wolff, francis. três figuras do discípulo na filosofia antiga

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  • 8/2/2019 Wolff, Francis. Trs figuras do discpulo na filosofia antiga

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    20. Sacksteder, W. Man the Artificer - Notes on Animals, Humans and

    Machines in Hobbes. In: Southern Journal of Philosophy, vol. XXII, n.

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    23. Shapin, S/Schaffer, S. Leviathan and the Air-Pump - Hobbes, Boyleand the Experimental Life. Prin~eton, Princeton University Press, 1985.

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    25. Teixeira, L. A Doutrina dos Modos de Perceprao e 0Problema da Abs-

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    Tres Figuras do D isc ipu lon a F i lo so fi a An t i g a

    Resumo: Este artigo examina tres figuras tipicas do discipulo na ftlosofia ~tiga: 0socn\.tico

    ("filho ciumento"), 0 epicurista ("doente curado, maspsitacista") e 0 aristotelico ("hermeneuta

    insatisfeito"). . .Palavras-ehave: ftlosofia antiga - mestre - discipulo - S6crates - epicurismo - anstotehsmo.

    Sabe-se que sucesso teve Socrates junto a j~ventude. ateniense. Sabe-se tambem que, por intermMio dele, a filosofia mtroduzm-se e.mAtenas~de onde ate entao fora mantida quase excluida, e como, a partlf dele, allbrilhou em numerosas escolas. Sabe-se enfim a resposta que dava Socrates

    aqueles que 0 acusavam. de, perve~er ~ juve.ntu~e e ~ntr~duzir na cidadenovos deuses estranhos: dlSClpulos,jamalS os bye; jamalS fUlmestre de quem

    quer que seja(l). Do mesmo modo, a quem, nunca se sab~, acusasse Gera~~

    Lebrun, ou a quem talvez ja 0 tenha mesmo acusado, visto s~u .suce~sojaantigo junto as jovens gera

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    efeito quem poderia gabar-se de ser discipulo de G. Lebrun? Ele e tido

    como urn mestre, frequentemente amado, as vezes vilipendiado como urnmestre, mas e sem discipulos e sem doutrina. Sem discipulo: ele teve alu-

    nos, que saDprofessores, que tern alunos, dos quais alguns serao professo-res. Que doutrina, portanto, teria ele tentado impor-Ihes? Nenhuma. Que

    mercadoria teria tentado importar e impor ajuventude demasiado ingenua?A historia da filosofia, quando muito, mas liberada de toda vocac;ao pararevelar verdades. "A tradic;ao se desdobra diante de nos, com seus conceitos

    manipulaveis e deformaveis ao bel-prazer do operador. Ela nada tern, por-tanto, a nos dizer... E-nos coneedida a liberdade de trabalhar sobre ostextose jogar com seu conteudo sem que seja preciso muito esforc;o para ouvir."(2)

    o que nos ensina, entao, este trabalho sobre os textos a proposito dafigura do mestre na historia da filosofia?

    Examinar-se-ao tres figuras do discipulo na filosofia antiga: 0socra-tieo, 0 epicurista, 0 aristotelico. Esta escolha e devida a dois tipos de consi-deraC;ao:a importancia "objetiva" destas tres correntes e 0 caniter tipico dasfiguras do discipulo que engendraram. Sem duvida e dificil comparar aimportancia de doutrinas enquanto tais, mas e facil avaliar por seus efeitosobjetivos a importancia de uma corrente ou de uma escola de pensamentoque descendem de urn mesmo mestre. Ora, de Socrates provem, diretamen-te, algumas das filosofias mais marc antes da historia (dentre as quais as dePlatao) e, indiretamente, quase todas as correntes filosoficas ulteriores. DeEpicuro provem uma doutrina que e sem duvida, de todas as doutrinas filo-soficas (ou seja, naoreligiosas), aquela que se conservou mais tempo intac-ta (0 estoicismo teve uma vida igualmente longa, mas a propria doutrina

    transformou-se a cada geraC;ao).Enfim, de Aristoteles provem 0conjuntode textos profanos mais lido e mais comentado de toda ahistoria dessesdois milenios ..Ao mesmo tempo, pareceu-me que ai tinhamos tres figurasde discipulos, de uma parte perfeitamente distintas (mesmo se existem cons-tantes entre elas) e de outra parte inteiramente tipieas, e nao somente nahistoria da filosofia, mas talvez tipicas de toda relayao mestre/discipulo(3).

    Esgotam estas tres figuras todos os tipos possiveis, a ponto de que todos osdiscipulos reais deveriam, como penso, alinhar-se em ultima analise numadessa tres figuras? Ou ha . outras eompletamente irredutiveis a estas tres?

    Comecemos por caracterizar d:d~~~ ~~~~~~c~~nod~e~~::~~~s~~~~~~

    tica cada uma desta! figuras1

    ,.colocao mestre e a contradic;ao que define esse10 0 modo de relac;aoque 0 Igava a

    d;stin~ ~:::tt::~al~odiscipulo cujo destino consiste em criar umfiadou~i~~. b utoridade do nome do mestre e em lxar e 1

    p~t~priaa~~:~npd~:~o~osr::u~lo que devia pessoalmente a? mestre, mastqu~nt Ivame " te A relac;ao que 0 llgava ao mes re e

    o mestr1e~aot,>~~~~z~~~~e~~l~~~l; socratico desenvolve por sua conta

    uma r e ac;ao e . 1 - pessoal que 0 ligava ao mestr e escre-apos a morte do m~stre es.ta re ayaouilo ue devia ao mestre; fazendo issovendo e portanto Sistematlzando aq q rtanto dizem 0

    d' , los que fazem 0 mesmo e, po ,ele se choca com os con ISCIPUd' - 0 outro discipulo. Seu destino e liga-

    contnrrio. Ele edn.c~ntrdaan~~np~~e;~~o~zerlegitimamente discipulo do mestredo a esta contra lliao e .

    _ d' - d negar que os outros 0seJam. . .. .senao com a c~n_Ic;ao ~ '. 0 'curista e 0 discipulo que seu destlllO.

    Em Oposlc;a~,.0epIc.?nst~er ne!daacrescentar nada eliminar a letra jacon~ena, ao contrano, a n~o POelomestre e que, portanto, so pode repeti-la.escnta de uma vez por to as p '., d d ente com 0 medico que 0 curou.

