10_artigo_-_rock80_-_gustavo

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[revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 - ano III - número 10 - teresina - piauí julho agosto setembro de 2011] 1 A JUVENTUDE DOS ANOS 80 EM AÇÃO: MÚSICA, ROCK E CRÍTICA AOS VALORES MODERNOS. Gustavo dos Santos Prado 1 RESUMO: O presente artigo possui, como eixo central, a análise de algumas músicas do rock nacional dos anos 80, com o objetivo de discutir a visão que o movimento possui, referente aos paradoxos da modernidade. Para tanto, foram selecionadas seis letras de canções, de bandas diversas, que permitirão uma relação dúbia de aproximação e reflexão sobre os valores modernos, nelas expressos. Por fim, procura-se trilhar pelos desafios propostos no trabalho envolvendo a música e suas particularidades como fonte histórica. PALAVRAS - CHAVE: Rock. Música. Juventude. Modernidade. Anos 80. ABSTRACT: This article has as the centerpiece, the analysis of some of the national rock music of 80 years, in order to discuss the vision that the movement has, referring to the paradoxes of modernity. To this end, we selected six letters of songs from various bands, which allow a dubious relationship approach and reflection on modern values, expressed in them. Finally, we seek to tread the challenges proposed by the work involving music and its peculiarities as a historical source. KEY WORDS: Rock. Music. Youth. Modernity. 80 years. Introdução O uso da música como fonte histórica está cada vez mais em pauta no cenário das discussões acadêmicas. Sob esta perspectiva, tal fonte possui a capacidade de extrair ou fornecer elementos importantes na reconstituição de um passado vivido. Independente de suas dificuldades teórico-metodológicas, os elementos provenientes dos sons produzidos são capitais no fazer histórico e não devem ser ignorados, pois 1 Discente do curso de Mestrado em História Social, na linha "História e Cultura", na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), onde o projeto possui financiamento da CAPES.

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10_Artigo_-_Rock80_-_Gustavo

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  • [revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 - ano III - nmero 10 - teresina - piau julho agosto setembro de 2011]

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    A JUVENTUDE DOS ANOS 80 EM AO: MSICA, ROCK E CRTICA AOS VALORES MODERNOS.

    Gustavo dos Santos Prado1

    RESUMO: O presente artigo possui, como eixo central, a anlise de algumas msicas do rock nacional dos anos 80, com o objetivo de discutir a viso que o movimento possui, referente aos paradoxos da modernidade. Para tanto, foram selecionadas seis letras de canes, de bandas diversas, que permitiro uma relao dbia de aproximao e reflexo sobre os valores modernos, nelas expressos. Por fim, procura-se trilhar pelos desafios propostos no trabalho envolvendo a msica e suas particularidades como fonte histrica. PALAVRAS - CHAVE: Rock. Msica. Juventude. Modernidade. Anos 80. ABSTRACT: This article has as the centerpiece, the analysis of some of the national rock music of 80 years, in order to discuss the vision that the movement has, referring to the paradoxes of modernity. To this end, we selected six letters of songs from various bands, which allow a dubious relationship approach and reflection on modern values, expressed in them. Finally, we seek to tread the challenges proposed by the work involving music and its peculiarities as a historical source. KEY WORDS: Rock. Music. Youth. Modernity. 80 years.

    Introduo

    O uso da msica como fonte histrica est cada vez mais em pauta no

    cenrio das discusses acadmicas. Sob esta perspectiva, tal fonte possui a

    capacidade de extrair ou fornecer elementos importantes na reconstituio de um

    passado vivido. Independente de suas dificuldades terico-metodolgicas, os

    elementos provenientes dos sons produzidos so capitais no fazer histrico e no

    devem ser ignorados, pois

    1 Discente do curso de Mestrado em Histria Social, na linha "Histria e Cultura", na Pontifcia

    Universidade Catlica de So Paulo (PUC-SP), onde o projeto possui financiamento da CAPES.

  • [revista dEsEnrEdoS - ISSN 2175-3903 - ano III - nmero 10 - teresina - piau julho agosto setembro de 2011]

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    a temporalidade da msica faz dela um universo de sentir que s em ltima anlise atinge a racionalidade na placidez de seu olhar imvel. O sentir tempo, no espao; a prpria espacialidade s se faz sentir quando devidamente estimulada por agentes especiais que a fazem movimento. (WISNIK E SQUEFF, 1982, p.16)

    Os anos 80 foram marcados por uma grande mudana na sociedade

    brasileira, nos quais assistimos emergncia de jovens, insuflados por batidas e

    acordes de guitarra, projetando seus coraes e mentes na busca de solues para

    os problemas de sua poca. Consequentemente

    o rock uma msica feita, em grande parte, por jovens e direcionada, sobretudo, para os jovens. Por ter principalmente essa faixa etria como adeptos, o rock, de certa forma, uma ferramenta que a juventude utiliza, inconscientemente, para se afirmar perante a sociedade e ao mundo. No somente as letras, as msicas e os solos de guitarra que atraem a mocidade, mas tambm o estilo, o jeito e os trejeitos, as maneiras que os grupos criam, recriam e, supostamente, vivem o seu universo roqueiro. (ENCARNAO, 2009, p. 12)

