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7/16/2019 6011461 Anton Pavlovitch Tchekhov Contos http://slidepdf.com/reader/full/6011461-anton-pavlovitch-tchekhov-contos-5634f8ed262bb 1/117 No mar da Criméia Tchekhov I As trevas tornam-se cada vez mais densas. A noite desce. Gusief, antigo soldado, agora em baixa definitiva, incorpora-se na sua rede e diz baixinho:  — Escuta, Pavel Ivanytch: um soldado me contou que o barco dele chocou-se, no Mar da China, com um peixe que era do tamanho de uma montanha. Será verdade? Pavel Ivanytch permanece calado, como se não tivesse ouvido nada. O silêncio volta a reinar. O vento zune por entre as enxárcias. As máquinas, as ondas e as redes produzem monótono ruído. Mas quem tem o ouvido habituado há já muito tempo, quase não percebe dir-se-ia, mesmo, que tudo ao redor está mergulhado em profundo sono. O tédio gravita sobre os passageiros que se encontram na enfermaria. Dois soldados e um marinheiro voltam doentes da guerra. Passaram o dia inteiro jogando e agora, cansados, deitam-se e dormem. O mar torna-se um tanto agitado. A rede na qual Gusief está deitado ora sobe, ora desce, lentamente, como um peito arquejante. Algo fez ruído ao cair ao solo; talvez uma caneca.  — O vento partiu as suas correntes e está a correr mar — diz Gusief prestando atenção aos rumores que vêm do convés. Desta vez, Pavel Ivanytch tosse e exclama com voz irritada:  — Meu Deus! Que idiota que você é! Quando não se põe a dizer que um barco se despedaçou de encontro a um peixe, diz que o vento partiu as correntes, como se fosse uma de carne e osso...  — Não sou eu quem diz isso, são as pessoas de bem.  — São todos uns ignorantes como você. É preciso saber ter a cabeça no lugar e não acreditar em todas as bobagens que se contam pelo mundo. É preciso refletir bem, antes de aceitar uma idéia alheia. Pavel Ivanytch é sensível ao enjôo. Quando o navio começa a jogar, fica de mau humor e  pôr qualquer coisa se irrita. Gusief não compreende pôr que o vizinho de enfermaria se enerva tanto. Não há nada de extraordinário no fato de um barco se despedaçar de encontro a um peixe, havendo, como há, peixes maiores do que montanhas e de pele mais

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No mar da Criméia

Tchekhov

IAs trevas tornam-se cada vez mais densas. A noite desce. Gusief, antigo soldado, agoraem baixa definitiva, incorpora-se na sua rede e diz baixinho:

 — Escuta, Pavel Ivanytch: um soldado me contou que o barco dele chocou-se, no Mar daChina, com um peixe que era do tamanho de uma montanha. Será verdade?

Pavel Ivanytch permanece calado, como se não tivesse ouvido nada.

O silêncio volta a reinar. O vento zune por entre as enxárcias. As máquinas, as ondas e asredes produzem monótono ruído. Mas quem tem o ouvido habituado há já muito tempo,quase não percebe dir-se-ia, mesmo, que tudo ao redor está mergulhado em profundosono.

O tédio gravita sobre os passageiros que se encontram na enfermaria. Dois soldados e ummarinheiro voltam doentes da guerra. Passaram o dia inteiro jogando e agora, cansados,deitam-se e dormem.

O mar torna-se um tanto agitado. A rede na qual Gusief está deitado ora sobe, ora desce,lentamente, como um peito arquejante. Algo fez ruído ao cair ao solo; talvez uma caneca.

 — O vento partiu as suas correntes e está a correr mar — diz Gusief prestando atençãoaos rumores que vêm do convés.

Desta vez, Pavel Ivanytch tosse e exclama com voz irritada:

 — Meu Deus! Que idiota que você é! Quando não se põe a dizer que um barco sedespedaçou de encontro a um peixe, diz que o vento partiu as correntes, como se fosseuma de carne e osso...

 — Não sou eu quem diz isso, são as pessoas de bem.

 — São todos uns ignorantes como você. É preciso saber ter a cabeça no lugar e nãoacreditar em todas as bobagens que se contam pelo mundo. É preciso refletir bem, antesde aceitar uma idéia alheia.

Pavel Ivanytch é sensível ao enjôo. Quando o navio começa a jogar, fica de mau humor e pôr qualquer coisa se irrita. Gusief não compreende pôr que o vizinho de enfermaria seenerva tanto. Não há nada de extraordinário no fato de um barco se despedaçar deencontro a um peixe, havendo, como há, peixes maiores do que montanhas e de pele mais

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dura que o gelo. É muito natural, também, que o vento rompa as suas cadeias. Há muitotempo contaram a Gusief que lá longe, no fim do mundo, há enormes muralhas de pedra,às quais estão presos os ventos; às vezes eles partem as correntes e lançam-se através dosmares, uivando como cães loucos. Por outra parte, se não fosse verdade que estãoacorrentados, onde se escondem quando o mar está calmo?

