working paper 01 - vinicius marins
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DIREITO ADMINISTRATIVO, PODER E AUTORIDADE: REFLEXÕ ES SOBRE O FENÔMENO DA PRIVATIZAÇÃO
(Working Paper)
Vinicius Marins ∗∗∗∗
1.1 A privatização da “autoridade” no centro da dis cussão
Em conhecida sentença de 1923, OTTO MAYER, dos mais notáveis
publicistas alemães, defendeu a perenidade do Direito Administrativo diante das
mutações do processo constitucional (“Verfassunsrecht vergeht, verwaltungsrecht
bestehtl”) 1. Tratava-se de uma “pretensão de permanência” que, mais à frente, viu-se
infirmada pela propagação de textos constitucionais com dimensão tipicamente
socializante, trazendo à tona a idéia de que o Direito Administrativo seria uma
concretização do Direito Constitucional (“Verwaltungsrecht als konkretisiertes
Verfassungsrecht”, na análise de FRITZ WERNER); materialização que, em uma
abordagem tradicional, decorreria de um processo lento, contínuo, e do qual
participariam os vários aplicadores do direito2.
O confronto de posições revela, ainda na quadra histórica de sua
consolidação doutrinária, que a construção epistemológica em Direito Administrativo
está longe de constituir-se tarefa simples. Ressaltar que vem passando por
transformações é afirmação quase pleonástica, considerando que, desde a origem, esse
∗ Doutorando em Direito Administrativo e Mestre em Direito Econômico pela Faculdade de Direito da UFMG. Professor dos cursos de graduação da UFMG e da Faculdade Pitágoras de Belo Horizonte. Professor dos cursos de Pós-Graduação “lato sensu” da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e das Faculdades Milton Campos. Empreendedor Público do Governo de Minas Gerais. Advogado em Belo Horizonte e Brasília. 1 “O Direito Constitucional passa, o Direito Administrativo fica”. A afirmação, naturalmente, deve ser compreendida a partir do contexto de intensa e calorosa discussão a respeito da dimensão reformista proposta pela República de Weimar (1919-1933). Sobre as correntes do debate de Weimar e os seus desdobramentos no Direito Público atual, v. BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de Exceção Permanente. São Paulo: Azougue Editorial, 2004 (p. 40 e ss.). Sobre as discussões entre Mayer e Werner vale consultar também a obra de Norbert Achterberg (Allgemeines Verwaltungsrecht. Heidelberg: C. F. Müller, 1982, p. 63). 2 A necessidade de maturação e assimilação de mudanças é destacada na síntese histórica de Hartmut Maurer: “Es liegt auf der Hand, daβ sich Verfassungsumwälzungen und – neuschöpfungen auf die Verwaltung auswirken; aber das geschieht Verzögerungen, da diese zunächst selbst verarbeiter und dann ihre konsequencen für das Verwaltungsrecht ermittelt und verwirklicht werden müssen. Die Ausrichtung des Verwaltungsrechts am Verfassungsrecht ist sonach ein langwieriger Prozeβ, an dem Gesetzgeber, Rechtsprechung und Rechtslehre gleichermaβen beteiligt sind.” (Allgemeines Verwaltungsrecht. 17ª ed. Munchen: Beck, 2009, p. 13).
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ramo do direito sustenta-se por elementos em tensão ou contradição. É assim que, a
despeito do surgimento recente, desenvolve-se de modo rápido e continuado; apresenta-
se, simultaneamente, como instrumento de autoridade e de liberdade; opera como meio
de tutela de interesses públicos e privados; caminha em consonância com o Direito
Constitucional, para em seguida ultrapassá-lo; vive em um mundo separado e distinto
do Direito Civil, para depois invadi-lo e ser invadido3.
Os administrativistas, por sua vez, ainda estão muito longe da esperada
aderência à complexidade de seu campo de estudo. O discurso doutrinário hegemônico
permanece vinculado a um paradigma positivista que, equivocadamente, culmina com a
centralidade do legalismo estatal. Insiste, ainda, na noção de “estatalidade” do seu
objeto, muito embora já se fale em um espaço administrativo “global”, cada vez mais
sujeito a regulações não-estatais4. Persiste em fundar-se, por sua vez, na dicotomia
autoridade/liberdade, apesar de apenas uma parcela das relações administrativas ainda
restar vinculada a tal dialética. Permanece, em suma, preso a temas tradicionais e
paradigmas limitados, cerrando a vista para as inúmeras conexões e desdobramentos
que novas circunstâncias históricas, econômicas e sociais poderiam suscitar.
Processo que não passou despercebido, ao menos em parte, foi o de
mudança estrutural do papel do Poder Público nos últimos trinta anos. Um “Estado
provedor”, muitas vezes hipertrofiado, viu-se substituído pelo chamado “Estado
regulador”. Serviços públicos de especial relevância sócio-econômica foram lançados
ao mundo “dessacralizado” da concorrência e da liberalização, num fenômeno indicado
pelo léxico privatização, de simbologia peculiar não só pelo seu significado político e
econômico, mas pela amplitude de idéias que abarca. A necessidade de viabilizar
investimentos em infraestrutura, além da imperativa modernização na prestação de
serviços econômicos até então legados ao fornecimento monopolístico, associadas à
3 Problemas analisados com profundidade por Sabino Cassese, em texto recente em que discute as contradições do Direito Administrativo (“Le droit tout puissant et unique de la société. Paradossi del diritto amministrativo”. Rivista trimestrale di diritto pubblico, n. 4, 2009, p. 46). 4 Sabino Cassese radicaliza ao afirmar que o Direito Administrativo atual é um direito da humanidade: “Dopo due secoli di storia, invece, uno degli aspetti più importanti del nostro diritto è costituito dalla sua forza espansiva: suoi istituti si trovano applicati in ambiti non statali. Il diritto amministrativo, una volta proprio della zona chiusa nelle mura dello Stato, si applica ora anche tra gli Stati e al di là degli Stati. E un vero diritto dell’umanità” (CASSESE, cit, p. 68). Analisando de modo percuciente o mesmo tema, Luisa Torchia refere-se a um direito “desencarnado” de seu substrato material, que seria a personalidade pública do Estado ( “Diritto amministrativo, potere pubblico e società nel terzo millennio o della legitimmazione inversa”. In: BATTISTI, Stefano et. al. Il diritto amministrativo oltre i confini. Omaggio degli allievi a Sabino Cassese. Milano: Giuffrè, 2008. pp. 50 e ss).
