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6 Universidade Estadual de Campinas 19 de julho a 1º de agosto de 2004 U 19 ÁLVARO KASSAB [email protected] ma reportagem sobre o ritu- al de iniciaçªo no candomblØ, publicada em maio de 1951 pela revista francesa Paris Match, de- sencadeou uma polŒmica que mobi- lizou intelectuais da altura de Roger Bastide, enfureceu a comunidade a- fro-brasileira e mexeu com os brios da imprensa nacional, leia-se revis- ta O Cruzeiro, a mais influente do país à Øpoca. Todos os lances da contro- vØrsia foram investigados num im- pressionante trabalho de reconsti- tuiçªo histórica levado a cabo pelo antropólogo, fotógrafo e professor Fernando de Tacca, titular do Institu- to de Artes da Unicamp. Contemplado com uma Bolsa Vi- tae, Tacca obteve os recursos neces- sÆrios para empreender uma busca acalentada havia tempos: sair à ca- ça dos protagonistas de uma histó- ria cujo início coincidiu com a esta- da no Brasil do cineasta francŒs Hen- ri-Georges Clouzot, autor das fotos que ilustraram a matØria da Paris Match. O desfecho do embate pode ser demarcado com o troco da revista O Cruzeiro, mate- rializado com reportagem sobre o mesmo tema quatro meses depois do furo im- posto pelo lado francŒs em plena Bahia. Tacca percorreu terrei- ros e vasculhou arquivos de jornais e de bibliotecas para fundamentar sua pes- quisa, intitulada Entre a Paris Match e O Cruzeiro Imagens do Sagrado, traba- lho prestes a ser transformado em li- vro. O professor começou a se interes- sar pelo assunto em 1983, ano em que conheceu o livro CandomblØ, de autoria do fotógrafo JosØ Medeiros. A obra, publicada em 1957 pela edi- tora O Cruzeiro, trazia 62 fotografias de um ritual de iniciaçªo. Na oca- siªo, o antropólogo MicŒnio Carlos dos Santos, um adepto dos cultos afro-brasileiros, forneceu as primei- ras pistas, adiantando a Tacca que as imagens eram recorrentes no ima- ginÆrio do candomblØ baiano. O do- cente, um estudioso da antropologia visual, ficou impressionado com o apuro tØcnico das fotografias e com o fato de as imagens serem ambien- tadas num cenÆrio onde o acesso era permitido apenas a iniciados. Em 1988, Tacca teve a oportunida- de de entrevistar JosØ Medeiros. O fotógrafo revelou que parte das fo- tos reunidas no seu livro havia sido usada na reportagem As noivas dos deuses sanguinÆrios, publi- cada pela O Cruzeiro em setembro de 1951. Segundo Medeiros, a reporta- gem feita em Salvador em parceria com o repórter Arlindo Silva sobre o ritual de iniciaçªo no candomblØ (epilaçªo), teve uma repercussªo muito grande, a tal ponto que a mªe- de-santo fora assassinada e que as filhas-de-santo acabaram nªo sen- do legitimadas e reconhecidas pelos adeptos da religiªo. Pela versªo do fotógrafo, diz Tacca, a matØria foi feita para que os estrangeiros conhe- cessem o verdadeiro candomblØ. Medeiros nªo fez, porØm, nenhuma mençªo à matØria da Paris Match, pu- blicada quatro meses antes. Tacca foi saber, em meados de 2003, da existŒncia da reportagem publi- cada pelos franceses, quando esteve em Salvador durante 40 dias jÆ na condiçªo de pesquisador bolsista. An- tes de chegar à capital baiana, porØm, o professor da Unicamp havia incum- bido um assistente de pesquisar jor- nais da Øpoca. Por meio do material co- letado, o docente descobriu que a ma- tØria de O Cruzeiro havia feito um ba- rulho muito maior do que imaginara. O pesquisador constatou, por e- xemplo, que o matutino DiÆrio de No- tícias, dos DiÆrios Associados, incen- diou a cena religiosa local publican- do chamadas sobre a reportagem de O Cruzeiro, nos cinco dias que antece- deram a chegada da revista a Salva- dor. O título da chamada jÆ dizia tu- do: O Deus tem sede de sangue. AlØm de um excerto do texto da reportagem escrita por Arlindo Sil- va, o jornal publicou uma das fotos produzidas por Medeiros para a ma- tØria. A foto publicada mostrava o sacrifício de um animal na cabeça de uma filha-de-santo (iaô). Tratava-se de uma imagem muito forte para um leigo, pondera Tacca, lembrando que outros dois jornais baianos, A Tarde e O Estado da Bahia, adotaram o mesmo procedimento, sendo que este œltimo reproduziu a chamada veiculada pelo DiÆrio de Notícias. A direçªo de O Cruzeiro, prevendo o su- cesso da ediçªo, aumentou a tiragem em 10%. A revista estourou a banca. O elo Um anœncio publicado pelo jornal A Tarde na ediçªo de 22/11/ 1951, passados dois meses portan- to da reportagem de O Cruzeiro, en- contrado por Tacca em suas pesqui- sas na capital baiana, levou o pesqui- sador aos motivos que fizeram a pu- blicaçªo brasileira investir no as- sunto. O comunicado, ban- cado pela Federaçªo Baiana de Cultos Afro-Brasileiros, convidava todos os terrei- ros, os simpatizantes do cul- to, a imprensa e o povo em geral, para assistirem à as- semblØia geral extraordinÆ- ria, a fim de especialmente julgar conveniente as publi- caçıes que foram feitas na re- vista Paris Match e O Cruzeiro, a respei- to do culto africano na Bahia. De posse da informaçªo, Tacca foi atrÆs da reportagem publicada pela Paris Match. Nªo precisou rodar mui- to. O pesquisador descobriu, por meio do site da publicaçªo, que a revista, ainda em circulaçªo, tinha em esto- que um exemplar de 15/05/51, data em que circulou a matØria As possuídas da Bahia. A reportagem estava es- crita na terceira pessoa. As fotos eram de autoria de Clouzot. A passagem do cineasta francŒs pelo Brasil foi objeto de um minuci- oso levantamento. Clouzot desem- barcou no país em maio de 1950. Veio com a