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    1.

    No sculo xviii, a escravido havia se tornado a metora undamental da losoa poltica ocidental, conotando tudo o quehavia de mau nas relaes de poder.1 A liberdade, sua anttese conceitual, era considerada pelos pensadores iluministas o valor poltico supremo e universal. Mas essa metora poltica comeou a deitar razesjustamente no momento em que a prtica econmica da escravido a sistemtica e altamente sosticada escravizao capitalista de noeuropeus como mo de obra nas colnias se expandia quantitativa

    mente e se intensicava qualitativamente, ao ponto de, em meados dosculo xviii, ter chegado a sustentar o sistema econmico do Ocidente como um todo, acilitando, paradoxalmente, a expanso global dosprprios ideais do Iluminismo que to rontalmente a contradiziam.

    HEGEL E HAITI*

    Susan Buck-Morss

    traduo de Sebastio Nascimento

    RESUMO

    O paradoxo entre o discurso da liberdade e a prtica da escra

    vido marcou a ascenso de uma srie de naes ocidentais no interior da nascente economia global moderna. O artigo

    explora o uso da metora da escravido no iluminismo ilosico europeu, e sugere que a dialtica do senhor e do

    escravo hegeliana tem razes mais na histria contempornea particularmente, nas notcias que chegavam Europa

    da Revoluo Haitiana de 1791 do que na tradio herdada pelo ilsoo alemo.

    PALAVRAS-CHAVE:Iluminismo; Dialtica do senhor e do escravo; Hegel;Revoluo Haitiana.

    ABSTRACT

    The paradox between the discourse o reedom and the prac

    tice o slavery marked the ascendancy o a succession o Western nations within the Early Modern global economy. The

    article considers the use o slavery as a metaphor by 17 th and 18th Century philosophers, and suggests that that Hegels

    dialectic o master and slave has its roots not only on the philosophical tradition, but in contemporary events such as

    the 1791 Haitian Revolution.

    KEYWORDS:Enlightenment; Dialectic o master and slave; Hegel; HaitianRevolution.

    [*] Publicado originalmente emCritical Inquiry, vol. 26, n 4, 2000,pp. 82165. Republicado em BuckMorss, Susan.Hegel, Haiti and universal history. University o PittsburgPress, 2009. Devido quantidade,as notas e reerncias esto excepcionalmente dispostas ao nal do artigo.

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    Essa discrepncia gritante entre pensamento e prtica marcou operodo de transormao do capitalismo global de sua orma mercantil para sua modalidade protoindustrial. Seria de se esperar quenenhum pensador racional e esclarecido deixaria de percebla.

    Contudo, no era esse o caso.A explorao de milhes de trabalhadores escravos coloniais

    era aceita com naturalidade pelos prprios pensadores que proclamavam a liberdade como o estado natural do homem e seu direitoinalienvel. Mesmo numa poca em que proclamaes tericas deliberdade se convertiam em ao revolucionria na esera poltica,era possvel manter nas sombras a economia colonial escravista queuncionava nos bastidores.

    Se esse paradoxo no parecia incomodar a conscincia lgica dos

    contemporneos, talvez seja mais surpreendente que alguns autores,ainda hoje, se disponham a construir histrias do Ocidente na ormade narrativas coerentes do avano da liberdade humana. As razes noso necessariamente intencionais. Quando histrias nacionais so concebidas como autnomas ou quando aspectos distintos da histria sotratados por disciplinas isoladas, as evidncias contrrias so marginalizadas e consideradas irrelevantes. Quanto maior a especializao doconhecimento, quanto mais avanado o nvel de pesquisa, quanto maisantiga e respeitvel a tradio intelectual, tanto mais cil se torna igno

    rar os atos desviantes. Vale lembrar que a especializao e o isolamentorepresentam um risco tambm para as novas disciplinas, tais como osestudos aroamericanos ou os estudos diaspricos, que oram criadasprecisamente para remediar essa situao. Fronteiras disciplinares azem com que as evidncias contrrias virem problema dos outros. Analde contas, um especialista no pode ser especialista em tudo. razovel.Mas argumentos assim so uma orma de evitar a verdade incmodasegundo a qual se certas constelaes de atos orem capazes de penetrarundo o bastante na conscincia intelectual, ameaaro no apenas as

    narrativas venerveis, mas tambm as disciplinas acadmicas entrincheiradas que as (re)produzem. Por exemplo, no h lugar na universidade em que a constelao de pesquisa especca Hegel e Haiti pudesse encontrar abrigo. Este o tema que me interessa aqui, mas seguirei umcaminho tortuoso para chegar at ele. Peo que me desculpem, mas esseaparente desvio o prprio argumento.

    2.

    O paradoxo entre o discurso da liberdade e a prtica da escravidomarcou a ascenso de uma srie de naes ocidentais no interior danascente economia global moderna. Os holandeses so o primeiroexemplo que deve ser considerado. Sua era de ouro, de meados do

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    sculo xvi a meados do sculo xvii, oi possibilitada pelo controleque exerciam sobre o trco mercantil global, incluindo, como umcomponente undamental, o comrcio de escravos. Mas se conerirmos o trabalho do mais ormidvel entre seus historiadores moder

    nos, Simon Schama, cuja descrio densa da Era de Ouro da culturaholandesa se tornou um modelo no campo da histria cultural desdesua publicao em 1987, haver uma surpresa nossa espera. impressionante que os temas da escravido, do traco de escravos e damo de obra escrava jamais sejam discutidos na obra de Schama,Theembarrassment o riches [O desconorto da riqueza], um relato de maisde seiscentas pginas sobre como a nova repblica holandesa, aodesenvolver sua prpria cultura nacional, aprendeu a ser ao mesmotempo rica e benigna2. Seria dicil depreender dali que a hegemonia

    holandesa no trco de escravos (substituindo Espanha e Portugalno papel de potncia escravista)3 contribuiu substancialmente paraa imensa sobrecarga de riqueza que ele descreve como algo quese tornou social e moralmente problemtico ao longo do sculo dacentralidade holandesa para o comrcio mundial4. Ainda assim,Schama descreve exaustivamente o ato de que a metora da escravido, adaptada ao contexto moderno a partir da narrativa do AntigoTestamento sobre a uga dos israelitas do Egito, havia sido crucialpara a autocompreenso holandesa ao longo de sua luta pela inde

    pendncia (15701609) contra a tirania espanhola que os escravizava e portanto para a autocompreenso das origens da modernanao holandesa5. Schama claramente reconhece a contradio maisevidente: o ato de que poca os holandeses discriminavam os judeus6. Ele dedica um captulo inteiro discusso da estigmatizaoe da perseguio de uma longa lista de orasteiros que, em unoda obsesso psicolgica holandesa pela puricao, precisavam serremovidos, como se ossem uma mcula, do corpo social: homossexuais, judeus, ciganos, ociosos, andarilhos, prostitutas mas no

    diz nada, porm, a respeito dos escravos aricanos nesse contexto7.Schama mostrase rancamente arto das histrias econmicas

    marxistas que tratam os holandeses apenas como uma potncia capitalista mercantil8. Preere dedicar seu projeto reconstruo da causalidade cultural. Examina como as inquietaes da afuncia, decorrentesda abundncia de bens, despertaram no holands moderno o temorde um tipo dierente de escravido, a escravizao ao luxo que ameaava o livre arbtrio, o medo de que a avareza do consumo pudesseconverter almas livres em vis escravos9. Schama apresenta a amlia

    como o ulcro do carter nacional holands, e no o comrcio mundial, permitindo que seus leitores adentrem a vida privada, domstica,vislumbrem casas e lares, mesas artas e aetos ntimos, na poca emque serholands era ser local, paroquial, tradicional e costumeiro10.

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    Estaramos quase dispostos a perdolo, no osse pelo ato de que osescravos tampouco eram estranhos ao ambiente domstico holands.Seria o silncio de Schama um eco do silncio de suas ontes? Eu nosaberia dizer11. Mas a cultura visual holandesa oerece evidncias claras

    de uma realidade distinta. Uma pintura de Franz Hals, de 1648, retrataexatamente no centro da tela a gura de um jovem negro, provavelmente um escravo, como parte da vida domstica, visvel no seio deuma abastada e aetuosa amlia holandesa em meio a uma paisagemholandesa local, paroquial (Figura 1). No livro de Schama, ricamente ilustrado, essa pintura de Hals no aparece (apesar de que outrapintura de Hals, representando marido e esposa holandeses sozinhosem meio a uma paisagem, ter sido includa). Tampouco h quaisqueroutras imagens de negros12. Obviamente, em vista da ausncia de

    escravos no relato escrito de Schama, eles pareceriam deslocados seaparecessem nas ilustraes. A consequncia desse tipo de trabalhoacadmico uma cegueira parcial em meio a oceanos de perspiccia, eisso tpico da literatura acadmica ocidental, como veremos.

    3.

    A partir de 1651, a GrBretanha passou a desaar os holandesesnuma srie de guerras navais que resultaram no domnio britnico no

    apenas da Europa, mas de toda a economia global, incluindo o trcode escravos13. Naquele momento, a revoluo cromwelliana contra amonarquia absoluta e o privilgio eudal seguiram o precedente holands, azendo uso metarico da histria dos israelitas do AntigoTestamento sendo libertos da escravido. Mas no campo da teoriapoltica estava em curso o abandono das escrituras antigas. A guracentral nesse caso Thomas Hobbes. Apesar deLeviat(1651) ser umhbrido de imaginao moderna e bblica, a escravido discutida aliem termos bastante seculares14. Para ele, ela uma consequncia da

    guerra de todos contra todos no estado de natureza, azendo parte,portanto, das s disposies naturais do homem15. Envolvido pormeio de seu patrono, Lord Cavendish, com os negcios da Companhiada Virgnia, que administrava uma colnia na Amrica, Hobbes aceitava a escravido como parte inalienvel da lgica de poder 16. Mesmoos habitantes de naes civilizadas e forescentes poderiam retornara esse estado17. Hobbes encarava a escravido com honestidade e semconfitos John Locke, nem tanto. A sentena inicial do primeirocaptulo do livro primeiro de seuDois tratados sobre o governo (1690)

    declara inequivocamente: A escravido uma condio humana tovil e miservel e to diretamente oposta ao generoso temperamento e coragem de nossa nao que seria dicil conceber que um ingls, menosainda um cavalheiro, osse capaz de a deender.

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    Mas o ultraje de Locke contra as cadeias para toda a humanidadeno era um protesto contra a escravizao de aricanos negros em plantaes do Novo Mundo, e muito menos em colnias que ossem britnicas18. Pelo contrrio, a escravido era nesse caso uma metora para a

    tirania legal, conorme o uso corrente nos debates parlamentares britnicos sobre teoria constitucional. Como acionista da Real CompanhiaAricana, envolvida na poltica colonial americana na Carolina, Lockeclaramente considerava a escravido negra como uma instituio justicvel19. O isolamento do discurso poltico do contrato social emrelao economia da produo domstica (oikos) tornou possvel essaviso dupla20. A liberdade britnica signicava a proteo da propriedade privada, e os escravos eram propriedade privada. Enquanto os escravos se situassem no mbito de autoridade domstica, sua condio

    era protegida pela lei (Figuras 2 e 3)21.Escravos estavam na moda na Inglaterra do nal do sculo xvii,

    acompanhando damas da aristocracia como animais de estimao22.Retratos pintados pelo holands Anthony van Dyck e Peter Lely eramos prottipos de um novo gnero de pintura, representando jovensnegros que oereciam rutas e outros smbolos de riqueza das colniasa seus proprietrios23.