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onda dominante no contexto internacional, tornaram inexorável o processo, a despeito
de seus inúmeros críticos.
O desenvolvimento do tema no Brasil, contudo, persistiu, ainda depois
de duas décadas, em um limbo de obsolescência. Estudado em outros ordenamentos
jurídicos há pelo menos setenta anos5, o problema das relações entre Estado e
particulares no campo da execução de tarefas públicas carece de uma abordagem mais
aprofundada pela ciência jurídica nacional. Os trabalhos sobre privatização cingem-se a
uma avaliação a respeito de seus impactos na prestação dos serviços públicos e em
algumas poucas atividades jurídicas (como é o caso dos tabelionatos, cartórios e
serventias de Justiça), ignorando possibilidades operacionais que extrapolam esse
âmbito, recaindo, por exemplo, sobre atividades carcerárias, de defesa social e proteção
da ordem pública6, de determinação de “standards” e normas de caráter técnico, de
tarefas de certificação e controle oficial, além de instrumentos privados de controle e
fiscalização, como ocorre na chamada “autorregulação”. Um dos exemplos mais
recentes e controversos do fenômeno encontra-se nas chamadas “private military
companies7”, contratadas para o desempenho de inúmeras operações bélicas,
tipicamente relacionadas à soberania, incluindo atividades logísticas das forças armadas
5 Nos ordenamentos europeus há uma variedade de expressões para se referir à entrega, a particulares, da execução de funções públicas. Notamos entre italianos e franceses uma preferência pelo termo “externalização” (esternalizzazioni ou externalisation). No direito germânico utiliza-se a genérica “Beleihung” (concessão), que vem agregando funções de ordem cada vez mais ampla: “Beliehene sind privatpersonen, denen die Kompetenz zur selbständigen hoheitlichen Wahrnehmung bestimmter Verwaltungsaufgaben im eigenen Namen übertragen worden ist (...). Beispiele: (...) Im Zuge der Dezentralisierung, Deregulierung und Privatisierung hat die Beleihung in der letzten Zeit sowohl in quantitativer als auch in qualitativer Hinsicht erheblich zugenommen. Sie erfolgt vor allem im Bereich der Infrastrukturmaβnahmen (Straβenwesen, Abfallbeseitigung, Gebührenerhebung) und – bemerkenswerterweise – im sensible und zu den Kernaufgaben des Staates gehörenden Bereich der öffentlichen Sicherheit (Straβenverkehr, Bewachung öffentlicher, auch militärischer Anlagen usw.)” (MAURER, cit., p. 610, grifei). 6 Para se ter a dimensão do processo em um sistema jurídico liberal como o norte-americano, em 2001, segundo dados fornecidos por Gillian Metzger (“Privatization as delegation”. Columbia Law Review (103), 2003, p. 1.893), cerca de 13% dos prisioneiros federais e 6% dos estaduais (um universo de 92.000 internos) encontravam-se sob a gestão de prisões privadas. 7 Nos EUA, o Departamento de Defesa é, de longe, o que possui o maior orçamento e realiza as mais vultosas contratações no âmbito da Administração Federal. Em função da Guerra no Iraque o tema da transferência de atividades militares ganhou inéditas proporções, considerando as delegações para empresas privadas do suporte de funções de “inteligência” e, até mesmo, para a realização de interrogatórios. O abuso contra prisioneiros em Abu Ghraib, nos arredores de Bagdad, trouxe à tona as “novidades gerenciais” do DoD para o debate internacional. Emergiam, em seqüência, dados sobre a utilização de milícias privadas na guerra em Serra Leoa e, até mesmo, empresas contratadas para o exercício de funções diplomáticas. A grande preocupação dos estudiosos do Direito Administrativo norte-americano, diante de tais inovações, está na preservação dos chamados “public values”, em especial o controle (“accountability”), sobre esses “private actors”. O ápice da discussão veio com a contratação da empresa Blackwater, império da segurança privada (ou “mega-corporação de mercenários”, como preferem os seus críticos) no suporte das atividades de segurança em Nova Orleans após o furacão Katrina, em 2005, numa operação que resultou desastrosa quanto aos resultados e repercussão sobre a opinião pública. Vale consultar, a respeito do tema: DICKINSON, Laura. “Public Law Values in a Privatized World”. The Yale Journal of International Law, nº 36, 2006; FREEMAN, Jody. “Private Parties, Public Functions and the New Administrative Law”. Administrative Law Review, nº 52, 2000 e; VERKUIL, Paul R. “Public Law Limitations on Privatization of Government Functions”. North Carolina Law Review, nº 84, jan. 2006.
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e treinamento de pessoal militar. Novas coalizões que vão colocando em xeque o senso
tradicional a respeito de algumas das noções mais caras à dogmática jurídica, ao mesmo
tempo em que suscitam uma necessária confluência de propósitos e de fins entre os
setores público e privado, que não mais podem ser analisados de maneira estanque8.
A chamada privatização das funções de “autoridade” – conhecidas
alhures como “core functions” ou “noyau irréductible d’Etat” – é tema propulsor para
debates ardorosos, mas que por aqui sequer foram cogitados pela parcela mais
expressiva e respeitada da doutrina. É assim, por exemplo, que se vai falar na
“desestatização do Direito Administrativo9”, uma espécie de nova Administração
indireta do Estado por meio de pessoas privadas. Nessa mesma senda propõe-se a
discussão a respeito do “refluxo” ou “atenuação do caráter derrogatório do Direito
Administrativo”, diante da “exasperação das referências axiológicas e normativas que
traduziam a singularidade do publico10”.
