5o encontro de psicólogos jurídicos do tjrj - 2004 - comunicações

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  • 8/8/2019 5o Encontro de Psiclogos Jurdicos do TJRJ - 2004 - comunicaes

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    FOLHA 1

    5ENCONTRO DE PSICLOGOS JURDICOS DO

    TRIBUNAL DE JUSTIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

    ORGANIZAO DO V ENCONTRONCLEO DE PSICOLOGIA DA VARA DA INFNCIA E JUVENTUDE E DO

    IDOSO DACOMARCA DA CAPITAL

    ORGANIZAO DO LIVROSERVIO DE APOIO AOS PSICLOGOS DA CORREGEDORIA GERAL DOTJRJ E PSICLOGOS REPRESENTANTES DOS NCLEOS REGIONAIS DA

    CGJ

    APOIOTRIBUNAL DE JUSTIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

    CORREGEDORIA GERAL DE JUSTIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

    ESCOLA DA MAGISTRATURA DO TRIBUNAL DE JUSTIADO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

    ESCOLA DE ADMINISTRAO JUDICIRIA DO TRIBUNAL DE JUSTIADO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

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    FOLHA 2

    5ENCONTRO DE PSICLOGOS JURDICOS DO

    TRIBUNAL DE JUSTIA DO ESTADO DO RIO DE JANEIROAs Metforas do Poder: entre o pblico e o

    privado

    Data: 29 e 30 de novembro da 2004Programao

    29/11

    9h 30min Mesa de Abertura

    Coordenao: Dr. Siro Darlan de Oliveira Juiz Titular da 1 Vara da

    Infncia e Juventude da Capital

    10h Mesa 1

    Conferncia do Professor Mrcio Alves da Fonseca

    PUC/SP

    Coordenao: Eliana Olinda Alves Psicloga do TJRJ

    12h - Almoo

    13h 30min Mesa 2

    Professora Bethnia Assy (UERJ)

    Dr. Geraldo Prado (Juiz de Direito da 37 Vara Criminal)

    Coordenao: Jos Csar Coimbra Psiclogo do TJRJ

    15h 30min Mesa 3

    Professora Ana Cristina Figueiredo(UFRJ)

    Professor Srgio Carrara(UERJ)

    Coordenao: Anna Paula Uziel - Prof. da UERJ

    17h Lanamento do Livro do 4 Encontro de Psiclogos do TJRJEncerramento

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    30/11 Restrito aos Psiclogos do Quadro da CGJ

    FOLHA 3

    APRESENTAO

    Mais uma vez encontramos a oportunidade de lanar ascomunicaes do Encontro de Psiclogos do TJRJ. Como das vezesanteriores essa oportunidade faz a ponte entre o passado e opresente. As palavras escritas aqui se constituem como a melhorintroduo ao que encontraremos no 6 Encontro.

    Momento de (re)descobrir contribuies to significativas: aconferncia do prof. Mrcio Alves da Fonseca com a atualidade daselaboraes de Foucault; o dilogo entre a prof. Bethnia Assy e o

    juiz Geraldo Prado sobre a urgncia e os desafios que o ato de julgar

    implica; o encontro entre os professores Srgio Carrara e AnaFigueiredo assinalando as contribuies da psicanlise e daantropologia para a nossa reflexo.

    Enfim, as discusses sobre as metforas do poder propiciam,neste momento, a todos ns, ferramentas preciosas para fazer frente realidade que a nossa. Sem maniquesmos, vislumbraremos naspginas que se seguem a parte de responsabilidade que cabe a cadaum na transmisso de sentido que as metforas propiciam. Quepossamos acrescentar uma palavra a mais nesse elo interminvel,produzindo significados antes inauditos, talvez seja a grande aposta

    que nos anima.

    Boa leitura, bom encontro!

    Comisso Organizadora

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    As Metforas do Poder: entre o pblico e o privado

    Mrcio Alves da Fonseca

    Considero bastante interessante o tema escolhido para este Encontro:

    As metforas do poder entre o pblico e o privado. Isto porque me parece no

    apenas recolocar uma questo j tantas vezes tratada a questo do pblico e

    do privado mas a recoloca de modo a sugerir que s faz sentido uma reflexosobre o pblico e o privado na medida em que se leva em conta o carter

    ambguo da separao aparentemente to bvia entre aquilo que chamamos

    de domnio pblico e de domnio privado.

    Ao falarmos em metforas do poder entre o pblico e o privado sugere-

    se uma idia de transposio de sentido ou de significado de um domnio a

    outro. Fazer uma metfora transportar significado de uma coisa para outra,

    transportar sentido de uma coisa para outra. Digo isto porque nos parecenatural pensar no tema do pblico e do privado a partir de uma oposio

    fundamental. A oposio que coloca, de um lado, o domnio que

    corresponderia liberdade e auto-determinao do indivduo, do sujeito; e,

    de outro, quase como um domnio independente do primeiro, aquele

    correspondente ao controle, invaso da vida privada, exercidos pelas

    instituies, pelos governos, pelo Estado, todas estas estruturas que, de algum

    modo, identificamos como o domnio pblico.

    Sem pretender negar a existncia de uma certa objetividade naquilo que

    entendemos ser um domnio prprio do indivduo, o domnio, portanto, da vida

    privada e um domnio prprio do coletivo, o domnio pblico, talvez fosse

    importante pensar no quanto a separao rigorosa entre estas supostas

    esferas independentes ambgua, paradoxal e, num certo sentido, artificial.

    Portanto, mais do que pensar na separao entre os domnios pblico e

    privado, no sentido de se procurar identificar os limites precisos a cada um

    deles e os transbordamentos possveis destes limites, mais do que pensar

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    nesta separao, talvez fosse necessrio pensarmos em suas interseces ou,

    ainda, nas condies que tornam possveis as metforas entre o que

    chamamos de domnios pblico e privado. Assim, mais significativo que

    especificar as distines, os transbordamentos dos limites entre o Estado e o

    indivduo, entre a esfera pblica e a esfera privada, seria procurar entender e

    decifrar seus entrecruzamentos.Nesta perspectiva, no haveria tanto sentido em se perguntar, por

    exemplo, de que lado esto a Justia, o Direito, os saberes e prticas como a

    medicina, a psiquiatria e a psicologia. No haveria tanto sentido em se

    perguntar se elas seriam instncias de afirmao dos indivduos, de proteo

    de sua liberdade, de produo de sua autonomia ou se, ao contrrio, se seriam

    instncias de controle e dominao. Segundo a perspectiva que se sugere

    aqui, um outro tipo de pergunta que faz mais sentido. Trata-se da perguntapelas interseces que estas instncias a Justia, o Direito, a Psicologia

    permitem realizar entre o pblico e o privado, entre os indivduos e o Estado,

    entre a liberdade e a auto-determinao e as formas de controle e de

    conduo. Ento, no lugar de se tentar classificar a Justia, o Direito, os

    saberes, as prticas como a psicologia, quer em instncias de auto-

    determinao e afirmao da liberdade individual, quer em instncias de

    controle e de dominao, parece ser importante considerar seu carter muitas

    vezes ambguo pelo qual as interseces entre liberdade e controle, auto-

    determinao e dominao, tornam-se possveis e se concretizam.

    Este tipo de pergunta carregaria, digamos assim, um duplo significado,

    um significado, me parece, ao mesmo tempo histrico e crtico. Significado

    histrico porque sugere uma pesquisa acerca da constituio destas instncias

    de saber e de prticas, no como instncias que pairam sobre a vida concreta

    dos homens, no como instncias independentes das vontades, dos

    interesses, das determinaes de carter econmico, poltico, cultural e

    simblico, mas como instncias de saberes e de prticas que necessariamente

    carregam as marcas de todas estas determinaes.

    Ao lado deste significado histrico, estas questes relativas s

    interseces tambm apresentariam um carter crtico ou teriam um significado

    crtico, porque permitiriam evidenciar as contradies inerentes s mesmas e

    seu potencial paradoxal de emancipao e liberao e, ao mesmo tempo, de

    dominao, de controle. Pensar nas intersees entre o pblico e o privado,

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    entre a sociedade e o indivduo, entre o Estado e a vida privada. Pensar,

    igualmente, que papis desempenham em tais intersees instncias como o

    Direito, a Justia, saberes como a psiquiatria e a psicologia. Esta parece ser

    uma tarefa que se impe a cada um que de algum modo atua nestes campos

    delimitados.

    Este tipo de reflexo, esta forma de problematizao dos saberes e dasprticas que se preocupa antes com as interseces do que com a suposta

    independncia entre o que entendemos por domnio pblico e privado, muito

    familiar a alguns trabalhos de Michel Foucault, filsofo francs contemporneo,

    cujo aniversrio de vinte anos de morte acontece justamente neste ano de

    2004. Neste sentido, talvez seja interessante retomarmos alguns de seus

    estudos em que os cruzamentos - e no as separaes - entre domnios sejam

    postos em evidncia, domnios estes, por exemplo, como o Direito e aMedicina, a Justia e a Psiquiatria ou mais genericamente as funes Psi;

    como Foucault as designa no curso do Collge de France, de 1974.

    Nestes estudos, o privilgio conferido trama das interseces permite

    que acompanhemos a gnese de algumas figuras que parecem carregar esta

    marca emblemtica, o trao peculiar da indistino entre o pblico e o privado,

    entre o individual e o coletivo, entre o particular e o comum, o natural e o

    artificial. Trata-se de uma srie de estudos de Foucault a que podemos chamar

    de genealogia do anormal, figura histrica dotada de uma feio natural que

    teria surgido, segundo o filsofo, precisamente no cruzamento, nas

    interseces entre os discursos mdico e judicirio, entre os discursos do

    Direito, da Justia e da Medicina, mais precisamente da psiquiatria. Tomemos,

    ento, alguns momentos desta genealogia do anormal ou da noo de

    anormalidade realizada por Foucault como simples ilustrao da hiptese que

    procuramos sugerir aqui. Em virtude de tal hiptese faz mais sentido,

    relativamente ao tema do pblico e do privado, pensar nas condies que

    determinam as interseces e os cruzamentos entre liberdade dos indivduos e

    controle exercido pelas instituies, do que pensar numa separao rigorosa,

    precisa, de seus domnios e de seus limites.

    Foi pesquisando o aparecimento das noes de normal e anormal no

    seio da cincia mdica, mais precisamente no seio das prticas da psiquiatria

    do final do sculo XVIII e do incio do sculo XIX, que Foucault chega idia

    de norma, que ser to importante em seus escritos. A noo de norma, tal

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    como aparece em Foucault, no deve ser buscada prioritariamente do lado do

    Direito, da lei, mas do lado da medicina, dos saberes e das prticas que atuam

    sobre a vida. Particularmente em dois cursos que ministrou no Collge de

    France, os cursos dos anos de 1974 e 1975, encontramos uma espcie de

    genealogia da figura do anormal realizada pelo autor. Nestes dois cursos nos

    limitaremos a tomar apenas algumas passagens que nos permitem reconstituirparcialmente esta genealogia.