    - r va ao mestre e a 0 0A relac;a~que ~ Iga " osi ao de discipulo que reencontra a contra-Fazendo ISS0,e_na suaprop~a p t C; born discipulo senao repetindo 0

    dic;ao; se ~le nao pode fin~ m,e~l~ss~n~:se fazendo ele mesmo um mestre,mestre, nao pode ser um dlSCIP . _ d medico que 0 mestre ocupava para

    ocupanddopat~au:nll,OgUatdroo:::ti~~~:r~di~ao de nao poder ser discipulo senaoele. Seu es 1110e

    se fazendo mest~e, , / f hi 0 aristot6lico. 0aristotelico e 0

    Entre ~ eplcu~lsta e 0 .socr:~c~~ uadrinhar ao infinito aquilo que0

    discipulo cUJodestm? consl~te '. q seu comentario de totalizar, de

    mestre pode q~erer dizer e nao te~~~ p~~0 ligava ao mestre nao e direta,

    a~abar os escntos fO me~,tre:.~;~s t~xto~ deixados pelo mestre; entretanto,VISto que pas,sa pe a me la

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    mestre, cujas tensoes ou ambigiiidade san inultrapassaveis e condenam suaempreitada ao recome90 infinito.

    . VeJamos isso de mais perto: ~s s~craticos, irmaos orfios dilacerados;o eplc~sta, doente curado mas pSltaclsta; e 0 aristotelico, hermeneuta in-satlsfelto.

    .A primeir~ :?gura do,discipulo que nos e oferecida e ao mesmo tempoa maiS problematlca. El.ae talvez, num outro sentido, a mais emblematica.

    . S.abe-se_que a ~alOr parte das doutrinas filosoficas que nasceram naAnhgUldade san c~nslderadas como os diferentes ramos de um mesmo tronco

    tendo p~r nome Socrates. Desde a morte de Socrates, com efeito, seus anti-g.osou,:~ntesse puseram a escrever em seu nome segundo um genero litera-no, 0 dlalogo soc:at~co - dos quais nos chegaram apenas as obras de Platao

    e .Xe~ofonte e.ra::sslmos fragmentos dos dialogos de Esquino de Sphettos,dlto 0 so~ratlco , que escre~~u sete, ao que parece, dos de Fedon de Elisou de Anhstenes. Cada qual a1lllvocava e ai defendia a memoria do mestrepretendendo restituir a letra das conversas de Socrates com seus interlocu~

    tores. Mas ao ~esmo tempo, paralelamente a este gesto que fixava a fala domestre no escnto (um e~crito que alias se avan9ava mascarado por detras do

    arreme?o da palavra VIva do me~tre, 0dialogo), cada qual instituia, pelafund~ao de urna escola, a tr~nSmiSSaOdo unico ensino autentico e legitimodesta palavra do me.stre. Platao funda em Atenas a Academia, Aristipo fun-

    da,urna escola ~m Clr~na, ~edon funda uma em Elis, Euclides uma outra emMeg.ara, e Anttstenes Inspua 0movimento dos Cinicos. Cada escola se pre-

    t~n?Ia bem seguramente a unica depositaria legitima de um testamento es-

    plnt.ual q.~e ~ mestre nao deixara e e por que uma das func;oes naoneglIgenciavels dos diaIogos socraticos era oferecer urn artificio literariocomodo para as refutac;oes, callinias e excomunhoes divers as que os herdei-

    r~s se lan9avam ~u~ame~te~ cada qual entre eles podia colocar na boca deSocrates su;aspropnas posI90es e nas dos interlocutores que Socrates refu-tava as poslc;oes de seus rivais socraticos.

    A questao classica e saber como tudo isso e possive!. Pois 0historia-dor, talvez nisso mais ingenuo que 0 psicanalista, espanta-se que filhos taodissemelhantes e frequentemente antagonistas tenham podido se reclamarde urn mesmo pal. Como puderam se dizer socraticos ao mesmo titulo eaparentemente segundo os mesmos direitos 0 ascetismo de Antistenes e 0

    hedonismo de urn Aristipo(4),0 logicismo de um Euclides e 0"idealismo"de um Platao? .

    Do mesmo modo que se fala de paradoxo socratico a proposito da

    filosofia moral de Socrates, talvez seja permitido falar do paradoxa do so-cratico a proposito do discipulo de Socrates. Este paradoxa definira ao mes-mo tempo nossa primeira figura.

    Ha tres maneiras equivalentes de formula-Io.a primeiro aspecto do paradoxa do socratico reside apenas no fato de

    que haja discipulos. Alguns dentre os ouvintes de Socrates eram considera-dos seus discipulos(5). Ora, Socrates, quanta a ele, nao reconhece nenhumdiscipulo e se denega toda mestria(6).Ainda ai os textos sao desprovidos deambigiiidade(7): Socrates nao ve ern nenhum de seus ouvintes ou compa~nheiros de bando um discipulo no sentido verdadeiro do termo. Como por-tanto ser discipulo daquele que nao se quer mestre?

    Segundo aspecto do mesmo paradoxo. Ser discipulo, isto implica que

    se aprenda alguma coisa do mestre e que 0mestre tenha algo a ensinar, urncerto numero de doutrinas consideradas como verdadeiras que 0discipulodeve ele mesmo ter por verdadeiras depois de te-Ias compreendido, assimi-lado, retido. Ora, Socrates vai repetindo que nada sabe, que nao tem lic;aopara dar, que nada tem a oferecer senao sua "convivencia" (O'uvouO'ia)C8).

    Alias, ele nada escreve, nao fixa doutrina alguma que se possa ou devareter. Como ser urn discipulo sem disciplina, 0 discipulo de um mestre sem

    ensinamento?Terceiro aspecto do mesmo paradoxo. Ser discipulo nao e somente

    reconhecer-se um mestre a quem se deve aquilo que se e e urn corpo desaber ou de verdades que a ele se deve, mas alem disso reconhecer-se emoutros ever neles 0 produto do mesmo mestre e do mesmo ensinamento.Enfim, nao ha discipulos sem condiscipulos. Ora, eis que os chamados so-crMicos, longe de formar urna escola ou mesmo um grupo de pensamento,

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    tomam os caminhos mais diversos apos a morte do mestre, disputam entre

    si a heran~a, e se tomam por sua vez os mais antagonistas chefes de escolas.Como ser discipulo sem condiscipulos?