Gusief fica a pensar longamente nos peixes do tamanho de montanhas, e nas pesadascadeias recobertas de ferrugem. Depois aborrece-se disso e passa a pensar na sua aldeia, para onde, agora, regressa, depois de cinco anos de serviço no Extremo Oriente. Suaimaginação evoca um vasto dique, recoberto de gelo e de neve. Numa das suas margensergue-se uma fábrica de louças, construída com tijolos vermelhos, de cuja alta chaminésaem negros rolos de fumaça. Na margem oposta estão espalhadas as casas da aldeia.

Gusief imagina que está vendo sua casa. Seu irmão Alexey, que na sua ausência se tornouo chefe da família, sai do pátio num trenó, acompanhado de seus dois filhos, Vânia eAkulka, ambos com grossas botas; Alexey está um tanto bêbedo. Vânia ri, Akulka traz

um xale que quase lhe oculta o rosto. — Pobres crianças, que frio devem sentir! — pensa Gusief. — Virgem Santa, protegei oscoitadinhos!

O marinheiro estendido ao lado de Gusief tem o sono muito agitado e começa a sonhar em voz alta.

 — É preciso mandar pôr meia-sola nas botas — exclama. — Se não é melhor jogá-lasfora.

A aldeia natal desaparece da mente de Gusief, seus pensamentos tornam-se desconexos.Vê a seguir uma enorme cabeça de boi, sem olhos; trenós, cavalos envoltos num espessohalo... Recorda, porém, embora vagamente, ter visto os seus, e isso lhe provoca umaalegria tão intensa que ele estremece da cabeça aos pés.

 — Vi a minha gente! Vi a minha gente! — murmura sonhando, com os olhos bemfechados.

 No mesmo instante incorpora-se bruscamente, abre os olhos e pede um copo de água.Depois de beber, torna-se a deitar e os sonhos retornam.

E assim até raiar o sol.

II

A escuridão vai diminuindo e a cabina ilumina-se. A princípio vê-se um círculo azul; é o postigo. Logo Gusief começa a distinguir o vizinho de maca, Pavel Ivanytch, o qualdorme sentado porque estendido sufocaria. Tem o semblante acinzentado, o nariz pontiagudo e os olhos muito aumentados pela horrenda magreza, vincadas as frontes,

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melenas longas... Pelo aspecto não se lhe adivinharia a categoria: intelectual, negocianteou clérigo? Pelas linhas do semblante e pela guedelha, parece um noviço de qualquer convento; porém, quando fala, verifica-se que não é frade. Aniquilado pela tosse, pelocalor e pela doença, respira a muito custo e para falar precisa fazer grande esforço. Notando que Gusief o observa, volve a cabeça e diz:

 — Começo a compreender... Agora, sim, compreendo tudo, perfeitamente bem!

 — Como, Pavel Ivanytch?

 — Olhe... Parecia-me estranho que vocês, tão doentes, estivessem aqui, num barco emterríveis condições higiênicas, respirando numa atmosfera impura, exposto ao enjôo,ameaçados a todo momento pela morte. Agora já não estranho isso. É uma peça de maugosto que os médicos vos pregaram. Meteram vocês neste barco para se livrarem devocês. Estavam fartos de vocês. Além disso, não lhes interessa tratar de doentes dessalaia, pois vocês não pagam. E não queriam que morressem no hospital, pois isso sempre

causa má impressão. Para se desembaraçarem de vocês, bastava, em primeiro lugar, não possuir consciência nem sentir amor à humanidade; depois, é só enganar o comandantedo navio. Quanto ao primeiro ponto, nem é preciso falar; somos, a esse respeito, artistas;e, com alguma prática, o segundo dá sempre bom resultado. Ninguém nota a falta dequatro ou cinco doentes entre quatrocentos soldados e marinheiros em perfeita saúde.Embarcados, vocês são postos no meio dos saudáveis; contados de afogadilho e naconfusão da partida, nada se vê de anormal. Inicia-se a viagem, percebem, como énatural, que todos vocês são paralíticos e tuberculosos de último grau, a se arrastarem....

Gusief não compreende Pavel Ivanytch . Supondo que Pavel está desgostoso com ele, diz para desculpar-se:

 — Não tenho culpa. Deixei que me embarcassem alegrando-me muito pelo fato de poder voltar para casa.

 — Oh! É revoltante — continuou Pavel Ivanytch. — Principalmente porque eles bemsabem que vocês não podem suportar esta longa travessia. Admitamos que vocêscheguem até o Oceano Índico. E depois? ... É terrível pensar nisso!... Eis a recompensa decinco anos de fiel e irrepreensível serviço!

Pavel Ivanytch, com expressão de ira e voz sufocada, diz:

 — Os jornais deveriam contar essas sujeiras! Seria uma boa lição para esses canalhas!Os dois soldados e o marinheiro doente acordaram e puseram-se a jogar baralho.

