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  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS

    REA DE FILOLOGIA E LNGUA PORTUGUESA

    RETRICA CLSSICA E NOVA RETRICA NOS RECURSOS JUDICIAIS CVEIS:

    A CONSTRUO DO DISCURSO PERSUASIVO

    FABIO SOUZA TRUBILHANO

    Orientadora: Prof Dr Lineide do Lago Salvador Mosca

    So Paulo 2013

  • UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE LETRAS CLSSICAS E VERNCULAS

    REA DE FILOLOGIA E LNGUA PORTUGUESA

    RETRICA CLSSICA E NOVA RETRICA NOS RECURSOS JUDICIAIS CVEIS:

    A CONSTRUO DO DISCURSO PERSUASIVO

    FABIO SOUZA TRUBILHANO

    Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de Letras Clssicas e Vernculas, rea de Filologia e Lngua Portuguesa, da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, como requisito parcial para a obteno do ttulo de Doutor em Letras.

    Orientadora: Prof Dr Lineide do Lago Salvador Mosca

    So Paulo 2013

  • Aos meus pais,

    Sol e Angela.

  • AGRADECIMENTOS

    Prof Dr Lineide do Lago Salvador Mosca, docente e orientadora de exmia competncia, pelo arcabouo terico que me transmitiu nos ltimos oito anos de convivncia acadmica e pela pacincia e empenho ao indicar, com zelo, os melhores caminhos que deveriam ser trilhados na consecuo desta pesquisa.

    Aos Professores da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, dos cursos de graduao e de ps-graduao stricto sensu, pelos conhecimentos transmitidos em suas aulas, de incomensurvel valor.

    Aos colegas de doutoramento da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, pela agradvel e harmoniosa convivncia.

    Prof Dr Maria Lgia Coelho Mathias, pelos enriquecedores momentos compartilhados nesses ltimos anos e por todas as orientaes profissionais e pessoais.

    Ao Prof. Dr. Antonio Henriques, pelas pesquisas que trilhamos na rea da linguagem jurdica e da argumentao, que tanto auxiliaram na elaborao desta tese, e pelos frteis debates sobre lngua portuguesa ocorridos em aprazveis reunies.

    Aos colegas docentes da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, pelo agradvel convvio acadmico.

    Ao Jaime Gonalves Filho, pela amizade e constante apoio profissional, sem o qual seria impossvel harmonizar as vidas acadmica e advocatcia.

    Juliene Aparecida Lopes, pelo valioso auxlio que vem me oferecendo nos ltimos anos e pela slida amizade edificada.

    Aos meus alunos, razo maior de minha dedicao vida acadmica.

  • A Retrica parece ser capaz de, por assim dizer, no concernente a uma dada questo, descobrir o que prprio para persuadir.

    Aristteles, Arte Retrica, Livro I, cap. II, 1.

    Todas as tcnicas de argumentao visam, partindo do que aceito, reforar ou enfraquecer a adeso a outras teses ou suscitar a adeso a teses novas.

    Cham Perelman, Lgica Jurdica, segunda parte, cap. I, 54.

  • RESUMO

    A presente tese tem por objeto de estudo a construo do discurso persuasivo sob as ticas da Retrica Clssica e da Nova Retrica em trs espcies de recursos judiciais cveis, quais sejam, a apelao, o agravo de instrumento e os embargos de declarao. Assim, esta pesquisa teve por objetivo analisar os elementos retricos presentes nos discursos judiciais delimitados e identificar a adequabilidade de cada estratgia persuasiva conforme a natureza e a modalidade do recurso judicial interposto. Para tanto, foram expostos e aplicados os fundamentos tericos oriundos, sobretudo, dos ensinamentos clssicos aristotlicos e das modernas lies de Cham Perelman, entre outros estudiosos da linguagem, filosofia e direito processual civil, permitindo a averiguao de quais elementos retricos se mostram mais eficazes e adequados em cada uma das modalidades recursais que compem o corpus.

    Palavras-chave: Discurso argumentativo. Retrica. Persuaso. Linguagem jurdica.

  • ABSTRACT

    The objective of this thesis is to study the construction of the persuasive speech under the optics of the Classical Rhetoric and the New Rhetoric in three types of civil judicial resources, namely, appeal, bill of review appeal and motion for clarification. Thus, this study is aimed towards analyzing the rhetorical elements present in judicial speeches and identifying the suitability of each persuasive strategy according to the nature and type of the judicial appeal. As a result, the theoretical foundations were uncovered and derived primarily from the teachings of the classical Aristotelian and modern Chaim Perelman, among others scholars of language, philosophy and civil procedural law, allowing the examination of which type of rhetorical elements are more effective and suitable for each kind of appeal.

    Keywords: Argumentative Discourse. Rhetoric. Persuasion. Legal language.

  • RSUM

    Cette thse a pour objet l'tude de la construction du discours persuasif sous l'optique de la Rhtorique Classique et de la Nouvelle Rhtorique dans trois diffrentes espces de voie de recours de la procdure civile brsilienne, savoir, l'appel contre un jugement sur le fond, lappel contre un jugement qui ordonne une mesure d'instruction ou provisoire et la demande de clarification. Ainsi, cette rechercher visait analyser les lments rhtoriques prsents dans les discours judiciaires dtermins et identifier la pertinence de chaque stratgie persuasive en raison de la nature et de la modalit de voie de recours mise en place. Dans ce sens, ont t exposs et appliqus les fondements thoriques provenant, notamment, des enseignements de l'aristotlicien classique et des modernes leons de Cham Perelman, entre autres spcialistes du langage, de la philosophie et du droit de la procdure civile, permettant l'enqute des lments rhtoriques les plus efficaces et appropris chaque voie de recours qui compose le corpus.

    Mots-cls: Discours argumentatif. Rhtorique. Persuasion. Langage juridique.

  • SUMRIO

    INTRODUO .......................................................................................................... 13

    PARTE I. RETRICA E ARGUMENTAO: pressupostos tericos ................... 16

    CAPTULO 1. CONSIDERAES TERICAS SOBRE DISCURSO RETRICO E ARGUMENTAO ................................................................................................... 17

    1.1 A RETRICA CLSSICA ........................................................................ 22 1.1.1 Retrica como Cincia .............................................................. 22 1.1.2 Teorizao da Retrica na Antiguidade ................................. 26

    1.1.2.1 Diviso do Discurso Retrico ......................................... 27 1.1.2.2 Tipos de Provas Artsticas do Discurso Retrico ........... 33

    1.2 A NOVA RETRICA ................................................................................ 36 1.2.1 O Declnio da Retrica Clssica ............................................... 37 1.2.2 Surgimento da Nova Retrica .................................................. 38 1.2.3 Rompimento com o Racionalismo Moderno........................... 40 1.2.4 Raciocnio Demonstrativo e Raciocnio Argumentativo ........ 42 1.2.5 Convencer, Persuadir e Coagir ................................................ 45 1.2.6 A Nova Retrica e o Conhecimento Jurdico .......................... 48

    CAPTULO 2. ESTRATGIAS ARGUMENTATIVAS ............................................... 50 2.1 OBJETOS DE PERSUASO .................................................................... 50 2.2 TCNICAS ARGUMENTATIVAS.............................................................. 53

    2.2.1 Argumentos Baseados em Associao de Ideias ................. 54 2.2.1.1 Argumentos quase-lgicos ........................................... 55

    a. Argumento da Incompatibilidade ................................. 56 b. Argumento da Regra de Justia (a pari) ...................... 58 c. Argumento da Retorso .............................................. 59 d. Argumento do Ridculo ................................................ 60

  • e. Argumento da Definio .............................................. 61 f. Argumento de Comparao ......................................... 62 g. Argumento do Sacrifcio .............................................. 63

    2.2.1.2 Argumentos Baseados na Estrutura do Real ................ 64 a. Argumento de Autoridade (ad verecundiam) ............... 65 b. Argumento de Maior Razo (a fortiori) ........................ 67 c. Argumento do Desperdcio .......................................... 68 d. Argumento ad hominem .............................................. 69 e. Argumento ad personam ............................................. 70 f. Argumento Pragmtico (ad consequentiam) ................ 71 g. Argumento da Direo ................................................ 72

    2.2.1.3 Argumentos que Fundamentam a Estrutura do Real ..... 73 a. Argumento pelo Exemplo ........................................... 74 b. Argumento pela Ilustrao .......................................... 75 c. Argumento pelo Modelo ............................................. 76 d. Argumento por Analogia (a simili) .............................. 78 e. Argumento por Metfora ............................................. 79

    2.2.2 Argumentos Baseados em Dissociao de Ideias ................ 81 2.2.2.1 Argumento pelo Distinguo .............................................. 82 2.2.2.2 Argumento pelo Dilema ................................................. 82 2.2.2.3 Argumento por Excluso (per exclusionem) .................. 83

    2.3 A FORA DOS ARGUMENTOS .............................................................. 83

    CAPTULO 3. FIGURAS DE LINGUAGEM E ARGUMENTAO ........................... 87 3.1 CONSIDERAES INICIAIS ................................................................... 87 3.2 FIGURAS DE ESCOLHA .......................................................................... 88

    3.2.1 Antonomsia.............................................................................. 89 3.2.2 Eufemismo ................................................................................. 90 3.2.3 Hiprbole (auxese) .................................................................... 91 3.2.4 Ironia .......................................................................................... 91 3.2.5 Metfora ..................................................................................... 92 3.2.6 Perfrase ..................................................................................... 93

    3.3 FIGURAS DE PRESENA ....................................................................... 94 3.3.1 Acumulao (congrie) ............................................................. 95

  • 3.3.2 Amplificao .............................................................................. 95 3.3.3 Anadiplose ................................................................................. 95 3.3.4 Anfora ....................................................................................... 96 3.3.5 Anttese ...................................................................................... 96 3.3.6 Clmax (gradao) ..................................................................... 97 3.3.7 Polissndeto ............................................................................... 97 3.3.8 Pleonasmo ................................................................................. 98 3.3.9 Quiasmo ..................................................................................... 98 3.3.10 Interrogao (interrogatio) ..................................................... 99

    3.4 FIGURAS DE COMUNHO .................................................................... 100 3.4.1 Aluso ...................................................................................... 100 3.4.2 Apstrofe ................................................................................. 101

    CAPTULO 4. ASPECTOS TERICOS E PRTICOS DO DISCURSO E DO TEXTO .................................................................................................................... 103

    4.1 GNEROS DISCURSIVOS ARISTOTLICOS ....................................... 103 4.1.1 O Discurso Deliberativo ......................................................... 103 4.1.2. O Discurso Epidtico ............................................................. 104 4.1.3 O Discurso Judicirio ............................................................ 105 4.1.4. A Interao entre os Gneros Discursivos ......................... 107

