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CADERNO 4° FESTIVAL DE HISTÓRIA - DIAMANTINA ZEZÉ MOTTA E A DIMENSÃO SIMBÓLICA DE CHICA DA SILVA PÁGINA 3 LIRA NETO “O SAMBA DÁ HISTÓRIA“ PÁGINA 10 RODRIGO PATTO E A “HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE“ PÁGINAS 6 e 7 ANGELO CARRARA E OS “TESOUROS ESCONDIDOS” PÁGINA 4 TITANE PÁGINA 12 MULHERES PÁGINA 9 PATRIMÔNIO CULTURAL PÁGINA 4 PAULO BETTI PÁGINA 11 A História viva Evento único no Brasil do ofício, da literatura e das artes de contar a História, o Festival de História (fHist) nasceu em Diamantina em 2011 e chegou à sua quarta edição esbanjando conteúdos. Entre os dias quatro e sete de outubro, o 4º fHist promoveu na bela paisagem cultural da cidade Patrimônio Mundial 35 atrações, de mesas de debates a minicursos, oficina e prosas com autores, de rodas de conversa a espetáculos de dança, música e teatro. A edição 2017 teve como tema a “História a Quente”, do tempo presente, e reuniu frente a frente com o público na Tenda da História, escritores, historiadores, jornalistas, mestres da cultura popular e artistas consagrados. Neste Caderno fHist, conheça o Festival de História. FOTOS: PEDRO MIRANDA / FHIST TENDA DA HISTÓRIA DO 4º FHIST.

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C A D E R N O

4 ° F E S T I V A L D E H I S T Ó R I A - D I A M A N T I N A

ZEZÉ MOTTA E A DIMENSÃOSIMBÓLICA DE CHICA DA SILVA PÁGINA 3

LIRA NETO“O SAMBA DÁ HISTÓRIA“ PÁGINA 10

RODRIGO PATTO E A“HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE“PÁGINAS 6 e 7

ANGELO CARRARA E OS “TESOUROSESCONDIDOS”PÁGINA 4

TITANE PÁGINA 12MULHERES PÁGINA 9PATRIMÔNIO CULTURAL PÁGINA 4 PAULO BETTI PÁGINA 11

A História viva

Evento único no Brasil do ofício, da literatura e das artes de contar a História, o Festival de História (fHist) nasceu em Diamantina em 2011 e chegou à sua quarta edição esbanjando conteúdos. Entre os dias quatro e sete de outubro, o 4º fHist promoveu na bela paisagem cultural da cidade Patrimônio Mundial 35 atrações, de mesas de debates a minicursos, oficina e prosas com autores, de rodas de conversa a espetáculos de dança, música e teatro. A edição 2017 teve como tema a “História a Quente”, do tempo presente, e reuniu frente a frente com o público na Tenda da História, escritores, historiadores, jornalistas, mestres da cultura popular e artistas consagrados. Neste Caderno fHist, conheça o Festival de História.

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TENDA DA HISTÓRIA DO 4º FHIST.

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2 3 Caderno Caderno B I O G R A F I A

Viver, sentir, debater e ce-lebrar o ofício, a literatura e as artes de contar a História é a proposta que guia o Festival de História desde o seu nascimen-to em Diamantina, em 2011. Concebido no âmbito do Insti-tuto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e da Revista de História da Biblioteca Nacional, o fHist surgiria então naquele ano, sob o desafio de criar um palco inédito no Brasil de convergência de estudos e pesquisas pautadas pela di-mensão transversal da História, e de expressões artísticas e culturais que tivessem também como foco temas históricos.

Já na primeira edição, os resultados mostraram que a aposta estava certa, que o in-teresse crescente da sociedade brasileira pelos temas da Histó-ria demandava urgentemente a criação de novos espaços e palcos para a democratiza-ção dos conhecimentos, que ultrapassassem as fronteiras das universidades. O formato criado para o Festival também agradou. Na Tenda da História, 18 mesas de debates reuniram

frente a frente com a platéia grandes nomes da historiogra-fia e da literatura, enquanto as oficinas de História, a livraria e os lançamentos com prosa com os autores no Mercado Velho, os shows e exposições atraíram também centenas de partici-pantes de todo o País.

2013 foi o ano da conso-lidação do fHist como evento bienal singular na cena his-tórica/cultural do País. Tendo como eixo temático “Histórias não contadas”, o Festival re-petiria o formato de sucesso da primeira edição, realizando nada menos do que 20 mesas de debates na Tenda, agora com a participação de convi-dados internacionais, além das oficinas de História, dos lançamentos com prosa, de shows e exposições que ocu-param mais uma vez diversos espaços da bela paisagem cul-tural de Diamantina.

Em 2015, a terceira edição do fHist atravessou o Atlânti-co, ganhando uma versão em Braga, Norte de Portugal. Com o mote “Diálogos Oceânicos”, as duas etapas do 3º Festival,

primeiro na cidade portugue-sa e depois em Diamantina, ofereceriam ao público 21 mesas de debates, dezenas de oficinas, lançamentos com prosa, exposições e espetácu-los. 2015 seria ainda marco da

consolidação do fHist como canal de comunicação e di-fusão dos temas da História, com a transmissão ao vivo das mesas de debates pela Internet e da disponibilização de seu acervo de informações

pelo portal oficial e em redes sociais, bem como em publi-cações especiais.

Mas nada disso teria acon-tecido sem o apoio e engaja-mento dos meios acadêmicos, dos professores e autores, dos participantes e das instituições que acreditaram que havia es-paço para a construção no País de uma Festival que celebrasse a História. Reside aí, com cer-teza, a fórmula de sucesso das edições bienais do Festival de História; o que nos estimula a sonhar com o 5º fHist em 2019.

E D I T O R I A L

Na etapa portuguesa do 3º fHist, realizado em Braga em 2015, a ex-es-crava estava ao lado de um poderoso primeiro-ministro, que também viveu no século XVIII, na mesa “Paralelos biográficos: o Marquês de Pombal e Chica da Silva”. Estudiosa da vida de Chica da Silva, a historiadora Júnia Furtado, que já havia falado sobre ela em Diamantina na primeira edição do Festival em 2011, encarregou-se de desvendar a sua biografia para os portugueses em Braga, ao lado do co-lega britânico Kenneth Maxwell, e dos investigadores da Universidade Nova de Lisboa Nuno Gonçalo Monteiro e Roberta Stumpf.

No 4º fHist em 2017, seria então a vez da dimensão simbólica de Chica da Silva ganhar o palco do primeiro dia da Tenda da História, com as pre-senças da atriz e cantora Zezé Motta e do diretor do Teatro Santa Izabel, Frederico Silva Santos, um apaixo-nado confesso pela personagem, na mesa de debates mediada pelo jor-nalista Otto Sarkis, da coordenação do Festival. E se há como precisar uma data para a emergência do mito Chica da Silva, ela estaria situada

O filme “Xica da Silva” marcou a história do cinema brasileiro nos anos 70. Qual foi o im-pacto em sua carreira?

Antes do filme, eu não era conhecida, não era uma atriz popular. A Chica da Silva me tornou po-pular no Brasil e no mundo. Foi madrinha da can-tora Zezé Motta também. Choveram gravadoras e empresários interessados. E eu pensava: ai, meu Deus do céu, há tanto tempo eu tentava imprimir o meu nome, Zezé Motta, e agora que aconteceu algo tão bom, as pessoas me chamam de Chi-ca... (risos). O filme teve uma importância muito grande também porque naquela época a imagem da Chica da Silva era um negócio meio folclórico. Ela só era lembrada no carnaval. A Salgueiro teve uma personagem que todo ano se vestia de Chica da Silva e passou a ser uma personagem fixa dessa escola de samba. A partir do filme, foram surgindo mais livros, pesquisas, debates, polêmicas, críticas que finalmente transformaram o mito em realida-de. Eu me identifiquei de cara com a Chica da Silva, na medida em que também sou uma mulher negra e de origem pobre.

Como “Xica da Silva” se insere no movimen-to contra o racismo e o preconceito no Brasil?

O filme e a personagem, creio, foram capitais para o crescimento da luta de nossa raça contra o preconceito. As pessoas ficam me perguntando se, de 40 anos para cá, quando o filme foi feito, as coisas mudaram, se mudaram para melhor ou se estacio-naram. Claro que na mídia a coisa mudou. A gente já

vê os produtores e diretores um pouco mais preocu-pados com o espaço do negro na mídia. A gente já vê negros na mídia com destaque. Mudou sim, mas ain-da temos muito luta pela frente. Ainda temos muitos atores negros marginalizados. Não só atores, mas em todos os setores ainda temos negros marginalizados. Principalmente a mulher negra. Temos aí outra luta que a gente vai ter que é a questão do salário. A mu-lher ganha menos que o homem. A mulher negra ganha menos que um homem negro e esse que os brancos. Aos poucos, as coisas vão mudando.

Mas o preconceito é ainda muito forte...Sim. Às vezes eu fico meio triste, porque quan-

do a gente dá alguns passos para frente, vêm outros puxando para traz. Porque a gente tem presenciado, tem testemunhado os negros atores sofrerem violên-cia nas redes sociais, os atletas sofrerem violência e agressões no exercício do seu trabalho. Então, quan-do vejo estas coisas, eu digo: “Meu Deus, isto não vai acabar nunca?” Mas ai a gente tem respirar fundo e lembrar que a luta continua. Por isto mesmo, eu achei maravilhosa a ideia deste festival e nem pes-tanejei para aceitar o convite, de jeito nenhum, até porque eu já estava com saudades de Diamantina.

Além de interpretar a “Mãe Quilombo” na

novela “O Outro lado do Paraíso”, você está na estrada cheia de novos projetos. De onde você tira tanta energia?

Eu continuo na luta ocupando todos os espaços. Está saindo um novo CD, “O Samba Mandou Me Chamar”. Tem

também a estréia de um novo filme, a “Comédia Divina”, em que eu faço simplesmente Deus! É baseado num livro de Machado de Assis, com direção de Toni Venturi. Quem faz o Demônio é o Murilo Rosa e temos um elenco maravilhoso. Tem ainda um livro de memórias que será lançado em 2018. Na novela “O Outro Lado do Paraíso”, de Walcyr Carrasco, estou muito feliz com a minha per-sonagem. Pela primeira vez, o tema dos quilombos do Brasil está sendo tratado num horário nobre por este veículo, que é um canal poderoso. O Walcyr denuncia a situação marginal que os quilombolas vivem hoje. Não têm médicos, não têm professores por perto, não têm sa-neamento básico. Enfim, as pessoas nem sabem que aqui no Brasil temos mais de três mil quilombos. Isso é muito importante para mostrar que estas pessoas têm que ser respeitadas, como seres humanos e cidadãos brasileiros.