    Tal manifestao juvenil foi fortemente marcada por duas tendncias. Em um

    primeiro momento, as bandas do perodo foram oriundas do movimento punk,

    iniciado nos anos 702. Era comum a atitude independente dos jovens, com a

    formao de bandas de garagem, estilo prprio de vesturio, corte de cabelo, dentre

    outras, sendo simbologias societrias fundamentais na sua caracterizao e no seu

    processo de identificao.3

    Para alm do movimento punk, as msicas derivadas dos anos 80 falam dos

    conflitos da juventude com relao aos seus problemas sociais e ideolgicos, no

    qual

    a juventude de classe mdia comeava a postular idias e a conduzir-se de modo totalmente oposto aos valores apregoados por uma sociedade moralista, racista, consumista e tecnocrata, onde a nova postura passava pela ideia de instabilidade, da compreenso de cada

    2 O punk o denominador comum que apresenta, como caractersticas, um profundo desprezo pelos

    arranjos elaborados do rock progressivo, pelo clima msica para a sala de estar, do soft rock e pelas grandes e pomposas produes que entupiam o hit parede da poca sendo, nesse caso, mais do que um estilo musical, uma reformulao de valores, tendo como base o lema: faa voc mesmo. (ALEXANDRE, 2002, p. 49 e 50) 3 Uma boa parte das bandas de garagem que acompanhvamos constituem-se em torno de

    discusses de identidades dissidentes, como se sua existncia refletisse tenses, contradies e contestaes em relao cultura dominante ou a modos de vidas esvaziados de significado (PAIS,2006, p.31)

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    momento, para agir politicamente e transformar a sociedade. (BRANDO E DUARTE, 2004, p.59)

    A dcada perdida4, na verdade, foi um perodo complexo, no qual temos a

    conjuno de uma srie de ideias e conceitos, provenientes de convulses de ordem

    externa e interna, que em grande medida chegam diretamente a ns.

    Tais influncias, que rompem as fronteiras do estado nao, em termos

    materiais e simblicos, esto atreladas s modificaes proporcionadas pelo

    processo de globalizao que, intrinsecamente, est atrelado ao capitalismo, no qual

    globalizam-se as instituies e seus princpios jurdicos e polticos, os padres

    socioculturais e os ideais que constituem as condies e os produtos civilizatrios do

    capitalismo (IANNI, 1998, p.53)

    Em detrimento dos interesses econmicos, h uma mudana cultural em

    escala global, na qual somos abarcados, seduzidos e influenciados. A comunidade

    global, cada vez mais alicerada, modifica nossas formas e padres de vida,

    trazendo novas influncias para a convivncia em cotidiano, gerando um conjunto de

    transformaes no mbito social e pessoal, pois

    vivemos em um mundo de transformaes que afetam quase todos os aspectos do que fazemos. Para o bem ou para o mal, estamos sendo impelidos rumo a uma ordem global, que ningum compreende plenamente, mas cujos efeitos se fazem sentir por todos ns (...), onde os mais radicais sustentam no s que a globalizao muito real, como que suas consequncias podem ser sentidas em qualquer parte. (GIDDENS, 2000, p.17-18)

    Alm das influncias de ordem externa, existiam modificaes embrionrias

    internamente. Os anos 80 foram marcados pelo processo de abertura poltica e o

    incio da Nova Repblica, na qual, devido inflao, o sistema poltico, aos moldes

    democrticos, possua suas debilidades crnicas, afetando a vida de toda a

    populao, em que

    a baixa qualidade de vida, decorrente do crescimento econmico dependente e das polticas pblicas ineficientes, impedem que crianas e jovens de classes menos privilegiadas possam romper com a cadeia de reproduo da pobreza (...), onde vive-se, portanto,

    4 Tal termo derivativo do carter de debilidade crnica, que permeou as esferas oriundas do poltico,

    econmico e social. a crise do Estado que est na raiz da instabilidade econmica dos anos 80 e 90 e que explica as dificuldades do Brasil em fixar-se num regime poltico estvel. (JUNIOR, 1996, p.63)

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    o conflito entre uma sociedade moderna na aparncia e nas leis, e antiga na conduo poltica. Os polticos e os grupos sociais dominantes tratam a maioria dos brasileiros como no cidados (RODRIGUES, 1992, p.56-66)

    nesse contexto ideolgico, poltico, econmico e enfim, cultural, que temos

    a emergncia do movimento juvenil roqueiro da dcada de 80, na qual a juventude

    acreditava que poderia mudar a sociedade, indo buscar novas formas de mentalizar

    os valores humanos. Os paradoxos da modernidade, em um pas que em sua

    essncia no moderno, provocam nesses sujeitos jovens uma grande mudana,

    uma verdadeira revoluo no campo da msica, em que o rock um elemento de

    contestao e ligao da gerao em debate. A partir dessa grande manifestao

    cultural, os dilemas da modernidade passam a ser questionados:

    o ser moderno viver uma vida de paradoxo e contradio. sentir-se fortalecido pelas imensas organizaes burocrticas que detm o poder de controlar e frequentemente, destruir comunidades, valores, vidas e ainda sentir-se compelido a enfrentar essas foras, a lutar para mudar o seu mundo transformando em nosso mundo. (BERNAN, 1986, p. 12)

    Para analisar como se deu a incorporao da modernidade e seus paradoxos

    no movimento roqueiro dessa dcada citada, selecionamos algumas msicas que

    sero analisadas ao longo desse estudo. Com elas, podemos elucubrar algumas

    reflexes e concluses sobre a temtica, bem como a utilizao da msica como

    fonte histrica.

