zizek texto_004_-_luta_de_classes_na_psicanlise.pdf

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    Texto Retirado de: http://www.cefetsp.br/edu/eso/filosofia/lutaclassesjungfreud.html

    Luta de classes na psicanlise

    Jornal "Folha de So Paulo", 07 de julho de 2002

    * Slavoj Zizek

    O ensasta analisa as tenses entre modernismo e antimodernismo nas obras de Freud e Jung, do qual est sendo lanado no Bras il, pela editora Vozes, o segundo volume das "Cartas"

    O surpreenden te no antagonismo que exis te entre Freud e Jung a t que ponto ele continua a tual: quase um sculo depois de seuaparecimento, o dio mtuo continua forte. Nas ltimas dcadas, a psicanlise foi a grande perdedora para a enxurrada dapsiquiatria farmacolgica e cognitivo-behaviorista. Enquanto isso, a teoria junguiana continuou firme e at ampliou sua hegemoniano campo da ideologia popular.

    Jung no apenas um verdadeiro autor best-seller - pelo intermdio de Joseph Campbell , que o popula rizou, ele chegou ao ponto dedesempenhar papel formador nas o rigens do universo de "Guerra nas Estrelas".

    De onde vem essa popularidade contnua? simples: Jung promete a reconciliao entre a cincia e a espiritualidade gnstica,oferecendo uma espiritualidade fundamentada diretamente na pesquisa cientfica. Em seus escritos, encontramos, lado a lado,referncias fsica quntica, a pesquisas empricas , astrologia, crena no reino espiritual oculto "mais profundo" e tc.

    O inconsciente junguiano no mais aquele dos impulsos sexuais reprimidos, mas o da libido dessexuada, dos poderes espirituaisque ultrapassam o ego consciente. Para os junguianos, Freud permanece no nvel do naturalismo biolgico -sexual vulgar, ao passoque Jung reconciliaria o inconsciente com a espiritualidade "mais profunda".

    Contrariando todas as aparncias, no fcil definir a di ferena en tre Jung e Freud. A primeira associao que fazemos consiste e mdizer: "Sim, claro - contra Freud, Jung afirmou os arqutipos e o inconsciente coletivo". Quando Freud trata de um caso de

    claustrofobia, ele sempre inicia a busca por alguma experincia traumtica singular que esteja na raiz dessa fobia. O medo deambientes fechados em geral seria baseado numa experincia de enclausuramento. Esse procedimento freudiano deve serdistinguido da busca junguiana por arqutipos: para Freud, a origem no uma experincia traumtica universal e paradigmtica(por exemplo, o medo de permanecer encerrado no tero da me), mas alguma experincia singular que, possivelmente, tenha umaligao inteiramente contingente, externa a um espao fechado. E se e u tiver tes temunhado alguma cena traumtica que pode teracontecido em algum outro lugar, num espao fechado?

    Sistema de razes

    Mas a distino-chave no essa . Jacques Lacan afirmava que a verdadeira frmula do materialismo no "Deus no existe", mas"Deus inconsciente". Basta recordar que, numa carta escri ta a Max Brod, Milena Jesenska escreveu sobre Kafka: "Sobretudo, coisascomo dinheiro, Bolsa de Valores, a administrao de divisas, mquinas de escrever so, para ele, inteiramente msticas (o que elas

    efetivamente so, no apenas para ns, os outros)". Devemos le r essa afirmao contra o pano de fundo da anlise feita por Ma rx dofetichismo de produtos: a iluso fetichista est e m nossa vida social real, no na percepo que dela temos.

    http://www.cefetsp.br/edu/eso/filosofia/lutaclassesjungfreud.htmlhttp://www.cefetsp.br/edu/eso/filosofia/lutaclassesjungfreud.html
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    Um sujeito burgus sabe muito bem que no existe nada de mgico no dinheiro, que ele apenas um objeto que simboliza umconjunto de relaes so ciais. Mesmo assim, ele age na vida real como se a creditasse que o dinheiro uma coisa mgica. Assim, issonos fornece um insigh t preciso sobre o uni verso de Kafka: ele foi capaz de vivenciar di retamente essas crenas fantasmticas quens, pessoas "normais", rejeitamos. A "magia" de Kafka aquilo que Marx gostava de descrever como a "esquisitice teolgica" dosprodutos.

