, porém, parecia pregar no deserto. O que Prestes defendia era a aprova-ção rápida de uma nova linha, que se coadunasse com as orientações oriundas do PCUS e, ao mesmo tempo, com o avanço do capitalismo no Brasil. Como antes, continuava achando que o Brasil sofria mais pela ausência do capitalismo de que por sua presença. Em lugar de procurar organizar o debate interno e aprofundar o estudo e a discussão das razões dos erros e desacertos dos comunistas, e das carac-terísticas próprias do desenvolvimento capitalista e da luta democrática, operária e popular no Brasil, operava no sentido de decidir a política apenas no âmbito do Comitê Central.

Ao mesmo tempo, Prestes também procurava se livrar daqueles dirigentes mais comprometidos com o sistema militar de direção que ele próprio impusera ao partido. Com o afastamento deles, poderia esconder sob o tapete suas próprias responsabilidades e manter-se impávido como principal dirigente partidário. Ar-ruda, por seu turno, apesar de todo o esforço para se adaptar aos novos tempos, empenhara demais suas forças e sua honra na implantação daquele sistema, com o agravante de que era apontado como seu próprio criador. Durante anos, ele assumira na prática a direção em lugar e a mando de Prestes, assumindo também todos os riscos decorrentes das políticas e práticas positivistas e autoritárias. Era o mais perfeito bode expiatório para a ocasião.

Além disso, Prestes e vários outros dirigentes que passaram a cercá-lo a par-tir de então disseminavam para o conjunto dos dirigentes e militantes partidários que Arruda estava indissoluvelmente associado, naquela prática, a Amazonas, gra-bois e... Pomar. Essa história, de tanto ser repetida, acabou conquistando foros de verdade.Para explicar a luta interna desse período, alguns historiadores, como José Segatto, chegaram até a incluir Ângelo Arroyo nesse rol, caracterizando-o como o grupo de dirigentes que teria tentado evitar qualquer mudança e qualquer reflexão em torno da questão democrática no partido e teria conduzido ao racha de 1962.

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É impressionante como a desinformação então existente no PCB levou as posições e atitudes a serem embaralhadas e torcidas. Segatto afirma que as ideias de revolução a curto prazo, da impossibilidade de uma política de soluções positivas no regime do país, de absolutização do caminho da luta armada, do golpe prin-cipal dirigido contra a burguesia nacional-reformista, da conquista de um poder revolucionário sob a direção do proletariado, sem a necessidade da luta por formas políticas de aproximação, consubstanciadas nas linhas políticas do Manifesto de Agosto e do IV Congresso, haviam sido impostas por aquele grupo de dirigentes, “que exercia grande controle e domínio sobre o partido”.

Esse grupo teria sofrido um primeiro abalo com a realização do XX Con-gresso do PCUS, perdendo com isso boa parte do controle diretivo do PCB. Em 1958, o mesmo grupo teria perdido a hegemonia na direção do partido e, em 1960, com a realização do V Congresso, teria assistido à derrota definitiva de suas concepções. A partir de 1961, seus componentes teriam reagido, utilizando como referência o Partido Comunista da China. Haviam se insurgido contra a conferên-cia nacional do PCB, que alterara o nome de Partido Comunista do Brasil para Partido Comunista Brasileiro e deixara de fazer referência à ditadura do proletaria-do. Sua defecção fora consumada em fevereiro de 1962, quando se reorganizaram sob a denominação do antigo Partido Comunista do Brasil e teriam elaborado um programa político bastante parecido com o do Manifesto de Agosto de 1950 e do IV Congresso do PCB.

Na realidade, em 1954, o grupo que detinha o controle e o domínio so-bre o partido era formado por Prestes, Arruda, Amazonas, grabois, Holmos – o Secretariado da Comissão Executiva. Hoje se sabe que giocondo Dias, mesmo não fazendo parte da Executiva e do Secretariado, era o quadro responsável pelo funcionamento da secretaria-geral, isto é, de Prestes, fazendo a ponte entre este e Arruda, que operava o Secretariado. Dias, portanto, concentrava um poder prático muito além de seu poder formal.

Ângelo Arroyo, que se destacara como líder metalúrgico nas greves de 1953, só ascendeu ao Comitê Central no IV Congresso, nada tendo a ver com a direção nacional do partido até então. Quem ajudou Prestes a elaborar a linha do IV Con-gresso, além de Arruda, foram Mário Alves, Jacob gorender e Holmos. Amazonas e grabois estiveram ausentes durante a preparação do IV Congresso, fazendo um curso na União Soviética, na mesma turma em que se encontravam Apolonio de Carvalho, Armênio guedes, Zuleika Alambert e Pomar. Este simplesmente nem foi eleito para o Comitê Central do IV Congresso, como pode ser constatado nas lutas trazidas posteriormente a público por Moisés Vinhas e Eloy Martins.

Em 1957, Arruda estava em oposição a Amazonas e grabois, enquanto Pomar, que não era do presidium nem do Secretariado, tinha posições que o dis-tinguiam dos três. Arroyo, na ocasião, sequer firmara opinião sobre os temas em

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debate e sua preocupação fundamental consistia em encontrar uma solução que mantivesse a unidade do partido. Assim, juntar numa mesma cesta, naquele mo-mento, personagens que só foram se unir bem depois, em outras circunstâncias, enquanto a ação e a responsabilidade de outros dirigentes sequer é matéria de referência, corresponde a um tipo de historiografia que pouco tem a ver com a realidade e reproduz, sem qualquer crítica, uma versão fictícia.

No Pleno de agosto de 1957, com a presença de Prestes, o Comitê Central decidiu formar uma comissão para elaborar um projeto de mudanças na linha política, formada por Francisco gomes, leivas Otero, Sérgio Holmos, Moisés Vi-nhas e Jover Teles. Ao mesmo tempo, por proposta e empenho do secretário-geral, destituiu Arruda, Amazonas, grabois e Holmos do presidium, um tipo de solução em quase tudo parecido com a destituição de Molotov, Malenkov e Kaganovitch, na União Soviética. No lugar dos destituídos assumiram Marighella, Mário Alves, giocondo Dias e Calil Chade, embora haja depoimentos que falem em luchesi em vez de Marighella.

É sabido que Pomar se contrapôs a essa destituição, menos por concordar com as posições políticas dos defenestrados e muito mais por discordar, outra vez, dos métodos postos em prática. gorender interpretou essa postura de outra maneira. Segundo ele, embora Pomar tenha sido um crítico severo da Comissão Executiva, assim que as linhas ideológicas da discussão ficaram definidas, teria prevalecido nele a formação stalinista, reaproximando-o de Amazonas e grabois.

Para Pomar, porém, as mudanças no órgão executivo máximo do par-tido, como mais tarde expressou em artigos para o V Congresso, não tinham em vista abrir caminho para um debate interno que ajudasse a superar e evitar a repetição dos erros dogmáticos e sectários e o culto à personalidade, que haviam impregnado as concepções de dirigentes e militantes. Elas tinham em mira responsabilizar apenas alguns poucos pelas concepções predominantes, dando a impressão de que, com seu afastamento, os principais obstáculos aos acertos do partido haviam sido superados, e elaborar uma nova linha política, sem qualquer debate mais amplo.

Nesse movimento, que Pomar considerou sem princípios, Prestes se apoiou novamente em alguns dos dirigentes do partido que haviam contribuído com ele na elaboração da linha do IV Congresso. Por intermédio de giocondo Dias, for-mou secretamente uma comissão paralela à constituída pelo CC, composta pelo próprio Dias, Mário Alves, Jacob gorender, Alberto Passos guimarães, Armênio guedes, Dinarco Reis e Orestes Timbauva. Essa comissão ultrassecreta, como re-conheceu depois gorender, elaborou um documento que o próprio Prestes apre-sentou de surpresa, na reunião de março de 1958, sendo aprovada como uma Declaração na qual, como se afirmou, estaria esboçada uma política diferente das seguidas anteriormente.

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Pomar mais uma vez se opôs e votou contra a Declaração, seja por discor-dância com o método, seja por divergências com seu conteúdo. Não cansava de repetir que era irônico que aquela linha política, considerada por muitos como de abertura para a participação política democrática na sociedade, tivesse sido elabo-rada de forma tão antidemocrática e “stalinista”, repetindo os velhos métodos de direção, tão execrados (nos outros) pelos que dela participaram.

A Declaração de Março partia da premissa de que o desenvolvimento do ca-pitalismo no país era o elemento progressista por excelência da economia brasileira e favorecia a luta pela democracia. Ao alterar a velha estrutura econômica e criar uma mais avançada, o capitalismo nacional entraria em conflito com a exploração imperialista e a exploração tradicional arcaica e em decomposição do latifúndio.

Pomar não enxergou nisso qualquer mudança na política anterior, em que o imperialismo e o latifúndio sempre apareceram como travas ao desenvolvimento capitalista nacional. Primeiro porque considerava que o capitalismo nacional se desenvolvia em associação com o imperialismo e conservando o monopólio da terra. Convencera-se, mais do que antes, de que o imperialismo e o latifúndio não eram travas, porém associados do capitalismo nacional.

Depois, porque o capitalismo nacional era capitalismo e seu desenvolvi-mento deveria provocar, como em qualquer capitalismo, crises, desemprego, pau-perização e aumento da exploração da classe operária. Embora considerando-o, nas condições brasileiras, um elemento de progresso, principalmente por propiciar o crescimento da classe operária, Pomar achava necessário diferenciar os interesses das classes oprimidas, dos trabalhadores, dos interesses da burguesia nacional e das classes dominantes em geral, nesse processo de desenvolvimento. Pensava que no delineamento dessa contradição estava o caminho da revolução brasileira.

Pomar também não viu muita diferença com o passado na afirmação de que a democratização do regime político seguia seu curso, enfrentando a oposição das for-ças reacionárias e pró-imperialistas e sofrendo, em certos momentos, retrocessos ou brutais interrupções. Ou que o processo de democratização, como tendência perma-nente, podia superar quaisquer retrocessos na luta das forças progressistas contra o imperialismo norte-americano e seus agentes internos e pela extensão e consolidação da legalidade constitucional e democrática. Esta era a ideia predominante entre 1945 e 1947. O partido acreditara firmemente nessa tendência permanente, chegando a se apresentar como o guardião da ordem, sem que isso convencesse o imperialismo e seus agentes internos a não excluir os comunistas da legalidade constitucional.

Para ele, a história brasileira mostrava a enorme dificuldade que as forças progressistas encontravam para fazer avançar o processo de democratização. Os retrocessos e brutais interrupções haviam sido a norma, não a exceção, e eles só em parte dependeram dos erros e acertos dos comunistas e das forças democráticas e progressistas. De 1948 a 1956, apesar da linha esquerdista, somente em alguns

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raros momentos o partido deixou de utilizar as brechas para ampliar a legalida-de constitucional e democrática. Em vários momentos, nesse afã, chegou a fazer alianças táticas politicamente pouco recomendáveis com setores reacionários do PSD e UDN. A questão democrática, portanto, acreditava Pomar, era mais ampla e complexa do que o tipo de abordagem da Declaração, que parecia pretender criar uma muralha entre a legalidade constitucional e as rupturas democráticas que poderiam advir da mobilização e da luta popular.

Pomar também considerava mal resolvida a suposição de que o desenvol-vimento capitalista nacional fosse do interesse do proletariado e de todo o povo. Isto havia levado o partido, em 1945, a se subordinar aos interesses da burguesia nacional e praticar a política de “apertar os cintos”. Com a Declaração, pensava, essa mesma concepção conduzia os comunistas a ter como horizonte máximo o desenvolvimento independente e progressista da economia nacional e medidas de reforma agrária em favor dos camponeses.

Ele supunha que o caminho pacífico deveria ser perseguido e talvez até pu-desse ser viável. Mas achava que a Declaração era unilateral. Vislumbrava apenas a democratização crescente da vida política, o ascenso do movimento operário e a constituição da frente única nacionalista e democrática, deixando de considerar a verdadeira força e disposição dos inimigos diante desses processos.

É verdade que a Declaração admitia que os inimigos poderiam empregar a violência e impor uma solução não pacífica. No entanto, ao desconsiderar a força real deles e o grau de antagonismo entre os dois projetos em maturação para a crise brasileira, ela subestimava a solução não pacífica e desarmava o partido, a classe operária e o povo para a possibilidade de um novo retrocesso e de uma brutal in-terrupção na legalidade democrática.

Pomar também não aceitava a tese de que as concepções dogmáticas e sec-tárias constituíssem o perigo fundamental a combater naquele momento e achava que o dogmatismo poderia ser tanto de esquerda quanto de direita. Considerava necessário combater em duas frentes, tanto as concepções esquerdistas como as direitistas, opondo-se prevalentemente ao avanço das concepções de direita, tendo em conta justamente a força do avanço capitalista.

Em sua opinião, a Declaração era uma manifestação viva dessas concepções de direita, opinião reforçada pelo artigo em que Prestes dizia que o partido, ao superestimar o imperialismo e julgar desfavorável a correlação de forças, deixara de levar em conta as forças que se opunham ao imperialismo e não compreendera que o processo da revolução brasileira deveria ser o da gradual acumulação de reformas profundas e consequentes dentro do próprio regime, chegando até às transfor-mações radicais exigidas pelo desenvolvimento histórico brasileiro. Nada muito diferente do que supusera entre 1944 e 1947, pensou Pomar, levando o partido a ficar inerme diante do avanço antidemocrático.

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Pomar realmente se alarmou com todas essas novas guinadas, que só apa-rentemente representavam um ajuste de contas com o stalinismo, seus dogmas e seu mandonismo. Convencera-se de que o embate de projetos para sair da crise brasileira possuía uma característica nova, marcada pela presença de mas-sas e atuante da classe operária e do campesinato na configuração do projeto democrático. Embora este ainda tivesse uma natureza eminentemente capita-lista, a incorporação dos interesses das massas populares colocava, talvez pela primeira vez na história brasileira, as classes dominantes diante de uma disputa que saía de seu círculo restrito. Desconsiderar isso e, ao mesmo tempo, propor uma política que repetia, de forma ampliada, apesar das nuances, as práticas conciliadoras de 1945, poderia levar o partido a um desastre maior do que o daquele período.

Além do mais, os métodos de direção continuavam os mesmos, marcados pela autoridade incriticável e inamovível do mito prestista. Dirigentes arrogan-tes e autossuficientes haviam sido substituídos por dirigentes arrogantes e au-tossuficientes, que procuravam fazer crer que a simples troca de sofás represen-tava uma mudança em profundidade no partido. Diante de tudo isso, Pomar tornou-se pessimista e procurou concentrar suas atividades no distrito operário para onde se mudara, o Tatuapé. Morava com Catharina e os dois filhos mais novos na rua Ibicaba, 63 e voltou-se com persistência para reforçar as células de fábricas e as atividades entre os trabalhadores.

Ele não se limitava, porém, a isso. Informes reservados do DOPS tra-zem uma imensa lista de suas atividades durante todo o ano de 1958. Ele teria sido designado, juntamente com Chamorro, Sanches Segura e Antônio Martins para o Comitê Estadual de São Paulo. Participando de uma reunião pública em Santos, teria informado a revogação, para breve, da prisão preventiva de Prestes, considerando isso a mais auspiciosa notícia que poderia trazer aos presentes, já que com Prestes em liberdade os comunistas teriam mais forças e estímulo para a jornada futura.

Nesse mesmo período, um informante infiltrado da polícia diz que, numa conversa com Calil Chade, tivera conhecimento do afastamento dos quatro membros do presidium e da luta entre Pomar e Arruda, havendo a pos-sibilidade de Pomar se tornar outra vez o segundo homem do partido. Nessa mesma linha de raciocínio teria se expressado Elisa Branco, para quem, sob a orientação de Prestes, Pomar e outros dirigentes experimentados, o PCB reto-maria o justo caminho, “identificando a política comunista com os interesses fundamentais do povo”.

Outro relatório reservado, de abril, informa que Pomar teria ido a Jânio, governador de São Paulo, solicitar audiência para Prestes, enquanto um rela-tório de julho descreve que, na Conferência Estadual do PCB em São Paulo,

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Pomar, Orlando Piotto e Adoração Vilar, com especialidade Pomar, haviam sido tachados de mandonistas. O mesmo informante, em relatório de outubro, comunicava que Pomar havia sido rebaixado “por incapacidade política” e de-signado para o comitê distrital do Tatuapé.

Assim, afora o trabalho partidário e a vigilância policial, Pomar teve que se preocupar com a própria sobrevivência. Foram as pressões de Prestes e do novo Secretariado Nacional que levaram o Comitê Estadual de São Paulo a afastá-lo de seu quadro e a cortar sua condição de profissional do partido. Se pretendia con-tinuar como revolucionário profissional, ele que se virasse, foi o que lhe disse um dos novos dirigentes cooptados para a direção estadual. Passou a trabalhar, então, como tradutor de inglês e de russo.

Verteu para o português livros de economia política, psiquiatria e história, alguns sob seu próprio nome, outros sob o nome dos que haviam conseguido a tradução, como o psiquiatra João Bellini Burza. Nessa sua nova atividade pro-fissional ganharam destaque as traduções de Ascensão e Queda do III Reich, de William Shirer e, mais adiante, De Moncada à ONU, de Fidel Castro. E manteve suas atividades partidárias, mesmo porque, ao contrário do que dissera o infor-mante, ele não fora designado para o distrital do Tatuapé. Na verdade, ele havia sido eleito, em conferência democrática, como secretário político desse distrital e não haviam conseguido destituí-lo dessa função.

Também não tinham condições de destituí-lo do Comitê Central, em que não havia ambiente para uma destituição forçada, fora de congresso. Tive-ram, então, que continuar ouvindo suas marteladas sobre a necessidade de um debate amplo e consistente sobre o desenvolvimento do capitalismo nacional e o que isso poderia significar para a teoria da revolução brasileira. Defendia que a luta contra os erros, desvios e distorções de esquerda só poderia ter al-gum resultado positivo se fosse imposta uma derrota vigorosa às concepções de direita e se a teoria dos métodos partidários fosse avaliada em profundidade, confrontando-a com a prática histórica do partido. Muitos dos membros do CC concordavam com ele em teoria, mas no momento das votações o farol decisivo era a opinião e o voto de Prestes. Na maior parte das vezes, Pomar viu-se quase sozinho, não contando nem mesmo com os votos favoráveis de Amazonas, grabois e outros tidos como do mesmo “grupo”.

Vez por outra, levando em conta o renome de que gozava, a despeito de difundir a história de sua destituição por incapacidade política, o Secretariado do CC o destacava para alguma nova missão especial. Foi assim que, em junho de 1959, foi enviado para participar como convidado do Congresso do Partido Comunista Romeno. Prestes e a direção do PCB, embora totalmente fiéis ao PCUS, eram ignorados pela direção soviética e desconheciam a tempestade que estava se armando no movimento comunista internacional, não só em

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virtude das novas teses sobre coexistência, competição e caminho pacíficos e reformas capitalistas no socialismo, mas principalmente porque os soviéticos, como no tempo de Stálin, tentavam impô-las a todos os partidos comunistas como a verdade única.

Pomar pôde assistir, assim, aos ataques abertos de Krushev aos chineses, cuja delegação era dirigida por Peng Chen, e a tentativa frustrada dos soviéticos em transformar o congresso do PC Romeno numa conferência internacional de condenação do PCCh, por este defender uma política de coexistência pacífica diferente e por considerar que cada partido comunista tinha o direito e o dever de seguir seu próprio processo de revolução e construção socialista, independen-temente da política do PCUS e da União Soviética. Os chineses continuavam respeitando o PCUS como o partido dirigente do campo socialista – para subli-nhar esse reconhecimento, Peng Chen se referiu a um adágio popular repetido por Mao Zedong, de que, se até cobra tinha cabeça, muito mais razão tinha o movimento comunista para tanto – mas consideravam que tal condição não dava aos soviéticos o direito de ditar a política dos demais.

Com algumas raras exceções, os ataques e manobras soviéticas apanharam de surpresa os representantes dos PCs, a maioria dos quais, embora se alinhando com o PCUS, não se sentiu autorizada a tomar uma posição sem consultar seu partido. Foi a primeira vez que Pomar tomou conhecimento mais direto das divergências reais que opunham soviéticos e chineses numa série considerável de problemas internacionais e nacionais. Teve um painel relativamente amplo da situação e a posição de grande parte dos partidos socialistas e comunistas diante de tais problemas, viu a delegação do Partido do Trabalho da Albânia contra--atacar com força os soviéticos, embora nem sempre concordando com as teses dos chineses, e assistiu aos oradores dos PCs indonésio e indiano chamando os soviéticos de revisionistas.

Em sua intervenção, Pomar deixou claro que falava em nome do PCB e, como tal, tinha que transmitir a visão predominante em seu partido e não sua própria visão pessoal. Embora simpatizasse com a posição chinesa numa série de assuntos, em especial na necessidade de os partidos comunistas definirem suas próprias políticas com independência, como representante oficial do PCB tinha que explicitar que seu partido concordava com as teses soviéticas e as apoiava. Apesar disso, não se sentia com autoridade para votar em qualquer proposta de condenação a outro partido comunista.

Ao retornar e informar os acontecimentos ao Secretariado Nacional do PCB, sentiu surpresa na reação da maioria de seus membros. Eles realmente igno-ravam o que ocorria no movimento comunista internacional e não tinham qual-quer ideia da profundidade das divergências. Praticamente todos concentraram-se em pedir mais detalhes sobre as diversas posições apresentadas no curso daquele

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congresso e, com exceção de Prestes, que reafirmou sua confiança e fidelidade ao PCUS, os demais omitiram-se de dar opinião.

O conjunto do partido ficou na ignorância desses acontecimentos até que o contencioso entre os partidos comunistas da União Soviética e da China viesse a público, no decorrer de 1960. E a ignorância, causa de muitos dos males e des-graças da humanidade, como Pomar repetia amiúde, parecia fadada a continuar agindo sobre a consciência e a ação de muitos dirigentes e militantes e adubando o terreno para a ocorrência de desgraças também no partido.

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Fac-símile do ofício de 10/12/76: Pomar, Arroyo e Aldo são citados.

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Fac-símile do ofício de 14/12/76: ataque é marcado na antevéspera.

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General Leônidas Pires Gonçalves, que chefiava o CODI do I Exército quando ali foi assassinado Armando Frutuoso, assume ter comprado Jover Teles com dinheiro e emprego para a filha.

Manoel Jover Teles, em imagem que a polícia política juntou ao processo: preso, concordou em

colaborar com o regime.Processo do STM

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Porta principal, vista por dentro.Domício Pinheiro/Agência Estado

Curiosos, policiais e jornalistas diante da casa da Rua Pio XI, horas após o massacre. Domício Pinheiro/Agência Estado

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Mais marcas da destruição. O vitrô, que ficava na cozinha, na parte de trás da casa, também foi alvo dos atiradores do DOI-CODI.Domício Pinheiro/Agência Estado

Interior da casa - cama com estrado e jornais no chão Domício Pinheiro/Agência Estado

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Nas paredes internas, marcas dos balaços atirados pelos agentes da repressão. O aparelho do PCdoB tinha poucos móveis e foi destruído pelos projéteis de grosso calibre.Domício Pinheiro/Agência Estado

Vitrô quebrado por tirosDomício Pinheiro/Agência Estado

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Fac-símile de documento mostra armas “plantadas” pelo DOPS.Reprodução

O general Dilermando Gomes Monteiro, comandante do II Exército (ao fundo, o governador Paulo Egydio Martins): a promessa de paz era falsa.Agência Estado

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Fotografia oficial do massacre, tomada na sala de estar, com todas as características de uma cena montada.Instituto de Criminalística-SP (nº 65)

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Pomar com óculos que usava somente

para ler. O panfleto é “plantado”, como as

armas.Instituto de Criminalística-SP

(nº 67)

A posição do corpo de Arroyo foi mudada para que se obtivesse esta fotografia.Instituto de Criminalística-SP (nº 69)

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João Baptista Franco Drummond, o mais jovem dos participantes da reunião do PCdoB na Lapa: “atropelado” pelo DOI-CODI aos 34 anos.Arquivo da família Drummond

Drummond com a esposa, Maria Ester. Data não definida.

Arquivo da família Drummond

José Gomes Novaes, membro do CC do PCdoB em 1976, revisita em 1987 rua de Pinheiros onde se separou do traidor Jover Teles.Carmen Souza

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As presas políticas Maria Trindade e Elza Monnerat, no julgamento na Auditoria Militar, 1977.Hélio Campos Mello

Wladimir Pomar, Aldo Arantes e Haroldo Lima durante julgamento na Auditoria Militar, 1977.Hélio Campos Mello

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Wladimir e Apolônio de Carvalho em ato em homenagem a Pedro Pomar. ABI/SP, 11 de abril de 1980, São Paulo/SP.Nair Benedicto/ Agência F4

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Rachel discursando em homenagem a Pedro Pomar.ABI/SP, 11 de abril de 1980, São Paulo/SP.Nair Benedicto/ Agência F4

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Wladimir discursa em homenagem a Pedro Pomar. Também presentes: Alípio Freire, Apolônio de Carvalho (de paletó preto) e Luiz Eduardo Greenhalg.ABI/SP, 11 de abril de 1980, São Paulo/SP. Nair Benedicto/ Agência F4

Cerimônia de translado dos restos mortais de Pomar de São Paulo para Belem do Pará. ABI/SP, 11 de abril de 1980, São Paulo/SP.Nair Benedicto/ Agência F4

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Wladimir carregando a urna com os restos mortais de Pedro Pomar. ABI/SP, 11 de abril de 1980, São Paulo/SP.Nair Benedicto/ Agência F4

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18É A FÁBRICA DO PENSAMENTO,

QUAl MÁQUINA DE TECIMENTO

Quem visa descrever e entender o que é vivoO espírito põe antes fugitivo

E em mãos fica com as partes: o fatalÉ o vínculo que falta, o espiritual.

J. W. goethe (Fausto)

1976, São Paulo: dezembro, noite do dia 131959-1960, São Paulo e Rio: temores

Mário decidiu retornar à sala. Sentou numa das cadeiras e entrou num daqueles estados de abstração a que se habituara para se desligar dos problemas e das conversas em volta e meditar sobre as questões que mais o afligiam. Ca-tharina e os filhos viviam brigando com ele por causa disso. Não eram poucas as vezes em que começavam uma conversa e viam-se falando sozinhos porque a mente dele vagava por mundos distantes.

Mas seu mundo daquele momento era a inquietação causada pela con-versa com Rui. Achara suas explicações sem consistência e redobrara suas preo-cupações com a segurança de todos. Chegou a torcer para que Valdir e Sérgio, os dois próximos a entrar, falhassem no ponto e não viessem à reunião.

Seus desejos apenas em parte se confirmaram. Sérgio realmente faltara e apenas Valdir chegara na segunda e última turma. Estavam agora dentro do aparelho nove membros do Comitê Central, dos quais cinco eram oriundos da AP. Mal conversou com eles e foi deitar. Seus pensamentos se atropelavam, mas teimavam em retornar aos anos que precederam ao golpe militar de 1964.Era um tempo de grande ebulição. A divisão do movimento comunista in-ternacional começara a se tornar patente. Havia crescente pressão imperialista sobre os países da América latina e sobre o Brasil, para abrir mais suas portas à participação dos capitais estrangeiros na economia e adotar medidas mais duras

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contra os comunistas e todos que se aliassem a estes. Havia ainda um ascenso dos movimentos revolucionários em várias partes do mundo, incluindo a vitó-ria recente da Revolução Cubana.

Apesar de sua posição de confronto aberto com a direção, Pomar rece-beu nova incumbência de viagem em 1959: ir a Cuba, em novembro, sendo provavelmente o primeiro dirigente comunista brasileiro a ver de perto o que ocorrera naquela ilha do Caribe. Sem ter conhecimento de que Felipe Cossio, seu pai, também se encontrava em Cuba nesse período, passou quarenta dias lá e, ao voltar, escreveu várias matérias para Novos Rumos e participou de uma série de conferências, palestras e debates contando o que vira e apelando para a solidariedade com aquele país.

No relatório reservado 723, de 11 de dezembro de 1959, um informante do DOPS descreve uma dessas conferências, realizada na Biblioteca Municipal de São Paulo. Fez blague a respeito de Pomar dizer-se “homem de esquerda”, chamando a isso um “eufemismo para encobrir a expressão comunista”, e anotou sua crítica ao presidente Juscelino por incentivar a produção do açúcar brasileiro como forma de concorrer com Cuba. Além disso, acusou a presença da sra. Prestes Maia entre o público presente.

Foi nesse período que Pomar estreitou sua amizade com Carlos Alberto Ferrinho, um comerciante português que também morava no Tatuapé, mas pos-suía uma relojoaria na rua da Mooca, perto de onde Arroyo instalara uma livraria. Ferrinho, como damista conceituado, recebia e buscava revistas sobre damas de todo o mundo, inclusive da União Soviética, país onde esse jogo tinha, como o xadrez, grande difusão. Ao comentar com Arroyo seu interesse em aprender russo, foi aconselhado a procurar Pomar, com quem começou a ter aulas do idioma de Maiakovski e, como diz Ferrinho, mais ainda de política. Essa atividade aproxi-mou os dois, cimentando uma amizade que perdurou enquanto Pomar viveu.

Enquanto isso, os movimentos operário e popular no Brasil mostravam crescente disposição de luta e o Comitê Central do PCB discutiu e aprovou, entre o final de 1959 e o início de 1960, as teses para o V Congresso do partido. As teses falavam das modificações ocorridas no mundo e das possibilidades de liquidar a guerra Fria por meio da coexistência pacífica, da negociação e do amainamento das lutas contra o imperialismo. Mas admitiam que este, tendo como centro os Estados Unidos, intensificava sua corrida armamentista e sua intervenção em todos os países do mundo, e obrigava a União Soviética e os de-mais países socialistas a investir grande parte dos seus recursos em armamentos de defesa caros e sofisticados.

As teses sustentavam que o curso do desenvolvimento capitalista nacional era progressista e representava o caminho para a libertação do povo brasileiro, cabendo ao proletariado um papel positivo na aliança, inclusive ideológica, com

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o nacional-reformismo, numa frente única que tivesse em mira resolver a contra-dição que opunha a nação ao imperialismo americano e a seus agentes internos. Entretanto, elas reconheciam que esse desenvolvimento se caracterizava pela ten-dência predominante de adaptação à dependência em relação ao imperialismo, pelo fato de que a maior parte da burguesia brasileira se associava aos capitais imperialistas e de que, com a penetração do capitalismo, não se abalava, mas se reforçava o regime monopolista de propriedade da terra.

As teses afirmavam, por um lado, que o capitalismo de Estado assumira prevalentemente formas progressistas e nacionais porque, ao realizar o processo de industrialização, a burguesia brasileira enfrentara a tarefa de promover a criação, num prazo breve, de um mínimo de forças produtivas modernas. Por outro, elas frisavam que esse capitalismo de Estado tendia a servir, em determinados casos, aos interesses do imperialismo.

As teses aceitavam a aceleração do ritmo inflacionário como uma necessi-dade do processo de desenvolvimento econômico. No entanto, elas também acu-savam a presença do processo inflacionário como um dos fatores importantes da acumulação capitalista, ao permitir a elevação do grau de exploração da classe operária e, em geral, das massas trabalhadoras.

Para as teses, todas as diferentes contradições que a sociedade brasileira en-cerrava estavam relacionadas e influenciadas por um mesmo fator, o desenvol-vimento econômico em processo no país. Era este desenvolvimento que daria à contradição com o imperialismo o caráter de principal, dela fazendo depender a solução de todas as outras. As teses reiteravam ainda a suposição da Declaração de Março de 1958 de que existiam possibilidades reais de realizar a revolução anti-imperialista e antifeudal por meio de um caminho pacífico. A insurreição armada, ou a guerra civil, não eram mais inevitáveis. Ao mesmo tempo, também consideravam que, em certas circunstâncias, poderia ser necessário trilhar um ca-minho não pacífico.

Dadas a público em abril de 1960, as teses sofreram, de imediato, os im-pactos da vitória da Revolução Cubana e as turbulências da disputa presidencial. A maioria dos dirigentes partidários, principalmente aqueles mais engajados nas ideias de um caminho pacífico, haviam torcido o nariz para a vitória de Fidel e seus guerrilheiros.

– Foi uma exceção à regra! Este era o argumento mais utilizado no período, argumento que tinha pou-

ca eficácia diante do fato em si, que marcou profundamente os brasileiros. A Revo-lução Cubana ganhou dimensões épicas no imaginário popular, principalmente da juventude, dimensões que se agigantavam ainda mais à medida que sua natureza anti-imperialista ia ficando mais nítida com a ocorrência e o enfrentamento do bloqueio norte-americano.

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Além de ver-se diante de um incômodo teórico e prático como esse, que colocava em dúvida algumas de suas teses mais caras, os novos dirigentes do PCB tinham que se envolver com a campanha eleitoral em curso. O PSD e o PTB ha-viam se unido novamente, desta vez em torno da candidatura do marechal Henri-que Teixeira lott a presidente. O PDC lançara Jânio Quadros, que trabalhava para ser chancelado pela UDN, enquanto o PSP apresentara Ademar de Barros, com a nítida intenção de dividir as forças que poderiam se opor a Jânio.

O PCB, é lógico, não tinha muitas opções, tendendo desde o primeiro momento para a candidatura lott, que tinha Jango como vice. Mas havia setores partidários considerando seriamente a possibilidade de um apoio a Jânio, se este se afastasse da UDN. De qualquer modo, até setembro de 1960, o partido teve participação pouco significativa na disputa eleitoral, já que esteve totalmente mer-gulhado na discussão das teses para seu congresso.

Pomar escreveu uma série de artigos para a tribuna de debates do jornal Novos Rumos, em que expôs publicamente muitas das ideias que vinha discutindo no Comitê Central desde 1956. Em artigos publicados em maio, junho e julho de 1960, voltou a reiterar suas opiniões sobre os erros dogmáticos e sectários, sobre sua própria responsabilidade e sobre a necessidade de impedir a repetição daqueles erros e de evitar cair no erro oposto.

Mas foi nesse mesmo período, na correspondência com seu irmão Ro-man, cujo espírito acolhedor e hospitaleiro lembrava-lhe o avô Araújo, que Po-mar expôs de forma mais sintética sua visão de si mesmo diante das questões em jogo. Em maio, julgando que o irmão o havia esquecido, depois de mudar do Rio de Janeiro para Óbidos, demonstra alegria por haver recebido um bilhete dele e lembra-o de que eram irmãos e “nossa mãe, apesar da pobreza, procurou educar-nos com bons sentimentos”.

E continuou: “Quanto a mim, mesmo que a aparência e certo tempera-mento indiquem orgulho, na verdade continuo o mesmo irmão, teimoso mas camarada. Além disso, pobre orgulhoso é a pior coisa que o céu cobre. Nosso pai aconselhava-nos orgulho, mas agora compreendo que era sinônimo de dignidade. E homem digno é o que quero ser – sendo uma das boas qualidades que pretendo infundir em meus filhos. Naturalmente que gostaria que os garotos também se vissem livres do egoísmo, do individualismo feroz em que, geralmente, fomos e ainda são criados os filhos de povo”.

Nessa linha de dignidade, em seus diversos artigos para os debates, considerou as teses um avanço em relação à Declaração de Março de 1958, mas ao mesmo tem-po uma verdadeira sopa eclética, tratando as contradições de forma genérica e sem tirar delas as conclusões pertinentes sobre o desenvolvimento capitalista nacional.

Segundo ele, nas condições do Brasil de então, tal desenvolvimento não po-deria seguir outro curso que não fosse a dependência ao imperialismo e ao mono-

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pólio da terra. E, mesmo que escapasse dessa dependência, o que o impulsionaria seria ainda e sempre a lei da mais-valia, a caça ao lucro, a exploração desenfreada da classe operária. Estes eram os verdadeiros impulsos internos que conduziam ao desenvolvimento capitalista, sem cuja análise os comunistas acabariam por deixar de lado os interesses de classe dos trabalhadores e cairiam na defesa do conceito geral de nação, conceito que correspondia mais aos interesses das classes dominan-tes do que dos trabalhadores.

Pomar concentrou seus esforços em mostrar que a burguesia brasileira não tinha contradições antagônicas com o imperialismo e o latifúndio, aos quais estava associada. Argumentava que o capital monopolista estrangeiro não podia ajudar a independência econômica do país, procurando, ao contrário, subordinar a nossa economia e a nossa vida política aos seus interesses.

Disso não se deveria deduzir, porém, que os imperialistas não criassem in-dústrias nem fizessem concorrência para liquidar a indústria nacional e dominar o mercado brasileiro. Ao exportar seus capitais para um país como o Brasil, o impe-rialismo era obrigado a fomentar a economia, criar estradas de ferro e outras vias de comunicação, fundar indústrias, fazendo surgir desse modo o proletariado e a intelectualidade e estimulando o desenvolvimento das relações capitalistas. Achava que, nessas condições, o desenvolvimento capitalista era um progresso, o que não deveria levar os comunistas a negar seus traços essenciais, mas sim denunciar a forma reacionária e dolorosa que assumia.

Pomar discutiu a contradição que o capitalismo de Estado encerrava sobre o papel da burguesia no Brasil, destacando que ele não fora produto somente da ação dessa classe, mas também produto das lutas populares. Estas haviam percebi-do a importância da industrialização e a burguesia, por falta de capitais próprios para criar a grande indústria, vira-se obrigada a recorrer ao capitalismo de Estado, uma demonstração palpável de que a indústria poderia ser dirigida sem ela. A palavra de ordem de nacionalização deveria estar relacionada, pois, tanto à ne-cessidade de ter instrumentos fortes para a industrialização quanto para indicar a possibilidade do socialismo.

Pomar também criticou a maneira frouxa como as teses apresentaram a necessidade de combater a política inflacionária, mal disfarçando a apologia desta. Ele sustentou que a inflação tinha sido um instrumento bem manejado em favor de uma minoria e contra os interesses das grandes massas, inclusive da burguesia nacional. E alertou para o fato de que já começavam a aparecer no horizonte sintomas de dificuldades, com os estoques que se acumulavam e começo do predomínio da oferta relativa. Isso levava os grandes grupos finan-ceiros a manifestar o propósito de substituir a política inflacionária, de certa prosperidade e ainda favorável a eles numa situação de procura relativamente alta, por outra política, de deflação, restrição de créditos, liquidação da pequena

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e média indústria, austeridade e congelamento dos salários, conforme o Progra-ma de Estabilização Monetária apresentado sob orientação do FMI.

Pomar também não aceitava a tese de subordinação de todas as contradições da sociedade ao desenvolvimento econômico em processo no país, dando à con-tradição anti-imperialista o caráter de principal. Considerou essa tese uma subor-dinação ao desenvolvimento capitalista nacional e ao determinismo econômico. Para ele, este era o centro de suas divergências.

Porém, não conseguiu dar solução ao problema. Ainda aceitou a tese etapista de que a revolução teria apenas objetivos nacionais- democráticos e não socialistas, limitando-se à necessidade de dar destaque merecido ao crescimento do proletaria-do, para ele o elemento mais progressista e dinâmico da sociedade brasileira.

No processo de realização do V Congresso, Prestes empenhou-se pessoal-mente para evitar a eleição de qualquer divergente sério, seja como delegado ao encontro, seja como dirigente em sua área de atuação. No caso específico de Po-mar, Prestes já havia feito esforços consideráveis para que ele aceitasse voltar para o Pará, onde acreditava que sua atividade teria pouca repercussão. Não havendo conseguido esse objetivo, compareceu pessoalmente às sessões do congresso no distrital do Tatuapé, jogando todo o peso de sua autoridade para destituí-lo da secretaria política do comitê e impedir sua eleição como delegado. Foi derrotado por ampla maioria, o que deixou o secretário-geral visivelmente agastado.

Nesse meio tempo, na correspondência com o irmão, Pomar se queixava de que em casa as coisas continuavam “no rame-rame de sempre. Os garotos de vez em quando doentes, bem como eu e Santinha. Com o frio que está caindo em São Paulo, as mazelas se agravam”. Refere-se a que, pelo lado dele, andava às voltas com a campanha eleitoral (“sabes que estamos apoiando o lott”), com a solida-riedade a Cuba e com a preparação do V Congresso, e que já fizera alguns artigos para o debate no “nosso semanário”.

Conta ao irmão, então, que “alguns elementos me atacaram, chegando um a dizer que sempre fui um turista, aventureiro, criminoso... Estas coisas não me entristecem e sim a posição de certos amigos que antes apareciam como comunis-tas 100% e, agora, só o são de palavras”. Noutra correspondência, de agosto de 1960, depois de explicar que não pôde ir a Óbidos, como desejava, para “matar a saudade da terra”, deitando numa rede e comendo uma tartaruguinha, ele diz ao irmão que ainda não tinha planos para o futuro. “A coisa não está fácil, especial-mente se vier um novo período de reação e se o perigo de guerra aumentar. Sabes os meus compromissos e não poderei abandoná-los”. E reclama de mais notícias: “Não compreendo por que me escreves tão poucas linhas. É falta de tempo? Bem que precisávamos conversar mais.”

Apesar desses dissabores, Pomar avaliou que o debate democrático do V Congresso, realizado entre 28 de agosto e 6 de setembro, com a participação de

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400 a 450 delegados, debalde os esforços do grupo dirigente do partido para en-quadrá-lo de acordo com suas concepções, desembocou numa resolução política em que estavam mescladas as concepções de todos os “partidos” que, na prática, formavam o PCB. Diga-se, de passagem, que eram pouco mais de vinte os de-legados com posições nitidamente contestatórias, em geral vaiados pelos demais quando tentavam falar em plenário.