A dimensão simbólica de Chica da Silva

Com a palavra, a rainha negra do Brasil

Desde o primeiro Festival de História, fatos e mitos sobre a vida de Francisca da Silva de Oliveira, a famosa ex-escrava que viveu em Diamantina na segunda metade do século XVIII, têm sido investigados em mesas de debates de suas edições bienais.

Talvez a lembrança histórica de Diamantina possa começar a ser contada também a partir da emblemática personagem Chica da Silva. Nascida em Milho Verde, distrito do Serro, em 1732, ela foi uma escrava, posteriormente alforriada, que viveu no então Arraial do Tijuco e manteve durante 15 anos uma união com o rico contratador dos diamantes João Fernandes de Oliveira, tendo com ele 13 filhos. O fato de uma escrava alforriada ter atingido uma posição de destaque na sociedade local durante o apogeu da exploração de diamantes deu origem a diversos mitos. Os mitos, felizmente, viraram “História a Quente” com a realização do filme “Xica da Silva”, lançado por Cacá Diegues em 1976, e que ganhou as telas e aplausos pelo mundo todo. Portanto, ninguém melhor para falar do mito do que a protagonista do filme, a atriz e cantora carioca Zezé Motta, para quem o trabalho foi um divisor de águas na sua carreira.

mais de 60 anos após a sua morte, pela pena ferina de Joaquim Felício dos Santos. No clássico “Memórias do Distrito Diamantino”, publicado em 1868, o autor traça em dois ca-pítulos o perfil de uma personagem voluntariosa e sedutora, cujos dese-jos e vontades eram satisfeitos sem pestanejar pelo contratador João Fernandes de Oliveira.

“Chica são muitas, não é uma única mulher, não é um único mito. Ela é transversal na cultura brasileira”, afirmou Frederico Silva Santos, para quem isso se comprova pela multi-plicidade de produções sobre ela. Na literatura brasileira, ele destacou que entre 1955 e 2000 foram lançados sete livros sobre Chica da Silva, desde romances a peças de teatro e obras

fundamentadas em fatos históricos. Já entre 2000 e 2016, ocorreria uma nova leva de produções literárias sobre a es-crava alforriada pelo rico contratador, agora com o diferencial de que quatro das oito obras publicadas terem sido escritas por mulheres, entre os quais “Chica da Silva e o contratador dos diamantes - o outro lado do mito”, de Júnia Furtado, lançado em 2003.

Contudo, o premiado filme “Xica da Silva” seria o meio definitivo para a popularização da personagem. “A Chica é a minha fada madrinha e dá sorte pra muita gente. A vida da Thaís Araújo também mudou depois que ela fez a Chica da Silva na nove-la. Então, foi um presente, um astral, eu ter vivido essa personagem”, re-verenciou Zezé Motta.

RICARDO CAMARGOS

“PARALELOS BIOGRÁFICOS: O MARQUÊS DE POMBAL E CHICA DA SILVA”, NO 3º FHIST EM BRAGA, PORTUGAL. “CHICAS DA SILVA, HISTÓRIA E MITO “ COM ZEZÉ MOTTA, NA ABERTURA DO 4º FHIST, EM DIAMANTINA.

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“Chica são muitas, não é uma única

mulher, não é um único mito. Ela

é transversal na cultura brasileira”

FREDERICO SILVA SANTOS

4º Festival de História

CoordenaçãoStratégia Cultura e

Comunicação e Nota Comunicação

PatrocínioCaixa Econômica Federal

ApoioCEMIG

ParceriasComissão Mineira de

FolclorePrefeitura Municipal de

DiamantinaSuperintendência do IPHAN Minas Gerais

Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e

Mucuri/História

Produção ExecutivaDupla Promoções

Agência Oro Comunicação

Inscrições/Correios eletrônicosHBA Tecnologia

Caderno fHist

COORDENAÇÃO EDITORIA: AMÉRICO ANTUNES | REDAÇÃO: CÂNDIDA CANÊDO, RICARDO CAMARGOS E FELIPE CANÊDO | FOTOGRAFIAS E DESIGN GRÁFICO: PEDRO MIRANDA

Boa parte dos historiadores e estu-diosos tem uma resposta na ponta da língua para a pergunta do título deste artigo. Porque conhecer e estudar His-tória “é essencial para formar indivíduos com senso crítico em relação ao mundo no qual estão inseridos”, pontua o mes-tre Ronaldo Vainfas. Ou porque a “His-tória nos ensina a viver”, responde, por sua vez, o historiador Bóris Fausto, para quem o individuo que “não conhece de onde veio, socialmente e coletivamente, não é um cidadão por inteiro”.

De fato, a ignorância do papel dos atores e dos processos da História é um desastre tanto para a cidadania quanto para a própria democracia, como teste-munhamos hoje no Brasil com os golpes dentro do golpe, que se sucedem ao im-peachment da presidenta Dilma Rousseff em 2016, e a propagação da cultura do ódio e da intolerância de cunho neofas-cista, fora e nas redes sociais. Olhando em retrospectiva, é como se as nefastas turbulências e rupturas das décadas de 1930, 1950 ou 1960 fossem apenas pági-nas esquecidas de pergaminhos antigos, de pouca ou nenhuma utilidade, e a His-tória um passado morto.

Mas conhecer a História assegura que erros do passado não sejam repetidos no presente ou no futuro? Claro que não, até mesmo porque a História não se repete e está sempre em movimento. O que o conhecimento do passado pode ofere-cer-nos é um conjunto de informações e testemunhos sobre fatos e caminhos tri-lhados em determinado momento pelas sociedades e que, interpretados em toda a sua complexidade e dimensões histó-ricas, ajudam a refletir sobre o presente, alertando sobre o que deve ser visto com cuidado ou evitado.

Portanto, não há então como re-fletir sobre tempos tão sombrios como os que o País atravessa hoje, desconhe-cendo contradições e legados de uma sociedade historicamente desigual, ain-da fortemente marcada pela exclusão econômica, social, racial e cultural de milhões de brasileiros. E é exatamente a investigação da História em todas essas dimensões que a torna matéria impres-cindível e obrigatória no presente, para a sensibilização e a formação de cidadãos críticos e “por inteiro”.

Como ensinou Angelo Carrara no 4º fHist em Diamantina, o historiador “não fala do passado pelo passado. O que a gente faz é conversar com o passado”, para refletir sobre o presente.

* Jornalista e coordenador do fHist.

Os desafios das narrati-vas da História em tempos acelerados pela velocidade da circulação de informações, foi a “História a Quente” do 4º Festival de História, realizado em Diamantina de quatro e sete de outubro de 2017. En-tre mesas de debates, aulão, minicursos, oficina, rodas de cinema e música, livraria e prosa com autores, espe-táculos de música, dança e teatro, foram 35 atividades oferecidas durante os quatro dias do evento que contou com a participação direta de mais de dois mil professores, historiadores, estudantes e

interessados em temas his-tóricos, como revelam os nú-meros do 4º fHist.

Em um cenário de enor-mes dificuldades para a produ-ção cultural como a que o País

atravessa hoje, esta dinâmica programação apenas tornou-se realidade pelo apoio de instituições que são parceiras do Festival de História desde as primeiras edições, como a Pre-

feitura de Diamantina, o curso de História da Universidade Federal dos Vales do Jequiti-nhonha e Mucuri (UFVJM), o IPHAN e o professor e deputa-do Durval Ângelo, entusiasta do Festival.

Além disso, o 4º fHist não teria saído do papel sem o patro-cínio da CEF e o apoio da CEMIG.

Com o Caderno fHist, nossos repórteres resgatam agora, no papel e em versão disponível no portal na Internet, um pouco das histórias e das emoções que marcaram a programação do 4º Festival de História em Diaman-tina em 2017.

Boa leitura!

Por quêHistória? Viver e sentir a História

A “História a Quente” do 4º fHist

AMÉRICO ANTUNES*

minicursos e oficina inscritos

inscritos

inscritos

convidados

visitantes

rodas de conversa,cinema e músicaespetáculos de música,teatro e dança

prosas com autores nalivraria do fHist

mesas de debates e atividadesna Tenda da História

autores, conferencistas e artistas convidados

10 40838

3 1143 985 748

13 890

Caderno

festivaldehistoria.com.br facebook.com/festivaldehistoria youtube.com/fhist2011 twitter.com/ofhist instagram.com/ofhist [email protected]

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A ATRIZ NA CASA DE CHICA DA SILVA

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5 Caderno Caderno4 Caderno H I S T Ó R I A E J O R N A L I S M O

A História pelas lentes de historiadores e jornalistas

A literatura sempre exerceu fascínio sobre os jornalistas. Nos úl-timos anos, isso se intensificou, sur-gindo uma leva de livros de jornalis-tas sobre temas históricos, como os de Lira Neto, Mário Magalhães, Lau-rentino Gomes entre tantos outros. A que você atribui esse boom?

Entendo que esse boom foi ali-mentado pelo próprio sucesso dos jornalistas que se aventuraram pela História, como o pioneiro Fernando Morais, depois Eduardo Bueno e ao final Laurentino Gomes, certamente o mais bem sucedido. A iniciativa destes jornalistas que, sem abandonar o rigor histórico, optaram por textos mais li-vres, encontrou um público ávido por conhecimento, desde que de forma mais divertida. Sem amarras e sem a necessidade de parar a cada parágrafo, citar a referência, a fonte, o texto jorna-lístico populariza a História. Isso é bom para todos, e a própria academia passa, em algum momento, a produzir livros voltados para o público mais amplo.

Nas suas três primeiras edições, o fHist dedicou-se a esmiuçar as re-lações entre jornalismo e História e vemos que o tema é polêmico. Na academia, não são poucos os his-toriadores que vêem com reserva os livros de História escritos por jor-nalistas, sob a crítica da superficia-lidade e até mesmo parcialidade...

É natural que, no primeiro mo-mento, a academia sinta-se invadida em sua “reserva de mercado”. E até violentada pelo que considera pouco rigor na apuração e na difusão. Mas o tempo vem trazendo outro efeito, o acadêmico também buscando ampliar o público, com livros que miram fora do circuito fechado. Por outro lado, a pes-quisa histórica feita pelos jornalistas, em sua maioria, não apresenta tantos “furos” que subsidiem a reclamação inicial dos historiadores. Preservando o espaço da boa polêmica, há que se con-cluir que o boom da literatura histórica é vantajoso para os dois lados.