    Esse "Deus inconsciente" de Lacan no deve ser confundido com a tese "new age" junguiana oposta, de que "o inconsciente Deus". A di ferena entre as duas , a diferena da i nverso entre sujeito e p redicado, diz respei to oposio e ntre verdade e mentira.O "Deus inconsciente" de Lacan aponta para a falsidade fundamental que fornece a unidade fantasmtica de uma pessoa: o queencontramos quando vamos buscar no ncleo mais profundo de nossa personalidade no nosso verdadeiro "self", mas a falsidadeprimordial ("proton/ pseudos") - todos ns, em segredo, acreditamos no "grande Outro" (essa oposio exatamente a mesma que

    existe entre "o sonho vida" e "a vida sonho".

    Enquanto a primeira declarao visa afirmao nietzschiana do sonho como experincia de vida integral, a segunda expressa aatitude de desespero melanclico la Caldern: o que a vida seno um sonho vo, uma sombra plida, sem substncia?).Contrastando com ela, "o inconsciente Deus" significa que a verdade divina reside na profundeza inexplorada de nossapersonalidade: Deus a substncia espiritual interna mais profunda de nosso ser, que e ncontramos quando pene tramos em nossoverdadeiro "self".

    E, medida que, nessa perspectiva junguiana, o inconsciente um grande sistema de razes escondidas que nutre a conscincia, nosurpreende que j tenha sido Jung, mui to antes de Gilles Deleuze, quem explicitamente o tenha descri to como um rizoma: "A vidasempre me pareceu ser como uma planta que se nutre de seu rizoma. Sua verdadeira vida invisvel, oculta no rizoma. (...) O queenxergamos a flor, que passageira .

    O ri zoma permanece" ["Memrias, Sonhos e Reflexes", ed. Nova Fronteira". O pano de fundo religioso dessa distino o espaoque separa o universo judaico-cristo daquele do gnosticismo pago. Quando, pouco antes da ruptura entre eles, Freud confiou aJung a presidncia da Associao Psicanaltica In ternacional, ele o fez em parte como es tra tgia desesperada para cortar o co rdoumbilical judaico da psicanlise e torn-la acei tvel aos no-judeus -mas a aposta no deu certo .

    Devemos recordar o famoso dito de Herdoto com relao Esfinge ("os enigmas dos antigos egpcios eram enigmas tambm paraos prprios e gpcios"), que aponta para o vnculo es treito entre o judasmo e a psicanlise: em ambos os casos, o foco no encontrotraumtico com o abismo do Outro que deseja.

    O encontro do povo judaico com seu Deus, cujo chamado impenetrvel os afas ta dos caminhos da rotina do cotidiano humano ; o

    encontro da criana com o enigma do gozo do Outro. Essa caracters tica pa rece distinguir o "paradigma" judaico -psicanaltico noapenas de qualquer verso do paganismo e do gnosticismo (com sua nfase sobre a autopurificao espiritual interior, sobre avirtude como a realizao de nossos potenciais mais profundos) mas tambm, e no menos, do cristianismo. Afinal, este ltimo no"supera" o carter de "Outro" do Deus judaico por meio do princpio do amor, da reconciliao/ unificao de Deus e do homem notornar-se homem de Deus?