mulher, Vera Amado filha do escritor Gilberto Amado , trazen- do na bagagem 3,5 toneladas de e- quipamentos e 70 milhıes de fran- cos para fazer um filme. Pretendia rodÆ-lo em um ano. Conhecido inter- nacionalmente, Clouzot foi recebi- do com festa pela intelectualidade nativa, que promoveu encontros em sua homenagem. O filme, por razıes que permane- cem desconhecidas, nªo foi realiza- do. Na verdade, especula o docente da Unicamp, talvez nem o próprio Clouzot tinha convicçªo do que pre- tendia produzir. Soube-se apenas que o filme se chamaria Le BrØsil, nªo tinha um roteiro definido e exi- biria algo próximo de um diÆrio de viagens. De concreto, conforme apu- rou Tacca, o cineasta flanou por al- gumas regiıes do país, sem deixar de emitir opiniıes boa parte nada li- sonjeiras sobre o que presenciara. Por outro lado, havia sua mulher, Vera, nªo por acaso escalada como protagonista do filme. O certo Ø que entrou Ægua no pro- jeto. O equipamento e os tØcnicos voltaram no mesmo navio que ha- via deixado a França rumo ao Bra- sil. Algumas vozes se levantaram em defesa do cineasta, entre as quais a do jornalista Paulo Duarte. Em ar- tigo publicado na revista Anhembi, de sua propriedade, Duarte, polemista de carteirinha, nªo deixou por me- nos viu fantasmas no Catete e em nossas incredibilíssimas câmaras federais, estaduais e municipais. Para o intelectual paulistano, tu- do conspirou contra Clouzot, a come- çar da dificuldade em se obter a libe- raçªo alfandegÆria dos equipamen- tos, passando pela impossibilidade de se importar película virgem, atØ chegar em advertŒncias veladas da censura. Nenhuma das ilaçıes feitas por Duarte se confirmou, mas Clouzot nªo se deu por vencido, revela Tacca. Malogrado seu projeto, decidiu tro- car as telas pelas rotativas da Paris Match. Os protagonistas e a ambien- taçªo mencionados por Duarte, po- rØm, foram mantidos. Clouzot e sua mulher brasileira afinaram os ouvi- dos para os sons dos tambores que ecoavam nos arrabaldes de Salvador, uma cidade que contava à Øpoca com 400 mil habitantes, 96 igrejas e 453 templos fetichistas, segundo a con- tabilidade do próprio cineasta. Tamanha oferta de sincretismo lo- go levaria Clouzot e Vera ao intento. O cineasta chegou a contratar uma domØstica filha-de-santo que pas- sava por longos estados de embru- tecimento. Uma outra, que a substi- tuiu, se exprimia por grunhidos, por gestos, por onamatopØias. TrŒs me- ses e milhares de francos de propinas depois, o cineasta e sua mulher conse- guem chegar a um terreiro, levados por um certo sacerdote Nestor, pai- de-santo jamais identificado. A incursªo rendeu a matØria Les PossØdØes de Bahia (As possuídas da Bahia), alardeada em seu subtí- tulo pela Paris Match como um ex- traordinÆrio documento etnogrÆ- fico. A abertura da matØria, vendi- da como uma amostra exclusiva de um livro que Clouzot lançaria pos- teriormente sobre o tema, Le Che- val de Dieux [O Cavalo dos Deu- ses], dizia ainda que pela primeira vez um branco entrara num san- tuÆrio de deuses negros. Se Clouzot queria um trabalho impressionista sobre o Brasil, co- mo declarara em entrevista, conse- guiu seu objetivo com sobras. Ad- jetivado sem parcimônia, o texto traz descriçıes detalhadas das possuí- das sendo banhadas com sangue de animais bode, galinhas e pombos vertido sobre as cabeças (perfura- das) e os corpos das filhas-de-santo iniciadas no candomblØ. Em matØria de sensacionalismo, o capítulo imagØtico nªo ficou devendo ao es- crito. O cineasta francŒs, que diz ter sido obrigado a sorver o sangue de um pombo recØm-sacrificado, foi impiedoso em suas consideraçıes sobre o ritual. Disse tratar-se de um caso patológico. A reaçªo à matØria, que ficou de início circunscrita a determinadas rodas de intelectuais com acesso à publicaçªo francesa, ganhou corpo depois de sua reproduçªo na ínte- gra, pelo jornal baiano A Tarde, pas- sados dois meses de sua chegada às bancas (ediçıes de 10,11 e 12 de ju- lho de 1951). Tacca e seu assistente na Bahia, ClÆudio David da Cruz, nªo precisaram recorrer aos arquivos jornalísticos. Deliberadamente, o docente da Unicamp dedicou em seu trabalho um capítulo [O contracam- po de Pierre Verger] sobre o fotógrafo e etnólogo francŒs Pierre Verger co- mo contraponto ao trabalho sensa- cionalista realizado por Clouzot e JosØ Medeiros. E foi justamente na Fundaçªo que leva o nome de Verger, em Salvador, onde Tacca encontrou os documen- tos sobre a polŒmica. Explica-se: o fotógrafo francŒs manteve-se dis- tante da refrega midiÆtica. Distan- te, porØm atento. Verger recortava e catalogava todos os lances da po- lŒmica. Os guardados de Verger, pa- ra Tacca um ícone das relaçıes da imagem fotogrÆfica com o mundo religioso do candomblØ e da cultu- ra afro-brasileira, foram preciosos. EstÆ tudo lÆ. A começar da primei- ra das manifestaçıes de protesto do sociólogo francŒs Roger Bastide, pro- fessor da Faculdade de Filosofia da Universidade de Sªo Paulo. O intelec- tual, teoria à parte, sabia onde estava pisando. Havia sido, por exemplo, o autor de matØria sobre iniciaçªo no candomblØ, feita coincidentemente em parceria com Pierre Verger, de quem era amigo. A reportagem foi pu- blicada na revista A Cigarra em 1949. Em reportagem veiculada no dia 7 de julho de 1951 pelo jornal A Tar- A mãe-de-santo Risolina Eleonita da Silva, a Mãe Riso da Plataforma: pesquisador resgata trajetória de protagonistas de reportagem O ano em que Clouzot, O Cruzeir Foto: Reprodução Pesquisador vasculhou arquivos e percorreu terreiros