A resolução encampou, como contradições fundamentais, aquelas que opu-nham a nação ao imperialismo norte-americano e seus agentes internos e entre as forças produtivas em crescimento e o monopólio da terra, mas aceitou que esta úl-tima se expressava como contradição entre os latifundiários e as massas campone-sas. Considerou a contradição entre o proletariado e a burguesia como antagônica e também fundamental, mas reiterou que naquela etapa da revolução brasileira tal contradição não exigia uma solução radical, socialista.

A resolução política do V Congresso indicou, como tarefas essenciais, medidas radicais para eliminar a exploração dos monopólios estrangeiros, a transformação radical da estrutura agrária, com a eliminação da propriedade monopolista da terra, o desenvolvimento independente e progressista da econo-mia nacional, a elevação do nível material e cultural dos operários, dos campo-neses e de todo o povo, a garantia real das liberdades democráticas e a conquista de novos direitos democráticos.

Segundo ainda a resolução, a realização dessas tarefas implicava transfor-mações revolucionárias, com a passagem do poder às mãos das forças anti-impe-rialistas e antifeudais – a classe operária, os camponeses, a pequena burguesia e a burguesia ligada aos interesses nacionais –, entre as quais o proletariado, que, como a força revolucionária mais consequente, deveria ter o papel dirigente.

A resolução também apontava a necessidade de unificar as forças acima numa frente única, nacionalista e democrática, devendo o proletariado salvaguar-dar sua independência ideológica, política e organizativa dentro dessa frente. Esta seria a condição para o proletariado conquistar a hegemonia na frente revolucioná-ria e assegurar a transição ao socialismo após completadas, em seus aspectos essen-ciais, as tarefas da revolução nacional e democrática. Todo esse processo poderia se dar pelo caminho pacífico, em vista das condições do mundo e do Brasil, o que não implicava conciliação de classe, passividade ou espontaneismo ou desconhecer a possibilidade das forças revolucionárias serem obrigadas a um caminho revolu-cionário não pacífico.

A resolução política do V Congresso foi bem a expressão de mil mãos em seu processo de elaboração e, ao mesmo tempo, uma derrota da Declaração de Março de 1958 e, em certa medida, das próprias teses. Não significou, em absoluto, uma vitória das teses de Pomar ou de outros que se opuseram, por diferentes motivos, à política que vinha sendo imposta ao partido desde 1958.

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Mas significou, sem dúvida, a emergência de uma realidade já antiga no PCB, mas camuflada, onde fervilhava uma série considerável de opiniões, cujo escla-recimento e unificação demandariam mais tempo de estudo, debate e experi-mentação no processo da prática política.

A resolução política do V Congresso manteve o mesmo núcleo analítico da realidade brasileira – imperialismo e latifúndio feudal versus desenvolvimen-to capitalista nacional – e a mesma visão de duas etapas revolucionárias distin-tas – uma nacional-democrática e outra socialista – presente em praticamente todas as políticas anteriores do partido. É provável que a maioria dos partici-pantes daquele congresso não se tenha dado conta disso. Nem do fato histórico de que tal núcleo de concepções, ao ser confrontado com os problemas reais do desenvolvimento capitalista brasileiro, havia se tornado o gerador das sucessivas crises nas estratégias e táticas do PCB.

Embora não tivesse encontrado a solução de tal contradição, Pomar pelo menos supunha que, enquanto ela continuasse imperando, o partido permane-ceria sem ter um rumo claro e tenderia a se confrontar com novas crises de velho conteúdo. Notou consternado que, durante e logo após o V Congresso, o PCB se transformara num mosaico ainda mais diversificado de tendências, correntes e “partidos” internos, cujos antigos elos de soldagem, o mito prestista e a fidelidade à linha justa do PCUS, desgastavam-se rapidamente e podiam se romper a qualquer momento. A Revolução Cubana, por outro lado, se transformara num novo polo de atração e clivagem, tensionando ainda mais aqueles elos.

O grupo dirigente, com Prestes à frente, teria que levar em conta todos esses fatores, de modo a reunificar o partido sobre novas bases e por meio de métodos realmente democráticos. No entanto, os dirigentes que compunham a nova Co-missão Executiva – Prestes, giocondo Dias, Mário Alves, Orlando Bonfim, Rami-ro luchesi, Carlos Marighella e geraldo Rodrigues dos Santos – consideraram o V Congresso como uma derrota definitiva das posições e concepções que haviam se oposto às teses. Simplesmente desprezaram o ecletismo da sua resolução ou o fato de que, embora houvessem conseguido afastar doze dos antigos membros do Co-mitê Central, num conjunto de vinte e cinco, não tiveram condições de impedir a eleição de vários daqueles divergentes que haviam se destacado nos debates, como Pomar, Calil Chade, lincoln Oest, Carlos Danielli e Ângelo Arroyo.

Expressão desse desprezo é o que consta do relatório reservado 432, de 9 de setembro de 1960, de um agente do DOPS paulista infiltrado no PCB, que conseguira recolher informações junto a Ramiro luchesi. Ele detalha que o V Congresso foi realizado no Edifício glória, sala 303, na Cinelândia, no Rio de Janeiro, tendo sido na Associação Brasileira de Imprensa (ABI) sua sessão de encerramento. luchesi teria dito que a vitória de Prestes havia sido total. A ala esquerdista, marxista-leninista, seguidora da doutrina político-ideológica

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da China Popular e liderada no Brasil pelos velhos militantes João Amazonas, Diógenes Arruda e outros, teria sido excluída do PCB.

Dos esquerdistas, teria contado luchesi, apenas Pedro Pomar havia se retratado, sendo incluído, juntamente com ele e com lourival da Costa Vilar, como suplente da Comissão Executiva, nova denominação do antigo presidium. Armando Mazzo teria sido um dos expulsos e, entre os nomes que passaram a compor o Comitê Estadual de São Paulo, além de luchesi, constavam os de Joaquim Câmara Ferreira, Antonio Chamorro, José Armando de Castro e “o elemento conhecido por Zé Careca”.

O agente policial deveria ser relativamente novo no partido, para não sa-ber que Zé Careca era Moisés Vinhas. Talvez também por isso tenha confundido exclusão do Comitê Central com exclusão e expulsão do partido nas informações de luchesi, que certamente visava dar ao “militante” a certeza de que a “vitória” teria sido realmente total. Nessas condições, a eleição de Pomar, não só para o CC como para a suplência da Executiva, como informara luchesi, só poderia ocorrer com base na “retratação”.

Alheia, pois, à realidade partidária, a nova direção do partido iniciou a im-plementação de uma política que se chocava com a própria resolução política do V Congresso e rompia com todas as promessas de democracia interna e direito de divergir. gorender supôs que o V Congresso deu precisão às ideias da Declaração de Março, mas não deixou de reconhecer que, logo depois, havia interpretações distintas a respeito da nova linha política. Enquanto Prestes e Dias, acompanhados pela maioria do CC, tomavam a aliança com a burguesia nacional como pedra de toque, alguns outros dirigentes destacavam o caráter dúplice da burguesia nacional e a prioridade na aliança com os setores populares.

Em outras palavras, enquanto Prestes supunha os membros da Executiva nacional totalmente fiéis a si, uma parte deles adotava, quase imediatamente após o Congresso, argumentos muito semelhantes a alguns daqueles apresentados por Pomar no processo de debate. Ele reafirmara várias vezes que a conduta da bur-guesia em relação à democracia e às massas sempre fora débil, medrosa, moderada. Nenhum de seus ideólogos chegara sequer a elaborar uma ideologia democrático--revolucionária, parecida ao menos à de um José Marti ou um Sun Yatsen.

Esses eram mais ou menos os argumentos que passaram a ser defendidos por alguns dos novos membros do núcleo dirigente diante do avanço do movi-mento social, para espanto de Prestes e dos que realmente continuavam fiéis a ele. Mas aqueles dirigentes não queriam ser classificados de stalinistas, conforme apodavam Pomar e outros que se opunham à linha justamente por ter como pedra de toque a aliança com a burguesia, e não com as massas populares. Preferiam esconder aquela similitude, sob o pretexto de que os “stalinistas” não adotavam a luta pelas reformas de base como elemento-chave da tática.

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Enquanto isso, a campanha eleitoral, que tinha como eixo programático da participação dos comunistas exatamente a luta pelas reformas de base, não ia muito bem das pernas. Ainda numa carta a Roman, no final de setembro, Pomar reconhecia que “o trabalho não foi tão intenso como das outras vezes”. “Não sei se é por isso também que não estou seguro da vitória. Muito vai depender do resulta-do, isto é, da diferença em São Paulo, a favor de Jânio. E aqui, deves saber, a massa está, em maioria, a favor do entreguista. O Adhemar ainda por cima entrou para atrapalhar, ou melhor, ajudar o Jânio”.

Pomar se lamenta justamente porque não ``haviam conseguido tirar as grande s massas trabalhadoras de São Paulo da influência janista, acreditavam muito mais no “entreguista” do que no marechal como capaz de realizar as refor-mas e base. As diferenças de Pomar em relação a essas reformas não residiam em sua importância como “centro da tática”, mas no fato de que elas apareciam, nas palavras de Prestes, como “centro da estratégia”.

O ano de 1960 terminou com a derrota relativa das forças democráticas e populares e com sérias indefinições nos rumos do partido, apesar das apreciações de luchesi e outros. Pomar, além disso, viu-se privado dos livros que, durante o período anterior de clandestinidade, deixara no apartamento de Roman e de sua mulher Jandira, na rua Manoel Niobei, na Urca, enquanto moraram no Rio de Janeiro. O apartamento passara a ser ocupado por um dos filhos de Zeca, tio de Pedro e Roman, e os livros haviam ficado lá.

lastimou-se de haver perdido Espartaco, Sacco e Vanzetti e Meus gloriosos irmãos, de Howard Fast; A sétima cruz, de Anna Seghers; Don Quixote, de Cervan-tes; Os ratos, de Dyonélio Machado; Jean Christophe, de Romain Rolland; uma co-leção quase completa das obras de Eça de Queirós; isso, além de vários outros, dos quais nem se lembrava mais dos títulos. Mas todos eram livros, e a todos ele era muito ligado. Em carta, conta para o irmão: “No dia 4 estive com o Zeca, nosso tio, na casa dele. Antes o tinha encontrado nas barcas, como também ao Aderson, que mora com eles. Por sinal, soubeste que eles passaram o apartamento onde es-tavas e que, inclusive, deixaram que levassem os meus livros? Pois é, o nosso primo é bem descansado...”. E não era descanso o que lhe reservava o futuro próximo.

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19DO ESPÍRITO ME VAlE A DIREçãO

De mundos, sóis, não tenho o que dizer J. W. goethe (Fausto)

1976, São Paulo: dezembro, manhã do dia 141961-1962, São Paulo e por toda parte: ruptura

Na manhã do dia 14 estavam todos a postos e foi Mário, mais uma vez, quem abriu os trabalhos propondo que começassem a reunião pela discussão do Araguaia, passando depois para a situação política e os problemas de organização.

Jota foi o primeiro a tomar a palavra, reiterando praticamente tudo que dissera na reunião da Executiva. Reconheceu que havia divergências tanto sobre a avaliação quanto sobre a preparação e a própria tática a seguir. E admitiu que haviam surgido dúvidas novas sobre quem denunciara a guerrilha. Teria sido a Regina?, perguntou, acrescentando que isso não mudaria muito a avaliação do que ocorrera depois.

Continuou dizendo que as três faixas de opinião sobre a avaliação perma-neciam inalteradas, o que apontava para uma discussão longa. Isso causava empe-cilhos para a preparação futura, além do fato de que também nesse terreno havia divergências sérias.

– Para o caminho da preparação há pelo menos duas opiniões básicas. Uma que supõe possível organizar as massas e o partido e só depois a organização mili-tar. Outra que parte da organização militar para depois estabelecer a base política de massas. Para decidir o certo é preciso avaliar as experiências. No Araguaia, tra-balhamos em silêncio, não fizemos trabalho de massas aberto, só amizade com o povo. Só depois de iniciada a luta armada é que foi feito trabalho político aberto e se criou a base política. Esta foi feita porque se fez o trabalho de servir ao povo.

Jota se referiu também à experiência do Pindaré, ocorrida num período em que havia certa liberdade e se tentou criar trabalho político de massas sem preparar a luta armada.

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– A reação golpeou e liquidou o trabalho, acrescentou Jota. E a Igreja, perguntou, onde terá criado base política de massas? Hoje não é fácil criar base política de massas. Proponho, então, enviar quadros para a periferia da área escolhida, para criar o partido, fazer trabalho de massas e montar uma infraes-trutura de apoio. No centro da área só deve haver especialistas. E devemos ter em conta que para fazer trabalho de massas só podemos utilizar pessoas “lim-pas”, que não tenham ficha de revolucionário na polícia. De qualquer modo, entendo que sem base política a guerrilha não subsiste e mais cedo ou mais tarde será destruída.

Jota apelou para que os camaradas do Comitê Central tomassem como base o que aconteceu no Araguaia e aprovassem um novo programa de prepa-ração da luta armada:

– Devemos, em primeiro lugar, selecionar áreas prioritárias da luta arma-da, umas três, quatro ou cino, dando atenção às cobertas de matas, que são as mais propícias para a sobrevivência, tendo como objetivo transformá-las em ba-ses políticas. Devem, portanto, também ser boas de massa. Em segundo lugar, na primeira fase de preparação não deveremos fazer nenhum trabalho político e precisamos utilizar camaradas com ótima cobertura. Numa segunda fase, desde que tenhamos assegurado as condições de sobrevivência no caso de ataque ini-migo, poderemos começar então algum trabalho político.

Jota falava pausadamente, com voz quase sumida, exigindo atenção redo-brada de todos para acompanhá-lo.

– Em terceiro lugar, deveremos distribuir o pessoal de forma dispersa, numa área maior do que a do Araguaia, e com tarefas bem definidas. Além disso, não devemos abandonar o trabalho em outras áreas do campo onde o ob-jetivo imediato não é a luta armada, fazendo um trabalho amplo com métodos adequados. Mas nas zonas nevrálgicas deveremos ter clandestinidade rigorosa. Em quarto lugar, é preciso considerar o papel importante das cidades, tendo em vista a possibilidade da ocorrência de insurreições, e coordenar a luta armada com a não armada, estimando corretamente as outras formas de luta. A luta armada não terá desenvolvimento uniforme, podendo ficar localizada durante muitos anos e só depois se ampliar.

Jota ainda se referiu à necessidade de considerar a luta armada uma tarefa especial, mobilizando o maior número possível de quadros para esse trabalho e concentrando-os em algumas áreas, não perdendo de vista os esforços para restabelecer o contato com o Araguaia e manter sua bandeira erguida. E, final-mente, admitiu, como já fizera Cid em outra reunião, a possibilidade de que o partido realizasse outras experiências ao lado da que estava propondo.

Foi uma exposição longa, em que volta e meia ele retornava aos casos concretos da luta do Araguaia, muitas vezes sem dar-se conta de que os exem-

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plos que citava se chocavam com sua avaliação da luta e com suas propostas de continuidade do trabalho. Ainda relativamente jovem, tornara-se um homem em que o sofrimento intenso transparecia no olhar, na face, na voz e até mesmo no andar encurvado, que adotara desde o seu retorno do sul do Pará.

Evaristo foi o segundo a falar. Colocou-se entre aqueles que avaliavam a experiência do Araguaia como uma prática em que prevaleceu a orientação foquista, contrária à orientação de guerra popular.

– Foi um erro de estratégia política e militar. Foi um erro ter resistido de início, ao invés de haver recuado e deixado o golpe do inimigo cair no vazio. E o que o Jota propõe agora é a repetição do mesmo erro, ao mesmo tempo que co-loca como estanques a criação da base política e a estruturação militar. Embora reconheça que sem base política a luta armada não sobrevive, Jota parece não entender que a condição para ter estrutura militar é ter base política, incluindo movimento de massa e partido.

O arrazoado de Evaristo também foi longo. Muitas vezes ele chegou a ser duramente cruel com os erros cometidos pelos combatentes do Araguaia, quan-do os considerou infantis e primários. No final, sugeriu que não se realizasse nenhum tipo de preparação antes de chegar a uma conclusão sobre a avaliação. O partido deveria recuar, voltar-se para o trabalho de massa e se reconstruir organicamente, enquanto a avaliação da luta armada fosse aprofundada e forne-cesse elementos mais seguros para estabelecer a linha de preparação.

Rui veio logo depois. – O Araguaia foi uma estupidez, foi um erro colossal, seja do ponto de

vista político, seja do ponto de vista militar. Não é mais possível continuar compactuando com esse erro e ficar enganando os militantes, nem os simpati-zantes, nem o povo. Já há elementos suficientes para concluirmos a avaliação. Quantos no Comitê Central continuam concordando que a guerrilha do Ara-guaia foi um esforço para aplicar a orientação de guerra popular? Jota? Cid? Maria? Quem mais? Acho que já é hora de acabar com essa conciliação e tirar uma decisão forte a respeito.

A intervenção de Rui espantou a todos. Até julho ele era um daqueles que consideravam a experiência do Araguaia um esforço de aplicação da guerra popular, embora com concepções foquistas em alguns aspectos. Na reunião da Executiva ele já apresentava uma nova atitude, mas não com a virulência inusitada com que agora atacava aquelas avaliações. Ele não perdeu nem a coerência nem a contundência no curso de sua intervenção. Viera preparado. Pegou cada ponto do relatório de Jota e os dissecou sem piedade, o mesmo fazendo com as propostas que aquele apresentara na intervenção inicial. E, antes de terminar, reiterou sua proposta de que o CC tomasse uma decisão imediata sobre o assunto.

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Quando ele finalizou, já era mais de onze e meia e Mário propôs que suspen-dessem a reunião para o almoço e retomassem a discussão à tarde. O assentimento foi silencioso, e ninguém se apressou em se levantar. Pairava um ar carregado, em-bora a camaradagem parecesse continuar a mesma. Só com o chamado de Maria, uns vinte minutos depois, é que o pessoal começou a se movimentar.

Na volta, Mário recostou-se para cumprir o velho hábito da sesta após a refeição. Porém, estava incomodado. A disputa interna marchava para um desenlace que não gostaria de ver materializado. Rui tinha certa razão. Apenas alguns poucos se mantinham irredutíveis na defesa da linha do Araguaia e que-riam confundi-la com a linha do guerra Popular. Até entendia as razões de Jota, que parecia conceber como uma traição aos companheiros tombados as críticas aos erros daquela luta. Mas Cid apegava-se a outras razões, a seu prestígio, à sua vaidade, a seu posto de principal dirigente, para eludir a autocrítica, cegando-se diante do fato de que, quanto mais resistisse a esta, mais isolado tenderia a ficar.

Porém, rachar o partido nas condições em que atuavam seria um desastre tão enorme quanto o próprio Araguaia. Em grande medida o partido estava isolado. Era uma das poucas organizações da esquerda clandestina que ainda se mantinha atuante e tornara-se o alvo principal do ataque repressivo. Só unido conseguiria suportar o embate e sair do isolamento. Isolamento, pensava, é algo que deveríamos evitar sempre.

lembrou do final de 1961, quando os divergentes acabaram por ficar iso-lados na luta interna. Não havia uma situação fácil de discernir. O V Congresso resultara num compromisso entre as inúmeras correntes que haviam emergido da discussão e o partido mal tivera tempo de jogar-se com certa força na cam-panha eleitoral de então, que opunha ainda dois projetos burgueses, ambos populistas, mas um de feição nacionalista e outro entreguista encoberto.

Pouco adiantara a ascensão do movimento sindical e popular. Mais uma vez, como em outras ocasiões, a direção e a influência comunistas nessas áreas não se refletiram no campo político e, em especial, na política eleitoral. Era evidente o descolamento entre o apoio à linha de lutas econômicas do partido e a quase completa falta de percepção popular em relação a suas propostas políti-cas. Pomar supunha que uma das garantias para valorizar devidamente o avanço do movimento revolucionário, ou melhor, a principal, era a existência de um clima democrático no partido, para que este pudesse realizar um trabalho cole-tivo e verificar, o mais possível, a sensibilidade e a experiência de seus dirigentes em cada momento. Entretanto, em sua visão, criara-se no partido um sistema em que discordar era o pior dos crimes.

Nesse contexto, os comunistas não conseguiram avaliar devidamente o significado da vassoura janista. Não entenderam que ela representava uma nova liderança carismática, que procurava responder ao crescimento das lutas ope-

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rárias, no contexto de um desenvolvimento que polarizava a distribuição da propriedade e da renda. Nem que ela se destinava a manter as características do populismo, de colaboração de classes e paz social no processo da industria-lização. Tiveram, pois, dificuldade em se contrapor à candidatura Jânio, que arrebatou o símbolo do conflito entre o “tostão e o milhão” e carreou grandes massas, obtendo uma vitória esmagadora nas eleições de outubro de 1960. É verdade que parcelas consideráveis do PSD, do PTB e de outros partidos que apoiavam lott acharam coerente garantir a vitória do populismo por meio dos votos em Jânio, contribuindo para a conformação de uma esdrúxula chapa Jan--Jan, que conduziu Jango à vice-presidência. Naquela época, as eleições elegiam separadamente os candidatos a presidente e a vice, permitindo esse tipo de combinação. De qualquer maneira, em pleno deslanchar da campanha pelas reformas de base, o fato arrasador é que as massas enxergaram nas propostas de Jânio a realização de suas esperanças.

Foi assim que a UDN, pela primeira vez em sua história, chegou ao poder. Ela esperava ter em Jânio um instrumento seguro para implantar sua política dura contra o movimento operário e popular e contra os comunistas, e abrir ainda mais as portas para os capitais estrangeiros, em especial os norte--americanos. Entretanto, além de haver sido eleito por uma base social e po-lítica muito mais ampla do que aquela que sustentava a UDN, Jânio via-se às voltas com um movimento sindical ascendente de quase uma década.

Alguns historiadores pouco criteriosos procuram associar o movimen-to sindical do final dos anos 1950 à Declaração de Março de 1958, e ao que chamam de fim do período de dogmatismo e de abandono dos sindicatos pe-los comunistas, ignorando as greves de 1953 e 1957 como parte da ascensão daquele movimento. Omitem que, desde o início dos 1950, apesar da linha sectária, os comunistas vinham ampliando sua força nas organizações sindicais, simplesmente porque os partidos internos e dissimulados que coabitavam na base do PCB e, em certa medida também em sua cúpula, eram pressionados pelas exigências operárias e empurravam a direção como um todo a se adaptar a essa situação.

A ordem de retorno aos sindicatos oficiais, em 1952, apenas chancelou uma prática que já era corrente na base. E as greves de 1953, que deram surgi-mento ao Pacto de Unidade Intersindical (PUI), assim como as lutas posterio-res, que permitiram a constituição de inúmeras alianças intersindicais de caráter regional e nacional, aconteceram independentemente da linha do partido, ou da eliminação do dogmatismo e do sectarismo.

Elas simplesmente ocorreram porque quando os trabalhadores decidem se colocar em movimento, eles não pedem licença a linha alguma e arrastam quem não quer ficar falando sozinho. Os comunistas é que se adaptaram ao

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ascenso do movimento sindical, colocando-se à frente das lutas e, a partir de 1954, com a guinada para a aliança com os getulistas, estenderam sua força à cúpula sindical e passaram a ter um papel ainda mais importante na organiza-ção das intersindicais.

Entre as greves de 1957 e a posse de Jânio, em janeiro de 1961, haviam sido criados, em muitas regiões do país, além dos Pactos Intersindicais, o Pacto de Unidade e Ação (PUA), que acabou por substituí-los, a Comissão Nacional de Sindicalização e as condições para o surgimento do Comando geral dos Tra-balhadores (CgT). Este teve presença decisiva na greve da Paridade, dos 400 mil marítimos, ferroviários e portuários de todo o país, em meados de 1960.

A posse de Jânio não exerceu qualquer trava à ascensão de uso extenso e intensivo do instrumento da greve pelos trabalhadores, para reivindicar seus direitos, mesmo porque os trabalhadores acreditavam que o novo presidente os apoiava. Ao movimento sindical urbano agregou-se o movimento sindical rural, impulsionado pelo I Congresso Nacional dos lavradores e Trabalhadores Agrícolas, em 1961, que deu mais amplitude à luta pela reforma agrária e in-tensificou a formação de sindicatos de trabalhadores rurais.

Desse modo, os primeiros meses do governo Jânio não apresentaram qualquer esmorecimento no movimento sindical urbano e rural. Ao contrário, nesse período criou-se um ambiente favorável para a conquista, pelas forças à esquerda, da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria, em ju-nho, após quarenta anos de domínio pelego. O próprio presidente da República realizava manobras de sabor esquerdista, flertando com Cuba, apoiando a luta anticolonialista e antissalazarista das colônias e do povo português e enviando o vice Jango para negociar com a China Popular.

É nesse quadro que Jânio tenta um nebuloso e frustrado golpe de Esta-do, sete meses após sua posse. Embora relativamente surpresos, a UDN e os militares reacionários procuraram se aproveitar da situação para transformá-la em golpe contra a posse de Jango e contra o movimento sindical. Mas o impul-so deste e das forças populares, assim como a divisão nos grupos dominantes, lançaram o país num impetuoso movimento pela legalidade. Este foi não só uma manifestação da divisão de projetos nas classes dirigentes, mas o primeiro ensaio do choque entre os projetos dominantes e um projeto popular. O acor-do conciliador parlamentarista, que permitiu a rápida vitória da legalidade, obscureceu porém os outros aspectos envolvidos na crise e levou grande parte dos comunistas a supor que a legalidade democrática havia finalmente conso-lidado seu curso.

Num ambiente desses, era difícil para o conjunto da militância e dos qua-dros do partido diferenciar o que era movimento social objetivo em ascensão e orientação política correta ou incorreta. Tudo parecia fluir para um mesmo

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caudal. Cristalizava-se a perspectiva, que a cada dia parecia mais certa, de que o partido, em aliança com Jango e com a burguesia nacional, estava próximo do poder e de realizar as tarefas nacionais e democráticas da revolução pacífica, que em parte projetara em seu V Congresso.

Prestes e a direção do PCB sentiram-se suficientemente fortes, então, para adotar uma série de medidas, que adaptassem o partido ao que considera-vam novos tempos e calassem definitivamente os divergentes. Eles realmente es-tavam convencidos de que a divergência interna opunha apenas duas correntes.

De um lado, como afirmou Jacob gorender, estariam os que se mantinham aferrados às concepções dogmáticas e sectárias e a seu passado stalinista, propug-nando uma revolução de curto prazo, sem propostas positivas para o regime em que se vivia, com a absolutização do caminho da luta armada, dirigindo seu golpe principalmente contra a burguesia reformista e desconsiderando a necessidade de formas políticas de aproximação para a conquista do poder político.

De outro, estariam os que pretendiam eliminar o sectarismo e o dogma-tismo, submetendo suas ideias à mediação da realidade concreta do país, com atitudes propositivas diante da situação vivida, dirigindo seu golpe principal contra o imperialismo e seus aliados internos e utilizando-se de formas políticas de aproximação para a conquista do poder.

Nessa linha, como o próprio gorender reconheceu mais tarde, o Institu-to Superior de Estudos Brasileiros (ISEB), ao qual emprestava o brilhantismo de seu pensamento, imprimia o otimismo burguês na copiosa produção intelec-tual que entronizou as categorias de nação e de desenvolvimento nacional, delas abstraindo as conotações de classe e luta de classes.

Coerente com a interpretação que extraía da realidade e das resoluções do V Congresso, a direção do PCB decidiu convocar uma conferência nacional para introduzir mudanças nos estatutos, entre as quais a troca do nome do par-tido, que passaria a se chamar Partido Comunista Brasileiro, em vez de Partido Comunista do Brasil, e a retirada da ditadura do proletariado como um de seus objetivos programáticos. A explicação para essas medidas foi a necessidade de adaptar os estatutos partidários às exigências para a legalização do partido.

É evidente que uma parte dos militantes e dirigentes enxergou nessas medidas mais um passo na direção da descaracterização do partido e do aban-dono do marxismo. Pomar, embora também considerasse que essa era a ten-dência principal manifestada pelas medidas, preocupava-se mais com a evidente quebra da democracia interna e das normas estatutárias. Independentemente da natureza das medidas propostas, somente um congresso teria poder para modificar os estatutos. Tornava-se evidente que a direção, para evitar surpresas num novo processo de debate democrático, convocara uma conferência com a finalidade de manipular a escolha dos delegados e obter uma maioria tranquila.

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A carta, que cerca de cem militantes e dirigentes partidários encaminha-ram ao Comitê Central, posicionava-se contra aquelas medidas, mas este não era o centro de suas divergências. Eles exigiam a convocação de um congresso, de acordo com as normas estatutárias, para que todo o partido tivesse o direito de discutir as mudanças propostas. E, ao contrário do que conta a historiogra-fia oficial, entre esses cem militantes estavam quadros que haviam concordado com as teses para o V Congresso, outros que continuavam totalmente fiéis ao PCUS, vários que ainda acreditavam piamente que Prestes não compactua-va com as medidas do Secretariado, alguns já totalmente descrentes do mito prestista, vários que ainda reputavam Stálin como o maior guia que os povos haviam tido, uns que colocavam a unidade do partido acima de tudo e outros que gostariam de romper antes de serem expulsos.

Entre os signatários encontravam-se Calil Chade, membro da Executiva entre 1957 e 1960, lincoln Oest, Carlos Danielli, Ângelo Arroyo, Orlando Piotto e Pomar, membros do CC eleito em 1960, assim como José Duarte, João Amazonas, Maurício grabois e diversos outros dirigentes regionais e munici-pais. Diógenes Arruda estava a léguas de distância desses signatários. Pomar não foi apenas um dos que assinaram, mas seu principal mentor e o que conseguiu dar-lhe o propósito de manter a divergência nos marcos da democracia interna do partido. Isto, porém, não valeu de nada. Para a direção do PCB eram todos stalinistas e como tal deveriam ser tratados.

O problema da direção, como aliás Pomar já se convencera, é que ela não admitia divergências e, muito menos, correntes de opinião dentro do partido. No velho estilo prestista-stalinista, tudo que cheirasse a fracionismo deveria ser extirpado. Os signatários da carta foram sendo chamados um a um para manter ou retirar sua assinatura e sendo expulsos separadamente, à medida que não mudavam sua posição. A expulsão de Pomar, nos meses finais de 1961, encer-rou sua longa trajetória de quase trinta anos no partido.

Entretanto, como a conferência mudou o nome de Partido Comunista do Brasil para Partido Comunista Brasileiro, e retirou de seus estatutos a for-mulação de ditadura do proletariado, os expulsos sentiram-se à vontade para reorganizar o velho Partido Comunista do Brasil e se apresentar como herdeiros de suas tradições revolucionárias e de seus compromissos de classe.

Pomar tomou parte ativa na preparação de uma conferência extraordinária com vistas a organizar um Comitê Central provisório e elaborar um manifesto pro-gramático. Sabia estar recomeçando tudo de novo, sabia que as suas motivações não eram necessariamente as mesmas de vários outros que estavam embarcando naquela dissidência, mas era acima de tudo o animal político que tinha a esperança de que um processo mais profundo de avaliação da experiência histórica do partido fun-dado em 1922 os ajudaria a encontrar o caminho revolucionário que procuravam.

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Ele e os demais não conseguiram, porém, nem mesmo trazer todos os que haviam assinado a carta dos cem. Para vários deles, uma coisa era assinar uma carta justa, solicitando a observância dos métodos democráticos e dos estatutos, outra era aceitar ser expulso, e outra, pior ainda, refundar o partido em oposi-ção à direção de Prestes.

Além disso, o refundado PCdoB estava sendo atropelado pela euforia da ascensão comunista, identificada não com ele, mas com o partido dirigido por Prestes. Entre fevereiro de 1962 e abril de 1964, o PCdoB foi apenas um pequeno agrupamento que procurou se firmar como alternativa, no mais das vezes encontrando-se isolado.

Pomar se esforçou para romper esse isolamento. Assumiu a direção de A Classe Operária, junto com Maurício grabois, estimulou os poucos membros do PCdoB a ligarem-se à classe operária, nas fábricas e sindicatos, e aos camponeses, aos estudantes e às camadas populares, e discutiu seriamente a necessidade de adotar uma tática adequada que levasse em conta não só a correlação de forças políticas como a própria força minúscula do partido. Muitas vezes armou-se de exemplares do jornal do partido reorganizado para vendê-lo, juntamente com outros companheiros, nas portas de fábricas e em bairros operários.

Somente prolongava sua estadia no Rio de Janeiro quando havia a reu-nião de pauta de A Classe Operária. Mariaugusta Salvador, que nessa época tinha 28 anos e colaborava na redação, conta que notava em Pomar a preocupação com os demais. Numa dessas idas ao Rio de Janeiro, foi a Niterói participar de uma reunião com trabalhadores e viu quando alguém retirou a cadeira em que Alzira grabois ia sentar-se. Ele evitou a queda dela e aproveitou para comentar que “era aquilo que aprendíamos todos os dias – derrubar nossos aliados para manter um regime que tenta destruir a todos nós. Era como se concordássemos com eles e nos autoeliminássemos”.

Mas o que naquela ocasião realmente fascinava Mariaugusta, que con-vivia com camaradas do PCdoB avessos a toda e qualquer preocupação com a aparência física, era a “elegância global” de Pomar. Ela assegura que ele “era elegante, independentemente de sua vontade”.

Pomar também viajou por todo o país e teve contatos com antigos mi-litantes e dirigentes do PCB. Ficou sabendo que Prestes pessoalmente tomara a iniciativa de comunicar e convencer vários deles, como Rui Barata, do Pará, e Carlos Scliar, do Rio grande do Sul, da justeza da sua expulsão. E ouviu, consternado, que muitos lhe davam razão e, como Barata, reconheciam que ele não era um dirigente sectário e burro, que não prestava atenção ao aspecto humano das coisas. Porém, não estavam preparados para romper com o mito que, como aquele que puxara a cadeira, preocupava-se mais em derrubar seus próprios companheiros.

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Mais consternado ainda ficou, no final de 1962, com a notícia da mor-te do irmão, Roman, a quem lembrava como um homem sem malícia e sem ambições, aos 46 anos, em Óbidos, para onde retornara na esperança de passar uma velhice tranquila.

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20 DE OUTRA INTERPRETAçãO CAREçO

Que tempos não gastei nisso!É notório

Que uma contradição completa e boa É de mistério igual para um sábio e um simplório.

J. W. goethe (Fausto)

1976, São Paulo: dezembro, metade do dia 141962-1964, São Paulo: golpes

Mário rememorou que no PCdoB reorganizado também se vira diante de um quadro bastante complexo. Havia uma certa unidade quanto ao combate a alguns dos aspectos negativos do velho partido, mas não havia suficiente clareza sobre a natureza e a gravidade de tais aspectos. Todos eram aparentemente contra o mandonismo e a arrogância, mas estes métodos de direção ainda se faziam pre-sentes de diferentes modos, embora amainados por certa dispersão que a pequenez do partido e suas múltiplas tarefas impunham.

Todos haviam rompido com o mito prestista, mas não com a necessidade de mitos. Todos eram pela democracia interna, mas se as divergências eram encaradas com certa indulgência, os que as portavam eram sutilmente colocados à margem com mil e um pretextos. Na verdade, havia uma incapacidade real de romper radicalmente com os métodos e o estilo de trabalho que se haviam cristalizado no velho partido. A reorganização partidária se impunha em detrimento da necessi-dade de avaliar a experiência histórica.

Para Pomar, havia ainda outros problemas a resolver para garantir o futuro da organização. Ele via dificuldade em unificar os conhecimentos sobre a realidade brasileira e elaborar o que chamava de teoria da revolução brasileira. Permanecia insatisfeito com a retomada dos objetivos da revolução nacional e democrática e com a ascendência do aspecto nacional no Manifesto Programa do PCdoB. Julga-va que, no fundo, haviam repetido as fórmulas presentes no IV e V Congressos e nos documentos que acusavam de reformistas e revisionistas.

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Ao contrário do que Pomar escrevera nos debates do V Congresso, aquele manifesto-programa partira dos interesses do povo e da nação, e não dos interesses do proletariado. O manifesto culpava, do mesmo modo que os que haviam ficado no PCB, o imperialismo pelo crescimento das desigualdades regionais e pela situ-ação econômica, social e política do país. E omitia a responsabilidade do desen-volvimento capitalista. Nessas condições, Pomar angustiava-se por não conseguir formular mais claramente a relação entre a revolução democrática e nacional e a revolução socialista.

A tática também se tornara um ponto de constantes atritos internos na nova Comissão Executiva, formada por Amazonas, grabois, Chade, Arroyo, Danielli, Oest e Pomar. Este considerava um erro tomar Jango como inimigo principal, embora achasse um suicídio confiar todo o futuro a ele. Na disputa entre o projeto nacional-reformista e o projeto conservador, considerava que o PCdoB não deve-ria vacilar em apoiar o projeto nacional-reformista, ao mesmo tempo que devia se esforçar para apresentar um projeto democrático e popular, que se distinguisse de ambos e apontasse uma perspectiva real de direção para o proletariado.

A falta de clareza sobre esses problemas e as divergências existentes em torno delas terminaram por fazer com que o centro unificador da política de reconstru-ção do PCdoB fosse a necessidade da violência revolucionária, ou a inviabilidade do caminho pacífico para a revolução brasileira. Entretanto, à medida que a dis-cussão em torno dessa questão se aprofundava, divergências de diversos outros tipos também vieram à tona.

Danielli considerava a luta armada uma questão de princípio, descartando quaisquer nuances ou mediações táticas pacíficas. Amazonas, grabois e Oest não descartavam o uso de táticas pacíficas como possibilidade, mas consideravam que no Brasil elas se tornavam cada vez menos praticáveis, acrescentando a ideia de que os comunistas deveriam tomar a iniciativa de se organizar para o caminho não pacífico, com base na luta camponesa. Chade, Arroyo e Pomar sustentavam que a decisão do caminho pacífico ou não teria que ser uma decisão das massas em seu confronto com os inimigos de classe e não uma decisão do partido, embora este devesse estar preparado para tal hipótese.

Nessa discussão tinha grande peso a experiência da recente Revolução Cubana. Ao contrário do que pensam alguns, não foi o Partido Comunista da China a referência maior para os novos dissidentes, mas o novo Partido Comunis-ta de Cuba. A Revolução Cubana era o exemplo que maior influência tinha sobre o PCdoB nesse período. O partido foi a primeira organização política brasileira a publicar A História me Absolverá e De Moncada à ONU, obras de Fidel Castro, e Guerra de Guerrilhas, de Che guevara. Não só Pomar, como Amazonas e grabois, estiveram em Cuba e mantiveram contatos com os dirigentes daquele país para conhecer sua experiência de luta.

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Foi Mariaugusta Salvador quem fez o trabalho de tradução “bruta” de A História me Absolverá. Coube a Pomar fazer a revisão e, para deleite dela, elogiar seu trabalho. Na revisão final, porém, colegas que leram o texto perguntaram a ela o que os camponeses cubanos faziam com martelo no trato da terra. Ela sim-plesmente traduzira machete como martelo, justificando então o erro pela pressa que Pomar cobrara dela. Coisa que ele confirmou sem qualquer vacilação e ela creditou, mais uma vez, à sua elegância no trato com os companheiros. Era ver-dade, o tempo urgia e ele esticara a corda, levando-a a cometer aquela martelada, felizmente sem danos.

Se havia esses momentos de erros descontraídos, as intensas discussões a respeito da luta armada tensionavam a todos, principalmente porque não esta-vam restritas ao PCdoB. Elas também atingiam várias das correntes internas do PCB, apesar da decisão a respeito do caminho pacífico, assim como diversas outras organizações que começaram a se desenvolver de forma autônoma e em concor-rência com ambos os partidos comunistas, como a Política Operária (Polop), as ligas Camponesas, os grupos dos Onze brizolistas, a Ação Popular (AP) e grupos trotskistas como o Partido Operário Revolucionário – Trabalhista (POR-T).

Foram essas discussões que acabaram levando a Comissão Executiva do PCdoB a descartar formalmente a ideia do foco revolucionário, conforme expresso nos textos de guevara. Houve um certo consenso de que o foco não era uma pos-sibilidade viável no Brasil. Os argumentos, porém, não eram unificados. Alguns repudiavam a teoria guevarista porque ela não partia da própria luta de massas. Ou-tros porque num país continental como o Brasil, o foco provavelmente não conse-guiria se expandir para todo o território. Outros, ainda, porque ele não considerava a importância que as massas urbanas desempenhavam em qualquer luta no Brasil.

A discussão da luta armada, por outro lado, não se restringia apenas a uma visão estratégica sobre a forma principal de luta para transformar o país. Ela re-cebia forte influência da conjuntura política, cuja turbulência crescia tanto pelo ascenso das mobilizações sindicais como pela dificuldade dos grupos dominantes de se unificarem sob o parlamentarismo. À medida que o movimento popular em torno das reformas de base avançava e que Jango tendia a fazer maiores conces-sões aos trabalhadores e aos camponeses, os setores conservadores e reacionários tornavam-se mais freneticamente golpistas, intensificando seus movimentos cons-piratórios após a vitória plebiscitária do presidencialismo, em 1963.