    4.2 ASPECTOS TEXTUAIS: COERNCIA, COESO E CONTEXTO ......... 108 4.2.1 Consideraes sobre Texto ................................................... 108 4.2.2 A Coerncia Textual ............................................................... 109 4.2.3 A Coeso Textual ................................................................... 110 4.2.4 Contexto .................................................................................. 112

    4.3 DISCURSO E TEXTO NOS RECURSOS CVEIS .................................. 112

    PARTE II. TEORIA GERAL DOS RECURSOS ...................................................... 116

    CAPTULO 5. ESBOO HISTRICO .................................................................... 117

    CAPTULO 6. CONCEITO ..................................................................................... 125

  • CAPTULO 7. NATUREZA JURDICA .................................................................. 130

    CAPTULO 8. CLASSIFICAO DOS RECURSOS CVEIS ................................ 134 8.1 QUANTO EXTENSO ........................................................................ 134 8.2 QUANTO FUNDAMENTAO ........................................................... 136 8.3 QUANTO INDEPENDNCIA OU DEPENDNCIA............................. 137

    CAPTULO 9. FINALIDADE E UTILIDADE ........................................................... 138

    CAPTULO 10. ATOS PROCESSUAIS SUJEITOS A RECURSO ........................ 143

    CAPTULO 11. EFEITOS DOS RECURSOS ......................................................... 147 11.1 OBSTNCIA DO TRNSITO EM JULGADO ....................................... 147 11.2 DEVOLUTIVO ...................................................................................... 148 11.3 SUSPENSIVO ...................................................................................... 149 11.4 TRANSLATIVO ..................................................................................... 150 11.5 SUBSTITUTIVO .................................................................................... 151 11.6 REGRESSIVO OU DE RETRATAO ................................................ 151

    PARTE III. ANLISE DO CORPUS ........................................................................ 153

    CAPTULO 12. RECURSO DE APELAO .......................................................... 154 12. 1 TRANSCRIO ................................................................................... 154 12.2 ANLISE .............................................................................................. 171 12.3 TABELAS DE INCIDNCIA DOS RECURSOS RETRICOS .............. 210

    CAPTULO 13. AGRAVO DE INSTRUMENTO ..................................................... 213 13.1 TRANSCRIO .................................................................................... 213 13.2 ANLISE ............................................................................................... 228 13.3 TABELAS DE INCIDNCIA DE RECURSOS RETRICOS ................. 275

    CAPTULO 14. EMBARGOS DE DECLARAO ................................................. 278 14.1 TRANSCRIO .................................................................................... 278

  • 14.2 ANLISE ............................................................................................... 285 14.3 TABELAS DE INCIDNCIA DE RECURSOS RETRICOS ................. 311

    CAPTULO 15. COTEJO DOS ELEMENTOS RETRICOS PRESENTES NOS RECURSOS QUE COMPEM O CORPUS ........................................................... 314

    CONSIDERAES FINAIS .................................................................................... 326

    REFERNCIAS ....................................................................................................... 329

    ANEXOS ................................................................................................................. 340

    ANEXO A RECURSO DE APELAO ............................................................... 341

    ANEXO B RECURSO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO .................................. 355

    ANEXO C RECURSO DE EMBARGOS DE DECLARAO .............................. 365

  • 13

    INTRODUO

    Submetido o conflito apreciao do Poder Judicirio, comum que uma das partes, ou mesmo ambas, no se conformem com a primeira deciso proferida pelo magistrado. Em razo disso, e no de hoje, a estrutura judicial disponibiliza aos seus jurisdicionados recursos prprios, a fim de que possam reconduzir o caso a uma nova apreciao.

    Os recursos, portanto, trazem duplo benefcio: possibilitam que eventuais equvocos praticados pelo julgador sejam afastados em novo julgamento e oferece apaziguamento social, garantindo ao cidado que seu conflito de interesses ser apreciado por mais de uma vez, sendo todas as decises devidamente fundamentadas.

    Assim, os discursos que compem os recursos judiciais so mananciais frteis para a anlise argumentativa, j que a finalidade precpua do discurso recursal no outra seno persuadir o prximo julgador de que o antecedente apreciou mal as razes que lhe foram expostas. So textos, pois, retricos por excelncia.

    Dentre as vrias modalidades recursais existentes, preferiu-se realizar alguns recortes para o desenvolvimento da presente pesquisa, a fim de se apurar o emprego dos conceitos retricos em campo discursivo delimitado.

    Assim, o recorte foi realizado conforme os seguintes parmetros: primeiro, optou-se por compor o corpus com recursos judiciais, e no administrativos, ou seja, trata-se de recursos previstos expressamente em lei processual e julgados por juzes de direito togados; segundo, optou-se por restringir a matria rea cvel, relacionada a direitos e deveres obrigacionais; terceiro, optou-se por trs recursos judiciais cveis, por serem os mais corriqueiros na atividade forense, quais sejam, apelao, agravo de instrumento e embargos de declarao.

    Realizado o recorte do corpus, a pesquisa teve por objetivo apurar a adequabilidade dos mecanismos retricos empregados conforme a espcie recursal interposta. Para

  • 14

    a consecuo de tal finalidade, o trabalho foi estruturado em partes. Na primeira parte, foram tecidas consideraes tericas sobre a Retrica Clssica, com nfase nos ensinamentos aristotlicos, e sobre a Nova Retrica, com nfase nos ensinamentos de Cham Perelman.

    Assim, pretendeu-se expor tanto o arcabouo terico clssico, envolvendo, sobretudo, as partes do sistema retrico (inventio, dispositio, elocutio, actio e memria) e os tipos de provas (thos, pthos e lgos), como tambm o arcabouo terico proposto pela Nova Retrica, com destaque s tcnicas argumentativas dos argumentos baseados em associao de ideias e os baseados em dissociao de ideais.

    Ainda na primeira parte, robustecendo os pressupostos tericos, teceram-se consideraes sobre o papel argumentativo desempenhado pelas figuras de linguagem, sejam elas de escolha, de presena ou de comunho; e, tambm, a importncia da coerncia e coeso textuais para o encadeamento lgico e persuasivo do discurso.

    A segunda parte apresenta os conceitos bsicos da teoria geral dos recursos judiciais cveis, abordando tpicos imprescindveis para a compreenso desse tipo de discurso, a saber: escoro histrico, conceito, natureza jurdica, classificao, finalidade, utilidade, cabimento e efeitos.

    A terceira parte se debrua sobre a anlise dos recursos judiciais que compem o corpus, isto , apelao, agravo de instrumento e embargos de declarao, extraindo-lhes, a final, a tese sustentada neste trabalho acerca da adequabilidade de determinadas estratgias argumentativas, conforme a natureza e caractersticas de cada recurso, tais como foram estudadas e sistematizadas pela Retrica Clssica e a Nova Retrica.

    Com tal propsito, o procedimento adotado para este trabalho de pesquisa, na terceira parte, foi o de analisar cada um dos pargrafos que compem os recursos judiciais, identificando dados lingusticos, estilsticos e, sobretudo, as tcnicas argumentativas empregadas, com base em fundamentos tericos expostos nas duas

  • 15

    primeiras partes, a fim de aferir sua eficcia e adequao conforme as caractersticas prprias de cada modalidade recursal examinada.

  • 16

    PARTE I

    RETRICA E ARGUMENTAO: pressupostos tericos

  • 17

    CAPTULO 1. CONSIDERAES TERICAS SOBRE DISCURSO RETRICO E ARGUMENTAO

    Todas as relaes humanas que estabeleam interaes so de algum modo mediatizadas pela linguagem, cuja significao ampla e abrange no apenas a capacidade de nomear, criar e transformar a realidade, mas tambm possibilita aos indivduos expressar-se e comunicar-se por meio de uma lngua, efetuando troca de experincias e ideias, permitindo-lhes, ainda, desenvolver e relacionar fatos passados e futuros, discorrer sobre aquilo que existe ou mesmo imaginar situaes inusitadas e coisas intangveis.

    A linguagem, portanto, essencial para que os seres humanos, por meio de variados sistemas lingusticos, consigam organizar e categorizar o mundo, expressar suas experincias e realizar suas interaes. Independentemente do meio e da forma pela qual essas aes so realizadas, em razo da linguagem que as pessoas conseguem comunicar-se e desenvolver-se em sociedade. Dessa forma, no se concebe a realidade humana sem que sociedade e linguagem estejam associadas.

    Assim como no h sociedade sem linguagem, no h sociedade sem comunicao. Tudo o que se produz como linguagem ocorre em sociedade, para ser comunicado, e, como tal, constitui uma realidade material que se relaciona com o que lhe exterior, com o que existe independentemente da linguagem.1

    Por seu turno, para que a linguagem se perfaa, h necessidade de que os comunicadores compartilhem de um mesmo sistema de signos lingusticos, servindo, pois, de cdigo, a fim de que o emissor possa tornar as ideias abstratas em cdigos que sejam cognoscveis pelos destinatrios, os quais os decodificam a fim de buscar as ideias neles contidas. No fosse assim, isto , no houvesse o compartilhamento de cdigos entre os comunicadores, no seria possvel desenvolver entre eles sequer um simplrio ato comunicativo, como aquele realizado pelos ndios por meio do uso da fumaa e, menos ainda, uma comunicao mais complexa como so aquelas manifestadas por meio de uma lngua moderna.

    1 PETTER, Margarida. Linguagem, lngua, lingustica. In: FIORIN, Jos Luiz. Introduo lingustica:

    objetos tericos. 5 ed. So Paulo: Contexto, 2007. p. 11.

  • 18

    Nesse passo, resta claro que a finalidade da linguagem no outra seno a de permitir a comunicao, compreenso e interao entre pessoas. possvel, assim, pensar na linguagem como uma ferramenta sofisticada que permite ao orador externar seus pensamentos, projetos, conhecimentos, memrias, ideias e experincias, bem como permite ao auditrio compreender, interpretar e estabelecer um posicionamento crtico em face do discurso apresentado pelo orador.

    Sem o domnio de uma lngua comum, a comunicao no alcanaria o nvel de profundidade e abstrao que a lngua oferece aos interlocutores. Por essa razo, orador e auditrio devem partilhar de um mesmo sistema de signos lingusticos, ou seja, de uma mesma lngua, capaz de permitir-lhes a transmisso e recepo da informao de modo complexo e detalhado, seja por meio da oralidade ou da escrita, formas estas cuja lngua se realiza.

    No entanto, os objetivos dos usurios de uma lngua vo alm de transmitir e receber informao. Na maioria das vezes, o falante vale-se da sua lngua discursando de modo argumentativo, com o fim de persuadir o outro sobre seus pontos de vista, seja para que este passe a compartilhar das mesmas opinies do orador, seja para persuadir o destinatrio a praticar ato em determinado sentido ou mesmo abster-se de alguma conduta.