    Um comentador de Foucault, Frederic Grou, em seu livro Foucault e a

    Loucura, aponta para o fato de que no curso de 1974 intitulado O Poder

    Psiquitrico, Foucault retoma uma anlise dos arquivos psiquitricos no ponto

    em que a havia deixado em seu livro A Histria da Loucura, de 1961. Trata-se

    da anlise do tratado mdico-filosfico sobre a alienao mental do Dr. Pinel.

    Este texto de Pinel, que serviu para Foucault encerrar seu livro sobre a loucura,ser retomado no curso de 1974 com o interesse de evidenciar algumas cenas

    teraputicas ocorridas no interior de uma ordem disciplinar presente na

    instituio asilar.

    Assim, neste curso, Foucault volta sua ateno aos dispositivos

    concretos, aos efeitos arquitetnicos, s tcnicas de interveno do

    panoptismo asilar, procurando pesquisar uma ttica geral de poder. E ser

    segundo esta nova perspectiva que far a anlise do ato teraputico como uma

    espcie de batalha, como o lugar em que se desenrola uma certa luta entre o

    louco e o mdico, de modo que a vitria deste ltimo sobre o primeiro

    representa a possibilidade de sua cura. Para Foucault, o asilo do final do

    sculo XVIII e do incio do sculo XIX ser organizado como um campo de

    batalha. A cena que serve para ilustrar o modo de ser do asilo psiquitrico

    naquele momento a cena da perda da razo do rei George III, no ano de

    1788. Pinel descreve tal cena e Foucault a retoma na segunda aula do curso

    de 1974. Trata-se de um monarca, de um rei que perde a razo. O rei

    entregue aos cuidados do mdico, que o dirige a partir da. Os elementos da

    cena funcionam como uma espcie de cerimnia de destronamento. Separado

    de sua famlia e destitudo de sua realeza, o mdico declara que ele, o rei, no

    mais o soberano.

    A loucura faz com que o rei seja destitudo do poder soberano, mas

    tambm o insere em um domnio de um outro tipo de poder, que se ope termo

    a termo ao poder da soberania. Trata-se de um poder annimo, sem face, sem

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    nome, um poder que se manifesta pela implacabilidade de um regulamento.

    Um poder que no tem o carter de se concentrar em algum, mas tem a

    funo de produzir efeitos sobre o corpo descoroado do rei. No desenrolar do

    tratamento ou da cena do tratamento do rei George III, quando este se revolta

    contra o mdico e lana sobre ele as suas imundcies, o rei apanhado com

    fora, jogado sobre a cama, tem suas roupas arrancadas e lavado. Aquitambm vemos outro deslocamento da cena do poder em relao cena do

    suplcio; nesta cena invertida quem sofre o suplcio agora o rei.

    Para Foucault, a reconstituio da cena da loucura do rei George,

    descrita no tratado sobre a alienao mental de Pinel, seria bem mais

    significativa para expressar o surgimento da psiquiatria ou da protopsiquiatria,

    como ele a denomina, do final do sculo XVIII e incio do sculo XIX, do que o

    gesto emblemtico de Pinel libertando os loucos do asilo de Bissec. Naseqncia desta cena da loucura do rei George, segundo este filsofo, poder-

    se-ia traar o futuro de outras cenas, como aquela do tratamento moral cujo

    principal autor foi o Dr. Lour, no final dos anos de 1870, como tambm as

    cenas da descoberta da prtica da hipnose, da constituio da psicanlise e,

    enfim, da anti-psiquiatria do sculo XX.

    No interior desta histria dos episdios da psiquiatria, histria que

    prioriza o aspecto do poder de normalizao nela implicado, que ocorrero as

    anlises do autor sobre o surgimento da noo de anomalia. Aps discutir a

    emergncia do poder psiquitrico como uma espcie de intensificador da

    realidade em relao loucura, um poder em que a cura consistir na

    submisso do louco realidade da qual sua loucura o afasta, Foucault ir se

    dedicar a estudar a generalizao deste poder psiquitrico para outras

    instncias em que necessrio se fazer a realidade funcionar como poder.

    Como pde se dar a generalizao do poder psiquitrico para outras

    instncias ou instituies? Tal processo parece ter se dado, segundo este

    filsofo, sobretudo atravs da psiquiatrizao da infncia, como tambm,

    evidentemente, atravs da psiquiatrizao do criminoso. Segundo Foucault,

    na juno, no engate hospital escola - instituio sanitria - modelo de sade

    sistema de aprendizagem, que se deve procurar o princpio de difuso do

    poder psiquitrico. Neste processo a noo de desenvolvimento ser

    fundamental. Esta noo permitiu, segundo Foucault, o estabelecimento de

    uma certa linha de separao entre vrios tipos de caracteres. Em relao a

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    alguns indivduos fala-se, por exemplo, em uma interrupo no

    desenvolvimento psicolgico. Em relao a outros no se fala em interrupo,

    mas em lentido. Em nenhuma dessas situaes reportam-se propriamente

    noo de loucura ou doena mental. A importncia de tal distino est na

    idia de que o desenvolvimento no algo de que se dotado ou de que se

    privado mas consiste em um processo que afeta toda a vida orgnica epsicolgica do indivduo. Neste sentido, o desenvolvimento comum a todos,

    mas comum como uma espcie de otimum, uma regra de sucesso

    cronolgica que possui um ponto de chegada determinado.

    O desenvolvimento uma espcie de norma em relao a qual nos

    situaramos, muito mais do que uma virtualidade que se possui em si mesmo.

    Com a noo de desenvolvimento v-se desenhar uma dupla normatividade:

    uma normatividade que ser aquela do adulto aqui o adulto aparece comoponto ao mesmo tempo real, ideal, da finalizao do desenvolvimento e, de

    outro lado, outra normatividade que corresponde a uma mdia referida

    prpria infncia; a mdia da velocidade do desenvolvimento relativamente a

    maior parte das crianas.

    Com este tipo de anlise vemos aparecer algo que ser a especificao,

    no interior da infncia, de um certo nmero de organizaes, de estados e de

    comportamentos, que no tm propriamente o carter de doena mas que so

    desvios relativamente a duas normatividades: aquelas da criana e do adulto e

    que so emblemticas, definitivas. Neste ponto Foucault afirma que vemos

    aparecer a algo que precisamente a anomalia. A criana chamada na poca

    de idiota ou retardada no desenvolvimento no seria uma criana propriamente

    doente nem louca mas uma criana anormal. Deste modo, a categoria da

    anomalia no teria se referido primariamente ao adulto mas criana. No

    sculo XIX o adulto que podia receber a designao de louco e no se

    concebia a possibilidade real de uma criana ser considerada louca. Em

    contrapartida, a criana com problemas de desenvolvimento que ir receber a

    designao de criana anormal.

    Foi atravs dos problemas prticos colocados pela criana com

    problemas de desenvolvimento, que a psiquiatria, dir Foucault, est em vias

    de se tornar algo que no seria mais o poder que controla e corrige a loucura,

    mas algo infinitamente mais geral e perigoso, que o poder sobre o anormal, o

    poder de definir aquele que desviante da norma. Progressivamente a

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    categoria da anomalia iria recobrir todo o campo dos problemas prticos

    daquilo que se constituiu na vasta famlia que vai do mentiroso ao

    envenenador, do pederasta ao homicida, do onanista ao incendirio. A

    psiquiatria poder, assim, se ligar a toda uma srie de regimes disciplinares

    que existiro em torno dela, em funo do princpio de que ela representa ao

    mesmo tempo uma cincia e um poder sobre o anormal.Passemos agora a algumas breves passagens de um outro curso, de

    1975, intitulado justamente Os Anormais, a fim de recuperarmos mais alguns

    fragmentos desta chamada genealogia do anormal, realizada por Foucault.

    Tais fragmentos podem contribuir para pensarmos justamente nas interseces

    entre os domnios pblico e privado, a partir do exemplo especfico de

    cruzamento dos discursos mdicos e judicirio, constitutivos desta figura da

    anormalidade. Foucault inicia o curso daquele ano de 1975 fazendo umareferncia a uma srie de laudos psiquitricos em matria penal. Uma das

    sries se refere a trs homens que haviam sido acusados de chantagem em

    um caso de envolvimento sexual. interessante atentarmos para alguns

    extratos destes laudos psiquitricos que instruem o caso em questo. Eu leio

    alguns trechos:

    X, uma das pessoas envolvidas naquele caso, intelectualmente, sem

    ser brilhante, no estpido. Encadeia bem suas idias e tem boa memria.

    Moralmente homossexual desde os doze ou treze anos e esse vcio, no

    incio, teria sido uma compensao s zombarias de que era vtima quando

    criana, por ser criado pela assistncia pblica. Mais adiante, sobre essa

    mesma pessoa, ainda se l: X totalmente imoral, cnico, falastro at. H

    trs mil anos certamente teria vivido em Sodoma e os fogos do cu com toda a

    justia o teriam punido por seu vcio.

    Em outro extrato, no mesmo caso, sobre outro dos indivduos

    envolvidos, se l o seguinte:

    Z um ser deveras medocre, do contra, de boa memria, at encadeia

    bem as idias. Moralmente um ser cnico e imoral, mas o trao mais

    caracterstico de seu carter parece ser uma preguia, cujo tamanho nenhum

    qualificativo conseguiria dar idia. evidentemente menos cansativo trocar

    discos e encontrar clientes numa boate do que trabalhar de verdade. Alis, ele

    reconhece que se tornou homossexual por necessidade material, por cobia e

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    que, tendo tomado gosto pelo dinheiro, persiste nesta maneira de se conduzir.

    Concluso: ele particularmente repugnante.

    Estes extratos de laudos mdicos so parte das concluses dos exames

    mdico-psicolgicos a que foram submetidos trs homossexuais detidos por

    furto e chantagem em uma cidade no interior da Frana no ano de 1974.Foucault dir que h muito a ao mesmo tempo muito pouco a ser dito sobre

    este gnero de discursos. So discursos que tm o poder de determinar uma

    deciso da justia sobre a liberdade ou a deteno de algum. Funcionam

    como discursos de verdade no interior da instituio judiciria, discursos de

    verdade porque detentores de um status cientfico na medida em que so

    pronunciados por pessoas qualificadas para diz-los. Discursos que podem

    prender, que podem matar, que fazem rir. Esses discursos cotidianos, deverdade, que matam e que fazem rir, estariam, segundo o filsofo, no centro de

    nossa instituio judiciria. Neles, vimos se cruzarem a instituio judiciria e o

    saber mdico. Entretanto, quando observamos de perto o seu contedo,

    percebemos a curiosa propriedade de serem como que estranhos aos dois,

    tanto s regras, mesmo s mais elementares, de formao de um discurso

    cientfico, como s regras de Direito, pois dizem coisas que fogem aquilo que

    interessa especificamente, formalmente, lei.