    4.

    Meio sculo depois, o entendimento clssico da economia e,portanto, da propriedade escravista como uma questo privadae domstica oi rontalmente desmentido pelas novas circunstncias globais. O acar transormou as plantaes coloniais das ndias Ocidentais. Intensivas simultaneamente em capital e trabalho,a produo de acar era protoindustrial, gerando um aumentoacentuado na importao de escravos aricanos e uma intensicao brutal da explorao de sua mo de obra para azer rente a uma

    nova e aparentemente insacivel demanda europeia pela doura viciante do acar24. Na dianteira do boom do acar no Caribe estavaa colnia rancesa de SaintDomingue, que em 1767 produziu 63mil toneladas de acar25. A produo de acar levou igualmente auma demanda aparentemente innita por escravos, cujo nmero emSaintDomingue aumentou dez vezes ao longo do sculo xviii, paramais de 500 mil seres humanos. Na Frana, mais de 20% da burguesia dependia de atividades comerciais ligadas explorao de mo deobra escrava26. Os pensadores do iluminismo rancs escreviam em

    meio a essa transormao. Enquanto idealizavam populaes coloniais com mitos do nobre selvagem (os ndios do Novo Mundo),o sangue vital da economia escravista no lhes importava27. A despeito de existirem movimentos abolicionistas na poca e, na Frana,

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    osAmis des noirs [Amigos dos negros], que denunciavam os excessosda escravido, uma deesa da liberdade com base na igualdade racialera algo de ato raro28.

    O homem nasce livre e por toda a parte vive acorrentado, escre

    veu Rousseau nas primeiras linhas de seu Contrato social, publicadopela primeira vez em 176229. Nenhuma condio humana lhe parece mais oensiva ao corao ou alma do que a escravido. E mesmoRousseau, santo padroeiro da Revoluo Francesa, ao implacavelmente condenar a instituio, reprime da conscincia os milhes de escravos realmente existentes sob o jugo de senhores europeus. A patenteomisso de Rousseau oi cuidadosamente exposta pelos especialistas,mas apenas recentemente. O lsoo catalo Louis SalaMolins escreveu uma histria (1987) do Iluminismo atravs das lentes do Code

    Noir, o cdigo legislativo rancs que se aplicava aos escravos negrosnas colnias, elaborado em 1685 e sancionado por Lus XIV, sendoerradicado denitivamente somente em 1848. SalaMolins consideradetalhadamente o Cdigo, que legalizou no apenas a escravido, otratamento de seres humanos como propriedade mvel, mas tambma marcao a erro, a tortura, a mutilao sica e o assassinato de escravos que procurassem questionar sua condio desumana. Ele justapeesse cdigo, que se aplicava a todos os escravos sob jurisdio rancesa,aos textos dos lsoos iluministas ranceses, documentando sua in

    dignao em relao escravido na teoria, ao mesmo tempo em queignoravam ormidavelmente a escravido na prtica. SalaMolins seescandaliza, e com razo. No Contrato social, Rousseau argumenta: Alegalidade da escravido nula, no apenas por ser ilegtima, mas porser absurda e vazia de sentido. Tais palavras, escravido e legalidade socontraditrias. So mutuamente excludentes30. SalaMolins nos azver as consequncias dessas armaes: O Code Noir, o mais pereitoexemplo desse tipo de documento na poca de Rousseau, no um cdigo legal. O direito de que trata no pode ser um direito, por pretender

    tornar legal algo que no pode ser legalizado, a escravido31. Ele considera, portanto, um despropsito que Rousseau jamais tenha mencionado em seus escritos o Code Noir. O caso real e fagrante daquiloque ele declara ser categoricamente insustentvel no recebe qualquerateno de sua parte32. SalaMolins esmia os textos em busca dequalquer evidncia que possa justicar o silncio e constata inequivocamente que Rousseau conhecia os atos. O lsoo iluminista citourelatos de viajantes da poca Kolben, sobre os hotentotes, e Du Tertre, sobre os indgenas das Antilhas , mas evitava aquelas pginas

    desses mesmos relatos que descreviam explicitamente os horrores daescravido europeia. Rousseau reeriase aos seres humanos de todasas partes, mas omitia os aricanos; alava dos groenlandeses transportados Dinamarca que morriam de tristeza, mas no da tristeza dos

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    assim, apesar de alguns, como Benjamin Rush, terem admitido suam39 e outros, como Thomas Jeerson, terem posto a culpa pelaescravizao dos negros nos britnicos40; apesar de os prprios escravos terem apresentado demandas pblicas por sua libertao41

    e de alguns estados isolados terem aprovado legislao antiescravagista42, a nova nao, concebida em liberdade, tolerava a monstruosa incoerncia, inscrevendo a escravido na Constituio dosEstados Unidos da Amrica.

    O enciclopedista rancs Denis Diderot alava com admiraodos revolucionrios estadunidenses, como cidados que haviamqueimado suas correntes e recusado a escravido43. Mas se anatureza colonial da luta pela liberdade nos Estados Unidos permitiu de algum modo sustentar a distino entre o discurso poltico e

    as instituies sociais, no caso da Revoluo Francesa, uma dcadamais tarde, os vrios sentidos da escravido tornaramse inescapavelmente emaranhados ao serem conrontados s contradiesundamentais entre os eventos revolucionrios na Frana e o queocorria nas colnias rancesas. Foram necessrios anos de derramamento de sangue antes que a escravido no apenas sua metora,mas a escravido real osse abolida nas colnias rancesas, e mesmo ento os ganhos oram apenas temporrios. Apesar de a abolio da escravatura ser a nica consequncia logicamente possvel da

    ideia de liberdade universal, ela no se realizou por meio das ideiasou mesmo das aes revolucionrias dos ranceses; ela se realizougraas s aes dos prprios escravos. O epicentro dessa luta oi acolnia de SaintDomingue. Em 1791, enquanto mesmo os mais ardentes opositores da escravido na Frana esperavam passivamentepor mudanas, o meio milho de escravos em SaintDomingue, amais rica colnia no somente da Frana, mas de todo o mundo colonial, tomava nas prprias mos as rdeas da luta pela liberdade, noatravs de peties, mas por meio de uma revolta violenta e organi

    zada44. Em 1794, os negros armados de SaintDomingue oraram aRepblica Francesa a aceitar oait accomplida abolio da escravaturana ilha (declarada pelos comissrios coloniais ranceses Sonthonaxe Polverel, que agiam por conta prpria) e a universalizar a abolioem todas as colnias rancesas45. De 1794 a 1800, como homenslivres, esses antigos escravos envolveramse numa luta contra oras invasoras britnicas, das quais muitos colonos proprietrios deterras de SaintDomingue, brancos e mulatos, esperavam o restabelecimento da escravido46. O exrcito negro, sob o comando de

    ToussaintLouverure, derrotou militarmente os britnicos, numaluta que ortaleceu o movimento abolicionista na GrBretanha epreparou o terreno para a suspenso britnica do trco de escravosem 180747. Em 1801, ToussaintLouverure, o antigo escravo que se

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    tornou governador de SaintDomingue, passou a suspeitar que oDiretrio Francs poderia tentar rescindir a abolio48. Mesmo assim, ainda leal Repblica49, escreveu uma constituio para a colnia que se adiantou a qualquer outro documento dessa natureza no

    mundo se no em suas bases democrticas, certamente com relao incluso racial pressuposta em sua denio de cidadania50.Em 1802, Napoleo de ato buscou restabelecer a escravido e o CodeNoir, ordenando a priso e a deportao de Toussaint Frana, ondemorreu aprisionado em 1803. Quando Napoleo enviou tropasrancesas sob o comando de Leclerc para subjugar a colnia, lanando uma guerra brutal contra a populao negra que chegou ao pontode uma guerra genocida51, os cidados negros de SaintDominguemais uma vez pegaram em armas, demonstrando, nas palavras do

    prprio Leclerc, que no basta deportar Toussaint, h 2.000 outroslderes que tambm teriam de ser deportados52. Em 1 de janeirode 1804, o novo lder militar e escravo de nascimento JeanJacquesDessalines deu o passo nal ao declarar independncia da Frana,combinando, assim, o m da escravido com o m da condio colonial. Sob a bandeiraLiberdade ou Morte (tais palavras oram inscritasna bandeira vermelha e azul, da qual a aixa branca da tricolor rancesa havia sido removida)53, derrotou as tropas rancesas, eliminoua populao branca e estabeleceu em 1805 uma nao independente

    e constitucional de cidados negros, um imprio imagem daquele do prprio Napoleo, ao qual deram o antigo nome Arawak dailha, Haiti54. Esses eventos, culminando na completa liberdade dosescravos e da colnia, no tinham precedente. Jamais uma sociedade escravista havia sido capaz de derrubar sua classe dirigente55.

    A autolibertao dos escravos aricanos de SaintDominguelhes assegurou, ora, o reconhecimento dos brancos europeus eamericanos mesmo que tenha sido por medo. Entre aqueles quesustentavam simpatias igualitrias, tambm angariou respeito. Por

    quase uma dcada, antes que a eliminao violenta dos brancos sinalizasse seu recuo deliberado de princpios universalistas, os jacobinos negros de SaintDomingue colocaramse rente da metrpoleao realizar ativamente o objetivo iluminista da liberdade humana,parecendo oerecer prova de que a Revoluo Francesa no era simplesmente um enmeno europeu, mas um evento com implicaeshistricas de alcance mundial56. Se nos acostumamos a dierentesnarrativas, quelas que situam os eventos coloniais nas margens dahistria europeia, ento omos seriamente enganados. Os eventos

    em SaintDomingue oram cruciais para os esoros contemporneos de extrair sentido da realidade criada pela Revoluo Francesae seus desdobramentos57. Devemos ter em mente os atos segundoessa perspectiva.

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    6.

    Consideremos a decorrncia lgica da derrocada da escravidona evoluo da conscincia dos europeus que a testemunharam.

    Os revolucionrios ranceses sempre se viram a si mesmos comoum movimento de libertao que livraria as pessoas da escravido, das iniquidades eudais. Em 1789, os lemas Liberdade oumorte e Antes a morte que a escravido eram correntes, e a Marseillaise denunciava lesclavage antique [a escravido antiga] nesse contexto58. Era uma revoluo no apenas contra a tirania deum governante especico, mas contra todas as tradies antigasque violavam os princpios gerais da liberdade humana. Relatandoos eventos em Paris, no vero de 1789, o publicista alemo Johann

    Wilhelm von Archenholz (ao qual ainda retornaremos) abandonou sua usual neutralidade jornalstica para exclamar que o povo(Volk) rancs, acostumado a beijar as correntes que lhe prendia[] havia, numa questo de horas, quebrado essas correntes gigantescas com um golpe arrebatador de coragem, tornandose maislivres que os romanos e gregos em seu tempo e que os americanose britnicos hoje59.