    Quando o ato comunicativo percorre esse sentido, visando persuaso, tem-se o que comumente denominado de discurso retrico. Este tipo de discurso, portanto, tem por objetivo, por meio de procedimentos argumentativos e sem o uso da coero, direcionar o comportamento e as opinies do auditrio, incutindo neste a mesma forma de pensar e agir apregoada pelo orador. Conforme ensina Carvalho2, todo discurso retrico contm, assim, de maneira mais ou menos explcita, um comando ou um apelo. Ele tenciona que esse apelo seja atendido, esse comando obedecido.

    2 CARVALHO, Olavo de. Aristteles em nova perspectiva: introduo teoria dos Quatro Discursos.

    So Paulo: Realizaes Editora, 2006. p. 92.

  • 19

    Ou seja, toda vez que argumentos forem empregados num discurso com a finalidade de persuadir um auditrio, provocando ou aumentando sua adeso aos assuntos e teses abordadas, sem que haja uso da violncia, haver discurso retrico ou persuasivo. Alm disso, Perelman3 adverte que um discurso retrico pressupe, com efeito, um contacto de espritos entre o orador e o seu auditrio: preciso que um discurso seja escutado, que um livro seja lido, pois, sem isso, a sua aco seria nula.

    possvel supor, desse modo, que ao menos trs elementos so indispensveis para se construir ou identificar um discurso como sendo retrico ou persuasivo, quais sejam: o orador (transmissor do discurso), o auditrio (pessoas ou grupos de pessoas a quem o discurso transmitido) e o assunto (o comando ou apelo a ser obedecido ou atendido).

    A forma como o orador apresenta o seu assunto a um auditrio tambm confere caractersticas especiais ao discurso retrico, tendo em vista que seu desenvolvimento deve ser realizado por meio de argumentos, os quais tero de ser sensveis ao destinatrio, conquistando-o segundo seus valores, experincias, paixes, conhecimento, crenas culturais e ideologias.

    No sem razo, portanto, que a Nova Retrica confere um cuidado especial ao auditrio, como pode ser notado pelas palavras de Perelman4: O conhecimento daqueles que se pretende conquistar , pois, uma condio prvia de qualquer argumentao eficaz. Assim, todo discurso cuja finalidade for persuadir dever ser confeccionado visando s caractersticas e peculiaridades do auditrio ao qual se destina, sob pena de a tonalidade argumentativa restar prejudicada ou mesmo ineficaz.

    A ttulo de exemplo, na prxis jurdica, possvel perceber que no recurso de agravo de instrumento, que destinado instncia superior, os argumentos tendem a ser mais contundentes e impetuosos em relao deciso impugnada do que os

    3 PERELMAN, Cham. O imprio retrico: retrica e argumentao. Trad. Fernando Trindade e Rui Alexandre Grcio. Rio Tinto: Edies Asas, [s/d]. p. 29. 4 PERELMAN, Cham; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentao: a nova retrica.

    Trad. Maria Ermantina Galvo. So Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 23.

  • 20

    argumentos constantes nos embargos de declarao, j que estes so opostos perante o prprio magistrado que prolatou a deciso recorrida. No considerar o auditrio para o qual determinado tipo de recurso dirigido acaba por prejudicar a efetividade argumentativa do discurso.

    Acrescenta-se a este exemplo ainda, o fato de que a deciso do tribunal em julgamento de agravo de instrumento , em princpio, colegiada, ou seja, depende da apreciao de trs desembargadores que tero contato pela primeira vez com a matria debatida, diferentemente dos embargos de declarao, que so apreciados por um nico julgador que conduziu todo o desenrolar processual. V-se, pois, que este est inteirado de todo o contexto processual do caso concreto; aqueles no.

    Assim, ainda que os julgadores subsumam o caso concreto e especfico na previso geral e abstrata da lei, o modo pelo qual o orador (advogados e promotores de justia) argumenta far com que exista maior ou menor adeso do auditrio (ministros, desembargadores ou juzes) para o qual se dirige. Consequentemente, seu discurso ser mais ou menos eficaz quanto aos seus objetivos de persuaso conforme sejam bem empregadas as provas e bem manejadas as tcnicas argumentativas, inclusive no que se refere adaptao do discurso aos seus destinatrios e contextos especficos. Nessa esteira, ensina Perelman5 que:

    [...] um advogado que pleiteia num caso comercial ou criminal, poltico ou de direito comum, de direito privado ou de direito internacional pblico, e de acordo com o gnero de tribunal que se trata de convencer, no utilizar nem o mesmo estilo nem o mesmo tipo de argumentos. O nico conselho, de ordem geral, que uma teoria da argumentao pode dar na ocorrncia recomendar ao orador que se adapte ao seu auditrio.

    Para se adaptar ao auditrio de julgadores, os recorrentes, independentemente do tipo de recurso utilizado, devero argumentar, tambm, no sentido de que um determinado caso concreto e especfico se enquadra ou no hiptese geral e abstrata da lei. Isso porque as normas j esto postas, com valores j definidos e cristalizados nos diversos cdigos do ordenamento, ou seja, a noo de justia, em regra, j se encontra estipulada no direito positivo estabelecido pelos poderes constituinte e legislativo.

    5 PERELMAN, Cham. O imprio retrico: retrica e argumentao. Trad. Fernando Trindade e Rui Alexandre Grcio. Rio Tinto: Edies Asas, [s/d]. p. 32.

  • 21

    Como os valores j esto determinados no sistema jurdico, a funo do magistrado ser a de julgar os fatos que lhe so apresentados conforme as hipteses legais, evitando emitir reflexos de questes pessoais em suas decises. Deve o magistrado, pois, deixar-se exprimir to somente pelos valores preconizados no seio social e, de certa forma, ratificados nas leis e demais fontes de direito.

    Prima facie, essa tarefa pode parecer fcil ao julgador, desde que conhea a lei e se inteire dos fatos concretos. Porm, ao debruar-se sobre as particularidades e mincias de cada caso, expostas de maneira diferente pelas partes, possvel, e at mesmo provvel, que o magistrado se defronte com inmeros obstculos, os quais podem ser de direito, como na hiptese de haver mais de um preceito legal aplicvel questo em apreo, ou podem ser de matria ftica, como na costumeira hiptese de as provas trazidas aos autos no elucidarem integralmente a questo, mas apenas construrem um campo de probabilidades fticas, de verossimilhana. nesse campo de incertezas que a retrica ganha maior relevncia.

    por essa razo que os embates jurdicos, a exposio de teses pelas partes, enfim, os discursos retricos das partes, e o cotejo entre eles, so imprescindveis para o juiz formar a sua convico acerca do caso concreto e lanar sua deciso num ou noutro sentido.

    Nesses embates judiciais, o Estado Democrtico de Direito faz-se sentir por inmeros princpios obrigatoriamente respeitados no curso do processo judicial, entre os quais se destacam o da ampla defesa e o do contraditrio, de modo que a Retrica mostra-se de profunda relevncia, pois as razes de decidir do julgador pautar-se-o nas provas produzidas e, tambm, nos discursos argumentativos que lhe so apresentados.

    Os recursos, a ttulo de exemplo, mostram-se como uma das principais ferramentas de viabilizao desse embate jurdico-discursivo. Isso porque os recursos judiciais so colocados pela lei disposio das partes litigantes, a fim de que provoquem o reexame, explicao ou aclaramento de uma deciso judicial pela mesma autoridade judiciria ou por outra de hierarquia superior.

  • 22

    Em um recurso, por exemplo, a parte recorrente ter de persuadir o julgador de que as suas razes de inconformismo esto enquadradas em determinado preceito legal, o qual lhe favorvel, e no naquele em que a deciso impugnada julgou ser, a fim de que o magistrado, ao reexaminar a causa, contrapondo os argumentos em debate, convena-se pelas teses apresentadas em sede recursal.

    1.1 A RETRICA CLSSICA

    1.1.1 Retrica como Cincia

    Antes mesmo de Aristteles, na antiguidade clssica, sistematizar os estudos sobre o discurso retrico, elaborando classificaes, anlises e definies, a retrica j era notada entre os antigos, ainda que lhe faltasse essa sistematizao feita pelo mestre de Alexandre, o Grande. Mesmo porque, como explica Goffredo Telles Junior, no prefcio da Arte Retrica e Arte Potica do famoso pensador grego6, foi apoiado em seu tratado dos Tpicos, ou seja, de sua teoria da argumentao dialtica, que Aristteles escreveu sua Arte Retrica.

    Para melhor entender, preciso recordar que Os Tpicos fazem parte de um conjunto maior de estudos de Aristteles, denominado rganon, trabalho aristotlico este que aborda tanto estudos lgicos, em que exps tanto os raciocnios analticos, como os raciocnios dialticos. Assim, alm de Os Tpicos, que tratam das questes de verossimilhana, levando a uma concluso provvel por meio da argumentao, no rganon tambm esto contidos os estudos dos Analticos Anteriores, em que se discute a argumentao de um modo geral; e os Analticos Posteriores, conhecidos igualmente como teoria da demonstrao, pela qual possvel partir de proposies tidas por verdadeiras para atingir uma certeza irrefutvel, apodtica.

    6 ARISTTELES. Arte Retrica e Arte Potica. Trad. Antnio Pinto de Carvalho. Rio de Janeiro:

    Ediouro, [s.d.].

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    Em razo das teses sobre os raciocnios analticos, Aristteles foi considerado o pai da lgica formal, ficando esquecido pelos modernos tericos o mrito da sua obra quanto dialtica, cuja importncia reside, na essncia, em ter descrito e valorizado o modo de pensar que parte de premissas aceitveis, verossmeis, para se chegar a concluso provvel, mas que no pode ser reputada verdadeira em absoluto. Assim, nesse modo de pensar, exsurge a importncia da retrica, cujo propsito persuadir o auditrio das concluses obtidas pelo modo de pensar argumentativo-dialtico. Por essa razo, e pelos seus estudos posteriormente realizados e atualmente preservados na Arte Retrica, Aristteles passou tambm a ser considerado, contemporaneamente, como pai da Teoria da Argumentao, como bem demonstra Mosca:7

    O ponto fundamental da doutrina aristotlica, no que toca Retrica, reside em consider-la do domnio dos conhecimentos provveis e no das certezas e das evidncias, os quais caberiam aos raciocnios cientficos e lgicos. Por essa razo, seu campo da controvrsia, da crena, do mundo da opinio, que se h de formar dialeticamente, pelo embate das ideias e pela habilidade no manejo do discurso (grifos do autor).