O marinheiro está meio sentado na maca; os soldados, perto dela, sobre a ponta, em posição incômoda. Um tem o braço enfaixado e o pulso envolto num verdadeiro montede pensos, de tal maneira que se vale da flexão de cotovelo para segurar as cartas.

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O barco baloiça violentamente, o que impede que a gente se levante para tomar chá.

 — Você era ordenança? — pergunta Pavel Ivanytch a Gusief.

 — Justamente.

 — Meu Deus! Meu Deus! — levanta-se Pavel Ivanytch. — Arrancar um homem do seuninho, obrigá-lo a fazer quinze mil verstas e apanhar a tuberculose, para... para que pergunto-lhes eu?... Para dele fazer a ordenança do capitão Kopeikine ou de um porta- bandeira Durka... Haverá lógica nisso?

 — O trabalho não é difícil, Pavel Ivanytch. É só levantar cedo, engraxar as botas, arrumar os quartos, e nada mais. O meu oficial ficava a traçar projetos o dia todo, eu podia dispor do meu tempo, podia ler, passear, conversar com os amigos. Francamente, não possoqueixar-me.

 — Sim, de fato; o tenente esboçava plantas e você ficava a se aborrecer a quinze milverstas da sua terra, desperdiçando os melhores anos da sua vida. Traçar plantas!... Nãose trata de plantas mas da vida humana, meu caro. E o homem só tem uma vida; devemos poupá-la.

 — Realmente, é verdade, Pavel Ivanytch — continua Gusief que mal entende oraciocínio do vizinho. — Um pobre diabo não é bem tratado em parte alguma, nem emcasa, nem no serviço. Mas se a gente cumpre sua obrigação, como eu, não tem nada etemer, que necessidade haverá de maltratá-los? Os chefes são pessoas instruídas ecompreendem as coisas... Eu, em cinco anos, nunca estive preso e, quanto a ser espancado... não o fui — se Deus não me tolhe a memória — senão uma vez...

 — E por quê?

 — Por uma rixa. Tenho a mão pesada, Pavel Ivanytch. Quatro chineses, se bem melembro, entraram no pátio da casa. Acho que procuravam trabalho. Pois bem, para passar o tempo comecei a dar neles. O nariz de um dos réprobos sangrou... O tenente, que tudovira da janela, me deu uma boa lição.

 — Meu Deus! Que imbecil que você é! — murmura Pavel Ivanytch. — Você nãocompreende nada!

Completamente aniquilado pelo balanço do barco, ele fecha os olhos. A cabeça ora se lheinclina para trás, ora sobre o peito. Tosse cada vez mais. Depois de curta pausa, diz:

 — Por que é que você espancou aqueles coitados?

 — À toa. Estava muito aborrecido.

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Reina de novo o silêncio. Os dois soldados e o marinheiro passam horas e horas a jogar, por entre blasfêmias e insultos. Mas as oscilações acabam por fatigá-los. Acabam a partida e deitam-se. Mal fecha os olhos, Gusief revê o grande lago, a fábrica, a aldeia...sua aldeia, com seu irmão e seus sobrinhos. Vânia recomeça a rir e a tola da Akulka, pondo as pernas fora do trenó, exclama: “Olhe, ó gente, as minhas botas são novinhas e

não como as de Vânia!”

 — Ela vai para os seis anos — delira Gusief — e ainda não tem juízo. Em vez de mostrar as botas, devia trazer água para o titio soldado! Depois, dar-lhe-ei bombons.

Depois avista seu amigo Andron, pederneira a tiracolo. Carrega uma lebre que matou.Issaitchik, judeu, segue-o a propor-lhe a troca da lebre por um pedaço de sabão. Ali, à porta da cabana, há uma novilha negra. Eis que surge Domna, sua esposa, que costurauma camisa e chora. Por que chora ela?... E eis, de novo, a cabeça de boi sem olhos e afumaça preta.

Adormece, mas um ruído no tombadilho o desperta. Alguém, lá em cima, está a gritar;acorrem diversos marinheiros. Parece que alguma coisa enorme e pesada foi levada à ponte ou, então, aconteceu qualquer coisa inesperada. Acorrem mais homens... Terásucedido alguma desgraça?! Gusief ergue a cabeça, espreita e vê que os dois soldados e omarinheiro recomeçaram o jogo. Pavel Ivanytch, sentado, move os lábios como sequisesse falar; mas não diz nada. Todos ofegam, sufocam, têm sede; o calor continua.Gusief tem a garganta a arder, mas a água morna causa-lhe repugnância. E o barcocontinua a dançar.

De repente, algo de anormal acontece a um dos soldados que jogam. Ele confunde onaipe de copas com o de ouros, erra na conta e deixa cair as cartas. Depois, olha em torno

de si com um sorriso hediondamente alvar. — Voltarei logo, camaradas... Esperem... eu... eu... — e estende-se no pavimento.

Os companheiros interrogam-no, estupefatos; ele não responde.

 — Stepan! Sente-se mal? — pergunta-lhe o soldado do braço ferido. — Hein? Quer quechame o padre, sim?