O quadro era ainda mais confuso porque o país, como previra Pomar num de seus artigos para o V Congresso, ingressara em uma violenta crise econômica, com queda nos investimentos, quebra da safra agrícola, elevação do endividamen-to externo e surto inflacionário. Enquanto a direita acusava os movimentos sindi-cais e populares de baderna e os aumentos salariais como responsáveis pela crise, e propunha a adoção do Programa de Estabilização Monetária do FMI, as grandes

De outra interpretação careço 263

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massas trabalhadoras dos campos e das cidades entravam na luta basicamente por melhorias econômicas, sem consciência das disputas políticas em curso.

O PCB, embalado em sua aliança com Jango e com as forças nacionalistas burguesas, não possuía expressão eleitoral, mas conquistou uma força política bas-tante nítida. Cioso dessa força, passou a acreditar que as mobilizações operárias e populares apenas deveriam servir de respaldo às pressões reformistas que realiza-va no âmbito governamental. Desse modo, preocupou-se fundamentalmente em materializar grandes atos de repercussão e demonstrações de suas potencialidades, deixando-se dominar por um triunfalismo que, visto cruamente, pouco tinha a ver com a realidade.

A politização das lutas econômicas era desconsiderada, deixando os flancos abertos para a propaganda antidemocrática, antipopular, antissindical e anticomu-nista que as forças reacionárias desencadearam. Essas contradições teriam necessa-riamente que aguçar as disputas internas entre os pecebistas, apesar da suposição de que, havendo se livrado totalmente dos “stalinistas”, o partido avançaria inelu-tavelmente no caminho de sua linha justa.

Na IV Conferência do PCB, em dezembro de 1962, para surpresa de Pres-tes e outros dirigentes que lhe davam suporte, a maioria dos delegados criticou o que chamou de “orientação direitista na aplicação da linha” e anatemizou o reboquismo da CgT e a política conciliadora de Jango. Paradoxalmente, como no período entre 1956 e 1962, o PCB continuava sendo dilacerado pela mesma duplicidade entre o radicalismo prático dos diversos “partidos” e correntes de sua base e a conciliação do “partido” da cúpula.

A força de Prestes ainda residia em sua capacidade de administrar as diferen-tes correntes internas, mas impondo sua própria corrente sem que as demais tives-sem consciência disso. No entanto, nisso residia sua própria fraqueza. Tal sistema, para funcionar a contento, obrigava-o a expelir todos os que tentassem estimular o debate interno ou levá-lo a fazer acordos políticos, em pé de igualdade, com as correntes interiores que disputavam com ele a hegemonia sobre o partido. Se a ex-clusão dos divergentes o fortalecia, a longo prazo fazia o partido sangrar e definhar.

Apesar disso, no momento da IV Conferência, a situação lhe era favorável. Jamais o Brasil assistira a uma tal efervescência política de massas. Nenhum setor social estava à parte dela. A União Nacional dos Estudantes (UNE) espraiava seu movimento cultural por todos os rincões, enquanto os camponeses elevavam sua voz pela reforma agrária, os operários forçavam melhorias salariais e outras con-quistas trabalhistas e os subalternos das Forças Armadas participavam dos movi-mentos nacionalistas e democráticos.

Tanto o PCB como outras forças políticas de esquerda defendiam um pro-grama mínimo que incluía limitação da remessa de lucros, rompimento com o FMI, nacionalização de algumas empresas estrangeiras e dos serviços públicos,

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reforma agrária radical, revogação da lei de Segurança Nacional, legalização dos comunistas e melhoria das condições de vida. Porém, mesmo esse programa era radical demais para a burguesia brasileira, já quase toda envolvida na conspirata com vistas a uma saída militar para a crise.

Os centros da conspiração eram a Escola Superior de guerra (ESg) e o Ins-tituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), tendo a UDN e Carlos lacerda como principais expressões políticas e a embaixada norte-americana, à frente da qual estava lincoln gordon, como elo de ligação dos conspiradores com o governo e as corporações empresariais dos Estados Unidos. As engrenagens do processo gol-pista já estavam funcionando, lubrificadas pelos dólares dos interesses empresariais, nacionais e estrangeiros, dispostos a instaurar no Brasil um governo autoritário que garantisse a implantação de seu novo projeto de desenvolvimento capitalista.

Diante desse cenário, Pomar se convencia cada vez mais da inevitabilidade do choque entre o projeto nacional democrático, que pela primeira vez no Brasil, embora burguês, contemplava aspirações e reivindicações populares, e o projeto conservador e reacionário, que tinha como meta principal instalar um governo forte para ampliar a presença do capital estrangeiro na economia e na sociedade brasileira. Pelos rumos que a conspiração golpista tomava, principalmente nos meios militares, supunha que aquele choque poderia resultar em confrontos arma-dos e num regime ditatorial.

Mesmo porque, entre as forças nacionalistas e populistas também se conspi-rava. Jango procurava ganhar adeptos para sua continuidade no governo, ao mes-mo tempo que marinheiros e sargentos buscavam conquistar suas reivindicações por meio de rebeliões. E Brizola propagava pela rádio Mayrink Veiga a formação de seus grupos dos Onze, insinuando claramente que deveriam se organizar como grupos armados para a defesa contra o golpe, viesse de onde viesse.

O PCdoB, de sua parte, até se preocupou em extrair algumas lições da tentativa golpista de 1961 e da mobilização que levou à cisão da burguesia e à construção de uma força de resistência civil e militar contra os reacionários. Con-tudo, não tinha qualquer força política para influir decisivamente no curso dos acontecimentos. Por um lado, debatia-se em sua incapacidade de aprofundar a crítica às políticas de direita e de esquerda do passado, o que até levava parte de seus dirigentes a defender em bloco as realizações partidárias passadas. Por outro lado, sofrendo da ausência de base política de massas e sufocada pela grande maré reformista, a maioria de seus membros não tinha clareza do que aconteceria na hipótese de um golpe reacionário.

O PCdoB também não acreditava na capacidade do movimento sindical, dirigido pelo PCB, de suportar um golpe militar. E não tinha qualquer confiança de que Jango se dispusesse a resistir, e muito menos dava credibilidade a seu cha-mado dispositivo militar. Tinha alguma esperança de que Brizola pudesse organi-

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zar a resistência a partir do Rio grande do Sul e acompanhava de perto a movi-mentação e as tendências dos generais comandantes. Quando teve conhecimento, em meados de 1963, de que o general ladário Telles era o único militar de alta patente que talvez se opusesse a um golpe de força, também concluiu que o golpe militar era inevitável e a única coisa que poderia fazer, naquela conjuntura, seria evitar que o partido fosse apanhado de surpresa, adotar medidas para sua preser-vação e acelerar sua preparação para a luta armada.

A Comissão Executiva do PCdoB, que antes havia definido a preparação da luta armada como a quinta tarefa do partido, a transformou rapidamente na mais importante, porque ela seria a única capaz de decidir todas as demais, in-dependentemente de qualquer avaliação sobre a situação política momentânea. Por pressão, principalmente, dos jovens militantes, foi tomando corpo no con-junto do partido a concepção de que as condições objetivas para a revolução es-tavam maduras e que o único fator de atraso residia no partido, que demorava a tomar uma decisão firme a respeito. E, quando se falava em partido, delegava-se tal responsabilidade a seu núcleo dirigente e passava-se a apreciar sua qualidade política por sua capacidade de ousadia.

Quanto mais a Executiva selecionava militantes para as atribuições espe-ciais, militares, de preparação técnica e de estudo de regiões favoráveis para a luta armada, mais essa questão foi se transformando, de um aspecto político essencial da estratégia, em uma questão moral, de decisão e coragem. A ideia de que as re-giões favoráveis seriam aquelas preferencialmente montanhosas e/ou cobertas de matas, para onde deveriam se deslocar quadros militarmente capazes e preparados e onde, num segundo momento, pudessem contar com as massas, conquistou fo-ros de verdade absoluta. A maioria do partido sequer se deu conta de que tal ideia possuía um núcleo de pensamento eminentemente foquista, já que do ponto de vista prático isso não merecia atenção. A luta armada teria tal força de mobilização que seria capaz de superar qualquer erro de origem.

Essa evolução interna do PCdoB tornou-se ainda mais complexa porque, a pretexto de tais problemas envolverem aspectos sigilosos, sua discussão ficou restrita ao núcleo dirigente. Mesmo o Comitê Central só deveria tomar conheci-mento deles à medida que não envolvessem questões de segurança e, mais, que as divergências internas naquele núcleo estivessem superadas. O conjunto partidário, pelos mesmos motivos, deveria ficar totalmente à parte da discussão que envolves-se o encaminhamento prático da preparação armada.

Com alguma rapidez, esse método se estendeu também às demais questões da vida partidária. A Comissão Executiva começou a se sobrepor ao Comitê Cen-tral e impedir que a maior parte dos membros do partido participasse do debate em torno das políticas essenciais, da tática e das medidas de organização. Pomar, cada vez mais minoria de um, acabou por se submeter momentaneamente a essa

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situação, o que muitas vezes o levava a defender no CC as posições da maioria da Comissão Executiva, mesmo elas não se coadunando com seu pensamento real.

Sem entender direito esse processo, um agente infiltrado, que acompanhara o processo de divisão interna e passara a operar no PCdoB, informava ao serviço secreto do DOPS que esse partido não tinha chefe. Nele não existiria o culto à personalidade, não receberia ajuda da burguesia nacional e a direção seria exercida coletivamente. limitado ao âmbito paulista, ele listava como membros dessa dire-ção coletiva, além de grabois, Amazonas, Arroyo, Calil Chade e Pomar, os nomes de Consuelo Ferreira Calado, Orlando Piotto, José Robaldo Delgado, José Duarte e Jethero de Faria Cardoso. Ignorava que poderia existir um chefe colegiado, e que o culto à personalidade também poderia se expressar no culto à onipotência desse ente coletivo, embora essa situação ainda não se houvesse cristalizado no PCdoB.

Foi nesse período que Ronald Chilcote entrevistou vários dos dirigentes do PCdoB, apesar de alguns deles desconfiarem de um trabalho acadêmico voltado explicitamente para a história do Partido Comunista, algo inusitado para a época. Chilcote chegou à conclusão de que os refundadores do PCdoB haviam sido he-gemônicos na direção do PCB, pelo menos do final dos anos 1940 até meados da década seguinte, identificando-se com a linha esquerdista então adotada.

Ele adotou, desse modo, uma tese que já era corrente na época de sua pes-quisa, tornando-se quase um dogma daí em diante. É provável que Amazonas e grabois não tenham se importado em desfazer o equívoco, já que eles realmente haviam participado daquela hegemonia. No entanto, no que diz respeito a Pomar e aos demais dirigentes do PCdoB no início dos anos 1960, a tese não era verídica.

De qualquer modo, a configuração prática da linha militar do PCdoB leva-va esse partido a repetir, como tragédia, os mesmos métodos que haviam se mos-trado tão danosos na vida do PCB. Porém, apesar das tendências predominantes na Comissão Executiva, não foi um caminho rápido nem reto. Foi tortuoso, cheio de escolhos resistentes, vencido apenas paulatina e progressivamente e nem sem-pre de forma transparente.

A teoria foquista, que inicialmente fora vista com bons olhos, acabou por ser descartada, pelo menos teoricamente. Em seu lugar, paradoxalmente, foi se firmando a ideia de que seria possível transformar uma região estrategicamente favorável num farol e num poderoso ponto de atração para grandes massas camponesas e urbanas, tornando-a uma área libertada. Para todos os efeitos teóricos, tal concepção nada teria a ver com o foquismo, por ter como base a luta de massas.

Essa ideia ganhou contornos novos à medida que o PCdoB, a partir de 1963, passou a conhecer melhor as experiências militares chinesa, vietnamita e albanesa. Foi a partir de então que tais experiências começaram a ter alguma in-fluência nas discussões internas sobre a luta armada no Brasil, em grande medida

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em virtude do esforço que a Comissão Executiva desenvolveu para ampliar suas relações e obter alguma legitimidade internacional.

logo após o rompimento com o PCB, a maioria dos membros do partido reorganizado ainda acreditava na União Soviética como suporte da luta mundial pelo comunismo. Em janeiro de 1963, o PCdoB declarava seu apoio à declaração dos 81 Partidos Comunistas reunidos em Moscou e, embora alguns tivessem outra avaliação a respeito, a Executiva decidiu que a busca de contatos internacionais deveria começar justamente pelos países socialistas do leste europeu. E foi Pomar, juntamente com Consuelo Calado, que, em abril, viajou para a Tchecoeslováquia, onde nem sequer conseguiram ser recebidos pelo partido local.

A Albânia e a China, porém, aceitaram recepcioná-los e manter conversa-ções com eles como representantes de um Partido Comunista. Viajaram primeiro para Tirana, onde participaram das comemorações de 1º de maio ao lado de di-rigentes do Partido do Trabalho albanês, como Piro Bitta, Hiusmá Kapo, Enver Hoxa, Mehemet Shehu e Ramiz Alia. Depois foram a Pequim, onde também se encontraram com dirigentes do PCCh. Para albaneses e chineses, embora as polí-ticas de ambos tivessem diferenças quanto à análise da situação internacional e da União Soviética, qualquer indício de resistência ao revisionismo e ao imperialismo era bem vindo. Foi só depois desse giro internacional que a direção do PCdoB elaborou seu documento “Resposta a Krushev”, rompendo com o PCUS.

Para o PCdoB, ter relações formais com um partido do porte do PCCh, e mesmo com um pequeno partido no poder, como o PT albanês, significava não estar totalmente isolado. Os albaneses, porém, mantinham relações com apenas um partido de cada país, que considerassem marxista-leninista, o que significava que eles passavam a reconhecer o PCdoB como o único partido comunista no Brasil.

Diferentemente, os chineses mantinham relações internacionais múltiplas, até mesmo com partidos burgueses que aceitassem dialogar com eles. E continua-ram a manter relações com o PCB. Mesmo assim, concordaram, como decorrên-cia do reconhecimento do PCdoB como partido irmão, em realizar o treinamento militar de seus membros na China.

O PCB não ficou passivo, porém, diante dessa aproximação entre o PCdoB e o Partido Comunista chinês. Em abril de 1963, enviou à China uma delegação do Comitê Central, chefiada por Jover Teles, com o objetivo de “ouvir os camaradas chineses sobre as divergências no movimento comunista interna-cional” e “tratar das relações” entre os dois partidos, principalmente tendo em conta a “utilização pela rádio chinesa do jornal do grupo antipartido A Classe Operária, em suas irradiações”.

Segundo Jover conta em seu relatório, constante das Cadernetas de Prestes, ele expressou aos chineses que diversos membros do PCB ouviram as irradiações da Rádio Pequim e estranharam que ela estivesse utilizando os editoriais do jornal

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A Classe Operária. Acreditando que eles não estavam suficientemente informados sobre a questão, tomava a liberdade de informá-los detalhadamente sobre o histó-rico da formação da “fração antipartido”.

Jover historiou ao PCCh a posição desses militantes diante do processo de autocrítica necessária do PCB, a partir de 1956. Informou-os de que, no V Congresso, em 1960, os principais chefes desse grupo não haviam sido eleitos. A direção do partido tivera grande paciência e tolerância com eles, deu-lhes a pos-sibilidade de fazer autocrítica. “Mesmo após o V Congresso, Amazonas, grabois, Pomar, Calil, Danielli, Arroyo e outros continuaram nos postos de direção do partido. Mas começaram a utilizar esses postos para desenvolver uma atividade fracionista contra a linha do V Congresso e contra o CC. O Partido não teve outro caminho senão desligá-los de suas fileiras. Não por divergirem, mas por desenvol-verem uma atividade antipartidária, fracionista.”

Qual a orientação que segue o grupo fracionista?, perguntou-se Jover. “De-turpam a linha política do partido e tentam ganhar adeptos. Caluniando a direção de nosso partido e caricaturando a nossa linha política, desenvolvem uma ativi-dade visando a formar seu próprio partido. De palavra são esquerdistas, de fato são direitistas. Pregam a abstenção política das massas. Isso aconteceu na crise político-militar de 1962, na greve geral de 5 de julho e na greve geral de setembro daquele mesmo ano, assim como no plebiscito de janeiro de 1963. Afirmavam que eram choques entre grupos dominantes e que o proletariado nada tinha a ver com isso. Querem aplicar mecanicamente no Brasil a experiência cubana de forma erra-da. Não compreendem que a revolução cubana também teve duas etapas e querem ir direto ao socialismo no Brasil.”

“Do ponto de vista político e das massas estão isolados. Não dirigem um sindicato, uma liga ou associação camponesa, nem uma organização de intelec-tuais. Não obstante, editam o jornal A Classe Operária e têm uma editora cha-mada Futuro. O financiamento do jornal e da editora não é feito com dinheiro da classe operária brasileira, dos camponeses, da intelectualidade, dos dirigentes de nossa terra. Corre no Brasil que esse dinheiro é fornecido por vocês, por in-termédio de Cuba. É claro que é difícil acreditar nisso, mas é o que anda de boca em boca no Brasil”, concluiu Jover.

O representante da direção do PCB, além de distorcer muitas das posições políticas do PCdoB, dava foro de verdade e vazão à velha fórmula reacionária do “ouro estrangeiro” para explicar a sobrevivência e a atuação dos comunistas. Ao transformá-la em “ouro de Havana” e “ouro de Pequim”, sequer parecia se dar conta de que apenas adaptava a versão que corria no Brasil, espalhada pelos anti-comunistas, de que o dinheiro do PCB era fornecido diretamente por Moscou.

É lógico que os chineses repeliram a insinuação e declararam que não iriam se imiscuir nos problemas internos do movimento comunista no Brasil. Estavam

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dispostos a manter relações com ambos os partidos e levavam em consideração, principalmente, a solidariedade do PCdoB às posições do PC da China nas discus-sões ideológicas e políticas com o PCUS. As divergências do PCB quanto àquelas posições chinesas não seriam, porém, empecilho para que o PC da China continu-asse a manter relações com ele. O PCB não aceitou a sugestão.

O PCdoB passou a ser, assim, o único PC brasileiro a manter relações com a China. Seu primeiro grupo de quadros destacados para a quinta tarefa viajou para aquele país no segundo semestre de 1963, sob a direção de Maurício grabois. Desse grupo faziam parte, entre outros, Osvaldo Costa, giancarlo Castiglia, gil-berto Olímpio, Piahuí Dourado e Paulo Rodrigues, alguns dos quais já haviam se deslocado para áreas rurais com a perspectiva de montarem dispositivos militares.

Para Pomar, porém, todas as medidas de preparação militar deveriam ter cunho defensivo, sendo errado nutrir ilusões, a curto prazo, quanto à sua efeti-vidade para o desencadeamento da luta armada. Estava enfronhado em todas as atividades de massa possíveis e não acreditava que houvesse condições sequer para um movimento sério de resistência armada contra um golpe de Estado.

Na sua avaliação, o PCB estava conseguindo desmobilizar qualquer disposi-ção popular de resistência ao propagar o caráter democrático das Forças Armadas e jogar todas as esperanças num fantasioso dispositivo militar do general Assis Brasil, chefe da Casa Militar de Jango. Mesmo assim, Pomar procurava todas as forças políticas, inclusive os membros do PCB que aceitavam conversar com ele.

Debatia com eles a crise política que estava se armando e as medidas para impedir a supressão da legalidade democrática. Estabeleceu com a Polop um ca-nal permanente de troca de opiniões, o que levou o serviço secreto do DOPS do Rio de Janeiro a supor que essa “facção de esquerda, de orientação comunista”, assim como a UNE, fossem “subsidiárias do PCB (Pomar)”. Segundo relatório reservado da polícia política, “Eder Simão, do partido do Pomar, [seria] um dos integrantes da Polop”.

Foi nessa ocasião que conheceu e teve algumas longas conversas com Plínio de Arruda Sampaio, então deputado federal pelo PDC. Plínio vinha se destacan-do como membro da ala esquerda do PDC e haviam surgido notícias de que ele pretendia se desligar de seu partido por não concordar que este se colocasse contra as reformas de base nacionalistas e democráticas.

Pomar gastou boa parte de seu tempo argumentando sobre as vantagens que o movimento nacionalista e democrático teria com ele permanecendo dentro do PDC e procurando manter esse partido fora das articulações reacionárias. Essas conversas deixaram uma impressão profunda em Plínio, ao constatar que a ima-gem do stalinista estreito e sectário, contrário às reformas de base, difundida pelo que a essa altura já começara a ser conhecido como Partidão, nada tinha a ver com aquele homem de cultura, que sabia ouvir e dialogar, e cujas categorias de análise

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da realidade lhe permitiam traçar um quadro transparente das forças em disputa e das condições de cada uma delas.

Apesar da impressão favorável que criara no jovem deputado democrata cristão, o próprio Pomar não acreditava que sua análise fosse de muita valia para muitos, mesmo dentro do PCdoB. A ideia de que as condições objetivas para a revolução estavam maduras ganhara mais adeptos na Executiva e nas fileiras do partido, em grande parte alimentada pela própria euforia e pelo baluartismo do PCB. E, também ganhara cada vez mais corpo a suposição de que bastava o par-tido se preparar e desencadear a luta armada para assumir a direção do processo.

No curso dessas articulações, Pomar foi procurado por Diógenes Arruda e Rui Facó. Arruda estivera afastado das atividades partidárias desde 1958, tivera problemas familiares, subsistira realizando planejamento para prefeituras muni-cipais e acompanhara de longe a evolução do partido e de sua luta interna. Peni-tenciou-se pelas posições antigas, em especial as que adotara em relação a Pomar, mas afirmou que não as adotara por moto próprio, nem isoladamente. Prestes havia sido o mentor de quase todas, mas Amazonas, grabois e os demais membros do Secretariado as haviam apoiado com maior ou menor empenho. De qualquer modo, não havia como remendar o que fora feito e, agora, diante do quadro polí-tico que se armava, ele gostaria de conversar sobre as perspectivas do PCdoB.

Avaliava que o Brasil se aproximava de uma situação pré-revolucionária e que a direção do PCB agia como se tudo estivesse sob controle. O PCB, em sua opinião, havia entrado desse modo numa estrada sem volta e seria apanhado de calças curtas. Acompanhava também a evolução de Francisco Julião e não acreditava em sua capacidade de transformar as ligas Camponesas em desta-camentos armados. A descoberta de seu campo de treinamento em Dianópolis mostrara o quanto estavam despreparados para uma tarefa daquela envergadura. Achava que desta vez a coisa seria muito mais difícil e complicada do que no período da ditadura Vargas.

Pomar sorria com as voltas que a história dava. Disse que tinha uma visão mais ou menos clara das lutas sem princípio de que tinha sido vítima. levava em conta, porém, que as pessoas mudavam e ficava contente que ele estivesse preocu-pado com a situação e avaliando-a bem. Conversaram um bom tempo e Arruda se dispôs a contribuir com suas forças para as atividades do PCdoB, enquanto Facó disse que não se dispunha a atuar, mas gostaria de manter contato. A Comissão Executiva concordou com a sugestão, mas inicialmente manteve Arruda apenas ligado diretamente a Pomar. Questionado por um antigo simpatizante sobre o que considerava uma esdrúxula aquisição do PCdoB, respondeu:

– As pessoas mudam e todas têm direito a uma nova chance, a não ser que tenham cometido crimes graves. O Arruda cometeu, em grau exponencial, os mesmos erros que todos nós cometemos em graus menores e diferenciados.

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Mas, apesar de tudo isso, ele é um quadro com experiência. Tem grandes defei-tos, mas também grandes qualidades. Se pusermos as mágoas pessoais na frente das necessidades políticas estaremos cometendo não só um erro político, mas uma nova injustiça.

Assim, pelas mãos de Pomar, Arruda retornou às atividades partidárias no PCdoB, numa época em que muitos quadros do partido consideravam que o le-vante popular ocorreria antes do golpe militar e, às vezes, metiam-se em certas lutas, como a revolta dos sargentos em Brasília, cujos objetivos eram nebulosos por qualquer ângulo que fossem olhados.

A essa altura, a Executiva do PCdoB ainda não havia descoberto o agente policial que viera com os dissidentes reorganizar o PCdoB. Em 19 de setembro de 1963, esse agente informou a seus superiores que a reunião do Comitê Estadual do PCdoB, na sede de A Classe Operária, à rua Tabatinguera, 221, 3º andar, realizara um balanço do movimento militar de Brasília, com a participação de Amazonas, Ângelo Arroyo, Calil Chade, Pomar, Manoel Siqueira, José Duarte, José Barbosa, João Siqueira Campos, José Tarcísio, José geraldo, Sebastião Sá, Nelly Siqueira, Nilza Mattei, Carlos Alberto Montoya, Pepe, Nurchis, Carioca, gandhi e Takaoka.

Arroyo, que fora deslocado para acompanhar de perto o movimento de Bra-sília e mesmo participar dele, informou o seu grau de radicalização e a obtenção de armas e munições para o partido. Amazonas, por sua vez, procurou argumentar que, com aquela participação, o partido demonstrava que não estava descurando da quinta tarefa. E nenhum deles soube, nessa época, que o informante policial conseguira obter a lista de contatos do partido com os líderes dos sargentos, in-cluindo seus telefones, repassando-a ao serviço secreto do DOPS paulista.

Nos meses seguintes, por meio de relatórios reservados, esse agente conti-nuou passando informações detalhadas sobre as atividades do PCdoB. No dia 20 de dezembro, contou que Amazonas estava em São Paulo e devia retornar à gua-nabara após as 21 horas; que Pomar partira no dia 17 para o interior e só o Comitê Estadual sabia para onde se dirigira; que no dia seguinte, 21, seria realizado um ativo sindical na sede da rua Tabatinguera, estando também programado um ativo político-estudantil para um horário diferente.

Além de informar que a tiragem de A Classe Operária aumentara para 30 mil exemplares, dos quais 5 mil eram apenas para São Paulo, e que Maurício grabois viajaria para a China no dia 1º de janeiro, listava as novas bases orga-nizadas, seguida dos nomes de seus principais dirigentes: Vila Ema (Carlos), Mandaqui (João Batista, funcionário do Hospital), Sumaré (Marina, italiana casada com um engenheiro espanhol, Juan, que atuava no Círculo Democrático Espanhol) e Vila libanesa (Cação).

Ainda ignorante dessa infiltração, Pomar se preocupava principalmente com sua percepção de que o desenlace não pacífico da crise política viria do lado

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da reação conservadora. Ele reiterou essa opinião na reunião da Comitê Central, no dia 29 de março de 1964, realizada no Rio de Janeiro. Considerou que o PCB seria fatalmente apanhado de surpresa. Primeiro, porque Prestes continuava em-penhado em demonstrar o caráter e a tradição democrática das Forças Armadas, particularmente do Exército, como dissera publicamente em várias entrevistas. Depois, porque a direção pecebista colocara-se, e a todo o partido, em subordina-ção aos aliados da burguesia. Os militantes dependiam da iniciativa dos governa-dores nacionalistas ou do presidente Jango para se movimentarem.

O próprio Prestes, no jornal Novos Rumos, dissera que Jango assumira a liderança do processo democrático em desenvolvimento no país e voltara a repetir que não havia condições para um golpe reacionário. E, pior, da mesma forma que radicalizara para a direita, entregando a direção das forças populares para Jango, escorregara para um radicalismo infantil pseudoesquerdista, prometendo que os golpistas teriam as cabeças cortadas se tentassem qualquer quartelada.

A reação conservadora, por seu lado, respondera ao comício da Central do Brasil, às promessas de reforma da Constituição e às medidas de encampação das refinarias privadas e de desapropriação de propriedades às margens das rodovias federais com as Marchas da Família com Deus pela liberdade e com aceleração frenética da conspiração. A data de 2 de abril para o levante militar golpista já es-tava marcada quando os marinheiros e fuzileiros navais se rebelaram no dia 25. A solenidade dos sargentos e suboficiais, no Automóvel Clube, no dia 30, concluiu Pomar, talvez fosse apenas a chamada das cornetas para o choque das brigadas.

Quando Danielli informou, empolgado, os eventos relacionados com a re-volta dos marinheiros, Pomar não teve dúvida em aparteá-lo e dizer que a ação do cabo Anselmo, se não fosse de um provocador infiltrado, era de um aventureiro ir-responsável. De qualquer modo, o Comitê Central do PCdoB finalmente aceitou que os projetos antagônicos em choque dispunham, de um lado, todas as forças reacionárias e, de outro, as forças populares e aquelas reunidas em torno de Jango. Decidiu, então, deixar de lado qualquer ambiguidade e não se opor a Jango.

Na manhã do dia 30 de março, ao tomar conhecimento, por um amigo da área militar, de certas movimentações nos quartéis, Pomar lhe disse que não sabia se teria tempo de chegar em casa, em São Paulo, para organizar direito a própria retirada, embora Prestes voltasse a declarar, naquele mesmo dia, que o PCB já es-tava praticamente no poder e tinha condições de derrotar qualquer golpe.

Esse golpe, militar e civil, desabou na noite de 31 de março e madrugada de 1º de abril, como um tornado em dia de céu claro, sobre a maioria das forças políticas hegemonizadas pelo PCB. Coronéis nacionalistas à frente de importantes guarnições militares ficaram esperando ordens que não chegaram, enquanto os golpistas tomaram até a tapa alguns quartéis e comandos militares, como os do Forte Copacabana e da Artilharia de Costa, no Rio de Janeiro.

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Jango mal e mal conseguiu chegar ao Rio grande do Sul com o general As-sis Brasil, negando-se depois a ordenar, como comandante legal das Forças Arma-das, qualquer resistência, a pretexto de evitar um banho de sangue. O movimento sindical, em várias cidades, conseguiu paralisar os transportes. Mas isso, ao invés de ajudar a resistência popular, impediu o povão de se deslocar dos bairros e se concentrar no centro.

A derrota da esquerda foi acachapante. Do ponto de vista da luta concreta, pouco importa que ela tenha sido resultado da hegemonia do PCB. Se, por um lado, colocou a nu toda a ilusão da direção daquele partido na suposta participa-ção da burguesia brasileira na revolução nacional e democrática, também colocou em evidência a incapacidade das demais organizações e partidos de esquerda em disputar com sucesso aquela hegemonia e apresentar soluções mobilizadoras.

Pomar mal teve tempo, entre a noite do dia 30, quando chegou a São Paulo, e a do dia 31, quando o golpe foi colocado em marcha, para organizar suas coisas e se retirar para um esconderijo, na casa de um companheiro desconhecido da po-lícia. Vivera sete anos numa semilegalidade e via-se novamente empurrado para os subterrâneos da clandestinidade, certamente em condições mais duras e perigosas do que as que enfrentara durante a ditadura Vargas.

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21 COM O HÁBITO É QUE VEM O APREçO

Escrito está: “Era no início o Verbo!”Começo apenas, e já me exacerbo!

Como hei de ao verbo dar tão alto apreço?J. W. goethe (Fausto)

1976, São Paulo, dezembro: tarde do dia 141964-1965, Brasil: em busca da tática

A reunião do Comitê Central teve prosseguimento após a almoço. Valdir foi o próximo a falar. Disse achar as divergências mais profundas do que imaginara inicialmente. O núcleo delas, segundo ele, parecia residir nas concepções descone-xas sobre o papel das massas e sobre o significado do trabalho de massas. “Quando ouço Jota dizendo que não podemos fazer trabalho de massas ou criar base política de massas antes de ter um grupo militar para nos proteger, porque isso representa abrir o trabalho do partido e deixá-lo à mercê dos golpes repressivos, fico imagi-nando que isso nos reduz à paralisia, a um círculo vicioso. Jota, assim como o Cid, parece desconsiderar a possibilidade de realizar trabalho de massa de forma secreta e participar do movimento de massas sem colocar o partido em perigo. Parecem achar impossível que os membros do partido sejam abertos para as massas e secre-tos para o inimigo, vivam legalmente com as massas e ilegalmente para o inimigo. E criem base política de massas sem que o inimigo consiga detectar a presença do partido e o golpeie. Isso só pode ser porque a visão que os camaradas têm do trabalho de massas e da base política de massas é distorcida. Creio que aqui está a raiz dos nossos problemas”.

Valdir, sem dizer explicitamente onde haviam ocorrido, citou várias expe-riências em que o partido se enfronhara no movimento camponês sem colocar--se a descoberto. Os militantes, disse, nessas diversas áreas camponesas vivem em lugares onde o movimento de massa já criou raízes, e está organizado sob diversas formas que lhe são próprias, como comunidades, movimentos religiosos, sistemas cooperativos informais, sindicatos de trabalhadores e outras. Nesses lugares, eles

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vivem como qualquer camponês, são conhecidos pelas massas locais, que têm al-guma noção de que eles são do “movimento” e os protegem como tais. Mas eles não abrem sua condição de comunistas, a não ser para aqueles camponeses recru-tados para o partido, frisou.

Reconheceu que esse era um trabalho relativamente lento, que exigia não ir além da capacidade de luta da própria massa. Referiu-se a casos em que as comunidades chegaram a pegar em armas para enfrentar grileiros e jagunços, ao mesmo tempo que organizavam comissões para ir à capital pedir proteção ao governo e à polícia. E casos em que, mesmo tendo que enfrentar a polícia, tinham ido apelar ao governo.

Aprendera que a repressão nem sempre se abate da mesma forma sobre o movimento de massas. Quanto este tem verdadeiramente caráter de massas, a repressão tem que negociar. E a negociação, por parte dos camponeses, não era apenas fruto das suas ilusões ante as instituições ditatoriais, mas uma tática que levava em conta o grau de consciência que tinham de sua própria força. Em todas essas ações, as bases e os comitês do partido estiveram juntos, participaram das decisões, mas não foram identificados pela repressão.

Repisou a necessidade e as possibilidades reais de combinar o trabalho ilegal com o legal, e o secreto com a aberto, sabendo dosar cada um deles de acordo com as condições existentes, no processo de construção da base política de massas. Alertou para o fato de que o partido não era a única organização atuante entre as massas.

Havia a Igreja, dentro da qual havia várias organizações e correntes políti-cas, e os políticos locais ligados à Arena e ao MDB. E existiam as forças repressivas, os agentes infiltrados nos sindicatos, nos movimentos religiosos e, às vezes, até mesmo nas comunidades. Portanto, transformar uma área ou uma região numa base política de massas, nas condições de ditadura militar feroz, demandava traba-lho árduo e tempo.

Além disso, mesmo com toda a influência que os militantes do partido possam exercer, transformá-los em grupo armado, antes que as massas estejam dis-postas, elas próprias, a organizar-se como tal, seria isolá-los de sua base e deixá-los à mercê da sanha repressiva, como aliás havia acontecido no Araguaia.

Nada disso deveria ser estranho para o camarada Jota, aduziu Valdir. Essas experiências se baseiam, em grande medida, no exemplo vivido e ensinado por ele em Trombas-Formoso, junto com o Zé Porfírio, durante os anos 1950. Embora essa experiência de luta tenha sido pouco estudada e difundida, ela certamente foi muito importante para o PCB, pois obrigou até Arruda, então o todo-poderoso secretário político do partido, a se deslocar até a área para conhecer o que ocorria lá.

Terminou dizendo que externara sua opinião, desde 1968, de que a linha de preparação no Araguaia era foquista, militarista, voluntarista.

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– Se os camaradas tivessem corrigido a tempo essa linha, resistido por meio de um recuo estratégico, evitado o combate a todo custo, esperado com paciência que o inimigo caísse em engano, supondo que os combatentes haviam fugido, teria sido possível retornar em novas condições e realizar o trabalho de construção de uma base de massas. Mas, infelizmente, não fizeram nada disso. Continua-ram partindo para cima do inimigo, mesmo quando já haviam perdido metade dos seus efetivos. Nessas condições, o final trágico tornou-se inevitável. Nego-me, mais uma vez, a seguir qualquer linha desse tipo.

Zé Antonio tomou a palavra logo a seguir. lembrou que no processo de unificação da AP com o partido, desde 1973, haviam questionado as informações, ou a falta de informações, sobre a guerrilha no Araguaia. Isso os levara a produzir vários textos inverídicos sobre a luta no sul do Pará. Quando parte da direção da AP, em virtude do processo de fusão, foi incorporada à Comissão Executiva e ao Comitê Central, é que vieram a tomar conhecimento do desastre, mesmo assim só no âmbito da Executiva. Foi diante da impossibilidade de chegar a um consenso na Executiva que a discussão fora trazida para o Comitê Central, em 1975.

– E parece que continuamos no impasse. Há consenso de que a guerrilha foi derrotada, mas não há consenso sobre a natureza da derrota e dos erros que a cau-saram. Inicialmente, também era daqueles que consideravam que a linha da guerra popular havia sido aplicada e que a natureza dos erros estava mais relacionada aos aspectos militares. Porém, à medida que fui tomando conhecimento dos detalhes da preparação e das decisões adotadas pelo comando da guerrilha, fui me dando conta de que os problemas de ordem política eram mais sérios e profundos e que os desvios foquistas possuíam uma abrangência muito maior. Não nego que os cama-radas tenham feito um esforço real para aplicar a linha da guerra popular, mas tam-bém já não tenho dúvidas de que esse esforço acabou resultando em outra política.

Zé Antonio estendeu-se em considerações sobre grande parte dos argumen-tos de Jota, procurando mostrar as contradições entre a prática descrita e a teoria proposta. Era cuidadoso, parecia, em alguns momentos, pisar em ovos, ao mesmo tempo que sua natureza condoreira de falar o levava, vez por outra, a assertivas fortes na condenação de vários aspectos do relatório.

– Também não temos consenso em torno da continuidade da preparação. Concordamos todos que a luta armada é o caminho, mas nos defrontamos, do ponto de vista da prática, com propostas antagônicas. Além disso, no estado em que está o partido, voltar-se para o trabalho de massas, construir bases políticas de massas, reconstruir o partido e lhe dar condições de selecionar quadros para o trabalho militar, significa, concretamente, um amainamento na preparação mili-tar, seja de que tipo for. O partido simplesmente não tem forças para montar um novo dispositivo do tipo do Araguaia, a não ser que transfira para a área prioritária a maior parte dos membros do CC e dos comitês regionais.

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Zé Antonio disse que, em virtude da situação do partido, achava muito difícil trilhar dois caminhos paralelos, duas experiências.

– Quem iria fornecer quadros e militantes para outra experiência do tipo da do Araguaia?

Ainda falou algum tempo sobre a necessidade de se chegar a um consenso e unificar as linhas. Mas colocou-se frontalmente contra a proposta de Rui de tomar uma decisão imediata.

Já eram quase cinco horas quando pararam para tomar um café. Ainda havia tempo para mais um dos participantes externar suas opiniões e Maria pediu para falar. Seu rosto enrugado e a boca com os cantos retorcidos para baixo expri-miam todo seu desconforto com as intervenções que a antecederam.

– Nós não podemos trair os companheiros que morreram no Araguaia. É muito fácil daqui, sem haver passado pela experiência prática da luta, criticar os erros, falar que deveria ter sido feito de um jeito ou de outro, que se deveria ter recuado e tudo o mais. Vocês não viveram o apoio da população à guerrilha, não sabem como esse apoio foi fundamental para a sobrevivência dos companheiros nos combates contra as tropas do Exército, e vêm falar que a guerrilha não criou base de massas. Onde havia 90% da população apoiando a guerrilha, tinha que haver base política de massas. Elas só não entraram na guerrilha porque a repres-são foi brutal, conseguiu impedir que elas pegassem em armas.

Maria falava com o coração e como se tivesse vivido cada momento da luta. Contou toda a história da preparação, de como cada companheiro chegou ao Araguaia e começou a trabalhar nas coivaras, a aprender a andar na mata, a caçar e a fazer amizade com os vizinhos. Como cada um, a seu jeito, foi ganhando a confiança dos posseiros, ajudando-os no trabalho e nas doenças e, vários, trans-formando-se em compadres deles nos terecôs. Isso era trabalho de massas, frisou.

– Para continuar esse trabalho, só mesmo com os destacamentos armados, quando o inimigo atacou. Como seria possível elevar a consciência política da massa sem a proteção dos destacamentos e sem dizer que os destacamentos faziam parte das forças guerrilheiras contra a ditadura?

Foi um longo e penoso desabafo. Mário procurava manter a atenção no que ela falava e sentiu alívio quando Maria terminou. A derrota deixara alguns camara-das, como ela, totalmente desarvorados. Ficou imaginando o que acontecera com os companheiros do PCB diante da derrota de 1964.

Não havia nada que os convencesse de que o problema do caminho pací-fico e não pacífico não era apenas nosso, mas também do outro lado, da parte do inimigo. lembrava-se de garrincha que, na sua ingenuidade, sabia que até no futebol, para definir uma tática, era sempre preciso saber o que o outro lado ia fazer. E o outro lado, há muito, se definira por um caminho não pacífico. Em 27 de março, totalmente alheia à tempestade armada, a direção do PCB

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publicara suas “Teses” para a discussão do VI Congresso, que pretendia realizar em novembro.

O golpe no despreparo do PCB para qualquer eventualidade diferente da que imaginara foi tão profundo que apenas em maio de 1965 o partido conseguiu realizar a primeira reunião plenária do seu Comitê Central, em meio a divergên-cias não só no CC, mas no próprio Secretariado reunido em torno de Prestes. A apreensão das cadernetas em que o veterano dirigente anotava nomes, codinomes e tudo o que se passava no partido, foi mais um golpe no já abalado mito, pelo menos no âmbito dos dirigentes.