    Os solos de guitarra estremecem os valores modernos: o rock e a crtica aos dilemas da modernidade A crtica modernidade, encontrada nas letras do rock da dcada de 80,

    atrela-se revolta com referncia aos paradoxos e antteses dentro do processo

    capitalista:

    miserveis ovelhas de um imenso rebanho

    onde os pastores so os prprios chacais

    se vossa morte lhe trouxer algum lucro

    eles os mataro como animais

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    para eles trabalha e lhes d a vida

    em troca eles lhes do a fome, a misria e a escravido

    e quem so eles? so os donos do sistema

    donos de suas vidas

    e de sua maldio5

    O sujeito narrador inicia a msica incitando as caractersticas daqueles que

    dependem essencialmente do sistema. Logo, a maioria associada a miserveis

    ovelhas so guiadas por pastores que tambm so seus chacais, uma possvel

    aluso classe burguesa. Essa, no possui horizontes na busca por lucros em larga

    escala, conduzindo seus subordinados a uma relao de vida e morte, na qual a

    vivncia, nessa variante de mltiplas temporalidades existenciais, no possui valores

    humanos. H, nesse trecho, um trao marcante de domnio da elite econmica em

    comparao com a classe trabalhadora, verificando-se na letra um repdio

    inexorvel a tal situao.6

    Para o letrista, as ovelhas so associadas ao ser humano, em que o trabalho

    dessas no possui a valorizao adequada, pois em troca do labor, somente se

    recebe a fome, a misria e a escravido. Pelo fato de o capitalismo impor o

    domnio das classes dominantes sobre as demais, os donos do sistema, os

    pastores, possuem o direito de interferir em todos os ngulos de sua existncia,

    passando da vida maldio. No h como o sujeito fugir desse padro de

    domnio imposto. A condio de ovelhas miserveis no permite nenhum tipo de

    fuga ou escapismo. Por esta tica, a classe trabalhadora est fadada a ser

    manipulada, dominada e explorada pela elite econmica.

    Nessa msica h um total desapego do narrador, que no consegue atribuir

    um valor positivo a sua prpria existencialidade, pois essa est fragmentada pelos

    padres impostos da modernidade7. Doravante

    5 Garotos Podres. Miserveis Ovelhas. lbum: Mais podre do que nunca. Rotten Records, 1985

    6 A subjetividade permite problematizar a noo de sujeito universal, unilateral, isolvel, emergindo a

    centralidade nos processos de diferenciao e uma possibilidade de construo singular da existncia nas configuraes assumidas pelas apreenses que os sujeitos fazem de si mesmo e do mundo. (MATOS, 2005 p. 27) 7 Nesse tempo em que as formas de aniquilamento assumem dimenses planetrias, o deserto, o fim

    e o meio da civilizao, designa essa figura trgica que a modernidade substitui reflexo metafsica sobre o nada. O deserto cresce, vemos nele a ameaa absoluta, a potncia do negativo, o smbolo do trabalho mortfero dos tempos modernos at o seu terreno apocaltico. (LIPOVETSKY, 1983, p.30)

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    O que quer que toque a vida humana ou entre em duradoura relao com ela, assume imediatamente o carter de condio humana. por isso que os homens, independente do que faam, so sempre seres condicionados. O impacto da realidade do mundo sobre a existncia humana sentido como fora condicionante. (ARENDHT, 1958, p. 17)8

    Como a moderna humanidade se v em meio a uma enorme ausncia de

    valores 9, h nas letras uma tendncia fatalista com os padres circundados como

    modernos:

    Bichos, saiam dos lixos

    Baratas, me deixem ver suas patas

    Ratos, entrem nos sapatos

    Dos cidados civilizados Pulgas,

    que habitam minhas rugas Oncinha pintada, Zebrinha listrada, Coelhinho peludo,

    Vo se foder! Porque aqui na face da terra

    S Bicho escroto que vai ter! Bichos escrotos, saiam dos esgotos

    Bichos escrotos, venham enfeitar

    Meu lar, Meu jantar,

    Meu nobre paladar.10

    A letra convoca todos os seres que vivem em um mundo no abarcado pelas

    ideias de civilizao. Ao evocar que os Bichos saiam dos lixos, Baratas me

    deixem ver suas patas, Ratos entre nos sapatos, do cidado civilizado; o narrador

    procura trazer para seu mundo, aquilo que no foi aambarcado pelo modelo

    societrio de civilidade e modernidade. Enfadado das mesmas, recruta tais seres na

    iniciativa de afastar de si as ideias de modernidade, simbolizados em Oncinhas

    pintadas, Zebrinha listrada e Coelhinho Peludo, ou seja, ao modelo de aparncia e

    8 A construo da prpria imagem com sinais negativos no tm carter autocompungente nem de

    auto aniquilao. Pelo contrrio, tem o intuito de produzir uma acusao, por meio do espelhamento: a realidade que indigente, a sociedade que est podre, ela que engendra os sinais e os contedos da misria e violncia, da impossibilidade de futuro. essa ordem que os lana nessa condio e por isso que eles querem destru-la. (ABRAMO, 1994, p. 101-102). 9 Op. Cit (1986, p.22)