 — Stepan, beba água, beba, camarada, beba! — diz-lhe o marinheiro.

 — Mas por que você lhe empurra a caneca à boca? — exclama Gusief, irritado. — Nãovês, então, seu idiota?...

 — Como?...

 — “Como?..” — repete Gusief arremedando; — ele já não respira... está morto. E ainda perguntas: “Como?” Que idiota, meu Deus!

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III

Cessa o baloiço. Pavel Ivanytch está de novo alegre, não se irrita mais por qualquer coisa.Tornou-se até fanfarrão, escarnecedor. Tem o ar de quem deseja contar uma história tãoengraçada que provoque dor de barriga.

Pelo postigo aberto, uma brisa suave passa sobre Pavel Ivanytch. Ouvem-se vozes; osremos ferem a água compassadamente... Sob o postigo, alguém regouga; talvez umchinês que se tenha aproximado num bote.

 — Sim — diz Pavel Ivanytch, sorrindo zombeteiro — eis-nos no ancoradouro. Um mêsmais, e estaremos na Rússia. Sim, cavalheiros, estamos chegando. Os soldados são muitoacatados, sim senhor. Chegando em Odessa, seguirei para Carcov, onde tenho um amigoescritor a quem direi: “Vamos, amigo, deixa pôr um minuto os teus escabrosos temasrelacionados com mulheres e com amor; deixa de cantar as belezas da natureza e procuradivulgar as sujeiras dos seres de duas patas. Trago-te esplêndidos temas...”

Depois de ter pensado um minuto em qualquer coisa, torna:

 — Gusief, você sabe como os enganei?

 — A quem?

 — Aos que mandam no navio...Compreende? Na embarcação não há senão duas classes:a primeira e a terceira. De terceira só viajam os mujiks, também chamados broncos. Sevocê tiver um jaquetão e um certo ar de cavalheiro ou de burguês, é obrigado a viajar de primeira. Dir-lhe-ão: “ Arranje-se como puder, mas deve pagar quinhentos rublos”. “Qual

a razão desse regulamento? Quererá o senhor elevar com isso o prestígio dos intelectuaisrussos?” “Absolutamente, não. Não lhe permitimos viajar de terceira pelo simples motivode que não convém às pessoas distintas; passa-se bem mal e é repugnante”. “Muitoagradecido, prezado senhor, pela sua solicitude para com as pessoas distintas! Mas, comoquer que seja, não disponho de quinhentos rublos. Não fiz negócios escuros, não roubei oEstado, não exerci contrabando, não fiz morrer ninguém sob o açoite. Como posso ser rico? Ora, pense bem. Tenho eu o direito de estabelecer na primeira classe e, sobretudo,insinuar-me entre os intelectuais russos?” — Dado, porém que não é possível vencê-los pelo raciocínio, recorre-se a um ardil. Visto o capote e calço as botas altas; tomando umar de bêbedo dirijo-me ao bilheteiro:

 — Excelência, desejo uma passagem de terceira e que Deus o abençoe.

 — Qual é a sua profissão? — pergunta-me o funcionário.

 — Sou do clero. Meu pai foi um “pope” honesto. Muito sofreu pôr dizer sempre averdade aos poderosos deste mundo. Eu também sempre digo a verdade...

Pavel Ivanytch cansa-se de falar; respira com dificuldade. Mas prossegue:

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 — Sim, sempre digo a verdade sem rebuço... Não temo coisa alguma nem ninguém. Nesse ponto, há entre mim e vocês considerável diferença. Vocês não enxergam nada.Ignorantes, cegos, esmaga-os o peso da própria inferioridade. Acreditam que o vento estáamarrado com correntes e outras bobagens. Vocês beijam a mão que vos fere. Umespertalhão qualquer, vestido de peliça, rouba tudo que vocês têm e depois vos atira

quinze kopeks de gorjeta, e vocês dizem: — “Dê-me, Excelência, a honra de lhe beijar amão”. Párias, asquerosos... Quanto a mim, sou bem diferente. Levo uma vida consciente.Vejo tudo, como a águia ou o abutre que se eleva muito acima da terra. Compreendotudo. Sou a encarnação do protesto. Protesto contra o arbitrário, contra o beato hipócrita,contra os suínos triunfantes. E sou indomável. Nem mesmo a Inquisição espanhola meobrigaria a calar. Sim... Se me arrancassem a língua, minha mímica protestaria. Lancem-me num cubículo, tranquem a porta: bradarei tão fortemente, que serei ouvido a umaversta de distância; ou então, me deixarei morrer de fome para que a lôbrega consciênciados carrascos sinta um peso a mais. Todos os conhecidos me dizem: — “Pavel Ivanytch,na verdade você é insuportável!” Mas eu me orgulho dessa reputação. Enfim, que mematem! Minha sombra voltará aterradoramente. Prestei três anos de serviço no Extremo

Oriente, e lá deixei uma reputação para cem, porque me incompatibilizei com todomundo. Os amigos escrevem-me: “Não apareça!”, pois conhecem meu caráter belicoso. Eeu embarco! e volto a despeito dos seus avisos!... Sim, essa é a vida que eu compreendo.Isso sim é que se pode chamar a vida.