    Mas e as colnias, a onte da riqueza de uma poro to grande dapopulao rancesa? O signicado da liberdade estava em jogo em

    sua reao aos eventos de 1789, e em lugar nenhum mais do que najoia da coroa, SaintDomingue. Seguiriam os colonos o exemplo dosamericanos e se revoltariam, como demandavam alguns dos azendeiros crioulos de SaintDomingue? Ou congregarseiam raternalmente para proclamar sua liberdade como cidados ranceses?Neste caso, quem seria reconhecido como cidado? Os proprietrios de terras, por certo60. Mas somente os brancos? Estimase queos mulatos eram proprietrios de cerca de um tero da terra cultivadade SaintDomingue61. No deveriam ser eles tambm includos, e

    no apenas eles, mas tambm os negros livres? Seria propriedadeou raa o teste decisivo para ser um cidado da Frana? E ainda maispremente, se os aricanos podiam em princpio ser includos comocidados isto , se os pressupostos racistas subjacentes ao CodeNoiranal no ossem vlidos , ento como poderia ser justicadaa continuidade da escravizao legal dos negros?62. E se no pudesse ser justicada, como poderia ser mantido o sistema colonial? Odesenrolar da lgica da liberdade nas colnias ameaava decomportoda a estrutura institucional da economia escravagista que susten

    tava uma poro substancial da burguesia rancesa, e essa revoluopoltica era, por certo, sua63. Mesmo assim, somente a lgica da liberdade poderia oerecer revoluo a legitimidade nos termos universais nos quais os ranceses se enxergavam a si mesmos.

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    A Revoluo Haitiana era o cadinho, a prova de ogo para os ideais do Iluminismo rancs. E cada europeu que azia parte do pblicoleitor burgus sabia disso64. Os olhos do mundo estavam agora emSanto Domingo65. Assim comea um artigo publicado em 1804 em

    Minerva, o peridico undado por Archenholz, que vinha cobrindoa Revoluo Francesa desde seu princpio e relatando sobre a revoluo em SaintDomingue desde 179266. Por um ano inteiro, dooutono de 1804 ao m de 1805,Minerva publicou uma srie contnua, totalizando mais de cem pginas, incluindo ontes documentais, sumrios de imprensa e relatos testemunhais, que inormavamaos leitores no apenas sobre a luta nal pela independncia dessacolnia rancesa sob a bandeira de Liberdade ou Morte67! , mastambm dos eventos dos dez anos que a precederam. Archenholz era

    crtico da violncia dessa revoluo (como tambm o era do TerrorJacobino na metrpole), mas passou a estimar ToussaintLouverture, publicando, como parte de sua srie, a traduo alem de umcaptulo do manuscrito de Marcus Rainsord, capito britnico, quecelebrava de maneira superlativa o carter de Toussaint, sua liderana e sua humanidade68.

    A revista de Archenholz apropriavase livremente de ontes emlngua inglesa e rancesa, de modo que seu relato refetia notcias amplamente veiculadas entre o pblico leitor europeu, e os artigos em

    Minerva oram aproveitados, por sua vez, por incontveis jornais(um cenrio de comunicao cosmopolita e aberta, a despeito dasrestries de propriedade intelectual, que talvez somente encontrarseu paralelo na ase inicial da internet)69. Apesar de existir censurana imprensa rancesa aps 180370, jornais e revistas na GrBretanha(assim como nos Estados Unidos e na Polnia)71 deram destaque aoseventos da batalha revolucionria nal em SaintDomingue entreoutros, aEdinburgh Review 72. William Wordsworth escreveu um sonetointitulado A ToussaintLouverture, publicado no The Morning Post

    em evereiro de 1803, no qual lamentava o restabelecimento do CodeNoirnas colnias rancesas73.

    Na imprensa de lngua alem, a cobertura de Minerva era especial. J em 1794, dois anos aps sua undao, havia estabelecidosua reputao como o melhor de seu gnero entre os peridicos polticos. Esoravase por manterse apartidrio, objetivo e actual,buscando uma verdade histrica capaz de instruir [] nossosnetos74. Seu objetivo, conorme explicitado em seu lema (em ingls!), era apresentar prpria poca e sociedade de seu tempo

    sua orma e ora75. Em 1798, sua circulao chegava a trs milcpias (respeitvel mesmo em nossa poca para qualquer peridicointelectual srio), nmero que se estima haver dobrado em 1809.Nas palavras do bigrao de Archenholz,Minerva era o mais im

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    portante peridico poltico da virada do sculo, tanto em termosde qualidade do contedo, escrito por correspondentes regulares(que eram, por sua vez, iguras pblicas importantes por mritoprprio), como pela qualidade dos leitores, entre os quais se en

    contravam algumas das pessoas mais inluentes na Alemanha76. Orei Frederico Guilherme III da Prssia liaMinerva constantemente77. Tanto Goethe como Schiller a liam (sendo que este se correspondia regularmente com Archenholz)78, assim como Klopstock(que contribua para o peridico), Schelling e Laayette. Outro leitor regular de Minerva az sentido continuar com o suspense?, como sabemos a partir de suas cartas publicadas, era o ilsooalemo Georg Wilhelm Fridrich Hegel79.

    7.

    De onde surgiu a ideia de Hegel sobre a relao entre o senhorioe a servido?, perguntamse especialistas em Hegel, repetidamente, reerindose clebre metora da luta de vida ou morte entresenhor e escravo, que, para Hegel, oerecia a chave para o avano daliberdade na histria mundial e que oi elaborada pela primeira veznaFenomenologia do esprito , escrita em Jena entre 1805 e 1806 (o primeiro ano de existncia da nao haitiana) e publicada em 1807 (o

    ano da abolio britnica do trco de escravos). Vale a pena insistir: de onde? Os que se ocupam da histria das ideias da losoaalem conhecem apenas um lugar onde procurar pela resposta: nosescritos de outros intelectuais. Talvez tenha sido Fichte, escreve George Armstrong Kelly, apesar de que o problema do senhorio e daservido essencialmente platnico80. Judith Shklar toma o caminho convencional de vincular a discusso hegeliana a Aristteles.Otto Pggeler e dicilmente haver nome mais sosticado naliteratura alem sobre Hegel diz que a metora sequer provem

    dos antigos, sendo na verdade um exemplo totalmente abstrato81.Apenas um estudioso, PierreFranklin Tavars, chegou a realmenteestabelecer a conexo entre Hegel e o Haiti, baseando seu argumentona evidncia de que Hegel havia lido o abade rancs abolicionistaGrgoire82. (Seu trabalho, escrito no incio da dcada de 1990, oi,at onde sei, retumbantemente ignorado pela comunidade hegeliana.) Mas mesmo Tavars trata do Hegel tardio, aps a concepoda dialtica do senhor e do escravo83. Ningum ousou sugerir quea ideia para a dialtica do senhorio e da servido tenha ocorrido a

    Hegel em Jena, entre os anos de 1803 e 1805, a partir da leitura da imprensa revistas e jornais. Porm, esse mesmo Hegel, nesse mesmoperodo de Jena, durante o qual a dialtica do senhor e do escravo oiconcebida pela primeira vez, ez a seguinte anotao:

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    Ler o jornal no incio da manh uma espcie de prece matinal realista. [No primeiro caso], nos aastamos do mundo e nos dirigimos a Deus,ou [no segundo caso] nos dirigimos ao mundo, quilo de que ele eito.Ambas nos oerecem a mesma segurana, uma vez que deixam cientes de

    onde nos encontramos84.

    Restam apenas duas alternativas. Ou Hegel era o mais cego de todos os lsoos da liberdade cegos da Europa iluminista, deixandoLocke e Rousseau para trs em sua capacidade de negar a realidadedebaixo do seu nariz (a realidade impressa debaixo de seu nariz sobrea mesa do ca da manh); ou Hegel sabia sabia dos escravos reaisque eram bemsucedidos em sua revolta contra seus senhores reais e elaborou sua dialtica do senhorio e da servido deliberadamente no

    quadro de seu contexto contemporneo85.MichelRolph Trouillot escreve em seu importante livro,Silencing

    the past[Silenciando o passado], que a Revoluo Haitiana entrou nahistria com a caracterstica peculiar de continuar sendo impensvel,mesmo enquanto acontecia. Ele certamente tem razo ao enatizar aincapacidade da maioria dos contemporneos da revoluo, por conta de suas categorias prabricadas de pensamento, para entendera revoluo em curso em seus prprios termos86. Mas h um perigoem equiparar dois silncios, o passado e o presente, quando se trata

    da histria haitiana. Pois, se homens e mulheres no sculo xviii noconcebiam a igualdade undamental da humanidade em termos noraciais, como alguns de ns azemos hoje, pelo menos eles sabiam oque estava acontecendo; hoje em dia, quando a revoluo dos escravoshaitianos pode parecer mais pensvel, ela mais invisvel, devido construo dos discursos disciplinares por meio dos quais herdamoso conhecimento sobre o passado87.

    Os europeus do sculo xviii estavam realmente pensando sobre aRevoluo Haitiana precisamente porque ela desaava o racismo de

    muitos de seus pressupostos. No era necessrio ter sido um deensor da revoluo de escravos para reconhecer sua importncia crucial para o discurso poltico88. Mesmo na era das revolues, seuscontemporneos reconheceram na criao do Haiti algo extraordinrio89. E mesmo seus oponentes consideraram esse evento marcante como algo digno da contemplao dos lsoos90. MarcusRainsord escreveu em 1805 que a causa da Revoluo Haitiana era oesprito de liberdade91. O ato de que esse esprito pudesse ser contagioso, atravessando a ronteira que separava no apenas as raas,

    mas tambm os escravos dos homens livres, oi o que tornou possvelsustentar, sem recurso ontologia abstrata da natureza, que o desejo por liberdade era verdadeiramente universal, um evento da histriamundiale, de ato, o exemplo que rompe o paradigma. Antes de escrever

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    A enomenologia do esprito, Hegel havia abordado o tema do reconhecimento mtuo em termos deSittlichkeit[eticidade]: criminosos contra a sociedade ou as relaes recprocas na comunidade religiosa ouaeio pessoal. Agora, porm, esse jovem proessor, ainda no incio

    de seus 30 anos, teve a audcia de rejeitar essas verses anteriores(mais aceitveis para o discurso losco estabelecido) e inaugurar,como a metora central de seu trabalho, no a escravido oposta aalgum estado mtico de natureza (como todos aqueles entre Hobbese Rousseau haviam eito antes dele), mas escravos contra senhores,trazendo para dentro de seu texto a realidade presente, histrica, queo circundava como uma tinta invisvel.

    8.

    Consideremos, em maior detalhe, a dialtica de Hegel do senhor edo escravo, concentrandonos sobre as caractersticas mais marcadasdessa relao. (Apoiarmeei no apenas nas passagens relevantes deAenomenologia do esprito , mas tambm nos textos que a precedem imediatamente, escritos em Jena entre 1803 e 1806.)92.