    Jornada interior

    Tanto o paganismo quanto o gnosticismo (a reinscrio da postura judaico -cris t no paganismo) enfatizam a "jornada interior" deautopurificao espiritual, o retorno a nosso verdadeiro eu interior, a redescoberta do eu, formando um contraste claro com a idia judaico-cristo de um encon tro traumtico externo (o chamado di vino lanado ao povo judeu, o chamado de Deus a Abrao, a Graainescrutvel -todos totalmente incompatveis com nossas caractersticas "inerentes", a t mesmo com nossa tica "natural" inata).

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    Kierkegaard tinha razo: Scrates versus Cristo, a jornada interior do relembrar versus o renascimento por meio do choque doencontro externo. Nisso reside, tambm, o espao l timo que vai eternamente separar Freud de Jung: enquanto o insight original deFreud diz respeito ao encontro externo traumtico com a Coisa que incorpora o gozo, Jung reinscreve o tpico do inconsciente naproblemtica gnstica padro da jornada espiritual interio r de au todescoberta.

    Assim Freud totalmente moderno: a noo freudiana de um ato falho (por exemplo, algo que se diz sem querer) enfatiza suacontingncia radical. A interpretao freudiana no discerne nele um "significado mais profundo" ("era predeterminado que iss oacontecesse comigo"), mas simplesmente deixa visvel como, de maneira totalmente contingente, um "desejo" inconsciente se ligoua um elemento ou acontecimento cotidiano e superficial de uma maneira que no possui nenhuma ligao inerente com ele. E, oque ainda mais radical, os prprios elementos constituintes bsicos da identidade do sujeito - os significantes em torno do qual seuuniverso simblico se cristalizou, a fantasia fundamental que fornece as coordenadas de seu desejo - resultam de uma srie de

    encontros traumticos contingentes.

    A cincia moderna estritamente correlativa afirmao da contingncia universal (que, evidente, no se ope necessidadecausal, mas funciona como seu anverso inerente: a necessidade causal opera sob a forma de regras que regulamentam ainterminvel interao "contingente" -sem sentido- de elementos). Assim, o que a interpretao freudiana envolve uma teoriamaterialista e "moderna" do prprio significado. Quanto a seu status ontolgico, o significado estritamente secundrio, umamanei ra de "internalizar" o choque traumtico de algum encontro contingente anterior.

    No existe nenhum "significado mais profundo" por baixo da contingncia de acontecimentos; pelo contrrio, o prprio significadoque designa a maneira pela qual um sujeito finito consegue lidar com a insuportvel contingncia do "destino da carne". Porexemplo, quando eu me apaixono profundamente, realmente, parece que "toda a minha vida anterior foi apenas uma preparaopara o momento mgico em que conheci voc" - e o objetivo da interpretao freudiana justamente "desconstruir" essa ilusoretroativa , trazendo tona as caracters ticas simblicas contingentes em razo das quais eu me apaixonei.

    Formando um contraste claro com Freud, a reinscrio junguiana da psi canlise dentro dos limites da sabedoria pr -modernaenvolve a ressubstancializao macia da sexualidade: o masculino e o feminino so postulados como os dois aspectoscomplementares da psique humana, cujo equilbrio precisa ser mantido (cada homem precisa redescobrir o aspecto feminino de suapsique e vice-versa) -o exato oposto do construcionismo moda de Judith Butler, que concebe a identidade sexual como sendoproduzida discursivamente pela encenao fsi ca e a sedimentao gradual .

    Sabedoria " new age"

    A Profecia Celestina" [ed. Objetiva], de James Redfield, exemplar no que diz respeito a esse vis antimodernista da sabedoria "new

    age": postula como a primeira "nova mensagem" que vai abrir o caminho para o "despertar espiritual" da humanidade a conscinciade que no existem encontros contingentes.

    Ou seja, como nossa energia psquica faz parte da energia do prprio universo, que, em segredo, determina o rumo das coisas, osencontros contingentes e xternos sempre portam uma mensagem e ndereada a ns, a nossa situao concreta. Eles ocorrem comoresposta a nossas necessidades e perguntas (por exemplo, se determinado problema est me preocupando e algo inesperadoacontece -um amigo que eu no via h muito tempo me faz uma visita, alguma coisa d errado em meu trabalho, por exemplo-, esseacidente com certeza contm uma mensagem referente a meu problema).