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Page 1: 6 O ano em que Clouzot, ‚O Cruzeir - unicamp.br · A reportagem foi pu-blicada na revista A Cigarra em 1949. ... 2 de agosto de 1951 ... fiO ‚furo™ Ø de doer,

6 Universidade Estadual de Campinas � 19 de julho a 1º de agosto de 2004

U

19ÁLVARO KASSAB

[email protected]

ma reportagem sobre o ritu-al de iniciação no candomblé,publicada em maio de 1951

pela revista francesa Paris Match, de-sencadeou uma polêmica que mobi-lizou intelectuais da altura de RogerBastide, enfureceu a comunidade a-fro-brasileira e mexeu com os briosda imprensa nacional, � leia-se revis-ta O Cruzeiro, a mais influente do paísà época. Todos os lances da contro-vérsia foram investigados num im-pressionante trabalho de reconsti-tuição histórica levado a cabo peloantropólogo, fotógrafo e professorFernando de Tacca, titular do Institu-to de Artes da Unicamp.

Contemplado com uma Bolsa Vi-tae, Tacca obteve os recursos neces-sários para empreender uma buscaacalentada havia tempos: sair à ca-ça dos protagonistas de uma histó-ria cujo início coincidiu com a esta-da no Brasil do cineasta francês Hen-ri-Georges Clouzot, autor das fotosque ilustraram a matéria da ParisMatch. O desfecho do embate pode serdemarcado com o �troco�da revista O Cruzeiro, mate-rializado com reportagemsobre o mesmo tema quatromeses depois do �furo� im-posto pelo lado francês emplena Bahia.