    Hegel compreende a posio do senhor tanto em termos poltico como econmico. No Sistema da eticidade (1803): O senhorpossui geralmente uma superabundncia de necessidades sicas,

    enquanto o outro (o escravo) delas carece93. primeira vista, asituao do senhor independente, e sua natureza essencial existir para si mesma; enquanto, em contrapartida, o outro, aposio do escravo, dependente e sua essncia viver ou existirpara outrem94. O escravo caracterizado pela carncia de reconhecimento alheio. visto como uma coisa; coisidade a essnciada conscincia escrava como havia sido a essncia de sua situao legal sob o Code Noir95. Contudo, medida que a dialtica sedesenvolve, a dominao aparente do senhor se reverte, com sua

    conscincia de que na verdade totalmente dependente do escravo.Basta coletivizar a igura do senhor para ver a pertinncia descritivada anlise de Hegel: a classe de proprietrios de escravos dependetotalmente da instituio da escravatura para prover a superabundncia que constitui sua riqueza. Essa classe , portanto, incapazde ser o agente do progresso histrico sem aniquilar sua prpriaexistncia96. Mas ento os escravos (novamente coletivizando a igura) chegam autoconscincia ao demonstrar que no so coisas,nem objetos, mas sujeitos que transormam a natureza material97.

    O texto de Hegel tornase obscuro e, por im, silencia ao chegar aessa concluso98. Considerando, porm, os eventos histricos queoereceram o contexto paraA enomenologia do esprito, a inerncia bastante clara. Aqueles que chegaram a se submeter escravido

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    demonstram sua humanidade quando preferem enfrentar a morte apermanecerem subjugados99. A lei (o Code Noir!) que os reconhecemeramente como uma coisa j no pode ser considerada vinculante100, apesar de que, antes, de acordo com Hegel, era o prprio es

    cravo o responsvel por sua falta de liberdade, ao haver inicialmenteoptado pela vida em lugar da liberdade, pela mera autopreservao101. EmA fenomenologia do esprito , Hegel insiste que a liberdade nopode ser outorgada aos escravos de cima para baixo. preciso que aautolibertao do escravo ocorra atravs de uma prova de morte:E somente arriscando a prpria vida que a liberdade obtida [].O indivduo que no arriscou sua vida pode, sem dvida, ser reconhecido como uma pessoa (a agenda dos abolicionistas!); mas eleno alcana a verdade desse reconhecimento como uma autocons

    cincia independente102. O objetivo dessa libertao, da libertaoda escravido, no pode ser a sujeio, por sua vez, do senhor, o quesimplesmente repetiria o impasse existencial do senhor103, e sima eliminao completa da instituio da escravido.

    Dada a facilidade com que essa dialtica do senhor e do escravo seoferece a uma tal leitura, de se perguntar por que o tema Hegel e Haiti foi ignorado por tanto tempo. Os estudiosos de Hegel no apenasdeixaram de responder a essa questo, como tambm deixaram atmesmo, ao longo dos ltimos duzentos anos, de colocla104.

    9.

    Uma das principais razes para essa omisso certamente aapropriao marxista de uma interpretao social da dialtica hegeliana. Desde a dcada de 1840, com os escritos de juventude deKarl Marx, a luta entre o senhor e o escravo vem sendo abstradada referncia literal e lida novamente como uma metfora destavez, para a luta de classes. No sculo XX, essa interpretao hegelia

    nomarxista teve poderosos proponentes, incluindo Gerg Lukcse Herbert Marcuse, assim como Alexandre Kojve, cujas conferncias sobreA fenomenologia do esprito so uma brilhante releitura dostextos de Hegel atravs de uma lente marxiana105. O problema que marxistas (brancos), dentre todos os leitores, eram os menospropensos a considerar a escravido real como algo significante,uma vez que, em sua concepo etapista da histria, a escravido no importando o quo contempornea era vista como umainstituio prmoderna, banida da histria e relegada ao passa

    do106. Mas somente se presumirmos que Hegel estava contandouma histria que se esgotava na Europa, na qual a escravido erauma instituio mediterrnea vetusta, h muito abandonada, umatal leitura se tornar remotamente plausvel remotamente, por

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    que mesmo na prpria Europa de 1806, a servido por dvidas ea servido undiria ainda no haviam desaparecido, e as leis queconsideravam a escravido propriamente dita tolervel ainda estavam sendo contestadas 107.

    H um elemento de racismo implcito no marxismo ocial, ao menos por conta da concepo da histria como uma progresso teleolgica. Esse elemento se tornava explcito, por exemplo, quando marxistas (brancos) resistiam tese de inspirao marxista do historiadorjamaicano Eric Williams em Capitalism and slavery (1944) reoradapelo historiador marxista trinidadiano C. L. R. James em The black jacobins de que a escravido do sistema deplantation era uma instituio quintessencialmente moderna de explorao capitalista108. Noque se reere literatura hegeliana especializada, Ludwig Siep e outros

    criticaram justicadamente a leitura marxista de Hegel sob a tica daluta de classes como algo anacrnico. O resultado disso entre os lsoos, entretanto, tem sido uma tendncia a se aastar completamenteda contextualizao social109. A interpretao de Hegel segundo a lutade classes realmente anacrnica, mas isso deveria ter levado os intrpretes a olhar mais de perto os eventos histricos contemporneos deHegel, e no a abandonar inteiramente a interpretao social.

    A literatura de orientao marxista lanou luz, porm, sobre umarea inteira de questes de Hegel que haviam permanecido comple

    tamente negligenciadas at o sculo XX. Isso se reere ao ato de que,em 1803, Hegel lera a Riqueza das naes de Adam Smith e que issoo levou a uma concepo da sociedade civil die brgerliche Gesellschat como economia moderna, a sociedade criada pelas aes detroca burguesas. Mas se os marxistas oram provocados pela citaode Hegel do exemplo de Smith da brica de alnetes na discussoda diviso do trabalho (que de modo algum se encaixa no modelo dadialtica do senhor e do escravo!), deixaram de comentar o ato deque Smith incluiu uma discusso econmica da escravido moderna

    emA Riqueza das naes 110.H muito que se reconhece que a concepo hegeliana da poltica

    era moderna, baseada numa interpretao dos eventos da RevoluoFrancesa como uma ruptura decisiva em relao ao passado, e que,mesmo sem a mencionar expressamente, ele se reeria RevoluoFrancesa emA enomenologia do esprito111. Por que seriam apenas doisos sentidos em que Hegel teria sido um modernista: adotando a teoriaeconmica de Adam Smith e a Revoluo Francesa como modelo paraa poltica? E, mesmo assim, quando se tratava da escravido, a mais

    candente questo social de seu tempo, com rebelies escravas por todas as colnias e uma revoluo escrava bemsucedida na mais ricaentre todas elas por que deveria comopoderia Hegel se manter detal modo xado em Aristteles?112.

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    por Hegel em seu primeiro ano em Berlim (18181919) conectaramexplicitamente a libertao do escravo realizao histrica da liberdade: Os humanos se tornarem livres parte, portanto, de um mundolivre. Que no haja escravido (Sklaverei) a exigncia tica (die sittliche

    Forderung). Essa exigncia somente satiseita quando aquilo que umser humano deve ser aparece como o mundo exterior que ele tornaseu119. No teramos por que compartilhar da perplexidade do editordessas conerncias, que reparou, em 1983, que Hegel alava de escravos de modo surpreendentemente requente120. E consideraramosuma conrmao (ainda que outros sequer chegaram a notar) de queHegel, em sua obra tardia,A flosofa do esprito subjetivo, menciona expressamente a Revoluo Haitiana121.

    Seria tambm revelador reconsiderar o argumento do lsoo ran

    cs Jacques dHont, segundo o qual Hegel estava ligado maonariaradical durante esse anos, pois a maonaria az parte de nossa histriaa todo momento122. No apenas Archenholz, o editor de Minerva, eramaom, assim como seus correspondentes regulares Konrad Engelbert Olsner (que se encontrou com Hegel em 1794) e Georg Foster (acuja obra Hegel se reere), assim como muitos outros entre os contatosintelectuais de Hegel123; no s era maom o capito ingls Rainsord,autor do livro sobre a histria da independncia haitiana, um captulodo qual ora publicado emMinerva em 1805124, como tambm a mao

    naria oi (e aqui o relato de DHont silencia) um ator crucial no levantede SaintDomingue.

    No era incomum lhos mulatos de azendeiros coloniais brancos (no raro sendo suas mes legalmente casadas com os pais) seremlevados Frana para receberem ali sua ormao. E notvel que aslojas manicas radicais rancesas ossem espaos igualitrios, nosquais a segregao racial, religiosa e mesmo sexual podia ser superada, ao menos temporariamente125. Polverel, o homem que dividiu comSonthonax tanto o posto de comissrio em SaintDomingue como

    a responsabilidade por declarar a abolio da escravatura na colniaem 1793, havia sido maom em Bordeaux na dcada de 1770126, umperodo em que um nmero surpreendente de jovens mulatos queposteriormente se tornaram lderes da revolta em SaintDominguetambm se encontravam nessa cidade porturia do circuito do comrcio de escravos127. Dois desses jovens, Vincent Og e Julien Raimond,declararamse, no primeiro ano da Revoluo Francesa, avorveis aosdireitos dos mulatos. Sua alta de sucesso levouos em direes bemdierentes. Contando com o apoio dosAmis des Noirs e com provveis

    conexes manicas, assim como abolicionistas, tanto em Londrescomo na Filadla, Og voltou colnia em 1790 para liderar umarevolta de mulatos livres por direitos civis; derrotado, oi torturadoe executado pela corte colonial no ano seguinte128. Raimond oi no

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    meado comissrio colonial pelo governo rancs em 1796 e trabalhouem estreita proximidade primeiro com Sonthonax e em seguida comToussaint, a quem ajudou a redigir a constituio de 1801. Um terceiromulato bordels, Andr Rigaud, lutou com o exrcito rancs na Guer

    ra de Independncia Americana e oi, depois de Toussaint (que se tornou seu rival), provavelmente o mais importante general na luta dominguense contra os britnicos na dcada de 1790129. Um quarto oiAlexandre Ption, que lutou com Dessalines contra os ranceses, tornandose presidente da repblica do Haiti, criada no sul da ilha apso assassinato de Dessalines em 1806. O presidente Ption encorajouSimn Bolvar a exigir a abolio da escravido na luta latinoamericana pela independncia, na qual a maonaria tambm desempenhouum papel decisivo. O historiador Jacques de Cauna escreveu a respei

    to desse ilustre grupo de lderes dominguenses: Seria interessanteinvestigar se eles tambm teriam eito parte das lojas manicas deBordeaux. Essa pesquisa ainda est por ser eita130. Ademais, no podemos car cegos possibilidade de infuncia recproca: os prpriossinais secretos da maonaria podem ter sido aetados pelas prticasrituais dos escravos revolucionrios de SaintDomingue. Existem reerncias intrigantes ao vodu o culto secreto dos escravos dominguenses que gerou o macio levante de 1791 como uma espcie demaonaria religiosa e cerimonial131. Sabemos muito pouco sobre a

    maonaria no Atlntico negro/pardo/branco, um captulo de relevo nahistria da hibridez e da transculturao.

    11.

    A coruja deMinerva somente levanta voo quando o sol se pe.Essa muito citada mxima das conerncias de Hegel sobreA flosofada histria(1822), que podia muito bem ser uma reerncia revistaMinerva, na verdade marca um recuo da poltica radical deA enomenologia

    do esprito a extenso desse recuo em relao posio inicial de Hegel sobre a Revoluo Francesa , porm, objeto de debate h muitosanos133. Mas, ao menos no que diz respeito abolio da escravido, orecuo de Hegel em relao ao radicalismo revolucionrio evidente134.