    Temos portanto um esquema do seguinte tipo: cada discurso do disci-

    pulo e definido por uma dupla relaltao de afirmaltao que se choca nos doiscasoscom sua nega

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    tiria com Euclides que 0bem e sempre identico a si e estaria de acordo com

    Platao sobre 0fato de que e uti! a cada coisa. Nao se pode mostrar aqui porque a teoria etica de Socrates poderia com efeito admitir cada uma dessas

    teses. Contentemo-nos em esc1arecer a diferenya entre as teses concedidaspelo mestre e as sustentadas pelos discipulos.

    As teses que Socrates aprovaria de cada um de seus discipulos (por

    exemplo, 0prazer e bom) nao saofundadoras de urna teoria etica. Pois nao

    existe tal fundamento em Socrates. Em compensayao, pode-se dizer quecada urn de nossos quatro fi1osofos faz de cada urna dessas teses (por exem-

    plo a tese: "0bem nao e outra coisa senao 0prazer") a tese fundadora de suaetica. Do discurso do mestre ao discurso do discipulo, as proposiyoes, porsimples inversao da posiyao do sujeito e do predicado na proposiyao defini-cional, mudam completamente de estatuto e de lugar na doutrina; eles se

    tornam os fundamentos primeiros, iniciais, axiomaticos de urna cadeia derazoes que deJa procede.

    Mas ao mesmo tempo, e por conseqiiencia, estas teses que podiamcoexistir no pensamento do mestre tornam-se contraditorias entre si na boca,

    ou antes sob 0estilete, dos diferentes discipulos. Pois pode-se afirmar a urnso tempo 0 valor do prazer e 0 da virtude sem se contradizer, pode-se a urnso tempo sustentar como verdadeiro que 0bem e tudo aquilo que e uno e

    tambem aquilo que preserva cada coisa - e e mesmo, de algurn modo, nesteconjunto coerente de teses que consiste a teoria socratica. Em compensa-yaO, torna-se perfeitamente contraditorio, e e ai que reside a contradiyao

    entre Aristipo e Antistenes, sustentar, por exemplo, que 0bem e e nao eoutra coisa senao 0prazer, ou que ele e e nao e outra coisa senao a virtude.

    Ve-se portanto como, sobre 0plano doutrinal, cada discipulo pode

    com todo 0direito pretender fundar sua propria doutrina sobre a palavra do

    mestre e ter por inabalavel que as dos outros discipulos que a contradizemtraem esta mesma palavra, sem que ela propria possa ser tida por incoeren-

    te. Ve-se tambem aquilo que, da palavra do mestre ao escrito dos discipu-

    los, se modifica: 0discipulo toma como objeto de sua propria doutrina a

    palavra do mestre, mas, pensando-a sabre 0modo da totalidade, ele faz

    desta palavra 0momenta de urna cadeia de verdades encadeadas entre si,dos primeiros principios ate suas ultimas conseqiiencias.

    Tal e, portanto, a primeira explicayao - doutrinal - que podemos dar

    do paradoxa do socratico, que reenvia e reproduz a relayao das diferentes

    doutrinas do mestre a palavra inicial do mestre.Mas 0 paradoxo do socratico pode reenviar ainda a urn segundo tipo

    de explicayao, 0modo de discursividade proprio a palavra do mestre. Ora,vamos constatar que a estrutura das relayoes dos discipulos com 0 mestrereproduz muito exatamente 0modo de enunciayao da palavra do mestre.

    Contentemo-nos, ainda aqui, com urn esboyo.Sabe-se que 0modo pelo qual Socrates se dirige a seus interlocutores

    (e portanto a cada um de nossos discipulos da primeira gerayao) e urn modooral que tem quatro caracteristicas.

    Primeiramente, este modo e dual: Socrates jamais se dirige aos ho-mens em geral ( e 0 que 0 opoe a maioria dos filosofos ulteriores), nemmesmo a seus concidad3.os (e 0que 0 opoe aos retores de seu tempo), nemenfim a um pequeno grupo de amigos (0 que 0 distinguiria de Epicuro, porexemplo), mas sempre a um individuo determinado com quem dialoga em

    particular, segundo as particularidades deste individuo.Em segundo lugar, este modo e dialetico: dizer que e dialetico quer

    dizer que, diferentemente de outros modos duais, coloca-se como principioque jamais se deve admitir por verdadeiro senao aquilo a que 0outro da

    formalmente seu acordo e procura-se alem disso estabelecer estas verdades

    a partir, e a partir somente, daquilo que 0interlocutor ja admite inicialmen-

    te como verdade.Em terceiro lugar, este modo e "elentico"(16) - isto e, refutatorio. A

    posiyao que ocupa Socrates na relayao dual e, como se sabe, a do interroga-dor, enquanto coloca seu interlocutor na posiy3.odaquele que deve respon-

    der. Mas como Socrates pretende nada saber, a unica virtude imediata dainterrogay3.o so pode ser negativa: mostrar ao interlocutor que a tese que ele

    sustentava iniciaJmente como verdadeira e refutavel, isto e, entra em con-tradiy3.o com outras teses mais fundamentais as quais e obrigado a dar seu

    assentimento. A interrogayao socrcitica, portanto, poe apro va, pela refuta-

    yao, a coerencia absoluta das posiyoes espontaneas do interlocutor.Enfim, em quarto lugar, dado que as teses iniciais (as que V3.0ser

    postas a prova justamente) sao deixadas a iniciativa do interlocutor, a unica

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    coisa que Socrates exige dele e aparrhesia(l7), conceito essencial da pratica

    socrAtica ~aramente posta em evidencia. Aparrhesia e 0 fato para 0 interlo-cutor de dlzer ~ 9-uepens a, 0 que pensa verdadeiramente, sem se preocuparnem com a 0plntaO dos outros, nem com a coerencia a priori desta opiniao

    inicial com suas outras opini5es, mas comprometendo-se somente em ade-rir totalmente a verdade daquilo que diz. Esta exigencia e nao somente umanecessidade moral para Socrates (nao se poderia fazer sobre 0interlocutor

    a.prova necessaria ao conhecimento de si sem esta exigencia), mas alem

    dlSSOuma exigencia epistemologica: e 0que distingue a interroga

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    gayao dos outros condiscipulos "nao es seu discipulo porque sou eu que sou

    seu fulico discipulo" (tradu9ao: "nao es seu amado porque sou eu seu unico

    amado"). Pode-se certamente pensar, em outra parte que nao a filosofia,

    noutros exemplos de tal modo de rela9ao do mestre com seus discipulos,

    constitutivo de urn tal modo de rela9ao dos discipulos entre si ...Assim, 0paradoxo do discipulo socratico reproduz a um so tempo 0

    modo de rela9ao de todas as doutrinas ditas socniticas com a teoria do pro-

    prio Socrates, 0modo de discursividade proprio a sua enuncia9ao pelo mes-

    tre (a refuta9ao diaIetica), e0

    modo de rela9ao que0

    mestre entretem facea seus discipulos, a rela9ao amorosa unilateral.