Diante da vitória, quase sem resistência, do golpe reacionário, o PCB fra-turou-se de forma virulenta. Os propalados dogmatismo e sectarismo, que teriam sido totalmente derrotados no V Congresso e, depois, expelidos do interior do PCB no final de 1961 e início de 1962, pareciam reemergir das cinzas internas com aqueles que atacavam a direção por seu reboquismo em relação à burguesia, seu pacifismo direitista, sua falta de preparação para enfrentar o golpe e pelo refor-mismo da linha política.

O novo núcleo de dirigentes que se agrupou em torno de Prestes avaliava, porém, que a derrota diante do golpe reacionário devera-se à má apreciação da correlação de forças, à subestimação da capacidade da burguesia, ao golpismo da esquerda, à pressa pequeno-burguesa, ao desprezo pela legalidade democrática, ao baluartismo e ao subjetivismo. Prestes teimava, então, que o esquerdismo e não o direitismo fora a causa do golpe e da derrota da esquerda.

Os inúmeros “partidos” que continuavam formando o PCB vieram à tona com uma força inusitada e, mais uma vez, todas as atividades divergentes passaram a ser catalogadas como fracionistas. E, ironia das ironias, Prestes e os que o apoia-vam passaram a ser chamados de stalinistas, ao mesmo tempo que carimbavam seus oponentes com o mesmo selo. Um relatório reservado do DOPS de São Paulo captou, em maio de 1965, o processo de cisão no PCB, informando que os filiados da região sul não aceitavam mais a liderança de Prestes, de linha soviética, devendo ir para a secretaria geral Jover Teles, que tendia a aceitar as teses do PC da China e se aliar com a ala de Pedro Pomar, da linha chinesa.

Por intermédio de antigos companheiros, Pomar acompanhava a evolução da nova luta interna que explodira no PCB e expressou a opinião de que, sem mudar um átimo seus métodos de direção e sem entender o que realmente estava ocorrendo no país e no próprio partido, seu núcleo dirigente o conduziria a um rápido processo de desagregação. O mito de Prestes perdera muito de sua força, ao ser exposto à luta política aberta, e já não poderia pairar acima dos conflitos internos. De cimento-liga que permitia manter a unidade entre correntes com divergências não explicitadas, se tornaria o oposto, o principal instrumento de divisão do PCB.

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A imposição posterior de uma tática de isolar e derrotar a ditadura, por meio de amplo movimento de massas, para conquistar um governo representativo de to-das as forças antiditadura, sem apontar a luta armada como uma das formas a serem preconizadas no movimento de massas, levou dirigentes como Carlos Marighella, Joaquim Câmara Ferreira, Mário Alves, Jacob gorender, Apolonio de Carvalho, Miguel Batista, Jover Teles e outros, muitos dos quais haviam sido justamente os esteios de Prestes nos debates posteriores a 1956, a divergir e iniciar atividades que não somente os conduziam a romper com Prestes, mas também entre si.

Mais do que nas crises anteriores, os diversos partidos que compunham o PCB e se mantinham soldados pelo mito prestista, tendiam a desmanchar em dife-rentes correntes políticas autônomas, diante da incapacidade, tanto do mito como daqueles diferentes dirigentes, em tratar as divergências e unificá-las por um proces-so de convencimento, cujo critério de verificação do acerto só poderia ser a prática.

Em 1966, ao mesmo tempo que o PCdoB realizava sua VI Conferência Na-cional para definir a tática contra a ditadura e sua linha de luta armada, o Comitê Central do PCB aprovava as teses reelaboradas para o VI Congresso. Durante a realização deste, em 1967, a maioria dos delegados concordou que o Brasil estava sob um regime ditatorial militar, cuja política era essencialmente voltada para abrir as portas ao imperialismo e sufocar a democracia e qualquer reação operária.

Diante disso, o Congresso aprovou uma tática de ampla união contra o novo regime, tendo como eixo central a defesa das liberdades democráticas. Para ter sucesso em sua tática, a maioria do PCB acreditava tanto na luta entre os componentes do regime ditatorial quanto na organização e na luta popular. O Congresso reiterou também a antiga fórmula de revolução nacional e democrática, com preponderância do fator nacional, como condição para avançar no rumo da revolução socialista.

A maioria presente ao VI Congresso do PCB reafirmou também a apre-ciação de Prestes de que os principais erros que haviam conduzido ao desastre de 1964 estavam relacionados com o dogmatismo e o golpismo de esquerda. As crí-ticas à linha do V Congresso e as propostas relativas à luta armada e à perspectiva socialista, em torno das quais haviam surgido pelo menos cinco grupos no curso dos debates do congresso, foram derrotadas e seus autores acusados de realizar atividades fracionistas, de defender concepções pequeno-burguesas etc. etc. etc.

Prestes saiu mais uma vez vitorioso do embate interno, remodelando to-talmente o Comitê Central e a Comissão Executiva. Para esta escolheu, afora ele próprio, giocondo Dias, Orlando Bonfim, Jaime Miranda, Zuleika Alambert, Dinarco Reis e geraldo Rodrigues, tendo Ramiro luchesi, Walter Ribeiro e Mar-co Antonio Coelho como suplentes. Estava preparado o terreno para um novo expurgo da organização partidária, seguindo o velho e surrado modelo de solução das divergências mediante sucessivas diásporas.

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O processo de expulsões começou pela guanabara, com o setor universitá-rio, que formou o grupo Dissidência. Em 1967, Marighella tomou a iniciativa de romper, ao tomar parte da Conferência da Organização latino-Americana de So-lidariedade (OlAS), que apontava a luta armada, por meio de focos guerrilheiros, como forma central do processo revolucionário na América latina.

Ainda em 1967, o CC do PCB intervém nos comitês estaduais de São Paulo e Rio de Janeiro, no Comitê Metropolitano de Brasília e no Comitê Marítimo, ex-pulsando todos aqueles dirigentes e mais alguns outros como Armando Frutuoso, luís guilhardini e José Maria Cavalcante. Em todo o país, inúmeros militantes são desligados ou se desligam do partido por divergências com sua avaliação do golpe militar e por sua reiteração do caminho pacífico para derrotar a ditadura militar.

O PCdoB não chegou a enfrentar nada parecido, pelo menos de imediato. Vários de seus militantes e dirigentes, como Calil Chade e Manoel Siqueira, foram presos durante os arrastões realizados pelos militares golpistas e responderam a inquéritos policiais militares e a processos na justiça militar, mas a pequena estru-tura do partido não chegou a ser desorganizada. Calil foi acusado de ser “perigoso militante comunista de linha chinesa”, em poder do qual teriam sido encontrados milhares de boletins contra a revolução de 31 de março, assim como documentos comprometedores, incluindo planos de sabotagem e crimes terroristas direciona-dos para a eliminação de Carlos lacerda e Adhemar de Barros.

A casa de Pomar, na rua Odon Noef, 5, ainda no Tatuapé, foi vasculhada e depredada pela polícia. Sua prisão preventiva, juntamente com a de Manoel Si-queira, foi decretada ainda em abril de 1964, por dirigirem a célula comunista que funcionava à rua Felipe Camarão, 15, sala 4. O Diário Oficial de 13 de junho de 1964 publicou a suspensão de seus direitos políticos por dez anos.

Por insistência de Pomar, a direção do partido, que até então tinha seu nú-cleo central no Rio de Janeiro, mudou-se para São Paulo, uma cidade bem maior e onde o partido tinha uma base mais sólida. Em agosto de 1964, o PCdoB já estava com sua estrutura mergulhada na clandestinidade, em condições de reunir seu Comitê Central e avaliar melhor a nova situação decorrente do golpe. Nesse mesmo mês, o serviço secreto do DOPS recebeu a informação de que Pomar viajaria, em companhia de Pedro Trevisan, para São José do Rio Preto, num carro Ford preto, montando uma forte diligência no pedágio de Jundiaí para capturá-lo.

Pomar não passou, frustrando as expectativas dos policiais, mas eles pude-ram anotar a passagem de Carvalho Pinto, Adhemar de Barros e outras persona-lidades rumo ao interior do Estado. É provável que tenha sido essa informação a isca que levou a direção do PCdoB em São Paulo a descobrir o agente policial infiltrado em suas fileiras. A partir daí, as informações policiais sobre a vida interna do partido passaram a ser aquelas obtidas de militantes aprisionados e, em geral, sob tortura. Foi assim que quase dois anos depois, Tarzan de Castro, que fizera

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curso na China, foi preso, bandeou-se para o lado inimigo, teve sua “fuga” da For-taleza da lage preparada pelo próprio Exército e se tornou agente infiltrado, mas já numa dissidência do PCdoB, a Ala Vermelha.

Em 1964, porém, o PCdoB ainda não enfrentava esse problema e a avalia-ção de seu Comitê Central sobre a natureza do golpe coincidia, em muitos aspec-tos, com a dos grupos do PCB que criticavam a direção prestista por seu direitismo e reboquismo. Entretanto, as divergências entre todos eles, e internamente no PCdoB, eram mais profundas do que se poderia supor.

Pomar avaliava que o movimento operário e popular não forjara uma força própria para enfrentar o projeto reacionário. Avançara muito, pela primeira vez fizera com que algumas de suas reivindicações estruturais constassem de um dos projetos burgueses em disputa, mas não conseguira se unificar como força nacional suficientemente forte para se contrapor aos reacionários. A direção do PCB, que era hegemônica, tinha a responsabilidade maior por não haver elevado a consciência das massas, por haver se subordinado à direção vacilante de uma burguesia fraca e desfibrada, mas nós precisaríamos reconhecer, frisava, que o movimento social, em si mesmo, ainda não era suficientemente pujante. Quero com isso dizer que deve-ríamos trabalhar com mais afinco para fortalecer o movimento operário, fortalecer o movimento camponês e os movimentos populares, nos integrar neles e trabalhar numa perspectiva de longa duração. Essa ditadura tem projeto de longo prazo, está associada aos planos norte-americanos de expansão de seus capitais e de guerra Fria e não vai devolver o poder de mão beijada para quem quer que seja. Então, temos que nos preparar para uma luta dura, árdua e prolongada. As condições em que o golpe se realizou e a facilidade com que as forças reacionárias tomaram o poder deveriam nos alertar para o fato de que teremos que combinar adequadamente a construção do partido, a sedimentação de uma forte base política de massas nacio-nal e a preparação de uma luta armada que englobe todo o povo.

Pomar também defendeu a necessidade de traçar uma tática de frente única que agregasse todas as forças que se opunham à ditadura e tivesse como objetivo central a sua derrubada e a reconquista das liberdades democráticas. A ideia de que a ditadura não será derrubada senão por um processo de luta armada não significa que não devamos ter uma tática ampla, disse, acrescentan-do que isso, é óbvio, limitava os objetivos programáticos do partido. A tática deveria ter como meta dar fim à ditadura, obstáculo principal ao avanço da democracia, da independência nacional e dos direitos dos trabalhadores. Mas só por meio dela se conseguiria acumular forças e reunir condições para avançar rumo aos objetivos programáticos.

Essas opiniões de Pomar bateram de frente com as de Danielli, para quem o problema imediato e fundamental era preparar a luta armada. Esta deveria passar a ser a tarefa número um. Para ele, a ditadura colocaria o país numa tal situação

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de espoliação e atraso, ao abrir totalmente as portas ao imperialismo, que sua der-rubada teria que coincidir inevitavelmente com a implantação de um governo de construção socialista.

Amazonas apoiou em parte Pomar, concordando com a necessidade de uma tática de frente única, ampla, contra a ditadura, mas ao mesmo tempo achou que Danielli tinha razão em considerar prioritária a preparação da luta armada. Ao contrário do que Pomar pensava, a implantação da ditadura militar teria sido um sinal de fraqueza das classes dominantes, tornando mais favoráveis os fatores para o desencadeamento da luta armada. lembrou que vários militantes do PCB estavam vindo para o partido porque enxergavam nele o defensor do caminho armado, e que outros grupos também estavam se preparando. Avaliava, então, que quem saísse primeiro capitalizaria o processo de luta e que o partido era o que estava em melhores condições para isso.

grabois, que havia retornado da China havia pouco, também imaginava que com a nova conjuntura o problema da luta armada ganhava relevância. Era preciso acelerar sua preparação, selecionar mais quadros para a quinta tarefa, trans-ferir esses quadros para o campo e iniciar uma preparação séria. Arroyo e Oest também opinaram no mesmo sentido e Pomar sentiu que mais uma vez estava perdendo a batalha. Provavelmente talvez nem tivesse o apoio de Chade, que esta-va sofrendo de diabete, e, ainda preso, pedira afastamento por questões de saúde.

A resolução do Comitê Central tomou o golpe como sinal de fraqueza das classes dominantes e manipulação colonizadora do Pentágono, concluindo que as

medidas entreguistas e antipopulares da ditadura haviam robustecido na consciência do povo a necessidade da revolução. O povo brasileiro tinha pela fren-te, portanto, grandes lutas imediatas e a luta armada.

Como concessão às opiniões de Pomar, a resolução criticou as tendências sectárias do período anterior ao golpe, que haviam levado à fuga do trabalho nas organizações de massa, particularmente no movimento sindical, não tinham dado a devida atenção aos contatos mais estreitos com as correntes políticas democráti-cas e haviam exagerado no combate ao que existia de errado na política de Jango.

Pomar achava, porém, que essas manifestações de sectarismo não eram sim-ples desvios, mas a materialização das idéeas sobre a luta armada que ganhavam predominância no partido. Sua base teórica e prática consistia na suposição de que o emprego das armas deveria ser uma decisão do partido e não das massas. E, mais grave ainda, do ponto de vista conjuntural, de ideias que analisavam que o movimento de massas, apesar da passividade evidente, estava em ascenso, e que propunham ações armadas enérgicas que, nas condições dadas, excluiriam a par-ticipação das massas.

No final de 1964, Pomar já tinha conseguido reorganizar sua própria vida familiar na clandestinidade. Mudou-se para uma casa ampla, no Alto da Boa Vis-

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ta, perto da estátua do Borba gato, que poderia eventualmente servir de local para as reuniões da Comissão Executiva. Começava a sentir o peso dos anos. Estava totalmente calvo. Mantinha sua tradicional postura e andar calmos, corpo sempre reto, e não perdia a elegância, mesmo com roupas simples, mas sempre limpas e bem passadas, muitas vezes por ele próprio. Num bairro de classe média, passava tranquilamente por um professor. Continuava sorrindo ao falar, embora seu rosto às vezes já denotasse as decepções da vida.

Aos poucos, foi retomando os contatos com a teia de amigos que fizera ao longo dos anos. Eram tanto operários de fábrica como profissionais liberais, médicos, intelectuais e até empresários, como Antônio Draetta, David e Porota Rosenberg, Romeu Fontana, Rosiris e Iris Thomaz, Reinaldo laforgia, Paulo Sol-dano, Clóvis Moura, Jorge lemos, Carlos Alberto e Heloisa Ferrinho e uma série bastante considerável de pessoas, com as quais sempre mantivera boas relações, independentemente das divergências políticas e ideológicas.

Sabia que alguns, como laforgia e seu primo, Soldano, morriam de medo de vê-lo, mas ao mesmo tempo tinham grande prazer em recebê-lo e conversar com ele. Eles tinham em Pomar alguém que os escutava, e muito, e os tratava com ternura, preocupação e gestos amáveis. Desabafavam suas mágoas e suas angústias, opinavam sobre os acontecimentos e sobre a vida e reclamavam das dificuldades. Não raro, pediam conselhos sobre a própria vida pessoal.

Nardo, ou Reinaldo laforgia, por exemplo, era ainda jovem, no Tatuapé, quando Pomar o conheceu na loja de móveis do pai, na rua Antônio de Barros. Encantou-se com a forma como aquele conhecido comunista do bairro conversava com ele, ouvia com atenção suas opiniões e as respondia seriamente. Paulatina-mente, mesmo “sujando-se de medo”, como sempre dizia, tornou-se amigo de Po-mar e disposto a ajudá-lo em qualquer situação. Assim, quando o viu pela primeira vez depois do golpe militar, pensou que ia morrer de tremedeira. Mas aguentou firme. E durante todo o período da ditadura tanto ele quanto o primo ajudaram o amigo comunista como puderam.

Pomar, que a todos chamava de mestre, sempre os encarava diretamente com seus olhos inquiridores, mas naturalmente amigáveis. Com o tempo, muitos chegaram a perceber que suas pupilas mudavam de cor segundo seu estado de espírito. Cada vez menos esverdeadas de alegria, cada vez mais azuladas de tristeza, mas quase sempre gateadas de calma.

Era por meio desses contatos, tão diversos e diferenciados, que Pomar se mantinha em contato com o mundo real, procurava captar a realidade e o que se passava na cabeça das pessoas. Proibido, pela clandestinidade, de ter acesso a debates e à vida social e cultural, sempre cheia de faces diferentes e contraditórias, buscava nesses amigos pequenas fagulhas do que acontecia, para formar sua pró-pria ideia da situação e evitar se desligar da realidade.

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Carlos Alberto Ferrinho foi outro desses amigos e militantes que se tornou um apoio imprescindível à nova fase da vida de Pomar e do partido. Tinha sempre um ponto marcado para se encontrar com ele, transportava-o de um canto para outro em seu fusca, assim como a outros dirigentes, tornou-se exímio falsificador de documentos de identidade para militantes perseguidos e chegou a comprar armas para a guerrilha do Araguaia. Durante os doze anos seguintes, manteve--se firme nessa atividade, desempenhando papel importante tanto na retomada do contato entre Pomar e Amazonas, em 1973, como entre Arroyo e Pomar, em 1974, após a derrota e a retirada do Araguaia.

Ao mesmo tempo, cumprindo a decisão de procurar áreas favoráveis para instalar militantes no campo, com vistas a preparar a luta armada, Pomar viajou por goiás, Maranhão e sul do Pará, como vendedor de medicamentos. Sentia--se à vontade para conversar com as pessoas. Perguntava mais do que opinava. Entrou no mundo dos migrantes das novas fronteiras agrícolas, dos posseiros e grileiros, dos “gatos” e das empreitas, dos bate-paus, dos caminhoneiros e da poeira da Belém-Brasília.

Foi numa dessas viagens, indo de Anápolis para Porangatu, que sentou a seu lado um antigo conhecido da sede do Comitê Central do PCB, na rua da glória, no Rio de Janeiro, nos idos de 1946. Siqueira Campos perguntou na lata se ele não era o Pedro Pomar.

– Pedro Pomar? Não, meu nome é lino. Às vezes me confundem com ou-tras pessoas. E o senhor, como se chama?

Pomar procurou mostrar tranquilidade e naturalidade. Disse que era da Bahia e estava atrás de terra para comprar. Tinha um amigo com uma fazenda em Porangatu e ia lá para ver como é que era. Siqueira Campos contou que tinha vindo para goiás há tempos, tinha umas terras em Colinas de goiás, onde havia montado uma cooperativa e extraía mogno. Estava metido na política local e or-ganizando um movimento para emancipar o norte de goiás e formar o Estado do Tocantins. Mais cedo ou mais tarde isso ia acontecer, porque o norte estava recebendo muitos migrantes, aumentando a produção de arroz e as pastagens. Araguaína já era uma cidade para ninguém botar defeito. Por intermédio dele, Pomar teve uma visão panorâmica do norte goiano, suas potencialidades e proble-mas. Siqueira Campos estava a par de tudo e tinha objetivos bem definidos, com ditadura ou sem ditadura.

Pomar e Arroyo ficaram responsáveis por montar o dispositivo de goiás. Aos poucos foram instalando quadros ao norte de Ceres, na região de Itapa-ci e Santa Terezinha do Crixás, em Uruaçu e Porangatu. Era uma primeira aproximação, para ambientar os quadros, fazê-los aprender a vida do campo, conquistar cobertura econômica e social e conhecer a realidade. Alguns se ins-talaram como pequenos fazendeiros, outros como posseiros ou peões, outros

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ainda como farmacêuticos e comerciantes. Mas, quanto mais Pomar conhecia a realidade dessa região, mais pessimista ficava com as possibilidades de montar um dispositivo seguro.

Sentia que a base de massa era muito fluida. Os posseiros, em geral, der-rubavam a mata brava, amansavam o terreno e depois, ou se transformavam em pequenos e médios proprietários, ou vendiam o serviço e seguiam adiante em busca de terras novas. Os que ficavam em geral trabalhavam em economia familiar e tendiam a criar gado, utilizando pouca mão de obra. Era, pois, uma base social muito esgarçada, que tendia a se movimentar acompanhando a abertura da fron-teira agrícola. Seria necessário um trabalho de enraizamento de longo prazo para constituí-la como sustentação política segura.

Começou, então, a questionar com mais ênfase a preparação da luta armada antes de clarear o caminho possível. Ao mesmo tempo, esforçava-se para que a direção avançasse na elaboração da tática de luta contra a ditadura. A convocação da VI Conferência Nacional, no início de 1966, com o objetivo de discutir a tática e a linha geral da luta armada, lhe deu a esperança de que o partido, a essa altura aumentado não só com quadros intermediários e militantes vindos do Partidão, mas com militantes novos, recrutados principalmente nas universidades, fosse ca-paz de combinar uma tática ampla com uma linha militar correta. A vida, porém, sempre verde, lhe reservava novas surpresas.

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22 ERRA O HOMEM, ENQUANTO A AlgO ASPIRA

Nas guerras vale o acaso às vezes por troféu. J. W. goethe (Fausto)

1976, São Paulo, dezembro: noite do dia 141966-1970, São Paulo e mais: contraditórios

Jantou mais taciturno do que seu normal e, mal terminou, Mário re-colheu-se em sua cisma. As recordações continuavam atropelando-se em sua mente, na busca quase desesperada do fio que os levara à situação emparedada em que se encontravam.

Em junho de 1966, o partido realizara sua VI Conferência Nacional en-frentando problemas idênticos aos do PCB, mas menos extensos. Acabaram pre-valecendo as ideias que supunham a imposição do regime ditatorial como um sinal de fraqueza das classes dominantes, que criara condições mais favoráveis para o desencadeamento da luta armada, ao contrário do que avaliava Pomar. Apesar disso, a Comissão Executiva e o Comitê Central concordaram em discutir e traçar uma nova tática, diante das mudanças ocorridas com o golpe.

Ao elaborá-la e propô-la à VI Conferência, não puderam, porém, fugir da constatação do estágio real de passividade do movimento popular e operário. Em tal contexto, a resolução da Conferência viu-se na contingência de usar o condi-cional para apresentar sua proposta de frente única antiditatorial. Segundo ela, um poderoso movimento de massas, apoiado na unidade popular e patriótica, tornaria mais difícil à ditadura realizar a sua política, faria aumentar as divergências no campo da reação e criaria condições favoráveis à elevação do nível das lutas. A ditadura não cairia por si mesma e tampouco se modificaria a situação nacional se predominasse a passividade e se aguardasse, contemplativamente, um levante popular espontâneo e geral.

O movimento político de massas deveria ser preocupação dos verdadeiros patriotas, para acumular forças. Simultaneamente com a ação política e a atividade para organizar a união dos brasileiros para livrar o país da crise, da ditadura e da

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ameaça de recolonização, afirma a resolução, era imprescindível preparar a luta ar-mada, forma mais alta de luta de massas. E, pela primeira vez, o PCdoB encampou a ideia geral de que sua luta armada deveria ser uma guerra popular, tendo por base principalmente a experiência e o impacto da luta vietnamita.

A leitura de Guerra Popular, Exército Popular, de giap, e os relatos da guerra de guerrilhas dos vietmins e vietcongs circulavam amplamente pelos quadros do partido nesse período, difundindo as ideias sobre a possibilidade de combinar luta armada com luta política, coordenar as ações das três categorias de forças armadas (tropas regionais, tropas regulares e forças locais de autodefesa) e atacar em três se-tores estratégicos: cidades, povoados e campos. A experiência dos grupos armados de propaganda, principalmente, despertou grande interesse.

Mas a simples ideia de ter uma tática de acumulação de forças, que tirasse da passividade o movimento de massas, causou rebuliços durante a Conferência. Vários companheiros criticaram o direitismo e o reformismo da tática e propuse-ram ações imediatas para obter fundos e armas, implantar-se no campo e iniciar a luta armada. Houve até alguns que, ligados a Tarzan de Castro, realizaram ações desse tipo, à revelia da direção.

Em tais condições, a aprovação da nova tática, que pressupunha a necessi-dade do movimento político de massas para o desencadeamento da luta armada, conduziu a uma desgastante disputa com os que pretendiam a realização imediata de ações armadas e acabaram por sair do PCdoB e formar a Ala Vermelha. Foi nessa ocasião que companheiros do Nordeste, dirigidos por Amaro Cavalcante, também se desligaram do partido e formaram o Partido Comunista Revolucioná-rio, para o qual o centro da luta armada deveria ser aquela região.

Foi em meio a essas turbulências internas, e sob pressão do aparelho repres-sivo que também o tinha como alvo (o diretor do DOPS do Rio de Janeiro fez, nessa ocasião, em relação a Pedro Pomar, um pedido específico de busca ao Centro de Informações da Marinha – Cenimar), que Pomar teve sua úlcera supurada e viu-se na contingência de ser operado às pressas por David Rosenberg. Essa era uma velha e perene amizade, desde o período da clandestinidade anterior, em São Paulo, apesar das rusgas e das divergências que vez por outra pareciam separar os dois. Continuaram se falando durante todo o tempo e David jamais deixou de ajudar Pomar e os seus nos momentos de precisão. Foi ele quem conseguiu lugar no Hospital do IAPC, na avenida Brigadeiro luis Antônio, internou Pomar por sua conta e risco e operou sua úlcera.

Pomar teve que passar um bom tempo recolhido, em convalescença, ao mes-mo tempo que se inquietava com as divisões em curso no partido. Tinha consciência de que elas eram apenas o sinal das divergências profundas em torno do problema da relação entre luta geral de massas, luta política de massas e luta armada. Tanto a resolução da conferência quanto a saída dos companheiros não as haviam resolvido.

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A resolução do Comitê Central, de maio de 1967, a respeito das dissidências, não aprofundou como deveria as críticas às concepções voluntaristas e foquistas.

Da mesma forma que os defensores dessas concepções, a maioria do Comitê Central imaginava que as condições para a luta armada estavam maduras. As di-vergências estariam restritas, então, à avaliação dos fatores subjetivos, do grau de preparação do partido ou das forças revolucionárias, para dar início ao processo armado. Tanto é que, em novembro de 1967, o Comitê Central voltou a reiterar que as condições eram bastante favoráveis para desencadear a luta armada, des-mascarar a ditadura e desenvolver movimentos de massas e demonstrações de rua.

É verdade que, nessa ocasião, o CC também reconheceu que as ações de massa eram indispensáveis, antes como durante a guerra popular. E que avançou na ideia de que esta guerra deveria ter sua atividade fundamentalmente no interior, com os camponeses como força básica. Apesar disso, acrescentou à concepção da luta armada uma nova categoria – o interior como cenário mais favorável –, ao mesmo tempo que destacava o papel importante das grandes cidades na prepara-ção da guerra popular.

Ao contrário da teoria de Mao a respeito do cerco das cidades pelo campo, que se mostrara adequada para as condições da Revolução Chinesa, o PCdoB considerou que no Brasil as cidades teriam papel essencial, seja na agitação política e na luta de massas, seja no envio de militantes para o campo, no apoio e uma solidariedade ao interior e nas ações para impedir o inimigo de concentrar forças contra os destacamentos armados do campo, sabotando suas linhas de abasteci-mento e de comunicações.

Assim, em novembro de 1967, mesmo sem ter uma consciência completa dos desdobramentos práticos que isso poderia causar, a maioria do CC aceitou uma distinção entre luta de massas e guerra popular, entre luta de massas e desta-camentos armados, e entre guerra popular no interior e outros tipos de ações nas grandes cidades. É certo que aprovou também uma crítica ao que chamou de fide-lismo, expresso na OlAS e no trabalho de Regis Debray, Revolução na revolução, que reduziria o partido a um simples destacamento armado.

Segundo a opinião predominante no Comitê Central, a luta armada pres-supunha uma concepção sobre essa luta, a fixação de objetivos, a escolha de regi-ões, a seleção de homens, um plano de disposição de forças, o conhecimento das disposições favoráveis, a mobilização das massas e palavras de ordens de agitação, propaganda e ação, que só um partido poderia enfrentar.

Com base nesses pressupostos, a luta armada deveria se iniciar partindo de pequenos grupos, mas depois deveria incluir as grandes massas. Pomar se deu con-ta de que essa concepção apenas se distinguia das proposições foquistas de Debray por incluir, de maneira ritual, a ideia da mobilização das massas. Mesmo assim, ao reduzir o problema das massas à sua mobilização e à sua inclusão posterior, inver-

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tia o processo de que os destacamentos armados deveriam ser decorrência da luta das massas. Do mesmo modo que o materialista que acredita em bruxas, a crítica da direção do partido ao foco escondia a adesão real a ele.

Possuía a mesma concepção de Debray sobre a maturidade das condições objetivas para a revolução; apenas discordava de que elas fossem válidas para todo o continente sul-americano e que a revolução fosse socialista. Acreditava que as condições objetivas podiam ser criadas pela ação armada de destacamentos do partido; discordava que isso se chamasse foco. Estava convencida de que as matas e as serras eram o cenário mais favorável para a ação exitosa dos destacamentos armados do partido. E, apenas teoricamente, estabelecia a primazia do político sobre o militar.

Faltava, porém, ambiente para o debate. A repressão era o empecilho mais sério. Além das ordens de prisão anteriores, no caso de Pomar acrescentava-se a emitida pelo coronel Ferdinando de Carvalho, responsável pelo IPM nº 709, que tratava do Partido Comunista. Por outro lado, a 2ª Seção do II Exército também conseguira as fotos dos brasileiros que haviam frequentado os cursos na China. Num acordo com o governo do Paquistão, a CIA fotografava os passaportes de todos os brasileiros que se dirigiam àquele país e um de seus agentes no Brasil, Richard Van Wincle Costelo, permutou as fotos pelo direito de reproduzir no Panamá as cadernetas de Prestes, que haviam caído em poder da polícia logo após o golpe militar.

Para complicar, à pressa em resolver as divergências aliava-se a ideia de que não era possível incorporar o conjunto do partido, nem mesmo o conjunto da direção, nas decisões sobre a luta armada. A Comissão Executiva tornou-se, assim, mais do que antes, o núcleo decisório inicial e final das questões-chave que envol-viam a vida e a política partidária. Mas Pomar era uma pedra incômoda nesse ca-minho, questionando com seu costumeiro ardor as incongruências que detectava até mesmo nas críticas teóricas ao foquismo.

Ele não podia ser afastado sem mais nem menos por exigir definições mais claras em torno das questões que envolviam a luta armada ou a guerra popular. É verdade que já o haviam afastado da Comissão Militar e da preparação do dispo-sitivo de goiás e do Norte, deixando-o apenas responsável por São Paulo e pela montagem de um trabalho no Vale da Ribeira. Mas não havia argumentos para tirá-lo da Comissão Executiva, mesmo sendo geralmente minoria de um.

A sua tragédia consistia em que, mais uma vez, os movimentos de massa, em todo o mundo e no Brasil, contra a ditadura, durante 1968, pareceram tirar--lhe a razão e enfraqueceram sua posição. Com base nos surtos desse período, a Comissão Executiva avaliou, em setembro, que a luta de classes se intensificava em toda parte e a revolução mundial marchava a passos acelerados. Até mesmo a luta pela democracia na Tchecoeslováquia, e a consequente invasão das tropas do Pacto

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de Varsóvia, pareciam apontar naquele sentido. Assim, sem estar imune a tais in-fluências, Pomar também supunha, em grande medida estimulado pela Revolução Cultural na China, que a revolução mundial realmente seguia em frente.

Em artigo que preparou para A Classe Operária sobre os grandes êxitos da-quela revolução, Pomar asseverou que eles eram um valioso alento à luta pela in-dependência, pela democracia e pelo socialismo. Ao mobilizar massas de centenas de milhões, ela teria reforçado a ditadura do proletariado e posto a superestrutura política e ideológica da China em melhor correspondência com a base econômica socialista, desenvolvendo ainda mais a produção e a experimentação científica.

A ideia de que cada cidadão deveria se interessar pelos problemas do Estado e participar de sua solução, suscitada pela Revolução Cultural, era muito cara a Po-mar e não poderia deixar de ser ressaltada por ele. Dessa forma, para garantir aquela participação e também satisfazer as exigências da base econômica e acelerar o avanço das forças produtivas, a Revolução Cultural teria se tornado uma inevitabilidade.

Pomar sintetizou, então, as duas linhas em confronto no processo da Revo-lução Cultural chinesa. Uma, a negação da possibilidade de edificar o socialismo em ritmos rápidos, sob a alegação do baixo nível das forças produtivas, do atraso técnico material do país, preconizando grandes concessões aos capitalistas e pro-pondo que seus interesses não fossem afetados por um longo período. Essa linha depositava, ainda, esperanças na ajuda exterior e não confiaria no esforço do pró-prio povo, dando ênfase aos estímulos materiais e prioridade à economia sobre a política. Além disso, menosprezaria o papel da ditadura do proletariado, das novas relações de produção e das massas populares, propagando a importância do estudo e da formação de quadros técnicos desligados da ideologia proletária.

A outra linha, preconizada por Mao, combatia a teoria das forças produti-vas, colocando a questão nos seguintes termos: “que acontecerá se não estabelecer-mos a economia socialista? Nosso país se converterá num Estado burguês, como a Iugoslávia, e a ditadura do proletariado numa ditadura burguesa, além do mais, re-acionária e fascista”. A edificação socialista deveria, pois, demandar longo tempo, apoiar-se nos próprios esforços e num estilo de trabalho duro e de vida simples. O grande problema consistia na educação dos camponeses, o que só poderia ser feito com a socialização da agricultura.

Pomar, seguindo a versão oficial dos textos de Mao, concordava que as clas-ses e a luta de classes existentes no socialismo obrigavam as forças socialistas a travarem três grandes movimentos para a edificação socialista: a luta de classes, a luta pela produção e a luta pela experimentação científica. Nesse sentido, as gran-des massas do povo deveriam ser chamadas a defender o poder proletário, já que o único método provado consistia em confiar nas massas, respeitar sua iniciativa promovendo debates amplos que possibilitassem discernir as contradições no seio do povo das existentes entre o povo e seus inimigos.

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Horácio Martins Carvalho, nesse período, era um ponto de apoio impor-tante para Pomar e ambos mantinham um diálogo teórico intenso. Na época, por coincidência histórica e em função da guerra norte-americana contra o povo vietnamita, eles conversavam também sobre o governo e o povo norte-americano. Pomar julgava que a classe dominante dos Estados Unidos deveria ser punida de alguma maneira pelos prejuízos históricos que provocou e provocava em todo o mundo. Mas sempre tentava distinguir entre a ação histórica das classes dominan-tes, seus governos, exércitos e demais instrumentos de coerção e violência, e a base popular daquela sociedade, também oprimida, ainda que de maneira diferenciada dos demais povos, sejam do Terceiro Mundo ou mesmo da Europa.

Horácio não concordava com isso, mas reconhecera que o fundamental para Pomar era o respeito ao povo. Não que achasse que tudo o que o povo fazia estava certo, mas que certo ou errado era o povo que teria que fazer as transfor-mações que almejávamos. Para isso, reputava necessário trabalhar junto ao povo e com o povo. E foi isso que o levou a admirar tanto a Revolução Cultural chinesa e a realçar o método utilizado por Mao como um desenvolvimento da dialética marxista e do marxismo-leninismo. Afinal, a participação das massas também era a pedra de toque de suas opiniões a respeito da situação e da revolução brasileira.

Mesmo assim, quando o movimento de massas no Brasil aparentou entrar em ascensão, durante 1968, ele foi bastante cuidadoso. Ao contrário das avaliações que imaginaram que nada poderia deter as jornadas populares, que assinalariam o surgimento de uma nova situação política, ele ponderou que era cedo para tirar conclusões desse tipo, já que os operários e camponeses não estavam participando. Além disso, voltou a discordar das opiniões que viam na implantação de uma di-tadura ainda pior do que a que estava em vigência uma demonstração mais clara da fraqueza dos generais. E duvidou que a concretização da ameaça ditatorial seria um fator de radicalização do processo revolucionário.

Mas eram exatamente essas as opiniões que predominavam nas discussões sobre a concepção da guerra popular, realizadas pelo Comitê Central durante o ano de 1968. Nessas condições, tornou-se praticamente inevitável que elas chan-celassem o processo que presidia a preparação da luta armada no Araguaia, dirigida por uma Comissão Militar formada por Amazonas, grabois, Arroyo, Elza e Haas.

Desse modo, tomando como pressuposto a radicalização objetiva das condi-ções revolucionárias, a proposta original da Comissão Executiva sobre a estratégia da guerra popular incluía os conceitos de cenário favorável e construção de grupos clandestinos como braço armado do povo, que se assemelhavam às concepções foquistas de lugares inacessíveis e grupos de trabalho armado.

O interior seria o ambiente mais propício para a luta armada por apresen-tar uma situação adversa para o inimigo. E, por ambiente adverso ao inimigo, se entendia o terreno, coberto de matas, onde os combatentes revolucionários

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poderiam se proteger melhor. Os grupos clandestinos armados, por outro lado, seriam formados para tomar medidas contra os achacadores, opressores e carrascos do povo, transformando-se em destacamentos guerrilheiros, aos quais as massas se agregariam paulatinamente.

As discussões e divergências, tanto na Comissão Executiva quanto no CC, centraram-se principalmente nesses dois pontos. Pomar resolveu, no curso dos debates, introduzir emendas complementares, difíceis de serem reprovadas, a não ser que houvesse uma decisão explícita de colocar o foco como linha oficial. Em continuidade ao conceito de interior como mais propício, Pomar introduziu a ideia de que, para assestar golpes demolidores, capazes de aniquilar as forças vivas do inimigo, seria preciso mobilizar, organizar e armar grandes massas de milhões de brasileiros, o que implicava num imenso trabalho político e ideológico para arrancar tais massas da influência dos latifundiários e da burguesia.

Ao conceito de grupos clandestinos armados, Pomar acrescentou que o iní-cio da guerra popular não poderia ser um ato voluntarista, só podendo surgir em determinada situação em que se tornava necessária a passagem da fase da luta de massas não armada para a luta armada de massas. O aparecimento de pequenos grupos armados só seria possível, em consequência, a partir da luta de massas.

Com essas e outras emendas, Pomar conseguiu alinhar, lado a lado no do-cumento “guerra popular, caminho da luta armada no Brasil”, dado a conhecer em janeiro de 1969, concepções divergentes. Foram elas que deram à linha do par-tido a ambiguidade que, afinal de contas, permitia à orientação levada a cabo no Araguaia considerar-se também de acordo com o traçado, do mesmo modo que possibilitava uma interpretação diferente. Pomar tinha esperanças de que, com as emendas ao texto, os próprios camaradas do Araguaia tivessem uma referência para corrigir suas concepções no processo de luta.

Do ponto de vista prático, o golpe dentro do golpe, no final de 1968, que levou à decretação do Ato Institucional (AI-5) e ao endurecimento da ditadura, paradoxalmente reforçou a avaliação de que isso era um sinal de enfraquecimento e de isolamento do regime militar, ampliando as possibilidades táticas de passar à ofensiva e derrubá-lo. Como decorrência, no final de 1969, ainda sob a influência da Revolução Cultural proletária da China, dos grandes movimentos de massa que haviam sacudido a Europa e das lutas armadas de libertação na Ásia e na América latina, o PCdoB se lançou numa campanha interna de revolucionarização.

Com ela, a direção pensava superar a escassez de quadros e militantes para o dispositivo militar do Araguaia e preparar o partido para o desencadeamento da luta armada. Seu argumento básico era o de que o governo Médici aparentava estabilidade e força, mas era fraco e instável. Sem representar o conjunto das forças militares, e com uma base política ainda mais estreita do que a do general Costa e Silva, estava sujeito a crises e a enfrentar uma resistência que tendia a se alargar.

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Na análise que fez do governo Médici, a direção do PCdoB considerou que não havia mudanças em relação à política econômica anterior. O combate à inflação destinava-se a justificar o aumento escorchante dos impostos, conter os salários, retrair o crédito, paralisar as atividades produtivas e estreitar o mer-cado interno, e seu resultado se manifestaria em novas crises econômicas. Essa política anti-inflacionária servia aos trustes estrangeiros, à grande burguesia e aos latifundiários, com a transferência de indústrias básicas para controle de grupos norte-americanos.

Embora não acreditasse que o endurecimento da ditadura fosse um sinal de fraqueza, Pomar concordava porém, erroneamente, que sua política econômi-ca tendia a paralisar as atividades produtivas do país. Em boa parte influenciado por uma leitura enviesada de Imperialismo, fase superior do capitalismo, de lênin, e pela avaliação de Celso Furtado, em Dialética do desenvolvimento, assim como em Subdesenvolvimento e estagnação na América Latina, ele e os demais membros da direção do PCdoB acreditaram que o desenvolvimentismo estava falido e que o equilíbrio estacionário alcançado pelo setor industrial moderno em relação ao setor arcaico da economia tornaria inviável o desenvolvimento capitalista.

Naquele momento, não viram que o rearranjo da associação dominante, patrocinado pela política anti-inflacionária da ditadura, tendia, ao contrário, a deslanchar um novo ciclo de crescimento, justamente com base na brutal con-tenção dos salários, proporcionada pelo arrocho instituído pelo regime militar e pela modernização capitalista dos latifúndios, que liberava grandes contingen-tes de trabalhadores sem qualificação e aumentava a concorrência entre eles no mercado industrial de força de trabalho.