    Notoriamente condenando a cultura aricana prhistria eculpando os prprios aricanos pela escravido no Novo Mundo,Hegel repetia o argumento banal e apologtico de que os escravosviviam em condies melhores nas colnias do que em suas ptriasaricanas, onde a escravido era absoluta135, e corroborava o gradu

    alismo: A escravido a injustia em si e por si s, pois a essncia dahumanidade Liberdade; mas, para tanto, o homem deve amadurecer.A abolio gradual da escravido , portanto, mais sbia e mais equitativa que sua sbita supresso136. Essa postura no era, no entan

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    Figura 1. Um templo erguido pelos negros paracomemorar sua Emancipao. Ilustrao paraMarcus Rainsord. An historical account o the black empire o Hayti(1805). Gravura de J. Barlow,baseado no autor132.

    Figura 2. Traje manico rancs do inal dosculo XVIII.

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    Figura 3. Diagrama cosmolgico, maonaria rancesa, m do sculoXVIII. Desenho esotrico por JeanBaptiste Willermoz (Bibliothque Nationale, Paris). Willermoz, um negociante lions, cheava aOrdem Templria chamada Observncia Estrita, que tinha conexescom Bordeaux e era ortemente infuenciada por Martins de Pas

    qually, undador da ordem lus Cohens, uma maonaria mstica como objetivo de remeter os seres humanos ao seu estado original antesda Queda Admica. Martins, nascido em Grenoble, morreu em 1774,na ilha de SaintDomingue. Ver Serge Hutin.Les rancsmaons . Paris,1960, pp. 8590.

    Figura 4. Diagrama cosmolgico, vodu haitiano, sculo XX. Pintura ri

    tual no solo (vv) para deidades vodu, reunidas em torno de um eixoem cruz. Extrado de Leslie G. Desmangles.The aces o god: vodou and Roman catholicism in Haiti. Chapel Hill, 1992, p. 106. Os vvs, traados comsubstncias pulverizadas em torno de uma coluna central no terreirocerimonial vodu, tomam sua estrutura emprestada a tradies Fon eKongo de pintura do solo sagrado. [] No processo, atributos catlicoslatinos, a espada de So Tiago Maior, os coraes da Madre Dolorosa emesmo o compasso sobre o quadrado da Maonaria passaram a ser dispostosao longo dos subjacentes eixos cruzados da maioria dos sinais vv nosolo (Robert Farris Thompson. The fash o the spirit: Haitis aricanizing vodun art.Haitian Art. Nova York, 1979, p. 33, grios meus).

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    Figura 6. Seneque Obin,Haitian Lodge Number 6(1960), retratando a guia bicelica do rite cossais.Em 1801, o primeiro Conselho Supremo de 33 graus oi estabelecido em Charleston, Carolina do Sul,com irmos tanto americanos como ranceses; um destes, o conde de GrasseyTilly, undou um novoConselho Supremo na ilha de SaintDomingue (Hutin. les Francsmaons, p. 103).

    Figura 5. guia bicelica coroada. Emblemado Conselho Supremo de 33 graus, a maisalta ordem do rite cossais (rito escocs). Maonaria rancesa, sculo XVIII (BibliothqueNationale, Paris).

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    Figuras 7 e 8. guia bicelica coroada, marca dgua sobre papel produzido por Johann Ephraim Stahl (negociante ativo desde 1799 emBlanckenburg an der Schwarza, Turngia) que oi usado por Hegel em Jena para o ltimo tero do manuscrito de seuSystem der Sittlichkeit(1803); Hegel utilizou o mesmo papel Stahl em setembro e novembro de 1802 para registrar anotaes sobre a poltica da poca. Ver EvaZiesche e Dierk Schnitger.Der Handschritliche Nachlass Georg Wilhelm Friedrich Hegels und die HegelBestnde der Staatsbibliothek zu BerlinPreussischer Kulturbesitz . Wiesbaden, 1995, vol. 1, pp. 912; vol. 2, pp. 312, 86.

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    to, a mais surpreendente em suas conerncias. Pelo contrrio, era obrutal esmero com que privava toda a rica subsaariana, essa terrade crianas, de barbrie e selvageria, de qualquer relevncia paraa histria mundial, devido ao que ele considerava serem as decin

    cias do esprito aricano137.Seria essa mudana simplesmente uma parte do conservadoris

    mo mais geral de Hegel durante os anos em Berlim? Ou estaria ele,novamente, reagindo aos eventos correntes? O Haiti estava novamente nas manchetes durante as primeiras dcadas do sculo xix,ebrilmente discutido por abolicionistas e seus oponentes na imprensa britnica, incluindo aEdinburgh Review, que temos certeza deque Hegel lia poca138.

    No contexto da presso contnua pela abolio da escravatura, os

    acontecimentos no Haiti, o grande experimento, eram monitoradosconstantemente e evocavam censuras crescentes, mesmo de seus antigos deensores139. No centro da discusso, estava a suposta brutalidade do rei Henri Christophe140 e o declnio da produtividade na ilha sobo sistema de trabalho assalariado (aqui seria o momento adequadopara uma crtica marxista)141. No h registro de se esses debates levaram Hegel a reconsiderar o grande experimento do Haiti. O queest claro que, num esoro para se tornar mais erudito nos estudosaricanos durante a dcada de 1820, Hegel estava na verdade se tor

    nando mais tolo.Hegel repetiu suas conerncias sobre a losoa da histria a cada

    dois anos entre 1822 e 1830, adicionando material emprico obtido desua leitura dos especialistas europeus na histria mundial142. tristemente irnico que, quanto mais elmente suas conerncias refetiama produo acadmica convencional europeia sobre a sociedade aricana, menos esclarecidas e mais preconceituosas elas se tornavam143.

    12.

    Por que importante encerrar o silncio sobre Hegel e o Haiti?Diante da aceitao nal de Hegel da continuidade da escravido emais, diante do ato de que a losoa da histria de Hegel oereceu pordois sculos uma justicativa para as mais complacentes ormas deeurocentrismo (talvez Hegel sempre tenha sido um racista cultural, seno um racista biolgico) por que a recuperao desse ragmentoda histria, cuja verdade conseguiu nos escapar, de interesse mais doque hermtico?

    H muitas respostas possveis, mas uma certamente o potencial de resgatar a ideia de histria universal humana dos usos aosquais a dominao branca a condenou. Se os atos histricos a respeito da liberdade podem ser extirpados das narrativas contadas

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    pelos vencedores e recuperadas para a nossa prpria poca, entoo projeto da liberdade universal no deve ser descartado, mas, pelocontrrio, deve ser resgatado e reconstitudo sobre novas bases. Omomento de clareza de pensamento de Hegel teria de ser sobreposto

    ao de outros da poca: ToussaintLouverture, Wordsworth, abadeGrgoire e mesmo Dessalines. Em que pese toda a brutalidade desua vingana contra os brancos, Dessalines oi quem viu com maiorclareza a realidade do racismo europeu. Ainda, o momento de Hegel deve ser sobreposto aos momentos de clareza ativa: os soldadosranceses que, enviados colnia por Napoleo, ao ouvirem essesexescravos cantando a Marseillaise, perguntaramse em voz altase no estariam lutando do lado errado; o regimento polons sobo comando de Leclerc que desobedeceu suas ordens e se recusou

    a aogar seiscentos dominguenses capturados144. Existem muitosexemplos dessa clareza e eles no pertencem com exclusividade aqualquer lado ou grupo. E se cada vez que a conscincia dos indivduos ultrapassasse as ronteiras das constelaes atuais de poder epercebesse o signicado concreto da liberdade, este osse avaliadocomo um momento, ainda que transitrio, da realizao do espritoabsoluto? Quais outros silncios teriam ainda de ser quebrados?Quais histrias indisciplinares ainda teriam de ser contadas?145.

    Susan Buck-Morss proessora de ilosoia poltica e teoria social da Universidade Cornell (eua).

    NOTAS

    [1] Para os pensadores do sculoxviii que abordaram a questo, a escravido era a metora central paratodas as oras que aviltavam o esprito humano (Davis, David Brion. The problem o slavery in the age orevolution, 17701823. Ithaca: Cornell University Press, 1975, p. 263).

    [2] Ver Schama, Simon. The embarrassment o riches: an interpretation o Dutch culture in the Golden Age.Nova York: Random House, 1987 (ed. bras.: O desconorto da riqueza. So Paulo: Companhia das Letras,1992). A questo que se colocava para essa nao afuente era como criar uma ordem moral em umparaso terreno (p. 125).

    [3] O asientoespanhol assegurava a empreendedores individuais o privilgio exclusivo de abastecer a Amrica Espanhola com escravos aricanos, mas os prprios espanhis apenas timidamente controlavam otrco. Entrepostos do trco escravista na costa aricana tambm exibiam bandeiras de Portugal, PasesBaixos, Frana, GrBretanha, Dinamarca e Brandenburgo. A marinha mercante holandesa dominava ocomrcio martimo entre os pases do Atlntico Norte, transportando os bens de outras naes, e tambm ese beneciava dos privilgios obtidos no traco de escravos baseado no asiento.

    [4] Schama, op. cit., p. 228. Identiquei, nas minhas leituras, apenas duas menes escravido real: numadiscusso sobre os hbitos comensais holandeses, tratando de uma averso ao mengelmoes (mexido),que no passava de um pbulo guisado, um mingau para escravos e bebs (Ibidem, p. 177), e na menoao ato de que a Companhia Holandesa das ndias Ocidentais ora orada a gastar mais de um milho deforins por ano na deesa do encrave pernambucano no Recie contra os portugueses, enquanto apenas 400mil forins de lucro eram hauridos das receitas provenientes do comrcio de escravos e da produo de acare paubrasil (Ibidem, p. 252).

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    [18] Locke, John. Two treatises o government. Ed. Peter Laslett. Cambridge: Cambridge University Press,1960, 1, p. 141.

    [19] Davis,The problem o slavery in Western culture, op. cit., p. 118. Locke estava envolvido no desenvolvimento das polticas coloniais por meio de seu patrono, o Conde de Shatesbury, e era um errenho deensor deseu empreendimento. Foi autor das Constituies Fundamentais da Carolina e membro de seu Conselho

    de Comrcio e Plantaes, tendo sido seu secretrio entre 1673 e 1675. As constituies da Carolina proclamavam: todo homem livre da Carolina deve ter poder e autoridade absolutos sobre seus escravos negros(Ibidem, p. 118).

    [20] Na opinio de Locke, a origem da escravido, assim como a origem da liberdade e da propriedade,encontravase inteiramente ora do mbito do contrato social (Ibidem, p. 119). O argumento losco deLocke temperava a universalidade da igualdade no estado de natureza com a necessidade do consentimentoantes que o contrato social pudesse ser estabelecido, excluindo do contrato, portanto, explicitamente, crianas e idiotas e, por extenso interpretativa, outros que ossem incultos ou incultivveis. Ver Mehta, Uday S.Liberal strategies o exclusion.Politics and Society , n 18, 1990, pp. 42753.