Indubitavelmente, o pressuposto que esse novo processo em curso na
dogmática jurídico-administrativa propõe é o da insubsistência de um Estado alçado,
valorativa e originariamente, à condição de representante exclusivo e prioritário do
interesse público11: a atual governança – utilizando terminologia em voga – baseia-se
num modelo de “mixed administration12”, propondo uma nova ordenação das funções
governamentais. Reformula-se, por sua vez, o desempenho da iniciativa privada: o
particular, nesse novo cenário, não é mais súdito (papel que ocupa durante o Estado
Gendarme), ou sujeito socialmente descompromissado (tal como no Estado Liberal),
8 “What we witness is that there are more and more actors whose agendas are neither determined by public nor by private ties and obligations; they follow mixed agendas” (PETERS, Anne et. al. (org.). Non-State Actors as Standard Setters. Oxford: Cambridge University Press, 2009, p. 568, grifei). 9 A doutrina italiana, já na década de 1940, faz menção aos chamados “órgãos indiretos ou impróprios” (ZANOBINI, Guido Corso di Diritto Amministrativo. v.3 Milano: Giuffrè, 1946, p. 301). Um exemplo conhecido de direito administrativo aplicado entre particulares estaria no caso dos estabelecimentos privados de ensino, que praticam atos de certificação quanto a avaliações de alunos, traduzindo cada um desses provimentos, a aplicação do ato administrativo que lhes deferiu o funcionamento (v. em OTERO, Paulo. Legalidade e Administração Pública: o sentido da vinculação administrativa à juridicidade. Coimbra: Almedina, 2007, p. 829). Note-se que tais atos “particulares” são, a posteriori, de reconhecimento obrigatório pelas autoridades públicas, além de gozarem de uma presunção de veracidade e legalidade idêntica àquela que emerge dos atos emanados pelas instituições públicas de ensino. 10 CHEVALLIER, Jacques. O Estado Pós-Moderno. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 94. 11 Posição historicamente defendida no Brasil por, dentre outros, Celso Antônio Bandeira de Mello (Natureza e regime jurídico das autarquias. São Paulo: RT, 1968, p. 93). 12 “Contemporary governance might be described then, as a regime of mixed administration in wich private and public actors share responsibility for both regulation and service provision”. (FREEMAN, cit., p. 826). Segundo a professora da Faculdade de Direito de Harvard, são os exemplos mais típicos de “administração mista” o “contracting-out”, o “share standard-setting” e a “self-regulation”. Dentre suas principais ilações está a de que “(...) the state must have the capacity to play a variety of roles in a mixed regime: broker, networker, supervisor, enforcer and partner, to name a few. The state’s primary role in a mixed regime may be to
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nem tampouco mero utente de serviços (o que caracteriza tipologicamente o Estado
Social); pelo contrário, assume o papel de ator, partilhando com o Poder Público
responsabilidades na realização do interesse público13. Tal assunção, na grande maioria
dos casos, finda por publicizar aspectos diversificados de seu regime jurídico.
Muitas outras questões também exsurgem, gerando perplexidades em
todos os lugares onde o tema foi eleito como merecedor de maior aprofundamento: que
critérios devem permear a opção pela delegação do exercício de funções públicas aos
particulares? Quem poderia tomar tais decisões? Seria possível definir um limite,
intrínseco ou extrínseco, para as chamadas “funções indelegáveis14”, atividades
reputadas exclusivas de Estado?
Alguns paradoxos relativos à propalada “redução da esfera pública”
também são inevitáveis: ao mesmo tempo em que o Estado vê abreviado seu papel na
execução de uma determinada função pública, crescem-lhe as atribuições de controle
ou, até mesmo, os encargos de financiamento da atividade desestatizada (veja-se o caso
das parcerias público-privadas envolvendo a construção e a gestão de estabelecimentos
prisionais). Não se haveria de reconhecer aqui um avanço, e não um recuo do Estado?
Por outro lado, até mesmo nas atividades relacionadas à gestão militar, a opção por um
determinado modelo compartilhado não partiria de uma decisão soberana tomada pelo
Estado? Como falar em erosão da soberania, nesses casos, quando dados revelam um
incremento constante do “public law framework”? A complexidade das questões,
naturalmente, é ensejo para inúmeras discussões merecedoras de tratamento mais detido
e aprofundado; sua enumeração, contudo, é indicativa do terreno arenoso que se quer
perscrutar15.
facilitate the intervention of whichever combination of actors proves best capable of maximizing the benefits and minimizing the dangers posed by any particular public-private arrangement” (cit., p. 848, grifei). 13 GONÇALVES, Pedro. Entidades privadas com poderes públicos. Coimbra: Almedina, 2005, p. 150. 14 O Office of Management and Budget’s (OMB) do governo norte-americano editou a conhecida e controvertida Circular A-76, tratando de estabelecer critérios objetivos para as hipóteses de transferência ou não de uma determinada atividade ao mercado. O texto preocupa-se em determinar as chamadas atividades que seriam “inerentemente governamentais”, valendo-se de técnica legislativa aberta e termos indeterminados que, segundo nos parece, transferem o criticismo do problema para o exegeta ou aplicador do direito, ao invés de estipular parâmetros objetivos de decisão: “An inherently governmental activity involves: (1) Binding the United States to take or not to take some action by contract, policy, regulation, authorization, order, or otherwise; (2) Determining, protecting, and advancing economic, political, territorial, property, or other interests by military or diplomatic action, civil or criminal judicial proceedings, contract management, or otherwise; (3) Significantly affecting the life, liberty, or property of private persons; or (4) Exerting ultimate control over the acquisition, use, or disposition of United States property (real or personal, tangible or intangible), including establishing policies or procedures for the collection, control, or disbursement of appropriated and other federal funds”. 15 Concordamos com Phillipe Cossalter, que afirma ser vã qualquer tentativa de encontrar atividades indelegáveis a partir de uma suposta natureza intrínseca: “Historiquement l’armée, la justice et la police ont été
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Levantamos a hipótese de que existem dois fatores determinantes para tal
estado de arrefecimento do debate sobre o tema. O primeiro diz respeito à natureza
intrínseca das atividades delegadas, que muitas vezes afetam à própria razão de ser da
moderna Administração Pública; a autoridade do Estado, locus primeiro do poder
político, sofre pressões inevitáveis, que dificultam uma abordagem neutra ou objetiva.