Tacca percorreu terrei-ros e vasculhou arquivosde jornais e de bibliotecaspara fundamentar sua pes-quisa, intitulada Entre a Paris Match eO Cruzeiro � Imagens do Sagrado, traba-lho prestes a ser transformado em li-vro.

O professor começou a se interes-sar pelo assunto em 1983, ano em queconheceu o livro �Candomblé�, deautoria do fotógrafo José Medeiros.A obra, publicada em 1957 pela edi-tora O Cruzeiro, trazia 62 fotografiasde um ritual de iniciação. Na oca-sião, o antropólogo Micênio Carlosdos Santos, um adepto dos cultosafro-brasileiros, forneceu as primei-ras pistas, adiantando a Tacca que asimagens eram recorrentes no ima-ginário do candomblé baiano. O do-cente, um estudioso da antropologiavisual, ficou impressionado com oapuro técnico das fotografias e como fato de as imagens serem ambien-tadas num cenário onde o acesso erapermitido apenas a iniciados.

Em 1988, Tacca teve a oportunida-de de entrevistar José Medeiros. Ofotógrafo revelou que parte das fo-tos reunidas no seu livro havia sidousada na reportagem �As noivasdos deuses sanguinários�, publi-cada pela O Cruzeiro em setembro de1951. Segundo Medeiros, a reporta-gem feita em Salvador em parceriacom o repórter Arlindo Silva sobreo ritual de iniciação no candomblé(epilação), teve uma repercussãomuito grande, a tal ponto que a mãe-de-santo fora assassinada e que asfilhas-de-santo acabaram não sen-do legitimadas e reconhecidas pelosadeptos da religião. Pela versão dofotógrafo, diz Tacca, a matéria foifeita para que os estrangeiros conhe-cessem o �verdadeiro candomblé�.Medeiros não fez, porém, nenhumamenção à matéria da Paris Match, pu-blicada quatro meses antes.

Tacca foi saber, em meados de 2003,da existência da reportagem publi-cada pelos franceses, quando esteveem Salvador durante 40 dias já nacondição de pesquisador bolsista. An-tes de chegar à capital baiana, porém,o professor da Unicamp havia incum-bido um assistente de pesquisar jor-nais da época. Por meio do material co-letado, o docente descobriu que a ma-téria de O Cruzeiro havia feito um ba-rulho muito maior do que imaginara.

O pesquisador constatou, por e-xemplo, que o matutino Diário de No-tícias, dos Diários Associados, incen-diou a cena religiosa local publican-do chamadas sobre a reportagem de

O Cruzeiro, nos cinco dias que antece-deram a chegada da revista a Salva-dor. O título da chamada já dizia tu-do: �O Deus tem sede de sangue�.

Além de um excerto do texto dareportagem escrita por Arlindo Sil-va, o jornal publicou uma das fotosproduzidas por Medeiros para a ma-téria. �A foto publicada mostrava osacrifício de um animal na cabeça deuma filha-de-santo (iaô). Tratava-sede uma imagem muito forte para umleigo�, pondera Tacca, lembrandoque outros dois jornais baianos, ATarde e O Estado da Bahia, adotaram omesmo procedimento, sendo queeste último reproduziu a chamadaveiculada pelo Diário de Notícias. Adireção de O Cruzeiro, prevendo o su-cesso da edição, aumentou a tiragemem 10%. A revista estourou a banca.

O elo � Um anúncio publicadopelo jornal A Tarde na edição de 22/11/1951, passados dois meses portan-to da reportagem de O Cruzeiro, en-contrado por Tacca em suas pesqui-sas na capital baiana, levou o pesqui-sador aos motivos que fizeram a pu-blicação brasileira investir no as-

sunto. O comunicado, ban-cado pela Federação Baianade Cultos Afro-Brasileiros,�convidava todos os terrei-ros, os simpatizantes do cul-to, a imprensa e o povo emgeral, para assistirem à as-sembléia geral extraordiná-ria, a fim de especialmentejulgar conveniente as publi-cações que foram feitas na re-

vista Paris Match e O Cruzeiro, a respei-to do culto africano na Bahia�.

De posse da informação, Tacca foiatrás da reportagem publicada pelaParis Match. Não precisou rodar mui-to. O pesquisador descobriu, por meiodo site da publicação, que a revista,ainda em circulação, tinha em esto-que um exemplar de 15/05/51, data emque circulou a matéria �As possuídasda Bahia�. A reportagem estava es-crita na terceira pessoa. As fotos eramde autoria de Clouzot.