Apesar de ressaltar as dife-renças entre cada ofício, a histo-riadora Heloísa Starling afirmou no fHist 2015, em Braga, que quando historiadores e jornalistas se aliam na produção de conheci-mentos o resultado é muito bom. Seria por aí?

Claro, o que Heloísa disse já é re-sultado de um novo movimento que surge, a pesquisa histórica e o texto jornalístico em busca de uma produ-ção conjunta. Nesse contexto, mais que nunca quem ganha é o leitor, seja estudante, acadêmico ou simplesmen-te um interessado pelo tema, que é a grande maioria dos consumidores destes livros. Talvez o maior resultado positivo da “popularização” da História

seja, a médio prazo, um crescimento da consciência crítica da cidadania. O co-nhecimento do passado é fundamental para o entendimento do presente e a perspectiva do futuro; é o que temos dito a cada ano na difícil batalha para viabilizar o Festival.

A imprensa como fonte histórica é outro aspecto polêmico. No fHist 2013, em Diamantina, os jornalis-tas Paulo Markun, Fernando Morais e Ricardo Kotscho não pouparam críticas ao colaboracionismo da im-prensa com a ditadura militar...

O pesquisador deve saber contex-tualizar os documentos de época. Da ditadura, os jornais trazem visões às vezes contraditórias, até em função da posição mais ou menos alinhadas de cada um. Como fenômeno histórico, a imprensa tem até mais representa-tividade do que como documentação. Como contar a história brasileira da segunda metade do século XX sem os personagens Assis Chateaubriand e Roberto Marinho? São agentes históri-cos, fizeram da indústria da mídia um instrumento de poder e, como tal, seus jornais devem ser lidos pelo historia-dor. Toda a História deve ser revista, a cada momento, através das novas con-textualizações que vão sendo obtidas a partir do conhecimento. A historio-grafia sempre teve hegemonicamente a documentação de um dos lados, o “vitorioso”. Nem por isso a História não pode ser contada do ponto de vista do “derrotado”. Para isso, existe a pesqui-sa, a reflexão, o trabalho do historiador ou do jornalista que reporta a História.

Com passagem pelos principais grupos de mídia do País, Otto Sarkis exerceu o jornalismo como repórter e empreendedor por quase 40 anos. Em sociedade com um destes grupos, criou o “Caderno de Brasília”, que dirigiu por 12 anos. Há cinco anos, foi obrigado a vender a sua participação no caderno, dedicando-se à empresa Hplus Hotelaria, que havia fundado em 2003, e hoje é líder do segmento em Brasília, em expansão para outras capitais. Embora absorvido pela hotelaria, Otto continua envolvido nas causas diamantinenses desde a campanha que levou a cidade a conquistar o título da UNESCO de Patrimônio Cultural da Humanidade. Entre elas, está o Festival de História, que considera a “volta ao porto de origem”, ou seja, ao jornalismo. “Entendo o jornalismo como produção de informação para a reflexão da sociedade. Um instrumento que deveria ser sempre, e não o é, libertador”, afirma.

Mas houve exceções, não é mesmo?

Tivemos a imprensa chamada alter-nativa, que para nossa geração escreveu a mais heróica e gloriosa página do combate à ditadura. À distância, como documento histórico, deve ser lida com o mesmo critério, contextualizada, de forma a se entendê-la não como docu-mento incontestável, mas como contra-ponto à chamada grande imprensa. Há que se lembrar que nos estertores da di-tadura a chamada imprensa alternativa foi implodida nos atentados às bancas que vendiam aqueles jornais. Na ver-dade, o que podemos constatar é que o projeto estratégico - a implantação de um proto-capitalismo que instrumen-talizasse o Estado para uma minoria que exerce de fato o poder - pode ser alcançado, incluindo aí a retirada dos militares de cena, a partir dos instru-mentos hegemônicos da mídia “oficial”, robustecida por uma televisão quase monopolista, surgida exatamente da-quele projeto estratégico.

Com a Internet, temos assisti-do à decadência dos meios impres-sos. Há quem diga que jornais e re-vistas estão com os dias contados. Qual a sua opinião?

Para o bem e para o mal, desin-ventou-se Gutemberg, 500 anos depois que ele inventou a prensa. A Internet é o novo meio que (lembram-se de Marshall McLuhan?) confunde-se to-talmente com a mensagem. É território livre e caótico. Destrói os grandes mo-nopólios, mas permite o surgimento de outros ainda mais poderosos, como Google, Facebook e demais atores nes-se novíssimo cenário. O impresso, como meio de veiculação diária de notícias, tende mesmo a desaparecer, pelo menos no modelo que conhecemos. O jornal diário vai terminando, mas não dá para saber ainda se será substituído por portais que produzem informação escrita, porque para esses não há ain-da um modelo de financiamento que publicidade e assinatura garantiam na antiga mídia impressa.

O curioso é que na circulação de livros o quadro parece inverso ao da mídia impressa. Ou será que o livro está também com os dias contados?

Há quem goste da leitura dos li-vros nos tablets, mas me parece que o conforto do livro impresso, com a pos-sibilidade de ir e voltar, rabiscar, mar-car a orelha da página, deixar do lado enquanto se começa outro, voltar a consultar, garante essa especificidade. O que, de certa forma, pode também propiciar a permanência das revistas, que tem um tipo mais nobre de papel, que pressupõe mais tempo de vida, portanto, um conteúdo que não vira papel de embrulho no dia seguinte, como os jornais.

“Sem amarras e sem a necessidade

de parar a cada parágrafo, citar a

referência, a fonte, o texto jornalístico

populariza a História”

Em 2011, a produção de literatura histórica para grandes pú-blicos provocou acalorados debates no primeiro fHist, sob a batuta do polêmico jornalista Eduardo Bueno e do colega Lucas Figueiredo, do romancista Sérgio Bandeira de Mello e do histo-riador Oldimar Cardoso.

HISTÓRIA PARA MUITOS

Em 2013, foi a vez das biografias escritas por jornalistas e da História da ditadura e da imprensa ganharem as mesas do se-gundo Festival, sob o comando de jornalistas e escritores con-sagrados, como Mário Magalhães, Lira Neto, Ricardo Amaral, Fernando Morais, Paulo Markun e Ricardo Kotscho

HISTÓRIAS NÃO CONTADAS

No fHist 2015 em Braga, as fronteiras entre o ofício dos historia-dores e dos jornalistas escritores estariam novamente no centro dos debates, na mesa conduzida pelo historiador Ricardo Said, pelo professor italiano Luca Bachini e pelos jornalistas Sinval Itacarambi Leão, Lucas Figueiredo e Fernando Morais.

UNIVERSOS LITERÁRIOS

FELIPE CANÊDO

“Cultura popular, Patrimônio e História são um tripé insepará-vel. Quando se aborda a cultura popular em qualquer ponta dela, nós estamos também nos remetendo à História. E quando nós falamos de patrimônio, o que nos pertence como cultura só sobrevive por causa de uma viga central que é o patrimônio vivo”, advoga o mestre de capo-eira, dançarino e coreógrafo afro, João Bosco Alves da Silva, o Mes-tre João. Sua assertiva, um tanto provocadora durante a mesa “Patrimônio Cultural em Ques-tão” no 4º Festival de História, encontrou acolhida nas falas do secretário de Estado da Cultura, Ângelo Oswaldo, da superin-tendente do IPHAN em Minas, Célia Corsino, e da secretária de Cultura de Diamantina, Márcia Bethânia de Oliveira Horta.

“Falar de patrimônio hoje é falar mais do que apenas sobre História. É difícil dizer isto, mas nós queremos o congado na Igreja do Rosário aqui de Diamantina em igual valor à própria igreja”, con-cordou Célia Corsino. “O patrimônio deve se dimensionar no cotidiano dos cidadãos e da sociedade. Sem patrimônio cultural nós não pode-mos falar em meio-ambiente, eco-

logia, urbanismo, planejamento urbano, melhoria da qualidade de vida das pessoas. Daí a importân-cia e a urgência do debate sobre patrimônio, e sobre a inserção do conceito de patrimônio no plane-jamento municipal e na vida das cidades”, ponderou, por sua vez, Ângelo Oswaldo.

Entusiasta das sabedorias populares, Mestre João chamou atenção para a situação dos mestres de cultura popular, que muitas vezes ficam desampara-dos pelo Estado, sem conseguir se aposentar, enquanto o patrimô-nio material recebe maior aten-ção dos orgãos públicos. “Toda cultura popular no nosso país

passa pelo corpo. A corporeidade é nosso arcabouço de ancestrali-dade, de conhecimento, de trans-missão de saberes. E também de manutenção de uma série de produções, de energias, de valo-res humanos, como cooperação, entendimento e reverência aos mais velhos”, defendeu.

Corsino ressaltou que há uma postura mais atenta a essas questões após o aniversário de 80 anos do Iphan em 2017. “O patrimônio é melhor conhecido e melhor preservado quando ele é referência para um grupo. Já quando é um externo, um espe-cialista externo que vem colocar o olhar naquele patrimônio, e es-

tabelece um valor cultural que a comunidade não reconhece, esse patrimônio a gente tem mais di-ficuldade de preservar”, explicou.

Em consonância com o dis-curso da superintendente, Ân-gelo Oswaldo também chamou atenção para a efeméride: “É muito importante estar discutin-do história e patrimônio em Dia-mantina nos 80 anos do Iphan. E nesse momento de dificuldades para a gestão da cultura no País, é muito importante que nós possamos debater a questão do patrimônio cultural e reafirmar o compromisso dos brasileiros com um patrimônio que pertence a cada um de nós e a todos.”

Tesouros em arquivos antigos

A cultura popular pede passagem

“As sociedades quentes seriam aquelas que possuiriam escrita, enquanto as frias não. Isso é uma distinção da antropologia que para nós historiadores não faz muito sentido hoje. Quando a gente trata de arquivos, normalmente eles estão escritos. Mas, mesmo quando estão es-critos, registram uma oralidade. A cada revelação descoberta em uma documentação escrita há uma História à quente”, afirma o historiador e professor da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Álvaro Araújo Antunes.

“Não há uma História fria. Nenhuma história é fria. Não existe uma História sem lado. E disso nenhum historiador tem como escapar”, completou An-gelo Carrara, historiador e pro-fessor da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Ambos docentes, estiveram presentes na mesa “Tesouros Escondidos em Páginas Antigas”, no 4º fHist, assim como a historiadora e professora da Universidade Federal dos Vales do Jequiti-nhonha e Mucuri, Ana Cristina Pereira Lage.