    Da o nosso estranhamento ao lermos esses discursos a ponto de nos

    causar alguns risos. Tal estranhamento se deve ao fato de que tais discursos

    no se refiram propriamente a criminosos ou indivduos inocentes, nem a

    indivduos doentes ou sos, mas a indivduos que pertencem a outra categoria,

    dir Foucault, categoria da anomalia. Os laudos mdico-legais no so

    homogneos nem ao Direito nem Medicina, no derivam do Direito nem da

    Medicina; endeream-se a um objeto diferente, a uma espcie de terceiro

    termo, recoberto, de um lado, pelas noes jurdicas de delinqncia e

    reincidncia e, de outro, pelos conceitos mdicos de doena e de sade. Tais

    discursos estariam ligados a uma forma de poder, aquela mesma forma de

    poder a que submetido o rei George III, destronado, que transforma o poder

    judicirio e o saber psiquitrico em instncias de controle da anormalidade. E

    no somente em instncias de controle do crime ou instncias de tratamento

    da doena, respectivamente.

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    No restante deste curso Foucault procura pesquisar como o domnio

    compreendido pela categoria da anomalia teria se constitudo historicamente a

    partir de trs figuras: a figura do monstro humano, a do onanista, e a figura dos

    indivduos a quem seria possvel corrigir, os chamados incorrigveis. Tais

    figuras seriam os ancestrais dos anormais. Esses fragmentos tomados de

    modo pouco rigoroso, de uma certa genealogia do anormal elaborada porMichel Foucault em dois de seus cursos no Collge de France, certamente tm

    o interesse de explorar essa noo de anormalidade que, segundo Foucault,

    teria sido constituda historicamente. Esses fragmentos no tm a qualidade de

    revelar ou de procurar definir uma verdade histrica da psiquiatria ou mesmo o

    verdadeiro papel da justia criminal na formao da noo de anormalidade.

    No essa a nossa pretenso nem era a de Foucault. As histrias que esse

    autor constri, a partir de fragmentos que recolhe e que intencionalmenteseleciona, tm um sentido propriamente genealgico, que ele chama de

    genealogia do anormal. Ou seja, no se trata de pesquisar uma origem

    primeira, uma verdade primeira sobre um fato, uma situao. Trata-se, antes,

    de reconstituir aspectos de um certo engendramento, de uma certa formao

    histrica, com o intuito de problematiz-la.

    Neste sentido, uma problematizao importante que esta genealogia da

    noo de anormalidade escrita por Foucault possibilita refere-se matizao

    dos domnios pblico e privado, permitindo questionar sua distino e seus

    domnios precisos. Ao contrrio da separao e da independncia entre uma

    esfera de liberdade e auto-determinao do indivduo, de um lado, e um

    domnio de controle e conduo por parte das instituies e do Estado, do

    outro. Este tipo de pesquisa genealgica permite evidenciar as incontveis

    interseces entre estes domnios. Parece-me que esse um dos aspectos

    fundamentais a ser levado em conta numa discusso acerca do tema do

    pblico e do privado. Penso que a pergunta sobre as interseces entre estes

    domnios, e no apenas pela sua distino e seus limites, que permite a

    compreenso de algumas das metforas possveis entre os processos de

    objetivao e de subjetivao que nos constituem. A esse ttulo, e tambm a

    ttulo de concluso dessa fala, permito-me retirar do contexto em que citado

    por Foucault e reproduzir aqui um dilogo um pouco longo, citado pelo filsofo

    no curso O Poder Psiquitrico, de 1974, entre Laur, um importante mdico

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    psiquiatra da poca, e um paciente do asilo de Salpetrire. O dilogo o

    seguinte:

    - Como a Sra. est se sentindo?

    - Minha pessoa no uma senhora. Chame-me de senhorita, por favor.

    - No sei seu nome, diga-o, por favor.- Minha pessoa no tem nome. Ela deseja que o senhor escreva.

    - Mas eu teria de saber como chamada, ou melhor, como era chamada

    antigamente.

    - Compreendo o que o senhor que dizer. Era Katarina, mas no se pode mais

    falar o que acontecia antes. Minha pessoa perdeu seu nome ou ela deu seu

    nome ao entrar nesta instituio.

    - Qual a sua idade?- Minha pessoa no tem idade.

    - E essa Katarina de que acaba de me falar. Que idade ela tem?

    - No sei.

    - Se a senhorita no a pessoa de quem fala, no sero ento duas pessoas

    numa s?

    - No, minha pessoa no conhece a que nasceu em 1979. Talvez seja aquela

    senhora que o senhor est vendo ali.

    - O que a senhorita fez e o que lhe aconteceu desde que a sua pessoa?

    - Minha pessoa residiu na casa de sade, fizeram com ela e continuam fazendo

    experincias fsicas e metafsicas. Olha ali uma dessas pessoas invisveis que

    desce. Ela quer misturar a voz dela com a minha. Minha pessoa no quer, ela a

    manda embora.

    - Como so essas pessoas invisveis que a senhora fala?

    - So pequenos, impalpveis, pouco formados.

    - Como se vestem?

    - De avental.

    - Que lngua falam?

    - Falam francs, se falassem outra lngua minha pessoa no os entenderia.

    -Tem certeza de que os v?

    - Toda certeza. Minha pessoa os v, mas metafisicamente, na invisibilidade,

    nunca materialmente, porque neste caso no seriam mais invisveis.

    - A senhorita s vezes sente estes invisveis em seu corpo?

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    - Minha pessoa os sente e fica muito aborrecida. Eles me fizeram toda sorte de

    incidncias.

    - Como a senhorita est sendo tratada aqui, na Salpetrire?

    -Minha pessoa est muito bem, tratada com muita bondade. Ela nunca pede

    nada s serviais.

    - O que acha das senhoras que esto nesta sala, com a senhorita?- Minha pessoa pensa que elas perderam a razo.

    Foucault considera este dilogo como uma formidvel descrio da

    existncia asilar. Depois que o nome daquela mulher foi dado ao entrar

    naquela instituio, uma vez constituda esta individualidade administrativa e

    mdica, no resta mais do que esta minha pessoa, que a partir de ento s fala

    em terceira pessoa. Ora, me parece que na trama dos processos de nossasobjetivaes e subjetivaes, talvez nosso maior desafio no seja marcar

    idealmente os limites entre o pblico e o privado, mas seja antes decifrar

    alguns dos cruzamentos, algumas das interseces a partir dos quais ainda

    podemos falar em algo como minha pessoa.

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    O DO DECLNIOECLNIODODO IIMAGINRIOMAGINRIO PPBLICOBLICO

    Bethnia Assy1

    A atrofia da capacidade de imaginar aquilo que nos diz respeito somenteem comunidade atingiu um patamar que mencionar sentimentos pblicos j

    no faz qualquer sentido, muito menos em se tratando de definir felicidade e

    safistao. A propenso de equalizar o imaginrio de aprazimento

    exclusivamente s aspiraes e aos xitos pessoais ou ao concomitante

    contentamento material nas sociedades de consumo demonstra no s o

    empobrecimento do nosso imaginrio pblico, mas o aniquilamento de nossa

    capacidade de se comprazer com algo que no traga consigo expectativas einteresses particulares. De fato, a tentativa de escapar inexorabilidade de

    eventos histricos irreconciliveis, e ao prprio desnudamento da

    vulnerabilidade da condio humana, levaram, segundo Hannah Arendt, as

    sociedades contemporneas a um robustecimento da esfera privada. A

    sobrevalorizao da experincia interior paulatinamente ocupou a esfera

    pblica ao inflacionar o espao coletivo com interesses privados,

    idiossincrasias individuais e satisfaes pessoais. O espraiamento dasupervalorao das experincias interiores tem-se mostrado inversamente

    proporcional ao desencantamento e extenuao dos espaos potenciais

    daquilo que nos diz respeito apenas como membros de uma comunidade, no

    tanto do espao objetivo entre homens (objective in-between space),

    fabricao, poiesis do mundo, mas sobretudo do espao intersubjetivo, s

    aes, a prxis (subjective in-between space), responsvel pela edificao de

    1 Doutora em Filosofia pela New School for Social Research New York USA. Professorade Direito da Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

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    uma espcie de imaginrio da coisa pblica.

    Muito embora a preocupao moderna com o self, que se iniciou com

    Descartes, adquiriu flego com Kierkegaard e culminou no existencialismo

    europeu, j apontasse uma dose considervel da crise de credibilidade com a

    promessa e a realidade que o mundo poderia nos oferecer, os catastrficos

    adventos polticos de meados do sculo 20, em particular o Holocausto e as

    "imagens do inferno na terra"2, como os campos de concentrao eram

    metaforizados, selaram o que Hannah Arendt chamou de perigo de

    "desmundializao" (worldlessness) da nossa era. O mundo desde ento no

    seria mais um lugar seguro, restando, paradoxalmente, como derradeiro confim

    de seguridade, a experincia "verdadeira e autntica" do self.

    Em A condio humana a autora estabelece um paralelo substancial

    entre a conquista do espao em 1957 e um processo de alienao do mundo,

    deslocando o ponto arquimediano de nossa confiana e credibilidade para uma

    regio ausente de qualquer topos, de qualquer espacialidade, ou seja, para a

    interioridade do self. Afinal, o alcance dos objetos fabricados pelos homens

    rompera os limites topogrficos "em direo aos primeiros passos para escapar

    do aprisionamento dos homens a terra"3. Essa declarao, feita pela impressa

    americana da poca, longe de acidental, deflagrava um deslocamento do valor

    da experincia humana da perspectiva do mundo para a interioridade nocompartilhada do self Justamente para fazer face a essa tendncia, que o

    prlogo de A condio humana notabiliza a conquista do homo faber, o

    lanamento do primeiro satlite artificial em tomo da terra fabricado pelo

    homem, para introduzir uma obra essencialmente atenta desvalorizao da

    atividade de agir conjuntamente. Tanto na preservao e na continuidade

    quanto na criao e na espontaneidade, do mundo e dos homens, a autora, ao

    descrever as atividades da vita activa, faz uso de expresses que privilegiam alocalizao dos acontecimentos humanos, quais sejam, o espao da aparncia,

    os domnios pblico e privado, a teia de relaes, a plis; de modo a tomar a

    espacialidade sua dimenso mais profcua: o espao onde o homem trabalha,

    fabrica, e age criativamente.