A passagem do cineasta francêspelo Brasil foi objeto de um minuci-oso levantamento. Clouzot desem-barcou no país em maio de 1950. Veiocom a mulher, Vera Amado � filha doescritor Gilberto Amado �, trazen-do na bagagem 3,5 toneladas de e-quipamentos e 70 milhões de fran-cos para fazer um filme. Pretendiarodá-lo em um ano. Conhecido inter-nacionalmente, Clouzot foi recebi-do com festa pela intelectualidadenativa, que promoveu encontros emsua homenagem.

O filme, por razões que permane-cem desconhecidas, não foi realiza-do. Na verdade, especula o docenteda Unicamp, talvez nem o próprioClouzot tinha convicção do que pre-tendia produzir. Soube-se apenasque o filme se chamaria �Le Brésil�,não tinha um roteiro definido e exi-biria algo próximo de um diário deviagens. De concreto, conforme apu-rou Tacca, o cineasta flanou por al-gumas regiões do país, sem deixar deemitir opiniões � boa parte nada li-sonjeiras � sobre o que presenciara.

Por outro lado, havia sua mulher,Vera, não por acaso escalada comoprotagonista do filme.

O certo é que entrou água no pro-jeto. O equipamento e os técnicosvoltaram no mesmo navio que ha-via deixado a França rumo ao Bra-sil. Algumas vozes se levantaramem defesa do cineasta, entre as quaisa do jornalista Paulo Duarte. Em ar-tigo publicado na revista Anhembi, desua propriedade, Duarte, polemistade carteirinha, não deixou por me-nos � viu fantasmas no Catete e �emnossas incredibilíssimas câmarasfederais, estaduais e municipais�.

Para o intelectual paulistano, tu-do conspirou contra Clouzot, a come-çar da dificuldade em se obter a libe-ração alfandegária dos equipamen-tos, passando pela impossibilidadede se importar película virgem, até

chegar em �advertências veladas dacensura�.

Nenhuma das ilações feitas porDuarte se confirmou, mas Clouzotnão se deu por vencido, revela Tacca.Malogrado seu projeto, decidiu tro-car as telas pelas rotativas da ParisMatch. Os protagonistas e a ambien-tação mencionados por Duarte, po-rém, foram mantidos. Clouzot e suamulher brasileira afinaram os ouvi-dos para os sons dos tambores queecoavam nos arrabaldes de Salvador,uma cidade que contava à época �com400 mil habitantes, 96 igrejas e 453templos fetichistas�, segundo a con-tabilidade do próprio cineasta.

Tamanha oferta de sincretismo lo-go levaria Clouzot e Vera ao intento.O cineasta chegou a contratar umadoméstica filha-de-santo que �pas-sava por longos estados de embru-tecimento�. Uma outra, que a substi-tuiu, �se exprimia por grunhidos, porgestos, por onamatopéias�. Três me-ses e milhares de francos de propinasdepois, o cineasta e sua mulher conse-guem chegar a um terreiro, levadospor um certo �sacerdote Nestor�, pai-de-santo jamais identificado.

A incursão rendeu a matéria �LesPossédées de Bahia� (As possuídasda Bahia), alardeada em seu subtí-tulo pela Paris Match como �um ex-traordinário documento etnográ-fico�. A abertura da matéria, vendi-

da como uma amostra exclusiva deum livro que Clouzot lançaria pos-teriormente sobre o tema, �Le Che-val de Dieux� [�O Cavalo dos Deu-ses�], dizia ainda que pela primeiravez um branco entrara �num san-tuário de deuses negros�.

Se Clouzot queria um trabalho�impressionista� sobre o Brasil, co-mo declarara em entrevista, conse-guiu seu objetivo com sobras. Ad-jetivado sem parcimônia, o texto trazdescrições detalhadas das �possuí-das� sendo banhadas com sangue deanimais � bode, galinhas e pombos �vertido sobre as cabeças (perfura-das) e os corpos das filhas-de-santoiniciadas no candomblé. Em matériade sensacionalismo, o capítuloimagético não ficou devendo ao es-crito. O cineasta francês, que diz tersido obrigado a sorver o sangue deum pombo recém-sacrificado, foiimpiedoso em suas consideraçõessobre o ritual. Disse tratar-se de umcaso patológico.