    10 Tits. Bichos escrotos. lbum: Cabea de Dinossauro, WEA, 1986.

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    bem estar supostamente trazido pelos padres supracitados11. Consequentemente,

    os bichos escrotos so a simbiose de idias anti-modernas, que o sujeito quer para

    junto de si, pois

    a modernidade a fonte de ampliao da margem de autonomia, dos atores sociais, pois o auto questionamento se robustece quando se estende as relaes com o outro. As novas intensidades da vida pessoal expande-se, na indignao das linguagens que compem os modos de escolher, dividir, lutar, submeter e amar. (FRIDMAN, 2000, p.54)

    Seguindo essa tica, o questionamento modernidade foi latente nos jovens

    daqueles tempos. As reinvindicaes por melhores condies de vida anseiam os

    sujeitos histricos desse momento, sendo que para atingir tal quadro, inerente um

    processo de distribuio de renda mais igualitrio:

    No nossa culpa nascemos j com uma beno Mas isso no desculpa pela m distribuio

    Com tanta riqueza por a, onde que est Cad sua frao?

    At quando esperar?

    E cad a esmola que ns damos Sem perceber?

    que aquele abenoado Poderia ter sido voc

    Com tanta riqueza por a, onde que est

    cad sua frao? At quando esperar a plebe ajoelhar

    Esperando a ajuda de Deus

    Posso vigiar seu carro te pedir trocados Engraxar seus sapatos?

    No nossa culpa nascemos j com uma beno mas isso no desculpa pela m distribuio Com tanta riqueza por a, onde que est

    cad sua frao? At quando esperar a plebe ajoelhar

    esperando a ajuda de Deus At quando esperar a plebe ajoelhar

    esperando a ajuda de um divino Deus.12

    11

    Como a viabilidade de redistribuio de itens desejveis ao consumidor, socialmente iniciada, esta se desvanecendo, mesmo para aqueles que no podem participar do banquete dos consumidores e, assim, no so propriamente regidos pelos poderes de seduo do mercado, resta apenas uma linha de ao a adotar para se atingirem os padres que a sociedade consumidora promove: tentar alcanar os fins diretamente, sem primeiro se aparelharem dos meios. Afinal, no se pode aparelhar o que no se possui. (BAUMAN, 1998 ,p.55) 12

    Plebe Rude. At quando esperar. lbum: O concreto j rachou. EMI, 1985.

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    A narrativa, em tom de protesto, perpassa pela ideia de uma melhor

    distribuio de renda. Mesmo o sujeito reconhecendo que esse problema social no

    foi embrionrio em sua gerao, No nossa culpa, nascemos j com uma beno,

    Mas isso no desculpa pela m distribuio, a msica possui um tom crtico e

    exigente, no qual o narrador passa a reivindicar aquilo que lhe de direito: Com

    tanta riqueza por a, onde que est? Cad sua frao? At quando esperar?. A

    ltima pergunta uma constante ao longo da letra, pois alm de existir uma

    desigualdade de carter crnico, que o sujeito repudia, este jovem, e para ele as

    indagaes e a busca por respostas so uma constante como um dilema existencial,

    pois o desespero expressa o sentimento de que o tempo curto para a tentativa de

    comear uma outra vida e experimentar rumos alternativos para a integridade.

    (ERICKSON, 1987, p141).

    Induzido pelo contexto e percebendo que no obter aquilo que exigido, a

    narrativa assume um carter satrico, porm impactante: At quando esperar, a

    plebe ajoelhar, esperando a ajuda de Deus. Ainda, ao perceber que seu contexto

    socioeconmico dificilmente ser mudado, o sujeito inicia uma busca angustiante por

    renda, oferecendo ao burgus seu trabalho: Posso vigiar teu carro, te pedir

    trocados, engraxar seus sapatos. Tal repdio ordem capitalista vigente latente

    nos anos 80, na qual se verifica

    a produo de refugo humano, ou mais propriamente de seres humanos refugados, (os excessivos, ou redundantes, ou seja, os que no puderam ou no quiseram ser reconhecidos ou obter permisso para ficar), um produto inevitvel da modernizao, e um acompanhante inseparvel da modernidade. um inescapvel efeito colateral da construo da ordem (cada ordem define algumas parcelas da populao como deslocadas, inaptas ou indesejveis) e do progresso econmico (que no pode ocorrer sem desagradar e desvalorizar os modos anteriormente efetivos de guardar a vida, e que, portanto, no consegue seno privar seus praticantes dos meios de subsistncia). (BAUMAN, 2005. p.12)13