Outro tema, não menos complexo, está associado a uma característica muito peculiar do
Direito Administrativo, que aqui chamaremos de “tripolaridade” (incorrendo em
neologismo); trata-se de um conflito temático latente, que muitas vezes pode obliterar a
visão do estudioso.
1.2 Novos elementos de tensão para um Direito Admin istrativo “tripolar”?
O Direito Administrativo opera entre três pólos complementares, porém
em permanente tensão, o que se reflete de modo inevitável no estudo sobre o exercício
não-estatal de poderes e funções de autoridade. Para SABINO CASSESE, tal característica
desenvolve-se em razão da peculiar evolução histórica do Direito Administrativo: tendo
nascido no século XIX como “instrumental do poder”, este haure, posteriormente, no
liberalismo e no socialismo, contribuições decisivas para o seu desenvolvimento e
consolidação do perfil atual16.
O eixo originário e tradicional é aquele constituído pelos poderes
públicos. Aqui se manifesta a feição derrogatória, especial, unilateral e privilegiada do
Direito Administrativo17, que é ponta de lança de toda a construção teórica a respeito
das especiais prerrogativas inerentes ao Estado. Na lição de ENTERRÍA e FERNANDEZ, o
conceito de poder (no sentido de potestade administrativa) emana de um confronto
exercées par des personnes privées, notamment à travers les concessions coloniales, et le recouvrement des impôts à travers les fermes fiscales. Il semble pourtant impossible de vouloir systématiser une règle concernant l’indélégabilité des activités publiques sans se référer aux fonctions indélégables «par nature»” (COSSALTER, Philippe. Le droit de l’externalisation des activités publiques dans les principaux systèmes européens. Disponível em: http://chairemadp.sciences-po.fr/pdf/seminaires/2007/rapport_Cossalter.pdf. Acesso em 05.12.2009). 16 O liberalismo é decisivo, na seara legislativa, para o desenvolvimento de uma legislação que buscou proteger o cidadão no confronto com o Poder Público, submetendo-o à lei e ao direito. O socialismo, por sua vez, demanda da administração uma postura voltada à promoção da igualdade, gerando um grande número de normas e institutos de regulação da vida social (CASSESE, cit., p. 51). 17 “O direito administrativo foi concebido como direito essencialmente desigual – o caráter derrogatório de suas regras relativamente àquelas do direito comum fundava-se sob a idéia de uma diferença irredutível de situações entre a administração, detentora do monopólio da coerção, e o administrado; as prerrogativas reconhecidas à
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dialético com o de direito subjetivo, eis que ambos consubstanciariam faculdades de
querer conferidas pelo ordenamento aos sujeitos18. O poder, no entanto, deflui
diretamente do ordenamento jurídico, ao contrário dos direitos subjetivos, que resultam
de uma relação jurídica; é, por sua vez, genérico, tendo como norte uma atuação
estipulada por meio de direções não específicas, consistindo numa possibilidade abstrata
de produção de efeitos jurídicos, sujeitando ou submetendo outros atores a posições
vantajosas, desvantajosas (conforme se extraia daí um gravame ou um benefício), ou até
mesmo neutras.
Tais prerrogativas, na sua feição mais conhecida, implicam uma atuação
de interferência na esfera da liberdade dos administrados ou na decisão de
“ requerimentos em assuntos da administração social ou do funcionalismo público, de
forma unilateral, vinculativa e reguladora19”, daí derivando algumas manifestações
“típicas”, tais como: a potestade normativa (criação de regras de observância obrigatória
para terceiros); o poder de constituição e determinação de efeitos inovadores sobre a
esfera jurídica do destinatário; o poder de polícia; o poder de certificação ou produção
de atos dotados de certeza pública ou força probatória peculiar; o poder de execução
coercitiva e coação; o poder de produção de títulos executivos, dentre inúmeros outros.
A existência de uma Administração dotada de potestades autoritárias,
segundo uma visão que podemos chamar de “tradicional”, seria desdobramento ou
manifestação do monopólio estatal do uso da violência (Gewalt), condição vital ao
Poder Público para a adequada realização de suas competências reguladoras
tradicionais, além de propulsora de um natural (e essencial) desnivelamento entre
Estado e particulares20. No curso deste estudo buscam-se alguns elementos para infirmar
administração, como as sujeições que lhe eram impostas, não seriam senão a tradução tangível dessa desigualdade.” (CHEVALLIER, cit., p. 91) 18 ENTERRÍA, Eduardo Garcia de; FERNANDEZ, Tomás-Ramon. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 377. Ainda segundo os autores espanhóis, “a potestade é sempre uma derivação de um status legal, pelo qual resulta inescusável uma norma prévia que, além de configurá-la, a atribua em concreto. Como conseqüência dessa origem legal os poderes são inalienáveis, intransmissíveis e irrenunciáveis, justamente porque são indisponíveis pelo sujeito enquanto criação do Direito objetivo supra-ordenado.” (cit., p. 379). 19 WOLLF; BACHOF; STOBER. Direito Administrativo. Vol. I. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006, p. 320. 20 É uma idéia extremamente cara, ainda, à própria formação do Direito Administrativo. Segundo lição de Pedro Gonçalves, a exigência de constituir um direito especificamente público, desvinculado dos pressupostos do direito privado, impera entre os administrativistas desde o Estado-Polícia, indicando a necessidade de uma construção dogmática do ato administrativo influenciada por postulados autoritários e de comando. Na doutrina alemã, especialmente a partir de Otto Mayer, tal concepção autoritária é revisitada, considerando a ausência de uma correlação entre o ato administrativo e o poder de comando ou ablação. Defende-se que, em muitos casos, aliás, o exercício do poder depende da manifestação do destinatário; sua autoridade persiste, todavia, porquanto
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ou, ao menos, problematizar tal premissa. Acreditamos que o poder administrativo, sob
o ponto de vista formal, não se expressa de modo distinto de outros poderes que o
ordenamento jurídico confere aos particulares, embora, naturalmente, variem em seu
conteúdo material concreto. De outra parte, seria simplista pretender que todas as
potestades públicas impliquem uma superioridade política da Administração, sendo
absolutamente trivial que do exercício de poderes públicos defluam situações benéficas
e ampliativas para os seus destinatários21. Um aspecto da potestade administrativa,
contudo, é inegável em todas as construções modernas: a sua co-natural “latência”,
potência (Macht), imperatividade e funcionalização (aderência a uma finalidade pública,
externa ao agente que a exerce).