A reação à matéria, que ficou deinício circunscrita a determinadasrodas de intelectuais com acesso àpublicação francesa, ganhou corpodepois de sua reprodução na ínte-gra, pelo jornal baiano A Tarde, pas-sados dois meses de sua chegada àsbancas (edições de 10,11 e 12 de ju-lho de 1951). Tacca e seu assistente naBahia, Cláudio David da Cruz, não

precisaram recorrer aos arquivosjornalísticos. Deliberadamente, odocente da Unicamp dedicou em seutrabalho um capítulo [O contracam-po de Pierre Verger] sobre o fotógrafoe etnólogo francês Pierre Verger �co-mo contraponto ao trabalho sensa-cionalista realizado por Clouzot eJosé Medeiros�.

E foi justamente na Fundação queleva o nome de Verger, em Salvador,onde Tacca encontrou os documen-tos sobre a polêmica. Explica-se: ofotógrafo francês manteve-se dis-tante da refrega midiática. Distan-te, porém atento. Verger recortavae catalogava todos os lances da po-lêmica. Os guardados de Verger, pa-ra Tacca �um ícone das relações daimagem fotográfica com o mundoreligioso do candomblé e da cultu-ra afro-brasileira�, foram preciosos.

Está tudo lá. A começar da primei-ra das manifestações de protesto dosociólogo francês Roger Bastide, pro-fessor da Faculdade de Filosofia daUniversidade de São Paulo. O intelec-tual, teoria à parte, sabia onde estavapisando. Havia sido, por exemplo, oautor de matéria sobre iniciação nocandomblé, feita coincidentementeem parceria com Pierre Verger, dequem era amigo. A reportagem foi pu-blicada na revista A Cigarra em 1949.

Em reportagem veiculada no dia7 de julho de 1951 pelo jornal A Tar-

A mãe-de-santo Risolina Eleonita da Silva, a Mãe Riso da Plataforma: pesquisador resgata trajetória de protagonistas de reportagem

O ano em que Clouzot, �O CruzeirFoto: Reprodução

Pesquisadorvasculhouarquivos epercorreuterreiros

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517Universidade Estadual de Campinas � 19 de julho a 1º de agosto de 2004

Rio, 2 de agosto de 1951

Caro Medeiros

Acabo de receber a reportagem das baleias� mandei fazer logo as provas pequenas epelo que pude olhar no laboratório está boa.Poderia estar magnífica se houvesse por aíuma teleobjetiva para focar cenas longín-quas como as do harpoamento. Estou pro-videnciando para que em breves dias �OCruzeiro� possua equipamentos especiaisde fotografia para todas as emergências.

Soube que você andou meio mal dospulmões com qualquer cousa parecida compneumonia (ou moléstia do sono? ), masacredito que já esteja bom. O motivo destacarta, como se pode prever, não é de sauda-des de tão insignificantes criaturas que vocês

A missão secreta: �O �furo� é de doer, caramba!�

Reproduções das matérias da “ParisMatch” e “O Cruzeiro”

O professor Fernando de Tacca: imagens foram ressignificadas por adeptas do candomblé

O professor Fernando de Taccaencontrou a carta publicada abaixo naCasa de Cultura de Teresina, cidadenatal do fotógrafo José Medeiros. Maisque um documento histórico, acorrespondência revela a temperaturade “O Cruzeiro” depois da reportagemde Clouzot, e dimensiona a missãosecreta imposta a Medeiros pelo entãodiretor de redação da revista, AcciolyNeto. “Ao colocar o jornalista de textoem segundo plano, valorizou-se afotografia como principal elemento decomunicação pretendida”, avaliaTacca. Detalhe: Arlindo Silva, o autorda reportagem, leu a carta pela primeiravez em 2002, 51 anos depois de escrita,ao ser entrevistado por Tacca.Segundo depoimento de Silva, JoséMedeiros deve ter recebido a pautaquando ambos estavam em Cabedelo,na Paraíba, preparando umareportagem sobre a pesca da baleia.Ainda de acordo com o repórter, ochefe mencionado por Accioly eraLeão Gudim, diretor responsável de “OCruzeiro” e primo de AssisChateaubriand, dono dos DiáriosAssociados. Odorico Tavares, outronome citado, ocupava a chefia dasucursal de Salvador.

de, Bastide, �em viagem pela Bahiamais de passeio do que de estudos�,acusa Clouzot de sensacionalismo,de ignorar fundamentos científicoselementares, questiona a veracida-de das imagens e vê na postura do ci-neasta traços de uma visão colonia-lista. A mesma matéria foi repro-duzida no jornal O Globo, em 18 dejulho de 1951, com os seguintes títu-lo e subtítulo: �Caluniada em Parisa cidade de Salvador � A Reporta-gem de Clouzot agita a sociedadebaiana � O sociólogo Roger Bastidecontradiz seu patrício�.