Mas Pomar conseguiu fazer com que a corrida desabalada para desenca-dear a luta armada não levasse o partido a esquecer que tinha uma tática, cujo objetivo consistia em unificar e organizar amplos setores e diferentes correntes políticas democráticas e patrióticas no anseio comum de revogar o AI-5, abo-lir a Carta fascista, permitir ao povo elaborar uma nova Constituição, anular todos os atos de perseguição política, libertar os presos políticos, recolocar em vigência as franquias democráticas, adotar uma política externa independente e de combate à espoliação do país pelos trustes norte-americanos, implantar a re-forma agrária e a proteção aos trabalhadores do campo, restaurar as conquistas da classe operária, como o direito de greve, liquidar o arrocho salarial e garantir a gratuidade do ensino e a autonomia universitária.

É em grande parte por seu esforço que os documentos partidários dessa época incluem não só essas concepções táticas, mas também a ideia de denunciar o terrorismo dos militares, por meio de uma campanha nacional de denúncia das torturas e de assassinatos e pelos direitos dos cidadãos, e de integrar na luta contra a ditadura o combate contra a carestia e a fome e pelas reivindicações econômicas.

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graças principalmente a ele, os documentos do PCdoB continuaram apre-sentando uma dualidade notável. Por um lado, ao incorporar aquele conjunto de propostas táticas que correspondiam às necessidades conjunturais, eles desmen-tiam as afirmativas do PCB de que a proposta da luta armada não tinha política para as grandes massas. Por outro, ao afirmar também que a guerra popular para derrubar a ditadura deveria ter início com pequenos grupos armados à parte do trabalho político de massas, eles confirmavam a suposição de uma luta armada desligada do movimento de massas e de caráter eminentemente foquista.

O problema consistia em que a possibilidade de uma tática ampla de frente única combinada a uma estratégia de guerra popular como forma principal de luta não era de fácil entendimento para os militantes e, também, para a maior parte dos dirigentes. gorender viu uma contradição insolúvel na VI Conferência do PCdoB, ao recomendar a luta por reformas, sob Castelo Branco, associada à luta pela derrubada da ditadura, comparando isso à contradição entre uma tática eleitoral e uma tática militar.

Se um teórico do seu porte faz esse tipo de confusão, ignorando a experi-ência vivamente presente da guerra vietnamita e de outras revoluções, que combi-navam luta política de massas com luta armada, e a experiência histórica geral de luta dos oprimidos, que sempre combinaram objetivos e formas de luta atrasados com objetivos e formas de luta avançados, que dizer dos militantes e dirigentes do PCdoB, atazanados com a perseguição e a opressão da ditadura militar?

Assim, a suposição de que a luta armada deveria ter início com pequenos grupos desligados do trabalho de massas não estava alicerçada apenas no desejo vo-luntarioso. A maior parte da direção do PCdoB acreditava que as lutas surgidas em 1968 não expressavam suficientemente o grau de revolta do povo e seu ódio cres-cente contra a ditadura. Haveria, pois, um reclamo por lideranças esclarecidas, já que, a qualquer momento, aquela revolta e aquele ódio ao regime militar poderiam levar as massas a romper o cerco ditatorial e se engajar em poderosas lutas.

O país vivia, segundo essa crença, um momento em que uma simples fa-gulha poderia se transformar numa chama vigorosa, que as forças reacionárias ja-mais conseguiriam apagar. Existiria, desse modo, uma situação revolucionária que exigia o emprego de ações revolucionárias. O corolário era que o partido deveria tomar a iniciativa dessas ações.

Pomar conseguiu acrescentar “que tivessem sentido de massas”, mais um daqueles adendos que teimava em colocar nos documentos, mas isso pouca dife-rença fazia para os que realmente estavam convencidos de que tudo teria passado a depender exclusivamente do partido e, dentro deste, do seu dispositivo militar. Com as ações de guerrilha urbana em pleno desenvolvimento, acabou por firmar--se na maior parte da direção do PCdoB a antiga ideia de que quem primeiro começasse a guerra popular no campo arrastaria o resto.

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Foi nesse contexto que, entre 1968 e 1969, todo o centro de preparação da luta armada foi transferido para o sul do Pará, na região do rio Araguaia. Até então havia dispositivos de trabalho localizados no norte de goiás, no sul do Maranhão e no nordeste de Mato grosso. Todos esses dispositivos foram desativados e seus membros receberam ordens de se deslocar para novas áreas no sul do Pará, em torno do dispositivo central. A Comissão Militar tomava, dessa forma, medidas práticas para concentrar os efetivos e reunir as forças que considerava necessárias para desencadear as ações militares.

A desagregação do PCB e o deslocamento de vários de seus grupos tanto para as fileiras do PCdoB como para a constituição de novos agrupamentos ou partidos que defendiam a luta armada, reforçavam aquela percepção geral de amadureci-mento das condições objetivas para o desencadeamento do processo revolucionário.

Havia surgido a Ação libertadora Nacional (AlN), dirigida por Marighella e Câmara Ferreira, que contava com um número considerável de militantes co-munistas de São Paulo e de outras regiões do país. A Dissidência da guanabara transformara-se em Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), enquan-to o agrupamento dirigido por Mário Alves, gorender e Apolonio de Carvalho tornara-se Partido Comunista Revolucionário Brasileiro (PCBR).

No cenário político nacional, por suas ações armadas, apareceram várias outras correntes, como a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), o Movimento Revolucionário Tiradentes (MRT), o Partido Operário Comunista (POC), além da Ala Vermelha e do Partido Comunista Revolucionário (PCR).

Pomar se perguntava se essa proliferação era sinal de amadurecimento das condições objetivas ou sinal do desandar das condições subjetivas. Afinal, a espe-rança de que o PCdoB catalisaria as correntes que rompiam com o PCB não pas-sara mesmo de suposição. Apenas uma parte dos que haviam rompido na guana-bara, incluindo o Comitê Marítimo, com Jover, Frutuoso, guilhardini, Zé Maria e Bicalho Roque à frente, viera para o PCdoB.

Uma reunião de Amazonas, grabois e Pomar com Mário Alves e gorender, para uma possível união de forças, gorou por divergências em torno do papel do campesinato e da validade da tática política. Enquanto os dois novos dissidentes julgavam que o campesinato perdia rapidamente sua força social, ficando impossi-bilitado de ter um papel revolucionário de destaque, o PCdoB criticava essa posição por enxergar nela a ideia de que a frente única se daria mais em função da aliança do proletariado com a pequena-burguesia e a burguesia do que com o campesinato.

Por outro lado, havia uma série de pontos que separavam o PCdoB dos outros diferentes grupos que se desgarravam do PCB. O PCdoB se recusava a admitir o tipo das ações praticadas por eles, em especial os assaltos a bancos e os sequestros. Também continuava criticando em teoria a proposta do foco, embora reconhecesse nela um caráter revolucionário. Além disso, não concordava que se

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postulasse o socialismo como solução imediata para a derrubada da ditadura, pois isso representaria afastar a burguesia nacional da união contra o regime.

Apesar disso tudo, por questão de solidariedade revolucionária, sua direção avaliou como positivos o sequestro do embaixador norte-americano em 1969, “uma derrota da ditadura”, e os sucessivos atos dos grupos armados nas cidades. Nessas condições o PCdoB tinha que separar-se ainda mais do PCB, mesmo nas condições em que ambos eram alvos idênticos do mesmo inimigo, em virtude das diversas concepções predominantes nesse partido em relação às ações armadas e à postura diante dos militares. Não concordava, em especial, com as acusações do PCB contra qualquer tipo de ação armada, sem distinguir as várias opções que se apresentavam, e discordava de sua suposição de que as forças militares brasileiras possuíam um setor nacionalista que poderia se unir à oposição ditatorial.

Para o PCdoB, as tentativas pecebistas de condenar o ataque em bloco às Forças Armadas, com vistas a evitar o aprofundamento da divisão entre civis e mi-litares, só nutriam as velhas e falsas ilusões no caráter democrático das instituições militares. E as palavras condenatórias de Prestes às ações armadas, por tornarem inútil a organização dos trabalhadores, tirando dos operários a vontade de se unir e de agir de maneira autônoma, ao lhes oferecerem heróis que podiam agir por eles, não passariam de uma forma de responsabilizar os outros por seu próprio fracasso.

Pomar se indignava principalmente com esta visão. Afirmava que ela pos-suía o mesmo viés blanquista de supor que as organizações políticas tudo podiam decidir, mas pelo lado negativo. Pressupunha que as organizações também pode-riam impor às massas sua decisão de seguir um caminho pacífico. Que diferença tem essa concepção daquela que defende que o partido pode decidir a luta arma-da?, perguntava. Só o lado, respondia: esta última está à esquerda e aquela à direita. E a crítica da luta armada pela direita apenas reforçava a disposição dos blanquistas pela esquerda, concluia.

Mas ele também se dava conta de que sua resistência ou sua crítica ao que chamava de blanquismo tinha poucos resultados positivos. No início de 1970, embora reconhecendo que havia, inelutavelmente, uma pausa no ascenso do mo-vimento de massas iniciado em 1968, a Comissão Executiva do PCdoB avaliou que o que estava na realidade se gestando era uma nova crise política, que a dita-dura não tinha condições de evitar. Criara-se uma situação interna de tal ordem no partido que qualquer sinal, por um lado ou pelo outro, era sempre tomado como uma indicação do avanço inevitável da revolução. Quando as massas se manti-nham apáticas, isso ocorria porque esperavam uma direção consequente na luta armada. Quando as massas iam à luta, mesmo econômica, era porque já estavam dispostas a pegar em armas.

Sem nenhuma função específica de direção nacional, em total minoria na Comissão Executiva e sem condições de discutir as divergências no Comitê Central,

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Pomar voltou-se, então, para a construção do trabalho partidário no Vale do Ribeira e nas áreas limítrofes. Ele se mudou, com Catharina e os dois filhos mais novos, para um sítio no município de Pariquera-Açu, ao mesmo tempo que estudava a região e conseguia deslocar alguns quadros para cidades do sul de São Paulo e norte do Paraná.

O Vale do Ribeira, com suas matas, seus rios e sua umidade, lembrava a Amazônia. Como em Marajó, os búfalos haviam se adaptado muito bem nas terras alagadiças dos tributários do rio Ribeira. As jussaras eram o mesmo açaizeiro do Pará. As seringueiras haviam se aclimatado bem ao ar e ao solo daquela área da Mata Atlântica, enquanto os projetos de reflorestamento com pinus e eucaliptos se estendiam pelas encostas, à custa de financiamento barato para grandes fazendei-ros e empreendedores. E a miséria e os problemas regionais, em pleno Estado de São Paulo, eram em muito idênticos aos problemas e às misérias do Pará, durante a decadência da borracha, que se estendeu da Primeira guerra Mundial em diante.

Mas o Vale era apenas um tampão florestal, rural e atrasado, entre o São Paulo industrial e urbano e o Paraná de uma agricultura comercial em processo de expansão. Como articular as atividades políticas no Ribeira sem levar em conta o entorno das regiões adiantadas? Como as massas trabalhadoras do Vale poderiam se mobilizar sem um programa que falasse às suas necessidades e expectativas con-cretas e as conquistasse para a luta? E como elaborar um programa desse tipo sem conhecer em profundidade as divisões e as formas dos embates sociais em toda a área em que pretendiam atuar?

Com essas perguntas em mente, orientava os quadros destacados para a região a manterem atividades econômicas e sociais legais, que lhes possibilitassem ligar-se naturalmente a diferentes camadas sociais. Estimulava-os a conhecer em profundidade os problemas das áreas em que agiam e a descobrir os pontos que poderiam servir de programas de unificação das reivindicações e aspirações de suas populações. Incentivava-os a descobrir brechas pelas quais pudessem realizar ativi-dades amplas, de massa, sem chamar a atenção do aparelho repressivo e construir o partido com segurança.

Com esse trabalho, em londrina, Avaí, Registro e outras cidades, começa-ram a se desenvolver iniciativas que levavam os quadros a se inserir na vida cultural e social desses municípios, a descobrir os movimentos reais de resistência de massa à ditadura e a criar alternativas de longo prazo para o partido. Foi sob inspiração de Pomar que Manoel Costa e Marília Andrade, militantes em que se apoiava para o trabalho na região, desenvolveram na Universidade de londrina um programa de atividades e debates literários, tendo como foco lima Barreto e sua obra. Com isso, de uma forma ampla e de massa, abriam caminhos novos para a discussão da situação brasileira e para descobrir outros militantes para a luta revolucionária.

Também foi nesse período que Pomar leu A Revolução Brasileira, de Caio Prado Jr. e incentivou os demais companheiros a lê-lo e realizar uma análise crítica

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da obra. Pomar concordava em parte com a crítica de Caio Prado à concepção pe-cebista sobre a existência de uma burguesia nacional anti-imperialista, mas achava que ele não conseguia enxergar a diferenciação interna existente na burguesia, nem a possibilidade de alguns de seus setores médios e pequenos serem empurrados, mesmo a contragosto, para a revolução contra o domínio econômico imperialista.

Por outro lado, Pomar discordou totalmente de sua análise sobre a agricul-tura brasileira, a inexistência do campesinato e a persistência do antigo sistema colonial. Se a agricultura já é totalmente capitalista, perguntava, como se explica a permanência do sistema colonial? E o que são esses trabalhadores paupérrimos, que não têm terra e são levados a trabalhar a terra dos latifundiários com a obriga-ção de pagar a meia, a terça ou a quarta de tudo o que produzem? São assalariados, por acaso? O cambão, no qual o lavrador é obrigado a trabalhar um ou dois dias na terra do fazendeiro, nem sempre recebendo qualquer pagamento, do que se trata? Uma obrigação assalariada? escravista?

Pomar também negava a existência histórica de um sistema feudal no Brasil, mas supunha que isso não entrava em contradição com o transplante, por meio do sistema colonial português, de elementos econômicos do sistema feudal europeu. O cambão não passava de uma forma modificada da antiga corveia. A meia, a terça e a quarta, disseminadas por quase todo o país, eram formas de obtenção da renda territorial pelo latifundiário. E o monopólio da terra, embora pudesse servir também ao capitalista, não era necessariamente um produto do capital.

Mas teve em boa conta que Caio Prado houvesse reiterado a perspectiva socialista como saída para o Brasil e houvesse chamado a atenção para a expansão do trabalho assalariado no campo. Por isso mesmo, não o poupou por reduzir suas propostas de luta a melhorias salariais e medidas limitadas contra o imperialismo. Para ele, as conclusões da análise de Caio Prado sobre a expansão do capitalismo e do trabalho assalariado no Brasil eram medíocres.

No contexto da importância que dava à luta de ideias, Pomar também in-centivou Clóvis Moura, com quem mantinha contatos frequentes, a escrever mais sobre a luta dos negros e seu papel na história brasileira. Indignava-se com o fato de que a versão de gilberto Freyre sobre a escravidão continuasse a ser hegemôni-ca, embora apreciasse o valor e a força literária do sociólogo pernambucano.

Sua curiosidade intelectual mantinha-o a par, apesar das dificuldades, de boa parte da produção literária brasileira da época, desde o Pedro Nava de Baú de Ossos, que apreciou com gosto, até Mário Palmério e guimarães Rosa, cuja verve sorveu como se estivesse tomando um sorvete de açaí. E, como nos velhos tempos, não perdia ocasião para despertar a vontade de leitura dos companheiros com quem mantinha contato.

Horácio Carvalho testemunhou que, quando os visitava, ele ficava horas e horas lendo textos, enquanto os da casa preparavam a refeição. lia e comentava,

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em geral, os textos clássicos, que exigiam contextualização histórica. Mas, muitas vezes, lia as notícias do jornal e as comentava, articulando o fato narrado com a situação nacional e internacional e procurando converter as coisas mais com-plexas, desde as relações da conjuntura com a estrutura, até a inserção histórica necessária para compreender textos dos velhos revolucionários, em assuntos de mais fácil compreensão.

Não demonstrava pressa em ensinar as coisas. Mesmo porque, pelo menos para Horácio, aquelas horas pareciam passar voando, levando-o sempre a ter a sensa-ção de dar a volta ao mundo e na história. E, o mais importante, de discutir sobre o que fazer com aquelas informações e com os conhecimentos adquiridos com aquelas conversas na cozinha, voltando sempre ao essencial, à luta concreta do povo brasileiro.

Foi em meio a tudo isso que, em Registro, começou a se configurar um mo-vimento de desenvolvimento para tirar o Vale do Ribeira do atraso, com a elabora-ção de pontos programáticos por pessoas de diferentes estratos sociais, estimuladas pelos comunistas clandestinos do PCdoB. Aos poucos, Pomar também ia cons-truindo um dispositivo clandestino que pudesse suportar investigações e ofensivas repressivas.

Esse trabalho sofreu seu primeiro teste com a caçada a Carlos lamarca e ao dispositivo militar que o capitão e a Vanguarda Popular Revolucionária estavam montando na região, em 1970. As tropas do Exército ocuparam toda a região e passaram a vasculhá-la minuciosamente. Apesar disso, os quadros e o trabalho do PCdoB não foram detectados.

Mas era um trabalho lento, tanto pela falta de quadros experientes quanto, principalmente, pelas condições de atraso da região e de suas camadas populares, que, embora vivessem predominantemente sob o jugo latifundiário, haviam se acostumado a fugir para as regiões industrializadas relativamente próximas, para sobreviver, em vez de enfrentar a opressão com a luta.

A penetração do capitalismo na região, particularmente no plantio de banana e de chá, se havia criado uma camada relativamente extensa de assalariados rurais, não mudara as condições de exploração intensa. Pomar não enxergava forma de rea-lizar qualquer trabalho armado sem antes passar pelo teste da luta de massas por suas próprias reivindicações e sua organização independente. Quanto mais pensava nisso, mais preocupado ficava com as consequências do trabalho militar no norte do país.

Era nos momentos de maior angústia que se voltava para seu livro de cabeceira. lia e relia o Fausto, procurando o significado profundo de seus versos, sempre se per-guntando até onde o homem deve errar para descobrir a verdade e ser resgatado por ela.

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23 É CURTO O TEMPO, É lONgA A ARTE

Quem sempre aspirando se esforçar, Poderá por nós ser redimido.

J. W. goethe (Fausto)

1976, São Paulo, dezembro: ainda noite do dia 141967-1976, São Paulo e entorno: despedida

Mário fora se deitar quase sem trocar palavra com mais ninguém. Afundado em seus próprios pensamentos, ficara mais reservado do que de costume. Quanto tempo ainda teriam para se reorganizar, reconstituir suas forças e alçar-se como um verdadeiro partido capaz de dirigir grandes massas? O ritmo do partido se tornara lento, além de desordenado. Bem mais lento do que o ritmo que imprimira ao trabalho do partido no Vale do Ribeira e no Paraná, desde o final de 1969.

Naquela ocasião, Pomar já havia sido condenado a várias prisões e, especial-mente com a prisão de Arruda e o assassinato de Marighella, começara a sentir o peso da mão gorila da Operação Bandeirantes (OBAN). Financiada diretamente por grandes empresários, essa organização de caráter paramilitar deu início à cen-tralização das atividades dos diversos órgãos militares e policiais repressivos, sendo a precursora dos DOI-Codi. Assim, todo o cuidado era pouco na transferência de mi-litantes e nas atividades políticas clandestinas das organizações contrárias à ditadura.

Porém, o ritmo da Comissão Executiva era outro. Ela avaliara que estava em curso o crescimento da oposição popular e o isolamento da ditadura, e que a revolução continuava em ascenso no Brasil e no mundo. Isto colocaria na ordem do dia, com a maior premência, a preparação e o desencadeamento da guerra popular. Esse tipo de avaliação das condições objetivas se firmou quanto mais o ano de 1970 avançava, repetindo-se a certeza de que, diante da tendência predominante da revolução e da necessidade da solução armada, a decisão de seu desencadeamento dependia apenas da audácia e da coragem dos militantes e dirigentes. Os que levantavam dúvidas a respeito começaram a ser olhados quase como desertores.

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De questão política, subordinada a complexas considerações estratégicas e táticas, a guerra popular passara a uma questão moral, de decisão e valor pessoal. Por mais que a maioria da Comissão Executiva negasse, o núcleo das concepções foquistas criara raízes profundas no partido. A decorrência prática dessa postura foram as medidas adotadas pela Comissão Executiva, com a chancela do Comitê Central, no início de 1971.

Cada um dos dois organismos dirigentes foi dividido em dois: uma parte ficava nas cidades e a outra se concentrava no Araguaia. Criou-se, então, o birô político da área de luta armada, tendo à frente Amazonas, grabois e Arroyo, ao qual se subordinava a antiga Comissão Militar. À Comissão Executiva das cidades, composta por Danielli, Oest, Jover e Pomar, caberia a tarefa de superar o atraso subjetivo de construção daquele dispositivo militar, selecionando novos quadros, obtendo recursos financeiros e materiais e dando suporte a todas às necessidades do dispositivo.

O trabalho das outras áreas e o trabalho do conjunto do partido se su-bordinavam ao trabalho do Araguaia, a partir da suposição expressa de que a guerrilha central tudo decidiria. Estudavam-se planos para o ataque guerrilheiro a uma das cidades do norte de goiás ou do sul do Maranhão. Com um ato de repercussão desse tipo, o desencadeamento da luta armada rural não poderia ser escondido e as massas, tanto do campo quando das cidades, teriam uma luz no horizonte para onde se dirigir.

Pomar, mais uma vez, procurou argumentar que esse caminho era o pior que se poderia escolher. Reiterou que era preferível iniciar a luta armada con-fundindo-se com as lutas armadas dos posseiros contra os grileiros, jagunços e bate-paus, evitando o choque contra as forças principais da ditadura, recuando no momento certo e agindo à medida que fosse necessário, ganhando experiência, acumulando força, incorporando massas, construindo paulatinamente o partido e só dando notícia de sua existência como força guerrilheira quando houvesse base política e força armada suficiente para resistir ao tranco.

Não só não foi ouvido como lhe deram a tarefa de viajar à Albânia e à China para comunicar aos respectivos partidos irmãos a decisão de iniciar a guerra popular a curto prazo. Viajou no meio do ano, quando a Comissão Executiva, contra sua opinião a respeito da conjuntura política desfavorável, considerou que as lutas explodiam por toda a parte, diretas e abertas, pela derrubada da ditadura. Confundindo as ações dos grupos de guerrilha urbana e as resistências difusas ao regime militar com as lutas de massas, a Comissão Executiva chamava o partido a se colocar à frente das ações e radicalizá-las, en-contrando as formas adequadas, já que o maior perigo para a oposição popular consistiria em subestimar a potencialidade revolucionária das massas e superes-timar as forças do inimigo.

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A Comissão Executiva nem sequer levou em conta que na Europa as gran-des lutas de massas haviam recuado, ao mesmo tempo que as contradições entre a URSS e a China tomavam um rumo perigoso, com o estacionamento de mais de um milhão de soldados soviéticos nas fronteiras orientais e os choques militares no rio Ussuri. A URSS aceitara o desafio da corrida armamentista que lhe impuseram os Estados Unidos, ao mesmo tempo que agia no sentido de manter os aliados por bem ou por mal.

Os albaneses eram extremamente sensíveis às pressões soviéticas, reagindo a todas com uma violência verbal que pouco tinha a ver com sua potência real. Baseavam toda sua força no orgulho nacional que resistira quinhentos anos à ocu-pação turca e conseguira se livrar da ocupação italiana e alemã mesmo antes da chegada das tropas soviéticas. A luta armada contra a ocupação nazista começara, na Albânia, com um atentado contra o comando alemão e, por isso, os albaneses não acharam nada demais que no Brasil a guerra contra a ditadura pudesse come-çar com uma ação revolucionária organizada pelo partido. Dentro de sua avaliação de ascenso revolucionário em todo o mundo, acharam bastante plausível que os camaradas brasileiros dessem sua contribuição.

A China atravessava a Revolução Cultural, ziguezagueando para encontrar seu rumo. Pomar se espantou com o fato de ver os mercados de gêneros abasteci-dos, apesar das convulsões políticas que ocorriam no país. Nas conversas que man-teve com os líderes chineses, inclusive com Zhu Enlai, sentiu que a divisão interna no PCCh deveria ser profunda, com perspectivas políticas muito diferenciadas. E, pela primeira vez, sentiu dúvidas a respeito dos rumos da Revolução Cultural.

Na questão internacional, porém, havia um ponto comum a quase todos os interlocutores: estavam preocupados com as ameaças da União Soviética e com sua política externa, que consideravam hegemonista como a dos Estados Unidos. Defendiam, em consequência, a necessidade de realizar flexões táticas para ampliar o leque de relações do Estado chinês com outros países do mundo, apontando, inclusive, a possibilidade de reatar as relações diplomáticas com o Brasil.

Pomar perguntou se isso não representaria um reconhecimento do regime ditatorial brasileiro. Os chineses argumentaram que era preciso separar as relações entre Estados das relações entre partidos e do apoio político à luta dos povos. A China tinha necessidade de ampliar suas relações estatais tendo em vista a política hegemonista das grandes potências. Precisava romper o cerco político, econômico, comercial, científico e cultural a que estava submetida e ter um papel mais ativo no cenário internacional. Manter relações estatais, para eles, não significava apoiar tal ou qual regime político, da mesma forma que a China não exigia que concor-dassem com seu próprio sistema socialista.

Suas exigências eram o reconhecimento da existência de uma só China e a não interferência em seus assuntos internos. O problema do regime político e do

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sistema social era um assunto interno de cada povo. A China não pretendia seguir os exemplos dos Estados Unidos e da União Soviética, que interferiam em toda parte e ditavam ordens. Ao reatar relações diplomáticas com o Brasil, a China não estaria reconhecendo ou deixando de reconhecer o sistema ditatorial.

Infelizmente, argumentaram, esse era o regime atual do país, do mesmo modo que outros regimes políticos dominantes, em vários países com os quais já mantinha relações, não lhes agradavam. Se a China mantivesse relações apenas com os países cujo sistema político estivesse em concordância com as concepções chinesas, quase certamente não teria relações com nenhum outro país. Manter ou mudar o regime político ditatorial era um problema do povo brasileiro, e o fato de a China manter relações diplomáticas com o Brasil não interferiria em nada nessa decisão.

O PCCh, afirmaram, simpatizava com a luta do povo e dos comunistas brasileiros, apoiava-os politicamente, e ajudava-os na medida de suas forças, mas também não interferia em seus assuntos internos. Fiéis a esse princípio, nenhum dos interlocutores disse explicitamente, como os albaneses, que concordava com a decisão do PCdoB ou que ela era bem vinda. Também não disseram discordar. Apenas agradeceram a comunicação e a anotaram como de grande importância. É lógico que cada um a seu modo mostrou sutilmente a aprovação ou a dúvida quanto ao acerto da decisão de desencadear a luta armada, como fizeram contra-ditoriamente Kang Sheng e Zhu Enlai.

No retorno ao Brasil, Pomar informou fielmente, como era de seu feitio, todas as conversações mantidas na Albânia e na China. A Comissão Executi-va entusiasmou-se com o apoio decidido dos albaneses e abominou a posição chinesa. Alguns, como Oest e Danielli, consideraram uma traição a posição chinesa. Mesmo discordando de muita coisa da Revolução Cultural, o PCdoB sempre a apoiara sem reservas. Agora que precisava de um apoio claro por parte do PCCh, vinham essas opiniões de Zhu Enlai e, ainda por cima, a notícia de que estavam em negociações para reatar relações diplomáticas com a ditadura. De qualquer modo, agastados ou não com os chineses, isso não modificou em nada a disposição de acelerar o processo de preparação militar e os planos para o desencadeamento da luta armada.

Em janeiro de 1972, A Classe Operária avaliou que cresciam as ações revolucionárias no país, com a incorporação de novos setores ao combate e com o povo sentindo de forma mais aguda a necessidade da luta armada. Nes-sas condições, dizia, amadureciam rapidamente as condições para tornar uma realidade a guerra popular.

Em março, o Comitê Central realizou uma reunião especial para comemo-rar os cinquenta anos de fundação do partido e discutir um documento sobre o resgate de sua experiência histórica. Não foi um documento discutido pelo con-

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junto do partido ou fruto de uma avaliação histórica coletiva, como há muito era necessário, mas um texto escrito no âmbito da Comissão Executiva, mais no sen-tido de embasar historicamente as decisões que estavam sendo adotadas naquele momento e servir de instrumento de estímulo aos militantes. Nessas condições, como não poderia deixar de ser, tornou-se mais um dos documentos cheios de ambiguidade, ao incorporar as contraditas de Pomar.

João Amazonas e Elza Monnerat participaram da reunião como represen-tantes do birô especial, embora a maioria dos membros do CC desconhecesse essa condição deles. Ao retornarem separadamente ao Araguaia, Elza conduzindo dois novos militantes que iam se incorporar ao dispositivo, e Amazonas logo depois, sozinho, confrontaram-se com a primeira campanha contra o dispositivo militar que estava sendo montado no Araguaia.

Tiveram, assim, que dar meia volta e integrar-se à meia direção das cidades e trabalhar para o apoio à guerrilha, desencadeada conforme decisão do inimigo e não de seu comando militar. Amazonas não soube explicar o que acontecera, nem como as forças repressivas haviam descoberto e atacado o dispositivo. As notícias eram confusas e havia uma dificuldade muito grande para fazer contato com a área.

A ditadura manteve uma cortina de silêncio impenetrável sobre os aconte-cimentos, impedindo que o país tomasse conhecimento do que estava ocorren-do nas selvas do Pará. Todos os esforços para informar aos deputados e a setores populares frustraram-se diante da censura do regime, jogando por terra a supo-sição de que a repercussão da luta teria um efeito avassalador sobre o espírito de combate do povo.

O início da luta armada no sul do Pará teve o condão, no entanto, de co-locar em segundo plano as divergências em torno dos métodos e da natureza da guerra popular. Pomar explicitou sua opinião na Comissão Executiva de que o problema existente naquele momento era o de apoiar os destacamentos e fazê-los sobreviver. Esperava que eles, no processo da luta, se ligassem às massas, soubes-sem atuar de acordo com os princípios da guerra de guerrilhas e escapassem aos golpes do inimigo. Ao mesmo tempo, alertou para a necessidade de reforçar as medidas de segurança, já que a repressão deveria se voltar com toda a força contra o partido. Até então ela subestimara a capacidade do PCdoB, mas deveria rever rapidamente sua política e cair com todo o peso sobre ele.

– Nosso sistema de segurança é frouxo e, se continuarmos assim, vamos ter golpe sobre golpe contra nós, enfatizou.

O ambiente na Executiva, apesar do susto inicial, era de certa euforia. Final-mente, bem ou mal, haviam dado a partida. Tratava-se, a partir daí, de refazer os contatos com o Araguaia, enviar mais quadros para lá e transformar a área numa verdadeira zona libertada. Durante o restante do ano, os membros da Executiva responsáveis pelo trabalho de organização se desdobraram para levar adiante essa

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tarefa. Multiplicaram os contatos com os comitês regionais, instando-os a selecio-nar e destacar quadros para serem enviados para a guerrilha. O próprio Pomar, embora não integrado diretamente nesse tipo de trabalho, chegou a viajar ao Ceará para discutir o assunto com os companheiros de lá.

Em julho, ele publicou em A Classe Operária o artigo “Sobre os 50 anos do partido”, frisando que o debate sobre a existência do partido, requeria tempo, condições de estudos, pesquisas e debates, um clima arejado e não o de uma clan-destinidade como a que viviam. Exigia, simultaneamente, maior amadurecimento teórico, ampla visão histórica e aguda percepção política.

Pomar, nesse artigo, chamou novamente a atenção para o fato de que, no Brasil, ao examinar a realidade, se devia ter em conta que a tradição das organiza-ções políticas populares praticamente inexistiu ou foi muito fraca. As forças reacio-nárias ergueram contra elas obstáculos de toda ordem e continuaram a persegui-las de modo feroz. Por isso, seus vínculos materiais e sua força de coesão sempre fo-ram muito débeis. Dessa forma, parecia inusitado o fato de que um partido políti-co que jamais ocultou seus objetivos revolucionários tenha não apenas sobrevivido durante meio século como também se tornado um partido nacional, suportando tão duras perseguições.

Pomar acrescentou a essas observações que um partido político só se revela-va historicamente necessário quando estava fadado, pelas condições objetivas, por interesses reais, por seu programa, por sua conduta e sua direção, a tomar o poder e a edificar um novo regime político e social. Por isso, em torno da questão de abrir a via para a construção da sociedade socialista no Brasil e do caminho para resolvê--la, avaliando seus revezes e erros, sua luta para concretizar a revolução agrária e anti-imperialista, democrática e nacional, é que se dividira o velho partido.

Embora tenha passado quase despercebido, esse artigo de Pomar constituiu quase um apelo à Executiva para repensar o partido e sua história, tendo em vista se preparar melhor para o processo armado já desencadeado. Com esse mesmo ob-jetivo ele publicou, em setembro, uma monografia sobre os 150 anos da Indepen-dência, de cara opondo-se aos generais fascistas, que tentavam se apresentar como patriotas, propagavam o feito da Independência como obra da elite dirigente da época e, ainda por cima, traziam de Portugal os ossos do imperador, carrasco de muito patriotas brasileiros.

Mas o que o preocupava realmente era salientar as lutas do povo, estudar suas experiências e honrar a memória dos que haviam se sacrificado, prosseguindo no combate pela conquista da verdadeira independência. Recordou que, no final do século XVIII e início do XIX, os aspectos essenciais da nação já haviam adqui-rido nítida configuração. A língua portuguesa se tornara fator aglutinador de pri-meira ordem, enquanto as criações culturais já revelavam uma psicologia comum aos que aqui habitavam.

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O movimento de Felipe dos Santos, em 1720, já falava em “patriotismo dos brasileiros” para esmagar a “canalha do rei”. Os inconfidentes de Vila Rica, em 1789, reivindicavam a “liberdade, ainda que tardia”. E os alfaiates baianos, em 1798, com lucas Dantas, Manoel Faustino dos Santos e Cipriano Barata, tomavam a liberdade como bem supremo e exigiam igualdade, independência, república, abolição e abertura comercial, as mesmas bandeiras da Revolução Per-nambucana de 1817, com Domingos José Martins, os padres Roma e Miguelinho e o frei Caneca, que assumiram o poder por três meses.

Para Pomar, as contradições entre as classes populares explicavam as prin-cipais características e as debilidades do movimento de emancipação: a grande massa de escravos foi alheia à aspiração nacional brasileira. No partido brasileiro, suas duas tendências principais dividiam-se entre a conciliação com os Bragança e a independência sem regateios. Dessa forma, o Estado brasileiro do 7 de se-tembro trouxe as profundas marcas da conciliação, com a lei Magna outorgada mantendo a estrutura econômico-social vigente e negando o direito de voto à imensa maioria do povo.

Essa conciliação foi, porém, contestada desde o início, com a expulsão das tropas portuguesas do general Madeira, em 1823. A ela se seguiram a Confedera-ção do Equador, já com ideais republicanos e democráticos, em 1824, e, finalmen-te, a insurreição popular que expulsou Pedro I, em 1831. Homens das classes diri-gentes com certa visão, como os Andrada, já haviam percebido o erro do caminho conciliador, que mantinha o escravismo, a monocultura do café, os empréstimos externos e a monarquia reacionária.

Mas aqueles movimentos, assim como os que se estenderam de 1833 a 1849, devido à sua dispersão nacional, à falta de uma ação coordenada, de uma plataforma comum e de uma liderança clara e firme, em virtude da situação do próprio país, não conseguiram derrotar o caminho conciliador, o mesmo aconte-cendo, em grande medida, com as campanhas abolicionista e pela república, nas quais se destacaram os jacobinos luiz gama, lopes Trovão e Silva Jardim.

A extinção da escravatura, a queda do Império e a proclamação da Repú-blica, se trouxeram novos elementos de progresso e cultura, não eliminaram as barreiras antepostas ao desenvolvimento do país, nem garantiram sua independên-cia, mantendo intacto o sistema do latifúndio. As Forças Armadas erigiram-se em novo Poder Moderador e a Constituição de 1891 fez prevalecer o regime econô-mico e social da grande propriedade territorial, reforçou as oligarquias estaduais e deixou sem direitos a maioria do povo.

Ele relembrou ainda, nesse trabalho, que, no limiar do século XX, o impe-rialismo, por sua própria natureza, tudo fazia para impedir a criação das indústrias de base e a capitalização dos recursos internos essenciais ao fortalecimento da in-dependência. Patriotas como Eduardo Prado, Serzedelo Correia, Alfredo Elis e

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Alberto Torres advertiram para o perigo da subordinação ao imperialismo, cuja pe-netração conjugava-se aos interesses da reação interna. Mas ambos sustentavam-se mutuamente, de forma que o movimento de 1930, se adotou medidas de caráter democrático-burguês, também manteve a aliança com os setores latifundiários e com o imperialismo.

Algo não muito diferente aconteceu nos primeiros anos da década de 1960, quando o movimento democrático e anti-imperialista tomou impulso, tornando--se, em extensão e profundidade, o maior movimento de massas já realizado no Brasil. A burguesia nacional, no poder, dirigia a ação das massas, ajudada pelos re-visionistas. Estes, porém, desarmaram ideológica e politicamente o povo, enquan-to a burguesia vacilava e capitulava diante do golpe militar contrarrevolucionário.

Publicado como separata de A Classe Operária, o texto apresentava uma conclusão otimista, ou seja, no mundo, a tendência predominante era de avanço da causa emancipadora, democrática e socialista dos povos. Essa monografia de Pomar causou impressão favorável em muitos círculos da direção e da militância. Era a primeira vez que um dirigente se preocupava em tentar resgatar a história do povo brasileiro e extrair alguns ensinamentos de sua luta.

No entanto, a impressão do fato em si foi maior do que a análise do con-teúdo mesmo do trabalho. Pomar, na verdade, a partir da própria experiência das lutas ocorridas no passado, procurava enfatizar as causas de suas derrotas e apontar para a necessidade de evitar a dispersão nacional, realizar uma ação coordenada, possuir uma plataforma comum, ter uma liderança clara e firme e, acima de tudo, ter a participação de amplas massas do povo.

A essa altura, todavia, esse esforço já parecia tardio. As dificuldades precipi-taram-se no final de 1972. A repressão se abateu justamente sobre o setor de orga-nização da direção do partido, provocando quedas no Comitê Regional do Espírito Santo. A prisão, tortura e assassinato de três membros da Comissão Executiva, in-cluindo o secretário de organização e mais um membro do Comitê Central, causou um imenso dano, tanto às tentativas de rearticulação da direção das cidades com o Araguaia quanto ao trabalho do partido nas próprias cidades e em outras áreas rurais.

A partir de então o partido não teve mais sossego. Durante 1973, caíram sucessivamente o birô leste e os comitês regionais da Bahia, de goiás, da guana-bara, de São Paulo e do Ceará. Em pouco menos de um ano, os órgãos repressivos da ditadura tinham conseguido desbaratar boa parte da direção do partido e im-pedir qualquer apoio das cidades à guerrilha do Araguaia. Dos velhos dirigentes, haviam sobrado Amazonas, Pomar, Jover Teles e Armando Frutuoso. Diógenes Arruda, que fora mantido apenas como dirigente regional, tivera que ser enviado para o exterior por problemas de saúde.

Foi nesse período que Fernanda Coelho, então com 13 ou 14 anos, sobrinha de Horácio e de Maria Albertina de Carvalho, conheceu aquela pessoa, chamada

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Mário, que ia sempre à casa dos tios. Ela se impressionou com o sentimento de tran-quilidade que ele passava. Nunca chegou a conversar com ele, nem segurar em silên-cio sua mão, como desejara. Mas, quando o tio, Horácio, foi preso, ela soube que Mário estava envolvido na luta contra a ditadura. Depois, de vez em quando o via marcar encontros com sua tia Betinha, por intermédio de sua mãe. E talvez tenha sido a única pessoa que conheceu, profundamente envolvida na luta política, que não tinha raiva no olhar. Seus olhos pareciam-lhe de uma doçura impressionante.

Em virtude das dificuldades desse momento, a muito custo Amazonas con-seguiu reatar contato com Pomar, pedindo para que ele assumisse a secretaria de organização, no lugar de Danielli. Pomar foi claro. Só aceitaria essa missão se ele concordasse em mudar radicalmente os métodos de organização e de segurança. Estes não correspondiam aos novos sistemas repressivos. O trabalho do partido era muito agitativo e pouco organizativo. A direção e a militância, até então, haviam se preocupado unicamente em manter vivo o nome do partido, distribuindo ma-teriais, pichando muros e paredes e proclamando sua presença, em vez de ligar-se às massas e lutar com elas.

– Vocês chamavam de direitista a ideia de elevação miúda da consciência e da organização das massas a partir de suas condições concretas e davam prioridade à agitação e à propaganda revolucionárias. Mas foi por meio destas, da difusão ampla da Classe, que a polícia chegou ao Comitê do Espírito Santo e ao Comitê Central. Isso vai ter que mudar radicalmente se quisermos sobreviver. Vamos ter que modificar o sistema de assistentes.