O segundo vetor característico do Direito Administrativo seria aquele de
marcante influência socialista. No curso de sua evolução, os mesmos instrumentos
potestativos seriam utilizados não apenas para a afirmação de uma “supremacia geral”
do Estado frente à sociedade, mas para permitir à sociedade a realização de seus
interesses coletivos, com uma dimensão que também poderia ser reputada como
pública. Desloca-se o condão do poder administrativo: de defesa do “soberano” para a
defesa de “interesses públicos22”.
Ainda na visão de CASSESE, uma terceira vertente do nosso campo de
estudo operaria “ex parte civis”, figurando como elemento regulador das chamadas
“ lutas contra as imunidades do poder”, na famigerada sentença de ENTERRÍA, tornando
viável a estipulação de limites ao exercício do poder e obrigando a Administração
Pública a respeitar o princípio da transparência, motivando suas decisões. Trata-se, aqui,
de uma nítida influência da componente histórica liberal23.
a Administração teria a faculdade de, por si só, verificar a compatibilidade da pretensão com o interesse por ela tutelado (GONÇALVES, cit., p. 610). 21 ENTERRÍA; FERNANDEZ, cit., p. 381. Concordamos com Pedro Gonçalves quando afirma que o poder e autoridade, generalizados no direito público, são fenômenos apenas pontuais nas relações de direito privado (cit., p. 615). 22 O Direito Administrativo, especialmente no Brasil – onde recebe influência massiva de institutos já cunhados e desenvolvidos no âmbito do direito europeu –, costuma ser estudado sem uma devida percepção do condicionamento histórico de seus institutos. Há, no campo do exercício dos poderes público, uma notória “ilusão garantista” (não na “gênese”, como apregoado por ilustre professor lusitano, mas no “exercício exclusivamente estatal”) que demanda uma revisão à luz do marco constitucional. A construção das prerrogativas da “puissance publique”, assim como sua essencial relação com a persona estatal (publicatio), são manifestações históricas de uma “componente autoritária” do Direito Administrativo, nada obstante a sua vinculação ao Estado de Direito, que nasce, como é cediço, como “Estado Administrativo” (ESTORNINHO, Maria João. A fuga para o direito privado. Coimbra: Almedina, 1999, esp. capítulo 01). 23 CASSESE, cit., p. 57.
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O desenvolvimento dessas três matrizes históricas não segue a
linearidade comum às construções reducionistas; o movimento corrente é o da oscilação
(e não o da sucessão), aproximando-se o Direito Administrativo ora de instâncias
autoritárias, ora de abordagens coletivistas, ora de enfoques liberais. Nesses processos
entremeiam-se aspectos de concentração, assistencialismo e defesa do cidadão frente ao
Poder Público.
Não negamos a relevância da análise tradicional, que ainda é permeada e
informada, de maneira muitas vezes monolítica, por algum dos enfoques acima
destacados. O movimento que está em curso, no entanto, suscita a necessidade de
agregar um fator de tensão novo, em contexto já bastante problemático: a entrega do
exercício de funções de autoridade aos particulares tem como corolários imediatos tanto
a incorporação de novas formas de ação administrativa, pautadas por uma subjetividade
privada, como a criação de núcleos “destacados” no exercício da autoridade. A ausência
de um aprofundamento, doutrinário e legislativo, a respeito do tema, traz sério risco de
deixar o cidadão à mercê de um novo autoritarismo, gerando regimes jurídicos
semelhantes aos das anacrônicas “relações especiais de poder24”, como nomes
referenciais da doutrina nacional já abordam em seus trabalhos mais recentes25.
Nossa contribuição ao aprofundamento do tema apresenta-se, neste
estudo, por meio de uma análise problematizante das formas de privatização da
autoridade modernamente estudadas. É o que se buscará empreender no próximo item.
1.3 Poderes administrativos: privatização funcional e privatização material
24 A doutrina das relações especiais de poder (ou relações de sujeição especial), originada na Alemanha do século XIX, surgiu para fundamentar a existência de um poder administrativo especial que legitimaria a imposição de determinadas restrições aos direitos fundamentais de pessoas que se encontram em situações diferenciadas em relação ao Poder Público. Entre os exemplos tradicionalmente apontados, estão as relações que se desenvolvem entre o Estado e funcionários públicos, estudantes de escolas públicas, militares e presos – relações marcadas por uma acentuada dependência em relação ao Estado. Trata-se de uma construção jurídica que busca justificar a minoração dos direitos dos cidadãos, ou dos sistemas institucionalmente previstos para a sua garantia, como conseqüência de tal relação qualificada com o Poder Público. A doutrina das relações especiais é alvo de críticas acerbas em sua terra natal, tendo sido, desde 1972, objeto de intensa reformulação (ou desconstrução) por parte da jurisprudência, especialmente do Tribunal Constitucional Alemão. Em 2003, em famosa decisão, o BVerfG reiterou sua posição a afirmar a incidência do reserva de lei nas relações especiais de poder (BVerfG, 2BvR 1463/02, de 24.09.2003. Disponível em http://www.bverg.de/entscheidungen/rs20030924_2bvr143602.html. Acesso em 09.12.2009). 25 Cf., especialmente, BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 26ª ed., 2009, pp. 817 e ss.