    Vamos reencontrar estes tres modos de reprodu9ao do discurso domestre pelo discipulo nanossa segunda figura, entretanto totalmente oposta

    a prime ira, a do discipulo epicurista.

    Urn primeiro fato em que se pode reparar quando se vem a abordar 0discipulo epicurista e ainda um paradoxo. A filosofia de Epicuro nos foitransmitida principalmente pela obra de um discipulo, Lucrecio, que, no

    seu imenso poema, 0de natura rerum, nos fomeceu a mais completa expo-si9ao que ate nos chegou, senao de toda a doutrina epicurista, ao menos de

    toda sua fisica. E entretanto esta filosofia e bem aquela do mestre. Em toda

    sua obra, Lucrecio multiplica as declarayoes de fidelidade incondicional,de obediencia total ao mestre, e mesmo de servilismo. 0mestre disse a

    verda de, ele foi um deus, Lucrecio nao pode mais que repeti-Ia, ou traduzi-la melhor; duplamente: do grego para 0latim com todas as inven90es lexicas

    que isto supoe, da prosa rude e utilitaria do mestre para os versos carrega-

    dos de imagens e sedutores do discipulo.

    Um outro fato: em 1884, em Oenoanda, no cora9ao da Licia, foi

    descoberto urn imenso conjunto de pedras gravadas constituindo os restos

    de uma muralha sobre a qual um cidadao chamado Diogenes, que viveu nosegundo seculo de nossa era, escrevera tendo como destinatarios todos ospassantes, compatriotas ou estrangeiros de passagem em sua povoa9ao, um

    verdadeiro tratado completo (fisica e etica) de filosofia epicurista, do qual

    certos fragmentos ainda estao em vias de decifra9ao. Ora, fato notavel, cons-

    tata-se que a filosofia do mestre esta at ainda inalterada; nurnerosos fragmen-

    tos de pensamentos de Epicuro mesclados a prosa do discipulo atestam umavez mais a fidelidade absoluta do discipulo a propria letra do texto magistral.

    Estamos lidando, portanto, com um caso fulico na historia da filosofia deurna doutrina que sobreviveu durante seis seculos ao menos e se difundiu

    em toda a bacia do Mediterraneo sem que um iota da letra original se achasse

    modificado, ou mesmo atualizado, adaptado as circunstancias, ao lugar, aepoca de seus discipulos. 0discipulo nao se da mesmo como tarefa comentarou explicar a obra do mestre, mas somente transmiti-Ia, em suma, repeti-Ia.Certamente pode acontecer que tal discipulo, por exemplo, Hermarco, suces-

    sor de Epicuro a testa do Jardim, ou Filodemo, que viveu em Napoles noseculo I a.C., se tenha dado como tare fa prolongar ou completar tal ou tal

    ponto de doutrina que 0mestre nao tivera ocasiao de tratar, mas em todocaso nenhum eco nos chegou de uma divergencia qualquer entre 0 mestre e

    tal discipulo afastado no tempo ou no espavo, e, fato mais notavel ainda,nem mesmo 0 eco da menor querela entre os discipulos(20l.A que atribuiresta longevidade inabitual da letra magistral, esta piedosa fidelidade de disci-

    pulos inteiramente submetidos a esta letra, e esta disciplina inaudita entre

    condiscipulos? A tres tipos de razoes ligadas entre si, e que reenviam, aindadesta vez, primeiramente ao modo de discursividade proprio a doutrina, emsegundo lugar a propria forma desta doutrina, e em terceiro ao modo derelavao que ela estabelece entre 0mestre e 0discipulo.

    Qual e, portanto, primeiramente 0 modo de discursividade proprio ao

    enunciado da doutrina? Os textos do epicurismo que chegaram ate nos naosao tratados, propriamente falando, ainda menos meditavoes, dialogos oumitos. Na sua imensa maioria, pertencem a urn mesmo genero literario,

    enunciado por urn mesmo tipo de sujeito e destinado a urn mesmo tipo de

    destinatario. Em todos os casos, os textos de Epicuro (as tres cartas de seupunho que nos chegaram) e a propria obra de Lucrecio SaDdiscursos que

    expoem a doutrina epicurista como urn conjunto acabado de verdades, um

    todo ja constituido de doutrinas articuladas entre si, e cujo modo de enuncia-9ao nao deixa lugar algurn a duvida, a interroga9ao ou a investiga9ao. Neste

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    sentido, saD discursos dogmiticos (0 que nao os impede, alias, de serem

    argurnentativos). Em todos os casos,trata-se alem disso de discursos pro-nunciados por urn mestre e dirigidos explicitamente a um discipulo deter-

    minado (Herodoto, Meneceu, Pitocles no caso de Epicuro, Memius no caso

    de Lucrecio), ou seja, discursos enunciados do ponto de vista do sabio japossuidor e j a praticante da verdadeira doutrina, a um discipulo que se trata

    de converter, guiar, ou fazer progredir na via de sua assimilal):ao. Neste

    sentido, SaDdiscursos magistrais. Significativamente, 0proprio Lucrecio, 0

    discipulo por excelencia, se dirige a seu proprio discipulo colocando-se elemesmo na posil):ao assim definida do mestre. Duplo discurso de Lucrecioque se dirige ora como mestre onisciente ao discipulo que tenta converter,ora como discipulo convertido ao mestre, a fim de que 0auxilie na sua obrade conversao. Em todos os casos, SaDdiscursos que nao somente dizem oupretendem dizer uma verdadeja inteiramente constituida e transmiti-Ia aquele

    a quem se dirigem, mas que alem disso 0exortam, Ihe ordenam esta conver-SaDe se pensam eles proprios como tendo de fato, na pnitica, este efeitosobre seu destinatario. Eles nao se enunciam com efeito como simples ver-dades que se trataria somente de compreender ou admitir, mas como atosou pniticas discursivas que, apenas pelo fato de serem ouvidas, compreen-didas, admitidas, mas tambem repetidas, memorizadas, praticadas pelo dis-

    cipulo permitem transforma-Io em todo seu ser e the dao acesso a felicida-de. Enfim, nao somente urn discurso que revel a aquilo que e desde toda aeternidade, mas que alem disso age sobre 0ser de seu destinatario.