    Foi com Aristteles, portanto, que a retrica erigiu-se como cincia para os gregos da Antiguidade, e posteriormente para os romanos. Mas no s, foi nesse perodo tambm, e muito em razo dos trabalhos desse pensador, que o discurso retrico transformou-se num importante objeto de estudos, anlises e descries para aqueles povos. Sobre a importncia da retrica como cincia, Guiraud8 enuncia que:

    De todas as disciplinas antigas, a que melhor merece o nome de cincia, pois a amplido das observaes, a sutileza da anlise, a preciso das definies, o rigor das classificaes constituem um estudo sistemtico dos recursos da linguagem, cujo equivalente no se encontra em qualquer dos outros conhecimentos daquela poca.

    Por essa razo que comumente se diz que o bero da retrica a Antiguidade Clssica. Entretanto, a retrica intrnseca linguagem e pr-existente aos estudos aristotlicos, de modo que sua origem, como fato e no como cincia, prende-se origem da prpria lngua.

    7 MOSCA, Lineide do Lago Salvador (Org.). Retricas de ontem e de hoje. 3.ed. So Paulo: Humanitas, 2004. p. 20. 8 GUIRAUD, Pierre. A Estilstica. So Paulo. Ed. Mestre Jou, 1970. p. 35-36.

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    Dessa forma, o posicionamento de que a retrica guarda suas razes na Antiguidade Clssica deve ser compreendido cum grano salis, j que em tal perodo histrico no houve a criao da retrica em si; o que houve, sim, foi sua elevao ao patamar de cincia, passando a ser classificada e estudada sistemtica e metodologicamente.

    No sem razo que se pode dizer que a retrica origina-se concomitantemente com a comunicao verbal, pois quando um indivduo pela primeira vez empregou palavras para persuadir o outro, em vez de fora bruta, nesse momento foi plantada a semente do discurso retrico.

    De fato, no possvel determinar com preciso as razes da retrica, entendida no como cincia, mas como um instrumento discursivo de persuaso a ser empregado pelos falantes de um mesmo idioma nas relaes sociais, pois tal origem confunde-se, no mais das vezes, com a prpria origem e finalidade da comunicao verbal. Na citao de Florescu9, em marcante metfora, evidenciada essa dificuldade de precisar a origem da retrica:

    Aucune discipline ne peut natre dans un endroit donn, une date donn et grce une cause unique. Tout comme on ne saurait dire partir de quel grain ajout dautres grains de bl on a un tas de bl, il est impossible de prciser le moment o la rhtorique sest constitue en tant que discipline.10

    A concluso obtida dessa explanao seria a de que existe uma retrica natural, expressada pela simples utilizao da lngua, e hbil a desempenhar o papel de persuadir algum sobre algum ponto de vista. O paralelo traado por De Meyer11, a seguir citado, descreve bem esse fato: De mme que lon communique sans avoir tudi la communication, on peut faire de la rhtorique sans avoir etudi la rhtorique12. Por outro lado, importante dizer que essa capacidade pode ser

    9 FLORESCU, V. La rhtorique. Gense Evolution Perspectives. Paris: Les Belles Lettres,

    1982. p.18. 10

    Nenhuma disciplina pode surgir em um determinado lugar, em determinada data e com uma nica causa. Assim como no se pode dizer de que gro, adicionado a outros gros de trigo, formou-se um monte de trigo, impossvel especificar o momento quando a retrica foi constituda como uma disciplina. 11

    DE MEYER, L. Vers linvention de la rhtorique. Une perspective thno-logique sur la communication en Grce ancienne. Louvain La-Neuve: Pecter, 1997. p. 22. 12

    Assim como algum pode comunicar-se sem ter estudado comunicao, possvel realizar um discurso retrico sem ter estudado retrica.

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    aprimorada, conforme o falante incorpora conhecimentos tericos, por meio de estudos cientficos sobre retrica, ao seu discurso, at ento puramente intuitivo.

    Aristteles, ao realizar estudos sobre a retrica, teve por escopo encontrar um modo de raciocinar que permitisse a sustentao plausvel de argumentos mesmo em situaes problemticas do cotidiano que fogem certeza e ao raciocnio lgico, como pode ser depreendido do excerto de rganon a seguir citado:

    O propsito deste tratado descobrir um mtodo que nos capacite a raciocinar, a partir de opinies de aceitao geral, acerca de qualquer problema que se apresente diante de ns e nos habilite, na sustentao de um argumento, a nos esquivar da enunciao de qualquer coisa que o contrarie 13.

    Os estudos do discurso retrico ganharam significativa importncia na Antiguidade Clssica muito em razo do desenvolvimento dos campos poltico e jurdico, que passaram a respaldar regimes de governo democrtico na Grcia e em Roma, como explica Henriques14: A Retrica desabrocha e floresce aps a queda dos tiranos e seu desenvolvimento cresce na mesma proporo em que se acentua o interesse do ser humano pela liberdade.

    O uso adequado da linguagem, naquele perodo, portanto, passou a ser indispensvel ao orador para obter a adeso de determinado auditrio pelo seu convencimento. Assim, nesse cenrio, a persuaso dos membros das assembleias, na esfera poltica, e dos julgadores, na jurdica, dependia em grande escala do poder argumentativo do orador ao expor suas teses e propostas.

    Alm disso, todo cidado ativamente participativo dos assuntos das cidades antigas praticava a retrica. A vida pblica e a cidadania eram exercidas por meio de argumentos destinados a ponderar, sopesar, formar julgamentos e juzos de valor, sobretudo nos locais institucionais, como na gora, nas assembleias e nos tribunais. A retrica estava comprometida com o contexto, com a realidade social, com a prpria vida poltica, haja vista a florescncia da democracia naquele perodo histrico.

    13 ARISTTELES. rganon: Categorias, Da interpretao, Analticos anteriores, Analticos

    posteriores, Tpicos, Refutaes sofsticas. Bauru: Edipro, 2005. p. 347. 14 HENRIQUES, Antonio. Argumentao e discurso jurdico. So Paulo: Atlas, 2009. p. 7.

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    No foi sem razo que o primeiro tratado de mtodos sobre retrica Teoria Retrica de Crax e Tsia surgiu na Siclia, aproximadamente 465 a.C., ocasio em que a tirania cedia lugar democracia, permitindo aos cidados recorrer s vias judiciais para buscar seus direitos, necessitando, assim, de pessoas preparadas para os defenderem diante dos tribunais. A obra desses autores destinava-se, ento, queles que queriam aprender a arte da persuaso por meio do discurso, destacadamente os discursos desenvolvidos nas cortes judiciais.

    Importante ter em vista, conforme se depreende da leitura dos estudos retricos clssicos, que a retrica antes de prestar-se ao ornamento e esttica, presta-se necessidade de o cidado expor suas ideias persuasivamente, fato que, no mbito jurdico, desdobrou-se e ainda se desdobra na proteo e defesa de seus interesses em conflitos judicirios.

    1.1.2 Teorizao da Retrica na Antiguidade

    O trabalho de Aristteles, de certo modo, foi resultado da importncia que os gregos conferiam retrica, mostrando-se campo propcio para que o famoso pensador cunhasse, pela sistematizao, anlise e descrio de discursos retricos, a sua obra Arte Retrica, cujas razes esto assentadas no tratado Tpicos.

    Foi igualmente Aristteles quem props uma nova definio para a retrica, mais simples do que a defendida pelos sofistas, afirmando que a retrica no se reduziria a um nico fim, mas seria da mesma maneira o meio pelo qual se poderia chegar persuaso de algum diante de um caso especfico.

    Aristteles, portanto, reabilitou a retrica ao integr-la numa viso sistemtica do mundo, onde ela ocupa seu lugar, sem ocupar, como entre os sofistas, o lugar todo. Mais ainda, Aristteles transformou a prpria retrica num sistema, que seus sucessores complementaro, mas sem modificar.15

    15 REBOUL, Olivier. Introduo retrica. Trad. Ivone Castilho Benedetti. 2. ed. So Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 43.

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    1.1.2.1 Diviso do Discurso Retrico

    Foi Aristteles o responsvel pela diviso coerente do discurso retrico em quatro partes, as quais devem ser observadas pelo orador na composio de seu discurso. Aristteles nomeou cada uma das partes do discurso levando em considerao as fases trilhadas pelo orador na construo da persuaso discursiva. primeira delas deu o nome de inventio, segunda de dispositio, terceira de elocutio e quarta de actio. importante mencionar, tambm, que os romanos acresceram a essas partes mais uma, a qual foi denominada de memoria.

    Como visto, a inventio a primeira parte do sistema retrico e consiste no material de onde sero retiradas as teses e argumentos adequados para sustentar o discurso. Assim, do subsdios a essa tarefa o levantamento e a criao de argumentos e provas a serem empregados no discurso. Nessa fase, o orador deve reunir todas as provas de que dispe, bem como os argumentos a serem utilizados. o primeiro momento do discurso, imbudo de profunda reflexo, em que se inventariam todas as armas de que o orador dispe para ingressar no embate discursivo-dialtico.

    A dispositio, segunda parte do sistema retrico, consiste nos procedimentos utilizados para organizar o discurso no que tange sua disposio interna. A seleo das teses e argumentos operados na primeira parte (inventio) devem ser, agora, alocados adequada e hierarquicamente na construo textual. Essa segunda parte se refere a dispor, no discurso, os argumentos j inventariados, ou seja, consiste na reflexo da ordem em que os argumentos devem ser apresentados ao destinatrio. A dispositio, como modo de organizao do discurso, subdividida em alguns componentes, quais sejam, o exrdio, a narrao, a argumentao e a peroratio.

    Os instantes iniciais do discurso, em que ser estabelecido o primeiro contato entre o orador e seu pblico, o exrdio. Nesse momento o orador suscita a benevolncia do seu auditrio, requerendo sua ateno e esforando-se para incutir-lhe empatia.

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    Ainda no exrdio, comum que se apresente o assunto a ser tratado, de modo sutil e objetivo, preparando terreno para a edificao discursiva que se seguir.

    A segunda parte da dispositio a narrao. Aqui, em regra, os fatos devero ser apresentados de modo claro, conciso e plausvel, sem o orador, contudo, deixar de orientar o caminho pelo qual seguir sua argumentao, pois a prpria narrao de fatos j , por si, um ato argumentativo, pois a perspectiva como os acontecimentos so narrados influencia na persuaso do auditrio.

    Nesse tpico, contaro a favor do orador a organizao cronolgica do texto, a apresentao sequencial dos fatos e a supresso de contedo sem utilidade, que impea a apresentao do tema objetivamente. Ademais, a narrao dever ser crvel, ou seja, os efeitos devem coadunar-se com suas causas e o sujeito envolvido nos acontecimentos narrados deve ser capaz, segundo as suas qualidades e caractersticas, de corresponder quilo que lhe imputado.