    13

    As dcadas de crescimento urbano acelerado correspondem - at o incio dos anos 80 - a um ciclo de crescimento econmico e expanso do emprego no setor formal: na indstria de transformao, no setor de transportes, nos ramos de produo de energia, na construo civil e telecomunicaes. Foram dcadas tambm de modernizao e ampliao de mercados de consumo e, portanto, de gerao de novos empregos no setor tercirio. Assim, uma grande populao trabalhadora se constituiu nas cidades. Estes movimentos - de crescimento econmico, expanso urbana e unificao do mercado - foram de tal maneira acompanhados por um processo de concentrao de renda que hoje no h paralelo possvel entre os nveis de misria urbana e os de emprego, isto , fazem parte hoje da pobreza urbana trabalhadores, desempregados e migrantes (ROLNIK, 1990, s.p). Os nveis

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    A sociedade, baseada na desigualdade, promove nos sujeitos um processo

    de reestruturao de seus questionamentos. Para alm da renda, encontramos, nas

    composies do movimento roqueiro da dcada de 80, reinvindicaes que ampliam

    a esfera da contestao, exigindo melhorias em relao totalidade e

    universalidade da vivncia:

    Bebida gua! Comida pasto!

    Voc tem sede de que? Voc tem fome de que?

    A gente no quer s comida

    A gente quer comida Diverso e arte

    A gente no quer s comida A gente quer sada

    Para qualquer parte...

    A gente no quer s comida A gente quer bebida

    Diverso, bal A gente no quer s comida

    A gente quer a vida Como a vida quer...

    Bebida gua! Comida pasto!

    Voc tem sede de que? Voc tem fome de que?...

    A gente no quer s comer

    A gente quer comer E quer fazer amor

    A gente no quer s comer A gente quer prazer Pr aliviar a dor...

    A gente no quer

    S dinheiro A gente quer dinheiro

    E felicidade A gente no quer

    S dinheiro

    de concentrao de renda se agravam sensivelmente, no qual 16% da renda nacional pertencem aos mais ricos, isso um 1% da populao, aproximadamente 600 mil pessoas (CAPELLARI, 2004, p.128).

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    A gente quer inteiro E no pela metade...

    Bebida gua! Comida pasto!

    Voc tem sede de que? Voc tem fome de que?...

    A gente no quer s comida

    A gente quer comida Diverso e arte

    A gente no quer s comida A gente quer sada

    Para qualquer parte...

    A gente no quer s comida A gente quer bebida

    Diverso, bal A gente no quer s comida

    A gente quer a vida Como a vida quer...

    A gente no quer s comer

    A gente quer comer E quer fazer amor

    A gente no quer s comer A gente quer prazer Pra aliviar a dor...

    A gente no quer

    S dinheiro A gente quer dinheiro

    E felicidade A gente no quer

    S dinheiro A gente quer inteiro E no pela metade...

    Diverso e arte

    Para qualquer parte Diverso, bal

    Como a vida quer Desejo, necessidade, vontade

    Necessidade, desejo, eh! Necessidade, vontade, eh!

    Necessidade... 14

    A msica apresenta um tom de protesto e reinvindicao. Em grande medida,

    o sujeito, dono do discurso, deseja do Estado constitudo algo mais do que Comida

    e gua. Essas so metaforizadas como elementos de carter vital, que podem ser

    14

    Tits. Comida. lbum: Jesus no tem dente no pas dos banguelas. WEA, 1987.

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    ramificadas em outros campos da existncia e do cotidiano. No ao acaso, a

    pergunta uma constante: Voc tem sede de qu? Voc tem fome de qu?.

    Apesar de ser somente um narrador, em toda a letra latente a expresso: A

    gente, sendo possivelmente as aspiraes desses jovens dos anos 80,

    representados em um nico sujeito, que apetece aos desejos e reinvidicaes de

    outros sujeitos. O grupo, representado na msica, almeja alm da comida, Diverso

    e Bal, consequentemente, um binmio relacionado cultura. Alm disso, devido

    aos males existnciais e sociais, deseja Prazer para aliviar a dor. Logo, anseia por

    um escapismo do seu cotidano, possivelmente marcado por uma srie de

    framentaes sociais e pessoais.15 Ainda, enfatiza a importncia do dinheiro em seu

    discurso, mais dinheiro e felicidade, sendo essa ltima, a exigncia mais nobre e

    catrtica da juventude daqueles anos.