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Classificações são sempre contingentes, e não faltam esforços, no campo
da metodologia da Ciência do Direito, para reforçar essa importante premissa de
construção do raciocínio jurídico26. No estudo do exercício privado de poderes de
autoridade – matéria que, em seu bojo, reúne categorias díspares e heterogêneas – o
esforço classificatório deve ser utilizado de maneira bifronte, atentando-se,
concomitantemente, para o seu caráter relativo e para a sua importância na
ordenação/conhecimento de uma realidade que, muitas vezes, apresenta-se caótica ao
pesquisador.
No direito comparado, como já se observou nas linhas anteriores, a
dificuldade de sistematização do assunto é assinalada por todos que o estudam. A
tradição jurídica norte-americana, por exemplo, adverte sobre os perigos de inclusão,
sob uma mesma rubrica (contracting-out, outsourcing), de fenômenos diversos como a
contratualização dos serviços de saúde, do sistema previdenciário e de complexos
prisionais27. No direito italiano, a expressão esternalizzazioni, apesar de em voga no
meio jurídico, é envolta por uma série de dúvidas, a começar pela ausência de um marco
legal e pela falta de definição de contornos quanto aos procedimentos utilizados para a
contratação do agente privado encarregado da execução da tarefa pública distribuída28.
No ordenamento germânico, onde o tema parece ter sido objeto de maior
aprofundamento teórico, há uma nítida preferência pela expressão “privatização”
(privatisierung), à qual se atribui amplo espectro29.
26 É o que afirma Michel Miaille, com seu típico viés problematizante: “Os juristas acreditam geralmente que as classificações lhes seriam dadas à partida, que seriam pré-estabelecidas, com as qualificações e com as divisões em classes correlativas ou pelo menos, com uma parte importante delas – isto, naturalmente, pelo e no próprio direito positivo, pelos e nos seus materiais” (Introdução crítica ao direito. Lisboa: Estampa, 1989, p. 140). 27 METZGER, cit., p. 1.394. 28 D’ALTERIO, Elisa. “L’esternalizzazione delle funzioni di ordine: il caso delle carceri”. Rivista trimestrale di diritto pubblico, nº 4, 2008, p. 963. 29 “Die ,,Privatisierung der Verwaltung“ kann unter verschiedenen Aspekten betrachtet und diskutiert werden. Sie betrifft den Bereich und die Erledigung von Verwaltungsaufgaben, grundlegende Verfassungs- und Verwaltungsrechtsgrundsätze (demokratische Legitimation, Rechtstaatprinzip, Sozialstaatprinzip), die Rechtsformen des Verwaltungshandelns, das Verwaltungsverfahren und Verwaltungsorganisation” (MAURER, cit., p. 614). Na edição mais recente de seu livro (Munique, 2009), o festejado professor propõe uma nova classificação das formas de privatização da Administração Pública. Temos, assim: (i) privatização organizacional ou formal (organisationsprivatisierung oder formelle Privatisierung), por meio da qual o Estado institui pessoas privadas, crias pessoas “mistas”, ou associa-se a organizações já existentes, valendo-se da flexibilidade gerencial do Direito Privado (algo próximo ao que temos aqui com os entes de direito privado da administração indireta); (ii ) privatização funcional (funktionale Privatisierung), por meio da qual o Estado encarrega o particular da execução de algumas tarefas, na condição lata de assistente administrativo (Verwaltungshelfer), valendo-se de suas específicas habilidades e competências e entregando-lhe as principais responsabilidades pela execução da tarefa; (iii ) privatização material (materielle Privatisierung), por meio da qual o Estado entrega a total responsabilidade de uma tarefa aos particulares, assumindo funções de resguardo, supletivas e subsidiárias e; (iv) alienação de ativos (Vermögensprivatisierung), modalidade em que o Estado se desfaz de seu patrimônio, bens e ativos (incluindo ações de sociedades e outros títulos), entregando-os à iniciativa privada (cit., p. 616). Importante ainda, no direito alemão, a distinção entre o concessionário
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Consideramos útil – até porque utilizada entre os administrativistas
brasileiros, ainda que de modo assistemático – a proposta classificatória que desdobra o
exercício da autoridade entre a “mera contribuição auxiliar” (prática de atos materiais,
acessórios, instrumentais) e a “transferência efetiva de responsabilidades”. Nessa
mesma linha, MARTIN BURGI, professor da Ruhr-Universität, formulou um norte
interessante para sistematização do tema30, definindo a necessidade de desdobramento
entre as formas de exercício compartilhado de funções públicas: i) a privatização
funcional, que corresponde a uma mera contribuição dos particulares, com sua
capacidade e competência, para a execução de uma função pública pela própria
Administração e; ii ) a privatização orgânica, na qual uma entidade privada é investida
do exercício de um poder público, figurando como depositária da responsabilidade pela
execução de uma tarefa que a lei confiou à Administração Pública. Dois níveis de
participação podem ser identificados: nesta última, o particular fica investido da
execução da tarefa pública – com nítidas projeções em relação ao perfil subjetivo da
função administrativa – ao passo que, na privatização funcional, os particulares
simplesmente colaboram ou contribuem para a realização dos objetivos estatais.
A dicotomia é relevante porque afeta diretamente o conjunto de
formalidades relativas ao ato de delegação ou ao contrato em causa, bem como o regime
jurídico aplicável ao particular durante a execução do poder ou da função que lhe é
atribuída. Pode-se dizer que a privatização funcional de poderes administrativos não
tem projeção no seio da organização administrativa e que o regime jurídico aplicável ao
delegatário, inclusive no que houver de exorbitante em relação ao direito privado, é
decorrência de uma vinculação contratual. Já na privatização orgânica, a entidade
privada vê-se investida da tarefa pública, cabendo-lhe assumir, com autonomia, a
direção da função que lhe foi incumbida. Haveria aqui um processo de
compartilhamento de responsabilidades, com um regime jurídico mais rigoroso
envolvendo a reserva da legalidade e outros temperamentos no regime jurídico de
Direito Público (vinculações jurídico-públicas, ou aplicação do chamado “Direito
Privado Administrativo”), eventualmente estipulados em lei ou contrato. Existem, como
(Beliehene) e o assistente administrativo (Verwaltungshelfer), considerando que este último funciona como um mero “instrumento” de realização de funções de autoridade, persistindo o poder decisório com o Poder Público. 30 BURGI, Martin. Funktionale Privatisierung und Verwaltungshilfe. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999. O autor considera que no âmbito da privatização orgânica se inclui a criação de entes de direito privado pela Administração. Observe-se, portanto, que não há coincidência com a terminologia utilizada por Hartmut Maurer, especialmente no que tange à chamada privatização funcional e ao enquadramento conceitual dos colaboradores administrativos.