    Eis portanto urna primeira explical):ao da estranha perenidade da letra

    epicurista atraves de seus discipulos: 0modo de enuncial):aoproprio a dou-

    trina. Trata-se, como se viu, de enunciar urn conjunto de verdades coloca-das pelo mestre como sempre jli-af antes mesmo de sua enunciafiio, de urn

    discurso que coloca portanto necessariamente aquele que 0enuncia na po-sil):aode mestre convertendo de novo um discipulo, para faze-Io aceder a

    urn bem supremo que sem a doutrina the permaneceria proibido ou impossi-vel. A estas particularidades do discurso epicurista esta evidentemente liga-

    da, em segundo lugar, a propria forma da doutrina que ele proc1ama.

    Esta forma e certamente aquela de urn sistema completo e acabado.Mais precisamente aquela de uma totalidade organica. A doutrina se apre-

    senta assim com freqiiencia sob a forma de resurnos (pequenos ou grandes);

    ela se da assim como podendo ainda e sempre ser condensada sem perdernenhuma das caracteristicas da totalidade. Do mesmo modo, inversamente,

    ela pode sempre ser desenvolvida sobre tal ou tal ponto, com a condil):aode

    que a posil):ao do ponto no conjunto, sua funl):aono corpus das verdades,

    seja semprelembrada. 0 mestre nao se priva de resumir ele mesmo a dou-

    trina para os iniciantes a fim de que possam de pronto ter 0todo no espirito

    antes de entrar no estudo das partes; a fim de que 0 discipulo mais avanl):ado

    jamais esquel):a0

    conjunto, nao se perca nos detalhes estudados por si mes-mos separadamente de sua funl):aode simples meios em vista da posse dotodo da doutrina(21).Dai 0papel fundamental do aprendizado de coletaneasde maximas, a recita9ao de resumos, dai a importancia dos exercicios de

    repetil):ao feitos pelos discipulos, sozinhos ou em grupO(22).Do menor resu-

    mo, modelo reduzido do todo, onde ja se condensa toda a doutrina em qua-tro formulas lapidares, que ja sabe aquele que apenas acaba de entrar noJardim e que fica a disposil):aopermanente de todo discipulo como tantosvade-mecum indispensaveis face it todas as situal):oesda existencia, ate ostrinta e sete livros da Fisica escritos por Epicuro a destinal):ao dos maisavanl):ados,0 discipulo se desenvolve como um corpo em expansao: ele naoprogride, com efeito, por uma acumulal):aoprogressiva de verdades, segun-

    do 0encadeamento irreversivel da ordem das razoes e ao longo do eixounilateral de urn discurso qudeva dos primeiros principios as ultimas con-seqiiencias, tal como se pode ver em Aristoteles, por exemplo, mas segundoum modelo biologico do crescimento, de uma totalidade organic a se dila-tando quantitativamente, do interior, e para tudo dizer por assimilal):ao,sem

    que a relal):aointern a entre seus orgaos, 0 funcionamento reciproco de suaspartes e a organizal):aodo conjunto se achem alterados, desde 0 concentrado

    minima da doutrina ate sua expansao maxima.Ve-se ai uma segunda explical):aoda estranha perenidade da letra epi-

    curista atraves de seus discipulos: urn sistema que se transmite sempre se-

    gundo a id6ia do todo que ele constitui e que, a cada momenta de seu apren-dizado pelo discipulo, e sempre illteiramente assimihivel como urn todo

    sem vazios ou lacunas, nao pode senao produzir urn discipulo repetidor.

    Mas ha para isto uma outra razao que reside nao no modo de discursividade

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    no qual se exprime a doutrina, nem na forma que ela toma, mas, em terceirolugar, na relayao que ela estabelece entre mestre e discfpulo. .

    Ja se sublinhou de passagem que 0mestre menos instruia 0 discfpulo

    do que 0 transformava. Mas de que transforma~ao se trata equal e exata-mente 0vinculo que institui 0discurso filosofico entre mestre e discfpulo?.Muito exatamente 0 do medico ao doente. A filosofia e com efeito definida

    pelos epicuristas como medicina: ela cura os homens da situayao inicial enecessaria de dor e de infelicidade na qual se acham ordinariamente. 0

    h?mem, isto e, aquele que ainda nao entrou no Jardim, esta arruinado pordIvers as doenyas, quatro principais, 0 desejo vao que se entre tern ele mes-mo ao infinito semjamais atingir seu bern, 0temor dos deuses, 0da mortee 0da dor. Para estes males, ha divers as causas, dentre as quais a ignoranciaem que se encontra a maioria dos homens sobre a natureza das coisas, agra-vada ~elos falsos remedios que se autoprescrevem, por exemplo, 0 recursoaos mitos da religiao popular, os quais os doentes esperam que acalmemseus temores, mas que nao fazem senao explorar sua ignorancia e aumentaro numero e a gravidade de seus vaos temores. Para este's males, ha apenasurn verdadeiroremedio, a prlitica da verdadeira filosofia(23).Esta' come

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    Entre estas duas figuras extremas do discipulo socnltico e do discipu-

    10 epicurista, ha lugar para urna terceirafigura, a do discipulo aristotelico.

    E bastante dificil caracterizar numa palavra 0 discipulo de Aristote-les. E mais faci! caracterizar aquilo que se pode chamar 0"aristotelismo",que e urna tendencia recorrente ao longo da historia da filosofia, aquelaque consistiu em considerar a autoridade do texto aristotelico como urn dos

    criterios possiveis da verdade. Como se constituiu este aristotelismo e 0 quee da posi~ao do aristotelico assim definido com rela~ao ao mestre e a seudiscurso?