Foi uma conversa dura e penosa, mas Amazonas acabou concordando com as exigências de Pomar. Assim, em setembro de 1973, o partido que restara come-çou a tomar conhecimento da primeira orientação de fingir-se de morto e levar à prática a política do partido sem falar no partido. Na prática, isso representava uma mudança na linha militarista, uma virada para a defensiva estratégica na or-ganização e para um trabalho de massa a longo prazo, enquanto o discurso político ainda se mantinha na linha da ofensiva, já que a maioria da direção ainda não tomara consciência plena das contradições que enfrentava.

Fator de interferência nesse novo processo eram as negociações com a Ação Popular para seu ingresso no partido. O Partido Comunista Chinês, ao manter relações tanto com a AP como com o PCdoB, propiciou conversações entre di-rigentes de ambas as organizações, que levaram pouco a pouco a entendimentos para a unificação.

Tais entendimentos eram, porém, complicados. Havia resistências de am-bos os lados. Alguns dirigentes da AP simplesmente se recusavam a qualquer uni-ficação. Outros pretendiam uma fusão das duas organizações e não o ingresso dos seus dirigentes e militantes no PCdoB, o que significaria a desmobilização da AP como organização. E havia os que aceitavam esta última opção.

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Pomar, aparentemente, opunha-se à fusão por considerar que o partido his-tórico era o PCdoB. Na prática, sua oposição a esse tipo de unificação das duas organizações se relacionava mais a problemas políticos concretos: a AP ainda es-tava no estágio de considerar a guerrilha e o partido em ofensiva e sua política de organização era ainda mais frouxa do que a do PCdoB. A fusão significava discutir a unificação das linhas em condições de igualdade, o que poderia representar um atraso perigoso na correção da política organizativa do partido. Pomar escreveu, então, um artigo em A Classe Operária, aprovado pela Executiva, explicitando que o único caminho para a incorporação da AP ao PCdoB era sua aceitação das políti-cas do partido, sem condicionamentos.Essa posição também encerrou a discussão interna na AP, com a maioria decidindo ingressar no PCdoB. Aldo Arantes, Ha-roldo lima e Renato Rabelo foram incorporados à Executiva e ao Comitê Central do partido, enquanto José Novaes, Péricles de Souza, João Batista e Ronald Freitas tornaram-se apenas membros do Comitê Central. De certo modo, o ingresso da AP permitiu completar os claros na direção central, ao mesmo tempo que amplia-va as bases do partido em algumas regiões do país.

Em teoria, tanto os novos quanto os antigos militantes se esforçavam para mudar seus métodos de organização e segurança, mas na prática a linha política que permanecia na cabeça da maioria ainda era a da luta armada ofen-siva. Em fevereiro de 1974, a imprensa partidária, incluindo a que tinha sido da AP, como o jornal Brasil Notícias, falava de ações ofensivas e lutas intensas na região de Xambioá.

Nesse meio tempo, Pomar mudara-se novamente para São Paulo, de modo a poder desempenhar melhor suas tarefas. Catharina não aceitara permanecer no sítio e veio com ele, desta vez com apenas um dos filhos. O outro se casara em Pariquera-Açu e lá permaneceu. Foram morar primeiro na rua Simão Álvares, em Pinheiros. Depois, mudaram-se para a rua Jurema, em uma casa próxima à aveni-da Rubem Berta, perto de Congonhas. Não era o que havia de mais seguro, mas nas condições financeiras do partido não havia muito o que poderiam escolher.

Evitava a avenida principal. Sempre andava alguns quarteirões para pegar um dos diversos ônibus que costumavam correr pelas ruas inclinadas daquele trecho residencial do planalto oposto ao aeroporto. Estava totalmente voltado para um trabalho de convencimento das direções partidárias, para modificarem sua linha organizativa. Esperava, com isso, que compreendessem também a necessidade de ajustar a política geral, voltando-se fundamentalmente para o trabalho de massas.

As preocupações de Pomar tinham sua razão de ser. O próprio Exército já se transformara, nessa época, em polícia de captura. Pelos quartéis circulavam as relações de militantes condenados, com prisão decretada e não cumprida, como mostra o Informativo do 2º Batalhão de Infantaria da 11ª Região Militar. Nele,

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Pomar é o 46º de uma relação de 59 “elementos condenados pela Auditoria da 11ª CJM, com prisão preventiva decretada e não cumprida até 8/10/73”.

Apesar de todo o esforço para reduzir a agitação e voltar-se para o trabalho miúdo de massas, e mesmo após Arroyo haver retornado e informado sobre o de-sastre do Araguaia, o Comitê da guanabara ignorou tudo. Em julho de 1974, to-mou a iniciativa de publicar o jornal Araguaia, para apoiar e difundir a guerrilha, no momento em que o esforço maior era conseguir maneiras de salvar os sobre-viventes, se é que havia algum. Estas incluíam medidas para implantar militantes do Nordeste no sul do Maranhão, na perspectiva de abrir um corredor seguro até o Araguaia. Porém, a vigilância da polícia sobre alguns daqueles militantes levou a novas quedas e ao desmantelamento do trabalho iniciado, com a prisão de alguns dos principais dirigentes e o assassinato de Rui Frazão.

O jornal Araguaia, no Rio de Janeiro, assim como o comandante lobo, nome de guerra assumido por Arruda, em Paris, eram porém municiados com informações falsas a respeito da situação da guerrilha, a pretexto de responder às cobranças da militância. Pomar se insurgiu contra o fornecimento de dados men-tirosos e pressionou para que a discussão sobre a derrota da guerrilha, iniciada com o relatório de Arroyo, se livrasse do emperramento a que estava submetida na Comissão Executiva e fosse estendida ao Comitê Central.

A maioria dos que haviam vindo da AP estava atônita diante do que havia ocorrido, sem adotar uma posição clara. Amazonas, por seu lado, contava com o apoio de Arroyo e, em parte, de Jover e Frutuoso, que consideravam apenas a exis-tência de alguns desvios foquistas, numa política que achavam essencialmente cer-ta. Mas quando, em dezembro, o jornal Araguaia noticiou que a guerrilha estava consolidada e implantada, a discussão na Executiva esquentou. Arroyo achou que aquilo também já era demais. Decidiu-se finalmente levar a discussão em aberto para o Comitê Central.

Pomar continuava desenvolvendo esforços para estimular os membros do partido a estudar as experiências históricas do próprio povo brasileiro e aprender alguma coisa com elas. Escreveu para a Classe um texto em memória de Frei Ca-neca, no qual enfatizou o papel da intelectualidade revolucionária de então, sob a influência das novas ideias da Revolução Francesa de 1789 e dos movimentos emancipadores dos Estados Unidos, da América espanhola e do Haiti. Nessa oca-sião interessa-se em reler com mais atenção Walt Whitman, que chocou os purita-nos americanos com seus versos de linguagem e lirismo popular, e Thomas Paine, com seu Common Sense e, principalmente, The Right of the Man.

A despeito de todas as discussões, em janeiro de 1975 A Classe publicou que a guerrilha empreendera uma nova campanha. Em março, Brasil Notícias informou que a guerrilha continuava. Em abril, A Classe comemorou três anos de luta guerrilheira, com um texto que dava a entender que a guerrilha permanecia

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firme, apesar de problemas. E, em Paris, o comandante lobo deu uma entrevista afirmando que a guerrilha libertara uma superfície superior à da França. Arruda, munido com informações que Amazonas lhe enviara, forjou a notícia mais falsa de todas as que saíram no período.

Desse modo, foi sob o impacto dessas notícias inverídicas e do informe detalhado de Arroyo, que utilizava o nome de guerra Jota, que o Comitê Central do PCdoB começou a avaliar a experiência do Araguaia e viu aflorarem as discor-dâncias que já dividiam sua Comissão Executiva.

Nessa época, praticamente todas as organizações de guerrilha urbana ha-viam sucumbido sob os golpes do aparelho repressivo da ditadura. Sobravam mi-litantes dispersos e desarvorados. O PCB, que achava correta sua política e se engajara no MDB, nutrindo a esperança de que sua ação apenas dentro da ordem e das brechas legais o salvaria da sanha repressiva, sofreu os mais rudes golpes de sua existência durante o período ditatorial.

Vários militantes e dirigentes, inclusive do seu Comitê Central, foram pre-sos, torturados e assassinados. Para sobreviver, o que sobrou da direção do PCB retirou-se para o exílio. O PCdoB era a única organização revolucionária que ain-da persistia com alguma estrutura orgânica atuante dentro do país, apesar dos inúmeros golpes sofridos e das dificuldades para aplicar sua política.

Pomar avaliava, então, que a ditadura enfrentava crescentes dificuldades, menos pela ação dos comunistas e revolucionários, e mais por problemas estrutu-rais de seu modelo de desenvolvimento e por divisões dentro da própria burguesia, e conflitos desta com os militares. Os vaivéns da política de geisel deveriam estar relacionados com essas divisões e com as vacilações de que era pródiga a burguesia.

Havia ainda sinais de que as insatisfações entre os trabalhadores estavam se estendendo, enquanto as inquietações estudantis e entre a intelectualidade cresciam. Chegar a um acordo por cima, antes que o movimento estudantil e o movimento operário ganhassem corpo e entrassem em ascenso, deveria ser uma preocupação intensa dos meios militares e da burguesia antes de qualquer distensão mais ampla.

Nesse contexto, Pomar não tinha dúvida de que a eliminação dos líderes revolucionários ainda vivos, limpando o terreno, deveria ser parte importante de qualquer acordo negociado por geisel. Às vezes era até brutal ao alertar os demais camaradas de que estavam condenados à morte e não deveriam vacilar na adoção da política de segurança. Por outro lado, não titubeou em se opor à contribuição de trinta mil dólares que o partido albanês, diante das dificuldades do PCdoB, lhe oferecera por intermédio de Arruda. “Ou aprendemos a nos manter com as próprias pernas e os próprios esforços, ou ainda estaremos mais perdidos para o futuro”, não aceitando sequer discutir a possibilidade de receber a oferta.

Esse era outro traço marcante de seu compromisso com o povo. Estava sempre com pouco dinheiro e sempre dizia que era o que o povo podia lhe dar.

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“Eu sou um combatente do povo. Meu dinheiro para viver, nosso dinheiro [o do partido], só tem sentido se o povo nos der. E ele dará se confiar na nossa luta. Só ao vivermos a partir da contribuição do povo é que saberemos se a nossa luta está no sentido das suas aspirações e sentimentos”.

No final de 1975, as estruturas do partido ainda existentes no Rio de Janei-ro ruíram sob o impacto de nova ação repressiva. Uma série relativamente gran-de de militantes e dirigentes, incluindo Armando Frutuoso e Delzir Mathias, do Comitê Central, haviam sido presos e torturados. Não se tinha notícias de onde se encontrava Frutuoso, e existia a suspeita de que fora assassinado e haviam de-saparecido com seu corpo, uma prática que se tornara comum na ação dos órgãos policiais-militares do regime. Foi pisando em brasa, então, que os contatos com Jover Teles, o principal dirigente do partido no Rio de Janeiro, foram refeitos. Aparentemente ele se safara e estava seguro, mas Pomar, temeroso de que sua se-gurança fosse apenas uma ficção, começou a pressionar a Comissão Executiva, da qual fazia parte, para transferi-lo para outra região.

Perseverando em sua tentativa de retirar lições da história e transformá--las em orientações práticas, escreveu, então, um texto a respeito da insurreição de 1935, ao mesmo tempo que elaborou a proposta de documento sobre a nova política de organização. No primeiro, ressaltou que a Aliança Nacional liberta-dora fora a primeira tentativa histórica brasileira de instaurar governos populares revolucionários e a primeira iniciativa dos comunistas de aglutinar diversos setores sociais e políticos em defesa dos postulados nacionais e democráticos. Reconheceu que a direção do partido apressara o desfecho da insurreição, mas refutou as tenta-tivas de denegrir ou menosprezar o movimento.

Tomando isso como pretexto, Pomar apelou mais uma vez para que se fizes-se uma apreciação crítica dos erros dos comunistas, crítica que não poderia renegar a necessidade da revolução e da luta armada “como obra das próprias massas”. E acentuou que o trabalho dos comunistas, imbuído das concepções tenentistas e fiando-se principalmente no apoio dos quartéis, não soubera estender ao campo os esforços para expandir a ANl, restringindo-se às cidades e subestimando a con-quista das massas para a insurreição. Porém, observou que não passava de sandice afirmar que os “levantes de quartel” tinham um “sabor tipicamente comunista”. Tais levantes levavam as massas à passividade, “não reconhecendo a necessidade de sua participação ativa na luta, feita quase sempre à sua revelia”. Qualquer seme-lhança com o Araguaia não terá sido, certamente, mera semelhança.

No segundo texto, transformado em carta-circular do Comitê Central a todos os membros do partido, em fevereiro de 1976, estabelecia uma política de organização que revogava, na prática, a política geral de luta armada ofensiva e indicava medidas para o partido sobreviver, enquanto o movimento de massas não entrasse em ascensão e não ganhasse musculatura suficiente para enfrentar

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a ditadura. Mas o partido encontrava obstáculos internos poderosos para rever e corrigir suas práticas.

A discussão sobre o Araguaia continuava não só emperrada como a maioria dos membros do CC foi apanhada de surpresa com a publicação de um editorial da Classe, em abril, denominado “Invencível bandeira de luta”, o qual reafirmava, mesmo com ressalvas, a continuidade da guerrilha do Araguaia. Somente em ju-lho, a reunião do CC começou a apresentar mudanças no quadro até então exis-tente. Um número crescente de seus membros passara a enxergar erros e desvios políticos sérios na experiência armada, fazendo a correlação de forças pender para o lado das opiniões de Pomar.

Vários dirigentes partidários já haviam escrito suas próprias opiniões a res-peito e a maioria delas colocava em crescente dificuldade as argumentações de Amazonas e Arroyo. A direção sentia-se pressionada também a dar uma satisfação aos partidos irmãos, especialmente ao Partido do Trabalho da Albânia e ao PC chinês. A Comissão Executiva decidiu enviar Pomar para comunicar a eles o insu-cesso da luta armada e as dificuldades que o partido atravessava. Ele deveria viajar no início de novembro, ficando portanto fora das reuniões da Executiva e do CC.

Em setembro, porém, Catharina teve que ser levada às pressas para o Hospital dos Servidores do Estado, em São Paulo, devido a uma dor de cabeça que aparentava derrame cerebral. Havia muitos e muitos anos ela sofria de constantes enxaquecas, que a deixavam normalmente prostrada por um dia ou dois. Dessa vez, porém, os sintomas foram mais sérios, com a dor mais locali-zada e muito mais intensa.

Pomar teve que deixá-la no hospital para fazer exames, antes de definir o diagnóstico. E escreveu um recado para Amazonas, marcando um encontro, no qual lhe comunicou a doença de Santinha. Não teria condições de viajar e alguém da Executiva deveria substituí-lo nessa missão.

O mais natural é que fosse o próprio Amazonas. Rabelo continuava a postos para viajar e o acompanharia. Essa reviravolta resultou em negociações prolonga-das sobre os membros do CC que deveriam participar da reunião de dezembro. Amazonas queria ter certeza de que haveria um certo equilíbrio de forças na reu-nião, ficando a salvo de qualquer surpresa. Pressionou, sobretudo, para que o pon-to com Jover fosse retomado, apesar das falhas nos encontros de agosto e setembro.

Pomar não se preocupava com a composição dessa ou das demais reuniões e até achava engraçada essa preocupação com o que chamava de contagem de tanques. Supunha urgente chegar a uma conclusão na avaliação do Araguaia, mas ponderava ser precipitada qualquer decisão que não fosse esmagadoramente majo-ritária e aceita por Amazonas como tal.

Disse-lhe isso mais de uma vez e o criticou, com a mesma franqueza de sem-pre, por estar colocando a segurança do partido em segundo plano, ao procurar

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apoios a qualquer custo. Seria uma temeridade retomar o ponto com o Jover sem antes verificar com precisão se ocorrera alguma coisa, assim como tinha sido uma temeridade Amazonas procurar diretamente camaradas que haviam estado presos e que não sabia se estavam ou não sendo vigiados.

Teve uma longa conversa com ele, que varou a madrugada, no dia anterior à viagem. Disse-lhe que, qualquer que fosse a tendência predominante no Comitê Central, faria todo o esforço para que não houvesse uma decisão antes do retor-no dele ao Brasil. Mas não deixou passar a ocasião para lhe dizer que, se fosse o contrário, se fosse Amazonas e não ele a ficar, não tinha confiança de que haveria o mesmo empenho. De qualquer modo, acrescentou, ele deveria levar em conta que havia uma crescente tendência entre os membros do Comitê Central para considerarem os erros do Araguaia de natureza política, e não apenas militar, e os caracterizarem como blanquistas.

– O pior é que, depois de tudo, você continua achando que o processo revolucionário depende da decisão e da vontade do partido, ou dos grupos guerri-lheiros, e isso é blanquismo. A revolução depende fundamentalmente de as massas entrarem em movimento, e não do partido. O partido tem que estar junto com elas, saber medir seu pulso e se credenciar para assumir a direção desse movimento das massas. Não é o partido que faz a revolução. O partido não é o anjo salvador!

Amazonas absteve-se de responder aos comentários sobre as desconfianças de Pomar em relação a ele. Preocupou-se mais em argumentar que suas opiniões não eram blanquistas. O partido, segundo ele, tinha um papel importante. Sem partido também não haveria revolução. Então, numa situação especial como a vivida pelo Brasil, com uma ditadura feroz e uma situação revolucionária evidente, cabia ao partido tomar a iniciativa, organizar grupos armados, que se tornassem referências para a incorporação das massas no processo revolucioná-rio. Teria que haver derrotas.

– As derrotas são parte do processo revolucionário. São elas que nos forçam a extrair ensinamentos e a corrigir os erros e defeitos de nossa política. Mas isso não significa que a política esteja errada. Ao mesmo tempo, temos que ter cuidado para não deixar de enaltecer os que fracassaram e erraram, sem deixar de criticar seus erros. O Araguaia é um exemplo dessa situação. Cometemos erros na tentati-va de aplicar a política de guerra popular, mas não devemos deixar de enaltecer os camaradas que morreram lá nem abandonar a política que traçamos.

Pomar não deu muita atenção a esses argumentos gerais, com os quais con-cordava. E reiterou que Amazonas se apegava a argumentos fracos, que se desman-chavam à medida que eram confrontados com a prática, com a atividade real. Isso acabaria por deixá-lo isolado na Comissão Executiva e no Comitê Central.

E também voltou a criticá-lo por fazer concessões a Jover nas questões de segurança, esperando assim contar com o apoio dele no debate político. Sugeriu

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que, durante a viagem, procurasse refletir sobre o que estavam conversando francamente. Em algum momento, depois do seu retorno, teriam que adotar uma decisão, mesmo que ele continuasse se opondo às opiniões já predominan-tes no Comitê Central.

Foi uma conversa dura, mas no tom de duas pessoas que há mais de qua-renta anos navegavam nas mesmas embarcações, embora em posições nem sempre convergentes. Pela manhã, Pomar foi levá-lo ao ponto com Felipe (Carlos Edu-ardo de Carvalho), na avenida Faria lima esquina com a rua Pinheiros. Felipe devia conduzi-lo de carro até Curitiba e, de lá, acompanhá-lo de ônibus até Foz de Iguaçu e aguardar que ele atravessasse a fronteira com o Paraguai.

Felipe viu quando os dois apareceram, agasalhados, pois ainda fazia um pouco de frio na manhã paulistana. Achou o contraste físico muito evidente e estranhou a despedida, de um modo um tanto formal, cortês. Pareceu-lhe uma despedida fria em demasia, mas na época a atribuiu aos hábitos diferentes que tinha sempre notado nos velhos dirigentes do partido, e que creditava a diferenças de idade e de formação. Não podia imaginar o fosso que os separava.

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24 ECOS DE OUTRORA ESTãO

NO NADA IMERSOS

Trazeis imagens de horas juvenis, Sombras queridas vagam no recinto;

Amores, amizades, ressurgisDo olvido como um conto meio extinto; Renasce a dor, que em seus lamentos diz

Da vida o estranho, errante labirinto,Evoca os bons que a sorte tem frustrado,

E antes de mim, à luz arrebatado. J. W. goethe (Fausto)

1976, São Paulo: dezembro, ainda noite do dia 141975-1976, São Paulo: dores

Mário acordou sonhando com Catharina no Hospital. Encontrava as portas das escadas fechadas e via-se impedido de subir para vê-la. Ficou angustiado e só melhorou quando acordou de vez e deu-se conta de que tudo não passara de um pesadelo.

Abalava-se todos os dias, ao entardecer, para o Hospital do Servidores do Estado, no Ibirapuera, permanecendo ao lado dela por horas a fio. Como tinham um filho que era então funcionário do Instituto de Terras, isso permitiu sua inter-nação, sob o nome de Maria Angélica Villas Boas.

Transitava pela rampa menos movimentada, com a calva coberta pela boi-na, e escapava dos elevadores, procurando mais segurança. Subia e descia pelas es-cadas, como se estivesse em seus trinta anos. Preocupava-se em ser reconhecido. O hospital era procurado tanto por professores estaduais quanto por funcionários da polícia. E o tráfego de médicos, enfermeiros, atendentes e funcionários das mais diversas categorias era o de uma cidade média. Não podia, porém, deixar de correr esse risco diante da enfermidade da companheira que o seguira por toda uma vida. Quarenta e um anos eram realmente uma existência.

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Catharina vivera quase toda essa existência com enxaquecas periódicas, como tenazes apertando suas têmporas, que a prostravam totalmente. Mas daquela vez a dor fora lancinante, fazendo-a desmaiar. Até achou que poderia ser um derrame. Carregou-a até o carro, com a ajuda do filho mais novo, e a levaram para o pronto--socorro, sempre com a esperança de não ser nada além de uma dor apenas mais forte.

Ficou no carro, aguardando, enquanto Carlos a acompanhou nos exames. A demora foi como se estivesse esperando a morte que não chegava. E quando o filho finalmente retornou, veio sem ela. Os médicos a tinham sedado e não a deixaram sair do hospital. Sem saberem direito do que se tratava, queriam uma bateria de exames e a opinião dos neurologistas. Voltassem no dia seguinte. O quadro estava sob controle e estável, mas não pretendiam correr riscos.

Pomar mal dormiu naquela noite. Por sua mente passavam todas as hipóteses possíveis, como se estivesse numa marcha sem fim nas vastidões geladas de algum país nórdico. Aquela impressão do branco ofuscante o oprimia, não o deixando se fixar em qualquer ponto visível. Só ao amanhecer sucumbiu ao sono, mesmo assim por alguns minutos, acordando logo depois assustado e sentindo-se culpado por capitular num momento como aquele. Foi o banho que lhe tirou de cima as dores e a sensação cansada daquela marcha ilusória de centenas de quilômetros.

Chamou o filho e cedo se prepararam para voltar ao hospital. Arrumaram numa sacola algumas roupas e outros pertences necessários de Catharina e ruma-ram para lá. Pomar queria saber como ela estava, ter notícias, verificar se havia condições de vê-la sem perigo. Informaram que ela já estava sendo examinada pelo neurologista e que iria ficar internada no nono andar até completar todos os exames de laboratório. Já era quase meio-dia quando a levaram para o quarto.

Estava abatida, o rosto macilento e um dos cantos da boca levemente ar-queado. Os cabelos, bastos, pareciam haver esbranquiçado repentinamente. Os olhos levemente cerrados davam a impressão de que ela dormia. Carlos tivera que ir trabalhar, mas Pomar não arredou pé dali. Recostou-se numa cadeira, enquanto aguardava que ela despertasse. Isolado do movimento dos corredores, sentia-se mais protegido contra eventuais encontros com alguém que o reconhecesse.

Catharina acordou quando a enfermeira lhe trouxe comprimidos e água. Po-mar ajudou-a a levantar a cabeceira da cama, girando a manivela, e viu os remédios serem engolidos com dificuldade. Ela balbuciou que desejava a cama horizontal e Pomar voltou a baixá-la. Foi então para perto dela e pela primeira vez após seu des-maio pode ver seus olhos, sem brilho, como se a vida os houvesse deixado, embora ela estivesse ainda pulsando em seu coração. Sentiu como se eles o acusassem pelo que havia acontecido a ela e seus próprios olhos ficaram úmidos.

Perguntou como estava, mas ela simplesmente desceu as pálpebras e ficou muda. Disse-lhe então o que trouxera na bolsa, avisou que colocara o chinelo ao pé da cama e que iria deixar a escova de cabelo, assim como a pasta e a escova de dente,

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na mesinha de cabeceira ao lado. Contou-lhe que Carlos tinha vindo com ele na noite anterior e ficara junto dela, enquanto os médicos a examinavam e decidiam o que fazer. E que também viera pela manhã, mas tivera que ir trabalhar. Iria passar à tarde para vê-la e depois iriam juntos para casa. Mais um dia e deveriam ter os resultados dos exames para saber o que ela realmente tinha.

– Derrame... balbuciou ela, sem descerrar as pálpebras. – Não, parece que não foi derrame. Os médicos não têm certeza, mas parece

que derrame não foi. Os exames é que vão dizer. Esperou que dissesse mais alguma coisa, mas ela não se moveu. Continuou

por um bom tempo falando sobre a casa, sobre o que pretendia fazer quando re-tornasse, como lavar a louça, fazer um macarrão para jantarem e separar a roupa para colocar na máquina no dia seguinte. Falou sobre o cotidiano, procurando espicaçá-la com algo que ela gostaria que fosse feito diferente, mas ela conservou seu mutismo. Quando Carlos chegou, por volta das cinco da tarde, ele ainda persistia.

Pediu que o filho tentasse saber do médico de plantão o que iriam fazer com ela, se havia perspectiva de alta e outras informações. Queria ficar a par de tudo, ser parte ativa nos cuidados a ela. O que Carlos trouxe foi pouco, mas revelador de uma situação preocupante. No dia seguinte cedo ela seria levada ao Einstein para fazer uma tomografia, já que os neurologistas ainda não tinham um diagnóstico e esperavam que o tomógrafo lhes esclarecesse. Assim, não adiantava vir pela manhã.

Pomar reparou que ela estava atenta ao que conversavam. Ficou então mais um tempo, na esperança de que, com a presença do filho, ela se dispusesse a abrir os olhos e falar. Mas foi em vão. Beijou-a carinhosamente na testa e no rosto antes de sair, e ainda alisou por algum tempo seus cabelos com as mãos.

No dia seguinte à tarde seguiu sozinho para o hospital. O andar era de um galgo, rápido e esguio, mas a atenção era de um perdigueiro, alerta a qualquer rosto ou movimento estranho. Decidiu ele próprio informar-se com as enfermeiras do re-sultado da tomografia, mas elas lhe disseram que só o médico poderia dizer alguma coisa e que ele só passaria à noite. Tinha várias operações para aquele dia e antes das seis da tarde dificilmente viria à ala.

Não pretendia ver o médico diretamente. Tinha medo de que fosse algum conhecido, o que abriria um flanco indesejável em sua segurança. Esperaria Carlos chegar e pediria para ele aguardar o neurologista e saber os resultados. Até lá, con-tinuaria naquela angústia, ainda mais vendo-a naquele mutismo. Deu-lhe notícias da casa, contou que assistira ao capítulo da novela que ela gostava e contou-o intei-rinho. Alisava seus cabelos, acariciava-lhe as faces e, quase sussurrando, chamava-a de querida, mas nada disso parecia importar a ela. Era quase como se estivesse em estado de coma.

Saiu logo após a chegada do Carlos e combinou com ele que não se fosse antes de saber exatamente o que haviam descoberto. Fez seus pontos e conversou

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com os companheiros que encontrou como se fosse um zumbi, perguntando e res-pondendo mecânica e rapidamente, de modo a ficar livre e retornar para casa. Mas ainda teve que esperar um bom tempo pelo retorno do filho.

Quando este chegou, Pomar não lhe deu tempo sequer de tomar água. E ficou sabendo que Catharina tinha um aneurisma congênito, localizado numa ca-vidade cerebral de difícil acesso. O médico também dissera isso a ela e afirmou que teria que operá-la o mais rapidamente possível. A operação, porém, não seria no cé-rebro, por apresentar alto risco. A equipe pinçaria as carótidas, de forma a diminuir a pressão sanguínea e evitar o rompimento do aneurisma.

Pomar sentiu-se afundar na poltrona. Tinha uma ideia relativamente clara do que aquilo significava. Sua companheira tinha uma bomba relógio implantada em algum ponto do cérebro, com o agravante de que era praticamente impossível desarmá-la e retirá-la de lá. Sabia que a morte chegaria um dia para ambos, pela própria lei da vida ou pela sanha dos homens que os haviam condenado sem direito de defesa, mas revoltava-se de perder a companheira de tantos anos, que suportara junto com ele vicissitudes de toda ordem. Dessa vez as lágrimas desceram pela face, num choro sem soluços, mas doloroso.

Queria saber mais detalhes sobre o que os médicos pretendiam fazer para salvá-la, mas não podia colocar em perigo sua clandestinidade. A consciência de seu ser político o freava, impedindo-o de ir além dos limites para os quais seu coração e seus sentimentos o empurravam. Pediu então a uma das noras para vir a São Paulo ajudá-lo nesses entendimentos.

Pomar costumava dizer que as coincidências existem e ocorrem todos os dias e, por uma dessas coincidências da vida, o neurocirurgião era um paraense. Expli-cou a ela todos os procedimentos possíveis, confirmando com mais detalhes as in-formações prestadas ao Carlos. Não dava, porém, garantia alguma de sobrevivência. Se ela saísse com vida da mesa de operação poderia durar um ou dois meses mais, ou até um ano ou dois. Dificilmente além disso.

Pomar abateu-se ainda mais. Seus antigos sonhos e estudos de medicina ha-viam retornado com força, como acontecia toda vez que se via diante de casos médicos, e ele nutrira esperanças de que fosse possível uma sobrevida maior. Mas, envolvido diretamente, era difícil ser realista e não titubear. Por outro lado, o tempo urgia e era preciso tomar uma decisão. Antes tê-la alguns anos mais do que perdê-la já, foi o que disse depois que saiu do transe de seus pensamentos solitários.

Continuou visitando-a todos os dias, olhando-a pelo vidro da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) enquanto esteve lá após a operação. Às vezes ficava mais de uma hora naquela posição, seu olhar fixo no rosto que sobressaia dos lençóis. De-pois, quando ela retornou para o quarto, sentava-se a seu lado e, em voz baixa e pau-sada, contava-lhe como iam a casa, os filhos e os netos, os acontecimentos e as tramas das novelas que ela mais apreciava, que passara a assistir sempre que estava em casa,

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muitas vezes parando o que estava escrevendo ou estudando no momento. E relem-brava os momentos marcantes de suas vidas, procurando animá-la e reconfortá-la.

Pela primeira vez em muitos dias viu-a abrir um sorriso quando recordou a história do mocotó que haviam cozinhado durante uma noite inteira. Foi num período em que estavam totalmente sem dinheiro e o máximo que conseguiam comprar fiado era o leite do primeiro filho, então com menos de dois anos. Mora-vam no Marco da légua, em Belém, clandestinos, e o dinheiro que tinham havia acabado antes do dia certo de receber a ajuda do partido. Já era o segundo dia sem comer, Santa grávida, e ambos torciam para que Zeca, o primo dela, aparecesse, como costumava fazer, trazendo alguma coisa que se pudesse mastigar e engolir.

Quando Zeca chegou, com um embrulho volumoso na mão que lhe sobrara de um acidente na infância, Ventura não supôs que aquilo os ajudasse. Mas logo descobriu que a sogra havia comprado uma pata de vaca e a enviara para eles. Não, não dava para esperar o dia seguinte. Mas não tinham carvão para acender o fogo. Foi ainda o Zeca quem os salvou, com algum dinheiro que havia trazido. Enquanto Ventura ajeitava a trempe do fogão, Zeca foi comprar o carvão e Santa tratou de lim-par a pata de vaca, cortá-la nas juntas e prepará-la num tacho de barro para ir ao fogo.

No início do cozimento até que não foi difícil. Olhavam para as chamas crepitando e imaginavam o momento em que estariam comendo a iguaria. Porém, à medida que o mocotó começou a exalar e encher o ar da casa com seu odor ca-racterístico, aquilo tornou-se uma agonia quase insuportável. A madrugada já ia alta quando encheram duas cuias com o caldo em ebulição, tomando-o como um bálsamo. Mas só puderam comer a pata de vaca quando o dia raiou. Foi uma noite indormida, mas o sacrifício até que valeu.

De outra feita, lembrou-a da pleurisia que tivera, no Rio de Janeiro, como resultado de seu trabalho na oficina de malacacheta. Eline a tratara e recomendara que ela passasse uns tempos numa região serrana para se recuperar. Ele conseguira uma pensão em Friburgo e foi a primeira vez, desde que haviam casado, que pu-deram passar um período sós, sem nada para fazer, apenas apreciando a paisagem, conversando e descansando por uma semana.

Ela se recordou, então, de que depois disso não haviam sido muitos os mo-mentos em que haviam conseguido algo idêntico. Uma vez, em São João do Meriti, no sítio de Jorge Amado e Zélia, no tempo em que Jorge ainda era do partido e todos eram amigos. Depois, em Itatiaia, ele deputado, quando foram passar uns dias com as crianças no hotel do letelba de Brito, um advogado que militava no partido e se tornara amigo deles. E, ainda outra vez, em Capão da Canoa, quando estavam retornando do Rio grande do Sul para o Rio de Janeiro, no início de 1954.

– Não dá para esquecer. Quem dera pudéssemos ter tido outros momentos iguais – disse ela tristemente.Não era uma tristeza qualquer. Pomar alarmou-se, porque sentiu que, desde que viviam juntos, pela primeira vez não a via lutar pela

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vida com a mesma garra de antes. Ela parecia se entregar, cansada das agruras e dos dissabores. Tomou, então, a decisão não só de não viajar como de empenhar-se com todas as suas forças para recuperá-la. E foi com alegria que a viu recordar-se da aventura que fora apanhar a galinha que caíra no poço da casa do Marco, em Be-lém. A penosa era do vizinho, que tentara apanhá-la, já de noite, mas ela, num voo desastrado, passara por cima da cerca e fora cair justamente no poço de serventia da água da casa do seu Wandick, como então se chamava Pomar em sua primeira clandestinidade.Vieram o vizinho, mais a mulher e dois irmãos que moravam com eles, avisar do acontecido e pedir autorização para descer no poço e pegar a gali-nha. Traziam corda e caçamba, mas quando desconfiaram da fundura do líquido, acharam melhor tentar içar a ave com um balde. Os candeeiros iluminavam mal e a operação não foi bem-sucedida. Wandick não teve outro jeito: viu-se constrangido a descer amarrado na corda para evitar que a galinha poluísse totalmente a água.

– O bom em tudo isso foi que no dia seguinte a gente ganhou um bom pe-daço de galinha ao molho pardo, lembrou Catharina.

Para animá-la mais, Pomar aproveitou o ensejo para lembrar da entrega da petição dos presos políticos a Vargas, em 1939. Catharina dera à luz, fazia pouco, ao segundo filho do casal e ainda o amamentava quando se soube que Vargas iria ao Pará. Os presos do Umarizal escreveram a ele, instando-o a se aliar à luta contra o nazismo e a libertar os presos políticos para que eles também pudessem se integrar a essa luta. Catharina aceitou a missão de entregar o texto ao ditador.

-Ah, mas eu era jovem, podia enfrentar o mundo – disse ela num suspiro. - E daí?, perguntou ele. Tinha muito jovem que não faria o que fizeste. Ela recordou, então, o que aconteceu. Deixara o caçula com a Dinoca, pega-

ra o mais velho pelo braço e, de bonde, foram até a ladeira da avenida getúlio Var-gas, que descia para o cais do porto. O bonde parou quase em frente de um monte de paralepípedos, e o filho desceu na frente, ajudado por um passageiro. Quando ela ia apeando, o bonde de trás bateu no da frente. Não foi uma batida forte, mas foi o suficiente para arremessá-la sobre o monte de pedras.

O leite de amamentar escorreu pelo vestido. E a mão direita, com que tentara se apoiar para evitar o choque, torceu ao contrário. Muita gente correu para ajudá-la e um médico, presente no local, colocou sua mão no lugar, enquanto ainda estava quente. Queriam levá-la para o pronto-socorro, mas ela explicou o que precisava fazer. Foi quase uma multidão que a acompanhou para ajudá-la a entregar a petição ao próprio Vargas, depois de expor a seu ajudante de ordens os acontecimentos do bonde. Era difícil não atender a uma mulher naquele estado, carregando um filho pela mão e com o vestido encharcado de seu próprio leite.

À medida que Catharina melhorava, Pomar tornava-se mais animado. Ape-sar disso e de todas as suas atividades partidárias, somente deixava de compare-cer ao hospital se estivesse em alguma reunião indispensável. Naquele momento,

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dedicava-se especialmente para que o partido tivesse alguma participação positiva nas eleições municipais e para que os militantes aplicassem a orientação da carta--circular de fevereiro.

Não era fácil. Essa orientação se chocava frontalmente com as notícias triun-falistas publicadas em O Araguaia, com as informações fornecidas por Arruda na Europa e com o noticiário da rádio Tirana, que incentivavam uma ofensiva que o partido não estava em condições de praticar. Desdobrava-se para superar esses pro-blemas, mas desdobrava-se ainda mais para ir ver Catharina.

Quando ela teve alta e voltou para casa, Pomar tornou-se seu enfermeiro, cozinheiro e faxineiro. Controlava o horário dos remédios, dava-lhe banho, trocava suas roupas, fazia a comida e a levava para ela, na cama. Ajudava-a a se levantar para se exercitar um pouco ou ir ao banheiro, colocava a roupa suja para lavar na máqui-na, estendia-as e passava a ferro aquelas que iam usar. E, com a ajuda de Carlos, o único filho que morava com eles, lavava a louça e varria e limpava a casa.

Quando tinha que sair por algumas horas ou passar algum dia fora, deixava a comida pronta e exigia que o filho estivesse sempre ao lado da mãe e cumprisse religiosamente os horários de medicação. No restante, a não ser que precisasse escre-ver alguma coisa, passava longas horas conversando ou lendo para ela notícias dos jornais, ou trechos de livros. Certa vez ela lhe pediu que lesse A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói. Este era um dos contos que Pomar mais apreciava e vivia citando trechos dele. Mas ele estranhou o pedido, naquelas circunstâncias.

– Não queres que te leia alguma coisa de Tchecov, ou de Saltikov-Chedrin? Ou Balzac? Ou lima Barreto? São mais otimistas.

Não, ela queria justamente Ivan Ilitch. E, à medida que Pomar ia lendo, ela fazia comentários comparando os trechos à própria vida. É verdade, dizia ela, sempre que alguém morre, os que ficam têm a sensação de que escaparam. Só não lembram que um dia também chegará sua vez. E os que morrem sempre ficam com o rosto mais belo e mais digno do que em vida. Por que isso acontece? E isso alimentava a troca de ideias que haviam tido pouca oportunidade de praticar antes.

Ela riu com a descrição da casa de Ivan Ilitch, uma perfeita imitação que ele achava original. Teve pena dele quando ficou doente, começou a ser tratado por um médico que se considerava acima dos simples mortais em sua douta sapiência e, para piorar, passou a ser olhado pelos colegas como alguém que em breve abriria uma vaga para eles.

Da mesma forma que o guerassin do conto, condoía-se com os tormentos do pobre homem, embora fosse o único a lhe dizer a verdade de seu estado. E condoeu-se ainda mais por Ivan Ilitch haver descoberto, tarde demais, que podia ser verdade não haver vivido como deveria, dando-se conta de que o que era con-siderado acertado pelas pessoas mais altamente instaladas na sociedade podia não representar o lado autêntico das coisas.

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Catharina teve que conter o choro no final do conto – o neurologista prati-camente a proibira de chorar, para evitar tensões no aneurisma – quando alguém diz, perto de Ivan Ilitch, “Acabou!” e ele, repetindo a palavra na alma, ainda pensou “Acabou a morte. A Morte já não mais existe!”.

É verdade, perguntou, que quando se morre, a morte deixa mesmo de exis-tir? Que bom seria se houvesse outro mundo, para onde fôssemos e pudéssemos reviver as coisas boas da vida que vivemos neste. Pomar tentou desviar o assunto. Arrependia-se de haver concordado com a leitura e não sabia se aquilo iria fazer bem a seu estado de espírito. Mas ela perguntou, de chofre, como que olhando no vazio:

– Sabias que o Paul Robeson morreu? É lógico que ele sabia. Ambos admiravam sua profunda voz de baixo e gosta-

vam de ouvir seu disco com spirituals, óperas e blues. O macartismo havia persegui-do aquele artista completo, que além de ótimo cantor era ator de cinema e de teatro, e fora o primeiro negro a representar Otelo num palco. Mas ele, além de negro, era um combatente contra a guerra e um comunista.

A perseguição que sofreu fez com que tivesse que se se confrontar com obs-táculos intransponíveis para trabalhar em seu próprio país, os Estados Unidos. Viu, ainda, seu passaporte ser cassado, o que o impedia também de trabalhar no exterior. Na prática, viu-se condenado, sem qualquer sentença judiciária, a uma vida de difi-culdades e de fome. Pretenderam liquidá-lo em vida. Mas não se abatera. Sim, sabia que ele havia morrido, mas esforçou-se outra vez para mudar de assunto e evitar que caíssem em alguma outra morte. Esta é inevitável, uma daquelas verdades absolutas inescapáveis, mas não é um tema agradável para tratar a todo momento.