Para Carrara, a história serve para traçarmos reflexões sobre o presente: “A gente não fala do passado pelo passado. O que a gente faz é conversar com o passado. No caso particular do Brasil, que viveu 388 anos de escravidão, por exemplo, você não consegue dizer simples-mente que a escravidão termi-nou no dia 13 de maio de 1888 e no dia 14 todos acordamos li-

vres, maravilhosos e felizes, nos abraçando, com uma sensação de igualdade. Isso não é possí-vel”, ironizou.

Sobre os encantos da Histó-ria, Antunes ponderou: “quando a gente efetivamente descobre algo, a sensação é como se ti-vessemos ganhado na loteria. É algo extremamente enrique-cedor, não só para nossos an-seios, mas porque sabemos que aquilo vai dar uma contribuição para a História. E nesse sentido, a gente tenta, através das nos-

sas descobertas e do que a gen-te diz, fazer com que aquilo seja lembrado. Acho que essa é a grande magia da História: uma tentativa de burlar a morte a todo momento. Ou de aprender a lidar com ela.”

Documentos da Masmorra

Por sua vez, a professora Ana Cristina Lage apresentou um histórico de um trabalho do Laboratório de Organização de Documentos Históricos da

UFVJM em parceria com a UFJF, coordenado por Carrara, que catalogou centenas de docu-mentos do século XIX e do iní-cio do século XX guardados em Diamantina. Eles foram locali-zados em uma área do antigo internato feminino do Colégio Nossa Senhora das Dores, onde havia um banheiro e que servira também como local de castigo das estudantes.

“O arquivo estava total-mente desorganizado, em um lugar chamado de Masmorra. A gente retirou de lá cerca de 145 livros que datam desde 1830 a 1930. Neste momento, a gente está digitalizando es-sas fontes. E foi muito interes-sante porque alunos de gradu-ação da universidade tiveram de ler fontes do século XIX e muitos deles se apaixonaram com esse trabalho”, ela contou. Os documentos processados serão disponibilizados, inclusi-ve em livro. (F.C.)

Desde a primeira edição do Festival de História em 2011, o patrimônio histórico, arquitetônico, arqueológico e artístico tem sido abordado em concorridas mesas e oficinas. No fHist 2017, a cultura popular e os tesouros escondidos em documentos antigos marcaram os debates.

Em 2017, o patrimônio arqueológico ameaçado da Serra do Espinhaço, única cordilheira brasileira, foi tema de minicurso, uma novidade no 4º fHist. Com direito a certificação, o minicurso foi ministrado pelo mestre e doutor em Arqueologia Marcelo Fa-gundes, professor da UFVJM.

O ESPINHAÇO ANTES DOS PORTUGUESES

Em 2015, “Identidades urbanas, arquitetura, artes e le-gados” foi tema de mesas nas etapas do fHist em Braga e em Diamantina, tendo como foco as íntimas relações entre os patrimônios das duas cidades. Em Diamanti-na, a mesa de debates contou com a participação de Cláudia Orlandi, professora da UFVJM, o investigador da Universidade do Minho, Miguel Sopas de Melo Ban-deira (foto), e os arquitetos Andrey Rosenthal Schlee e Luiz Philippe Torelly, do IPHAN.

BARROCAS MATRIZES

Em 2013, o 2º fHist dedicou uma mesa aos ves-tígios, restos e objetos que recontam a História. A historiadora Valdirene do Carmo Ambiel (foto) apresentou os resultados do trabalho de exumação dos restos mortais de Dom Pedro I e de suas duas mulheres, Dona Leopodina e Dona Amélia. A mesa contou também com a participação de Rosana Pi-nhel Mendes Najjar, especialista em patrimônio arqueológico do IPHAN.

ARQUEOLOGIAE PATRIMÔNIO

P A T R I M Ô N I O

“PATRIMÔNIO CULTURAL EM QUESTÃO” COM MÁRCIA BETÂNIA, CÉLIA CORSINO, ÂNGELO OSWALDO E MESTRE JOÃO.

“TESOUROS ESCONDIDOS EM PÁGINAS ANTIGAS”,

OTTO SARKIS

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Em um tempo cada vez mais acelerado pela velocidade da circulação das informações, em que mudanças, rupturas, ditaduras e guerras acontecem a um piscar de olhos, a História do Tempo Presente surge como um campo essencial de estudos e pesquisas históricas. Além dos

historiadores, a matéria é objeto de trabalhos de diplomatas, jornalistas e cientistas políticos.

A História como campo de estudo das sociedades no tempo

Poesia e utopia na Revolução Russa A novaOrdem Mundial

A voz do cárcere

O Brasil sob o consenso de 1989

Recente como campo de es-tudos acadêmicos, a História do Tempo Presente surgiu a partir da necessidade de reflexão sobre os impactos de eventos e processos traumáticos, como guerras, ge-nocídios e ditaduras, cujos efeitos “persistem e incidem fortemente sobre o presente”, sintetizou o his-toriador Rodrigo Patto Sá Motta na mesa de debates que foi o eixo temático do 4º Festival de Histó-ria. Para o professor da UFMG, não procedem as críticas de que a História, enquanto saber, é uma ciência somente do passado remoto. “A História não é propria-mente o estudo do passado, mas das sociedades no tempo, inclu-sive no tempo recente”, ensinou.

Estudioso dos anos da dita-dura militar no Brasil, o historiador recorreu ao golpe de 1964 para estabelecer semelhanças e dife-renças entre aquele momento e a crise política e institucional que o País atravessa desde o impedi-mento da presidenta Dilma Rous-seff em 2016. Como semelhanças, ele enumerou a disputa entre o projeto liberal, de mercado, e o do desenvolvimentismo de viés social; a polarização esquerda x direita, alimentada pelas forças conserva-doras com o discurso anticomu-nista, cujo slogan - “a bandeira do Brasil jamais será vermelha” - era muito usado em 64; o discurso anticorrupção; a arregimentação religiosa e moralista da direita con-tra a esquerda; a perda de apoio parlamentar da presidenta, como ocorreu com João Goulart em 64; a crise econômica; e o papel desesta-bilizador da grande mídia, criando “a sensação de pânico na popula-ção, como naquela época”.

Entre as diferenças, Ro-drigo Patto apontou que em 1964 o anticomunismo foi mais importante para a tomada do poder pelos militares do que o

tema da corrupção, central para o golpe parlamentar em 2016. Outra diferença, segundo ele, é que agora o papel dos gran-des conglomerados de comu-nicação teve o contraponto da mídia alternativa e das redes sociais. Mas a diferença mais importante, assinalou, é que se há 43 anos ao golpe sucedeu-se um governo forte, centrado nos militares, o “impeachment gerou um governo fraco; o que pode levar a um desfecho se-melhante ao de 64”.

Para corroborar com sua análise, o historiador recorreu aos indicadores do Barômetro Latino, que revelam que entre 2015 e 2016 a aprovação da po-pulação à democracia caiu 54% no Brasil, ficando o País atrás apenas da Guatemala. Com a crise atual dos poderes Executi-vo e Legislativo, acompanhada pela do Judiciário, não seria improvável um desfecho como o de 64, até mesmo porque os

militares deixaram o poder em 1985 fortes, ficando impunes todos aqueles que se envolve-ram na prática de crimes de lesa Humanidade e contra os direitos humanos, ele reiterou.

Brasil x Argentina

“Se a situação na Argentina é de pessimismo, a no Brasil é pior ainda. É assustador o fato de um historiador, como o Ro-drigo, ter de escrever e falar sobre porque não seria bom a volta da ditadura”, afirmou o

professor Ernesto Bohoslavsky, da Universidade Nacional de General Sarmiento, espantan-do-se com o fato de a agenda do Brasil contemplar hoje te-mas com a “escola sem partido”, além da volta dos militares. “É uma crise civilizatória. Se conti-nuar assim, em breve vão que-rer discutir se a obra de Charles Darwin deve ou não ser estuda-da nas escolas”, ironizou.

Ao contrário da experiência brasileira, na Argentina os mili-tares envolvidos com o terroris-mo de Estado durante a ditadura foram identificados e punidos pela violação dos direitos huma-nos, em um processo de inves-tigação que contou, inclusive, com a participação dos meios acadêmicos, contou a profes-sora argentina Gabriela Áquila, da Universidade Nacional de Rosário, também conferencis-ta na mesa “História do Tempo Presente”. Para as políticas de memória e para a reparação das vítimas da ditadura argentina, as pesquisas dos historiadores contribuíram não apenas para a produção de provas contra os algozes, mas também para a revelação de um grande acervo de fontes e documentos antes secretos, ela acrescentou.

Presente na mesa de debates do 4º fHist “1917, o ano que mar-cou o século XX”, o cientista polí-tico e professor da UFMG, Juarez Guimarães, evocou conceitos de paixões alegres e tristes do filósofo setecentista Baruch Spinoza para responder às perguntas: “nesse tempo de renascimento de ódios, de preconceitos, de pulsões de vio-lência muito fortes – não apenas na sociedade brasileira, mas no mundo –, é necessário retomar as paixões alegres. E nenhuma paixão é mais alegre do que a paixão da revolução.” Para ele, recordar, dis-cutir e comemorar a efeméride é importante, pois as teorias liberais vêm afrontando os princípios bási-cos da democracia, e a vontade ini-cial do levante de outubro, que era conjugar “liberdade com igualda-de” e “socialismo com democracia”.

Liberdadee igualdade

Seguindo a mesma toada, o poeta e ex-secretário de Cultura de Brasília, Hamilton Pereira, que também presidiu a Fundação Per-seu Abramo, afirmou: “a Revolução de Outubro é um projeto de rein-venção da humanidade. A gente pode dizer hoje, passados cem anos, que boa parte desse projeto fracassou. No entanto, ele se man-tém vivo, como uma aspiração. A aspiração, fundamentalmente, da liberdade e da igualdade.”

Já o cientista social e profes-sor da UNICAMP, Álvaro Bianchi, pondera: “uma coisa que tem sido negativa para a maneira como a Revolução Russa é vista no Brasil é que uma nova historiografia, que está sendo produzida, não encontrou lugar aqui. É por isso que predominam as biografias, porque são livros de maior apelo comercial. Mas há uma nova his-tória social, por exemplo, nos livros de Alexander Rabinowitch, Kevin Murphy e outros. Há coisas novas que nos mostram que essa foi uma revolução com um forte conteúdo popular. Conhecer melhor isso nos permite desmontar alguns mitos.”