    [21] Davis chama a ateno para o ato ineliz de que escravos ossem denidos pela lei como propriedadee que a propriedade osse considerada como o undamento da liberdade (Davis, The problem o slavery inthe Age o Revolution

    , op. cit., p. 267). Foi somente aps a deciso de Somerset de 1772 que deixou de serpossvel considerar irreutvel a legalidade da propriedade de escravos (Ibidem, p. 470), apesar de WilliamDavy, o advogado do caso, haver argumentado que havia um precedente: No dcimo primeiro ano do reinado de Elizabeth, sustentava Davy, havia sido decidido que a Inglaterra tinha um ar demasiado puro para queescravos o aspirassem. No era bem assim, arma Davis: Na verdade, escravos negros eram compradose apresentados na corte de Elizabeth e de seus sucessores da dinastia Stuart; sua venda era anunciada publicamente ao longo da maior parte do sculo xviii; e eram legados em testamentos at a dcada de 1820(Ibidem, p. 472). Quando em 1765 William Blackstone proclamou que, a partir do momento em que seusps toquem o solo da Inglaterra, um escravo ou negro cair sob a proteo das leis que regem todos os direitosnaturais, tornandose eo instantium homem livre, isso no se aplicava aos escravos nas colnias. Mesmoo advogado de Somerset reconhecia que as cortes inglesas teriam de reconhecer a validade de um contratode aquisio de escravos rmado no exterior (Ibidem, pp. 4734).

    [22] OLondon Advertiserde 1756 publicou um anncio eito por Matthew Dyer, inormando ao pblico

    que produzia cadeados de prata para negros ou ces, coleiras etc. [] Damas inglesas posavam para seusretratos ou bem com seu cordeiro de estimao, ou com seu co de estimao, ou ento com seu negro deestimao (Dabydeen, David.Hoggarths blacks: images o blacks in eighteenthcentury English art. Athens:University o Georgia Press, 1987 [1985], pp. 213).

    [23] A respeito da presena de escravos na GrBretanha do sculo xviii, ver tambm Shylon, F. O.Blackslaves in Britain. Nova York/Londres: Oxord University Press, 1974, e Limbaugh, Peter. The London hanged:crime and civil society in the eighteenth century, Nova York: Cambridge University Press, 1992.

    [24] Ver Mintz, Sidney W.Sweetness and power: the place o sugar in modern history . Nova York: Voking, 1985.

    [25] Ver Davis, Ralph.The rise o the atlantic economies. Ithaca: Cornell University Press, 1973, p. 257.

    [26] Louis SalaMolins arma que um tero da atividade comercial na Frana dependia da instituio daescravido (Le Code noir, ou le calvaire de Canaan . Paris: Presses Universitaires de France, 1987, p. 244). Estimativas mais conservadoras situam a proporo em torno de 20%.

    [27] Foi Montesquieu quem introduziu a escravido nos debates iluministas, denindo seu tom. Ao mesmotempo em que condenava losocamente a instituio, justicava a escravido negra em termos pragmticos, climticos e explicitamente racistas (narizes achatados, pretos da cabea aos ps e carentes de bomsenso). Conclua: Espritos dbeis exageram demasiado a injustia eita aos aricanos pela escravidocolonial (Montesquieu.The spirit o the laws. In:Selected political writings . Trad. e ed. Melvin Richter. Indianapolis: Hackett, 1990, p. 204).

    [28] A exceo mais requentemente citada a obra de um sacerdote, o Abade Raynal, cujo livro Histoirephilosophique et politique des tablissements et du commerce des Europens dans les deux Indes , escrito em 1770em colaborao com Diderot, prenunciava um Esprtaco negro, que surgiria no Novo Mundo e vingaria as

    violaes contra os direitos naturais. O livro oi lido amplamente, no apenas na Europa; o prprio ToussaintLouverure oi inspirado por ele. Ver James, C. L. R. The black jacobins: Toussaint louverture and the San

    Domingo revolution . 2 ed. Nova York: Vitage Books, 1963 [1938], pp. 245. MichelRolph Trouillot j advertiu,porm, contra uma leitura muito entusiasta dessa passagem, que deve ser vista antes como uma advertnciadirigida aos europeus do que como uma conclamao voltada aos prprios escravos: No se tratava de uma

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    clara predio sobre o surgimento de uma gura como L ouverture, como muitos em retrospecto gostariam que osse []. A postura mais radical encontrase na inconundvel reerncia unidade da espciehumana (Trouillot, MichelRolph.Silencing the past: power and the production o history . Boston: BeaconPress, 1995, p. 85).

    [29] Rousseau, JeanJacques. On the social contract. In: The basic political writings. Trad. e ed. Donald A. Cress.

    Indianapolis: Hackett, 1988, livro I, cap. 1, p. 141.

    [30] Ibidem, p. 146.

    [31] SalaMolins, op. cit., p. 238.

    [32] Ibidem, p. 241. Na verdade, os exemplos de Rousseau vm da antiguidade, como quando menciona Brsidas de Esparta se contrapondo ao strapa de Perspolis! Ver Rousseau.Discourse on the origin o inequality .In: The basic political writings, op. cit., p. 72.

    [33] C. SalaMolins, op. cit. , pp. 2436.

    [34] Ver Cohen, William B. The French encounter with Aricans: white response to blacks, 15301880. Blooming

    ton: Indiana University Press, 1980. Em 1764, o governo rancs proibiu a entrada de negros na metrpole.Em 1777, a lei oi modicada para suspender algumas das restries, permitindo que escravos coloniaisacompanhassem seus senhores.

    [35] SalaMolins, op. cit., p. 248.

    [36] Ibidem, p. 253. Autor tambm de LArique aux Amriques: le Code Noir espagnol(Paris: Presses Universitaires de France, 1992), SalaMolins considera os protestos contra a escravido eitos pelo sacerdoteseiscentista Las Casas, que deendeu sua abolio imediata, mais progressistas que os dosphilosophes.

    [37] Davis, The problem o slavery in the Age o Revolution, op. cit., p. 273. Davis cita Bernard Bailyn nessapassagem. Sigo de perto a apresentao de Davis aqui.

    [38] Jordan, Winthrop D. White over black: American attitudes toward the negro, 15501812, Chapel Hill: Uni

    versity o North Carolina Press, 1968, p. 289. Seus inimigos, os tories britnicos aproveitaramse disso:Como possvel, perguntava Samuel Johnson, que os mais ortes brados pela liberdade sejam ouvidos domeio dos condutores de negros? (Davis, The problem o Slavery in Western culture, op. cit., p. 3).

    [39] A rvore da liberdade de natureza to tenra que no ser capaz de vingar nos arredores da escravido(Benjamin Rush [1773], citado em Davis, The problem o slavery in the Age o Revolution, op. cit., p. 283).

    [40] Numa das clusulas suprimidas da Declarao de Independncia, Thomas Jeerson acusava o reibritnico Jorge III de haver declarado uma guerra cruel contra a prpria natureza humana, violando osmais sagrados direitos vida e liberdade encarnados numa gente distante, que jamais o havia oendido,capturandoos e arrastandoos em cativeiro a outro hemisrio [] decidido a manter aberto o mercadoem que homens seriam comprados e vendidos []. Ele agora provoca essa mesma gente a levantarem suasarmas contra ns e a comprarem, com o assassinato das pessoas sobre quem ele os orou, a mesma liberdade

    da qual ele os havia privado, quitando assim crimes anteriores cometidos contra as liberdades de um povocom crimes que ele os conclama a cometer contra as vidas de outro (Davis, The problem o slavery in the Age oRevolution, op. cit., p. 273).

    [41] Temos em comum com todos os outros homens [] um direito natural a nossas liberdades, sem quesejamos delas privados delas por outros homens, pois nascemos como um povo livre e jamais declinamosdessa beno por meio de qualquer pacto ou acordo (citado em Davis, The problem o slavery in the Age o

    Revolution, op. cit., p. 276).

    [42] Se a Revoluo Americana no pde resolver o problema da escravido, ela ao menos levou percepodo problema. Tampouco o desejo de coerncia consistia em retrica vazia. A questo surgiu nas resolues antiescravistas dos conselhos municipais da Nova Inglaterra, na constituio de Vermont, de 1777,em testamentos individuais que alorriavam escravos, na lei de Rhode Island, de 1774, que proibia a uturaimportao de escravos, e no ato de emancipao gradual da Pensilvnia, de 1780, adotado, de acordo comum prembulo escrito por Thomas Paine, em grata celebrao nossa aortunada libertao da ocupaobritnica (Davis, The problem o slavery in the Age o Revolution, op. cit., pp. 2856).

    [43] Trouillot , op. cit., p. 85. AEncyclopdie, editada por Diderot e DAlembert, inclua verbetes relativos escravido real. Apesar de o artigo intitulado Ngres ter simplesmente mencionado que seu trabalho

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    era indispensvel para o cultivo do acar, do tabaco, do ndigo etc., uma srie de verbetes escritos porJaucourt oi mais incisiva: Esclavage declarava ser a escravido contrria natureza; Libert naturelleacusava a religio de criar pretextos contra o direito natural por conta da demanda de escravos nas colnias,plantaes e minas; Trait des Ngres armava que escravos tracados representavam uma mercadoriailcita proibida por todas as leis da humanidade e da igualdade, de modo que a abolio era necessria,mesmo que arruinasse as colnias (Sejam antes destrudas as colnias que a causa de tanto mal). Mas o

    racismo seguia presente nesses textos (SalaMolins,Le Code noir, ou le calvaire de Canaan, pp. 25461) e aabolio era aconselhada sob a orma de um processo gradual, para que os escravos pudessem ser preparadospara a liberdade.

    [44] Esse levante de escravos oi liderado por Boukman, um sacerdote do vodu (culto sincrtico que noapenas congregou escravos de dierentes culturas aricanas, mas tambm absorveu smbolos culturais ocidentais). Boukman se dirigia aos escravos: Abandonem o smbolo do deus dos brancos, que tanto nosez chorar, e ouam a voz da liberdade, que nos ala a todos ao corao (James, op. cit., p. 87). Apesar derebelies de escravos ocorrerem com bastante requncia em SaintDomingue 1679, 1713, 1720, 1730,1758, 1777, 1782 e 1787, antes da ampla revolta de 1791 (ver Dupuy, Alex.Haiti in the world economy: class, race,and underdevelopment since 1700. Boulder: Westview Press, 1989, p. 34) , o levante de Boukman provocou,no contexto da radicalizao da Revoluo Francesa, uma mudana na percepo europeia das revoltas deescravos, no mais vistas como uma sucesso de rebelies escravas, mas como uma extenso da Revoluo

    Europeia: As notcias do vero de 1791 haviam se concentrado na uga para Varnnes e na captura da amliareal rancesae na revolta dos escravos em Santo Domingo (Paulson, Ronald.Representations o Revolution,17891820. New Haven: Yale Unioversity Press, 1983, p. 93).