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facilmente se pode concluir, limites intrínsecos e extrínsecos ao uso de tal modalidade
de privatização, cujos contornos não serão discutidos nesta sede.
Considerando o interesse específico do trabalho, importa considerar que
a investidura do particular em poderes administrativos, bem como a sua concreta
extensão, são elementos indispensáveis para identificar a responsabilidade na gestão de
uma determinada atividade e, portanto, em qual das modalidades de privatização se está
a incorrer31.
A figura da privatização orgânica envolvendo a atribuição de poderes de
autoridade a entidades privadas é, sem dúvida, a que desperta o maior número de
problematizações. Não se deve minimizar o confronto, uma vez que, nesse campo,
existe uma tensão interna inerente: “o particular tem o corpo no Estado, mas seu
espírito pertence à Sociedade32”.
Num intento de sistematização, pode-se afirmar que a privatização
orgânica resulta de três circunstâncias básicas: a) contratualização – de que é exemplo
mais comum a concessão (Beleihung) –, abdicando o Poder Público das prerrogativas
quanto ao exercício imediato de uma determinada tarefa; b) delegação legislativa
específica e; c) criação de uma entidade administrativa formalmente privada.
Para a expressão dominante na doutrina nacional, as hipóteses aqui
identificadas como de “privatização orgânica da autoridade” derivam de
excepcionalidades legislativas ou de desvios quanto ao uso de determinado instrumental
ou instituto do Direito Administrativo. É assim, por exemplo, que se vai reconhecer e
enquadrar as inúmeras funções de autoridade exercidas pelos capitães de navio e
comandantes de aeronave33, ou das atribuições de efetivação do processo expropriatório
31 Esclarecedor é o “caso dos radares”, citado por Burgi (cit., p. 145). Nos anos 90, as autoridades administrativas alemãs com atribuições de fiscalização de trânsito contratavam empresas para a instalação de aparelhos de medição de velocidade dos veículos. Diante de tais contratos, entendiam os tribunais administrativos que a mera instalação de radares constituía auxílio administrativo (Verwaltungshilfe). O que transcendesse tal atuação, como no caso da verificação e medição da velocidade, bem como a documentação das infrações, deveria ser considerado delegação de responsabilidade (ocorrendo, portanto, por meio da Beleihung). A posição restritiva da jurisprudência foi criticada de modo contundente pela doutrina, o que gerou uma revisão do posicionamento. 32 GONÇALVES, cit., p. 395. 33 “Os atos jurídicos expressivos de poder público, de autoridade pública, e, portanto, os de polícia administrativa, certamente não poderiam, ao menos em princípio e salvo circunstâncias excepcionais ou hipóteses muito específicas (caso, e.g., dos poderes reconhecidos aos capitães de navio), ser delegados a particulares” (BANDEIRA DE MELLO, Curso..., p. 832). O eminente professor, infelizmente, não menciona que circunstâncias poderiam autorizar tais atribuições excepcionais de poder pelo legislador, o que faz lançar o esforço explicativo de um tema tão relevante, como é o do exercício das potestades administrativas, na seara do casuísmo ou das justificativas amparadas por um viés pragmático. Nos termos do Código de Aeronáutica em vigor (Lei nº 7.565/86), a saber, a autoridade do comandante de aeronave é exercida durante todo o vôo sobre as pessoas e coisas que se encontrem a bordo, podendo ainda: “I – desembarcar qualquer delas, desde que comprometa a boa ordem, a disciplina, ponha em risco a segurança da aeronave ou das pessoas e dos bens; II – tomar as medidas necessárias à proteção da aeronave e das pessoas ou bens transportados; III – alijar a carga ou
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por meio de concessionários de serviços públicos34 e, ainda, a atribuição de
competências fiscalizatórias a entidades administrativas regidas pelo Direito Privado35.
Em regra, a abordagem é casuística e parte de falsos supostos, relegando-se o assunto à
seara do ostracismo ou da abordagem turvada por preconceitos injustificáveis.
Por sua vez, a chamada “privatização funcional”, a despeito de nunca ter
sido alvo de um tratamento sistematizado, não é alvo de maiores preocupações, tendo
em vista que, aprioristicamente, é inócua sob o ponto de vista da responsabilidade do
Estado no cumprimento de suas tarefas institucionais, considerando que as atividades
privadas são de mera colaboração ou execução. Reputamos necessário, todavia, um
esforço compreensivo mais detido a respeito da categoria, bem como de suas
implicações reais e virtuais.
1.4 A privatização funcional entre a cooperação e a cooptação
No âmbito da privatização funcional, especialmente no que tange ao
exercício de poderes públicos, o setor privado atua como mero colaborador, auxiliar ou
assistente da Administração Pública. Usando de terminologia mais corrente, podemos
afirmar que há, nestes casos, terceirização, o que vale dizer, o recurso aos serviços e
meios de terceiros numa área que se mantém sob a responsabilidade do Poder Público.