    Ao contrmo do socratismo, 0aristotelismo nao se constituiu desde amorte do mestre pela escrita e sistematiza~ao, por parte dos discipulos, dosla~os pessoais que ligava cada urn ao mestre; e muito tempo apos a morte de

    Aristoteles e completamente de modo independente de algum vinculo pes-soal com seus discipulos imediatos que 0aristotelismo se constituiu. Aocontrmo do epicurismo, 0 aristotelismo nao se constituiu pela manuten~aocontinua de uma tradi~ao doutrinalliteral remontando ao mestre; a tradi~aoaristotelica e ao contrario cheia de rupturas, cheia de som e de fUria; enfim,

    o aristotelismo tern urna historia, ao menos no sentido trivial de que cada

    epoca da historia da filosofia teve urn Aristoteles a sua propria imagem.Assim, como 0 socratismo, 0 aristotelismo diz-se no plural: os discipulos .

    saD nurnerosos e invocam 0nome do mestre em sentidos opostos, lan~amuns contra os outros a autoridade de seu nome, a guisa de argumento ourefuta~ao. Mas como no epicurismo, e por urn recurso constante, perma-

    nente e por assim dizer unico a propria letra do texto como figura absoluta

    da autoridade que a posi~ao do discurso do discipulo e possivel. Esta rela-

    ~ao ambigua com 0texto do mestre, ao mesmo tempo fonte primeira daverdade, e entretanto fonte de verdades multiplas, so e possivel portada porurna terceira figura do discipulo: nem 0discipulo criador de doutrinas (como

    o socratico), nem 0discipulo repetidor da doutrina do mestre (como 0epi-curista), mas 0discipulo interprete. 0aristotelismo pode, com efeito, ser

    definido provisoriamente como a interpretafiio, indefinidamente renovada

    e discutivel da doutrina ou dos textos de Aristoteles. E portanto urn amon-toado compiexo e variavel de teses, glosas e teorias, onde evidentemente se

    entremearam diversamente, segundo as epocas, as partes da tradu~ao, docomentario e da adapta~ao do texto aristotelico, mas onde certas constantespodem ser percebidas permitindo desenhar uma figura do aristoteli~o ..Ela

    aparecera melhor se recordarmos muito brevemente como se constItum 0

    aristotelismo.Apos a morte de Aristoteles (422 a.C..), ainda que 0Liceu que fu~da-

    ra permanecesse durante quatro seculos urn importante centro de pesqUl~as,principalmente em fisica e em retorica, nao parece que ~enha.havldo filoso-fo importante na dire~ao da escola, salvo se~ sucessor Imedlato T~~frasto,cujo nome permaneceu muito tempo assocmdo ao do mestre. AlIas, se a

    autoridade de que desfrutava Aristoteles durante todo este periodo perma-necia imensa ao menos tanto quanto a de Platao, parece que ela repousava

    . principalme~te sobre as obras publicadas em vida por Arist6teles (sobretu-

    do dialogos a maneira de Platao, hoje perdidos): A ob~aque con~ecemos deArist6teles, e que devia estar na origem do anstotelIsmo ultenor, era el?

    sua maior parte ignorada pelos antigos; e verdade. que se trata:va malSfrequentemente de simples notas, mais ou menos redlgldas ~ classlficada~,

    escritas por Arist6teles em momentos divers os ~e su~ c~rrelfa com fin~h-dades de ensino, e que 0 estado disperso ou 0 estllo ellptIco, mesmo a dlfi-

    culdade do assunto, tomavam improprios para a publicayao for~ do cir~uloda escola. A maneira pela qual este importante lote de manuscntos pratIc~-

    mente perdidos chegou em 60 a.C. as maos de AncI:0n~code Rodes, 0decl-mo e ultimo escolarca do Liceu, era desde a AnhgUldade urn assunto de

    lenda. E sempre certo que Andronico reuniu esta massa de documentos paradela fazer livros publicaveis: essa publicayao foi acompanhada, portanto,de urn trabalho de classificayao e de organizayao racional do saber. Eledava assim ao mundo 0que se chama correntemente 0corpus aristotelico,

    que devia progressivamente eclipsar a obra publicad~ pe.lopr6prio Arist6te-les e ia constituir 0conjunto de textos profanos malS lIdo e comentado de

    toda a Hist6ria. Este gesto pode ao mesmo tempo ser considerado como acertidao de nascimento do "aristotelismo". Duas de suas constantes, com

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    efeito,ja estao ai presentes: asistematizarao do texto aristotelico num con-

    junto podendo servir de fundamento a uma unidade doutrinal; mas, ao mes-mo tempo, urna vontadede retorno (para alem da tradirao) a letra do texto

    de Aristoteles considerada como garantia de verdade. Esta primeira edic;:aoteve ademais urn outro efeito determinante para toda a historia do aristote-lismo: dada a distancia entre esta forma editorial garantindo a unidade de

    uma obra (aparentemente sistematica: livros de logica, "organon" geral daciencia, livros de fisica, seguidos dos de metafisica etc) e esta letra (cursiva,inacabada, dificultosa e ate incoerente), 0aristotelismo, em todos os mo-

    ~:ntos de sua ~istoria, ~ao podera instituir-se e perpetuar-se senao peloVles do comentario, destmado a cumular tanto quanta possivel esta disHin-cia. Tais sac as tres caracteristicas fixas, alias ligadas entre si, do aristote-

    lismo .(siste~atizac;:ao, retorno a letra, comentarismo indefinido) do qual sepodena segUlr os meandros ao longo de treze seculos de historia.

    Desde os primeiros seculos, com efeito, onde ja se efetua um verda-deiro trabalho filologico (comparac;:aodas copias, estabelecimento de vari-antes, conjecturas: por exemplo, a pratica de Alexandre de Afrodisia, cha-mado 0"segundo Aristoteles" ou "0Exegeta", visa mais freqiientemente aesclarecer Aristoteles por ele mesmo, moldando 0 mais possivel 0 comenta-rio sobre os textos originais) ate Guilherme de Moerbeke que, no seculo

    XII, cumpriu um enesimo retorno a letra pela transcric;:aoem latim, palavrapor palavra, do texto grego a pedido de Sao Tomas de Aquino, passandopelos arabes al-Farab!, chamado "0 segundo mestre" (depois de Aristote-les), por suas "parafrases" das Categorias ou dos Analiticos, ou Averroes,

    que ~os seus c?mentarios de Aristoteles ("grandes comentarios" querecoplam e exphcam 0texto passo a passo, "comentarios medios", que 0parafraseiam livremente, e "epitomes" que 0resumem), quer promover um

    retorno ao "verdadeiro" Aristoteles, "corrompido" pelas leituras platoni-cas, aparece, a despeito das oposic;:5esde cultura e doutrina, uma constante

    historica: a figura do aristotelico cujos tres trac;:osja tinham se distinguidodesde a publicac;:ao do corpus por Andronico.

