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“Jardim do Eden: o Inventário (parte 1)” L’imaginaire est fait de récits et d’univers d’images toujours plus complexes et se déplie au pluriel. Les imaginaires informent et forment les objets dans le processus d’innovation. 1 Os Almanaques reuniam conhecimentos de índoles diferentes, proporcionados em pequenas ou médias doses, de serventia para finalidades igualmente distintas. Destinavam-se a um público heterogéneo que ia acumulando informações, saberes e resoluções. O índice de rigor científico ou a coerência epistemológica eram variáveis, consoante a credibilidade que, ao longo de gerações, possam ter adquirido, meritoriamente. O Fabuloso Almanaque da Fauna Mundial do Professor Revillod deliciou os devaneios dos adultos, quando viabilizou a criação visual de seres híbridos por quem manuseasse a publicação, onde se combinavam, entre si e ad libitum, raças e espécies animais... quase exóticos. Mediante procedimento simples, conforme se desfolham as páginas, surgem, de forma mágica, configurações que apostam no irrisório e sedutor concretizar, visualizando uma ars combinatória, sendo acessível a quase todos. Assim se viu acrescentado o leque de espectadores e leitores que podem conformar as suas efabulações em modos mais ou menos eruditos e/ou artísticos. O inventário de seres que Luís Silveirinha nos propicia, cumpre uma prática erudita que possui parentesco à inventariação e catalogação, em prol de uma preservação de modelos desenhos e pintados, emergindo de uma semi-consciência conduzida, ora pela racionalidade mais enxuta, ora por determinações aleatórias – que o autor, em última instância, decide. Por outro lado, assinalem-se a propósito da série de desenhos (…delineados e pintados) as afinidade (eletivas e manifestativas) pela vontade e sedução que, desde há séculos, se veio exercendo na Europa, quanto a imagens, coisas e imagens de coisas e seres diversificados, raros e singulares, concentrando-se em tipologias recoletoras como: Coleções, Gabinetes de Curiosidades, Wunderkammer / Quartos das Maravilhas (séc. XVII), Gabinet d’Amateur, …até a formatação dos Museus tal como ainda hoje os entendemos. Viajando entre o privado e o público, o intimismo e a divulgação, os produtos, artefatos, obras e peças recolhidos continuam a usufruir condições que os expõem, dilatam ou concentram, vendo-se acrescidos de validações culturais e estéticas complexas. Entre os Gabinetes de Curiosidades e as salas de um Museu de História Natural, passando pelo display (óbvio) das obras artísticas, eis onde se situam, prioritariamente, os trabalhos de Luís Silveirinha, existindo numa plataforma de imaginário convicto. E que não seja alheia a evocação do Bestiario 2 (1951), de Julio Cortázar e do Livro dos Seres Imaginários (1957), de Jorge Luís Borges com Margarita Guerrero, onde se 1 Michel Maffesoli, Imaginaire et Postmodernité, Paris, Ed. Manucius, 2013, p.5 2 “El “bestiario” constituye uno de los tópicos alegóricos fundamentales de la Edad Media, y a partir de su lectura es posible reconstruir las relaciones que el hombre medieval mantenía con la naturaleza, y al mismo tiempo nos permite localizar su posición en el esquema general de las cosas creadas. Junto a esta zoología simbólica, debe situarse también aquella medicina imaginaria, y al igual que los bestiarios, la base de su credibilidad y amplia aceptación surgía de combinar algunas observaciones empíricas con

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“Jardim do Eden: o Inventário (parte 1)”

L’imaginaire est fait de récits et d’univers d’images toujours plus complexes et se déplie au pluriel. Les imaginaires informent et forment les objets dans le processus d’innovation.1