    No obedecidos tais princpios, incorre-se em ausncia de plausibilidade das alegaes narrativas, o que consiste afronta lgica do discurso e, consequentemente, falcias argumentativas. Portanto, a coerncia textual interna e externa deve ser rigorosamente atendida, sob pena de construir-se discurso falacioso e argumentativamente ineficaz, podendo, at mesmo, macular a imagem do orador perante seu pblico.

    Faz parte tambm da dispositio a argumentao, que, por seu turno, composta pela confirmao e refutao das teses apresentadas. As provas, teses, opinies e argumentos so aqui estrategicamente apresentados para contrastar o que foi exposto, ou dever ser, pela parte contrria. Por isso, tende a ser a parte mais longa do discurso, entremeada de procedimentos de persuaso conforme se apresentam as provas e se sustentam as teses.

    Ressalva importante a ser feita que pode ocorrer de a argumentao no vir separada da narrao, por opo do orador, entre tantas outras escolhas que podem ser feitas pelo autor do discurso a fim de melhor organiz-lo. Desse modo, ainda que o orador tenha de narrar os fatos nos quais alicera seu discurso e argumentar para

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    ratific-los e defend-los, nada o impede de desenvolv-los de uma nica vez, ou sem divises ntidas entre ambas as partes.

    A ltima parte da dispositio a peroratio. Como ocupa o espao de encerramento do discurso, comumente utilizado pelo orador para retomar as questes mais importantes desenvolvidas durante o discurso. Isso porque, encerrado o discurso, esperado que o auditrio realize suas prprias crticas e reflexes sobre as ideias que lhe foram apresentadas. Tendo isso em vista, mostra-se relevante estratgia persuasiva a de incluir na parte final do discurso a rememorao das principais ideias e teses expostas, pois essa parte final que, normalmente, ressoa por mais tempo na cognio do auditrio, influenciando-o no momento de suas prprias crticas e reflexes.

    Uma vez explicadas as divises da dispositio, cabe agora recuperar a exposio das partes do sistema retrico. A prxima a ser explanada a elocutio, que corresponde ao estilo escolhido pelo orador na tessitura de seu discurso. Nesse momento, portanto, haver a adequao entre o contedo e a forma, harmonizando os conceitos aos recursos lingusticos, em especial os recursos de estilstica. Portanto, nessa parte do sistema retrico o orador deve ter especial ateno em construir discurso cujo contedo se harmonize com o estilo lingustico empregado: escolha lexical e de elementos de coeso, emprego de figuras de linguagem, adequao do nvel de linguagem situao discursiva concreta, entre outras possibilidades.

    Sobre os gneros que se relacionam com o estilo, os latinos apontaram trs dentre os quais o orador poderia escolher tendo em vista dois elementos: o primeiro seria o assunto abordado e o segundo o auditrio para o qual o seu discurso seria dirigido. So eles: o gnero nobre, o simples ou o ameno. Cada qual se mostrava conveniente para uma determinada finalidade, assim, se a inteno era comover, o nobre era o mais eficiente; fosse para explicar, o simples era usado com maior razo; e o ameno, quando a inteno era agradar.

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    Por isso, diz-se que os gneros de estilo ligam-se convenincia discursiva. Sobre essa caracterstica, Aristteles16 anotou que: [...] no basta possuir a matria do discurso, urge necessariamente exprimir-se na forma conveniente, o que de suma importncia para dar ao discurso uma aparncia satisfatria.

    Ademais, o orador dever atentar-se tambm para a clareza de seu discurso, ainda mais porque isso pode variar de auditrio para auditrio. Sobre a importncia dessa caracterstica, Aristteles17 destacou que a clareza a virtude do estilo. Embora a ambiguidade, a contradio e a obscuridade possam ser recursos daqueles que conscientemente valham-se delas para escusar-se de alguma questo, como si ocorrer na seara diplomtica, jurdica, poltica, publicitria etc., esses elementos em situaes lgicas de enunciado so prejudiciais ao discurso, principalmente, se suas ocorrncias no so intencionais, mas sim decorrentes de inabilidade ou desateno do orador.

    A energia, ao lado da convenincia e clareza, tambm um elemento da elocutio. Ela consiste na necessidade de o orador imprimir uma fora ao discurso, para que seu auditrio capte os argumentos e adira ao seu ponto de vista. Alm de ajudar o auditrio no entendimento da mensagem, ela igualmente contribui para a realizao de um discurso agradvel. Para Reboul18, o orador: deve mostrar-se em pessoa no seu discurso, ser colorido, alerta, dinmico, imprevisto, engraado ou caloroso, numa palavra: vivaz.

    A ltima parte que os gregos previram para o sistema retrico foi a actio. Assim, depois de o orador levantar e relacionar as ideias, provas e teses na parte da inventio, organizando-as conforme as partes da dispositio e adequando-as segundo o estilo mais conveniente, de modo conciso, claro e vivaz, como preceituado pela elocutio, ao orador faltar ainda a execuo do discurso, ou seja, a sua concretizao, por meio de elementos verbais e no verbais.

    16 ARISTTELES. Arte Retrica e Arte Potica. Trad. Antnio Pinto de Carvalho. Rio de Janeiro:

    Ediouro, [s/d]. p. 173. 17

    ARISTTELES. Arte Retrica e Arte Potica. Trad. Antnio Pinto de Carvalho. Rio de Janeiro: Ediouro, [s/d]. p. 176. 18

    REBOUL, Olivier. Introduo retrica. 2. ed. So Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 63.

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    A essa tarefa que se d o nome de actio, cuja funo relaciona-se com a transmisso da mensagem e do assunto, estabelecendo, assim, o contato entre o orador e o auditrio. em razo dela, portanto, que alm da parte textual do discurso, outros elementos suprassegmentais colaboram para a persuaso do discurso, como gestualidade, vesturio, timbre de voz, olhar e entonao, entre outros aspectos da linguagem corporal e da fala propriamente dita, em sua perspectiva fsico-sonora. V-se, pois, que a actio est presente apenas nos discursos orais, sendo inexistente em textos escritos.

    Os romanos, por seu turno, viram a necessidade de acrescentar ao sistema retrico construdo pelos gregos a memoria. Como a antiguidade era predominantemente de tradio oral, a reteno mental do discurso a ser proferido para um auditrio era a regra para aqueles povos. No entanto, preciso alertar, como faz Lineide Mosca19, que a memorizao nunca foi um entrave criatividade, improvisao, nem para aqueles povos tampouco para os dias de hoje:

    Esta (a memoria), longe de ser um entrave criatividade, permite uma melhor posse do discurso, o que no elimina a improvisao e a capacidade de adaptao s eventuais refutaes. A memoria permite no somente reter, mas tambm improvisar.

    Essas razes justificam, portanto, a memria ser tambm considerada uma das partes observada na construo discursiva. Hodiernamente, muitos so os recursos tecnolgicos que ajudam o orador a reter o discurso, contribuindo, assim, com a memorizao, como os computadores e projetores, lousas, roteiros discursivos impressos, celulares, gravadores de udio e imagem, entre tantos outros.

    Essas partes (inventio, dispositio, elocutio, actio e memoria) so os elementos estruturais do discurso retrico. Tais partes, bem estruturadas, permitem ao orador efetivar a comunicao com profunda tonicidade argumentativa, a fim de encaminhar o auditrio adeso das ideias e teses propostas. Henriques,20 em sua tese de doutoramento apresentada Universidade de So Paulo, apresenta a importncia dessas partes para o discurso retrico:

    19 MOSCA, Lineide do Lago Salvador (Org.). Retricas de ontem e de hoje. 3.ed. So Paulo:

    Humanitas, 2004. p. 30. 20

    HENRIQUES, Antonio. A dimenso retrico-jurdica nos autos religiosos de Gil Vicente. Tese de Doutorado. So Paulo: FFLCH-USP, 2003. p. 63.

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    [...] formam um todo harmnico, coerente, integrado num corpo sistematizado de normas e participam da mesma moldura discursiva com uma s e mesma finalidade: persuadir o auditrio, embora se admita certa flexibilidade entre elas. Pode-se at admitir certa predominncia de uma sobre a outra, mas todos concorrem para a coeso do conjunto. Romper esta unidade, separando as partes do todo, desfigurar e, mesmo, adulterar a estrutura bsica da Retrica.

    V-se, pois, que as partes do sistema retrico so, entre si, componentes indispensveis e complementares, no sendo recomendvel ao orador valer-se de apenas uma ou algumas delas ao elaborar seu texto, mas sim aproveitar-lhes na intensidade e proporo exigidas pelo discurso a ser construdo.

    Se entre os gregos Aristteles teve papel de destaque nos trabalhos sobre retrica, entre os romanos esse lugar foi ocupado por Ccero, com as obras De inventione e De oratore. Entre os vrios mritos deste pensador no campo dos estudos retricos, um deles sua afirmao de que um discurso persuasivo deveria docere, delectare e movere, isto , teria de ser capaz de instruir, agradar e comover.

    O termo docere, empregado por Ccero, diz respeito instruo a ser transmitida pelo orador, ou seja, o discurso deve estar preenchido com contedos relevantes para o auditrio. Por sua vez, delectare consiste no deleitamento que o discurso deve proporcionar ao seu pblico, de modo que este possa recepcion-lo como algo aprazvel, permitindo-se aderir s suas teses. Por fim, movere relaciona-se ao arrebatamento emocional que o discurso deve provocar no auditrio, motivando suas paixes para persuadi-lo.

    As palavras de Reboul21 sintetizam essas funes do discurso retrico apresentadas pelo renomado pensador romano, como visto na passagem que se segue: [...] docere o lado argumentativo do discurso, delectare o lado agradvel, humorstico, etc., movere aquilo com que ele abala, impressiona o auditrio.

    21 REBOUL, Olivier. Introduo Retrica. Trad. Ivone Castilho Benedetti, So Paulo: Martins

    Fontes, 1998. p. XVIII.

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    1.1.2.2 Tipos de Provas Artsticas do Discurso Retrico

    Objetivando a persuaso, e contribuindo para a elevao da retrica ao patamar de cincia, Aristteles elaborou conceitos acerca das espcies de provas passveis de serem promovidas pelo discurso retrico, as quais tambm se constituem estratgias argumentativas destinadas ao convencimento.

    Assim, as provas podem ser de dois tipos: as primeiras, denominadas inartsticas, no tcnicas, ou extrnsecas, so aquelas que independem do orador, portanto, apresentadas anteriormente inventio, como, por exemplo, testemunhos, confisses, leis, contratos, juramento, tortura etc.; as outras modalidades de provas so conhecidas como artsticas, tcnicas, ou intrnsecas, cuja criao feita pelo prprio orador para manter sua argumentao, necessitando, portanto, de seus prprios atributos argumentativos, de sua maneira peculiar de persuadir o auditrio.