    A sucesso de perguntas e exigncias por parte desses sujeitos so advindas

    do prprio contexto cultural no qual emergiram. A juventude dos anos 80 ansiava por

    mudar o mundo ao seu redor. As reinvindicaes contidas na letra, metaforizadas

    em Bal, Comida, Dinheiro, Arte, Diverso e Felicidade so uma catarse de

    sentimentos das quais esses sujeitos juvenis sentem-se desprovidos. A ausncia do

    Estado em prover o bem-estar, a globalizao econmica e as mudanas

    ideolgicas, promovem nesses jovens uma manifestao de protesto, reinvincando a

    felicidade, simbolizando aquilo que seria condizente na resoluo no s de seus

    problemas sociais, assim como existnciais, pois

    os sentimentos que moveram as juventudes nesse perodo foram muito mais subjetivos do que sociais. A liberdade to procurada antes, mostrava-se palpvel; agora com o processo de abertura poltica e as indentidades e identificao assimiladas por essa parcela da populao urbana, no podiam estar fechadas dentro de nenhum modelo pr-determinado por quem quer que fosse. A liberdade de ser ou no ser, gostar ou no gostar, querer ou no querer passou a estar acima de qualquer ideologia poltica e social. O mundo assistia a derrocada do socialismo e a nova Ordem Mundial, produzida pela globalizao, que se auto proclamava avassaladoramente redentora do capitalismo, o que aclamava a falncia de projetos modernizantes em pases como o Brasil. (RAMOS, 2010, p.100).

    15

    O cotidiano reflete uma cosmoviso trocada em midos, na medida da experincia de cada dia sucedendo a vspera e antecedendo o amanh. Sem pisar com certa segurana no solo do cotidiano; minha vida no ter base para se projetar e construir a si mesma (KUJAWSKI, 1991, p. 42)

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    Relevando os problemas desses grupos juvenis, h uma tendncia criadora

    de produzir sons e letras que fortaleam a ao do grupo em si. Consequentemente,

    esses sujeitos que passam por um processo de identificao constante podem

    compartilhar seus medos e anseios, provenientes de um modelo societrio global

    ideologicamente opressor. Tal unio torna-se um alento aos dilemas e paradoxos da

    modernidade.

    Achei um 3x4 teu e no quis acreditar

    Que tinha sido a tanto tempo atrs Um exemplo de bondade e respeito Do que o verdadeiro amor capaz.

    A minha escola no tem personagem A minha escola tem gente de verdade

    Algum falou do fim do mundo, O fim do mundo j passou Vamos comear de novo:

    Um por todos, todos por um.

    O sistema maus, mas minha turma legal Viver foda , morrer difcil Te ver uma necessidade

    Vamos fazer um filme.

    E hoje em dia, como que se diz: "Eu te amo."?

    Sem essa de que: "Estou sozinho." Somos muito mais que isso

    Somos pingim, somos golfinho Homem, sereia e beija-flor

    Leo, leoa e leo-marinho

    Eu preciso e quero teu carinho, liberdade e respeito Chega de opresso.

    Quero viver a minha vida em paz.

    Quero um milho de amigos Quero irmos e irms

    Deve de ser cisma minha Mas a nica maneira ainda De imaginar a minha vida

    v-la como um musical dos anos trinta

    E hoje em dia, como que se diz: "Eu te amo."? E hoje em dia, como que se diz: "Eu te amo."? E hoje em dia, como que se diz: "Eu te amo."?

    E hoje em dia, vamos fazer um filme ?

    Eu te amo

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    Eu te amo

    Eu te amo16

    A narrativa, inicialmente, possui um formato de lembrana, proveniente de

    uma foto 3x4, na qual o narrador recorda-se de sua relao com outro sujeito. A

    vivncia de ambos, de acordo com a msica, foi pautada como um exemplo de

    bondade e respeito, do que um verdadeiro amor capaz.

    Embasado pelo lapso de passado momentneo, o indivduo passa a analisar

    criticamente o seu mundo, tendo como norte o pessimismo proveniente de seu

    cotidiano. Em sua opinio, necessrio comear tudo de novo: um por todos, todos

    por um.

    A ideia de coletividade remontada, sendo uma forma de iniciar um mundo

    melhor, pois de acordo com a letra: o sistema maus. As concluses inseridas na

    narrativa so derivadas da debilidade crnica gerada pelo referido sistema,

    promovendo no indivduo uma extrema dificuldade de entender sua prpria vida:

    Viver foda, morrer difcil. Todavia, o desejo de viver a vida em paz, latente

    em toda a letra.

    A fora de viver em grupo trazida tona no combate aos dilemas da

    modernidade: Somos muito mais que isso, somos pinguim, somos golfinho, homem,

    sereia e beija-flor, Leo, leoa e leo-marinho. O encontro com o equilbrio e a

    harmonia interna, s foi possvel aps o reconhecimento e identificao desse

    sujeito no coletivo, sendo a nica maneira de imaginar a sua vida. Notadamente, o

    narrador insistentemente passa a perguntar: E hoje em dia, como que se diz: Eu

    te amo."?. Ao fim das contas, percebe que o valor do grupo fundamental, para

    ocorrer uma inflexo na forma de observar o seu mundo, bem como a sua

    capacidade de transform-lo em termos materiais e simblicos.