Gusief deixa de escutar e olha através do postigo. Uma canoa oscila sobre a águatransparente, cor de turquesa pálida, banhada em cheio pelo sol deslumbrante e abrasador. Nela, de pé e nus, alguns chineses oferecem gaiolas de canários e gritam:

 — Canta bem! Canta muito bem!

Outra canoa bate contra a primeira: passa uma embarcaçãozinha a vapor. E eis aindaoutra canoa, em que se vê um gordo chinês, que come arroz com pauzinhos. A águagorgulha preguiçosamente; há gaivotas brancas voando com indolência.

 — Oh! aquele gorducho... — pensa Gusief. — Seria gozado dar uns sopapos nesseanimal de cara amarela.

Dormindo em pé, aparece-lhe que toda a natureza cabeceia com sono. O tempo correveloz. O dia se escoa sem que se dê pôr isso e do mesmo modo a noite vem chegando...

O barco desamarrou e prossegue para destino ignorado.

IV

Passaram-se os dias. Pavel Ivanytch já não está sentado, mas curvado. Tem os olhosfechados e o nariz afinou-se ainda mais.

 — Pavel Ivanytch! — grita-lhe Gusief. — Ouviu, Pavel Ivanytch?

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 — Como é? Isso vai ou não vai?

 — Assim, assim... — responde Pavel Ivanytch, arquejante. — Ao contrário, vai atémelhor... Olhe, passo até deitado... A coisa vai melhorando.

 — Então, que Deus seja louvado!

 — Sim, estou melhor. Quando me comparo a vocês, sinto compaixão...Tenho os pulmõesfortes; a tosse me vem do estômago... Sou capaz de suportar o inferno. Por que falar nomar Vermelho? Além do mais, considera a minha doença e os remédios do ponto de vistacrítico... e vocês são uns pobres diabos... É terrível para vocês... muito, muito terrível.Tenho verdadeira pena de vocês.

As ondas já não fazem o barco jogar, mas a atmosfera é cálida e pesada como um barco avapor. Gusief apóia a cabeça nos joelhos e põe-se a pensar na sua aldeia. Com o calor quefaz, é um prazer pensar na aldeia, completamente coberta de neve nesta época do ano.

Sonha que está passeando de “ troika “ através dos campos gelados. Os cavalosespantados sem motivo, correm como loucos e atravessam o dique num único salto. Oscamponeses procuram detê-los, mas Gusief pouco se importa. Sente-se possuído pôr intensa alegria. É com prazer que recebe no rosto e nas mãos a glacial carícia do vento, ea neve a lhe cair pelo cabelo, pelo pescoço e pelo peito o imunda de felicidade.

 Não se sente menos contente quando, em dado momento, o carro vira, atirando-o na neve.Levanta-se satisfeito, coberto de neve da cabeça aos pés, e fica a se sacudir entre gostosasgargalhadas. Ao redor, os camponeses também soltam risadas e os cachorros, nervosos,ladram. Realmente formidável.

Pavel Ivanytch entreabre um olho, fita Gusief e pergunta: — Teu oficial roubava?

 — Não sei Pavel Ivanytch. Essas coisas não são de nossa conta.

Volta a reinar profundo silêncio. Gusief mergulhou de novo nos seus sonhos. De quandoem quando toma um pouco de água. O calor é tão forte que ele não tem vontade nenhumade falar nem de ouvir, e teme que a qualquer momento alguém lhe dirija a palavra.

Uma, duas horas transcorrem. À tarde sucede a noite; mas Gusief parece não ter notado

nada; continua na mesma posição, a fronte nos joelhos, a pensar na sua aldeia, no frio, naneve.

Ouvem-se passos, vozes. Ao cabo de cinco minutos tudo volta a cair no silêncio.

 — Que a terra lhe seja leve! — murmura o soldado do braço ferido. — Era um homemque deixava a gente nervoso.

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 — Quem? — pergunta Gusief esfregando os olhos. — De quem é que estás falando?

 — Ora, de quem? De Pavel Ivanytch! Morreu. Levaram-no para cima.

 — Como? — murmura Gusief como se não compreendesse. Fica longo tempo a meditar 

e por fim, com um suspiro, diz: — Então tudo se acabou! Que Deus o perdoe!

 — O que é que você acha? — pergunta o soldado. — Você acha que ele será admitido noParaíso?

 — Ele quem?

 — Pavel Ivanytch, homem!

 — Ah!... Creio que sim. Sofreu muito. Além disso, era do clero. Seu pai era “pope” erogará a Deus pelo filho.

O soldado senta-se na cama de Gusief e olhando-o fixamente, diz em voz baixa:

 — Também você, Gusief, não há de viver muito. Não voltará a ver a sua terra.