Além de Bastide, quatrosoteropolitanos expressaram, nosdiários locais, sua indignação coma matéria de Clouzot � o médico Es-tácio de Lima, o historiadorGustavo Barroso e os professoresJosé Valladares e Edison Carneiro.Este último, um especialista em cul-tos afro-brasileiros, chegou a reco-mendar Clouzot a amigos e a repre-sentantes de terreiros famosos daBahia. Mais: em seu livro �Le Chevalde Dieux�, Clouzot admite que nãosabia da existência do candombléaté conhecer Carneiro. O estudiosonão deixou por menos. Acusou ofrancês de reproduzir, sem citar afonte, trechos inteiros de seu livroCandomblés na Bahia. Não foi menosimpiedoso acerca da reportagemgestada pelo cineasta: �Sensaciona-

lismo, nada mais. Clouzot fez cine-ma com as letras�.

Tacca localizaria, na Unicamp, ou-tros três artigos emblemáticos so-bre a polêmica. Por indicação de Flá-via Carneiro Leão, coordenadora doCentro de Documentação Alexan-dre Eulálio (Cedae), do Instituto deEstudos da Linguagem (IEL), encon-trou na mesma Anhembi em que PauloDuarte sai em defesa de Clouzot, doisartigos de Bastide e um outro deAlberto Cavalcanti, cineas-ta que assumira o posto deprodutor geral da Compa-nhia Vera Cruz depois detransitar pela vanguardaeuropéia.

Anhembi reproduz umacarta distribuída por Caval-canti nas redações. O docu-mento teria sido, segundo Tacca, aprimeira manifestação pública con-trária à reportagem da Paris Match. Odocumento havia sido publicadopela Folha da Noite (SP) e pelo Diário deNotícias (BA), entre outros jornais, emjulho de 51. Em setembro, Anhembi a re-produziu. �Foi uma espécie de reden-ção, já que a revista havia exaltado apresença de Clouzot no Brasil�,relembra o docente da Unicamp.

Intitulado �Procuremos esquecero senhor Clouzot�, o artigo de Ca-valcanti contextualiza o conjunto

da obra do francês para depois ata-car sua reportagem. �Mostrar osnossos negros domésticos lambuza-dos de sangue...como a única coisavista por ele no Brasil digna de sermostrada é uma atitude um tantoesquisita. Por isso venho à presençada �Match� para botar os pingos nosii�, escreve o cineasta brasileiro. Namesma revista, na edição de agosto,Roger Bastide desbanca o conter-râneo sem meias-palavras no artigo

intitulado �A etnologia e osensacionalismo ignoran-te�. Enumera uma série deerros cometidos pelo cine-asta, apontando �um dese-jo sensacionalista dupla-mente injurioso para osmeus amigos de cor e para osmeus amigos brancos da

Bahia, em detrimento da verdade. Eo que não se pode tolerar�.

Tacca avalia a postura de Bastide.�Do alto de sua legitimidade acadê-mica, o sociólogo francês disseca areportagem da Paris Match como ne-nhum outro intelectual havia feito,colocando Clouzot no plano de suatotal ignorância e arrogância coloni-zadora�. Na edição seguinte de A-nhembi, Bastide atenuaria o tom desuas críticas para elogiar o livro deClouzot, �Le cheval de dieux�, segun-do as palavras do sociólogo francês

�infinitamente superior à reporta-gem sensacionalista que dele tirarampara fazer para fazer publicidade�.

Bastide, de resto, foi a única voz ase levantar contra a reportagem fei-ta pela O Cruzeiro. Suas críticas foramdisparadas no artigo �Uma Repor-tagem Infeliz�, publicada na ediçãode novembro de Anhembi. No texto, ointelectual francês menciona o silên-cio sepulcral que se seguiu à matériados brasileiros. �Fiquei à espera doprotesto dos que se haviam voltadocontra Clouzot, a saber os Cavalcanti,os Edison Carneiro e outros. Porém,passam-se os dias e este prolongadosilêncio me assusta�. Desconfia-se,avalia Tacca, que a sombra de AssisChateuabriand, o todo-poderoso do-no dos Diários Associados, grupopublicador de O Cruzeiro, tenha pai-rado acima do bem e do mal.

O texto da revista O Cruzeiro nãoressoou entre a intelectualidade,mas caiu como uma bomba nos mei-os religiosos baianos, cujos repre-sentantes abominaram a idéia de ossegredos do candomblé serem reve-lados. A corda arrebentou no ladomais fraco. No caso, sobrou para acidadã Risolina Eleonita da Silva,mãe-de-santo mais conhecida comoMãe Riso da Plataforma, protago-nista da reportagem. O regaste desua história e das três filhas-de-san-

to reportadas na matéria consumiuboa parte da pesquisa de Tacca, quecomeçou seu levantamento no bair-ro da Plataforma, em Salvador.