Para que ocorra, é fundamental que a contribuição dos particulares se dê no âmbito do
Direito Privado, sem participação direta no exercício de uma função pública. O peculiar
parte dela, quando indispensável à segurança do vôo” (arts. 165 a 168). Reputamos dispendioso, desnecessário e irracional que a Administração Pública escale um imenso contingente de funcionários seus para cumprir todas as funções enumeradas. O que não se pode, todavia, é admitir, de modo irrefletido, que um pressuposto fático ou utilitário sirva ao enquadramento de apenas uma parcela dos problemas jurídicos, tornando inacessível o objeto de estudo, ao invés de simplificar a sua compreensão. Do outro lado do oceano, no direito italiano, o comandante de navio figura como um dos mais antigos exemplos de exercício privado de poderes públicos de comando e disciplina sobre a “gente di mare” (ZANOBINI, cit., p. 411). 34 Dec.-lei nº 3.365/41, art. 3º (“Os concessionários de serviços públicos e os estabelecimentos de caráter público ou que exerçam funções delegadas do poder público poderão promover desapropriações mediante autorização expressa, constante de lei ou contrato”). 35 O Superior Tribunal de Justiça, em recente acórdão (STJ, 2ª Turma, REsp 817.534/MG, Rel. Min. Mauro Campbell Marques, p. em 10.12.2009), em que se discutia a regularidade do exercício de competências fiscalizatórias de trânsito pela BHTRANS (sociedade de economia mista municipal), desenvolveu argumentação superficial e rasteira a partir da qual conclui que: “No que tange aos atos de sanção, o bom desenvolvimento por particulares estaria, inclusive, comprometido pela busca do lucro - aplicação de multas para aumentar a arrecadação”. Na doutrina acompanham este entendimento, dentre outros, Diógenes Gasparini (Polícia de Trânsito. Competência e Indelegabilidade. Revista da PGE de São Paulo, nº 36, p. 1262 e ss.) e Álvaro Lazzarini (Estudos de Direito Administrativo. 2ª ed. São Paulo: RT, 1999). Em sentido contrário: José dos Santos Carvalho Filho (Manual de Direito Administrativo. 16ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006) e Carlos Ari Sundfeld (“Empresa estatal pode exercer o poder de polícia”. Boletim de Direito Administrativo, nº2. São Paulo: NDJ, 1993).
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formato da figura suscita um questionamento reiterado: haveria, nesta hipótese, uma
“verdadeira” privatização?
A despeito de figurar com sentido diverso daquele que, tradicionalmente,
é o mais conhecido (especialmente como venda de ativos com transferência de
titularidade de empresas, em sentido que “popularizou” a expressão no Brasil durante a
década de 90), na privatização funcional a Administração Pública prescinde da
utilização de seus próprios meios, preferindo o recurso a um instrumental externo, que
contribui para a execução de uma atividade típica à função administrativa. Nesse
campo, os particulares podem contribuir na preparação (atividade antecedente) e na
execução/efetivação (atividade subseqüente) de uma determinada atividade
administrativa.
A hipótese na qual particulares contribuem para a preparação de uma
determinada decisão ou atividade pública é tratada com naturalidade pela doutrina
nacional. Na seara do poder de polícia, partindo-se da premissa axiomática que impõe a
sua indelegabilidade, é admitida a transferência das chamadas atividades instrumentais,
de natureza técnica ou material, visando à produção de uma decisão policial pelo
Estado. Tais misteres privados geralmente se desencadeiam por meio do chamado
“credenciamento36”.
BURGI acentua, na hipótese, a necessidade de uma clara delimitação
conceitual, sob o risco de uma delegação fática da autoridade (faktische Beleihung)37.
Afirma, ainda, que a Administração recorre a organismos externos por não deter
competências técnicas nem recursos e, naturalmente, não disporá de condições para
efetuar uma recepção crítica dos resultados que aqueles apresentam, para eventualmente
corrigi-los ou descartá-los, se for caso. O recurso a colaboradores pode, assim, provocar
a privatização de fato de um poder administrativo de decisão, uma vez que as bases do
36 DALLARI, Adilson. ”Credenciamento”. In: MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Estudos de direito administrativo em homenagem a Geraldo Ataliba. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 191. Também na obra de Bandeira de Mello é possível colher lição semelhante: “É certo que particulares podem ser contratados para a prática de certos atos que se encartam no bojo da atividade de polícia, pelo menos nas seguintes hipóteses: (...) para atividades materiais que precedam a expedição de ato jurídico de polícia a ser emitido pelo Poder Público, quando se tratar de mera constatação instrumental à produção dele e efetuada por equipamento tecnológico que proporcione averiguação objetiva, precisa, independentemente da interferência de elemento volitivo para reconhecimento e identificação do que se tenha de apurar” (BANDEIRA DE MELLO. “Serviço público e poder polícia: concessão e delegação”. Revista Trimestral de Direito Público, nº 20. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 27). 37 BURGI, cit., p. 163.
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juízo ficam, na prática, nas mãos das entidades privadas, que atuam segundo o direito
privado e segundo suas motivações privadas38.
A proposta por soluções de enquadramento de tais particulares em um
chamado “regime jurídico-administrativo mínimo” é medida de caráter impositivo,
sobretudo, em vista dos inúmeros contratos que o Poder Público celebra em busca de
manifestações técnicas de particulares com base em inexigibilidade inominada de
licitação (art. 25 da Lei nº 8.666/93). A regulação do tema poderia tangenciar, por
exemplo, alguns aspectos que permitam à Administração, se não uma recepção crítica,
ao menos uma avaliação quanto à idoneidade da colaboração, que deve remontar aos
critérios de escolha do Verwaltungshelfer, assim como à observância de balizas
mínimas do regime jurídico-administrativo, revelando-se, por exemplo, em diretrizes de
objetividade e imparcialidade na produção da atividade de apoio à tomada de decisão.
(Texto para discussão: Favor não divulgar sem a autorização do autor)
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BURGI, Martin. Funktionale Privatisierung und Verwaltungshilfe. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999.
38 A seguir um critério de coerência, o mais correto, na hipótese, seria a exigência de lei para a contratação de colaboradores, por reconhecer que na hipótese se deflagra um exercício efetivo da autoridade. Parece não ser essa, contudo, a melhor solução, considerando a sua pouca aderência à realidade.
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