    [45] A escravido oi abolida por Polverel e Sonthonax em agosto de 1793, agindo autonomamenteem relao s ordens de Paris. O papel de ambos oi negligenciado pelos historiadores, outro caso decegueira acadmica que, para usar a eliz expresso de Trouillot (op. cit.), silencia o passado. Ver osimpsio recente (LgerFlicit Sonthonax: la premire abolition de l esclavage la Rvolution Franaiseet la Rvolution de SaintDomingue. Ed. Marcel Dorigny. SaintDenis/Paris: Socit Franaise dHistoiredOutreMer/Association pour ltude de la Colonisation Europenne, 1997), que apenas comea aremediar a situao; em especial, ver Roland Desn, Sonthonax vu par les dictio nnaires (pp. 11320),que traa a quase total desapario do nome de Sonthonax das enciclopdias bibliogricas da Franaao longo do sculo XX.

    [46] Os britnicos oram pragmaticamente compelidos a garantir a liberdade aos escravos de SaintDomingue que concordaram em lutar ao seu lado como zeram Sonthonax e Polverel no caso daqueles quelutaram pela Repblica Francesa. O eeito dessas polticas oi comprometedor para a escravido, contradizendo qualquer argumento ontolgico sobre a incapacidade dos escravos para a liberdade; ver Geggus,David Patric. The British occupation o SaintDomingue, 17931798. Nova York: tese de doutorado, YorkUniversity, 1978, p. 363.

    [47] Geggus destaca: O papel desempenhado pelo Haiti no sbito ressurgimento do movimento antiescravagista em 1804 parece ter sido completamente ignorado pela literatura acadmica. Porm, sua importnciaoi aparentemente considervel (Geggus. Haiti and the abolitionists: oppinion, propaganda, and international politics in Britain and France, 18041838. In: Richardson, David [ed.]. Abolition and its atermath:the historical context, 17901916. Londres/Totowa: F. Cass, 1985, p. 116). Novamente, um caso de cegueiraacadmica que silencia o passado.

    [48] Em 1796, o general Laveaux nomeou Toussaint governador e o declarou salvador da Repblica e redentor dos escravos prenunciado por Raynal; ver Blackburn, Robin. The overthrow o colonial slavery, 17761848.Londres/Nova York: Verso, 1988, p. 233. Em 1802, o Code Noiroi restaurado na Martinica e em Guadalupe(mas no em SaintDomingue).

    [49] Louverture haviase aliado anteriormente ao rei de Espanha, realizando operaes militares e operando a partir da poro oriental da ilha, que era uma colnia espanhola; mas to logo soube que a

    Assembleia Francesa havia abolido a escravido, juntouse a Sonthonax contra os britnicos e oi leal Repblica Francesa at sua priso. Essa mudana de alianas, que oi objeto de controvrsia, analisada por Geggus. From his most catholic majesty to the godless rpublique: the volteace o ToussaintLouverure and the end o slavery in SaintDomingue.Revue Franaise dHistoire dOutre Mer, vol.65, n 241, 1978, pp. 4889.

    [50] Para ajudlo a preparar o texto constitucional, Toussaint convocou um conselho de seis cidados,incluindo o advogado bordels Julien Raimond: A Constituio Toussaint lOuverture da primeira ltimalinha, que nela consagrou seus princpios de governo. A escravido oi permanentemente abolida. Todo homem, independentemente de sua cor, poderia exercer qualquer ocupao e no haveria qualquer distinoalm daquela baseada em virtudes e talentos ou qualquer outra superioridade que aquela conerida pela lei

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    no exerccio de uma uno pblica. Ele incorporou Constituio um artigo que preservava os direitosde todos os proprietrios ausentes da colnia por qualquer razo, exceto nos casos em que gurassemna lista de emigrados proscritos na Frana. De resto, Toussaint concentrou todo o poder em suas prpriasmos (James, op. cit., p. 263). O regime de Toussaint antecipou o estatuto territorial e poltico do domnio.

    A Frana perdeu a oportunidade de estabelecer uma poltica de imperialismo esclarecido.

    [51] Geggus. Slavery, war, and revolution in the Greater Caribbean. In: Barry, David Gaspar e Geggus(eds.).A turbulent time: the French revolution and the Greater Caribbean. Bloomington: Indiana UniversityPress, 1997, p. 22.

    [52] James, op. cit., p. 346.

    [53] Ibidem, p. 345. Escrevendo sob pseudnimo em um jornal de Boston, deendendo a revoluo emSaintDomingue, Abraham Bishop lembrou que os revolucionrios americanos, que haviam ensinado omundo a ecoar o grito de Liberdade ou Morte! no diziam todos os brancos so livres, mas todos os homensso livres (Davis, D. B.Revolutions: reections on American equality and oreign liberations. Cambridge: Cambridge University Press, 1990, p. 50).

    [54] A constituio de Dessalines declarava que todos os haitianos so negros, procurando eliminar legislativamente as categorias de mulatos e de todos os vrios gradientes de interracialidade. Dessalines oiassassinado em 1806; o Haiti oi ento dividido em duas partes, um reino setentrional, governado porHenriChristophe, e uma repblica meridional, cujo presidente era Alexandre Ption.

    [55] Geggus, Haiti and the abolitionists, op. cit., p. 114. [Doravante HA.]

    [56] Trouillot considera a Revoluo Haitiana a revoluo poltica mais radical daquela poca (Trouillot,op. cit., p. 98). Blackburn escreve: O Haiti no oi o primeiro estado americano independente, mas oi oprimeiro a garantir liberdade civil a todos os seus habitantes (Blackburn, op. cit., p. 260).

    [57] Fora a Revoluo Francesa uma mera reorma dos abusos, como Napoleo dizia que os britnicosa consideravam, ou representava um completo renascimento social, como disse em seu leito de morte?

    Ver Paulson, op. cit., p. 51. No m da vida, Napoleo arrependeuse da maneira como havia tratado ToussaintLouverture.

    [58] Ver Blackburn, op. cit., p. 230.

    [59] Ruo, Friedrich.Johann Wilhelm von Archenholtz: Ein deutscher Schritsteller zur Zeit der Franzsischen Revolution und Napoleons, 17411812. Vaduz: Kraus Reprint, 1965 [1915], p. 29. (A graa empregada por Ruo parao nome de Archenholz, Archenholtz, inusitada). Archenholz continuava: Deveriam ser exaltados pelopovo alemo, que assim se exaltaria a si mesmo (Ibidem, p. 30). Em 1792, utilizou novamente a metorada escravido, ao descrever a situao revolucionria rancesa, perguntando se o povo de uma das naesmais populosas da Terra, que se havia erguido nos ltimos anos do lodo viscoso da escravido e provado saciedade dos doces rutos da liberdade, [] to cedo voltaria a baixar docilmente a cabea sob o jugo e seentreter com suas cadeias rotas como brinquedos, [] mesmo que toda a ora combinada da Europa nauragasse do choque contra esse rochedo (Ibidem, p. 49).

    [60] Em 1790, uma assembleia colonial em SaintDomingue concedeu direito de voto aos brancos noproprietrios (ranqueando o eleitorado a uma base mais ampla do que na prpria metrpole), reorandoassim a natureza racial da excluso poltica. Ver Blackburn, op. cit., p. 183.

    [61] Blackburn escreve que possuam 2 mil azendas de ca no oeste e no sul, em comparao com as 780azendas de acar, cuja grande maioria era controlada por brancos: Em SaintDomingue, os homens livresde cor eram quase to numerosos quanto os colonos brancos, talvez at mais numerosos. Os proprietriosde cor possuam cerca de 100 mil escravos: em nenhuma outra parte das Amricas guravam to alto naescala da classe proprietria aqueles que tinham ascendncia parcialmente aricana; com requncia portavam o prestigioso nome de um pai rancs (Ibidem, pp. 1689).

    [62] O baro de Wimpen perguntou se os colonos no tinham medo de dizerliberdade ou igualdadena rente de seus escravos (ver James, op. cit., p. 82). Porm, ainda era raro em 1792 que republicanos declarassemabertamente, como o ez Sonthonax, que no se pode manter os negros em cativeiro se homens livres queeram iguais aos brancos tambm ossem negros como os escravos (Thibau, Jacques. SaintDomingue larriv de Sonthonax. In:LgerFlicit Sonthonax , op. cit., p. 44).

    [63] Na Assembleia Constituinte (17891791), composta por aproximadamente 1.100 deputados, um decada dez tinha intereses em SaintDomingue (ver ibidem, p. 41).

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    [64] Os Amis des Noirs (associao undada em 1788) oram importantes ao preparar o terreno para essadiscusso. Apesar de no serem numerosos, eram infuentes como escrito res e panfetrios (Condorcet, Brissot, Mirabeau, Abade Grgoire), cujos trabalhos deploravam a condio dos escravos coloniais.Rainsord escrevia em 1805 que, como um resultado da circulao de seus escritos, os escravos negroseram objeto de destaque em conversas e contries em metade das cidades europeias; uma vez quecaracterizavam, com ineliz eloquncia, as misrias da escravido e eram certamente a causa do

    chamado ao, com amplo alcance, daquele esprito de revolta dormente no aricano escravizado ouem seus descendentes (Rainsord, Marcus.An historical account o the black Empire o Hayti. Londres: J.Cundee, 1805, p. 107). A postura dos Amis des Noirs consistia na deesa unicamente da emancipaogradual at 1791, quando passaram a deender a concesso de direitos a negros livres e mulatos; poca da abolio eetiva da escravido (1794), a associao j havia deixado de existir, vtima dos expurgos de Robespierre. A abolio passou a ser identicada com os girondinos, inimigos de Robespierre:Os girondinos oram acusados de haverem secretamente omentado os levantes coloniais em avorda GrBretanha e de apoiarem a abolio com o objetivo de arruinar o imprio rancs []. O prprioRobespierre mantevese conspicuamente ausente da sesso de 4 de evereiro (da Conveno, que votouunanimemente pela abolio da escravatura) e no assinou o decreto (Fick, Carolyn E. The Frenchrevolution in SaintDomingue: a triumph or a ailure?. In:A Turbulent Time , op. cit., p. 68; comparar comBnot, Yves. Comment la convention atelle vot labolition de lesclavage en lan II?. Rvolutions auxColonies. Paris, 1993, pp. 1325).

    [65] Archenholz, Johann Wilhelm von. Einleitung zur Zur neuesten Geschichte von St. Domingo,Minerva, n 4, 1804, p. 340. Essa era a introduo editorial de Archenholz ao artigo (pp. 3415), crtica da

    violncia da revoluo e ctica quanto viabilidade do Estado dos negros.

    [66] Ver Historische Nachrichten von den letzten Unruhen in Saint Domingo: Aus verschiedenen Quellengezogen,Minerva, n 1, ev. 1792, pp. 296319. O artigo pronunciavase a avor dos direitos dos mulatos, dapostura de Brissot e dos Amis des Noirs.

    [67] Esse lema, proclamado por Dessalines em maio de 1803, oi reportado em Zur neuesten Geschichtevon St. Domingo, Minerva, n 4, dez. 1804, p. 506.