 — Quem disse isso!? O médico? O enfermeiro?

 — Ninguém, mas a gente vê logo. Percebe-se muito bem quando uma pessoa está paramorrer. Você não come, emagrece dia a dia... causa medo. Enfim, é a tuberculose. Nãodigo isso para o assustar, mas apenas no seu próprio interesse. Deveria receber osSacramentos... Além disso, se você tem dinheiro deve deixá-lo com o comissário do

navio...

 — Nem escrevi para minha gente — suspira Gusief. — Morrerei e eles não saberão denada.

 — Como não saberão? Quando você morrer eles escreverão para as autoridades militaresde Odessa, que, por sua vez, avisarão sua família.

Gusief está profundamente perturbado. Vagos desejos o afligem. Toma um pouco deágua, volta a perscrutar o mar através do postigo, porém nada consegue acalmá-lo. Nemmesmo a lembrança da aldeia consegue, agora, tranqüilizá-lo. Tem a impressão de que se

 permanecer mais um minuto na enfermaria cairá sufocado. — Estou muito mal, meus irmãos — diz baixinho. — Não posso continuar aqui... Queroir lá para cima. Quem quer ajudar-me?

 — Bom — diz o soldado. — Vou acompanhá-lo, já que não pode ir só. Apoie-se no meuombro.

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Gusief obedece. O soldado segura-o com a sua mão sã e ambos sobem vagarosamente aescada que conduz ao convés.

Em cima, o tombadilho está cheio de marinheiros e de soldados deitados no chão. Sãotantos que é difícil abrir caminho.

 — Sente-se — diz o soldado. — Eu o seguro.

 Não se vê muito bem. Não há luz no tombadilho, nem nos mastros, nem no mar. Umasentinela, de pé na extremidade do navio, está tão imóvel que parece adormecida. Dir-se-ia que o barco se encontra abandonado ao seu próprio destino e que ninguém se importaem lhe dar um rumo.

 — Vão atirar Pavel Ivanytch ao mar — murmura o soldado. — Vão costurá-lo num sacoe atirá-lo às ondas.

 — Sim — responde Gusief suavemente. — É do regulamento.

 — É melhor morrer em terra. De vez em quando a mãe da gente vem chorar junto aotúmulo, ao passo que aqui...

 — Sim, eu também preferiria morrer na minha casa, na aldeia...

Penosamente, os dois se erguem e começam a andar. Em certo trecho sente-se pronunciado cheiro de forragem e de esterco: vem de um curral improvisado notombadilho, onde se encontram oito vacas. Um pouco mais adiante, há um potroamarrado. Gusief estende a mão para acariciá-lo, mas o cavalo sacode furiosamente a

cabeça e mostra os dentes, com eloqüente intenção de mordê-lo. — Bicho do inferno! — protesta Gusief.

Ele e o soldado apoiam-se na balaustrada e ficam a olhar em silêncio ora o mar, ora o céu.Sob a abóbada celeste, calma e muda, reinam a inquietação e as trevas. As ondas seentrechocam ruidosamente. Cada uma procura erguer-se mais do que a outra e seatropelam, e se Empurram, furiosas e disformes, coroadas de branca espuma.

O mar é impiedoso. Se o navio não fosse tão grande e tão sólido, as ondas o destroçariamsem piedade, tragando cruelmente todos quantos viajam nele, sem distinguir os bons dos

maus. O próprio barco não é menos cruel. Semelhando um estranho monstro, corta com aquilha milhões de ondas. Não teme nem a noite, nem o vento, nem o espaço infinito, nema solidão. Se a superfície do mar estivesse cheia de seres humanos, cortá-los-ia da mesmamaneira, sem tampouco, fazer distinção entre os bons e justos e os pecadores.

 — Onde estamos agora? — pergunta Gusief.

 — Não sei. Acho que no oceano.

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 — Não se vê terra...

 — Que dúvida! Antes de oito dias não veremos nem sombra de terra!

Ambos continuam perscrutando a espuma branca e fosforescente, mergulhados no mais

completo silêncio. Cada um parece perdido em remotos pensamentos. Gusief é o primeiroa falar:

 — Eu não tenho medo do mar. É lógico que, de noite, a gente não vê bem. Mas mesmoassim, se agora me mandassem, num bote, a pescar a cem quilômetros daqui, iria commuito gosto. Ou, se por exemplo, tivesse que salvar alguém que tivesse caído na água, eume atiraria sem vacilar. Isto é, caso se tratasse de um cristão. É claro que eu não arriscariaa vida por um turco ou por um chinês.

 — Não tem medo da morte?

 — Tenho sim, principalmente quando penso na minha casa. Sem a minha presença tudoirá por água abaixo. Meu irmão é uma verdadeira calamidade, um beberrão que bete namulher todo o santo dia e não respeita os pais. Sim, sem mim tudo irá mal. Minha gentever-se-á obrigada, talvez, a pedir esmolas para não morrer de fome.