    Assim, concluindo, vamos dar um exemplo artstico que encena essa passagem de Freud a Jung: o romance de fico cientfica"Solaris" [1962", de Stanislav Lem, e sua adaptao para o cinema, feita por Andrei Tarkvski em 1972. Tanto o livro quanto o filmenarram a mesma histria: a do psiclogo de uma agncia espacial , Kelvin, que enviado a uma nave espacial semi-abandonada quesobrevoa um planeta recm-descoberto, Solaris, onde fatos estranhos vm acontecendo recentemente (cientistas enlouquecem,tm alucinaes e se matam). Solaris um planeta cuja superfcie ocenica, fluida e se move incessantemente.

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    De tempos em tempos, ela assume formas re conhecveis, no apenas complexas estruturas geomtricas , mas tambm corposinfantis gigantes ou edifcios humanos. Embora todas as tentativas de comunicao com o planeta fracassem, Kelvin acaba porcompreender que Solaris um crebro gigantesco que, de alguma maneira, l nossos pensamentos e materializa nossas fantasiasmais profundas. aqui que devemos rejeitar a leitura junguiana de "Solaris": o xis da questo de Solaris no apenas projeo-materializao dos mpetos internos no reconhecidos do sujeito (homem) - muito mais crucial do que isso que, para que essa"projeo" possa acontecer, preciso que a Outra Coisa impenetrvel (o planeta Solaris) j exista. Assim, o verdadeiro enigma apresena dessa Coisa.

    O problema com Tarkvski que fica claro que ele prprio opta pela leitura junguiana, segundo a qual a jornada externa do heri apenas a externalizao e/ou projeo da jornada inicitica interna rumo s profundezas de sua psique. Formando um contrasteclaro com isso, o li vro de Lem focaliza a presena inerte e externa do planeta Solaris , dessa "Coisa que pensa" (usando a expresso

    de Kant, que cabe perfeitamente aqui): o xis do livro justamente que Solaris permanece um Outro impenetrvel, sem nenhumacomunicao possvel conosco. verdade que ele nos remete a nossas fantasias mais profundas e negadas, mas a questosubjacente a esse ato permanece totalmente impenetrvel: por que ele o faz? Como resposta puramente mecnica? Para brincarconosco de maneira demonaca? Para nos ajudar -ou forar- a confrontar nossa verdade negada?

    Flutuaes polticas

    Esses indicativos breves deixam claro o que realmente est em questo na oposio Freud e Jung. Sim, uma disputa entrematerialismo e idealismo - s que "materialismo", neste contexto, no significa naturalismo vulgar, mas a afirmativa plena dacontingncia radical de nosso ser. "Freud contra Jung" simboliza a modernidade contra o falso obscurantismo ps-moderno. E,paradoxalmente, o prprio "essencialismo" de Jung que o expe a flutuaes p olticas acidentais. No incio dos anos 1930, quandoHitler chegou ao poder, Jung foi pr-nazista por um curto perodo: ele assumiu a presidncia da Sociedade Alem de Psicologia, paracoorden-la com as exigncias dos "novos tempos".

    Mais sinistra, porm, do que esse "erro" talvez tenha sido a facilidade com que Jung mais tarde mudou sua posio e assumiupostura antinazista, usando basicamente os mesmos termos e conceitos por meio dos quais, anteriormente, tinha legitimado onazismo.

    * Slavoj Zizek filsofo esloveno, professor do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana. autor de "Eles No Sabem OQue Fazem" (Jorge Zahar) e "Um Mapa da Ideologia" (Contraponto). Escreve todo ms na seo "Autores", do Mais!.

    Traduo de Clara Allain.