    Como instrumentos voltados ao convecimento, construdos pelo orador, as provas artsticas, tcnicas, ou intrnsecas foram cunhadas ainda na antiguidade, por Aristteles, o qual as subdividiu em trs categorias, considerando as finalidades persuasrias desempenhadas por elas no discurso. Nesse sentido, o pensador grego explica que umas [provas artsticas] residem no carcter moral do orador; outras, no modo como se dispe o ouvinte; e outras, no prprio discurso, pelo que este demonstra ou parece demonstrar.22

    Desse modo, Aristteles cunhou a trade conceitual segundo a qual existem provas artsticas que agem sobre o auditrio por meio da razo (lgos), por meio do carter (thos), e, at mesmo, pela paixo (pthos). Lineide Mosca23 tece precisa explicao sobre esses elementos:

    O discurso persuasivo, aquele destinado a agir sobre os outros atravs do lgos (palavra e razo), envolve a disposio que os ouvintes conferem aos que falam (thos) e a reao a ser desencadeada nos que ouvem (pthos). Estes so os trs elementos que iro figurar em todas as definies

    22 ARISTTELES. Retrica. Traduo de Manuel Alexandre Jnior; Paulo Farmhouse Alberto; Abel

    do Nascimento Pena. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1998. p. 49 23

    MOSCA, Lineide do Lago Salvador (Org.). Retricas de ontem e de hoje. 3.ed. So Paulo: Humanitas, 2004. p. 22.

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    posteriores e que compreendem o instruir (docere), comover (movere) e o agradar (delectare).

    Por lgos entende-se a exposio de argumentos coerentes, no incompatveis, obedecendo s estruturas da lgica material e mesmo aos princpios da lgica formal, isto , silogismos, aforismos e argumentos objetivos, sem levar em considerao as caractersticas (thos) do orador ou as paixes (pthos) do auditrio, mas to somente as questes atinentes coerncia e logicidade do contedo do discurso. Dessa maneira, [provas de persuaso baseadas no lgos] ligam-se capacidade interna de persuaso da linguagem, por sua dimenso objetiva.24

    Um exemplo disso, no discurso jurdico, encontrado quando o recorrente argumenta que todos os requisitos de admissibilidade para a interposio do recurso esto presentes, demonstrando ao magistrado, por exemplo, o cumprimento do prazo estipulado pela lei para a referida interposio, bem como a efetuao do recolhimento da taxa judiciria igualmente determinada pela norma e mais uma srie de outras exigncias processuais. Seus argumentos, portanto, recairo em aspectos lgicos, materiais e objetivos.

    Diante disso, ao julgador s restar cotejar o prazo estabelecido pela norma e aquele em que o recurso foi interposto, ou verificar se h ou no guia comprovando o pagamento da taxa judiciria, para, ento, proferir seu juzo negativo ou positivo de admissibilidade quanto tempestividade, ou ao preparo do recurso, dando-lhe ou no prosseguimento consoante critrios objetivos.

    Sobre o pthos, isto , as paixes, Aristteles explicou que [...] so as causas que introduzem mudanas em nossos juzos, e que so seguidas de pena e de prazer; tais so a clera, a compaixo, o temor e todas as outras emoes semelhantes, bem como seus contrrios25. Depreende-se do citado excerto que o pthos relaciona-se aos aspectos afetivos de um discurso, em que a persuaso do auditrio almejada por argumentos que tocam suas emoes, anseios, subjetividades. H

    24 HENRIQUES, Antonio. Argumentao e discurso jurdico. So Paulo: Atlas, 2008. p. 90.

    25 ARISTTELES. Arte Retrica e Arte Potica. Trad. Antnio Pinto de Carvalho Rio de Janeiro:

    Ediouro, [s.d.]. p. 97.

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    no discurso, portanto, componentes de ordem emocional, estreitando a relao entre orador e auditrio e influindo no xito ou no da persuaso.

    Os discursos jurdicos e, especificamente, os recursos cveis no escapam s paixes, sobretudo quando os recursos abordam com profundidade no s a matria de direito, mas tambm o debate sobre a verdade dos fatos. Assim, num agravo de instrumento interposto contra deciso que negou liminarmente ao pai o direito de visitao do filho menor, mais eficaz tende a ser o discurso se o orador alm de argumentar que possui tal direito por fora de lei, conseguir despertar a emoo nos magistrados de instncia superior, argumentando no sentido de ser necessria para o desenvolvimento saudvel de uma criana a presena da figura paterna, bem como o sofrimento que tal afastamento pode proporcionar.

    Isso tende a contribuir para a persuaso, porque os magistrados, assim como qualquer ser humano, agem motivados por um coeficiente emocional, subjetivo, sendo influenciados pelos elementos culturais, pelas suas preferncias filosficas, sociolgicas, por seus pendores jurdicos, axiolgicos, pelo meio social. Cabero aos recorrentes, portanto, mobilizar as emoes dos julgadores seu auditrio envolvendo-os em seu discurso, persuadindo-os tambm pelo repertrio das paixes.

    Por sua vez, thos a imagem, isto , as caractersticas (caracter, carter) construdas pelo orador perante o auditrio conforme profere seu discurso, podendo propiciar uma impresso positiva ou negativa, despertando no destinatrio, respectivamente, credulidade ou incredulidade, ou mesmo simpatia ou desconfiana. Como depende do contato estabelecido entre o enunciador e seu destinatrio, elementos como o tom de voz, as palavras escolhidas para discurso, corporeidade, vestimentas, enfim, todos os elementos utilizados para composio da imagem do orador revelam-se de considervel importncia. Todos esses elementos, aliados a um discurso coerente, preciso e sem falcias, tende a promover no orador a imagem de fidedignidade, colaborando para a estrutura persuasiva.

    Diz-se thos discursivo aquele construdo concomitantemente realizao do discurso, com elementos verbais e no-verbais, lingusticos e extralingusticos. Pode

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    haver, no entanto, um thos j conhecido pelo auditrio, ou seja, um thos pr-discursivo, construdo amide com base em discursos anteriores, os quais interferem na interpretao que o destinatrio far do novo discurso. Assim, nesses casos, antes mesmo de o orador proferir o novo discurso, o destinatrio j tem uma imagem formada de suas caractersticas, que poder ser ratificada ou refutada durante a argumentao. Sobre esse tema, Ruth Amossy26 realiza explicao clarificadora:

    O ethos discursivo mantm relao estreita com a imagem prvia que o auditrio pode ter do orador ou, pelo menos, com a idia que este faz do modo como seus alocutrios o percebem. A representao da pessoa do locutor anterior a sua tomada de turno s vezes denominada ethos prvio ou pr-discursivo est freqentemente no fundamento da imagem que ele constri em seu discurso: com efeito, ele tenta consolid-la, retific-la, retrabalh-la ou atenu-la.

    Assim como o pthos no afastado dos discursos realizados nos recursos cveis, o thos tambm no o . Como essas peas processuais prestam-se provocao do reexame de uma deciso judicial, cuja prolao feita aps a apresentao de determinados elementos, como, por exemplo, fatos, direitos e provas, o julgador de um recurso toma contato com um thos que construdo ao longo de toda a demanda, no s o thos dos advogados, mas tambm o thos das prprias partes e testemunhas, conforme essas proferiram seus discursos na instruo processual. Assim, no s as alegaes do recorrente influenciaro na construo de sua imagem discursiva, mas tambm o que foi apontado pela parte adversa e pela deciso impugnada.

    H de se ressaltar, contudo, que o recorrente no se encontra alijado de reconstruir seu thos na via recursal, pelo contrrio, a reconstruo da imagem discursiva, se no contraditria, poder-lhe- ser favorvel na reforma, invalidao, integrao ou esclarecimento da deciso combatida.

    1.2 A NOVA RETRICA

    26 AMOSSY, Ruth. Ethos. Trad. Sandoval Nonato Gomes-Santos. In: CHARAUDEAU, Patrick;

    MAINGUENEAU, Dominique. Dicionrio de Anlise do Discurso. Trad. Fabiana Komesu. 2. ed. So Paulo: Contexto, 2008. p. 221.

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    1.2.1 O Declnio da Retrica Clssica

    Na Antiguidade Clssica, como visto retro, a retrica alcanou o status de cincia, sendo uma das reas do conhecimento mais importantes para os estudiosos gregos e romanos, principalmente em razo de prestar-se aos fins democrticos, medida que possibilitava o debate em contraposio fora fsica. Assim, dominar a retrica era ao mesmo tempo conhecer uma tcnica como tambm praticar uma arte de reconhecida nobreza.

    Os sculos, porm, desgastaram a concepo criada pelos antigos acerca da retrica. Sua altivez foi restringida aos usos mais formais, menos acessveis, principalmente em razo do domnio da cultura pela Igreja e pela criao das universidades na Idade Mdia. Reboul27 traa, sinteticamente, interessante panorama do esmorecimento dessa cincia nesse perodo:

    verdade que a retrica perdeu os grandes debates polticos, que s recuperar nas democracias modernas, mas ganhou outros gneros: a epstola, a descrio, o testamento, o discurso de embaixada, a consolao, o conselho ao prncipe, etc.

    Alm disso, uma srie de correntes tericas e pensadores contriburam para o declnio da retrica. Em seu Discurso do Mtodo, por exemplo, Descartes rompeu com as bases da retrica ao repelir a dialtica, considerando as proposies verossmeis como quase falsas; alm de rejeitar o carter nobre conferido lngua pela retrica. Locke, por seu turno, considerava que a retrica, por meio de artifcios verbais, falseava as experincias.

    Assim tambm foram significativamente negativas as crticas direcionadas retrica sob o ponto de vista da doutrina positivista que lhe rechaava, em razo de ausncia de verdades cientficas; e o romantismo, que por pautar-se na sinceridade, afastava recursos que pudessem falsear os sentimentos.

    Seu declnio, portanto, deve-se em razo da deturpao de seu uso em vrias reas, em que as questes relativas forma do discurso acabaram sobrepujando

    27 REBOUL, Olivier. Introduo retrica. 2. ed. So Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 76

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    aquelas pertinentes ao contedo, esvaziando as funes do discurso retrico. Isso porque as tcnicas, que antes eram empregadas para auxiliar na confeco dos discursos, passaram a engess-lo, entendendo-se falsamente a retrica como mero embelezamento discursivo.

    O entendimento de que o discurso retrico era aquele que seguia estritamente, sem qualquer desvio, o preceituado por mestres como Aristteles, Ccero entre outros, atingiu a retrica no seu mago, ao comprometer, pela rigidez na aplicao das regras na elaborao do discurso, a persuaso do auditrio. Diante dessas razes, cada vez mais a essa cincia foi sendo atribudo valor pejorativo.