    Apesar do lirismo latente, a msica contm os dilemas existenciais dos

    jovens, que so metaforizados em uma sntese, a qual a recproca tem que ser

    verdadeira para haver uma mudana de viso para um dilema existencial; o amor

    torna-se a catarse de tudo aquilo que belo. Pelas dificuldades encontradas por

    esses sujeitos expressos na letra, a narrativa ganha um tom de convite: vamos

    fazer um filme? Novamente, o coletivismo resgatado, ele tem que estar presente

    do incio at o fim da vida. Consequentemente

    16

    Legio Urbana. Vamos fazer um filme. lbum: O descobrimento do Brasil. EMI-ODEON, 1993.

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    a juventude est profundamente envolvida nesses processos e, apesar de comungar vivamente com essa lgica, encontra-se mergulhada numa crise identitria que a impulsiona para um processo de busca de construo de um lugar, de uma referncia que a faa sentir-se parte de algo, que lhe d um sentimento de pertencimento. Essa construo identitria complexa e se alimenta da relao entre diversas culturas e temporalidades, entre a tradio e a modernidade, entre referncias locais e globais (FALCO, 2005, p.148)17

    Assim, ao resgatar a ideia coletiva, o sujeito procura fugir de uma vida

    extremamente individualista. Pela cano, percebe-se que essa agrega poucos

    valores essencialmente humanos, fundamentais para enfrentar os dilemas da

    modernidade, indo em busca de uma condio existencial mais coerente com seus

    desejos e anseios18. Mesmo com enormes dificuldades econmicas, sociais e

    ideolgicas, h no movimento roqueiro espao para planos, sonhos e esperanas:

    Um dia me disseram

    Que as nuvens no eram de algodo Um dia me disseram

    Que os ventos s vezes erram a direo E tudo ficou to claro

    Um intervalo na escurido Uma estrela de brilho raro

    Um disparo para um corao A vida imita o vdeo

    Garotos inventam um novo ingls Vivendo num pas sedento

    Um momento de embriaguez Somos quem podemos ser Sonhos que podemos ter

    Um dia me disseram Quem eram os donos da situao

    Sem querer eles me deram As chaves que abrem essa priso

    E tudo ficou to claro O que era raro ficou comum

    Como um dia depois do outro Como um dia, um dia comum

    A vida imita o vdeo Garotos inventam um novo ingls

    17

    Por isso, possvel afirmar que o crescimento da importncia das bandas de rock nacional dos anos 80, indica que as canes assumiram um papel de expresso de experincias e sentimentos de toda uma gerao identificada com o rock. Esse, possui uma especial habilidade de criar sentimentos em comum, fazendo uma mediao entre a conjuntura de um determinado momento, com as emoes vividas no mbito privado. (SOUZA, 2008, p.60-61) 18

    A confiana em pessoas no focada por conexes personalizadas no interior da comunidade local e das redes de parentesco. A confiana pessoal torna-se um projeto a ser trabalhado pelas partes envolvidas, e requer a abertura do indivduo para o outro (GIDDENS, 1991, p.123).

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    Vivendo num pas sedento Um momento de embriaguez Somos quem podemos ser Sonhos que podemos ter

    Um dia me disseram Que as nuvens no eram de algodo

    Sem querer eles me deram As chaves que abrem essa priso

    Quem ocupa o trono tem culpa Quem oculta o crime tambm

    Quem duvida da vida tem culpa Quem evita a dvida tambm tem

    Somos quem podemos ser Sonhos que podemos ter19

    A narrativa inicia-se com o entendimento da realidade para o sujeito

    constituinte, a partir do momento em que o mesmo toma conhecimento de que Que

    as nuvens no so de algodo. Esse processo de ruptura impactante proveniente

    do ser jovem, que percebe no ser a vida feita somente de momentos felizes e

    agradveis. Em suma, entra em contato com a realidade do mundo. Doravante, essa

    mostra-se forte, veloz e impactante, promovendo no narrador um entendimento

    maior de seu universo, pois tudo ficou to claro, um intervalo na escurido, uma

    estrela de brilho rpido, um disparo para um corao. Logo, o contato com

    diferentes ideias que aliceram a existncia humana atinge diretamente o seu modo

    de enxergar o mundo20.

    Ainda, os descobrimentos e questionamentos da realidade continuam ao

    longo de toda a narrativa, pois o indivduo reconhece os donos da situao,

    demonstrando o seu potencial reflexivo em um horizonte impar, derivativos do

    contato direto com a suposta realidade. A partir dessa, o sujeito conclui que a vida

    imita o vdeo, uma possvel aluso ao simulacro da realidade imposto pela

    televiso. De forma anloga os jovens seguem esse padro, pois Garotos inventam

    um novo ingls, notando a influncia dos meios de comunicao. Nesse espectro

    da realidade, o sujeito reconhece as dificuldades de seu pas sedento.