Cala-se por alguns instantes e por fim conclui:

 — Vamos para baixo. Não posso mais suster-me em pé. Além disso, a atmosfera estámuito pesada... Já é hora de dormir.

V

Gusief desce para a enfermaria e deita-se. Vagos desejos, cuja natureza não pode precisar,continuam a atormentá-lo. Sente um peso no peito; dói-lhe a cabeça. Sua boca está secaque sente dificuldade em mover a língua. Cai em profunda sonolência e logo depois,esgotado pelo calor e pela atmosfera carregada, adormece. Os mais fantásticos sonhosvoltam a repetir-se!!!

Dorme, assim, dois dias seguidos. Ao cair da tarde do terceiro, os marinheiros vêm buscá-lo e levam-no para o convés.

Costuram-no num saco, no qual introduzem, também, para torná-lo mais pesado, dois

enormes pedaços de ferro. Metido no saco Gusief parece uma cenoura: volumoso nacabeça e afinado nas pernas.

Ao pôr do sol colocam o cadáver sobre uma prancha que tem uma das extremidadesapoiada na balaustrada e a outra num caixão de madeira. Ao redor enfileiram-se ossoldados e os marinheiros todos de gorro na mão.

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 — Bendito seja Deus todo-poderoso pelos séculos dos séculos — diz com tom solene osacerdote.

 — Amém! — respondem os marinheiros.

Todos fazem o sinal-da-cruz e ficam a olhar as ondas. É algo estranho ver um homemmetido num saco e a ponto de ser lançado ao mar. No entanto, é uma coisa que podesuceder a qualquer um de nós!

O sacerdotes deixa cair um pouco de terra sobre Gusief a faz profunda reverência. Aseguir, canta-se o Ofício.

O oficial de plantão soergue um dos extremos da prancha. Gusief desliza de cabeça para baixo, dá uma volta no ar e cai na água. Por alguns instantes fica a boiar, coberto deespuma, como se estivesse envolto em rendas; por fim, desaparece.

Submerge rapidamente. Chegará ao fundo? Segundo os marinheiros, a profundidade domar nestas paragens alcança quatro quilômetros.

Após fazer vinte metros, começa a descer mais lentamente. O cadáver vacila, como sehesitasse em continuar a viagem. Finalmente, arrastado pela corrente, prossegue a marchadiagonalmente.

 Não demora em tropeçar com um cardume de peixinhos — dos chamados “pilotos”, osquais, ao divisarem o enorme vulto, estacam assombrados e, como se obedecessem a umaordem, voltam-se, todos ao mesmo tempo, e, como minúsculas flechas, atiram-se aGusief.

Minutos depois aproxima-se uma enorme massa escura: um tubarão. Lentamente, comfleuma, como se não notasse a presença de Gusief, coloca-se sob o saco de maneira a dar a impressão de que o cadáver está de pé sobre o seu ombro. Visivelmente satisfeito, otubarão dá, depois várias voltas na água e, sem se apressar, escancara a enorme boca,armada de duas fileiras de dentes. Os “pilotos” estão encantados. Mantêm-se um poucoafastados e admiram o espetáculo atentamente.

Depois de brincar um pouco com o corpo de Gusief, o tubarão crava os dentes demansinho, no tecido da mortalha, a qual no mesmo instante abre-se de cima a baixo. Um pedaço de ferro tomba no lombo do tubarão, assusta os “ pilotos” e desce rapidamente.

Enquanto isso, lá no alto, no céu, onde o sol pouco a pouco se oculta, as nuvens vão-seacumulando. Uma delas parece um arco-de-triunfo, outra um leão; outra ainda umatesoura. Através de uma das nuvens projeta-se até o centro da abóbada do céu um amploraio verde. Ao lado dele surge, pouco a pouco, um colorido de lilás bem pálido. Sob esteesplêndido céu, o oceano torna-se a princípio obscuro; logo, porém, passa, por sua vez, atingir-se de cores tão suaves, alegres e belas que a língua humana é incapaz de descrevê-las.

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Varka

TchekhovTradução de Costa Neves

Anoitece. Varka balança com o pé um berço onde chora uma criança, cantarolandomonotonamente:

 — Bain bainscki bain...

Uma lâmpada verde brilha diante de uma imagem de santo. Um par de grandes calçasnegras pende de uma corda. A lâmpada projeta uma mancha verde sobre as coisas e ascalças fazem dançar sombras na parede e no berço. A chama vacila como tocada pelovendo. O ar é sufocante, impregnado de um odor de sapatos, de couro, de tinta.

O menino chora. Não cessa de chorar e de gemer; está extenuado, sua vozinha tornou-serouca; mas ele chora ainda, sem parar.

Varka tem sono. Seus olhos fecham-se, sua cabeça inclina-se para o peito. Mal pode abrir os olhos tanto lhe pesam as pálpebras.

 — Bain bainscki bain... — murmura com voz extinta, — bain bain...

Um grilo estridula numa frincha do chão. No aposento vizinho, ouve-se a máquina dosapateiro.