Bianchi chamou atenção para a história que foi feita pela mul-

tidão e por figuras anônimas. “O papel das mulheres em fevereiro de 1917, por exemplo, é muito importante. A greve começa na indústria têxtil, onde havia o pre-domínio de mulheres. Só mais tar-de se desloca para a indústria me-talúrgica, onde predominavam os homens. E há uma agitação muito intensa embaixo, na sociedade, e isso faz com que os bolcheviques adequem sua política àquelas reivindicações do movimento au-tônomo dos trabalhadores.”

Apaixonado por literatura e pelo poder das palavras, Hamilton Pereira destacou a potência da literatura russa no século XIX e a comparou à francesa do mesmo período. “A Revolução Russa é filha

da Comuna de 1841 e da Comuna de 1871, que aconteceram num dos países mais avançados do mundo à época: a França. Mas a revolução aconteceu no País mais atrasado da Europa: a Rússia. No entanto, este foi o País que produ-ziu gigantes da literatura universal no século XIX. Leon Tólstoi, Mikhail Lermontov, Alexander Pushkin, Anton Tchekhov, são todos esses nomes cujo paralelo só se encontra entre os grandes da literatura fran-cesa daquele século.”

Para o diplomata, a Coreia do Norte tem todo o direito de se defender, é um País sob o ataque dos EUA, que têm cinco mil solda-dos na Coréia do Sul e 730 bases militares no mundo com cinco mil ogivas, e querem submetê-lo aos seus desígnios, enquanto cria a imagem de que Kim Jong-in é um louco. Para rechaçar a pecha de “homens-bomba” comum aos dois presidentes, pede licença para uma brincadeira: “o proble-ma do presidente Kim Jong-in é o mesmo do presidente Trump, um problema de cabeleireiro”.

Guimarães atendeu o convite para uma novidade do 4º fHist: um “Aulão”, com o tema “Nova Ordem Mundial”. Discorreu sobre o proces-so histórico, os princípios, tratados e forças que regem as relações entre os estados nacionais desde a fun-dação da ONU em 1945, permean-do tudo com bom humor e ironias que arrancaram gargalhadas dos participantes. O diplomata chefiou o Itamarati por sete anos no Gover-no Lula, foi ministro de Assuntos Estratégicos e Alto Representante Geral do Mercosul em 2011/2012, entre vários outros cargos nos seus mais de 50 anos de carreira.

Em seu aulão, discorreu so-bre o arcabouço da “Nova Ordem Mundial”, a ONU, cujos princípios destacam a igualdade soberana dos estados nacionais, o respeito

à autodeterminação, a não in-tervenção e a cooperação, sendo signatários 194 países. “Cada país, por menor que seja, é soberano em seu território e esse preceito deve ser respeitado”, afirmou, para em seguida dimensionar a permanente tensão, a relação de forças desiguais e o enorme apa-rato ideológico que convence o mundo das qualidades exclusivas dos países desenvolvidos: cinco es-tão acima desses princípios - EUA, Rússia, França, Inglaterra e China, com assento permanente no Con-selho de Segurança e únicos com o direito de ter armas nucleares. “Por que os cinco? Porque são estados civilizados, desenvolvidos, têm um grau de humanidade superior...”, ironizou. Ainda acima do Conse-lho, estariam os Estados Unidos, na verdade o País mentor da Ordem.

Para ele, a situação atual difere dos tempos da Guerra Fria por não haver um embate entre dois modelos de mundo, de or-ganização econômica, política e social, mas entre estados, já que o modelo liberal capitalista venceu com a queda do muro de Berlim e a desintegração da União Soviética. Hoje, há de um lado o império americano, seus aliados mais fortes e a periferia subdesenvolvida; e de outro lado a Rússia e a China, insubmissos, mas sob modelos capitalistas.

Na análise do diplomata, o que o Brasil está aplicando hoje são as dez normas de quase 30 anos atrás, do Consenso de Wa-shington de 1989, elaboradas por economistas do FMI, Banco Mundial e Departamento do Te-souro dos Estados Unidos para os países subdesenvolvidos: redução dos gastos públicos; juros de mer-cado; abertura comercial; elimi-nação de quaisquer restrições ao investimento direto estrangeiro;

privatização de estatais; desregu-lamentação, entre outras. Mais adiante, fez comparação mais ácida relativa às questões sociais e trabalhistas: “Eles querem, na verdade, voltar a 1929...”. Mas, em seguida, afirmou que o povo, a absoluta maioria da Nação, mu-dará o quadro a partir das eleições de 2018, dando vitória a um novo governo democrático-popular. “Começa-se, então, a reverter as legislações aprovadas”, previu.

Estaria o mundo à beira de uma crise nuclear a partir da Coreia do Norte de Kim Jong-in e dos Estados Unidos de Donald Trump? “Não acredito que haja um interesse maior nisso, nem dos Estados Unidos, porque pode ter consequências sérias em relação à China, ao Japão e a toda a região próxima à Coreia do Sul”, opina o diplomata, professor e ex-ministro Samuel Pinheiro Guimarães, um dos maiores estudiosos da diplomacia no Brasil. “O presidente Trump tem por costume voltar atrás e assim espero”, afirma, otimista.

FELIPE CANÊDO “Ela virá, a revolução, e trará ao povo, não só direito ao pão, mas também à poesia.” São célebres estas previsões atribuídas a Leon Davidovich

Trotsky, o homem que presidiu o soviete da então capital russa, Petrogrado, e que comandaria o Exército Vermelho até a consolidação da vitória dos bolcheviques frente às forças contra-revolucionárias. Cem anos depois, o que restou de lirismo e de literatura da Revolução de Outubro? Qual é o sentido de rememorar o triunfo dos revolucionários liderados por Vladmir Ilyth Lênin no contexto atual?

Militante da Ação Libertado-ra Nacional (ALN), Hamilton Pe-reira escreveu seu primeiro livro em meio aos suplícios do cárcere. Dos 24 aos 29, passou por diver-sas prisões, mas conseguiu que seus versos dos “Poemas do Povo

da Noite” fossem contrabandea-dos para fora das grades e publi-cados pela primeira vez na Itália, sob o pseudônimo Pedro Tierra, e recebeu Menção Honrosa no Prêmio Casa de Las Américas de Cuba em 1978.

“Existem muitas críticas ao elitismo do mundo acadêmico; o que em parte é verdade. Nós, da universidade, falamos pouco pra comu-nidade externa por falta de oportunidade e em alguns casos por falta de traquejo. Na verdade, a nossa obrigação maior como pesquisadores e servidores públicos, é fazer pesquisas para produzir conhecimento novo. Escrevemos para os nossos próprios colegas, em primeiro lugar, para que esse conhecimento tenha qualidade, para que haja o debate acadêmico e se produ-za coisas novas. Em razão disso, a linguagem dos trabalhos acadêmicos é mais conceitual, mais fechada. No entanto, penso que se esse conhecimento produzido nas universidades não chegar à sociedade, o nosso trabalho não vai ter sido bem realizado, não terá sentido. Daí a importância de eventos como o Festival

de História, em que debatemos os nossos tra-balhos dentro de uma perspectiva acadêmica, mas pensando nos efeitos públicos disso”.

Em 2013, o tema do terrorismo de Estado e da di-tadura brasileira ocupou o centro dos debates do 2º fHist, sob o comando da historiadora e professora, Heloísa Starling, da socióloga Dulce Pandofi e da psicanalista Maria Rita Kehl, então integrante da Co-missão Nacional da Verdade.

HISTÓRIAS NÃOCONTADAS: MEMÓRIA E VERDADE EM QUESTÃO

A escritora e crítica cultural argentina, Beatriz Sar-lo (foto), marcou a segunda edição do Festival em 2013, falando sobre o peso e a validade dos teste-munhos na reconstrução da História, em uma confe-rência mediada pela educadora e historiadora Maria do Pilar Lacerda, da Fundação SM, parceira do fHist.

TESTEMUNHO E MEMÓRIA

Em Braga, em 2015, os regimes ditatoriais em Por-tugal e no Brasil seriam analisados pela professora Heloísa Starling, da UFMG, em uma mesa de deba-tes que contou com as participações do historiador Bóris Fausto, do português Antônio Costa Pinto e do jornalista Otto Sarkis. O tema estaria novamente em debate nos “Diálogos Oceânicos” da segunda etapa do fHist realizada em Diamantina.

TEMPOS DEDITADURAS E RUPTURAS

O fHist e a academia

Refluir... Pedro Tierra

A essa hora restam poucos amigos.A casa está em cinzas, os irmãos mortos,o inimigo armado na esquina.

Um grito agora se perderia na poeira,no sono da rua desabitada.Guarda-o, pois, até a madrugada,

reúne tuas forças em silêncio,engraxa, cuidadoso, tuas armas,confere a munição contada e espera...

Vigia na sombra o vulto do inimigo,mas, sobretudo, ouve o despertar do povo,percebe nos dedos a bruma a desatar

promessas de rebeldia.Eis aí a tua hora:Levanta barricadas e entrega ao povo os fuzis dos camaradas mortos(Poemas do Povo da Noite)

H I S T Ó R I A A Q U E N T E

“...predominam as biografias,

porque são livros de maior apelo

comercial.”

“Se a situação na Argentina é de pessimismo, a no Brasil é pior ainda.

É assustador o fato de um historiador, como o Rodrigo, ter de escrever e falar

sobre porque não seria bom a voltada ditadura”

Ernesto Bohoslavsky

“HISTÓRIA DO TEMPO PRESENTE” COM RODRIGO PATTO, GABRIELA AQUILA E ERNESTO BOHOSLAVSKY JUAREZ GUIMARÃES NA MESA “1917, O ANO QUE MARCOU O SÉCULO XX”.

AULÃO COM O DIPLOMATA SAMUEL PINHEIRO GUIMARÃES

ÁLVARO BIANCHI

HAMILTON PEREIRA

RODRIGO PATTO SÁ MOTTA

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9 Caderno Caderno8 CadernoL I T E R A T U R A

Como o senhor vê as re-lações entre a oralidade e a literatura?