    2 Veja-se: ARENDT, Hannah, "The Image of Hell," em Essays in Understanding 1930-1954.New York, San Diego and London: Harcourt Brace & Company, editado por Jerome Kohn,1994, pp.l97 -205.

    3

    (traduo ligeiramente modificada) ARENDT, A condio humana. Trad. brasileira deRoberto Rapouso, Rio de Janeiro: Forense Universitria, 1993, p. 1 (The Human Condition.Chicago-London: The University of Chicago Press, 1989, p. 9).

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    Ao contrrio da valorizao da imagem corporal, na qual ser e aparecer,

    de certa forma, tambm coincidem, o que est por detrs da valorizao

    arendtiana do espao pblico da aparncia fornecer um frum para a

    liberdade humana entendida no como horizonte das experincias interiores,

    mas como um espao do exerccio da virtuosidade pblica.

    A fenomenologia arendtiana de "ser-do-mundo"e no meramente "estar-

    no mundo" visa uma nova simbologia cultural que leve em conta tambm uma

    forma pblica de vida. De tal forma que, ao final, uma parcela considervel das

    nossas satisfaes e aprazimentos seria fruto do compromisso com a

    comunidade na qual vivemos, por meio do reconhecimento da superioridade do

    cuidado com o mundo e com o bem-estar coletivo sob os caprichos e

    interesses individuais.

    Ao reverso dos que tomam a esttica, juzo de gosto e satisfao, como

    alternativa individualista universalidade da razo na tica, Hannah Arendt vai

    apropriar a esttica kantiana a fim de saIientar a capacidade humana de sentir

    prazer com aquilo que "interessa apenas em sociedade"4, a despeito de

    nenhuma retribuio no mbito das sensaes privadas. O resultado de tal

    compromisso a realizao de uma forma pblica especfica de felicidade. "A

    vida em comum era caracterizada por sua capacidade de proporcionar

    'felicidade pblica', quer dizer, uma felicidade que s poderia ser obtida empblico, independente da vida privada. A possibilidade de desfrutar desta

    felicidade pblica tem decrescido na vida modema, pois nos dois ltimos

    sculos a esfera pblica tem se retrado"5. Para que possamos ser capazes de

    desfrutar desta felicidade pblica fundamental o que se pode chamar de

    cultivo de sentimentos pblicos, o que em absoluto significa alcanar uma

    instncia neutra que equalize os sentidos de sociabilidade com uma

    perspectiva geral, nem, muito menos, o mero esforo racional em deliberaracordos e consensos. particularmente no que denomina de sensus

    communis, o cultivo de sentimentos comuns aos outros em uma mesma

    comunidade, que podemos exercitar a capacidade de sentir satisfao por

    4 ARENDT, Hannah. Lies sobre a filosofia de Kant. Trad. de Andr Duarte, Rio de Janeiro:Relume-Dumar, 1993, p. 94 (lectures on Kants Political Philosophy. Edited with nainterpretative essay by Ronald Beiner, Chicago: Ed. The University of Chicago Press, 1982, p.73).

    5

    ARENDT, Hannah. Public rights and Private Interests: Response to Charles Frankel, emSmall Comforts for hard Times: Himanists on Public Policy, editado por Michael Mooney eFlorian Stuber, New York: Columbia University Press, 1977, p. 104.

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    aquilo que "interessa apenas em sociedade"6, ou ao que Hannah Arendt,

    fazendo uso de um vocabulrio kantiano, nomeia de "deleite desinteressado",

    de natureza pblica, embora nem de carter caritativo ou mesmo altrustico7.

    Sociabilidade a "prpria origem, e no meta da humanidade do

    homem; ou seja, descobrimos que a sociabilidade a prpria essncia dos

    homens na medida em que pertencem apenas a este mundo. Isso um ponto

    de partida radical de todas as teorias que enfatizam a interdependncia

    humana como dependncia com relao a nossos companheiros tendo em

    vista nossas carncias e necessidades"8. A humanidade, quer dizer, a

    comunalidade como um atributo que pertence aos seres humanos apenas, o

    espao mesmo da gnese dos homens, engendrados sobre sua condio de

    mundaneidade. Descrita como estatuto ontolgico dos seres humanos, o

    atributo da pluralidade reitera-se com freqncia nos escrito arendtiano. Ainterao a base estrutural da ao humana.

    A autora de A condio humana lana mo do vocabulrio

    heideggeriano para valorizar precisamente o que Heidegger desvaloriza. Como

    bem assinala Benhabib "O espao de aparncia ontologicamente reavaliado

    por [Arendt], precisamente porque seres humanos podem agir e falar com os

    outros apenas na medida que eles aparecem para os outros"9. Implica em

    compartilhar o mundo com os outros por meio de atos e linguagem, isto , servisto e ouvido pelos outros, de forma que, ao julgarmos, o fazemos

    necessariamente como membros de uma comunidade10. O sensus communis

    certifica tal comunicabilidade, peculiaridade capital em termos de julgamento

    efetivo. A experincia do senso de comunalidade no julgamento de gosto

    chama ateno para uma forma de existncia comum particularmente humana:

    6 ARENDT, Hannah. Critique of Judgment, Seminar Fall 1970, New School for Social

    Research, manuscrito indito, Hannah Arendts Papers, The Manuscript Division, Library ofCongress, Washington DC, container 46, p. 032415.7 ARENDT, Hannah. Lies sobre a filosofia de Kant, p. 94 (original, p. 74).8 (trad. Mod.) ARENDT, Hannah. Lies sobre a filosofia de Kant, p. 94-5, original p. 73-4).9 BENHABIB, Seyla. The Reluctant Modernismo f Hannah Arendt. London New Delhi: Sage

    Publications, 1996, p. 111. Ao contrrio de Arendt, Heidegger estabelece uma relaosuspeita no que diz respeito aparncia, considerando-a tambm a condio de ocultaoda verdade (aletheia) do ser (Sein), o espao de inautenticidade (Uneigentlichkeit), o estadode queda (Verfallenheit), e o estado de ser lanado (Geworfenheit).

    10 Mesmo ao considerar a comunalidade constituio ontolgica do homem, o sensuscommunis, de fato, reflete nossa condio factual concreta, fenomenologicamente verificvel,que opera, simultaneamente, a condio de validade de linguagem, comunicao e

    compartilhamento em geral. Veja-se: FORTI, Simona, "Sul 'Giudizio riflettente' Kantiano:Arendt e Lyotard a Confronto," in La Politica tra Natalit e Mortalita - Hannah Arendt. Editedby Eugenia Parise. Napoli: Edizioni Scientifiche Italiane, 1993, p. 124.

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    a pluralidade constituda por linguagem e ao. O sensus communis garante a

    comunicao. Comunicar-se no se confunde com expressar-se11. Possibilita

    que se fale em termos de natureza comum do homem, e por conseqncia, de

    comunalidade poltica. Nossa natureza comunal no se deve apenas

    necessidade de preservao da espcie e de satisfao do reino das

    necessidades, sem dvida melhor realizadas em conjunto. Compartilhamos acapacidade de associao natural com outras espcies, essencial vida

    biolgica como um todo (humana e animal), preservao da vida. J a

    capacidade de praxis e lexis nos confere uma outra forma de comunalidade,

    nos institui uma outra forma de existncia comunal, koinon, a capacidade

    humana de se organizar politicamente, a bios politikos.

    Hannah Arendt no vaticinou, todavia, que ao invs do cultivo de

    sentimentos pblicos, teramos o cultivo de uma felicidade fabricada no corpo.A privatizao do nosso imaginrio s puras satisfaes pessoais nas

    sociedades atuais parece encontrar no corpo, justamente o espao menos

    compartilhado, que menos diz respeito ao coletivo, a consagrao do nosso

    aprazimento. E justamente nele, nos seus prazeres e dores, que a autora vai

    localiza a dimenso mais radical da felicidade privada. "Nada, de fato, menos

    comum e menos comunicvel - e portanto, mais fortemente protegido contra a

    visibilidade e audibilidade da esfera pblica - que o que se passa dentro denosso corpo, seus prazeres e dores. Seu labor e consumo. Por isso mesmo,

    nada expele o indivduo mais radicalmente para fora do mundo que a

    concentrao exclusiva na vida corporal"12. Uma das formas mais reais e

    radicais de felicidade privada se encerra no alivio da dor, incomunicvel para

    alm dos limites corporais. "A felicidade alcanada no isolamento do mundo e

    usufruda dentro das fronteiras da existncia privada do indivduo jamais pode

    ser outra coisa seno a famosa 'ausncia de dor"'13.

    Tem-se desta forma, um deslocamento do nosso imaginrio de

    felicidade da interioridade do selfpara a visibilidade do corpo. Apesar de j do

    domnio da aparncia, a supervalorizao do corpo ainda reproduz a mesma

    artimanha que a autora tanto refutou, no s nas atividades da vida do esprito

    11 Comunicao, linguagem, depende do sensus communis. A expresso de alegria, ou medo,por exemplo, no depende necessariamente da linguagem. Arendt assinala que o gesto seriasuficiente, ou o som, no caso da distncia tornar o gesto invisvel. Veja-se: ARENDT, Liessobre a filosofia poltica de Kant, p. (original p. 70).

    12 ARENDT, Hannah,A condio humana, p. 124 (original p. 112).13 Ibid, p. 125 (original, p. 112).

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    quanto na ao: o desencantamento e privatizao do espao pblico. Um

    possvel diagnstico seria que passamos por um processo de permuta de um

    selfensimesmado para um corpo ensimesmado, cujas conseqncias so: o

    confinamento vida corporal do espao derradeiro da felicidade, o

    deslocamento de nossa confiana no espao pblico para o interior do corpo, e

    a transferncia esfera coletiva da responsabilidade por nossas satisfaesprivadas. A atitude do homo faberde instrumentalizao do mundo desloca-se

    ento para a instrumentalizao do prprio corpo. A promessa mais urgente do

    mundo tomou-se a busca da felicidade de um paraso fabricado no corpo do

    homem. Tem-se um desvio da noo original arendtiana de homo faber. Uma

    das peculiaridades do artificialismo e da mecanizao da vida natural do homo

    faberse dava na orientao a uma determinada finalidade, a prpria fabricao

    dos objetos de consumo. Ao se instrumentalizar o corpo, perde-se a dimensoteleolgica da fabricao, que se encerrava nos objetos produzidos. o corpo

    afirmado como o prprio objeto de fabricao, cujo produto final no pode ser

    alcanado. Em outras palavras, em vez de consumirmos os objetos, fabricamos

    e consumimos nossos prprios corpos.