    [68] A ascenso do Imprio Haitiano pode aetar decisivamente a condio da raa humana []. Serdicil acreditar, no uturo, que os lsoos tenham ouvido alar de um ato to brilhante, at ento in

    dito, e no tenham se comovido, ou que que tenha sido connado ao conhecimento rgil daqueles cujaexperincia no admitida em meio ao espectro da verdade histrica []. Est nos registro s antigosque negros eram capazes de repelir com vigor seus inimigos em sua prpria terra; e um escritor moderno (Adanson, Voyage lArique, 174953) assegurounos dos talentos e das virtudes desse povo; coube,porm, ao m do sculo xviii realizar o espetculo que exibiu uma horda de negros que, abandonandoum estado de abjeta degenerao, se emanciparam a si mesmos da mais vil escravido e estabeleceramentre si relaes sociais verdadeiras, promulgando leis e comandando exrcitos nas colnias da Europa.O mesmo perodo testemunhou uma grande e reluzente nao [Frana] [] regredir barbrie de pocaspassadas. Rainsord situava a Revoluo Haitiana entre os episdios mais marcantes e importantes dapoca (Rainsord , op. cit., pp. xxi, 364).

    [69] Ruo, op. cit. , p. 62.

    [70] O abolicionismo, que sempre oi um tema de pequenos grupos sectrios na Frana, agora deixoueetivamente de existir. A tentativa de reconquistar SaintDomingue havia sido acompanhada por ummanancial de literatura voltada colnia, mas se tratava em grande parte de obras de colonos, que, comgraus variados de vituprio, atribuam a revoluo negra infuncia abolicionista. Ento, como a expedio de SaintDomingue alhou inteiramente, um veto total oi imposto a todas as obras relacionadass colnias (HA, p. 117).

    [71] A imprensa estadunidense estava repleta de histrias de SaintDomingue. John Adams, ao mesmotempo em que lamentava o desenrolar dos eventos, acreditava que ossem o resultado lgico daquilo quea rebelio nos Estados Unidos havia criado. Outros viam a revoluo dos escravos como a prova de que aescravido deveria ser abolida nos Estados Unidos ou seja, ambos os lados liamna como algo decisivopara a histriamundial(ver Davis, D. B.Revolutions, op. cit., pp. 4954). Correspondentes de guerra tambmenviavam relatos peridicos para os jornais poloneses, uma vez que um regimento polaco azia parte daora militar sob o comando do general Leclerc enviado por Napoleo para restabelecer a escravido em

    SaintDomingue. Ver Pachoski, Jan e Wilson, Reuel K.Polands Caribbean tragedy: a study o polish legions inthe Haitian war o independence, 18021803. Nova York: Columbia university Press, 1986.

    [72] Ver HA, pp. 1135. Na verdade, a maior parte dos relatos no era muito avorvel, com a exceo da heroizao de ToussaintLouverture.

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    [73] O soneto oi provavelmente escrito na Frana, em agosto de 1802 (Geggus. British opinion and theemergence o Haiti, 17911805. In: Walvin, James [ed.]. Slavery and British society, 17761846. Baton Rouge:Louisiana State University Press, 1982, p. 140). Wordsworth nasceu no mesmo ano que Hegel (1770); ambostinham por volta de 30 anos de idade na poca. William Blake tambm incorporou a Revoluo Haitiana emsua poesia.

    [74] Ruo, op. cit., pp. 6970. Archenholz declarou a mais estrita neutralidade (strengste Unparteilichkeit)como seu principal dever (Ibidem, p. 40).

    [75] digno de nota que os estudiosos deMinerva tenham de voltar ao original para descobrir o intensointeresse de Archenholz por SaintDomingue e a Revoluo Haitiana. As duas monograas que oramescritas sobre ele no mencionam esses artigos; ver Ruo, op. cit., e Rieger, Ute.Johann Wilhelm von Archenholz als Zeitbrger: Eine historischanalytische Untersuchung zur Auklrung. Berlim: Duncker & Humblot, 1994. Ver, porm, Schller, Karin (Die deutsche Rezeption haitianischer Geschichte in der ersten Hltedes 19. Jahrhunderts: Ein Beitrag zum deutschen Bild vom Schwarzen . Colnia: Bhlau, 1992, pp. 24861),que inclui um sumrio dos artigos deMinerva sobre SaintDomingue, assim como uma discusso dos relatos sobre a Revoluo Haitiana publicados em outros peridicos e livros alemes, incluindo a bastanteinfuente traduo alem de Rainsord (pp. 1038). O livro de Schller oime apresentado por Geggus,depois de haver escrito seu trabalho, e tomei a liberdade de adicionar reerncias a ele nas notas sempreque apropriado.

    [76] Ruo, op. cit., p. 131. Dois correspondentes especialmente clebres eram Konrad Engelbert Olsner eGeorg Foster; sobre eles, ver adiante. Para os dados relativos circulao, ver ibidem, pp. 12930.

    [77] Ibidem, p. 130.

    [78] Schiller escreveu a Archenholz em 1794, sugerindo que zesse uma retrospectiva sobre a RevoluoAmericana na revista: No lhe ocorreu ainda a ideia de organizar um breve e denso retrato da guerra americana pela liberdade? (Ruo, op. cit., p. 45). Apesar de nenhum artigo ter aparecido emMinerva, a srie sobreos eventos de SaintDomingue, 17911805, era anloga em sua concepo.

    [79] Hegel escreveu de Berna a Schelling na vspera do Natal de 1794: De modo um tanto acidental,alei h alguns dias com o autor das cartas assinadas por O naMinerva de Archenholz. Sem dvida,

    voc sabe de quais estou alando. O autor, supostamente ingls, na verdade um silsio chamadoOeslner [] ainda jovem , mas se percebe que se esorou bastante (G . W. F. Hegel, carta a Friedrich

    Wilhelm Joseph Schelling, 24 de dezembro de 1794; verHegel: the letters (traduzidas por Clark Butlere Christian Seiler), Bloomington: Indiana University Press, 1984, p. 28. Escrevendo em 1915, Ruono menciona Hegel como um leitor deMinerva, mas ele no teve acesso publicao alem das cartasde Hegel; ver Hegel,Briee von und an Hegel(editado por Johannes Homeister), Hamburgo: Meiner,19691981. Jacques dHont, porm, inicia seu livro com um captulo sobre a inluncia de Minervasobre Hegel (e Schelling), que descreve como total (globale) (DHont, Jacques.Hegel secret: recherches sur les sources caches de la pense de Hegel. Paris: Presses Universitaire de France, 1968, pp. 745).Notese que DHont no az qualquer meno aos artigos sobre SaintDomingue que apareceramnas pginas de Minerva (sua preocupao outra; ver nota 106 inra). Konrad Engelbert Oeslner,um republicano mais radical que Archenholz, era um girondino (antiRobespierre); seu heri era oabade Sieys. Ver sua histria da Revoluo Francesa (baseada em seus relatos testemunh ais):Luzier

    oder gereinigte Beitrge zur Geschichte der Franzsischen Revoluti on (ed. Jrn Garber), Kronberg/ Taunus:Scriptor, 1997 [1797].

    [80] Kelly, George Armstrong. Notes on Hegels Lordship and Bondage. In:Hegels dialectic o desireand recognition: text and commentary (ed. John ONeill). Albany: State University o New York, 1996, p.260. Kelly insiste que os escritos de Hegel devem ser considerados no contexto da poca de Hegel, mesmo sendo uma poca em que abunda pensamento (Ibidem, p. 272). Ele considera, portanto, as dierenasloscas entre Fichte, Schelling e Hegel: a temtica de Fichte era mais geral, voltada ao reconhecimentomtuo (um tema que Hegel havia abordado anteriormente ), enquanto na dialtica do senhor e do escravoHegel deende uma doutrina de igualdade originria que curiosa e perigosamente negada por Fichte(Ibidem, p. 269). Muitos intrpretes escolhem discutir Hegel nesse ponto nos termo s colocados porFichte, reduzindo assim a importncia do exemplo de reconhecimento especco a Hegel, introduzidopela primeira vez em 1803: a relao entre senhor e escravo. Ver, por exemplo, Williams, Robert R. Thestory o recognition is a story about Fichte and Hegel. In:Hegels ethics o recognition . Berkeley: University

    o Caliornia Press, 1997, p. 26.

    [81] Ver Shklar, Judith N. Selsucient man: dominion and bondage. In:Hegels dialectic o desire andrecognition, op. cit., pp. 289303, e Pggeler, Otto.Hegels Idee einer Phnomenologie des Geistes. 2 ed. Freiburg:

    Alber, 1993 [1973], p. 2634.

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    [82] Ver Tavars, PierreFranklin. Hegel et labb Grgoire: question noire et rvolution ranaise. Rvolutions aux Colonies, pp. 15573. O abade (Henri) Grgoire era certament e o mais leal deensor do Haitientre os abolicionistas ranceses. Em 1808, escreveuDe la littrature des ngres , que conseguiu contornara censura de Napoleo sobre o tema de modo engenhoso, tratando ostensivamente dos esoros literrios de negros que escreviam em rancs e ingls: O livro era predominantemente sobre a sociedadearicana, mas nele Grgoire tambm aproveitou a oportunidade para exaltar os dominguenses Toussaint

    Louverture e Jean Kina (que havia liderado uma revolta na Martinica) e para observar que, se o Haiti aindaera politicamente instvel, esse tambm tinha sido o caso da Frana na dcada de 1790 (HA, p. 117).Convidado em meados de 1820 a assumir um bispado no Haiti, Grgoire recusou, rustrado com a atitudeconciliatria assumida pelo Haiti em relao Frana, por conta da concordncia do presidente haitianoBoyer em pagar enormes reparaes aos antigos azendeiros coloniais em troca do reconhecimento daindependncia nacional (Ibidem, p. 128).

    [83] Ainda no tive a oportunidade de ver o artigo original de Tavars, Hegel et Haiti, ou le silence deHegel sur SaintDomingue na revista de PortauPrince Chemins Critiques, n 2, maio de 1992, p. 11331.Tampouco li sua tese de doutorado,Hegel, critique de lArique (ParisI, 1990). Da verso de seu artigo a quetive acesso, pareceume que ele lida mais com ontes rancesas do que alems e que no consultou revistasda poca; sua avaliao que a preocupao de Hegel com o abolicionismo surgiu posteriormente, nadcada de 1820, e pode ter sido o resultado de algum sentimento de nostalgia de seus sonhos revolu

    cionrios anteriores. Schller (op. cit.) menciona brevemente Hegel, mas apenas seus trabalhos tardios(dos anos 1820), e no sugere qualquer orma de infuncia direta, como a que deendo aqui; tampoucosugere que Hegel lesseMinerva.

    [84] Rosenkranz, Karl. Georg Wilhelm Friedrich Hegels Leben. Darmstadt: Wissenschatliche Buchgesellschat, 1977 [1844], p. 543. Notese que essa ainda a biograa cannica de Hegel, da sua republicaoem 1977 (e novamente em 1998). Apesar de serem numerosos os trabalhos loscos sobre a evoluodo pensamento de Hegel, assim como biograas do lsoo, impressionante que Hegel no tenha encontrado um bigrao moderno para tomar denitivamente o lugar de Rosenkranz. Ver, por exemplo,

    Althaus, Horst.Hegel und die heroischen Jahre der Philosophie: Eine Biographie . Munique: Hanser, 1992.Ainda que alguns objetos relacionados com Hegel tenham sido submetidos a escrutnio microscpico(as marcas dgua em seus manuscritos, por exemplo), h lacunas incrve is no que conhecemos sobre sua

    vida. H diversas razes para esse desequilbrio, a comear pelo ato de que Hegel mudou repetidas vezesde cidade (de Wrtemberg