Abordei aqui a relação, di-gamos dialética, entre a tradição oral e a escrita. A Bíblia conta a tradição religiosa de um povo (os judeus). Na verdade, trata-se de um livro com origens na tra-dição oral, com seus provérbios, salmos e histórias do começo do

mundo. Então, esta tradição oral é o que lemos na Bíblia. Quando a gente relativiza um pouco, ou amplia esta noção da inspira-ção, chegamos mais perto, por exemplo, do povo do Vale do Jequitinhonha. Deus tem de es-tar vivo para haver religião. Nós não inventamos Deus. Foi Deus que se revelou e, depois, nós criamos o culto. Acontece que o Deus criador não cabe naquilo que nós criamos. Daí a necessi-dade de mostrar a importância da tradição oral, que é sinônimo da contemporaneidade. Os livros têm um problema temporal, de ficarem presos à História, fixos, enquanto a tradição oral não é um amontoado de coisas guar-dadas. Como disse o líder indí-

gena Ailton Krenak, “meu pai contou para mim, eu contei para o meu filho e ele contará para o filho dele”. Veja bem, se o pai en-tendeu a História, ele vai contar para o seu filho, só que dentro de um novo contexto. Então, a História se renova. E esse é um conceito importante, visto que nenhuma cultura sobrevive sem uma comunidade. A própria co-munidade e o bom senso do gru-po levam a cultura para frente.

A História em movimen-

to. Esta seria então a inspi-ração do seu dicionário de religiosidade popular?

São centenas de milhares de verbetes e seis mil notas de rodapé em dois quilos de livro,

feito um “Dicionário Aurélio”, que envolveram 40 anos de trabalho. Desde que cheguei ao Jequitinhonha, comecei a registrar no papel a cultura des-te povo, dos nomes das vacas e dos remédios das benzedeiras aos das ferramentas para fa-zer uma sela, além de todos os provérbios. Ao fazer isso, lem-

brava-me do conjunto que é a Bíblia, que o material que reco-lhia seria como um conjunto da cultura do vale. E há uma seme-lhança muito grande nas narra-tivas. Por exemplo, enquanto a fuga dos judeus da escravidão no Egito virou História na festa da Páscoa, a cultura brasileira carrega 400 anos de escravi-

dão e de trabalho duro e, assim como os judeus, nosso povo foi obrigado a migrar, só que para São Paulo. Anotei mais de dois mil provérbios sobre isso no Jequitinhonha, cheios de pro-fecias, bênçãos e lamentações. Enfim, História e religiosidade acontecem, se entrelaçam, têm um frescor.

M U L H E R E S

Uma feminista anarquista no alvorecer do século XX

Origens do romance histórico

Tortuosos caminhos da igualdade racial na educação

CÂNDIDA CANÊDO

A educadora Maria Lacerda de Moura (1887-1945), mineira de Ma-nhuaçu, formou-se na Escola Normal de Barbacena e viveu também em São Paulo, tendo publicado dez livros. En-tre eles, “A mulher é uma degenerada “(1924), cujo título seria uma pergunta, mas foi publicado sem a interrogação; e outro igualmente ousado: “Amai... mas não vos multipliqueis” (1932). Para Maria Lacerda, a liberdade sexual das mulheres seria a “conquista suprema para a remodulação do velho mundo”.

Pouco estudadas no meio acadê-mico brasileiro, as ideias feministas dessa militante anarquista do início do século XX foram apresentadas no 4º Festival de História pela historiadora e professora da rede pública de São Pau-lo, Carolina Ramkrapes, na mesa “Nos-sa Luta faz História”. A mesa contou, ainda, com relatos de lutas da edu-cadora Macaé Evaristo, secretária de Educação de Minas Gerais, e a media-

ção da assistente social Maria do Car-mo Ferreira, a Cacá, secretária de De-senvolvimento Social de Diamantina, ex-prefeita de Araçuaí e que por sete anos atuou no hoje extinto Ministério de Promoção da Igualdade Racial.

A professora Carolina abordou o tema da “Maternidade e insubmissão feminina” e uniu duas mulheres “in-submissas aos discursos históricos de médicos, juristas, padres e pastores”: Maria de Lacerda, no início do século 20, e Rosa Paulino, neste século XXI, artista plástica e doutora pela USP, autora de obras que trazem a subjeti-vidade das mulheres negras e refletem o racismo no Brasil.

Nos dois livros citados de Maria La-cerda, a autora respondia ao psiquiatra

Miguel Bombarda (1851-1910), cien-tista e político em Portugal, com in-fluência nos meios médicos brasileiros, que afirmava serem as mulheres dege-neradas, biologicamente inferiores aos homens, e que uma mudança de seu papel social traria infertilidade e que-da da população, relatou Ramkrapes. “Maria Lacerda “responde” que havia degenerescência, sim, do ser humano que faz guerras e as mulheres estariam produzindo filhos para os canhões; e que a maternidade compulsória servia à gestão das populações, atingindo principalmente as proletárias.

“Os discursos não vêm separados, são religiosos, jurídicos, médicos, libe-rais”, afirmou Carolina, considerando que essas são ainda lutas atuais.

A anarquista, que foi biografada por Míriam Moreira Leite, em “Outra face do feminismo”, defendia a liber-tação da mulher pela educação e fazia críticas também às esquerdas por não incorporarem ao ideal da revolução o fim de práticas que oprimem a mulher.

Mulheres e negras

A professora projetou a imagem da obra “Amas de Leite”, da artista Rosa Paulino, para abordar também o “feminismo negro”. “As mulheres negras foram hipersexualizadas na História, como em Gilberto Freire. E como produziram muitos filhos na colônia? - pelo estupro”, respondeu, assinalando que o feminismo negro

trouxe indagações que ampliam a luta feminista no Brasil.

Para a secretária e ex-prefeita Cacá, “filha de trabalhadores do Vale do Jequi-tinhonha, mulher e negra”, como se de-finiu, é preciso pensar que a História das mulheres nos Brasil guarda trajetórias tanto de mulheres brancas quanto das mulheres negras e muitas vezes o que se aplica sobre umas não se aplica nem reflete as outras, havendo hoje muitas pautas agregadas. “Aquilo que muitas vezes atinge a mulher branca não pode ser visto e tido da mesma forma como o que atinge a mulher negra”, afirmou.

Se é possível precisar uma data para o surgimento do ro-mance histórico no Brasil, o pro-fessor Cristiano Mello de Oliveira, que ministrou minicurso sobre este gênero literário no 4º fHist, a situa em meados do século XIX pela lavra dos primeiros escritores românticos. Especialista em lite-ratura brasileira, ele ensinou que o escritor e político cearense José de Alencar (1829-1877) foi um dos precursores do romance his-tórico brasileiro tradicional, com sua narrativa linear, com princí-pio, meio e fim. O primeiro livro do gênero a ser publicado, entre-tanto foi “Um roubo na Pavuna”,

em 1843, do carioca Azambuja Suzano (1791/1873).

Na literatura mundial, a época do surgimento das primeiras obras desse gênero literário não tem consenso entre os especialistas, va-riando do século XVIII ao XIX. O pro-fessor, porém, recua a gênese do romance histórico à epopéia clás-sica, às obras “Ilíada” e “Odisséia” de Homero, que viveu na Grécia no século VIII a.C. As raízes do gênero estariam também nas novelas de cavalaria, como “Dom Quixote”, de Miguel de Cervantes (1547/1616), ou nos dramas históricos de William Shakespeare (1564/1616) e de outros dramaturgos.

Ao longo do século XX, um novo romance histórico ganha-ria papel de destaque na litera-tura brasileira, com as histórias sendo agora contadas nos livros sob diferentes pontos de vista e

por diversos protagonistas. Éri-co Veríssimo, Rubens Fonseca, Márcio de Souza e Renato Tapa-jós, entre outros, seriam então os autores responsáveis pela po-pularização do gênero no Brasil.

“O Cordel foi a invenção do jornalismo do sertão, quando não tinha rádio, nem jornal ou televisão. Quem relatava as his-tórias era o cordelista cantando nas feiras, dando notícia das histórias que estavam aconte-cendo”, afirmou o cantor, compo-sitor e violeiro Téo Azevedo, que comandou uma animada Roda de Prosa, com recital de Cordel no Mercado Velho de Diamantina. Reconhecido como um dos maio-res produtores de música de raiz da indústria fonográfica brasilei-ra, o mestre da cultura popular ressaltou, porém, que é preciso destacar as diferenças entre o Cordel e a Cantoria.

“O Cordel é o verso decorado, modernista, em que você tem a oportunidade de escrever, errar e arrumar. Já no repente, no impro-viso da Cantoria, se errar, errou. Mas eles têm cem por cento de ligação um com o outro”, ensinou

Téo Azevedo, assinalando que ambos se espalharam por todo o País. No Nordeste de Minas, cha-mava-se “Cordel de Pasquim”, ou pequeno jornal. Na região central do Brasil, “Tira verso”, tanto a parte cantada quanto a escrita. No Nor-

deste da Bahia, eram os “Abcs”, porque as histórias acompanha-vam o abecedário, exemplificou.

De acordo com o mestre, o Cordel chegou ao Brasil no sé-culo XVI, sendo o padre José de Anchieta o primeiro a trazer a viola portuguesa, de 12 cordas, aqui adaptada para a de dez cordas, com afinações muito diferentes daquelas que vieram de Portugal. “Com Anchieta, veio também a literatura que, segundo a história registra, ele escrevia com o seu cajado nas areia de nossas praias” lembrou Téo Azevedo. O cordelista atribui também ao jesuíta a dissemina-ção do improviso no Brasil.

Se a gente quer falar de História, é impossível não passar pelo estudo da religiosidade popular, onde se destaca o trabalho de um “santo vivo”: o frei holandês Franciscus Henricus van der Poel, ou Frei Chico. Desde que chegou ao Brasil, há mais de 40 anos, ele realiza pesquisas sobre a cultura popular no Vale do Jequitinhonha, juntamente com a escultora Maria Lira Marques. Em Araçuaí, fundou o coral “Trovadores do Vale”. Com extensa atividade artística e musical, Frei Chico é também escritor e entre suas obras desponta o “Dicionário da Religiosidade Popular: cultura e religião no Brasil”. Pela primeira vez no Festival de História em Diamantina, ele participou da mesa de debates “Cultura Popular, Palavras e Verbetes”.

A educadora Macaé Evaristo leu um trecho de um conto autobiográfi-co da escritora negra Geni Guimarães para abrir a sua exposição na mesa da História da luta das mulheres. “Nem era preciso dizer mais; a literatura des-nuda as relações raciais e as formas de opressão vividas pela população negra do nosso País”, afirmou.

O direito à educação sempre foi um desafio para os negros, destacou

Macaé. Citou que no Império, os es-cravos eram proibidos de se matricular nas escolas públicas. Após a Lei do Ventre Livre (1871), decretos proibi-riam a escolarização de negros libertos menores de 14 anos, permitindo aos maiores somente estudar no período noturno e “se o professor aceitasse”.