    Deste modo, o que era atividade exclusiva do animal laborans, qual seja,

    o exaustivo consumo dos nossos apetites, que alm de ser do domnio da

    necessidade se encerrava na prpria atividade em si, se funde com o princpioda fabricao. Uma fabricao sem qualquer vislumbre de telos, pois o

    principal critrio de medida deixa de ser o da utilidade, e passa a ser o da

    felicidade limitada iluso de um infinito processo de fabricao e consumo do

    corpo; mesmo que tal felicidade seja por pouco tempo, o tempo suficiente de

    sermos tragados por uma nova possibilidade de consumirmos mais uma nova

    fabricao da nossa imagem corporal. A autora de A condio humana afirmou

    que a vitria do homo faberse baseava na convico de que "o homem a

    medida de todas as coisas"14. Na promessa contempornea de felicidade, o

    ponto arquimediano no mais o selfsolipsista, mas o corpo solipsista, que

    passa a ser a medida de todas as coisas, o artefato humano por excelncia, a

    medida de fabricao da vida. Talvez a traduo consagrada do filme de Frank

    Capra continue sendo elucidativa, "a felicidade no se compra", nem mesmo se

    fabrica, mesmo que sua matria-prima seja nosso bem mais precioso, nosso

    corpo, onde se encerra a vida.

    14 Ibid., p. 319 (original, p. 306).

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    AASS MMETFORASETFORASDODO PPODERODER:: ENTREENTREOOPBLICOPBLICOEEOOPRIVADOPRIVADO

    Geraldo Prado15

    Peo desculpas ao pblico pelo atraso. Em alguma medida este atraso explicvel,

    embora no se justifique. Ele explicvel na lgica do tema principal do 5 Encontro de

    Psiclogos do Tribunal de Justia As metforas do poder: entre o pblico e o privado.

    Eu esclareo, ainda antes de prosseguir com os agradecimentos e cumprimentos, que

    estava no gabinete do presidente do Tribunal de Justia juntamente com alguns juzes que

    integram o movimento da magistratura fluminense pela democracia. Eu estava l com esses

    juzes, o movimento na realidade entregando ao Presidente do Tribunal de Justia quatro

    projetos de reforma do regimento interno do tribunal e do Cdigo de Organizao Judiciria que

    giram em torno de dois temas: a proibio do nepotismo uma luta antiga contra esta prtica e o segundo pelo fim das sesses secretas e pela exigncia, alis constitucional, de

    fundamentao das decises administrativas. Alm dos dois projetos que foram entregues ns

    comunicamos ao presidente do Tribunal de Justia que no prximo dia 17 de dezembro

    estaremos entregando um projeto de resoluo para a criao de reserva de vagas para

    afrodescendentes na Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro tambm. Ento,

    estvamos l vendo, apresentando, colocando as coisas e vendo de que modo a presidncia

    do Tribunal vai dar encaminhamento a isso. Eu vou falar mais disso ao longo da minha

    exposio, mas o que seria algo meio protocolar demorou um pouco, com isso eu atrasei e

    peo desculpas a todos.

    Em primeiro lugar, vou me apresentar: eu sou juiz de Direito h 17 anos, fui promotor

    de Justia durante trs anos, sou professor de Direito Processual Penal da graduao da UFRJ

    (Faculdade Nacional de Direito) e do Programa de Mestrado da Universidade Estcio de S.

    Sou Doutor em Direito, sou morador, nascido e criado nessa cidade do Rio de Janeiro, pela

    qual sou profundamente apaixonado. Portanto, sendo isso tudo e sendo a contradio que todo

    sujeito , penso nessas relaes entre pblico e privado a partir da minha experincia pessoal.

    No poderia ser de outra maneira. Minha experincia como juiz, morador de uma cidade

    assustada, professor encarregado de pesquisas na rea da criminologia e controle social, todasessas minhas experincias so a base daquilo que eu penso e da minha atuao na

    magistratura, nas minhas relaes sociais outras e at mesmo do fato de eu ter, juntamente

    com outros grandes companheiros entre os quais eu cito e presto homenagens a Siro Darlan,

    Joaquim Domingos, Slvio Teixeira, Andr Trendinique, Andr Nicolite, Cristiane Ferrari, Milene

    Massali , formado esse grupo de magistrados pela democracia (Magistratura Fluminense pela

    democracia no Rio de Janeiro), cujo compromisso, j de alguns conhecido, no sentido da

    radicalizao democrtica, independente do que isso possa vir a nos custar. Portanto, so

    todas essas experincias que formam a pessoa que est com vocs hoje e que tem que falar

    15 Juiz de Direito da 37. Vara Criminal do TJRJ.

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    do pblico e do privado tomando talvez como referncia, como ponto central, o Poder Judicirio

    e a minha condio de juiz. H um livro Histrias de violncia: crime e lei no Brasil organizado

    pela Elizabeth Canceli e publicado pela UnB , uma coletnea de artigos de muita gente boa.

    Entre os excelentes autores que publicam esse trabalho, h uma professora do Rio Grande do

    Sul, Ruth Gauer, antroploga. A Ruth apresenta um texto sensacional, Fundamentos do

    moderno pensamento jurdico brasileiro e, sobre esse texto da Ruth, a Elizabeth escreveu o

    seguinte: o segundo captulo do livro de Ruth Gauer faz um exaustivo exerccio na busca daruptura portuguesa com a herana das estruturas poltico-administrativas da Idade Mdia e do

    romantismo, as quais informariam o nosso pas colonial. Encontra, dessa forma, o modelo de

    modernidade que seria adotado pelo Brasil no sculo XIX ao mesmo tempo em que vislumbra

    afora da tradio, ou seja, o mesmo instante em que as inovaes estariam separando pela

    modernidade o pblico do privado, e valorizando a coisa pblica com o paralelo surgimento de

    uma sociedade civil, a manuteno da personalizao como a fora da tradio seria a

    tentativa de no transformao e a permanncia de regras particulares sobre gerais do

    tratamento personalizado.

    Isso diz muito da nossa realidade, muita gente j enfrentou essa temtica Roberto Da

    Matta, com a sua maneira de ver as coisas; a extraordinria professora da UFF, Gislene Neder,

    tambm; Vera Malaguti Batista, que tenho certeza j trocou idias com vocs da questo da

    permanncia de prticas de particularizao sobre prticas de generalizao, que so prprias

    de uma Repblica. Isso no momento atual quando a gente pensa que est no sculo XXI, em

    2004, dezesseis anos depois da edio de uma constituio que deveria produzir, se no

    resgate de uma cidadania que nunca existiu, no mnimo as condies elementares para a

    configurao de um novo modelo de cidadania a ser realizado diariamente. E no encontramos

    isso, muito pelo contrrio, parece que estamos vivendo o mesmo tipo de situao pr-1988, emque a cidadania ainda uma cidadania bem particularizada, ainda uma cidadania de apenas

    alguns segmentos sociais. Ento, a coisa se complica e exige de todos ns um esforo de

    compreenso para no reproduzirmos, no nosso atuar concreto, o que nos parece que justo.

    E todos aqui sabem que no h uma justaposio entre o justo e o legal, pode ser legal e estar

    muito distante do justo. Estarmos a a atuar, fazendo justia e na realidade perpetuando

    injustias, segmentaes, abismos, diferenciaes sociais.

    Como pensar isso? Embora fale para psiclogos, na maioria aqui, falo como juiz. Em

    que estgio ns do Direito, ns juzes, nos encontramos? Em primeiro lugar, necessriocompreender que o Poder Judicirio brasileiro nunca foi um poder transformador. Se ns

    pudssemos talvez fazer uma anlise histrica da formao do Poder Judicirio da

    modernidade, principalmente essa chave que a Revoluo Francesa, que Poder Judicirio

    surge com o fim do Antigo Regime? Que Poder Judicirio o que a comunidade espera em

    uma Repblica? Se pudermos pensar em Poder Judicirio da modernidade como sendo este

    poder transformador, criador, motivador de universalidade dos direitos ou do processo de

    universalizao do gozo de direitos fundamentais, evidente que estamos muito distantes

    disso na realidade brasileira.

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    No h como analisar o Poder Judicirio brasileiro sem analisar a sua funo penal,

    sua funo de controle social. O Poder Judicirio brasileiro nasce como um instrumento nas

    mos do Executivo para ser realmente uma ferramenta de controle social, de segurana

    pblica. O modelo judicirio, digamos liberal, que em alguma medida a constituio do Imprio

    trazia j esculpido, referido e que j estava neutralizado pelo prprio poder moderador do

    imperador, aquele Poder Judicirio na prtica no tinha absolutamente nada a ver com o

    discurso do texto constitucional. As prticas sociais entregaram a juzes, desde o incio dahistria do Poder Judicirio brasileiro, a tarefa de ser instrumento de segurana pblica. Juzes

    como intendentes, juzes como policiais ou, em outras palavras, policiais como juzes. A

    formao da nossa estrutura judiciria trazia, logo de cara, esta deformao com a atribuio

    de funes de segurana pblica a quem deveria ter uma posio imparcial, dentro dos limites

    em que a imparcialidade possvel. Ter uma posio imparcial na gesto de conflitos. Em uma

    gesto de conflitos que tenderia a diminuir o grau de conflitividade social, reduzir o nvel de

    violncia na comunidade. Mas se isso era o modelo ideal do Poder Judicirio da modernidade

    no era, por certo, o modelo do Poder Judicirio brasileiro, de uma sociedade escravocrata, de

    uma sociedade marcada profundamente pelo tipo de produo que havia escolhido para ser a

    sua fora econmica e de uma sociedade que vivia num estado que ainda sequer se conhecia

    direito. Todos sabemos que a lngua falada no Brasil no incio do sculo XIX no era o

    portugus, era uma lngua geral, era uma combinao do portugus de quem chegava, com as

    lnguas trazidas pelos africanos que tambm chegavam, com a lngua dos ndios que j

    habitavam esta terra. Era uma lngua absolutamente incompreensvel, por exemplo, para um

    sujeito culto vindo de Portugal que no tivesse a experincia de viver no Brasil durante muito

    tempo. E o processo de uniformizao lingstica, que essencial na viso de muitos para a

    configurao da nacionalidade, de constituio de uma unidade lingstica, se fez dentro do

    prprio projeto de integrao territorial brasileira, com o enfrentamento entre o poder central e

    as foras provinciais numa luta que era entre conservadores: mais conservadores contra

    menos conservadores. Ento, uma luta de imposio da unidade territorial brasileira, a luta de

    imposio de um certo modelo econmico. Todas essas lutas foram travadas entre elites

    centrais e outras elites, mas seres humanos, negros, camponeses e o pessoal que j

    trabalhava nas cidades numa condio infeliz foram, de alguma forma, importantes nestas

    batalhas. Eu cito sempre a Balaiada como exemplo disso, porque as pessoas falam da