    Assim, quanto mais se imobilizava a retrica nos conceitos clssicos, mais a distanciava desses mesmos ensinamentos, chegando ao ponto de o discurso retrico ser considerado vazio de contedo, apenas de formato pomposo e empolado, deixando de persuadir por razes e argumentos, para enganar pelo estilo altivo. Essa ideia, porm, em nada condiz com aquela preconizada pelos grandes tericos clssicos, de Aristteles a Quintiliano.

    Os aspectos, portanto, que diziam respeito forma do discurso, isto , elocutio, foram colocados em primeiro plano, deixando de lado os aspectos relativos ao contedo. A retrica, distante de sua essencial original, passou a referir-se apenas ao estilo do discurso, destinado antes ao deleitamento de seu pblico do que persuaso. Em razo disso, a retrica passou a ser considerada a arte da mentira, como se fosse uma intermediao artificial entre a verdade e o conhecimento.

    O discurso retrico, porm, no dissocia o contedo do estilo, tampouco utiliza este para desvirtuar aquele. A forma deve servir substncia, ou seja, o estilo deve ter como finalidade precpua a expresso de uma informao do modo mais adequado. Baseando-se apenas no estilo, o discurso perde sua qualidade de retrico, deixando de atingir a persuaso do auditrio sobre determinado tema.

    1.2.2 Surgimento da Nova Retrica

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    Aps a tradio clssica, conforme j exposta, a retrica foi tida por mero procedimento de nfase ao estilo discursivo, em detrimento de seu contedo. Foi posta em segundo plano, por sculos, a funo mais importante do procedimento retrico, qual seja, a busca da persuaso do auditrio por meio da adequada e estratgica exposio das ideias do orador.

    Esse panorama comea a ser redesenhado na dcada de 1960, com algumas doutrinas que, partindo dos ensinamentos preconizados pelos pensadores da antiguidade clssica sobre retrica, tentavam devolver a essa modalidade de discurso a altivez e o prestgio outrora lhe conferido. Mas no s, alm de resgatar conceitos da antiguidade clssica, perdidos com os sculos, ou mesmo deturpados, para realoc-los nos devidos lugares, as modernas correntes tambm associaram essas prticas discursivas a estudos lingusticos, semiticos e pragmticos.

    Assim, a retrica moderna repensa os caminhos da retrica clssica. E, embora no seja estranha a essa, abre novos rumos anteriormente no desvendados. Primeiramente, porque o foco principal deixa de recair sobre a produo do discurso, para concentrar-se, tambm, em seu auditrio e sua interpretao. Alm disso, seu alcance ampliado e diversificado, passando a atingir outros gneros discursivos, verbais ou no-verbais, que no apenas os reconhecidos pelos antigos.

    Dentre os principais estudos daquela dcada, duas podem ser destacadas. A primeira delas diz respeito teoria desenvolvida pelo Grupo de Lige, a qual ficou reconhecida como Retrica Geral, cujas pesquisas e teorias centram-se nas questes sobre figuras de linguagem e naquelas que dizem respeito s linguagens no verbais. Em razo de seu objeto de estudo, as teses desenvolvidas pelo grupo belga tm para esta dissertao pouca aplicabilidade, embora sua importncia para o revigoramento da retrica seja inquestionvel.

    A segunda corrente doutrinria que se destacou em meados do sculo passado foi a conduzida pelos tericos Cham Perelman e Lucie Olbrechts-Tyteca, sob o nome de Teoria da Argumentao, cuja principal obra, intitulada de Teoria da Argumentao: a nova retrica, fixou novos caminhos e parmetros para a anlise e interpretao dos discursos retricos, separando-os dos estudos sobre demonstrao

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    desenvolvidos no Iluminismo, especificamente, pelo movimento do racionalismo moderno, para direcionar as questes no que diz respeito a premissas que so provveis ou verossmeis, mas no verdades absolutas.

    As questes lingusticas e literrias, para essa corrente, em certa medida, ficaram num segundo plano, sendo-lhe mais importante a lgica do verossmil, do razovel. Ou seja, a argumentao que mais lhe interessava era aquela fundada na lgica material e nos juzos de valor, vinculada dialtica da retrica clssica, como pode ser notado nas palavras de Perelman28 abaixo transcritas:

    [...] nos domnios em que se trata de estabelecer aquilo que prefervel, o que aceitvel e razovel, os raciocnios no so nem dedues formalmente correctas nem indues do particular para o geral, mas argumentaes de toda a espcie, visando ganhar a adeso dos espritos s teses que se apresentam ao seu assentimento.

    1.2.3 Rompimento com o Racionalismo Moderno

    Por mais de trs sculos, a filosofia de Descartes orientou os povos ocidentais, sendo sua obra Discurso do Mtodo um grande marco do racionalismo moderno. Segundo a referida obra, a perspectiva cientfica limita-se quela decorrente do raciocnio lgico-formal. Assim, no haveria espao, na busca da verdade, para premissas duvidosas, possveis. Segundo o posicionamento cartesiano, o pensamento que estrutura a busca da verdade deve ser necessariamente alicerado em premissas que constituem verdades absolutas, de modo que todas as outras, fora desse critrio, so quase falsas, e, portanto, inbeis a formar o raciocnio cientfico.

    A Nova Retrica, com seu expoente em Perelman, vem no sentindo de quebrantar essas teses preconizadas por Descartes, argumentando na direo de que muitos dos fatos e acontecimentos em que os homens esto envolvidos e expostos no esto submetidos ao tipo de raciocnio proposto por Descartes.

    28 PERELMAN, Cham. O imprio retrico: retrica e argumentao. Trad. Fernando Trindade e Rui

    Alexandre Grcio. Rio Tinto: Edies Asas, [s/d]. p. 15.

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    Pelo contrrio, na maior parte das vezes os raciocnios empregados nas relaes sociais e intersubjetivas so formados por premissas verossmeis, isto , premissas com aparncia de verdade, razoveis, provveis, de modo que no podem ser enquadradas definitivamente como verdades absolutas, mas tambm no devem ser tidas por quase falsas. Assim, conforme a razoabilidade das premissas, maior ou menor a possibilidade de as concluses serem verdadeiras.

    Com o passar dos anos, muitos pensadores se insurgiram contra a lgica cartesiana, fato que propiciou o florescimento de novas teorias e teses contrrias a de Descartes. Alm das lanadas pela Nova Retrica, outras teorias, como, por exemplo, a de Recasns Siches, denominada de lgica do razovel, tambm com origens em meados do sculo passado, retomou a importncia e validade dos raciocnios fundados em premissas verossmeis, como explica Alar Caff29:

    No existe apenas a Lgica Formal, demonstrativa, mas tambm uma lgica do razovel, mais ampliada, uma lgica da contingncia, da argumentao, das proposies que no so exatas e perfeitas, no so verdadeiras ou falsas, porm, mais ou menos provveis ou verossmeis, mais ou menos convenientes ou vantajosas. Assim, esse instrumental no formal, mas implica em estabelecer provas, no provas demonstrativas e verdadeiras, e sim provas de maior ou menor peso, de maior ou menor relevncia axiolgica. E todo esse processo de pesar e estimar provas compreende a avaliao delas, a ponderao axiolgica das provas.

    Cabe ressaltar que diante de uma demonstrao formal, ou seja, de um raciocnio fundamentado em premissas que de modo algum admitem discusso e das quais no se discute o contedo material, no h o que fazer seno apresent-las ao auditrio por meio de um raciocnio-analtico, sendo dispensadas ferramentas destinadas persuaso, porque, nesse caso, no haver espao para que as teses padeam de questionamentos ou dvidas, desde que presente a validade formal do raciocnio.

    Isso diametralmente oposto ao que ocorre em discursos cujas premissas so meramente verossmeis, j que, neste caso, a persuaso do auditrio depender de mais elementos do que a simples validade formal de raciocnio. Portanto, no campo do provvel, a adeso do interlocutor est relacionada ao emprego de tcnicas

    29 ALVES, Alar Caff. Lgica; pensamento formal e argumentao; elementos para o discurso

    jurdico. 3.ed. So Paulo: Quartier Latin, 2003. p. 397.

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    persuasrias e do adequado manejo discursivo. Sobre isso, Perelman30 esclarece: A retrica [...] difere da lgica pelo fato de se ocupar no com a verdade abstrata, categrica ou hipottica, mas com a adeso.

    Com a retomada das perspectivas clssicas sobre retrica, revigora-se a validade do raciocnio dialtico-argumentativo, que busca a persuaso do auditrio no apenas por meio da razo (lgos) e da instruo (docere), mas tambm por meio de outros elementos to essenciais quanto, como o deleitamento (delectare) e o arrebatamento (movere) do auditrio, bem como a imagem do orador (thos) e as paixes (pthos) despertadas pelo seu discurso nos destinatrios. A retrica, portanto, voltou a ser a arte de defender-se argumentando em situaes nas quais a demonstrao no possvel.31

    O estilo empregado em cada discurso passa a ser, novamente, apenas uma das partes do sistema retrico, mas no o mago da retrica em si, a qual, em verdade, constitui rea de conhecimento de grande abrangncia e de relevncia mpar, sendo evidente equvoco o enquadramento de discurso retrico como discurso vazio, pelo contrrio, trata-se de discurso cheio, cheio de argumentos, provas, estratgias, raciocnios e reflexes. Por meio dos estudos discursivos contemporneos, retoma a retrica a perspectiva de tcnica cientfica na busca do maior grau de persuaso discursiva possvel, ou seja, quais caminhos podem gerar maior efetividade no intento de o orador alcanar o assentimento do destinatrio.

    1.2.4 Raciocnio Demonstrativo e Raciocnio Argumentativo

    Ainda que seja uma questo aventada na dcada de 1960, a diferena entre o raciocnio dialtico-argumentativo e demonstrativo-analtico encontra suas razes nos antigos, especificamente em Aristteles, o qual props esses dois tipos de raciocnio: o primeiro, denominado de teoria da demonstrao, fundamentava-se na verdade absoluta, sendo incontestvel e incorrigvel; e o segundo, ao contrrio,

    30 PERELMAN, Cham. Retricas. 2. ed. Trad. Maria Ermantina de Almeida Prado Galvo. 2. ed. So

    Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 70. 31

    REBOUL, Olivier. Introduo retrica. 2. ed. So Paulo: Martins Fontes, 2004. p. 27.

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    permitia a obteno de concluses provveis, porque fundado na verossimilhana das premissas.