“Isso vai marcar a história da nossa educação ao longo do século XX, lu-tas que foram de famílias se reunindo para educar seus filhos ou de entida-des, como a Frente Negra”, afirmou.

A educadora citou a I Conferência Mundial de Durban, na África do Sul, em 2001, como um marco contempo-

râneo para os movimentos negros. A partir dela, cresceu a luta por políticas públicas de transformação e há a des-mistificação da ideia da democracia racial, “aquela que o negro sabe o seu lugar”. Com as lutas dos movimentos e o Governo Lula viriam, então, a Lei nº 10.639, de ensino de História e Cultura

Afro-Brasileira; a Lei das Cotas e o Es-tatuto da Igualdade Racial. “Com a Lei das Cotas, de 2012, o racismo no Brasil mudou sua etiqueta”, afirmou, e de um comportamento “polido”, passou a ser agressivo e a ter até ativistas.

“Escola do Pensamento Único”

Macaé abordou o momento “selvagem” de retrocessos sociais, políticos e culturais após o impea-chment da presidenta Dilma e aler-tou para a ameaça da “Escola sem partido”, que se articula através das câmaras de vereadores e teve atua-ção forte nas discussões dos Planos Municipais de Educação. “Em São Paulo, há casos de vereadores que se atrevem a entrar nas escolas e vigiar a atuação dos professores. Como se ensina a História assim? Como com-bater a violência sexual sem o apoio da escola?”, questionou.

Para Macaé, o nome, “Escola Sem Partido”, foi um “marketing” bem feito porque esconde o real: uma “Escola do Pensamento Único”. “Nossa luta será longa, mas com muita força e esperan-ça”, previu. (C.C.)

“Os discursos não vêm separados, são religiosos, jurídicos,

médicos, liberais”

“_ Não tenho nada com isso, seu Dito, mas vocês de cor são feitos de ferro. O lugar de vocês é dar duro na lavoura. Além de tudo, estudar filho é besteira. Depois eles se casam e a gente mesmo..._ É que eu não estou estudando ela pra mim – disse meu pai. – É pra ela mesma.”(Leite de Peito, de Geni Guimarães)

A cultura popular, a religiosidade, as tradições orais, o Cordel e o romance histórico ganharam vez em mesas de debates, rodas e prosas com mestres e autores promovidas pelo 4º fHist na Tenda da História e no espetacular Mercado Velho de Diamantima.

Cordel: o jornalismo do sertão

A História em movimento nas tradições oraisRICARDO CAMARGOS

Na livraria no Mercado Velho, o 4º fHist promoveu uma verdadeira maratona de prosa com escritores. Nas sessões de autógrafos, 13 livros foram apresentados ao público pelos seus autores em animadas conversas.

Em animada roda de cinema do 4º fHist, o

diretor Fábio Carvalho e a produtora Isabel Lacerda

exibiram as entrevistas para a pesquisa do filme “JK nas Alturas “ e conversaram

com o público.

PROSA COM OS AUTORES

JK NAS ALTURAS

“CULTURA POPULAR, PALAVRAS E VERBETES” COM FREI CHICO, ANTÔNIO PAIVA MOURA, CARLOS MOTA E A PROFESSORA CAROLINA ANTUNES.

RODA DE PROSA E RECITAL DE CORDEL COM TÉO AZEVEDO.

”O NOVO ROMANCE HISTÓRICO BRASILEIRO” COM CRISTIANO MELLO DE OLIVEIRA.

CAROLINA RAMKRAPES

“NOSSA LUTA FAZ HISTÓRIA” COM MACAÉ EVARISTO, CACÁ E CAROLINA RAMKRAPES.

MACAÉ EVARISTO FALOU QUE O DIREITO À EDUCAÇÃO SEMPRE FOI UM DESAFIO PARA OS NEGROS.

MARIA LACERDA DE MOURA

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11 Caderno Caderno10 Caderno E S P E T Á C U L O

FRANKLIN MARTINS

“Não existe fato relevante na História do País que não tenha

inspirado música”Como o senhor vê a rela-

ção entre o samba e a cons-trução de uma identidade cultural de raízes africanas no Brasil?

Eu sou suspeito para falar... Talvez só os meus 90 anos con-firmem isso. Sou chamado de mestre, mas eu acho que sou mestre só pela idade. O samba deu o primeiro empurrão para a construção de nossa cultura musical e da inserção dos ne-gros na História brasileira. Nós tínhamos, um pouco antes, a capoeira, que é mais antiga que o samba. Mas as raízes são as mesmas do samba - a

herança que nossos antepas-sados deixaram para nós, que não estavam escritas nos livros. Esta coisa começou com a nossa raça, especialmente na parte oral da cultura.

Como a capoeira, o samba era também muito reprimido?

Era coisa que só fazíamos nas poucas horas de folga e apesar da perseguição, do controle remoto que nos eram impostos. É um espanto tudo isto ter ultrapassado todas es-tas dificuldades e ter chegado ao ponto em que o samba está

hoje! O lamento é que parecia uma coisa criada só para nós, os negros. Sem querer desmerecer a ninguém, o samba só passou a ter valor depois que os nossos irmãos brancos começaram a participar. Antes disto, velhos mestres e companheiros, como João da Baiana, Cartola, Nelson Cavaquinho e muitos outros, sofreram muito para plantar esta semente. Eu mesmo vivi grande parte disto tudo. Vim para Belo Horizonte ainda criança e conheci a primeira escola de samba da capital, que foi a “Pedreira Unida”, lá na co-munidade Prado Lopes.

E onde nasceu o samba?Ninguém pode negar que

o Rio de Janeiro é a capital do samba, mas de uns tempos para cá ele experimentou um grande crescimento no País e em Belo Horizonte também, que já até exportou grandes nomes para o samba brasi-leiro. E isso é curioso, pois o samba nasceu lá no Recônca-vo Baiano, por exemplo, com Antônio Conselheiro e o seu “exército”. Muitos achavam que seria uma coisa efêmera, mas o samba sobreviveu e está deixando fortes marcas na História do Brasil.

O samba na matriz da identidade cultural

Tradição oral e a música como crônica dos fatos

A sua produção literária é qua-se toda voltada para o resgate de personagens históricos. Como é es-crever uma biografia de um ritmo musical como o samba?

O samba dá, o samba faz, o sam-ba continua fazendo e dando Histó-ria. Eu tento compreender a forma-ção do samba como algo indissolúvel da formação cultural brasileira. O samba é um dos elementos fundado-res fundamentais do que nós somos como Nação. Portanto, é preciso ana-lisá-lo dentro de uma perspectiva histórica, tentando compreender os conflitos, os dilemas, os preconceitos

e tudo aquilo que orbitou dentro da gênese deste ritmo musical. Então, não é uma História romanceada e de heróis. O samba tem uma História de conflitos e de confrontos, fruto da enorme invisibilidade de seus princi-pais personagens.

No primeiro volume da trilo-gia, que começa no final do sécu-lo XIX e vai até o início da década de 1930, você analisa este que seria o período de fundação e gê-nese do que entendemos como o moderno samba urbano. Como serão os próximos livros?

O segundo volume vai abordar a chamada “Era de Ouro” do samba e, por extensão, da Música Popular Bra-sileira, que se estende até a metade da década seguinte, até 1946. Já o terceiro volume partirá desse mo-mento em diante, abordando todas as múltiplas tendências, variações e subgêneros que o samba produziu, incluindo aí desde o “Samba Canção” e a “Bossa Nova” até o “Samba Rock”, que começou a trilhar o caminho que a gente entende hoje como do “sam-ba de sambar”. Vai até 1984 - este, pelo menos, é o meu plano até agora -, quando a criação do Sambódromo no

Rio de Janeiro irá modificar toda a lo-gística anterior, quando o samba ain-da se estabelecia como parceiro das comunidades. Com a criação do sam-bódromo, acontece uma mercantiliza-ção crescente desse ritmo e o carnaval

deixou de ser gerido na perspectiva da cultura, para ser gerido na do tu-rismo. E isso com todos os seus des-dobramentos. Ou seja, as escolas se transformaram em grandes empresas, surgindo as “Escolas de Samba S/A”.

“O samba é um dos elementos fundadores fundamentais do que nós somos como Nação”, sentencia categoricamente o jornalista e escritor João de Lira Cavalcante Neto, autor de uma trilogia deste ritmo musical, cujo primeiro volume, “Uma História do Samba”, foi lançado em 2017. Especializado em biografias de personagens da História brasileira, como o escritor José de Alencar, o presidente Getúlio Vargas, a cantora Maysa e o general Castello Branco, entre outros, o cearense Lira Neto, como é conhecido, esteve pela segunda vez no Festival de História em Diamantina, participando da mesa de debates “O Samba dá História”, ao lado do Mestre Conga, em suas palavras, “um patrimônio da cultura brasileira e guardião do samba”.

Mestre Conga e as raízes do sambaNo universo do samba, em Minas e no Brasil, não há quem não tire o chapéu para José Luiz Lourenço, ou simplesmente Mestre Conga,

mineiro de Ponte Nova, que migrou para a capital com seis anos de idade e é considerado o “Pai do Samba” em Belo Horizonte. Nos anos 40, ele foi o responsável pela inserção dos sambas enredos nos desfiles e, em 1950, seria um dos fundadores do “Grêmio Recreativo Escola de Samba Inconfidência Mineira”. Por essa trajetória, Mestre Conga passou a ser reverenciado como grande ícone e memória viva do samba e do carnaval da capital mineira. (R.C.)

M Ú S I C A

O CARISMA E A VOZ POTENTE DO MESTRE CONGA ENCANTARAM OS PARTICIPANTES DO 4º FHIST.

“O SAMBA DÁ HISTÓRIA” COM MESTRE CONGA E LIRA NETO.

APRESENTAÇÃO IMPECÁVEL DO BANTUS DO BAÚ.

PAULO BETTI DÁ VIDA A DIVERSOS PERSONAGENS DA SUA INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA.

ENERGIA PURA COM A COMPANHIA PRIMITIVA DE ARTE NEGRA.

“CANJA” EMOCIONANTE COM MESTRE CONGA.

As íntimas relações entre a música e a História estão na ma-triz de formação da identidade e da diversidade cultural brasilei-ra. Desde o primeiro Festival de História em 2011, estas relações vêm sendo esmiuçadas em mesas de debates, oficinas e rodas de música, como na terceira edição em 2015, tanto em Braga, em Portugal, quanto em Diamantina. Na mesa do 3º fHist “As canções que você fez pra mim”, por exemplo, o jornalista e escritor Franklin Martins atribuiu ao longo isolamento da população em relação à palavra escrita e à cultura literária a primazia da oralidade e, mais ainda, da música, que assumiu o papel de crônica dos fatos e das transformações políticas e históricas.