    Balaiada mas no se lembram de que, naquele mesmo perodo, os negros se revoltaram em

    quilombos no Maranho, liderados por Cosme, e se no fosse a fora militar dos negros dosquilombos, o Balaio e seu grupo de liberais no tinha conseguido enfrentar o poder central

    durante muito tempo. Mas esses todos certamente eram massa de manobra de um mecanismo

    complicado que tinha na justia uma das suas principais engrenagens. A justia criminal

    brasileira, no perodo da Regncia, foi empregada ao limite para atingir dois objetivos: o

    primeiro deles era no permitir que a justia, no seu funcionamento concreto, enunciasse

    regras que poderiam ser interpretadas como regras de universalizao de direitos. Tnhamos

    um tribunal do jri, nesse perodo da nossa vida no sculo XIX, que no tinha um juiz

    profissional como hoje, com a sua predominncia, a sua hegemonia no julgamento. Tinha, sim,

    pessoas da comunidade que conduziam todo o julgamento e quando nesses conflitos como a

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    Balaiada algum que integrava o grupo revoltoso dos balaios era levado a julgamento,

    perante esse tribunal popular, era absolvido com o seguinte argumento: esse sujeito tem que

    ser absolvido porque, na realidade, est lutando por nossa liberdade, por direitos da

    comunidade do Maranho. Ele est enfrentando o poder central, mas est enfrentando em

    busca de algo que o poder central nunca nos oferecer, o poder central nos oferece a

    escravido como modo de produo, o poder central nos oferece a aristocracia como modo de

    definio de estamentos sociais e aqui, no, os balaios esto querendo coisa diferente, estoquerendo construir uma Repblica em que haja unidade, igualdade, etc. Ento, se esse

    camarada matou um soldado, vai ser absolvido porque havia uma justa razo para tal. Quando

    os tribunais do jri, em meados do sculo XIX, comeavam a produzir esse tipo de deciso, o

    Poder Central se deu conta de como era importante dominar o Poder Judicirio, de como era

    importante no permitir que o Poder Judicirio tivesse essa independncia, de como era

    importante no permitir, tanto do ponto de vista ideolgico como do poltico, ter um Poder

    Judicirio capaz de dizer ao prprio governo central olha, voc est do lado errado, voc no

    tem razo. Vivamos uma poca em que no havia o chamado controle de constitucionalidade

    das leis, o juiz no podia deixar de aplicar uma lei por entend-la inconstitucional e isso era

    muito positivo para as elites, mas ainda assim no era suficiente. No era suficiente porque,

    apesar de tudo, era possvel se produzir decises contestando o status quo. Ento, h um

    desmonte, o tribunal do jri brasileiro desmontado, e estou citando s um dos inmeros

    exemplos que poderia citar aqui. Ele desmontado, desaparecem esses jurados que decidiam

    um pouco como decidem os jris americanos que vocs assistem pela televiso: encerrado o

    debate, se reuniam, conversavam entre si, trocavam idias e, em seguida, apresentavam o

    veredito, que era a posio deles, jurados, a respeito daquele caso. Aquilo desaparece, um juiz

    profissional inserido neste processo e esse juiz profissional era absolutamente ligado aos

    interesses da Coroa e s permanecia naquela cidade, naquela comarca frente daquele Juzo

    enquanto bem servisse Coroa. Seria curiosidade histrica? Seria curiosidade histrica se isso

    no representasse a realidade do Poder Judicirio ao longo de toda a nossa histria at bem

    recentemente.

    Se dermos um salto e chegarmos a dois perodos duros da realidade brasileira, 1937-

    1945 e 1964-1985, veremos que o Poder Judicirio no Brasil, salvo rarssimas excees que

    podem ser enunciadas nos dedos de uma das mos Vitor Nunes Leal, Evandro Lins e Silva,

    mais dois ou trs ministros do Supremo , em nenhum momento se prestou a contestar os

    regimes autoritrios que produziram matana, que produziram extermnio, que produziram

    diferenciao social. Portanto, a nossa folha de servios prestados democracia muito

    curtinha, muito pequena, medida por decises isoladas de um ou outro juiz, e no consegue

    ser vista como sendo a expresso do Judicirio da modernidade, do Judicirio defensor dos

    direitos fundamentais, do Judicirio no como obstculo transformao social, mas como um

    relevante instrumento desta prpria transformao social. Isso tudo absolutamente cultural.

    Um Poder Judicirio que funciona assim independentemente do que a Constituio diga

    todos so iguais perante a lei , independentemente do que as leis digam todos tero o

    mesmo tipo de tratamento em situaes tais ou quais um Poder Judicirio bastantesensvel a prticas que no combinam, mas misturam o pblico e o privado. H uma

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    privatizao no s do pblico, mas tambm do Estado e eu no confundo estatal com

    pblico (so dimenses diferentes, uma mais abrangente outra menos abrangente). No se

    trata de fazer essa diferena, mas de pensar a coisa de uma forma diversa: um professor e ex-

    ministro da Justia, Miguel Reale Jnior, disse o seguinte, que uma frase do rei Lus XIV: o

    Estado sou eu; se fosse proferida por um brasileiro, seria diferente: o Estado meu. Essa a

    percepo, porque essa configurao do Poder Judicirio servil s tem sentido se ele, ns

    juzes, que temos o poder de decidir os casos concretos podemos tirar o filho do pai eentregar me, da me e entregar ao pai ou tirar dos dois; podemos mandar algum para a

    cadeia por 20, 30, 40, 100 anos, podemos fazer tanta coisa e no o fazemos porque, de

    algum modo, o no fazer objeto de algum tipo de troca. H uma troca nisso, no se trata da

    intimidao do Poder Judicirio, muito embora ns saibamos que atitudes hericas em

    momentos extremos so exigidas de heris, no necessariamente de pessoas comuns.

    Portanto, ter uma atitude herica l no perodo em que a Olga Benrio est sendo embarcada

    para ser liquidada pela Alemanha nazista ou uma atitude herica em pleno perodo Mdici no

    Brasil, quando se sabia que o sistema penal que valia era o sistema penal subterrneo e no o

    sistema penal formal, uma coisa complicada. Mas no se trata aqui de fazer referncias a

    atitudes hericas, mas a decises cotidianas que, pelo seu conjunto, so indicativas de uma

    maneira de ser que j funciona como uma fora capaz de controlar ou de conter o

    autoritarismo, de controlar e de conter as violaes dos direitos fundamentais. Esta fora, que

    a soma das prticas concretas de cada juiz no seu dia-a-dia e que no precisa ser

    necessariamente herica, no precisa ser alguma coisa que v colocar em risco a vida, a

    segurana desse sujeito. Essa fora no se produziu no Brasil exatamente porque a histria do

    Poder Judicirio brasileiro era a de ser um locus de relao promscua com o poder. E nas

    minhas pesquisas e como professor de processo penal, digo que no adianta a gente pensar o

    processo penal sem ver como ele realizado na prtica. No adianta eu dizer para o aluno que

    todo sujeito que suspeito da prtica de um crime ser acusado em Juzo quando, na

    realidade, dentro da Delegacia de Polcia funcionam mecanismos informais de seleo para

    definir quem ser acusado e quem no ser acusado. Aqui vai se dar o mesmo, no adianta eu

    dizer para vocs que os mecanismos de seleo dos juzes so perfeitos, so ajustados a

    princpios democrticos e republicanos, quando sabemos que, historicamente, at o concurso

    pblico esteve e est sob suspeita, de tantas coisas estranhas que acontecem.

    E quando comeamos a observar o padro disso na Amrica Latina porque tambm

    em outros lugares o fenmeno se d da mesma forma: na Argentina, na Colmbia e em outros

    pases , vamos perceber exatamente o que est no fundo disso tudo, ou seja, as grandes

    negociaes que so o fator decisivo na seleo de quem vai estar no Poder Judicirio. E se

    eu penso em algum que aceita se submeter a um tipo de negociao deste gnero para ser

    juiz, porque esta pessoa no vai aceitar outras tantas negociaes para no perturbar o poder,

    no incomodar o poder? O que o nepotismo dentro do Poder Judicirio seno mais uma

    moeda de troca? O que a sesso secreta do julgamento sem motivao seno a

    possibilidade de punir e de calar as vozes dissidentes, divergentes, quer pelos motivos mais

    nobres quer apenas porque no tomam parte do banquete.

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    O que mais lamento em tudo isso que ns chegamos em 1988 cheios de esperana

    de mudana, participamos do processo, no nos damos conta de como esse processo ia se

    realizar na prtica. Havia uma utopia to grande, uma vontade to grande de que esse pas

    desse certo que nos esquecemos de ver o seguinte: a transio democrtica brasileira foi

    talvez uma das mais negociadas transies democrticas de que se tem notcia. Foi uma

    transio democrtica em que ficou muito claro para aqueles que estavam deixando o governo

    que eles no estavam necessariamente deixando o poder. Quer dizer, todo mundo sabe quemfoi Jos Sarney, quem Jos Sarney, quem foi e quem Antnio Carlos Magalhes. Decerto,

    toda transio tecnicamente falando, em termos de cincia poltica pressupe algum nvel

    de negociao, mas esse nvel de negociao leva em conta as foras emancipatrias que se

    impem naquele momento s reacionrias, que esto sendo vencidas, aquele grupo autoritrio

    que est sendo apeado do poder. No caso brasileiro no, no caso brasileiro, por uma questo

    de poltica econmica, a transio foi uma negociao em que quem tinha as cartas na mo

    era quem estava com o poder e continuou tendo depois e ficamos ns com a migalha, com o

    resto e com a utopia, porque sonhar preciso. E ficamos ns com a utopia. Dentro do Poder

    Judicirio as coisas continuaram da mesma forma, dentro do Poder Judicirio aquele mesmo

    nvel de prticas que conhecamos de antes, prosseguiu. Eu entrei, fui Promotor de Justia de

    1985 a 1988. Em 1988, eu ingresso no Poder Judicirio e algumas semanas depois

    promulgada a Constituio. Eu entrei numa poca em que juzes no pagavam imposto de

    renda, juzes at hoje tm benefcios e beneplcitos que so incompatveis com a regra

    primria de que todos so iguais perante a lei. Dizem que eu sou antiptico. Tem um

    restaurante no 4 andar que tem uma cerca que separa os homens de bem dos que no so de

    bem. Eu fico com os que no so de bem, no tem jeito, dizem mas voc pega nas pequenas

    coisas, voc muito chato. Mas as pequenas coisas so signos, falando para psiclogos, as

    pequenas coisas emitem fortes sinais de como a gente configura o mundo, que representao

    mental temos do mundo, dos nossos semelhantes, se so to semelhantes assim ou no. E a

    entra a virtude de tudo, porque se pensarmos que l em 1850 aqueles senhores de escravos

    se achavam os reis da cocada preta, isso eterno e esses animais falantes vo nos servir at

    o fim dos tempos e hoje ns nos damos conta de que foi possvel em alguma medida mudar

    isso e impor goela abaixo: todos somos iguais! Voc pode no gostar do cara, mas vai ter que

    aturar o malandro, voc vai ter que viver com ele. Ento, conseguimos transformar uma

    diferenciao eterna, mudar alguma coisa, bvio que condenamos os escravos que saram

    da senzala, que foram para as periferias, foram sofrer outro tipo de escravido. Mas uma lutaconstante, uma coisa dinmica e essa dinmica da sociedade que nos permite acreditar em

    foras transformadoras, que nos permite acreditar que s vezes seis valem mais que

    seiscentos e que possvel lutar algumas vezes com as armas que esto nossa disposio e

    outras tantas construir armas novas, criativas para mudar a realidade. Dentro do Poder

    Judicirio eu creio que as grandes mudanas esto vindo atravs de algo que interessante

    que a classe mdia hoje chegando mais ao Poder Judicirio, tendo acesso condio de ser

    juzes. No suficiente porque a fora dessa caixa de formao de mentalidade conservadora

    que o Poder Judicirio uma fora imensa. Individualmente, o sujeito tem que lutar muito

    para no ceder ao gozo de ser chamado de senhor (e tem ao judicial movida por juiz para

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    ser chamado de senhor). Olha como isso poderoso, mas voc tem uma juventude que vai

    lutando e vai superando isso, que vai tomando conta do espao, que vai se questionando. Se

    vocs olharem neste restaurante, tem muito mais juiz do lado de fora daquela cerca do que do

    lado de dentro. Do lado de dentro esto os mesmos que sempre estiveram h 10, 20, 30 anos.