    . Primeiro trac;:o,0comentario. Para 0aristotelico, a pratica da filoso-fia, lStOe, a busca da verdade, nao e possivel senao atraves da leitura e docomentario da obra de Aristoteles, posta como doutrina acabada e intempo-

    ral. Cada palavra, cada frase, cada capitulo, cada obra deve poder ser deci-

    frada e ter um sentido enunciavel, sentido supremo que excede sempre 0sentido manifesto, manifestamente obscuro ou equivoco, sentido supremo

    entretanto autorizado e garantido por este unico sentido manifesto, que e aomesmo tempo e paradoxalmente 0 principio e 0 fim do comentario, sua

    pedra de toque ao mesmo tempo que seu objeto. Este comentario nao e,portanto, uma simples repetic;:ao, mas a busca indefinida e inacabavel de

    um sentido original, de urna autenticidade perdida, de urna coerencia supre-

    ma e primordial a qual 0discipulo ja nao tem acesso, porque a espessura dahistoria, a opacidade dos textose a infla

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    massa indefmida dos outros comentanos como outras tantas trai~oes; e a

    principal dificuldade que experimenta em compreender, isto e, em abarcara obra do mestre num todo coerente, e a espessa acumula

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    mestre que tudo sabe questionando um discipulo quase totalmente ignoran-

    te e nao colocandoverdade alguma sem 0 acordo explicito do discipulo. Enormal que a este modelo corresponda a figura do discipulo que vimos; ao

    mestre Aristoteles e assim emprestada a priori a posse total do saber total,mas e ao discipulo, passo a pas so, e apoiando-se somente sobre aquilo quedisse (ou escreveu) 0 mestre que cabe atingir esta totalidade no proprio

    discurso do mestre, na recolagemjamais completamente acabavel da obra a

    si me sma. Pode-se ainda pensar aqui, em muitos outros exemplos, fora dafilosofia, de um mestre cujo ensinamento e corpus dos escritos se edite

    tardiamente e mesmo apos sua morte, e cujos discipulos se deem por tarefareconstituir indefinidamente a letra a qual retomam infinitamente, compre-ender completamente 0pensamento uno, e comentar para sempre a obraque excede sempre seus proprios comentanos.

    Vamos ao balan~o: tres tipos de discipulos, os primeiros se dilaceramentre si, se abrigam por detras do nome do mestre, sistematizam seu ensina-mento alem do que autorizava, mas criam uma obra autentica; os segundossac mais atilados e fieis, mas levam a fidelidade ate 0psitacismo; os ulti-mos sistematizam como os primeiros 0 ensinamento' do mestre, mas aomesmo tempo, animados de fidelidade como os segundos, se consagram aocomentirio do mestre. Estas figuras estao com certeza em oposi~ao, mas

    vimos que reproduziam a cada vez a forma totalizada da doutrina do mes-tre, seu modo de transmissao (maieutica, protretica e epistemica(29)e 0modo

    de rela~ao que ligava 0discipulo ao mestre (0amor, a cura, 0ensinamento).A estas constantes que sac outras tantas diferen~as pode-se acrescentar aconsHincia por excelencia, aquela por onde se identificam: 0discipulo ja-

    mais pode reproduzir 0discurso do mestre senao sob afigura da totalidade.

    Haveria outros tipos de discipulos que nao entrariam em nenhuma das

    figuras acima? Talvez sim. Mas talvez nao. Pois no fundo os tres grandes

    tipos de discipulos que estudamos nao reenviam aos tres unicos modos pos-siveis de filosofar? Nao se poderia dizer com efeito que nossas tres doutri-

    nas fomecem os tres Unicosmodelos daquilo que pode ser a filosofia? Toda

    filosofia nao e, com efeito, quer como a socnitica, de essencia critic a, isto

    e, visa a por a prova as falsas certezas, quer, como a epicurista, de essencialiberadora, isto e , visa a curar-nos e livrar-nos de nossos males, de nossas

    paixoese de nossos grilhoes, quer como a aristotelica, de essencia aletica,

    isto e, visa unicamente a verdade e portanto a constitui~ao de um conjuntocompleto de conhecimentos?

    Voltemos, pois, ao nosso ponto de partida. Se G. Lebrun e bem 0mestre que muitos veem nele e se todo mestre se inscreve numa das figuras

    historicas que descrevemos, entao e evidentemente sob a primeira figuraque se deve alinha.-Io. Compreender-se-ia assim 0paradoxo. E por ele quemuitos aprenderam a ser eles mesmos. E no pensamento deles, nao no seu,que os formou. E as doutrinas sao coisas deles e nao sua. E por isso quealguns deles 0 acusam hoje daquilo que sac por seu intermedio? Mas epreciso que se resignem a procurar um outro bode expiatorio para este mauprocesso: pois ele ja aceitou a proposta - a mesma que recusou Socrates(30)

    de deixar sua patria (0 Brasil) a qual era tao carnalmente ligado e a qualtanto tinha dado.

    Abstract: The focus of this paper is three typical figures of disciple in Ancient Philosophy: the

    Socratic or "the jealous son", the Epicurean or "the healed disciple, but psitacist", and the Aristo-

    telian or "the unsatisfied exegete".

    Key-words: Ancient Philosophy - master - disciple - Socrate - Epicureanism - Aristotelism.

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    Not a saqueles que passam seu tempo com ele, ou 0 1 . auv6v'tE~aqueles que vivem com

    ele, com todas as conotafoes que esta ideia supoe. .

    (6) Lembremo-nos do protesto de Socrates na Apologia de S6crates contra as insi-

    nuafoes de corrupfao em relafao aqueles que seus caluniadores cham am seus

    discipulos ijl.Ct9rj'tac;);eleprecisa: "ora,jamais fui eu mesmo "!estr; (o;oaaxCt~oc;)

    de ninguem" (33 a). Esta dupla denegafao (niio sou mestre, mnguem e meu dISCI-

    pulo) e repetida algumas linhas mais longe (33 b: "jamais prometi en~!nar, nem

    ensinei defato, nada que se aprenda - ~aell~Ct - a nenhum dentre eles ').

    (7)0 "testemunho "de Platao e sobre este ponto confirmado por Xenofonte:

    Memoniveis, 1,2,3.