    Derivativos dos processos de contato com a verdade e a reflexo, o indivduo

    possui As chaves que abrem essa priso. Com elas, o sujeito faz um balano de

    19

    Engenheiros do Hava. Somos quem podemos ser. lbum: Oua o que eu digo: no oua ningum, BMG, 1988. 20

    Os problemas mais graves da vida moderna derivam da reinvindicao que faz o indivduo de preservar a autonomia e individualidade de sua existncia em face das esmagadoras foras, da herana histrica, da cultura externa e das tcnicas de vida (SIMMEL, 1967, p.13)

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    todo o processo vivido, passando a pontuar os culpados, no restando instituio, ou

    adstrito inocente, pois Quem ocupa o trono tem culpa, quem oculta o crime

    tambm, quem duvida da vida tem culpa, quem evita a dvida tambm tem. Aqui,

    h o momento de maturao do processo de reflexo, pois se o mundo no possui

    uma condio digna de existncia, porque todos somos culpados. O impasse e a

    omisso em carter de descaso so o ponto fulcral para que a realidade do mundo

    no possua virtuosidades.

    No entanto, em nenhum momento a msica apresenta um tom pessimista. As

    dificuldades podem ser sanadas com os sonhos, como visto na sequncia: Somos

    quem podemos ser, Sonhos que podemos ter. Tal afirmativa encontra-se no eixo da

    letra, demostrando que um mundo melhor pode ser conquistado a partir da iniciativa

    e do sonho, fundamentais para o processo de mudana da realidade. Os sonhos so

    a busca por uma segurana em seu carter ontolgico21. Logo, o sujeito

    confluncia e adio de contedos e desejos a partir da busca de contornos

    individuais ou perseguio de objetivos; e a liberdade e emoo antes no

    imaginados ampliando as possibilidades da vida. (GIDDENS, 2000, p.69)

    Apontamentos Conclusivos

    O movimento musical ancorado no rock foi um dos principais agentes

    aglutinadores da juventude dos anos 80. Por intermdio dele, milhares de jovens

    buscavam respostas para seus dilemas de carter existencial. Esse, est atrelado a

    fatores de ordem cultural, no qual os paradigmas da modernidade passam a ser

    vistos como um mal-estar para toda essa gerao. Em troca, ressaltados os

    problemas nacionais, notamos em boa parte das letras um repdio aos valores da

    modernidade.

    A partir das msicas, percebe-se que o jovem moderno, deseja ser anti-

    moderno. Neste bojo, h uma convocao dos bichos escrotos, sendo esses a

    simbiose de tudo aquilo que literalmente contra a modernidade. Notamos nas

    letras, ainda, uma crtica ao sistema capitalista, que na viso desses grupos juvenis,

    21

    uma forma muito importante, de sentimentos e segurana em seu sentido mais amplo, sendo a expresso no que se refere a crena que a maioria dos seres humanos tem na continuidade de sua auto identidade e na constncia dos ambientes de ao social e material circundantes. (Op.cit, 1991, p. 95)

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    o grande agente responsvel por tornar a vida indigna, em sua valorao social ou

    interna. Se no h uma convergncia favorvel nas duas esferas, o sujeito explode

    sua narrativa em tom de protesto, indo no vrtice principal do sistema capitalista e

    da modernidade: a desigualdade social, notada na banda brasiliense Plebe Rude,

    bem como na composio dos Garotos Podres.

    Verifica-se que somente a promoo de uma melhor distribuio de renda no

    ser a soluo de todos os problemas nacionais, sendo necessrio, para isso,

    sade, educao, arte, cultura, prazer, dentre outros fatores, simbolicamente

    representados em Comida. H ainda um retorno ao lirismo perdido pelo paradigma

    da modernidade, no qual os valores individuais ficam alocados acima do coletivo.

    Esse, pelo princpio norteador adquirido por essa gerao, convocado como sendo

    uma soluo para o mal estar do homem moderno, visto na letra do grupo Legio

    Urbana.

    Todavia, as dificuldades no inibem um processo de (re) formulao de

    sonhos em busca da reflexo sobre a importncia do sujeito no seu mundo e do

    prximo, onde a apatia e o descaso no sero solues plausveis para a resoluo

    dos dilemas existenciais, individuais e coletivos. Em suma, a juventude necessita

    possuir sonhos, na mesma intensidade em que deve coloc-los em prtica,

    pressuposto visto na composio oriunda dos Engenheiros do Hava.

    Apesar de a msica no possuir fronteiras etrias ntidas, podemos, a partir

    das letras trabalhadas, perceber que o rock nacional vai em direo ao pblico

    jovem. Ademais, a dificuldade no trabalho da msica como fonte histrica notrio,

    mas a partir do momento em que realizamos o dilogo com seu contexto histrico

    especfico, temos resultados positivos. A ateno na mensagem do narrador

    fundamental, mas entender o que est subtendido na letra permite um melhor

    dilogo com seu objeto e a prpria histria.

    Por fim, nota-se que o rock dos anos 80 possui um terreno frtil para

    discusses, anlises e questionamentos. Pela sua multiplicidade e criatividade,

    chama a ateno de historiadores do tempo presente, que procuram novas fontes e

    objetos para inserirem-se no debate histrico dos tempos contemporneos. A

    fecundidade de estudos do movimento em questo resultado de sua prpria

    riqueza cultural, que deve ser valorizada. Ainda, pelo seu prprio contedo, suas

    simbologias, seus dilemas existenciais e o potencial da msica de representar

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    coraes e mentes, resultam nesse tipo de fonte, campo profcuo para o

    conhecimento histrico.

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