Catharina foi aos poucos melhorando. Já conseguia andar direito e se aven-turava a fazer pequenas tarefas domésticas. Pomar renasceu com essa melhora. Con-versou longamente com ela sobre a possibilidade de passarem o final do ano em Belém, com o filho e os netos mais velhos. Escreveu um bilhete ao Tota, seu neto mais jovem, avisando-o de que deveriam passar o natal juntos. E, como costumava fazer nos bilhetes mais simples, sempre acrescentando algo que pudesse ter um valor maior, aconselhou-o a nada temer e a conhecer a verdade, já que esta era “a coisa mais importante e mais bela da vida”.

Tinha condições de conseguir um carro, para irem devagar e sem a estres-sarem demais. Passariam por Belo Horizonte, depois poderiam ir por Brasília e Anápolis, e seguir pela Belém-Brasília. Só assim ela conheceria a nova capital e goiás, e poderia apreciar a paisagem do cerrado. Contava-lhe as paisagens que ha-via conhecido durante suas viagens por ali e fazia planos de onde parar e pernoitar: Uruaçú? gurupi? Araguaína? Ou Estreito? Ou Imperatriz? Depois Açailandia ou Paragominas e, por fim, Belém.

– Se for o caso, poderemos parar em lugares intermediários, animava-a. Não deixou, porém, de tratá-la com o mesmo cuidado. Fazia quase tudo na

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casa. E continuavam relembrando juntos fatos e histórias de sua vida em comum. Por mais de uma vez Pomar contou para ela trechos do filme Pequeno Grande Ho-mem, que vira em Paris por ocasião de sua última viagem ao exterior.

Impressionara-se como o filme tratara a condição humana, na qual alguns princípios são extremamente valiosos para sustentar a dignidade de um ser, mesmo quando ele fraqueja e cai nas profundezas da degradação. O personagem principal sobe e desce, mas sustenta-se com os princípios que lhe transmitira o índio que o criara. E este, quando velho e cego, é uma figura inesquecível.

Pomar achava notáveis as cenas em que o índio velho pensava haver chegado a sua hora de ir para o território dos mortos, dirigindo-se então ao monte sagrado, para esperar o momento de ser levado. O filho adotivo bem que tentou demovê--lo, alertando-o de que tal decisão não se resolvia daquele modo. Mas o velho só se convenceu mesmo de que ainda não era o seu momento quando os bagos da chuva o despertaram para realidade da vida, que continuava.

Por associação de ideias, Pomar recordou-se de Shakespeare, que colocava o humano no centro de todas as suas peças, e comentou com ela Hamlet, Rei Lear e alguns outros dramas e tragédias que haviam visto, inclusive na televisão. Televisão! Ela voltou a se queixar com ele de quão injusto fora quando ela resolveu aceitar o aparelho dado pelo partido. Que culpa tinha ela de que a rifa, feita para levantar finanças, não houvesse saído para ninguém? E que o Pequenininho – era assim que chamava Amazonas desde quando se conheceram, ainda nos anos 1930, em Belém – houvesse proposto dar o aparelho a ela? Pomar, na ocasião, se insurgira.

Amazonas não poderia dispor de um bem do partido daquele modo. E ela não poderia compactuar com aquilo. No calor da discussão, chegara a dizer que ela estava sendo ganha com balas de açúcar, o que a deixara magoada, principalmente porque não entendera a razão da acusação. Foi preciso que a Comissão Executiva decidisse formalmente que a televisão fosse para o uso dela.

Pomar nada respondeu dessa vez. Continuava achando errado o que fora feito, mas não era mais o momento de repisar o problema. De qualquer modo, a televisão, juntamente com o rádio, tornara-se a ligação dela com o mundo após o golpe de 1964, quando foram morar no Alto da Boa Vista.

Estava sempre antenada nas novas criações musicais e nas novelas. Acompa-nhou todos os festivais da canção e assistiu à emergência de Elis Regina, Jair Rodri-gues, Chico Buarque, Milton Nascimento, Edu lobo, Tom Zé, Nara leão, Cae-tano Veloso, gilberto gil, geraldo Vandré, Secos e Molhados, Ney Matogrosso, Paulinho da Viola, gonzaguinha, João Bosco, Paulo César Pinheiro e tantos outros que marcaram a época. O que o impressionava é que ela aprendia as melodias com incrível rapidez e, como um canário, as assobiava como ninguém.

No início do affair televisão, Pomar nem mesmo chegava perto para as-sistir aos programas. Mas quando chegou em casa um dia à noite e viu os filhos

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assistindo a um jogo de futebol, não resistiu. Também sentou-se na poltrona e, quando deu conta de si, estava xingando os pernas-de-pau e a arbitragem do juiz. Daí em diante, às vezes varava a madrugada assistindo aos tapes das partidas e relaxando das tensões da vida política. Eram os únicos momentos em que se deixava levar pela emoção e não exercia qualquer controle sobre os palavrões que soltava contra as jogadas malfeitas e os frangos dos goleiros. Continuava um fla-menguista quase fanático, embora o que mais apreciasse fosse uma partida bem jogada, qualquer que fosse o time.

Depois, acostumou-se a ver com ela alguns filmes e assistir a alguns pro-gramas, principalmente aos noticiários, que em geral deixavam-no indignado pela desinformação que espalhavam. Quando passou Espartaco, fez questão de que ela assistisse a todo o filme e impressionou-se com a fidelidade do trabalho em relação ao livro de Howard Fast. Espartaco, ao lado de Frei Caneca, era um de seus heróis, admirando-o principalmente por sua pertinácia, sua inteireza de caráter e dignidade com que enfrentara a vida e a morte.

Foi também na casa do Alto da Boa Vista que ganharam um pastor belga, negro como uma graúna, a quem deram o nome de Rex. Haviam se acostumado a ter animais, principalmente cães, quase todas as vezes em que moraram em casas. Em Belém haviam tido o Tenente, um vira-lata meio cinza, bastante ladino, que vivia na rua mas, invariavelmente, arranhava a porta da sala à noite, para atravessar os cômodos e ir para o quintal, onde comia e dormia.

Depois, em Porto Alegre, nos idos de 1951 a 1953, tiveram o Dunga, um gato que foi deixado no jardim da casa da rua Belém, mal nascido e tremendo de frio. Diana, uma cadela mestiça que já habitava o porão da moradia antes de chegarem, e se afeiçoara a eles com uma docilidade impressionante, cheirava-o, ao mesmo tempo que latia para chamar a atenção dos moradores para seu achado. Todos pensaram que era um gato sem eira nem beira, mas aos poucos demonstrou ser um angorá grande e vistoso.

Já a Tuti era uma mestiça de bassê, toda preta e com uma mancha branca na testa. Também fora abandonada por alguém. Num dia em que Pomar subia a rua indo para casa, ela o acompanhou, de vez em quando enroscando-se em suas pernas. Comprida como uma salsicha e rápida como um coelho, acabou sendo adotada, não só pelos humanos da casa, mas também por Diana e por Dunga, com os quais se embolava em brincadeiras constantes.

Mais tarde, já em São Paulo, quando moraram na Ibicaba, adotaram outro vira-lata, a quem deram o nome de Rex. Ao se mudarem para a rua Odon Noef, ainda no Tatuapé, esse primeiro Rex não estranhou nem a rua nem a casa nova. Era uma região que ele conhecia bem em sua constante vagabundagem pelas ruas e a troca de ninho não significou nada sério para ele.

Porém, quando Pomar e Catharina mudaram de bairro e foram para o Alto da Boa Vista, Rex um dia aproveitou o portão aberto, desabalou e nunca mais

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apareceu, talvez na tentativa desesperada de retornar à antiga casa. Terminou sendo substituído pelo pastor belga, com o mesmo nome, manso para os de casa, mas uma fera para os estranhos. Era um verdadeiro cão de guarda.

Ele os acompanhou primeiro na mudança para a casa acanhada da Chácara Santo Antônio, até tomarem o susto com um policial batendo à porta, à procura de um dos filhos do casal. Pomar saiu às pressas, indo para a casa do filho mais velho, nessa época também clandestino em São Paulo. Todos viveram em angústia antes de descobrirem que o policial do distrito local estava procurando um dos amigos de Joran, acusado de receptação de um toca-fitas.

Rex também os seguiu na mudança para Pariquera-Açu e se adaptou rapida-mente ao sítio. Subia e descia correndo os terrenos em ladeira, acompanhando Po-mar aos trabalhos da roça, sempre alerta a qualquer coisa estranha. livre dos limites do pequeno quintal cimentado das casas de São Paulo, e exercitando-se quase o dia todo, alargou o peito, tornando-se muito mais musculoso e ágil. Mas teve que ficar em Pariquera quando Catharina e Pomar voltaram para São Paulo, primeiro para a rua Simão Álvares e, depois, para a rua Jurema, onde não havia condições para a presença de um animal do tamanho de Rex.

Catharina só descobriu o quanto Pomar gostava do animal quando ele, vol-tando um dia do Vale do Ribeira, lhe disse, com um pesar mais do que evidente:

– Mataram o nosso Rex, Cati. Deram veneno para ele e o veterinário não pôde fazer nada. Foi uma maldade!

Desistiram, então, de qualquer outro animal, ainda mais quando ela adoeceu. A melhoria do estado de saúde dela, no início de dezembro, permitiu a Po-

mar enfrentar com mais coragem os desafios que tinha pela frente, com destaque para as reuniões da Executiva e do Comitê Central, em meados do mês. Em novem-bro, tivera um encontro com a comissão de organização.

Felipe pegou-o no ponto combinado para irem juntos e para integrar-se mais naquela tarefa específica de apoio do Comitê Central. Ele se tornara, desde o final de 1975, um dos apoios da comissão de organização, constituída, entre outros, por Zé Antonio (Haroldo lima), Zecão (Sérgio Miranda) e Mário. Por recomendação de Zecão, alugara um apartamento na rua Cachoeira, só se encontrando pela pri-meira vez com Mário no início de 1976, num ponto marcado na rua Madre Cabri-ni, perto do metrô Vila Mariana.

Magro, alto, sempre sorridente e alegre, Mário pareceu a Felipe um tanto simplório, meio como se fosse comum demais. Mas era, como pôde notar, ao mes-mo tempo muito gentil e cavalheiresco. levou-o várias vezes a Santos, Campinas e Sorocaba, além dos deslocamentos dentro de São Paulo, principalmente aos “escri-tórios” de Vila Mariana – ruas Coronel Diogo, Diogo de Faria, Borges lagoa, Pedro de Toledo, Madre Cabrini.

Mário só fora umas duas ou três vezes ao apartamento, quando reclamou, bem-humorado, dos cobertores “tomara que amanheça”, justificando-se ao dizer

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que “velho sente frio”. Embora nas viagens raramente cochilasse e muitas vezes con-versasse com Felipe, em geral parecia algo distante, preocupado e absorto, ficando em silêncio, distante.

Foi depois daquela reunião da comissão de organização, em que a discussão teve como centro a Operação Condor – repressão e extermínio programado de di-rigentes de esquerda – e em que Mário advertiu que havia grande perigo pairando sobre o partido, reiterando a necessidade de cuidados redobrados, que ambos ainda fizeram uma viagem a Sorocaba. Mário estava, na ocasião, muito nervoso e um tanto ríspido no tratamento. Só mais tarde, ao ouvir Zecão comentar consigo que “o velho” dera “a maior bronca por causa do encontro no Rio”, Felipe entendeu que aquele nervosismo e aquela rispidez estavam relacionados com o ponto feito com Jover Teles, no Rio de Janeiro.

Pomar se preocupava com as discussões que iam ter, com os perigos que os rondavam, com a falha brutal de haverem retomado o contato com Jover sem as necessárias precauções, com as resistências a encararem a realidade de frente. Mas já não comentava com Catharina, como antes, essas preocupações. Procurava poupá--la dos dissabores pelos quais passava, embora não esquecesse o quanto ela o ajudara em muitos momentos duros da vida interna do partido, quando companheiros que considerava amigos certos demonstraram ser apenas conhecidos de viagem.

Ela, apesar das dificuldades em entender essas viragens do partido, fora per-manentemente seu porto seguro, e tivera sempre seu ouvido amigo e aberto para ouvi-lo, quando ele não mais suportava carregar sozinho as injustiças e as afrontas. Agora, porém, na situação em que se encontrava, seria uma temeridade pô-la a par das querelas, das tormentas e dos perigos mais recentes que o afligiam.

Ainda mais porque, apesar das melhoras, ela continuava precisando de cuida-do e atenção especiais. Os momentos de melancolia a acometiam com frequência, obrigando-o a estar sempre em alerta para retirá-la daquela situação. Aprendeu que soltar um chiste qualquer, a exemplo de “quem de moço não morre, de velho não escapa”, logo depois arrematado por alguma história que mostrasse a luta dos ho-mens pela vida, em geral tinha sucesso para despertá-la.

lera para ela O Velho e o Mar, de Hemingway, quase sempre retornando ao velho em sua luta com o peixe-espada, luta que os levou a respeitarem-se mutu-amente. Apreciava comentar a combatividade do peixe e a persistência tenaz do velho, ambos derrotados depois pela voracidade covarde dos tubarões e pela igno-rância dos turistas, que confundiram a carcaça majestosa do peixe-espada com a de um vagabundo tiburón.

– A vida é cheia dessas crueldades, minha querida. Se o velho se abatesse diante dessa derrota, ele nem pensaria em voltar mais ao mar, sua fonte de vida. Nós somos iguais. Ou sucumbimos às nossas derrotas, ou somos empurrados por elas. A segunda opção talvez seja a mais dura e a mais cheia de dores, mas é certamente muito mais digna.

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25 ESSE É A QUEM AMO, QUEM AlMEJA

O IMPOSSÍVEl

Aniquilar o inocente que os enfrenta, é o modo pelo qual tiranos aliviam seus pesares.

J. W. goethe (Fausto)

1976, São Paulo: dezembro, dia 151976, bairro da Lapa: dezembro, manhã do dia 16 – desgraça

Ao reiniciar a reunião do Comitê Central, Mário lembrou a todos que esta-vam inscritos para falar Dias, Jorge e ele próprio. Se fosse necessário, poderia haver uma segunda rodada, antes de passarem para o segundo ponto da ordem do dia, mas deixaria isso para ser resolvido após a última fala.

Dias disse que firmara a posição de que os erros cometidos no Araguaia não eram apenas militares, mas fundamentalmente políticos. E o seu foquismo não eram apenas simples desvios na preparação e execução da linha política, mas uma con-cepção predominante na própria linha aplicada, diferentemente da que era pro-pugnada no texto “guerra popular”. Depois de repassar suas afirmações desde que tivera início o debate e reconhecer que evoluíra paulatinamente na compreensão do que realmente acontecera na experiência do Araguaia, disse considerar necessá-rio haver uma só linha de preparação. O partido, argumentou, não pode ter duas linhas, sob pena de criarmos, mesmo que lentamente, dois partidos.

Sustentou que era melhor demorar mais tempo no processo de avaliação, esclarecer as divergências, verificar realmente o que unia e o que desunia, e unificar o partido em torno do que unia, estabelecendo procedimentos para tratar com cuidado as questões que desuniam. Por isso, não concordava com as propostas de Rui, embora reconhecesse que seus argumentos tinham procedência. Elas, na verdade, finalizou, poderiam aguçar as divergências ao invés de amainá-las.

Jorge iniciou sua fala dizendo que concordava com Valdir nas questões cha-ve do trabalho de massas e do movimento camponês. Sem o partido aprender a

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fazer corretamente o trabalho de massas e sem aprender a se enfronhar no movi-mento camponês, avaliou, será muito difícil que consiga realizar qualquer traba-lho sério e efetivo de luta armada. Os camponeses são capazes de fazer uma luta armada pela posse da terra, ou por vingança ao crime de um jagunço ou de um latifundiário, mas esse tipo de luta armada é limitado, está longe de uma relação efetiva com uma luta armada de caráter político.

– A reação sabe disso, acrescentou, e negocia com os camponeses sempre que aquela luta armada está nos limites das reivindicações econômicas ou sociais puras, entre outras coisas para evitar que haja uma transformação em luta armada política. Ou nós aprendemos a seguir esse ritmo e as formas da luta, de modo a dar consciên-cia política aos camponeses e elevar suas lutas armadas em lutas armadas políticas, ou jamais contaremos com a participação dessa massa na luta política contra a ditadura.

Deu uma série de exemplos de lutas camponesas que combinavam luta clandestina com luta legal, luta pacífica com luta armada, confronto com nego-ciação, para afirmar que era essencial o partido aprender a realizar um trabalho que evitasse que a repressão o descobrisse antes de os camponeses haverem criado consciência política e estarem dispostos a travar uma luta armada mais avançada.

– Nós estamos como aquele lavrador nordestino que, não tendo chovido até o dia de São José, acha que pode plantar em qualquer chuva temporã que venha depois. Não dá. Vai perder tudo que é semente. Conosco até aconteceu pior. Nós nem esperamos a chuva, achando que ela vinha de qualquer modo porque o céu estava encoberto, e jogamos na terra todas as sementes que tínhamos. Em vez de chuva, tivemos granizo, e do pesado. E alguns de nós ainda acham que devemos jogar o resto das sementes, sem fazer a coivara, sem preparar o terreno como se deve, e sem esperar o tempo certo. Não concordo.

Jorge também não concordou com o que chamou de pressa do camarada Rui. – A gente mal começou a curar as feridas, a aprender com os erros e a clarear

a cabeça, e o camarada já quer que se dê uma conclusão para o caso. No começo, a maioria achava que só tinha mesmo havido erros militares. O camarada Mário estava meio sozinho na teimosia dele de dizer que os erros eram políticos, eram de fundo. Foi de reunião em reunião que muitos de nós fomos aprendendo que o buraco era mais fundo. Então, pode até ser que a gente não consiga que todo mundo chegue à mesma conclusão, e é até bom que sempre haja alguém contra para alertar a gente, mas quando a gente tomar uma decisão vai ser com consciên-cia. E, para falar a verdade, alguns de nós ainda estamos com meia consciência e mais algum tempo de discussão não nos fará mal. O mal que tinha que ser feito já aconteceu lá no Araguaia. Então, vamos aprender bem com o acontecido.

Mário sorria com o jeito simples de Jorge se expressar. Quando tomou a palavra, disse que não ia se alongar demais nas suas opiniões. Pelo que pudera ver, todos haviam lido seu texto de avaliação e não tinha muito a acrescentar ao

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que estava escrito lá. Só iria relembrar alguns aspectos que considerava essenciais no debate, como a relação entre o papel das massas e o papel do partido, sem o que este corria sempre o risco de cometer erros graves. lembrou que todas as experiências revolucionárias da história, inclusive aquelas anteriores à existência do proletariado, mostravam que as revoluções surgiam como um movimento das grandes massas, quando estas já não aguentavam mais viver como vinham vivendo e se jogavam na luta sem medir sacrifícios.

– É evidente que nesse processo de despertar das massas, sobre sua própria situação de vida, o partido revolucionário, seja aquele representado pelos jacobi-nos da Revolução Francesa, ou pelos jacobinos da Confederação do Equador ou da Cabanagem, seja aquele representado por nós, tem um papel importante ao realizar a propaganda e a agitação revolucionária, ao ajudar na organização das lutas do cotidiano e procurar extrair dessas lutas as lições políticas necessárias. Mas mesmo essa ação de vanguarda, por mais efetiva que seja, será limitada, atingirá no máximo os setores mais avançados das massas, embora isso seja de extrema importância para quando as grandes massas se colocarem em movimento por sua própria conta, como aconteceu na Revolução Francesa, na Cabanagem, na Revo-lução Russa e em outras revoluções.

Mário também levantou a questão de que uma situação revolucionária só era gerada quando, além das massas em movimento por não desejarem mais viver como até então, as classes dominantes, por seu lado, também haviam se tornado incapazes de dominar como vinham fazendo. Ao partido cabia, então, analisar ambos os aspectos, verificar não só o pulso revolucionário das grandes massas, mas também o grau de divisão e impotência da burguesia e de seu Estado, para con-cluir sobre a existência de uma situação revolucionária e, mais complicado ainda, de uma crise revolucionária.

– Nós fomos incapazes de realizar uma análise clara da situação brasileira e concluímos que existia uma crise revolucionária num momento que era, ao con-trário, desfavorável a nós. E estamos pagando o preço desse erro estratégico.

Depois de várias considerações sobre esses temas, Mário fez um breve ba-lanço da discussão no Comitê Central. Considerava existirem ainda opiniões divergentes, algumas sobre questões essenciais, outras sobre problemas aparen-temente menores.

– A maioria considera que a experiência do Araguaia foi um grande aconte-cimento na vida do país e que, apesar de tudo, foi positiva. Menos Valdir, e Sérgio que hoje não está presente, que avaliam a luta do Araguaia como um desastre político e militar. De qualquer modo, a maioria já concluiu que a linha seguida no Araguaia foi contrária à orientação traçada no documento “guerra popular”, embora nem todos estejam de acordo com a caracterização de prática foquista ou blanquista. Há alguns membros do CC, como Augusto e Décio, cuja opinião

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ainda é uma incógnita. Quanto à preparação futura da luta armada, permanecem duas proposições básicas: a primeira, de que é necessário ter o mínimo de movi-mento de massas e de partido e, nessa base, organizar as forças guerrilheiras; e a outra, que propõe a organização em duas fases, iniciando com uma atuação em que não se deve realizar qualquer trabalho político, montando apenas o dispositi-vo militar e, só depois, partindo para o trabalho de massas.

Mário completou o painel das divergências ainda existentes ou não esclare-cidas no âmbito do CC para mostrar por que não concordava com Rui na propo-sição de tomar uma decisão imediata, embora já houvesse uma maioria substancial em torno das questões mais importantes da avaliação e da preparação.

Para ele, ainda não havia uma consciência clara da natureza daquelas diver-gências e uma decisão precipitada poderia levar a direção a praticar erros idênticos aos cometidos no Araguaia. A dubiedade de muitas formulações partidárias levou, naturalmente, à duplicidade de interpretações. Deveríamos aprender com essa ex-periência e esclarecer bem as divergências e as convergências para que o acordo obtido dentro do CC fosse conscientemente observado.

Rui ainda protestou que era um erro continuar deixando em suspenso uma decisão que se tornara inadiável.

– Não podemos deixar o partido na ignorância sobre o Araguaia, ou in-formá-lo de forma mentirosa, como no caso do artigo da Classe. Dois anos para tomar uma decisão, mesmo nas condições difíceis em que vivemos, já é tempo demais. Afora isso, já existe certo consenso sobre as questões básicas que nos per-mitem adotar uma decisão a respeito. Então, por que esperar mais? Só por que o Cid está contra e não está presente?

Mário pediu uma rodada rápida de opiniões sobre a posição de Rui. Um a um, mesmo com argumentos diferentes, todos os outros presentes consideraram que ainda não era o momento de adotar uma decisão, e a reunião foi suspensa para o almoço com a conclusão de que a avaliação sobre o Araguaia ainda deveria aguardar mais algum tempo para ser concluída.

Depois do almoço, Mário deitou-se para a sesta de sempre. Talvez tenha cochilado uns dez minutos, mas continuou de olhos fechados, sem se mexer. Pen-sava em Catharina. Ainda não poderia ir para casa à noite. Teria que permanecer no aparelho até a manhã seguinte para conversar com Jota sobre alguns detalhes do trabalho, inclusive o envio de alguns camaradas que se dispuseram a ir para o norte, tanto para o Maranhão como para o Pará.

Depois das quedas de 1974, o trabalho por lá ia sendo recuperado aos pou-cos, com cuidados extremos, e era preciso dar orientação mais segura para os com-panheiros que iam se deslocar. Catharina teria que esperar mais um pouco para que pudesse ajudá-la no banho e na arrumação da casa. Ela ficaria contente com a notícia de que a viagem deles a Belém estava confirmada e acertada.

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Também precisava acompanhar mais de perto as movimentações operárias e estudantis. As operações-tartaruga e vários outros movimentos espontâneos ou mesmo orientados pelos sindicatos estavam se multiplicando, parecendo um en-saio para movimentos mais amplos, embora ainda fosse cedo para afirmar com certeza. E os estudantes universitários estavam se articulando de modo muito mais rápido do que seria previsível, mostrando que o aparelho repressivo já não podia dar conta de tudo.

A ditadura ia e vinha em sua política de distensão, procurando uma saída para suas contradições internas, mas sua preocupação crescente estava voltada para impedir que o movimento de massas ganhasse corpo e a encurralasse. geisel pare-cia ter uma noção clara do que isso representava e, por isso, mais do que Médici, adotara um plano deliberado de eliminar todas as lideranças revolucionárias, ou que considerava revolucionárias.

Já avisara Catharina. Se for apanhado e assassinado, ela não deverá resgatar seu corpo. Já não será ele. Será apenas um invólucro, um cadáver. Deve evitar que a prendam e a maltratem, na suposição de que sabe outras informações. Evitar que localizem sua casa, seus filhos, suas anotações. Não tinha qualquer ilusão quanto ao fim que teria se fosse preso. Estava preparado para isso, mas seria uma pena não participar das mudanças, cujos sinais apareciam cada vez com mais nitidez. Seria realmente uma pena não ver a classe operária se levantar.

Pensara, erroneamente, que o domínio imperialista sobre o Brasil iria frear o desenvolvimento das forças produtivas, criar estagnação e retrocesso. Entendera mal o reajuste levado a cabo por Castelo Branco e não tivera uma percepção clara do que representavam os investimentos estrangeiros na economia, logo após o gol-pe, nem os planos de modernização agrária e latifundiária, como premissas para a geração de um novo ciclo de crescimento econômico.

Só no início da década se dera conta de que havia um novo surto de de-senvolvimento capitalista, criando uma nova classe operária urbana e rural, com a manutenção do latifúndio, mas também com a redução intensa das antigas formas de exploração camponesa. Milhões de antigos meeiros, parceiros e foreiros haviam sido enxotados para as cidades, transformando-se em trabalhadores industriais as-salariados. Alguns outros milhões de camponeses se tornaram boias-frias, assalaria-dos sazonais, ou peões ou posseiros nas novas zonas das fronteiras agrícolas.

A ditadura militar havia sido um instrumento fundamental para esse novo ciclo de desenvolvimento, que tomara o primeiro choque de reversão com a crise do petróleo de 1973. geisel supusera possível manter o mesmo modelo e o mesmo ritmo de crescimento, aproveitando-se da abundância de capitais ex-ternos, mas enredara-se na malha do endividamento, aprofundando ainda mais a dependência do país aos desarranjos internacionais e atrelando-o às decisões estratégicas do grande capital.

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Em lugar de avançar no rumo do “Brasil grande” sonhado por algumas cor-rentes militares, com uma matriz industrial quase completa, incluindo a produção de bens de capital, colocara o país sob a tutela do complexo industrial e financeiro das grandes potências, sedimentando o caminho para uma crise de crescimento que po-deria ser prolongada. Os militares e seus tecnocratas definitivamente não entendiam de capitalismo, e Mário também se penitenciava por não haver compreendido que a tendência à estagnação da época imperialista não agia sozinha, mas em confronto com a tendência à expansão produtiva e à revolução das forças produtivas do capital.

Era possível que, havendo se transformado num país predominantemente capitalista nos anos mais recentes, o Brasil tivesse ingressado no ciclo recessivo de seu crescimento, com consequências sociais e políticas sobre o regime. As eleições de 1974, sem dúvida, haviam mostrado que parte da burguesia já não aceitava o comando militar. Até onde essa burguesia iria? Ela teria outra saída para o regime? Conseguiria algum tipo de conciliação, uma saída pelo alto, como sempre fizera na história brasileira, ou seria obrigada a assistir às grandes massas operárias e po-pulares encurralarem a ditadura e dar-lhe fim?

Dentro do partido, essas preocupações ainda não haviam aflorado. Prepa-rara-se para uma única saída, a da luta armada para derrotar a ditadura, com uma proposta tática de frente única, cuja eficácia dependia da própria força que con-quistasse no processo de luta armada. Mas esta, ao invés de reforçá-lo, sangrara-o, debilitara-o, obrigando os remanescentes a um doloroso e mais do que prolongado processo de avaliação interna, enquanto o movimento real ia impondo, paulati-namente, novos desafios, aos quais não estavam conseguindo fazer frente, entre outras coisas porque uma parte do partido sequer os enxergava.

Olhou o relógio e se deu conta de que precisava se levantar. Alguns já es-tavam na sala esperando a retomada da reunião. Foi ao banheiro, lavou o rosto, passou a escova na calva e tomou seu lugar, ao mesmo tempo que os restantes também o faziam. Falou calmo:

– Bem, creio que o mais apropriado é passar ao segundo ponto. É possível que na próxima reunião do Comitê Central já tenhamos uma proposta de resolu-ção para a avaliação e para a retomada do trabalho de preparação armada. Até lá, creio que devemos continuar estudando o assunto, acompanhando o movimento de massas, ligando-nos a estas e cuidando para que o partido não seja golpeado. O momento é de fingir-se de morto para a repressão e ser muito ativo na ligação com as massas, nas empresas industriais, no campo e nos bairros populares.

– O exame do comportamento dos três camaradas do Comitê Central, cuja expulsão está sendo proposta pela Comissão Executiva, deve nos ajudar a aplicar com mais rigor a política de organização adotada desde fevereiro. Ou somos rigo-rosos nessa tarefa, ou seremos incapazes de realizar qualquer ação efetiva contra a ditadura e de preparar a luta armada.

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Mário ainda fez algumas considerações sobre as normas de trabalho clan-destino antes de passar a palavra ao responsável pelo informe a respeito do traba-lho de organização e da proposta de expulsão dos membros do Comitê Central, cujo comportamento diante da repressão causara prejuízos ao partido.

Zé Antonio historiou o processo de avaliação das quedas sofridas pelo par-tido, em particular desde 1972, mostrando que a maioria delas havia ocorrido em virtude de falhas nas normas de clandestinidade, diante de um inimigo que não se impõe limites para prender, torturar e arrancar informações de qualquer ponta que lhe caia nas mãos.

– A tortura, brutal e indiscriminada, é o instrumento básico de luta contra as organizações revolucionárias e a oposição ao regime. Nós não nos preparamos, nem preparamos o partido, para esse tipo de luta. No fundo, pensamos que en-frentaríamos o mesmo tipo de repressão da ditadura de getúlio. Mas esta é muito maior, muito mais selvagem, envolvendo todo o aparato de Estado e combinando informações, infiltrações, prisões em massa para triagem e, principalmente, a tor-tura mais hedionda contra qualquer suspeito de atividades clandestinas. Nessas condições, custamos a nos estruturar em organizações mais ou menos estanques, evitando os vasos comunicantes que acabaram por levar à queda em série de mili-tantes, organismos e dirigentes.

Zé Antonio relembrou as quedas de Danielli, lincoln, guilhardini e Bica-lho Roque, em 1972, num processo em cadeia que havia começado com a prisão de militantes que distribuíam A Classe, levara à queda da direção do partido no Espírito Santo, surpreendera o elo de ligação entre a Comissão Executiva e aquela direção, chegara aos três responsáveis da direção nacional pela região leste e quase atingiu o núcleo da direção em São Paulo.

– Esse núcleo só não caiu porque há algum tempo já havia tornado mais estanques os seus contatos, tornando possível cortar a tempo o contágio. E o prejuízo não foi maior porque o comportamento dos três camaradas dirigentes foi firme até o fim, apesar das torturas inomináveis. De qualquer modo, essas quedas representaram o corte de qualquer contato com o Araguaia, desbara-taram a Comissão Executiva por algum tempo e deixaram o partido relativa-mente paralisado.

– É imprescindível, portanto, adotar formas de organização partidária que evitem quedas em cadeia. As organizações do partido devem ter grande autonomia de atuação, tendo como norte a linha política e a linha de organização. Elas devem se abster de propaganda e agitação que chamem a atenção sobre o trabalho do partido, devem se concentrar no trabalho de massas e na construção cuidadosa da organização partidária e estar preparadas para passar longos períodos sem contato. As ligações entre elas e os organismos dirigentes devem ser realizadas de acordo com as normas estritas de segurança.

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Zé Antonio lembrou que essas normas deveriam se estender a toda a estru-tura partidária, das bases à direção. As organizações de base deveriam ser pequenas e estanques e seus contatos com a direção deveriam ser realizadas apenas por um de seus membros, do mesmo modo que o organismo dirigente deveria ter apenas um dos seus membros destacados para o contato, evitando que todos conhecessem todas as bases. Isto não evitaria totalmente o perigo de quedas, nem a possibili-dade de uma queda produzir outras, mas poderia reduzi-las consideravelmente. Os dirigentes deveriam preocupar-se mais com a orientação política do que com informações sobre militantes e a organização, o que abria brechas na segurança.

– O exemplo de pelo menos um dos camaradas cuja expulsão está sendo proposta pela Comissão Executiva é ilustrativo dessa situação. O Vicente sempre se preocupou mais com os detalhes de cada militante envolvido no trabalho do que com a orientação para o trabalho de massas e o trabalho político. Sabia tudo de quase todo mundo. Chegou a bisbilhotar os documentos de identidade do camarada Mário numa das vezes em que este pernoitou em sua casa, em goiânia. Quando caiu e não suportou a tortura, as quedas atingiram não apenas a região em que atuava, mas também outras regiões em que estivera e conhecia detalhes cuja informação foi preciosa para a polícia. Com os camaradas Martins e Zé Maria os prejuízos foram menores, mas seu comportamento também levou a quedas e prejuízos à organização partidária.

Zé Antonio historiou o levantamento feito para julgar os três membros do Comitê Central. Disse que a comissão descartou os depoimentos em cartório, embora estes contivessem indicações de que os três haviam fornecido informações à polícia. O motivo é que os depoimentos cartoriais, realizados após os processos de interrogatório, contêm informações dadas também por outros, misturam supo-sições da própria polícia, que planta dados para comprometer os presos.

– Os companheiros nem sempre conseguem ler com atenção tudo aquilo que o delegado do inquérito ditou ao escrevente, deixando constar do depoimento coisas que não disseram ou mesmo que são o inverso do que disseram, bastando que o escrevente coloque ou deixe de colocar um não. Os depoimentos em car-tório, frisou, são uma boa peça para sabermos o que a polícia sabe a respeito do partido, mas não para ter uma ideia precisa do que realmente os militantes ou dirigentes disseram durante os interrogatórios.

– Os depoimentos que realmente valem ficam guardados nos arquivos do DOPS, do DOI ou dos serviços secretos do Exército, da Marinha e da Aeronáu-tica. Então, o que nos resta é levantar se caíram camaradas que tinham contato com os dirigentes que foram presos. Quando não há quedas em cascata, é quase certo que os presos mantiveram-se firmes. Quando ocorrem quedas, é certo que alguém falou. Mesmo assim, é preciso algum tempo para, por meio de contatos com familiares, ou mesmo com alguns dos presos soltos depois de algum tempo,

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ter uma ideia mais clara das responsabilidades. No caso dos três membros do CC em questão, há informações precisas de quedas por responsabilidade deles, sendo as mais graves aquelas relacionadas a Vicente.

Zé Antonio ainda explicou as dificuldades para ouvir os próprios camaradas envolvidos, já que eles continuavam presos e se recusavam a reconhecer haverem fornecido informações que levaram às quedas de outros militantes. Isso contrastava com o que haviam dito vários desses militantes, após serem soltos. Diante de tudo isso, a Comissão Executiva propunha a expulsão dos três, já que tal comportamen-to era incompatível com sua permanência no partido, mesmo considerando que as informações prestadas por eles à repressão tinham sido arrancadas sob tortura.

Dias adiantou-se a Rui e foi o primeiro a tomar a palavra após a exposição de Zé Antonio.

– É verdade que temos que salvaguardar o partido, mas é muito difícil apli-car a linha de organização adotada. Como é que as organizações de base vão ficar tanto tempo sem assistência, sem contatos com a direção? Elas não estão acos-tumadas a isso. Toda nossa tradição é de assistência aos organismos inferiores, de modo a que haja um permanente controle da aplicação da linha política e da atuação da militância. Será preciso ter flexibilidade na transição de uma forma a outra de trabalho, se não podemos perder muita gente por não saber o que fazer.

Citou vários exemplos de companheiros que foram deixados durante certo tempo sem contato e, quando este foi retomado, tinham refeito sua vida sem qual-quer compromisso com a atividade partidária. Assim, mesmo que seja necessário adotar medidas de organização mais severas, achava que se devia ir aos poucos. Em relação aos três membros do Comitê Central, concordava que deveriam ser expulsos pelas razões expostas no informe da Comissão Executiva.

Rui reclamou que a estanqueidade e o sistema de contatos verticais torna-riam ainda mais difícil o exercício da democracia interna, acentuariam o centralis-mo e o domínio da direção sobre o conjunto do partido.

– Esse negócio de autonomia para os organismos atuarem por sua conta e risco não dá certo. Para isso seria preciso que os militantes tivessem uma educação política acentuada, alta consciência, o que não acontece em geral. Isso pode até sal-var organismos e militantes, mas vai diluí-los no movimento de massa, no máximo conseguindo que eles se igualem às lideranças espontâneas.

Defendeu com ardor a necessidade de a direção manter um controle estrito sobre o conjunto do partido, de modo a garantir a unidade da linha política e as-segurar a preparação da luta armada. Até concordava com a ideia de fazer o partido fingir-se de morto, para não chamar a atenção da repressão, mas achava impossível impedir todo e qualquer tipo de propaganda e agitação.

Para ele, o problema das quedas e da falta de estrutura pessoal para suportar a tortura era relacionado com a educação e a firmeza ideológicas e não com a estru-

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tura de organização. Seria necessário, ponderou, realizar um trabalho ideológico mais intenso e estimular os companheiros a enfrentar os torturadores, ao invés de capitular e aceitar todas as suas imposições. Zé Duarte é o exemplo a ser seguido. Concluiu que os três capitularam e deviam ser expulsos com desonra.

Jota concordava com a proposta da comissão de organização. – Afinal, essa é a linha organizativa e conspirativa que adotamos no Ara-

guaia. Mesmo assim, estamos arriscados a cair, como aconteceu lá. Isso mostra como nossa avaliação deve ser mais cuidadosa, pois mesmo tendo uma linha cor-reta, pode-se cometer erros em sua aplicação e sofrer derrotas sérias. Há muito o partido nas cidades deveria haver adotado essa linha e é pena que só à custa de muitas vidas a gente agora esteja sendo obrigado a colocá-la em prática.

– É preciso que os militantes entendam bem o que é trabalho legal e traba-lho ilegal. Não dá para misturar os dois. Quem faz trabalho legal não deve fazer trabalho ilegal e vice-versa. Quem está no trabalho legal não deve fazer propagan-da e agitação partidária, uma atividade ilegal. E quem está no trabalho ilegal pode e deve fazer trabalho de propaganda e agitação do partido, desde que seja realizado com cuidado e segurança. Se soubermos realizar bem essa combinação, haverá menos casos de quedas, mas não dá para acabar totalmente com essa atividade partidária. A bandeira do partido deve continuar desfraldada, para que a massa saiba que estamos presentes e lutando.

Jota estendeu-se ainda em considerações sobre o trabalho ideológico, con-cordando que ele era essencial para suportar a tortura e evitar novas quedas no caso de camaradas presos.

Evaristo começou concordando com a opinião de que era preciso enfrentar a repressão de forma ativa, mesmo quando preso. Era preciso fazer com que os torturadores sentissem que enfrentavam gente firme. Mas achava necessário, por outro lado, adotar medidas organizativas que ajudassem o partido a evitar os gol-pes da repressão.

– Só ideologia não resolve o problema. O que adianta ter companheiros firmes, se estiverem presos e torturados e impossibilitados de realizar trabalho po-lítico entre as massas? Será um monte de heróis inúteis. A estrutura de organização deve se adaptar às condições de luta impostas pela ditadura. Não há contradição entre ter ideologia e ter uma organização que evite as prisões. É preciso ter as duas coisas. Mais, essa linha de organização, no meu entendimento, tem um compo-nente importante que se distingue, como a água do vinho, da linha do Araguaia.

– Ela pressupõe substituir o trabalho de propaganda e agitação que temos realizado até agora, voltado quase exclusivamente para os militantes e simpati-zantes, por um trabalho de massas que tome como eixo a ligação estreita com essas massas, suas reivindicações, suas formas próprias de luta. Nossa propagan-da e agitação devem subordinar-se a esse eixo. Não se trata apenas de saber se-

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parar o trabalho legal do trabalho ilegal. Trata-se fundamentalmente de realizar o trabalho legal e o trabalho ilegal em função da atividade de massas, ao mesmo tempo que se adotam medidas de organização que dificultem à ação repressiva identificar a atuação partidária.

Valdir aproveitou a deixa de Evaristo para reiterar a distinção entre o traba-lho organizativo e conspirativo do Araguaia, desligado de um trabalho de massas, e o trabalho organizativo do documento de fevereiro, que destinava-se justamente a fazer com que o partido, ao mesmo tempo que procurava se guardar dos ataques repressivos, mergulhasse no trabalho de massas.

– Nesse sentido, acho que é preciso fazer distinção não só entre o trabalho legal, isto é, a atuação nos sindicatos, nas associações de bairro e em outras orga-nizações de massa, e o trabalho ilegal, ou seja, a atuação partidária interna, com suas reuniões, discussões, contatos e suas agitações e propaganda, mas também entre o trabalho aberto e o trabalho secreto. No trabalho legal, os comunistas e revolucionários não aparecem com sua face política, enquanto no trabalho aberto eles descobrem essa face política para as massas.