    (8) Esta palavra significatambem existencia em comum, ate mesmo relafiio sexual.

    (9) Verprincipalmente a exposifao de Diogenes Laercio II, 87-88.

    (10) Diogenes Laercio, VI,104.

    (11) Ibid, VI. 11.

    (12) Ibid., IX; 101 e Sexto-Empirico, Adv. Math., XI, 73 etc.

    (13) Cicero, Acad. pr.II, XLII, 129. "~s !'1~garic~~ diziam qu~ 0 b~';le some~te

    aquilo que e uno, sempre semelhante e ldentlco a Sl ~er ~ambem.DlOgenes Laer-

    cio II, 106, que atribui expressamente esta tese ao propno Eudldes.

    (14) Tal e a definifao do Bem que se encontra na ~e~ublica, X 608 e. Iia unica

    que se encontra, parafalar propriame~te" ~a Repubhca, .da qu.alse_sabe que um

    dos temas essenciais dos livros centralS e Justamente a znvestlgafao de uma tal

    determinafiio, principalmente atraves das tres "imagens" dos livros VI- VII(0 Bem-

    sol, a analogia da linha e a alegoria da caverna).(15) Certas passagens das Memoriveis deixam entender uma participafao ma!s

    ativa de Socrates no trabalho definicional que aquela que nos apresenta Platao

    nos dialogos de juventude, os unicos a serem propriamente "socraticos". D~to

    isto, Xenofonte confirma que Socrates era acusado por seus interlocutor~s deJa-

    mais definir ele mesmo as "qualidades morais"(Mem. IV, 4,9-10); mazs geral-

    mente 0bem sobre 0 qual pretendia interrogar os outros (ver tambem Mem. I, 2,

    3 e 17-18, assim como 0dialogo pseudoplat6nico Clitofon, 410 b-c).

    (1) Ver Platlio, Apologia, 33 a-b.

    (2)G. Lebrun, 3, p. 241.

    (3) A priori, um lugar deveria ser dado tambem ao estoicismo que oferece aparen-

    temente um modelo diferente de relaflio de discfpulo a mestre; a cada gerafao a

    doutrina muda, se transforma, se adapta; cada discipulo se tornando mestre porsua vez da-Ihe uma direfiio inedita. Ha, portanto, quase tantos estoicismos quan-

    to gerafoes de estoicos. Nlio nos parece entretanto que estejamos lidando com

    uma figura tipica do discipulo.

    (4) Iija a questlio, ou 0espanto, dos Antigos, por exemplo Cicero (De oratore, III,XVI, 61): "como de Socrates tinham nascido de algum modo muitas escolas filo-

    soficas, que nessas discussoes variadas, opostas, levadas adiante em todos os

    sentidos, se tinham ligado cada qual a uma ideia, viu-se desenvolver uma serie de

    famflias por assim dizer (quasi familiae), divididas quanta as opiniOes, muito

    distintas e diversas, embora todos essesfi16sofos quisessem ser ditos continuado-

    res de Socrates e acreditassem se-Io". Santo Agostinho escreve mais vigorosa-

    mente: "Os socraticos bem que divergiram entre si no que concerne aofim ulti-

    mo. Ii dificil conceber que os discipulos de um mesmo mestre tenham podido

    chegar a isto: uns, como Aristipo, dizem que 0prazer eo soberano bem, enquantooutros, Antfstenes por exemplo, identificam-no a virtude. " (Cidade de Deus, VIII, 3).

    (5) Ao menos segundo os testemunhos da Antiguidade tardia. Iiassim que Dioge- .

    nes Laercio fala nao somente de "sucessores" (OtCtOE~Ctllivot:em IL 47, onde cita

    Platlio, Xenofonte, Antistenes, depois Esquino, Fedon, Euclides, Aristipo), mastambem de "discipulo" (~Ct9T)'tftc;:em IL 20, aproposito de Esquino, em IL 74, a

    proposito de Aristipo) ou de "condiscipulos" (au~~Ct6T)'tac;: em VI, 2, aproposito

    de Antistenes e de seus ouvintes) ou de "aluno" (alCpOCt'tftc;:aquele que escuta e

    obedece: em II, 48 a proposito de Xenofonte). Em compensafao, as primeiras

    gerafoes empregam significativamente um outro vocabulario: Socrates e qualifi-

    cado por seus ouvintes de "amigo" (platiio, Carta VII, 324 e), ou de "camarada"

    ('t

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    (16) Do grego E A . 'Y X O C ;, refutariio, proeedimento diaIetieo sem duvida "inventa-

    do" e teorizado, em todo caso pratieado, por Socrates. Sobre a teoria do elenchos,

    poder-se-a reportar-se a R. Robinson, (4, pp. 1-60) e aos divers os artigos de G.

    nastos (por exemplo: 6, pp. 51-8 e 5, pp. 27-58).

    (17) Sobre a parrhesia e sua importancia na dialetica soenitiea, ver Platiio, Laques

    189 a, Protagoras 331 b-c, G6rgias 487 a 3 e 495 a, Carmides, 173 d, Criton, 49

    a-b; assim como os comentadores citados na nota precedente.

    (18) Ver0capitulo 5 de L'usage des plaisirs (Foulcault 1).

    (19) Lembremo-nos da famosa "impassibilidade" de Socrates quando 0 beloAlcibiades penetrarafurtivamante em seu leito (Platiio, Banquete, 217 a - 219 e).

    (20) Niio sepode contar eomo "querelas" as raras discussoes das quais sefazem

    eeo algumas testemunhas, alias discutiveis, por exemplo para saber se ha umquarto "criterio de verdade"(Diogenes Laercio, X, 31) ou se a desejabilidade do

    prazer se conhece por sensariio imediata ou segundo a "pre-norao" que temosdo prazer (Cicero, De finibus, I, 9, 30ss).

    (21) A "carta a Herodoto" se apresenta assim como um "resumo" (epitome) da

    fisica, resumo cuja dupla funrao e explicada por Epicuro desde as primeiraslinhas. Alias, 0catalogo das obras de Epicuro segundo Diogenes Laercio (X, 27-

    28) compreende um "grande resumo" e um "pequeno resumo".

    (22) Verpor exemplo 0estudo de 1.Hadot (2,p. 347) e de W. De Witt (7).

    (23) Sobre 0filosofo medico no epicurismo, ver Epicuro, Senten

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