Os Almanaques reuniam conhecimentos de índoles diferentes, proporcionados em pequenas ou médias doses, de serventia para finalidades igualmente distintas. Destinavam-se a um público heterogéneo que ia acumulando informações, saberes e resoluções. O índice de rigor científico ou a coerência epistemológica eram variáveis, consoante a credibilidade que, ao longo de gerações, possam ter adquirido, meritoriamente. O Fabuloso Almanaque da Fauna Mundial do Professor Revillod deliciou os devaneios dos adultos, quando viabilizou a criação visual de seres híbridos por quem manuseasse a publicação, onde se combinavam, entre si e ad libitum, raças e espécies animais... quase exóticos. Mediante procedimento simples, conforme se desfolham as páginas, surgem, de forma mágica, configurações que apostam no irrisório e sedutor concretizar, visualizando uma ars combinatória, sendo acessível a quase todos. Assim se viu acrescentado o leque de espectadores e leitores que podem conformar as suas efabulações em modos mais ou menos eruditos e/ou artísticos. O inventário de seres que Luís Silveirinha nos propicia, cumpre uma prática erudita que possui parentesco à inventariação e catalogação, em prol de uma preservação de modelos desenhos e pintados, emergindo de uma semi-consciência conduzida, ora pela racionalidade mais enxuta, ora por determinações aleatórias – que o autor, em última instância, decide. Por outro lado, assinalem-se a propósito da série de desenhos (…delineados e pintados) as afinidade (eletivas e manifestativas) pela vontade e sedução que, desde há séculos, se veio exercendo na Europa, quanto a imagens, coisas e imagens de coisas e seres diversificados, raros e singulares, concentrando-se em tipologias recoletoras como: Coleções, Gabinetes de Curiosidades, Wunderkammer / Quartos das Maravilhas (séc. XVII), Gabinet d’Amateur, …até a formatação dos Museus tal como ainda hoje os entendemos. Viajando entre o privado e o público, o intimismo e a divulgação, os produtos, artefatos, obras e peças recolhidos continuam a usufruir condições que os expõem, dilatam ou concentram, vendo-se acrescidos de validações culturais e estéticas complexas. Entre os Gabinetes de Curiosidades e as salas de um Museu de História Natural, passando pelo display (óbvio) das obras artísticas, eis onde se situam, prioritariamente, os trabalhos de Luís Silveirinha, existindo numa plataforma de imaginário convicto. E que não seja alheia a evocação do Bestiario2 (1951), de Julio Cortázar e do Livro dos Seres Imaginários (1957), de Jorge Luís Borges com Margarita Guerrero, onde se

1 Michel Maffesoli, Imaginaire et Postmodernité, Paris, Ed. Manucius, 2013, p.5

2 “El “bestiario” constituye uno de los tópicos alegóricos fundamentales de la Edad Media, y a partir de

su lectura es posible reconstruir las relaciones que el hombre medieval mantenía con la naturaleza, y al

mismo tiempo nos permite localizar su posición en el esquema general de las cosas creadas. Junto a esta

zoología simbólica, debe situarse también aquella medicina imaginaria, y al igual que los bestiarios, la

base de su credibilidad y amplia aceptación surgía de combinar algunas observaciones empíricas con

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relatam os 116 monstros que povoaram (e povoam) narrativas, lendas e erudições, procedendo de substratos mitológicos, religiosos, tanto quanto de criações literárias, filosóficas, enfim…tendo como fonte e denominador comum a capacidade da invenção humana em plenitude fantasmática. A compilação de desenhos pintados que Luís Silveirinha apresenta, não pretende ser um “Bestiário Fantástico”, espécie de concentração de monstros diversificados. A motivação pelas faunas fantásticas atravessa a história da cultura em distâncias geográficas e cronológicas, persistindo pois reside nos domínios do imaginário mais consolidado – pelas vias intauradas do pessoal e do coletivo. As formas concebidas pelo artista português, embora sendo convocativas, de um ou outro poema do Bestiaire ou Cortège d’Orphée de Guillaume Apollinaire3, afirmam-se como seres que mais parecem monstros domesticados, simultaneamente, pela razão e pela intuição: as tartarugas, os pinguins, os pássaros, as avestruzes, o polvo…tanto quanto as plantas efabuladas sugerindo zoomorfias e, mesmo, antropomorfias. Olhando as ilustrações de Raoul Dufy para os poemas de Apollinaire contemplam-se composições imbricadas, significativamente denotativas, de seres imaginários, de animais e das figuras históricas e mitológicas paras os quais remetem. Apollinaire é (ele mesmo o poeta) Orpheu, desfilando através das suas frases, os animais fantásticos (e reais) que o herói grego seduziu e docilizou.

« La Tortue » Du Thrace magique, ô delire! Mes doigts sûrs font sonner la lire Les animuax passent aux sons De ma tortue, de ma chanson. « Le poulpe » Jetant son encre vers les cieux, Suçant le sang de ce qu’il aime Et le trouvant délicieux, Ce monstre inhumain, c’est moi-même. 4

No inventário que Luís Silveirinha nos propicia encontram-se, exatamente, polvos e tartarugas que acredito serem de linhagem e tomando como ascendentes desconhecidos os poemas pequenos de Apollinaire. Eis a comprovação de como as imagens pregantes, repercutem na maior atualidade. É a instituição de um mundo de seres imaginários que procuram identidade e se afirmam em autonomia precisa e nítida: quer sejam figuras pormenorizadamente traçadas (de valência pictogramática e ideogramática), quer quando são fruto de ações libertadas por gestos “impensados” (de valência psicogramática).