    Do lado de fora tem toda uma magistratura que olha aquilo e fala mas que coisa absurda, ser

    que esses caras se acham melhores que os outros realmente?. No basta isso s, no basta

    uma postura individual para resolver, como no basta um para resolver as grandes questes daviolncia da nossa cidade, no bastam apenas as nossas prticas e posturas individuais.

    necessrioa uma ao poltica, necessrio ir luta politicamente, recuperar o senso do

    sujeito poltico da Grcia Antiga. Entender que tudo aquilo que diz respeito polis diz respeito a

    cada um de ns. Sofrer como estamos sofrendo no Rio de Janeiro e no fazer nada um crime

    maior com as geraes do futuro. Eu termino a minha fala como eu tenho terminado no ltimo

    ms, ando to angustiado, to triste, ao mesmo tempo procurando fora dentro de mim para

    continuar com os meus companheiros nessa batalha e essa frase funciona como combustvel

    para mim. Os africanos costumam dizer que o mundo no aquele que ns herdamos dos

    nossos pais mas aquele que ns tomamos de emprstimo a nossos filhos. Portanto,

    obrigao nossa devolver melhor o que a gente pega emprestado. No podemos devolver pior.

    Essa a significao, este o sentido do sujeito poltico que cada um de ns tem que ser. Era

    a contribuio que eu podia trazer. Muito obrigado!

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    A CA CLNICALNICADADA SSUBJETIVIDADEUBJETIVIDADE:: ENTREENTREOOPRIVADOPRIVADOEEOOPBLICOPBLICO

    Ana Cristina Figueiredo16

    Intitulei minha apresentao de A Clnica da Subjetividade: entre o

    privado e o pblico e pretendo e pretendo fazer alguns comentrios, algumas

    notas como prembulo sobre essa questo de privado e pblico e falar um

    pouco do que estou chamando de a clnica da subjetividade. Eu diria que

    mais a clnica do sujeito, mas subjetividade um nome de mais circulao e

    tive realmente uma experincia inusitada chegando aqui no Frum, que me fez

    pensar o que privado e pblico. Estou h quase 15 minutos tentando achar

    esse auditrio porque um excesso de informaes, indicaes e setas e o

    excesso de possibilidades e voc se perde completamente. No por falta de

    indicao, apesar de eu no ter visto nenhuma placa em que estivesse escrito

    Auditrio Antonio Carlos Amorim. Mas eu perguntava s pessoas e cada uma

    me mandava para um lado. Fiquei pensando realmente que o auge do privado

    o anonimato: voc est perdido em um pblico de massa, annimo, com umaalta incidncia de ternos e gravatas e ningum sabe de voc nem voc sabe de

    ningum. Ento, acho que o insuportvel do privado esse anonimato, voc

    no nada para ningum e ningum nada para voc, as indicaes no te

    levam a lugar algum e o pblico uma massa amorfa. Assim, eu diria que foi

    uma experincia chocante.

    Acho que essa questo do privado e do pblico muito prpria do

    campo da histria e da antropologia e no vou entrar nesse detalhe, mas vou

    falar um pouco da experincia do sujeito. Todos sabemos que essa inveno

    do privado e do pblico, ou pelo menos a inveno dessa separao, marca a

    modernidade. Enfim, historicamente, isso j foi dito exausto: a partir do

    sculo XVIII, com certo pice no sculo XIX, a separao entre privado e

    pblico, a valorizao da intimidade, do espao privado, a nuclearizao da

    famlia, a separao entre o profundo e a superfcie que marcam o chamado

    individualismo burgus e nesse campo nascem todas as prticas psi,16 Psicanalista e professora do Instituto de Psiquiatria da UFRJ.

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    inclusive a psicanlise. Freud falava em psicologia profunda, alguma coisa que

    fala do interior, do privado, do ntimo. Esse o retrato, digamos, do sculo XIX

    e da passagem ao sculo XX. Eu s queria marcar que tambm socilogos que

    esto falando isso no esto trazendo nenhuma novidade quanto a esse

    campo contemporneo. Que, ao contrrio do que parece, trata-se de invaso

    do pblico pelo privado; no o pblico invadindo a privacidade, no invasoda privacidade como o cinema pode nos vender, com o olhar pelo buraco da

    fechadura. No invaso da privacidade, o privado invadindo o pblico. A

    intimidade se expe exausto na mdia, nos programas de televiso, e no

    limite a gente tem esse fenmeno, nos ltimos 3 ou 4 anos, que o chamado

    Big Brother, que um fenmeno mundial de exposio do mais ntimo ao

    olhar curioso que tudo quer ver. O privado invade o pblico, o privado se

    expe, se apresenta. O privado toma o pblico. A partir disso, como se pensano espao jurdico, que deveria ser o espao pblico propriamente dito, ao

    mesmo tempo legislando sobre uma srie de experincias da ordem do

    privado? Ento, fiquei pensando em varas de famlia, varas da infncia e da

    adolescncia, litgios, confrontos pela posse de crianas, adoo, questes de

    tutela, abuso sexual, pequenas infraes... E me perguntei: o privado invade o

    pblico em busca de solues? O pblico deve dar respostas ao privado?

    Devemos manter esta distino entre privado e pblico? Qual a utilidade dela,

    em ltima instncia? Qual o teor dessas respostas que nem sempre esto

    escritas nas leis?

    No pretendo falar do ofcio de vocs, psiclogos aqui presentes que

    trabalham na esfera do judicirio. Acho que so vocs que tm de falar disso e

    gostaria mais de ouvir do que falar: saber sobre os casos que aparecem, as

    incidncias no sistema jurdico, quais so os maiores problemas que vocs

    enfrentam no cotidiano desse trabalho. Mas eu queria ento marcar alguma

    coisa para discusso e trazer uma referncia da psicanlise a que se possa

    remeter esse trabalho rduo, que toca o impossvel a cada vez. O que vem a

    ser essa clnica da subjetividade, do sujeito?

    Eu vou marcar trs coisas brevemente, trs tpicos e vamos ver como

    que a gente pensa isso. Primeiro, eu queria marcar a diferena do sujeito e do

    indivduo. Se o indivduo o produto dessa separao entre privado e pblico,

    ele o privado e o pblico o social, o sujeito no exatamente indivduo.Pelo menos o que a psicanlise nos ensina, desde Freud, com certeza, e

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    Ele extrado de uma certa falao, da controvrsia, do burburinho da fala

    colocado em cena, em pauta, em ato. E a voc tem o sujeito se constituindo

    em ato, a partir do seu dizer. Isso fundamental para se fazer laudos, para se

    fazer avaliaes e percias de um modo geral, para construir um laudo, por

    exemplo, ou decidir coisas, e um ato perante o juiz, inclusive. O Juiz tem uma

    funo de acolher esse dizer como um ato.

    A terceira coisa que eu queria marcar sobre a questo da

    singularidade do sujeito, se isso privado ou pblico, o que sujeito, o que

    individual e o que singular. Tem uma certa confuso, um certo rudo nessas

    trs coisas e eu diria enfim que preciso a gente trabalhar o termo

    singularidade de uma maneira mais desdobrada, a primeira acepo do termo

    mais corrente de nico, peculiar, exclusivo, singular. Um dizer, um ato tem

    uma dimenso singular, ele nico como ato. Podemos pensar singularidadetambm como um conjunto de fatores num arranjo nico. O que d a

    singularidade no a unidade e sim um composto de fatores estruturais

    incidentais que constituem um momento e mesmo uma trajetria do sujeito. O

    sujeito se apresenta de um modo singular ou naquele momento ou por conta

    de uma determinada trajetria e o singular pode se remeter ainda situao

    mais do que ao sujeito, sujeito capturado numa situao singular. As situaes

    que se apresentam so singulares porque, sendo ou no previsveis, cabe acada um o trabalho de lidar com isso, com um novo sentido, ou simplesmente

    suportar seus efeitos. Eu acho que essa idia de singularidade como um

    arranjo nico ou uma situao nica mais interessante que a idia da

    singularidade como algo essencial, de um ser nico. Queria deixar algumas

    indicaes aqui sobre como fazer essa clnica operar, onde voc tem um

    sujeito que efeito de linguagem, que se diz num ato e que tem situaes

    singulares. A gente tem que julgar, avaliar e analisar caso a caso. O juiz, a meu

    ver, faz uma clnica do caso a caso, ele tem que decidir, julgar, caso a caso,

    um conjunto de componentes que fazem daquele caso o sujeito singular, com

    todas as variveis do caso. Quanto aos profissionais psi, podemos pensar na

    situao diagnstica e ento proponho o que a gente prope na clnica da

    sade mental de um modo geral, de uma situao que requer a participao de

    todos os envolvidos no problema. Mas, para isso, requer a convocao do

    sujeito no dizer e o registro dos ditos a partir do dizer. A gente no deve, no

    diagnstico da situao, dissociar o dito do dizer. Um segundo item a

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    convocao com o sujeito a cada caso compactuando frente ao juiz, ou frente a

    uma situao dada, frente sua prpria determinao do sujeito como

    convocao, um sujeito de resposta, de responsabilidade pelo que diz e

    inclusive sobre o que j fez ou deixou de fazer. E o tempo da resposta; a

    relao com o tempo muito importante. preciso aproveitar o tempo do

    decurso de um processo jurdico, ou de um tempo que necessrio, morosopara que as coisas aconteam e muitas vezes h uma pressa, uma urgncia de

    ter que haver uma resposta. Mas preciso abrir um hiato nesse tempo para

    recolher o que for possvel da narrativa dos casos fazendo aparecer com louvor

    dentro do dizer, convocando porque muitas vezes, o sujeito no diz, ele se cala

    ou ele convocado a dizer alguma coisa que ele no diz, ele resiste s

    intervenes. Ento preciso um tempo para convocar esse sujeito do dizer

    para que ele possa tomar posio frente a seu prprio destino.