    Assim como os clculos matemticos, o raciocnio demonstrativo pauta-se em premissas e concluses incontestveis, cuja validade pode ser aferida independentemente de qualquer outra, em qualquer momento, lugar ou diante de qualquer pessoa. possvel dizer que esse raciocnio presta-se a qualquer destinatrio, uma vez que possui auditrio universal, no sendo necessrio, dessa maneira, considerar os valores de um grupo especfico ou indivduo para persuadi-lo por argumentos pautados nas suas convices, crenas ou paixes, mas somente demonstrando-lhe as evidncias acerca de determinada proposio e a validade formal do raciocnio.

    Desse modo, dentro de um sistema de proposies necessrias e verdadeiras, qualquer ilao em desacordo com as regras formais de raciocnio constituiria equvoco lgico. Assim sendo, o raciocnio demonstrativo encontraria seus fundamentos nas cincias naturais, em que as dedues e hipteses so verificadas e no axiologicamente construdas.

    Por seu turno, o raciocnio argumentativo no perde a validade caso determinada proposio ou concluso no seja absolutamente verdadeira, por nem sempre haver evidncias da veracidade das premissas. Trata-se, pois, de estabelecer teses baseadas no verossmil, na possibilidade de verdade. Assim, os resultados a que se chega aqui no se confundem com aqueles do raciocnio demonstrativo, na medida em que as certezas absolutas e premissas indiscutveis, tpicas destes, no esto compreendidas na elaborao de um raciocnio argumentativo.

    O raciocnio argumentativo no dedicado a um destinatrio genrico, de modo que a persuaso por meio de argumentos depende, necessariamente, de um auditrio particular, determinado e especfico, tendo em vista que aquilo que compete a determinado pblico poder ser contestado por outro, em razo de os valores partilhados serem diferentes e, portanto, com ndices de assentimento distintos conforme os valores, culturas e demais elementos subjetivos de cada auditrio.

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    Pelos estudos de Aristteles, percebe-se que tal pensador no atribuiu maior relevncia a um ou outro modo de raciocnio, no havendo em sua teoria nveis de validade ou qualitativos, nem hierarquias entre a demonstrao e a argumentao, tampouco conferiu maior prestgio e considerao a um deles em detrimento do outro.

    A transformao realizada pela teoria de Descartes no pensamento ocidental, iniciado na poca do Iluminismo, colocou em primeiro plano o raciocnio demonstrativo, desconsiderando a existncia das premissas fundadas na argumentao, como bem anotado por Ulhoa Coelho: Os dois modos bsicos de raciocinar propostos pelo grande pensador da Antiguidade isto , por demonstrao analtica ou argumentao dialtica no foram desenvolvidos, explorados ou sequer considerados na mesma medida.32

    Isso porque Descartes, em seu j citado Discurso do Mtodo, ignorou todas as formas de raciocnio que partiam de argumentos, preconizando apenas aqueles que recaam no raciocnio demonstrativo, j que para ele, a verdade s poderia ser obtida quando as quatro regras, transcritas abaixo, fossem observadas:

    O primeiro consistia em nunca aceitar como verdadeira nenhuma coisa que eu no conhecesse evidentemente como tal, isto , em evitar, com todo o cuidado, a precipitao e a preveno, s incluindo nos meus juzos o que se apresentasse de modo to claro e distinto ao meu esprito, que eu no tivesse ocasio alguma para dele duvidar. O segundo, em dividir cada uma das dificuldades que devesse examinar em tantas partes quanto possvel e necessrio para resolv-las. O terceiro, em conduzir por ordem os meus pensamentos, iniciando pelos objetos mais simples e mais fceis de conhecer, para chegar, aos poucos, gradativamente, ao conhecimento dos mais compostos, e supondo tambm, naturalmente, uma ordem de precedncia de uns em relao aos outros. E o quarto, fazer, para cada caso, enumeraes to completas e revises to gerais, que eu tivesse a certeza de no ter omitido nada.33

    A Nova Retrica, com seus precursores, ope-se a esse formalismo extremado, restaurando o valor do raciocnio argumentativo para os modos de pensar dos povos ocidentais. As premissas verossmeis voltam a ser valorizadas assim como aquelas realizadas pela demonstrao. Assim, ainda que em certa medida haja uma ruptura

    32 COELHO, Fbio Ulhoa. Prefcio Edio Brasileira, XVI. In: PERELMAN, Cham; OLBRECHTS-

    TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentao: a nova retrica. Trad. Maria Ermantina Galvo. So Paulo: Martins Fontes, 1996. 33

    DESCARTES, Ren. Discurso do Mtodo. So Paulo: Martin Claret, 2005. p. 31-32.

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    na estrutura da teoria de Descartes, a Nova Retrica no desconsidera a importncia do raciocnio analtico-demonstrativo, como fizeram os formalistas com a argumentao. Assim, explicitam Perelman e Tyteca: 34

    A publicao de um tratado consagrado argumentao e sua vinculao a uma velha tradio, a da retrica e da dialtica gregas, constituem uma ruptura com uma concepo da razo e do raciocnio, oriunda de Descartes, que marcou com seu cunho a filosofia ocidental dos trs ltimos sculos. [...] A prpria natureza da deliberao e da argumentao se ope necessidade e evidncia, pois no se delibera quando a soluo necessria e no se argumenta contra a evidncia. O campo da argumentao o do verossmil, do plausvel, do provvel, na medida em que este ltimo escapa s certezas do clculo. (grifos do autor)

    Diante de inmeras situaes as quais os indivduos e os grupos a que eles pertencem esto sujeitos, h que se notar no existir uma prevalncia do raciocnio analtico-demonstrativo sobre o dialtico argumentativo. De fato, o que se tem so circunstncias que exigem uma ou outra modalidade de raciocnio, dependendo do tipo de proposio. Nos casos em que as premissas permitem o embate de ideias, a argumentao lograr xito, diferentemente se as teses estiverem fundamentadas em evidncias, porque, neste caso, ser mais eficaz a demonstrao. Por essas razes, diz-se que o raciocnio argumentativo est para lgica do razovel assim como o raciocnio demonstrativo est para a lgica formal.

    Perelman, ento, principal representante dessa revitalizao da retrica na modernidade, recupera as teorias aristotlicas, e extirpa as hierarquias erguidas entre esses tipos de raciocnios aps a era clssica, fazendo com que a demonstrao e a argumentao voltassem a equiparar-se, para ocupar o mesmo plano. Com ele, as proposies verossmeis deixaram de ser consideradas quase falsas, como defendido pelo racionalismo moderno, para tornarem-se o objeto de trabalho da retrica. Objeto este sobre o qual o orador tem de esmerar-se para atingir a adeso de seu auditrio.

    1.2.5 Convencer, Persuadir e Coagir

    34 PERELMAN, Cham; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentao: a nova retrica.

    Trad. Maria Ermantina Galvo. So Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 1.

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    No Tratado da Argumentao, Perelman e Tyteca fizeram a distino entre os termos convencer e persuadir, chegando explicao de que o primeiro deveria ser empregado quando o raciocnio apresentado fosse o analtico-demonstrativo, e o segundo nos casos em que o raciocnio utilizado fosse o dialtico-argumentativo.

    Convence-se, portanto, por meio da lgica formal, com demonstrao, um auditrio universal, sobre uma verdade absoluta, aplicada em qualquer tempo e espao. Em contrapartida, persuade-se pela lgica do razovel, com argumentao, quando h uma possibilidade de verdade, apresentada a um auditrio particular, com caractersticas e valores determinados, num certo tempo e espao.

    Mas os mesmo autores ressalvam que essa distino muitas vezes problemtica e precria, na medida em que os limites entre o significado dos termos convencer e persuadir muito tnue: Nosso ponto de vista permite compreender que o matiz entre os termos convencer e persuadir seja sempre impreciso e que, na prtica, deva permanecer assim.35

    Existem estudiosos da retrica, no entanto, que no veem utilidade nessa discriminao, como, por exemplo, Duprel36 e Reboul, cujos entendimentos apregoam o uso indistinto dos termos persuadir e convencer, ou seja, como sinnimos, indo de encontro tese defendida pelos precursores da Nova Retrica sobre a aplicao especfica de cada um dos termos. Segue, abaixo, texto de Reboul37 em que explica seu posicionamento:

    Alguns distinguem rigorosamente persuadir de convencer, consistindo este ltimo no em fazer crer, mas em fazer compreender. A nosso ver essa distino repousa sobre uma filosofia at mesmo ideologia excessivamente dualista, visto que ope no homem o ser de crena e sentimento ao ser de inteligncia e razo, e postula ademais que o segundo pode afirmar-se sem o primeiro, ou mesmo contra o primeiro. At segunda ordem, renunciaremos a essa distino entre convencer e persuadir.

    35 PERELMAN, Cham; OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentao: a nova retrica.

    Trad. Maria Ermantina Galvo. So Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 33. 36

    DUPREEL, E. Communant et pluralisme des valeurs: Les groupes base de persuasion. In: LEMPEREUR, A. (org.) Lhomme et la rhtorique. Paris: Mridiens Klincksieck, 1990. p. 170. 37

    REBOUL, Olivier. Introduo retrica. 2. ed. So Paulo: Martins Fontes, 2004. p. XV.

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    Ademais, possvel fazer uma subdiviso do significado do termo persuadir, especializando-o um pouco mais. Assim, um orador pode intentar persuadir um auditrio de algo, ou persuadi-lo a fazer alguma coisa. Para os tericos mais exigentes, a finalidade da retrica recairia na persuaso do auditrio de algo, independentemente se existir adeso capaz de culminar numa ao do destinatrio em decorrncia do discurso.

    A concluso a que se chega que a retrica operaria seus primeiros efeitos ainda na seara das ideias. Tanto o , que Reboul38 afirma no haver discurso retrico se no houver a adeso no plano das ideias, isto , a adeso de esprito, ainda que outrem pratique determinada ao. Parece, no entanto, haver um exagero nas palavras do eminente terico, na medida em que a prtica de determinado ato pode tambm ser a inteno do orador com seu discurso e, portanto, o seu objetivo teria sido atingido por meio da retrica. Perelman,39 por exemplo, no compartilha da mesma opinio de Reboul:

    [...] a argumentao no tem unicamente como finalidade a adeso puramente intelectual. Ela visa, muito frequentemente, incitar aco ou, pelo menos, criar uma disposio para a aco. essencial que a disposio criada seja suficientemente forte para superar eventuais obstculos.

    Assim, mesmo que a persuaso do auditrio no chegue ao campo das ideias, o fato de ele sucumbir ao discurso do orador, mesmo levado por suas paixes, no pode ser suficiente para afastar o papel da retrica. Ao imaginar um recorrente que ao dirigir seu recurso ao tribunal no consegue a adeso dos magistrados sobre as razes de seu inconformismo, mas, despertando-lhes sentimento de compaixo, obtm julgamento que lhe favorvel, no h que se falar em ausncia da retrica.

    Diante de todas essas significaes e distines, uma parece ser indisp