propósitos morales y religiosos, y todo ello, en el marco de una profusa y abundante imaginería.” Virginia

Naughton, Bestiario medieval, Buenos Aires, Quadrata, 2005, p. 18. 3 Cf. Guillaume Apollinaire – Alcools suivi de Bestiaire illustré par Rauol Dufy et de Videm Impendere

amori, Paris, Gallimard, 1920, pp.143-176 4 Cf. Apollinaire, Op. Cit., p.146 e p.164; Heribert Wittemberg, “Tradition et Invention dans Le

Bestiaire…, in Trauvaux de Linguistique et de Littérature, Paris, France, 1985, 23 :2, pp.129-145 ;

http://books.google.pt/books?id=QGR0_Lf0UzAC&printsec=frontcover&dq=inauthor:%22Guillaume+A

pollinaire%22&hl=pt-PT&sa=X&ei=m34mUcGCONG7hAe-

m4D4AQ&ved=0CDYQ6AEwAA#v=onepage&q&f=false

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A imagem do polvo já fora anteriormente abordada, na poética de Apollinaire, em “L’Émigrant de Landor Road” (1911), onde em companhia da Medusa passeia ao anoitecer nas águas escurecidas. Saliente-se que os Bestiários medievais tinham objetivos didáticos, cumprindo a função de, através de alegorias e da intensidade das simbologias, explicar (e expandir) o poder de Deus e Suas criações.5 Por outro lado, relembre-se que a história da literatura ocidental configurou uma história literária dos animais, revelada desde Esopo (séc. VI A.C.), Aristóteles (séc. IV A.C.) ou Plínio, o Velho (séc. III D.C.), progredindo até Isidoro de Sevilha (séc. VII D.C.) e os Bestiários Medievais, enriquecidos em complexidade, não esquecendo os relatos (fantasistas, muito frequente) dos viajantes dos sécs. XV e XVI, até se atingirem as obras concebidas nos períodos moderno e contemporâneo. A produção literária corre, lado a lado, à produção pictórica, assim consubstancializando-se em poéticas e ficções escritas e visuais incontornáveis no Ocidente e incorporando elementos procedendo de culturas não-europeias. Atendendo ao panorama literário mais recente, nomeadamente, Maria Esther Maciel fala-nos de “Animalários Contemporâneos” e de “Zoomorfias poéticas”.6 Constata-se a pertinência na contemporaneidade, da subsistência, revitalizada, de motivos, temas e ideias que correspondem às exigências de situação – onde a placidez, rigor e perseverança artística do desenhista, caso de Luís Silveirinha, se manifestam. Nesta compilação, o “desenhista” reúne imagens pensadas de seres que existem pois, efetivamente, são conteúdos pousados nas superfícies. Mas há que escavar para lhes encontrar os sentimentos e reflexões. Talvez, como Leonardo da Vinci enunciou no seu Bestiário, se revelem as definições de afetos, qualidades, virtudes, defeitos ou vícios…aqui subsumidos quer em morfologias quase ignotas, quer através de animais de valência ekfrástica: águia, pelicano, salamandra, avestruz, cisne, perdiz…

Esta transforma o ferro (para as armas, comida dos capitães) – no seu alimento; choca os ovos com a vista.7

Os desenhos, elaborados quase compulsivamente, são uma escrita de percentualidade algo labiríntica que o autor parece querer reservar apenas para si – colocando-nos perante figuras zoomorfas, antropomorfas e vegetais tornadas possíveis. A sua ação dá continuidade à tradição de “reunir em volume” as imagens desenhadas de espécies botânicas, animais…cumprindo propósitos enciclopedistas, que retrocede até à Idade Média, por desígnio dos copistas e iluminadores mais consagrados pela História ou os mais dissolvidos pela “configuração do tempo”: recorde-se Herrade de Lansberg (séc.XII), ilustradora do Hortum Deliciarum, esse magnífico manuscrito, a título de exemplo. No Renascimento, a obsessão pela inventariação e catalogação viu-se acrescida pelas espécies desconhecidas procedendo de supostos “novos” mundos. Nalguns casos,

5 Physiologos foi um dos primeiros Bestiários cristãos, conhecendo-se versões que remontam ao séc. IV.

http://fr.wikipedia.org/wiki/Physiologus; Arnaud Zucker, Physiologos, le bestiaire des bestaires : Texte

traduit du grec, introduit et commenté par Arnaud Zucker, Jérôme Millon, coll. « Atopia »,

2005, 2e éd. (1

re éd.2004).