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    experts, com os peritos, que na poca no eram psiclogos, eram mdicos,

    sobretudo mdicos psiquiatras. Trabalhei com a construo da figura do perito

    e explorei um pouco a complexidade dessa relao entre Direito e cincia. Eu

    vou me ater a isso, tendo claro que as duas instncias trabalham com a

    verdade de modos muito diferentes e, portanto, tem-se um n com possveis e

    inmeros conflitos de uma relao que eu acho que no se resolveu at hoje.Vocs que trabalham nessa rea devem muito bem saber que o Direito tem

    uma grande dificuldade em trabalhar com tons intermedirios, ou a pessoa

    culpada ou ela inocente, ou ela cometeu o crime ou ela no cometeu.

    Enquanto que a cincia, nas suas verses menos positivistas, no trabalha

    com esse nvel de certeza. Ento, enquanto o Direito trabalha com o certo, a

    cincia tende a trabalhar com o provvel e, portanto, as conexes e as

    correlaes a so complicadssimas, as brigas de poder so enormes, eu achoque no s no final do sculo XIX, mas ainda hoje, no comeo do sculo XX -

    foi esse o perodo que eu trabalhei.

    H uma grande discusso, da qual muitos de vocs devem ter

    conhecimento, quanto ao fato de a cincia ter invadido o Direito, principalmente

    a Medicina e as cincias psi, ou se elas foram convocadas, conjuradas pelo

    Direito para resolver problemas que o sistema tinha dificuldade de tratar. Eu

    lembro da posio do Robert Castel - que um socilogo francs com livrofamoso Alienismo: a idade de ouro da psiquiatria que, por exemplo, trabalha

    com a hiptese de que de fato os juzes chamaram os psiquiatras, os alienistas

    no comeo do sculo XIX, para dar conta de casos que a nova lgica liberal de

    interpretao das aes humanas no dava conta. Uma lgica baseada no

    clculo de interesses, na idia da racionalidade, ento para se julgar um ato

    tem que se aceder aos interesses e aos clculos que o indivduo fez para

    cometer aquele ato. E, como diz o Castel, em alguns casos essa localizao de

    interesses no simples. Casos, por exemplo, de parricdios, como o famoso

    caso do Pierre Rivire, tratado por Foucault, que mata a famlia, mata a irm e

    ao mesmo tempo explica porque fez, mas uma razo inaceitvel, ele no

    consegue ser processado dentro da lgica dos interesses. Portanto, os

    mdicos psi, os alienistas eram chamados para dar um destino a essas

    pessoas. Ento, h essa dvida em relao origem, se a cincia invade o

    Direito ou se o Direito convida a cincia para se pronunciar, para funcionar

    dentro do sistema judicirio. Embora eu tenha trabalhado essas questes, eu

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    nunca pensei em termos da relao entre o pblico e o privado, ento de fato

    para mim esse convite foi tambm um convite para pensar sobre essa questo

    sobre a qual nunca tinha me concentrado. Ento, trago para vocs so

    reflexes preliminares em cima dessa experincia de alguns anos, bons anos

    de trabalho nessa rea, principalmente na rea do Direito Criminal. Frente a

    essa minha incerteza em relao contribuio que traria, tive uma conversacom o Eduardo, que um dos organizadores do evento. E o que ficou de mais

    consistente foi um desconforto que eu senti, um desconforto em relao

    prpria atividade de psiclogo jurdico. E acho um desconforto saudvel

    porque, do meu ponto de vista, qualquer atividade cientfica que no for

    acompanhada de uma boa dose de autocrtica s pode ser perigosa. Ento, o

    que eu sentia era um certo desconforto do prprio psiclogo jurdico quanto

    sua atuao. No sei se estou interpretando equivocadamente. O Eduardo memostrou o material do Encontro, com um olho que tem na ilustrao do folder e

    disse que tinha um panptico dentro do olho. Eu no consegui enxergar o

    panptico dentro do olho, mas eu entendi o que o Eduardo estava falando, pois

    quando ele falava me vinham mente duas teses que eu li - uma de uma

    psicloga que est aqui do nosso lado, Ana Paula Uziel, e uma outra de uma

    antroploga, Adriana Viana, que trabalharam com Direito Civil, com Tribunal da

    Infncia e da Adolescncia. A Ana trabalhando com homossexualidade e

    adoo e a Adriana trabalhando com processos de guarda. E nesses dois

    trabalhos, que eu recomendo para quem no leu, aparecem muito bem

    descritas as atividades dos experts judicirios nessa rea, ou seja, que no a

    rea criminal, tanto dos psiclogos quanto dos assistentes sociais envoltos nas

    suas atividades de fazer laudos, fazer pareceres, acompanhar casos. E no

    fica muito claro a espcie de investigao que eles procedem na vida privada

    dos candidatos adoo ou guarda. como se aos psiclogos e assistentes

    sociais trabalhando nessa rea ficasse reservada a tarefa de julgar as vidas

    privadas. Eu fico pensando se a atividade seria diferente dos experts, dos

    peritos psiquiatras ou antroplogos criminais do sculo XIX que tambm

    invadiam os corpos para, sob a pele, identificarem as tendncias criminosas.

    Eu acho que se a gente trabalhar com a perspectiva foucaultiana, a resposta

    no. No h uma diferena entre os antigos e modernos psiquiatras forenses e

    a atividade dos psiclogos e dos assistentes sociais na rea do Direito de

    Famlia.

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    Enquanto tcnicos das cincias humanas, queiramos ou no, e eu me

    incluo entre esses tcnicos, somos senhores da norma. Para usar as

    formulaes de Foucault, uma norma sem a qual o edifcio jurdico que se

    constri a partir do sculo XVIII no pode funcionar, norma que funciona sob a

    lei, mas que d sentido lei, como o que d sentido mais profundo a essa lei.

    Ento, nessa complexa relao com a lei, pergunta-se se o indivduo temdireito adoo. a norma que pergunta: esse indivduo capaz? So

    questes completamente distintas que exigem tcnicas totalmente diferentes, e

    s tm sentido em determinado contexto histrico, claro. Eu vou voltar aqui a

    um ponto da Ana. O sculo XVIII instaura simultaneamente a separao formal

    entre o pblico e o privado, onde o privado a esfera do indivduo, do seu

    corpo e das extenses desse corpo, da casa, do domiclio, etc., e ao mesmo

    tempo instaura a necessidade de controle desse mundo privado. Pensandofoucaultianamente, voc tem esse duplo imperativo, de um lado voc constri o

    privado, voc formaliza o mundo privado e ao mesmo tempo voc cria a

    necessidade de controle desse mundo privado. E nessa injuno que ns

    continuamos vivendo at hoje. Eu fiquei pensando nessas idias e me parece

    que Foucault, ao mesmo tempo espelha uma determinada concepo da

    relao entre o pblico e o privado, entre o Estado e o indivduoque o que eu

    gostaria de trazer para vocs. Essa representao se dilata do meu ponto de

    vista de Lombroso, das teorias lombrosianas, passando pelo admirvel mundo

    novo. A Ana tambm se refere idia do Big Brother... e vai at a um filme que

    eu gostei muito - Minority Report - que eu acho que muitos de vocs devem

    ter visto. Embora eu no seja f do Tom Cruise, o filme muito interessante,

    baseado num romance de um dos melhores escritores de fico cientfica

    americanos. O filme muito interessante porque tudo transparente, as

    edificaes, os edifcios so feitos de vidro, voc v imediatamente tudo o que

    se passa no interior desses edifcios. Nesse mundo, voc tem trs figuras que

    so videntes, espcies de sensitivas que ficam numa sala e elas ficam

    recebendo impresses de crimes que vo acontecer e, portanto, no s os

    prdios so transparentes mas os indivduos e suas intenes tambm so

    transparentes, pelo menos para essas figuras. No momento em que elas

    antevem um crime, a polcia entra em ao imediatamente e previne o crime.

    Isso para mim a representao dessa concepo da maneira mais acabada,

    ou seja, o mundo privado fonte de todos os males. Onde o perigo se constri,

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    onde o perigo se gesta. Um mundo totalmente transparente, onde o privado

    no existe, um mundo da ordem absoluta, um mundo sem violncia, enfim,

    sem nenhum tipo de imprevisibilidade. Bem, ns no estamos longe da idia de

    Lombroso - que muita gente deve conhecer - s que quem v no so mais

    sensitivos que esto prevendo o futuro, mas o prprio cientista que,

    examinando o corpo. diz esse indivduo perigoso e fornece um laudo depericulosidade. Eu imagino que os psiclogos, at onde eu conheo da

    literatura, ficam nesse drama: essa famlia uma famlia disfuncional, ela vai

    ser o melhor, no vai ser, como saber? Continua nessa atividade um pouco de

    vidncia. Portanto, ns voltamos para o desconforto. Ento, eu fiquei

    imaginando que talvez para pensar esse desconforto seja necessrio

    problematizar essa concepo segundo a qual a tendncia do pblico, a

    tendncia do Estado, de, na medida do possvel, invadir o privado, esse odevir do Estado, o privado um problema, que o sonho totalitrio. Eu acho

    que a gente tem que problematizar e contextualizar essa concepo para lidar

    talvez melhor com a prpria prtica dos tcnicos dentro do sistema judicirio.

    No se trata, do meu ponto de vista, de jogar fora a criana com a gua do

    banho. No h muitas dvidas quanto ao contnuo e progressivo

    esquadrinhamento daquilo que a partir do sculo XVIII chamamos de mundo

    privado e a talvez a gente v um pouco em direes contrrias. E isso era feito

    atravs dos exames tcnicas, segundo Foucault, por excelncia dos experts -

    ou atravs da valorizao pblica do mundo privado. Lembrei, por exemplo, do

    trabalho da Marisa Corra sobre assassinato de mulheres: um trabalho antigo

    da dcada de 1970, onde ela vai mostrar como de fato nos casos de

    assassinatos de mulheres por seus maridos, companheiros, etc., nunca est

    em questo o ato; o que se julga a vida da pessoa, a vida da mulher. Assim,

    se a mulher tem muitos sapatos, por exemplo, isso vai ter um peso no

    julgamento do seu assassino. No caso, se a mulher no decente, ou seja, se

    sua vid