“Não existe fato relevante na História do País que não tenha inspi-rado música” afirmou, categórico, o jornalista, que foi também minis-tro das Comunicações e é autor da trilogia “Quem inventou o Brasil?”, onde revela a intensa relação entre música e política, sobretudo entre 1902 e 2002. Segundo ele, a presença quase unânime da crônica po-lítica na dimensão musical diferencia o Brasil de outros países, tanto pela sua tradição de oralidade quanto pelos impactos tecnológicos que sofreu a partir do século XX. “Quando ainda não se tinha uma tradição literária, já se começava a indústria cultural que em outros países levou séculos para acontecer”, registrou Franklin Martins, refe-rindo-se à introdução da indústria fonográfica no Brasil em 1902.

Novidade em suas edições, a abertura de mesas de debates do 4º fHist com performances de música e dança agradou o público em cheio já na noite do primeiro dia, cinco de ou-tubro, quando o Grupo de Dança Afro Bantus do Baú fez uma apresentação vibrante. Na percussão do grupo, criado em Diamantina em 2009 para resgatar e difundir a cultura afro-bra-sileira, André Santos e Rafael Oliveira marcariam com maestria as vozes, passos e compassos dançantes de Tiago Santos, Lilian Guarani, Michael Douglas, Rejane Farias, Ariele Martins e Dita Milohane, abrindo a mesa “Chi-cas da Silva”.

Já no segundo dia do Festival, seis de outubro, seria a vez da Companhia Primitiva de Arte Negra introduzir o tema da mesa “O patrimônio cultural em questão”, que abordou os desafios

para a proteção das riquezas culturais brasileiras, tanto materiais quanto imateriais. Impecáveis, a bailarina e intérprete Flávia Soares e Ana Luisa brindaram o público presente na Ten-da da História com uma performance eletrizante, ritmadas pela percussão firme de Mestre João, Rafael, André e Juliano Antunes.

Do alto dos seus 90 anos, um carismático Mestre Conga daria, por sua vez, uma canja inesquecível no último dia do 4º fHist, sete de ou-tubro, abrindo a mesa de debate “O Samba dá História”. Entre as canções, o mestre ainda teceu o fio da meada das origens do samba, para deleite e delírio do público, acompanhado por integrantes do Conservatório Estadu-al Lobo de Mesquita: Felipe Leonardo, no cavaco, Glaydson, no pandeiro, e Mairon Leite, no surdo.

Como foi apresentar-se no pal-co de um Festival de História?

Foi um prazer imenso. Se a gente não conhece a nossa história, tende a repetir os mesmo erros. E olha que mesmo a conhecendo, a gente está aí repetindo erros o tempo todo. Mas foi uma alegria muito grande poder participar do fHist e sentir um público diferente, muito concentra-do e atento, querendo ouvir a his-tória. Acho que esta “Autobiografia Autorizada” é um espetáculo que também tem um pouco a ver com a proposta do Festival, porque minha história tem muito da história de vida das pessoas no País: esta coisa de sair da roça e ir para uma cidade grande em busca do trabalho e de oportunidades. Ela fala da indus-trialização, que eu vivi bem de perto

com a minha família nas indústrias Votorantim, os resultados pífios do trabalho para os operários, quando não havia ainda praticamente ne-nhum sindicalismo. A Votorantim se aproveitou muito da ditadura para não permitir que os operários lutas-sem e exigissem seus direitos.

Embora seja um texto autobio-gráfico, inspirado em suas memó-rias, colagens de fatos de época que fez na adolescência e em ar-tigos que escreveu para o “Jornal Cruzeiro do Sul”, você fez também pesquisas em fontes documentais de Sorocaba...

Sim. Boa parte da documen-tação que consultei, para tentar trazer à vida todos os personagens que represento na peça, foi obtida

nos arquivos policiais e judiciais da cidade. E fato é que 99% dos per-sonagens, em um momento da vida deles, foram alvos de perseguição policial e de preconceito, do racis-mo institucionalizado, inclusive do nosso poder judiciário. Por isso, a peça fala muito da questão dos ne-gros também. Meu avô, que era imi-grante italiano, trabalhava à meia para um fazendeiro negro, em uma situação absolutamente inédita, pouco usual na época. Então, “Auto-biografia Autorizada” é uma histó-ria de vidas, que conta esse mundo de marginalidade criadora que nos define, inclusive como Nação. E fa-lar sobre isso é muito importante neste momento de perda de direi-tos e de conquistas trabalhistas que estamos vivendo.

RICARDO CAMARGOSHistórias de vidasDança e música

para esquentaros debates

Com dezenas de filmes e participações em novelas, o paulista Paulo Sérgio Betti contabiliza mais de 40 peças de teatro, tendo dirigido 12 delas. Pela primeira vez, a programação do Festival de História em Diamantina estendeu-se ao teatro e seria a sua premiada peça, “Autobiografia Autorizada”, um monólogo de sua lavra em que atua como diretor e ator, a escolhida para o encerramento do 4º fHist na noite enluarada de sete de outubro. (RC)

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HUMOR E DRAMA NO ENCERRAMENTO DO FESTIVAL 2017.

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12 CadernoE S P E T Á C U L O

Tendo como cenário os belos jardins e quintais da Casa de Chica da Silva em Diamantina, o espetáculo manifesto, que aposta na dimensão crítica e reflexiva da arte, encantou o público sob os embalos de canções como, “Promessas do Sol”, de Milton Nascimento e Fernan-do Brant, e “Folia dos Pretos”, de Luis Theodoro e Henrique Gomes. Protestando contra a tragédia/crime de Mariana, cuja impunidade comple-tou dois anos em novembro passado, Titane recitou “O Maior Trem do Mundo”, de Carlos Drummond de Andra-de, emocionando o público presente. (O vídeo está dis-ponível no Canal do Festival de História no YouTube).

Sempre em sintonia com os acordes temáticos de cada edição, o fHist tem apresen-tado uma rica programação poética e musical. Em 2013, Maria Bethânia provocou emoção pura na Tenda da História com as suas “Lei-turas Poéticas” (o DVD do show gravado em Diaman-tina acompanha o seu livro

“Cadernos de Poesia”), com direito a um “bis” majestoso na primeira etapa da 3ª edi-ção do Festival realizada no centenário Theatro Circo de Braga, em 2015. Ainda na-quele ano, Arnaldo Antunes brindaria os participantes da segunda etapa do Festival em Diamantina com a força da palavra de sua “Performance Poética”. Por sua vez, o mú-sico Flávio Renegado deu o tom da cultura de periferia e resistência nos palcos do

fHist 2013, enquanto que o multi-instrumentista sene-galês Mamour Ba e a Conexão

African Beat encerrariam o fHist 2015 com um show ele-trizante no Mercado Velho. Mineira da cidade de Oliveira, Titane (Ana Íris) construiu uma

carreira associada à cultura popular, próxima ao folclore, mas sem submissão a padrões rígidos. Reconhecida como uma das mais au-tênticas cantoras mineiras, está na estrada desde o início dos anos 80, sendo o seu primeiro disco, “Titane”, lançado em 1986.

Como surgiu o espetáculo “Paixão e Fé”? Na música, tem hora que a gente tem de parar para ouvir. A música

distrai, mas é capaz de produzir muitos pensamentos internos, muitas reflexões históricas. Este trabalho meu e do Túlio Mourão foi uma ne-cessidade de parar. Pensar um pouco e sair do formato de grandes es-paços e grandes bandas. Tenho viajado muito, feito shows em grandes espaços, mas este, “Paixão e Fé”, é o contrário. A gente canta canções lindas, que convidam a parar para ouvir e pensar. Acho que o Festival de História, de uma maneira muito inteligente, conduz as pessoas a pen-sar sobre a vida e a sociedade de uma maneira suave, muito leve; ainda que o mote seja “História Quente”. É preciso uma reflexão, pensar neste País, porque está tudo implodindo e 2016 foi muito emblemático...

O ano do impeachment da presidenta Dilma...Exatamente. Participei das ocupações que se seguiram ao impea-

chment, fiquei um mês na FUNARTE e a gravação do disco com o Túlio Mourão aconteceu naquele ano. É muito interessante porque era o mesmo repertório que a gente vinha fazendo juntos há três anos. Toda-via, de 2016 para cá ganhou uma conotação diferente. O CD foi gravado em Congonhas, que tem um museu dinâmico, que não tem fugido à discussão sobre a mineração. Nosso trabalho incluía poemas de Carlos Drummond de Andrade e, em consequência, a reflexão sobre o que nos levou a um tipo de exploração irresponsável das riquezas naturais. A gente nunca tinha imaginado que pudéssemos chegar ao nível de um crime, como o de Mariana. O problema da mineração é que ela é ex-clusivista; onde está nada mais pode existir. E se as coisas continuarem como estão, pode ser um desastre atrás do outro, pois o golpe do impe-achment da presidenta Dilma foi dado para conduzir o Brasil à posição de mero fornecedor de matéria-prima. Mas, felizmente, a gente sente que as pessoas estão querendo mudar esse quadro.

Caminhando e cantando a História

Titane e as canções que convidam a

parar para pensar

Como festa do ofício, mas também das artes de contar a História, o 4º fHist ofereceu em 2017 uma intensa programação musical e poética, em que se destacou o espetáculo “Paixão e Fé”, de Titane e Túlio Mourão.

EM BRAGA, MARIA BETHÂNIA FEZ PELA SEGUNDA VEZ AS “LEITURAS POÉTICAS” NO FHIST.

ARNALDO ANTUNES E AS PALAVRAS FHIST 2015

UMA NOITE ENCANTADA NOS JARDINS DA CASA DE CHICA DA SILVA FHIST 2017

RENEGADO E A CULTURA DE RESISTÊNCIA FHIST 2013

WANDER CONCEIÇÃO E A BOSSA-NOVA FHIST 2011 E 2017

AULA DE VIOLA COM IVAN VILELA EM BRAGA FHIST 2015 A FLAUTA MÁGICA DE ODETTE ERNEST DIAS FHIST 2011

MAMOUR BA E A CONEXÃO AFRICAN BEAT FHIST 2015

SALDANHA ROLIM E SAULO LARANJEIRA CANTAM GONZAGA E VANDRÉ FHIST 2011

SÉRGIO VAZ E A POESIA DE PERIFERIA FHIST 2013

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