6 Maria Esther Maciel, “Zoopoéticas contemporâneas”, Remate de Males – 27(2) – jul./dez. 2007,

Universidade Federal de Minas Gerais (BR) 7 Leonardo da Vinci – Bestiário, Fábulas e outros escritos, Lisboa, Assírio & Alvim, 2007, p.22

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viam-se agregadas de elementos visuais de cariz alquímico e hermético (o próprio Apollinaire se referiu, precisamente a Hermes Trimegisto, no seu Bestiaire). E assim, se observam e contemplam as vitrines nos museus, onde as coleções minuciosamente dispostas, demonstram a capacidade de tantos e tantos recoletores e colecionistas, tanto quanto a daqueles artistas que as “trataram”. Autores que inventaram, para lá da invenção dos outros, por vezes em situações de sincronismo. A obsessão científica que obriga a inventariação e consequente catalogação foi cumprida durante muitos séculos por desenhistas que, exercendo a acuidade do ínfimo detalhe, registavam e, igualmente, potencializavam em tipologias “estéticas”, os mais complexos e insuspeitos espécimes botânicos, da zoologia, da mineralogia, enfim tudo aquilo que era digno de perdurar no tempo, com a devida propriedade epistemológica salvaguardada. Articula-se com as conquistas dos arqueólogos, assim como se relaciona com uma análise reflexiva para enquadramento antropológico cultural, em particular, no foro das teorias do simbólico – seus fundamentos e estruturas (Gilbert Durand dixit). Não será por acaso que na “Grelha das estruturas de Durand, o Bestiário está indexado à “estrutura heróica” (ou diarética), baseada nos princípios de separação, purificação, exclusão, contradição…cúmplice da oposição noite-dia, da queda e das ferramentas da luta. Os desenhos, por assim dizê-lo, domesticam as existências potenciais (e suspensas) do imaginário, tanto quanto são domesticados por elas, ao atribuir-lhes novas configurações. Nos desenhos apresentados em Jardim do Éden: o Inventário (parte 1), existem preenchimentos e vazados que se complementam, vidências do noturno e do diurno. Visando uma confluência intrínseca, pela sua iconografia, quase ascendem a uma coincidência dos opostos (Nicolau de Cusa). Confrontam-se as polaridades distantes, relacionáveis à interpretação simbólica dos animais focados: suas anamorfoses, transfigurações ou deturpações de uma beleza grotesca. As remissões para a filosofia do Imaginário, lembram a perspetiva de Gaston Bachelard (que Durand assinalou devidamente), ao sublinhar a força dinâmica da imaginação, capaz de transformar as cópias pragmáticas fornecidas pela perceção, sendo um mimetismo desconfigurador dinâmico/ativo das próprias sensações: tornando-se, pois, o fundamento de toda vida psíquica. Resolvendo um paradoxo que não o é, Luís Silveirinha, exprime nos seus trabalhos a ânsia de genuinidade que a razão não deve corromper. Com o poeta do interior de Góias, esse que escreve poemas maravilhosos acerca da simplicidade das coisas, sabe-se que:

“…Para entrar em estado de árvore é preciso partir de um torpor animal de lagarto às 3 horas da tarde, no mês de agosto. Em 2 anos a inércia e o mato vão crescer em nossa boca. Sofreremos alguma decomposição lírica até o mato sair na voz. Hoje eu desenho o cheiro das árvores.”8

8 Manoel de Barros, “Uma Didática da Invenção”, O Livro das Ignorãnças, Rio de Janeiro, Ed. Record,

2001, 17

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Há que entrar no desenho e vestir-lhe a pele. Os desenhos mínimos e intrincados revelam-se, afinal, figuras simples, límpidas ainda que recheados de ambiguidades e possuindo camadas de significações – que desventram ambos imaginários (como antes se referiu). O imaginário racionalizado do autor (onde se incluem todos os imaginários que assimilou e articulou ao seu) e as estabilizações de imaginários coletivos: está-se perante o conhecimento mitopoético, o conhecimento mitológico, o conhecimento simbólico que atravessam os tempos. Existe sobreposicionalidade entre o antropomórfico – que quase chega a ser de autoreferencial – e as cosmogonias minuciosas. Caso manifesto é um dos desenhos de grande formato onde um mundo de civilizações e tempos preenche – horror vaccui dixit… - um contorno aparentemente zoomorfo ou vegetal. O continente é conteúdo e vice-versa que se apropria dos mundos a serem muitos. Maria de Fátima Lambert Fev.2013