Embora hostilizada por seus pa-res, Risolina não foi assassinada etampouco teve de sair corrida deSalvador, como rezava a lenda. Es-tabeleceu-se na cidade fluminensede Nilópolis, no final da década de1950, onde exerceu intensamentesuas atividades de mãe-de-santoaté morrer, em 1995. �Descobri queseu terreiro em Salvador foi demo-lido para a construção de uma ave-nida. Ela foi inclusive indenizada.Mesmo saindo de Salvador, consta-tei que Mãe Riso manteve um inter-câmbio intenso com o candomblébaiano�, revela Tacca.

Outra das descobertas foi o desti-no dado às imagens pelas adeptas docandomblé. Janíldece Barroso da Sil-va, a Jane, filha de Waldemira Olivei-ra Barroso, a Perrucha, uma das iaôsretratadas na matéria, mostrou aodocente um álbum confeccionadopela mãe com as fotos da epilaçãopublicadas na revista. �O mais incrí-vel é que essas imagens foramressignificadas no âmbito domésti-co�, constata o pesquisador. Mãe Riso,por sua vez, guardava consigo umexemplar do livro �Candomblé�, deJosé Medeiros. A mãe-de-santo sem-pre teve alvará. E memória.

o� e intelectuais rodaram a baiana

Bastide foi oúnico a criticarreportagem de

brasileiros

Foto: Antoninho Perri

Foto: Reprodução

Foto: Reprodução

dizer que �em hipótese nenhuma publica-rá agora�. Ora, meu caro Medeiros, se umfrancês chamado Verger conseguiu foto-grafar os ritos secretos da macumba, e quan-do outro francês chamado Clouzot conse-guiu também o mesmo, porque raios que ospartam... um fotógrafo brasileiro não pode-rá fazer o mesmo? Estaremos tão avaca-lhados assim? Somos tão cretinos assim quenos deixemos vencer em nossa própria ter-ra por dois gringos?

O que há é o seguinte : nosso chefe acre-dita QUE JOSÉ MEDEIROS SERÁ OÚNICO FOTÓGRAFO BRASILEIROCAPAZ DE REALIZAR UMA FAÇA-NHA SEMELHANTE � eu quase que par-ticipo da mesma opinião, muito embora os ra-pazes cá de casa digam que TAMBEMELES PODERIAM FAZER OMESMO...Muito bem, você será capaz denos trazer uma reportagem ao menos seme-lhante ao de Clouzot ? Bem sei que agora acoisa está mais difícil depois do escândalo daParis-Match. Mas nada existe de impossí-vel quando há dinheiro para gastar, e vocêsestão autorizados a gastar o que for neces-sário para conseguir o que queremos. PARALAVAR NOSSA CARA TÃO DURA-MENTE ATINGIDA PELA REPORTA-GEM DE CLOUZOT. ( �nossa cara� querdizer, nossa honra de revista que realiza asmelhores reportagens do Brasil ). Você é ca-paz negróide amigo ? Pois então mãos à obrapara construir o maior cartaz da reportagembrasileira. Veja se Arlindo o auxilia, se essepaulista peçonhento e prosa p�ra chuchu sabefazer alguma cousa a não ser descobrir tra-mas comunistas inexistentes...

IMPORTANTÍSSIMO � Desse planoninguém deve saber, principalmente Ver-ger e inclusive nosso amigo querido O-dorico Tavares, que está com escrúpulos deabordar o assunto, de acordo com razões quepossua e que respeitamos. Trabalhe na moi-ta, dizendo que quer fazer cousas diversas,documentação pessoal sobre qualquer as-sunto, MAS NUNCA QUE ESTÁ PRO-CURANDO MATERIAL PARA BA-TER CLOUZOT. Combinado?

são, mas outro. UM MOTIVO QUE DE-VE FICAR ABSOLUTAMENTE SE-CRETO.

Como você sabe, aquela reportagem deParis-Match sobre os �Pocessos da Bahia�deixou nosso caro chefe com absoluta egravíssima dor de corno � principalmenteporque se sabe e viu que Verger possui fo-tografias tão sensacionais ou mais sensa-cionais do que as do cineasta francês. Vergeresteve aqui no Rio e foi convenientemen-te cantado para ver se nos cedia tal materi-al � fez promessas vagas e agora manda

Anexo reportagem de Clouzot, se é quevocê não a conhece, para inspiração. O �fu-ro� é de doer, caramba!