No Araguaia, antes do ataque das Forças Armadas, os membros dos desta-camentos faziam um trabalho legal muito reduzido, assim como se mantinham estritamente dentro do trabalho ilegal, evitando inclusive qualquer tipo de agi-tação e propaganda. Após o ataque, eles passaram diretamente para um trabalho aberto e totalmente ilegal, abandonando qualquer possibilidade de um trabalho legal de massas. Quem continuou fazendo isso foi a Igreja, apesar das dificuldades. Já o trabalho secreto, embora seja ilegal, se distingue deste tipo de trabalho e do trabalho aberto, porque as ações que ele comporta também não permitem um trabalho legal de massas. É o caso do trabalho de informações e do trabalho de direção partidária, por exemplo. Saber combinar adequadamente esses diferentes tipos de trabalho organizativo, nas condições de clandestinidade em que vivemos, é a única maneira de sobreviver e crescer. Sem isso, o resto não passará de ilusão.

Valdir encerrou abruptamente sua exposição. Maria disse que concordava com as opiniões de Jota, também concordava com a proposta de que os três de-veriam mesmo ser expulsos e se absteve de fazer outras considerações. Jorge tam-bém disse não pretender se alongar mais sobre o assunto: estava de acordo com o informe da Comissão Executiva e com os acréscimos feitos por Evaristo e Valdir.

– Em algumas áreas camponesas, acrescentou, fomos obrigados a adotar essas formas de trabalho por exigência da própria situação. Então, o importan-te agora é generalizar essas experiências e estimular as organizações do partido a aprenderem a andar por seus próprios pés, sem precisar de feitores que as estejam açoitando para que cumpram suas tarefas políticas.

Mário disse que retomava um pouco de sua intervenção na Comissão Executiva.

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– O camarada Rui tem alguma razão quando alerta para o perigo do cen-tralismo exagerado. Mas temos que entender que estamos em guerra e até agora não surgiu experiência nem ideia melhor para preservar e reconstruir o partido nas duras condições da ditadura militar. Por outro lado, ele também se insurge contra o perigo do democratismo exagerado e não tem confiança de que as organizações do partido possam agir com autonomia. Assim, estamos cercados por dois perigos opostos, que devemos enfrentar com consciência por falta de outras opções.

Disse ainda que se associava aos que não viam semelhança entre a linha organizativa do Araguaia e a linha adotada em fevereiro.

– No Araguaia, a organização partidária foi preparada para enfrentar dire-tamente as forças militares da ditadura, uma concepção totalmente alheia a nos-sos fundamentos teóricos. O trabalho de massa desenvolvido pelos destacamentos tinha como objetivo apenas tornar seus membros amigos das massas. Não levava em conta a necessidade de fazer com que as próprias massas vivessem a experiência da luta, se organizassem e ganhassem consciência da justeza do caminho de luta armada proposto. Achava que, sendo amigos das massas, os comunistas teriam condições de abordá-las e levá-las a se incorporar à luta. Como sabemos, isso não podia dar certo, como não deu.

– A linha organizativa que estamos tentando implementar neste momen-to, ao contrário, orienta os comunistas a se incorporarem às organizações e às lutas das próprias massas, confundindo-se e marchando com elas. Os comu-nistas não devem substituir as massas, lutando sozinhos. E, para ser franco, seremos estúpidos se continuarmos, com nossa propaganda e agitação, tentando aparentar mais força do que temos e chamando o inimigo contra nós. Precisa-mos parar com isso. Nossos militantes devem combinar bem seu trabalho legal, nas organizações de massa, com seu trabalho partidário ilegal, reduzindo este ao mínimo indispensável. E em hipótese alguma devem realizar trabalho aberto. Nosso partido só poderá se destacar quando tiver realmente força, quando o movimento de massas estiver em claro ascenso e o inimigo não mais puder gol-peá-lo. E nossas direções devem aprender a realizar um trabalho secreto compe-tente. Tudo isso, infelizmente, é o contrário do que se realizou no Araguaia. O básico em nossa linha organizativa atual é o trabalho de massas. Só poderemos realizar o resto se conseguirmos superar nosso atraso nesse terreno.

Mário terminou sua fala perguntando se mais alguém desejaria retomar a palavra. Ninguém se manifestou. Considerou que as intervenções apontavam di-vergências localizadas em torno da linha de organização, que deveriam ser tratadas no curso das atividades do partido, e unanimidade em torno da expulsão dos três membros do Comitê Central. Também considerou que a expulsão deveria ser pública, já que eles haviam confessado sua condição de membros do CC e a publicação de seus nomes verdadeiros não lhes traria qualquer novo prejuízo. De

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qualquer modo, como essa foi uma questão passada por alto em todas as inter-venções, julgava necessário perguntar se alguém se opunha à medida. Ninguém se opôs. Mário deu então por encerrada a reunião.

Eram pouco mais de seis da tarde. A primeira turma deveria sair às oito, depois do jantar. Maria pediu que os que iam sair naquela noite arrumassem logo seus pertences. Mário chamou Valdir para conversarem um pouco antes do jantar. Pediu-lhe os pontos de Ana (Rioco) e de Aristeu (Rogério lustosa), que deveriam se integrar ao trabalho na região norte, e também que ele anotasse num papel o endereço de Rosiris, para que Arroyo a procurasse. Quando os recebeu, guardou--os no bolso da camisa.

Valdir queria saber como ele realmente via o andar das coisas. – Houve um avanço grande nesta reunião, respondeu. A maioria já está

compreendendo que a linha do Araguaia foi um erro. Mas precisamos ter cuidado para não jogar fora o tributo que os companheiros pagaram lá. Essa é uma dificul-dade no processo de avaliação. Não foi um simples erro político, que levou as mas-sas a se afastarem de nós, como ocorreu em outros momentos de nossa história, e pronto. Neste caso, é até mais fácil dizer que esteve tudo errado.

– No Araguaia, porém, o erro pagou um alto tributo de sangue. Um san-gue generoso. Então, a avaliação torna-se mais difícil, envolve sentimentos mais complexos, que não se deve desprezar. Arroyo, na verdade, sente-se culpado por não haver morrido junto com os demais e perdeu qualquer condição de tratar do assunto friamente. Cid acha que é sua honra e sua direção que estão em causa. Andou fazendo contatos perigosos com vistas a uma possível luta interna e fez inúmeras concessões ao Rui para ter o apoio dele.

– Isso pode causar um estrago grande se não houver cuidado no processo de discussão. Tive uma conversa longa com ele antes da viagem, e quando ele voltar vamos ver o que é possível fazer. Pode chegar o momento em que será necessário enquadrá-lo. Mas também tem o caso do Rui. Ele ficou sumido vários meses. Aca-baram fazendo o ponto com ele para essa reunião, na esperança de haver mais um apoiando a continuidade da linha do Araguaia. Chegou dizendo que havia ido a todos os pontos, que sobreviveu fazendo livros pornográficos e que está seguro no Rio. Isso tudo está me cheirando muito mal.

– Achas que há algum perigo sério?, perguntou Valdir. – Para ser franco, acho que estamos por um fio. Ou tomamos medidas sérias

de segurança, ou caímos todos. Acho que deves te cuidar ainda mais. Quando volta-res, reforça todos os teus cuidados, diminui os contatos, estuda formas de controlar as atividades de longe. Tens que levar em conta que só sobramos nós e a repressão deve estar toda concentrada para nos descobrir. E, se conseguirem, não há salvação.

Ainda conversaram algum tempo sobre questões de ordem prática. Depois, Mário ainda aproveitou o tempo para tomar um banho antes do jantar. Despediu-se

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de Evaristo e Valdir, os dois primeiros a sair. Mais tarde despediu-se também de Zé Antonio e Dias e permaneceu um tempo conversando com Jorge, Rui e Jota na sala. Rui e Jorge sairiam na madrugada do dia seguinte e foram dormir antes das dez. Mário aproveitou também para dormir. Estava cansado.

Ignorava, como quase todos os demais, que no dia 10 de dezembro o chefe do Estado-Maior do II Exército enviara à Secretaria de Segurança Pública de São Paulo um ofício informando sobre uma reunião no bairro paulistano da lapa, na qual estariam presentes Pedro Pomar e Ângelo Arroyo. E que no dia 14, véspera daquele em que estavam, o mesmo militar enviara outro ofício àquela Secretaria de Segurança, instando-a a desviar o trânsito da rua Pio XI, na data e no horário previstos para a invasão do local daquela reunião.

Quando acordou, na manhã seguinte, não mais encontrou Rui e Jorge. Jaques e Maria haviam saído para deixá-los e deveriam retornar logo. Essa era a rotina de muitos anos, nas reuniões em que Rui participava. Sempre saía de ma-drugada, para retornar ao Rio de Janeiro com a ajuda de uns contatos que tinha em Campinas. Desta vez, Jorge tinha aproveitado a ocasião para também sair pela manhã, evitando ter que dormir em algum hotel para pegar o ônibus que o levaria à Bahia. Depois de lavar o rosto e escovar os dentes, Mário foi tomar seu costu-meiro cafezinho e voltou para a sala, esperando que Jota acabasse seu banho para tomarem café da manhã juntos.

Nesse mesmo momento, em plena avenida Faria lima, perto da rua Pi-nheiros, o carro com Jaques e Maria estava sendo abordado por vários veículos carregando policiais. Jaques havia notado que estava sendo seguido, avisara os companheiros, teve certeza de que havia se safado, e deixara Rui e Jorge não muito longe dali. Maria não quis saltar, para voltar com ele e avisar os companheiros da casa. Mas a ilusão de que haviam se livrado durara pouco. E Jaques ainda pôde ouvir quando um dos policiais falou em seu rádio portátil:

– Tudo limpo, pode tocar a operação! Mário mal sentou-se para aguardar Jota e ouviu o espoucar dos tiros de

metralhadoras e das escopetas calibre 12, misturando-se ao som ensurdecedor de vidros quebrados e rebocos caindo das paredes e do teto, atingidos pelas balas. Não teve dúvidas. levantou-se rápido e dirigiu-se para o quarto, na esperança de destruir documentos. Mal teve tempo de ouvir Arroyo perguntar, saindo do ba-nheiro, “O que é isso?”. Ele próprio só conseguiu dizer “Desgraça, nos pegaram!”, antes de cair varado por tiros no peito, nos braços e nas pernas.

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26 HAVEIS DE SER SEMPRE O QUE SOIS

Meus novos cantos já não ouvirãoOs que me ouviram os primeiros versos;

Desfeito, ah! se acha o grupo amigo, irmão, Ecos de outrora estão no nada imersos.

Meu canto soa à ignota multidão, Seu próprio aplauso ecoa em sons adversos,

E o mais, que a minha lira amara, erra, Se vivo for, esparso sobre a terra.

J. W. goethe (Fausto)

1976 e depois, Brasil: tudo muda

Eram cerca de sete horas da manhã do dia 16 de dezembro de 1976, quando Mário, ou melhor, Pedro Pomar, sem sequer saber em que bairro de São Paulo se encontrava, tombou assassinado aos 63 anos, pelo forte dispositivo policial-militar que desde o dia 11 de dezembro cercara a casa onde haviam se reunido a Comissão Executiva e o Comitê Central do PCdoB, na rua Pio XI, na lapa. Jota (Ângelo Arroyo) também foi assassinado, recebendo um balaço que estourou seu crânio. Mara (Maria Trindade) foi presa, sendo salva por um desses milagres da vida.

Maria (Elza Monnerat) e Jaques (Joaquim Celso de lima) também foram capturados, longe dali, na avenida Faria lima, após safarem-se momentaneamente da perseguição policial e deixarem Rui (Jover Teles) e Jorge (José gomes Novaes) a salvo. A essa altura, Evaristo (João Batista Franco Drumond) já tinha morrido no DOI da rua Tutóia, enquanto Valdir (Wladimir Pomar) e Dias (Aldo Arantes) se encontravam presos lá, desde a noite anterior. Quase no mesmo momento em que a casa da Rua Pio XI era invadida, Zé Antonio (Haroldo lima) foi preso em sua própria casa, após ser seguido, também na noite anterior, sem notar.

Aproximadamente ao meio-dia daquele mesmo dia 16, o cônsul norte-ame-ricano em São Paulo, Frederic Chapin, entrou desabalado na casa do arcebispo católico de São Paulo, cardeal Dom Paulo Evaristo Arns. Comunicou a ele que seu

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consulado sabia daquela reunião há dias, mas não esperava que, sob o comando do general Dilermando gomes Monteiro, “acontecesse o que aconteceu”. E instou o cardeal a realizar gestões para salvar os presos, pois considerava que eles corriam risco de vida.

Cerca de três horas antes de o cônsul Chapin procurar o cardeal Arns, por volta das 21 horas em Pequim, João Amazonas e Renato Rabelo conversavam com Amarílio Vasconcelos e Rachel Cossoi quando os camaradas chineses lhes comu-nicaram haver recebido notícias publicadas no Brasil acerca da queda do Comitê Central do PCdoB numa casa situada no bairro da lapa, em São Paulo. Amarílio contou que Amazonas só fez um comentário:

– Foi liberalismo do Pomar alugar aquela casa! Na manhã seguinte, dia 17 de dezembro, o Comitê Central do Partido Co-

munista da China emitiu um comunicado público, protestando contra as mortes dos camaradas e amigos do Partido Comunista do Brasil. O governo militar brasi-leiro se sentiu ultrajado e protestou junto ao governo chinês pela nota pública do PCCh. Foi preciso que a chancelaria chinesa explicasse à brasileira que o PCCh, embora no poder, não podia ser confundido com o Estado chinês, que não emitira nota alguma.

Os noticiários e os jornais dos dias 16 e 17 de dezembro deram ampla cobertura ao “estouro” do “aparelho comunista” da lapa, à morte, “em tiroteio” e “por atropelamento”, de três dirigentes do PCdoB, e à prisão de outros seis in-tegrantes “daquela organização subversiva”. Dez dias depois, após ter conseguido entrevistar-se com Aldo Arantes, seu advogado denunciou publicamente que seu cliente estava sofrendo torturas. Os jornais publicaram as denúncias e as negativas do coronel Erasmo Dias, secretário de Segurança do Estado de São Paulo.

Em vários países europeus, especialmente em Portugal e na França, ocorre-ram manifestações de protesto contra mais esse crime da ditadura militar brasilei-ra, mas no Brasil mesmo as reações foram limitadas. As próprias forças políticas de oposição ao regime militar pareciam fazer distinção entre o assassinato de co-munistas inocentes, que estavam trabalhando normalmente, e o de comunistas culpados, que viviam na clandestinidade e pregando a luta armada.

No início de 1977, um relatório do Centro de Informações do Exército (CIEx), referência RPI 12/76, foi anexado ao processo contra os presos da lapa, no qual é descrita a operação que levou os órgãos de repressão a descobrirem aquela reunião. Segundo o relatório, a atuação do PCdoB no Rio de Janeiro fora progressivamente neutralizada desde 1971. A continuidade das investigações e o conhecimento da estrutura e atuação do Partido teriam levado o DOI-Codi do I Exército ao levantamento da possibilidade de localização de Elza de lima Monne-rat (Maria), em São Paulo, centro da subversão no Brasil, onde se concentraria o comando da maioria das organizações subversivas brasileiras.

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O relatório prosseguiu dizendo que, em operação conjunta, os DOI-Codi dos I e II Exércitos localizaram Elza e passaram a acompanhar suas atividades. Sa-biam que ela era a responsável pelo “aparelho” do partido e a encarregada de levar para as reuniões os militantes da Comissão Executiva e do Comitê Central. No dia 11 de dezembro, em um carro Corcel dirigido por um motorista, Elza passara a transportar militantes para a casa de nº 767, da rua Pio XI, lapa.

No dia 13, outros militantes foram conduzidos para a casa. Na noite do dia 15 para 16, Elza e o motorista saíram por três vezes no mesmo carro, conduzindo participantes da reunião. Na terceira viagem, Elza notou que estava sendo segui-da e, em dado momento, os dois passageiros que transportava desembarcaram e correram um para cada lado. Isto permitiu a fuga dos militantes identificados mais tarde como Manoel Jover Teles (Rui) e Ramiro de Deus Bonifácio [sic] (José gomes Novaes ou Jorge).

Em continuidade, o relatório do CIEx informou que foram presos na ocasião: Elza de lima Monnerat (Maria) e Joaquim Celso de lima (Jaques). Visando impedir a fuga de outros militantes, foi determinada a prisão dos que estavam sendo seguidos e dos que ainda se encontram no interior da casa. Ao tentar escapar, fora atropela-do por um automóvel, vindo a falecer, João Batista Franco Drummond (Evaristo). Foram presos: Wladimir V. T. Pomar (Valdir), Haroldo Borges Rodrigues lima (Zé Antônio) e Aldo da Silva Arantes (Dias). Cercada a casa, ao ser dada voz de prisão a seus ocupantes, estes reagiram utilizando armas de fogo. Do intenso tiroteio ocor-rido, resultara a morte dos seguintes subversivos: Ângelo Arroio [sic] (Aloisio, Jota) e Pedro V. F. A. Pomar (Mário). Foi presa na referida casa Maria Trindade (Mara).

Essas mortes e prisões devem ser acrescentadas aos 110 mortos “em com-bate” e aos 2.541 presos pelo DOI, listados na monografia “O Destacamento de Operações e Informações-DOI”, do major Freddie Perdigão Pereira. E a invasão à casa da lapa também deve estar incluída entre os 274 aparelhos, 376 oficinas e 6 gráficas estouradas por aquele órgão repressivo durante o regime militar. De qualquer modo, uma das singularidades do relatório do CIEx consistia em que ele parecia escrito por alguém que não participara diretamente de toda a operação e que não dominava totalmente o jargão policial militar da repressão, tendo certa-mente o objetivo de desinformar, ao invés de informar.

O coronel Erasmo Dias, então secretário de Segurança do Estado de São Paulo, foi provavelmente menos hipócrita ao justificar a matança da lapa, sob o comando do general Dilermando: para ele tratava-se de ajustar as contas com a organização que havia dado cinco anos de trabalho ao Exército nas matas do Pará. Para dar legitimidade à barbárie dos militares e policiais, o coronel espichava o período real dos combates no Araguaia, de dois para cinco anos.

Em fevereiro de 1977, já no presídio do Hipódromo, ao reconstituírem a queda do Comitê Central e confrontá-la com a versão do relatório do CIEx

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anexada ao processo, a maioria dos presos da lapa (Elza estava no presídio femi-nino) pôde comprovar que aquele relatório não correspondia aos fatos principais. E Wladimir sugeriu que, diante do esquema utilizado para a prisão dos membros do CC que saíram da reunião, dos fatos relatados por Joaquim sobre a perseguição ao carro e do que conhecia da dinâmica da reunião, fora Jover Teles que entregara a direção à repressão. O único ponto fraco de sua hipótese, admitiu Wladimir, seria Jover haver morrido como os demais que haviam sido assassinados. Se ele estivesse vivo, com certeza seria ele o autor da traição. Mas a certeza disso, só o tempo poderia trazer.

Ainda em 1977 e durante 1978, o movimento estudantil dera crescentes sinais de reorganização e enfrentamento contra o regime. Por outro lado, o movi-mento operário ressurgira com força, modificando rapidamente a conjuntura polí-tica e forçando a ditadura a recuar. O movimento popular, incluindo o movimen-to pela anistia política, tomava um vulto que a repressão não mais podia sufocar.

A burguesia, por seu turno, procurava dissociar-se dos militares e debatia-se na busca de um projeto político e econômico que substituísse o do regime militar. Abria-se, dessa maneira, a perspectiva real de dar fim ao regime militar e de transi-tar para um processo de democratização política, sem uma ruptura completa com o sistema burguês imperante.

Em outubro de 1978, na VII Conferência Nacional do PCdoB, realizada na Albânia, João Amazonas voltou a responsabilizar informalmente Pomar pelo libe-ralismo de haver alugado a casa da lapa e acusou os quatro membros do Comitê Central presos de “haverem falado tudo”. Com isso, conseguiu que a Conferência os destituísse sem sequer ouvi-los.

Essa Conferência também selou o rompimento do PCdoB com o PCCh, pela “virada revisionista” deste ao elaborar sua “teoria dos três mundos”. E avaliou que o Brasil marchava rapidamente para uma situação revolucionária, devendo o partido preparar-se mais celeremente para a guerra popular. Foi nessa ocasião que João Amazonas tornou-se secretário-geral, cargo que fora abolido desde a reorga-nização, em 1962.

Também em 1978 o PCB reapareceu, propondo prioridade à luta pela con-quista das liberdades democráticas, por meio da unidade das forças de oposição. Queria, segundo expressou, evitar que a classe operária se isolasse ou desempe-nhasse papel subordinado naquela luta. Mais adiante, a partir desse pressuposto, colocou-se frontalmente contra a organização do Partido dos Trabalhadores, que representaria o enfraquecimento do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), o guarda-chuva que considerava essencial para unificar todas as correntes contrá-rias ao regime militar.

Em janeiro de 1979, três dos membros do Comitê Central do PCdoB, pre-sos durante a queda da lapa, escreveram memoriais de protesto diante da decisão

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da VII Conferência, reportando sua conduta diante da repressão e colocando em xeque os critérios adotados para a análise de cada caso. Eles basicamente pergunta-vam: quem fora preso em consequência de suas prisões e de seus depoimentos? Ou que organismo do partido ou que movimento social fora prejudicado em virtude de suas prisões? Parecia evidente, para eles, que a decisão se baseara em informa-ções falsas e tivera motivações políticas ocultas.

De qualquer modo, em conformidade com o que fora decidido na VII Conferência Nacional do PCdoB, ainda em 1979 Diógenes Arruda participou da Conferência Internacional sobre a Anistia, em Roma, e continuou a repetir em bom som que os presos da lapa haviam “falado tudo” e que um dos membros do Comitê Central, “desaparecido” (Jover), certamente estaria morto.

Em abril de 1979, o jornal Movimento publicou a íntegra da opinião de Pedro Pomar sobre a guerrilha do Araguaia, seguida da publicação do relatório de Arroyo. Em junho, João Amazonas deu uma entrevista ao mesmo jornal, em Paris, declarando-se participante da guerrilha do Araguaia. Ao analisar a situação política do Brasil, asseverou que a ditadura brasileira tomava o caminho de se transformar em regime arbitrário de fachada democrática, mas restava “saber se nos conformamos com os projetos da reação e se não temos presente o amadure-cimento cada vez mais rápido das condições objetivas que conduzem o país a uma situação revolucionária”.

Repetiu, desse modo, a avaliação que apontava uma situação revolucionária no Brasil e, condizente com sua concepção de que o PCdoB era o único represen-tante legítimo da classe operária, encarou o surgimento do Partido dos Trabalha-dores como o de um partido reformista e social-democrata, destinado a trabalhar pela divisão daquela classe.

Quanto ao Araguaia, afirmou que a posição oficial do partido constava do documento “gloriosa Jornada de lutas”, aprovado pela Comissão Executiva em agosto de 1976. A VII Conferência havia aprovado esse documento como ponto de partida para a sistematização daquela experiência. Segundo Amazonas, os fatos sobre o apoio de massas à guerrilha falavam mais do que as palavras: um terço do Destacamento A era composto de filhos do lugar, assim como um quarto do des-tacamento B. Desse modo, talvez sem dar-se conta, de uma só penada desmentia os dados do relatório de Arroyo.

Ele assegurou também que os guerrilheiros mantiveram-se em armas por quase três anos, sem considerar que, de abril de 1972, quando foi desencadeada a primeira operação das forças armadas, até dezembro de 1973, quando as forças guerrilheiras perderam qualquer capacidade operacional, ou abril de 1974, quan-do parece haver morrido o Osvaldão, não haviam passado mais de dois anos. Além disso, curiosamente, concluiu que o “apoio à guerrilha foi bem maior do que se poderia esperar”, sem notar a esdrúxula contradição que tal pensamento encerrava.

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Quanto ao documento de Pomar, Amazonas jurou que “era um documento interno, para uma discussão que não houve por causa da repressão, onde Pomar morreu. Não se pode então dizer que esse documento seria a posição definitiva de Pomar (....) Não se pode saber a evolução do seu pensamento diante da discussão, que não houve, onde inclusive seriam apresentados relatórios importantes, como o de Ângelo Arroyo”. Em outras palavras, Amazonas esqueceu ou sequer deu im-portância ao fato de que Pomar morreu após a reunião e que, em seu documento crítico, fazia extensas referências justamente ao documento de Arroyo. Coisas da morte e da vida, que se há de fazer?

Em 28 de agosto de 1979 foi decretada a anistia, e em outubro daquele ano, já entronizado como um dos principais dirigentes do PCdoB, Diógenes Arruda retornou ao Brasil, repetindo, em entrevista à Folha de S. Paulo, a informação de que Jover Teles “certamente foi morto”. No entanto, à medida que Arruda foi es-tabelecendo contato com os membros do partido que estiveram presos e tomando conhecimento das versões reais sobre as discussões internas na Comissão Executiva e no Comitê Central, e dos fatos e hipóteses referentes à chacina da lapa, ele pró-prio foi se dando conta de que fora municiado com desinformações.

No dia 22 de novembro de 1979, após sua chegada ao Brasil, Amazonas e Arruda viajaram do Rio de Janeiro para São Paulo. Durante a curta viagem discu-tiram, de forma não muito amigável, segundo o testemunho de José Duarte, sobre os fatos novos a que Arruda tivera acesso. Ao se dirigirem do aeroporto para o local de estadia, Arruda sofreu um ataque cardíaco e morreu antes de chegar ao Hospital Santa Rita, no bairro da Vila Mariana, para onde fora levado.

Durante o velório, Wladimir Pomar encontrou José gomes Novaes e o avisou de que fora informado, por um amigo do Rio grande do Sul, de que Jover Teles estava são e salvo. Eloy Martins tinha se encontrado com Jover em pleno centro de Porto Alegre, onde a esposa tinha uma pequena loja comercial. Con-forme Wladimir disse a Novaes, para ele era a pedra que faltava para completar o quebra-cabeça da queda da lapa.

No dia 25 do mesmo mês, Amazonas se reuniu com José Duarte, Elza Monne-rat e José gomes Novaes para avaliar aquela queda. Amazonas reiterou a opinião de que ela se devera ao liberalismo de Pomar, que fora visto pegando um ônibus, de dia, em São Paulo, e visitava sua esposa doente no hospital. Embora não repetisse a versão da responsabilidade de Pomar pelo aluguel da casa, reiterou que ele deveria ser incri-minado como responsável pela queda, tendo em vista aquelas “novas” informações.

Duarte comunicou aos demais a opinião de Wladimir, quando ainda na prisão, de que fora Jover Teles o responsável. Novaes, por sua vez, num estilo bem camponês, disse achar muito grave a acusação para ser aceita, mas transmitiu a notícia de que Jover estava vivo e morando no Rio grande do Sul. Diante disso, Amazonas se viu obrigado a admitir que, “a partir daí, a coisa muda de figura”.

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Nesse mesmo período, ao retornarem do exílio, os dirigentes do PCB se envolveram numa acirrada luta interna, que colocou Prestes e outros em conflito aberto com o Comitê Central, agora tendo giocondo Dias como figu-ra de proa. Nessa ocasião, ao se declarar responsável direto pela segurança do secretário-geral durante os anos 1950, Dias desmentiu as alegações que Prestes utilizara, tanto no Pleno do Comitê Central, em 1957, quanto no V Congresso do partido, em 1960, segundo as quais teria ficado praticamente preso durante a clandestinidade.

Ao garantir que não tinha direito de se movimentar e fora inclusive impe-dido de viajar à URSS, Prestes chocara muitos dirigentes e militantes e os conven-cera a apoiá-lo na luta contra os “stalinistas” mandonistas, embora estes asseguras-sem que aquilo não era verdade. Na ocasião, Dias se calara e deixara que a versão de Prestes predominasse. Na ocasião, a “verdade” do mito era mais importante.

Em 1980 já não era. O que obrigou Prestes, logo depois, a tornar pública uma carta em que se insurgia contra a transformação do PCB em partido refor-mista, desprovido de caráter revolucionário e dócil aos objetivos ditatoriais. Reu-nido, o Comitê Central do PCB reafirmou a linha do VI Congresso como uma linha vitoriosa e declarou vaga a secretaria geral do partido.

Enquanto isso, depois de tentativas frustradas de ouvir Jover Teles, a Exe-cutiva do PCdoB recebeu, em março de 1980, um relatório nebuloso da lavra daquele antigo dirigente partidário, em que negava qualquer responsabilidade nos acontecimentos da lapa, mas fazia acusações de diferentes tipos ao parti-do e a Amazonas. Foi, então, expulso sumária e exclusivamente pelas questões ideológicas expendidas no relatório, e não por sua responsabilidade na queda do Comitê Central.

Nesse mesmo período, Amazonas conseguiu recompor sua hegemonia so-bre o Comitê Central, expulsando os divergentes que exigiam a continuidade da avaliação da guerrilha do Araguaia, com base na carta de Pomar, e a convocação de um congresso do partido. A partir daí, o PCdoB jogou no lixo, sem maiores explicações, sua avaliação da existência de uma situação revolucionária, colocou de lado qualquer perspectiva de luta armada e se integrou à campanha das Diretas Já.

Em fevereiro de 1983, durante o seu VI Congresso, mais de seis anos após a queda da lapa, aprovou um relatório responsabilizando Jover Teles pelos aconteci-mentos de então. Considerou-o traidor e o expulsou novamente do partido, agora por esse motivo. Quanto à guerra popular, voltou a reafirmar que a derrota do Araguaia se dera por insuficiências e desacertos de natureza estritamente militar. As críticas de Pomar não teriam pois procedência, mesmo porque, conforme afir-mação de um dirigente do PCdoB a Fernando Portela, “ele não foi guerrilheiro”.

O PCdoB já não tinha também mais motivos para apreciar a luta armada, até mesmo como passado. Não valia a pena mexer em feridas. Em 1984, apoiou a

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candidatura presidencial de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, sendo legalizado em 1985. Em 1986, elegeu cinco deputados à Constituinte e, em 1989, apoiou a candidatura lula à presidente.

Em 1990, ainda considerava que apenas a Albânia se mantinha fiel às ideias revolucionárias. Mas, com a crise do socialismo naquele país, rompeu com o Par-tido do Trabalho albanês e viu-se na contingência de iniciar, em 1992, a crítica a Stálin e o realinhamento com a China, o Vietnã, Cuba e Coreia do Norte, enquanto dava fim à teoria das duas etapas da revolução. Passou a lutar pelo so-cialismo, como objetivo estratégico, e contra o imperialismo e pela democracia e a independência nacional, como objetivos táticos.

O PCB, por seu turno, embora tenha considerado correta sua estratégia de luta contra a ditadura, jamais conseguiu entender como saiu do período totalmen-te esfrangalhado e, ao mesmo tempo, desconsiderado pelo resto da esquerda como partido de luta. A tal ponto que, em 1992, a maioria dos delegados ao congresso do partido aprovou sua autodissolução e a fundação de outro partido, com outro perfil, o Partido Popular Socialista (PPS). Talvez seja um dos únicos exemplos his-tóricos de um partido político que, ao comprovar a suposta justeza de sua política, extingue-se na mediocridade.

É verdade que o PCB ressurgiu mais uma vez, por meio de uma fração dissi-dente, que não aceitou a dissolução e se mantém fiel a alguns dos preceitos que lhe deram origem em 1922. Mas não recuperou, nem de longe, a influência do antigo partido, seja quando esteve unificado sob o mito prestista, seja quando teve início seu processo de desagregação, no final dos anos 1950 e princípios dos anos 1960.

Quanto a Prestes, morreu ainda assistindo à divisão do movimento comu-nista brasileiro em dois partidos, com a singularidade, como disse João Falcão, de não pertencer a nenhum deles. Morreu após ver seu mito se esfacelar contra as rochas da realidade social e política. E, muito provavelmente, sem haver com-preendido seu próprio papel, tanto nos momentos de ascensão política quanto no longo e penoso penhascal pelo qual conduziu a si próprio e ao PCB, esbatendo-se.

Quanto a Pomar, durante as duas décadas finais do século XX, para todos os efeitos historiográficos, os órgãos de imprensa e muitas das forças que lutaram contra a ditadura passaram a considerar os assassinatos de Vladimir Herzog e Ma-noel Fiel Filho como os últimos do período ditatorial, ignorando totalmente o massacre da lapa, e seu assassinato, juntamente com o de Arroyo e Drummond. Nem mesmo o PCdoB se importou em protestar, com a merecida veemência, contra essa distorção histórica.

Esse partido, a quem Pomar dedicou grande parte dos seus melhores esfor-ços e de sua experiência, também não parece haver chegado a qualquer conclusão, pelo menos pública, quanto à responsabilidade sobre o ponto entregue por Zecão (Sérgio Miranda) a Jover Teles.

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Afinal, foi esse ato – que causou irritação a Pomar e o levou a dar “uma bronca” em Zecão – que possibilitou a Jover não só comparecer à reunião da lapa, em dezembro de 1976, como ajudar os órgãos repressivos do regime militar a elaborar um minucioso plano de assassinato seletivo de alguns dos principais diri-gentes daquele partido. E, independentemente das versões de Amazonas, truncar todo seu processo de avaliação histórica, que tinha como fulcro a experiência de luta no Araguaia.

Felipe Cossio Pomar sobreviveu ao filho, morrendo em lima, Peru, apenas em 1981, com 92 anos, após voltar do México e radicar-se novamente em Piura, sua terra natal. Catharina também sobreviveu nove anos ao massacre da lapa. Foi minguando devagar, como uma fruta que vai perdendo seu sumo e seu brilho, ao ser arrancada da árvore que a nutria, e deixada ao vento e ao tempo. Mas ainda teve forças para ir ao cemitério de Perus, depois que sua nora localizou a cova rasa em que Pomar fora enterrado.

– O que fizeram contigo, meu amor?, balbuciou. Dessa vez, apesar da recomendação médica, ela não conseguiu conter os so-

luços, nem as lágrimas da dor, ao colocar uma lápide simples sobre a terra em que jazia seu íntimo companheiro de mais de quarenta anos. Os restos de ambos estão no cemitério de Santa Isabel, em Belém, para onde foram trasladados.

Para os comunistas brasileiros, onde quer que estejam, espalhados pelo Par-tido dos Trabalhadores, ou nos partidos comunistas ainda existentes, muitas das ideias esposadas por Pomar talvez continuem vivas. Elas parecem não haver fene-cido, mesmo após as viragens na situação brasileira, as mudanças sem explicações nas posturas do PCdoB, o fim do mito prestista, a derrocada do socialismo na Europa do leste, a dissolução do PCB e a avalanche destruidora do capitalismo neoliberal. Ou, muito provavelmente, justamente por tudo isso.

Como predicava Pomar, os trabalhadores parecem continuar tendo necessi-dade de um forte partido que os represente. Especialmente um partido de massa, cuja política tenha sua justeza comprovada, não só ao ser aceita e ser tomada pelas grandes massas do povo como a sua própria política, mas também pelo fato de essas massas se lançarem à luta por sua realização. Sem essa comprovação da prá-tica da vida, talvez nenhum dos partidos que se propõem a representar os traba-lhadores possa se assenhorear dessa condição. Ou, como ele dizia, não pode haver vanguarda sem massas de milhões que lhe deem suporte.

Por outro lado, o marxismo, quase liquidado, seja pelos comunistas, so-cialistas e outras correntes, que o tomaram como um sistema fechado de pensa-mento, seja por seus inimigos, que o abominavam como antagonista imprestável, mas mortal, renasceu em virtude da pujança do próprio capitalismo, momenta-neamente vitorioso na luta global por sua eterna conservação e em sua tentativa insana de deter a história.

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E está ressurgindo, mais do que nunca, ligado à riqueza cultural amealha-da pela humanidade durante sua história, nutrindo-se dessa cultura, como parte do processo de evolução do conhecimento. Torna-se assim, mais uma vez, um instrumento ímpar para analisar, com senso crítico, a realidade do atual mundo capitalista globalizado e das massas que com ele convivem, e para descobrir seus caminhos concretos de desenvolvimento, como supunha Pomar.

Também presente permanece a necessidade de analisar o desenvolvimento histórico do capitalismo no Brasil, de modo a ter mais claros os aliados e os inimi-gos; de não dissimular os antagonismos de classe e ter como parâmetro de orienta-ção os interesses fundamentais da classe operária e do povo, povo aqui tomado em seu sentido restrito de massas populares.

Ou a necessidade de conquistar e consolidar a democracia e praticá-la no movimento de massas e na organização partidária, jamais sendo autoritário e to-mando como base a organização e a mobilização da classe operária e do povo. Tudo isso ainda faz parte do ideário de todos os que pretendem transformar a sociedade brasileira e vê-la livre dos estigmas da exploração e da opressão, como fazia parte das preocupações de Pomar, desde 1946, pelo menos.

E, como também naquele tempo, tudo isso permanece parte integrante da democracia, que não pode ser considerada sem a liberdade de criar e pensar. Como então, não se pode confundir literatura com propaganda política. Nem se deve deixar de admirar as obras de arte, mesmo que reflitam opiniões contrárias, da mesma forma que não se deve desrespeitar a intelectualidade que diverge.

Certamente, para muitos que conviveram com Pomar, é impossível esque-cer aquele rosto carinhoso sempre sorrindo. Aquele sorriso, mesmo nas horas mais graves, transmitia, e transmite ainda hoje, tantos anos passados, uma paz, uma calma, uma relação de amor com a vida que se tornou para eles o mais forte sím-bolo da sua personalidade.

Essas pessoas, companheiros, comunistas, ou simplesmente conhecidos e amigos, não conseguem relembrar o rosto do João, do Ângelo, do lino, do Mário, ou qualquer que seja o nome sob o qual Pomar se camuflava nos anos tenebrosos, sem aquele sorriso acolhedor. Mesmo quando criticava as reticências políticas de vários, os desvios ideológicos constantes de outros, o tatear na ação de alguns, ou os grandes e pequenos deslizes comportamentais de uns e outros, sempre o fazia com o largo sorriso de um amigo.

Finalmente, as crianças que, mesmo inconscientes de quem se tratava, co-nheceram Pomar naqueles tempos difíceis, hoje adultas, comunistas ou não, talvez jamais se esqueçam das balas, quaisquer balas, de menta, mel ou açúcar, que nunca esquecia de levar para elas. E muito menos daquele olhar sereno e doce, que as conquistava e as levava a ter vontade de apenas segurar sua mão e ficar em silêncio, somente em silêncio.

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Habeas-Data de Pedro Pomar

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Entrevistas e depoimentos obtidos para este livro

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Armênio guedes, São Paulo (2000). Carlos Alberto Ferrinho, Amparo (2001). Carlos Aveline, Porto Alegre (2001). Chaguita Pantoja, Óbidos (1998). Dantas Feitosa, Belém (1998). David Rosenberg, São Paulo (1998). Eloy Martins, Porto Alegre (2001). Haroldo Amaral de Souza, Santarém (1998). Haroldo Tavares da Silva, Óbidos (1998). João Augusto Picanço Farias, Óbidos (1998). João Oliveira, Belém (2001). Jorge lemos, louveira (2001). José Figueiredo, Belém (2001). José Figueiredo d’Assumpção, Belém (2001). Manoel Costa, Belo Horizonte (2000). Manuelina Araújo Aquino, Óbidos (1998). Maurício Caldeira Brant, Rio de Janeiro (2000). Olavo Marinho, Óbidos (1998). Orlandina Ferreira, Rio de Janeiro (2000). Oziel Martucelli, Rio de Janeiro (2000). Paulo André Barata, Belém (2000). Pery Araújo Filho, Belém (1998). Plínio de Arruda Sampaio, São Paulo (2000). Rachel da Rocha Pomar, Rio de Janeiro (2000). Rochele Ferreira Martucelli, Rio de Janeiro (2000).

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Pedro Pomar, uma vida em vermelho foi impresso pela ?????? para a Editora Fundação Perseu Abramo. A tiragem foi de 50 exemplares. O texto foi composto em Adobe

garamond Pro no corpo 11,5/13,8. A capa foi impressa em papel Supremo 250g e o miolo em papel Pólen Soft 80g

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PEDRO POMAR não era apenas um comunista revolucionário profissional, no sentido de que sua sobrevivência dependia do trabalho partidário e dos recursos pecuniários daí advindos, mas um ser humano que se dedicava completa e totalmente à pers-pectiva e à ação de transformar a sociedade e mudar as condi-ções de trabalho e de vida das classes que considerava explora-das e oprimidas pela burguesia e por o tras classes dominantes.

Nele, vida familiar e vida pessoal eram irremediavelmente subor-dinadas àquele profissionalismo especial, lampejos que emer-giam de sua vida comunista, mas que também estavam ilumina-dos por ela. Em Pomar não é possível distinguir um “lado político” e um “lado humano”.

Seu ser político era impregnado de humanismo: talvez por isso fosse tão apegado às obras de Goethe, Shakespeare e Marx, aos quais nada do que é humano era indiferente. E o ser humano de Pomar era um ser político, no qual chocavam-se, harmonizavam--se, dissolviam-se e amalgamavam-se as qualidades e defeitos de sua época, de seu povo e dos partidos em que militou por décadas – o PCB e o PCdoB.

Neste livro, Wladimir Pomar retrata, de forma por vezes surpre-endente, a vida do dirigente comunista nascido em Óbidos, no Pará, em 1913, e assassinado pelos órgãos de repressão do Exér-cito em 1976, numa casa do bairro da Lapa, em São Paulo.