O berço range lamentosamente. Varka cantarola, e tudo se confunde num doce murmúrioque convida ao sono. Mas não se deve dormir! Varka resiste ao torpor que a invade, porque, se por desgraça adormecer, o patrão bater-lhe-ia. A chama da lâmpada vacila. Amancha verde e a sombra negra dançam diante dos olhos fixos que Varka se esforça por conservar abertos. Sonhos indistintos vagam no seu cérebro amodorrado. Ela vê nuvensnegras que se perseguem, gritando com voz infantil. As nuvens se desfazem e Varkadivisa uma estrada, longa, negra e lamacenta. Filas de carros avançam lentamente;homens caminham vagarosamente, sombras se agitam aqui e acolá! Através de umanévoa cinzenta e fria ela entrevê os albergues, dos dois lados da estrada. As sombras sealongam, os viajantes perdem-se na estrada lamacenta.

 — Por quê? — pergunta Varka.

 — Para dormir, para dormir...

E dormem um sono de chumbo, profundamente, enquanto sobre os fios telegráficoscorvos gritam, com voz infantil, para acordar aqueles homens...

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 — Bain bainscki bain... — canta Varka, e, súbito, acha-se numa mísera isba negra,acanhada e sufocante. Não é aquele seu pai, Efim Stepanov, que ali jaz por terra e seestorce em sofrimentos atrozes? Ela vê, mas não ouve os gemidos. É a sua hérnia que oatormenta. A dor é tão forte que ele não pode falar; respira penosamente, com umgargarejo contínuo:

 — Groo... groo... groo...

Eis a mulher, Pelágia, que se precipita para fora da isba, para dizer ao patrão que Efim émoribundo. Quando voltará? Saiu já há muito tempo e Varka espera-a. Varka estáacordada perto do fogão, mas não dorme e escuta o ofegar do moribundo:

 — Groo... groo... groo...

Finalmente, um rumor de rodas que se dirige para a isba. Um médico vem visitar odoente. Entra no quarto. A escuridão é tanta que Varka não o vê, mas ouve a sua voz.

 — Dê-me uma luz! — exclama ela.

A mãe acende uma vela. Efim sufoca.

 — Que tem? pergunta o médico curvando-se sobre ele.

 — Que tenho? Morro. Está acabado.

 — Ainda não. Salvar-te-emos. Havemos de curar-te.

 — Se vossa senhoria acha, agradeço-lhe muito. Mas se a morte está aqui, paciência.

O médico examinava o doente. Os minutos corriam.

 — Não posso fazer nada — disse —, é preciso mandá-lo para o hospital para ser operado;mas isto depressa, sem perder um minuto. É tarde, e no hospital devem todos estar recolhidos, mas eu darei um bilhete de recomendação para o diretor. Compreendeu?

 — Mas ele não pode andar, senhor! Nós não temos cavalo! — gemeu a mãe.

 — Mandarei buscá-lo — disse o médico, e foi-se, e a vela apagou-se e Varka ouve

novamente: — Groo... groo... groo...

Alguns instantes depois pára um carro à porta. Recebe Efim e parte...

É dia. O tempo está alegre. A mãe vai ao hospital saber notícias. E volta. Entrando naisba, faz o sinal-da-cruz e chora.

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 — Operaram-no, e a princípio estava melhor, mas depois, pela madrugada, morreu. QueDeus o tenha em sua paz. Disseram que era muito tarde, que deveríamos tê-lo mandadomais cedo para o hospital.

Eis Varka no meio do bosque. Caminha ao lado da mãe, e chora, chora amargamente.

De repente ela recebe uma pancada na cabeça, tão violenta que cai e bate com a cabeçanuma árvore. Abre os olhos e vê o patrão, o sapateiro:

 — Que fazes, preguiçosa?! — grita ele. — O menino chora e tu dormes?

E puxa-lhe as orelhas; ela recomeça a balançar o berço, cantarolando:

 — Bain bainscki bain...

A mancha verde e a grande sombra negra dançam na parede, e o cérebro dela se

entorpece. Ei-la novamente na grande estrada lamacenta. Os viajantes dormem profundamente. Varka tem sono também, tem tanto sono e seria tão feliz se pudessedormir... Mas sua mãe caminha sempre e arrasta-a pela mão. Dirigem-se à cidade em busca de trabalho.

 — Uma esmola, pelo amor de Deus! — mendiga a mãe durante todo o caminho. — Tende piedade...

 — Depressa, dá-me o menino! — responde uma voz tonitruante — dá-me o menino! Tudormes, canalha! — grita a voz irritada e rude.

Varka levanta-se, estremunhada. Sim, compreende: não mais a longa estrada, os viajantes,a imagem da mãe. É a patroa que aparece no meio do quarto, que vem aleitar o menino.Aquele era o passado de Varka, visto em sonho; este é o presente.

Enquanto a gorda patroa aleita o menino, procurando adormecê-lo, Varka, de pé, lança osolhos pela janela. O céu empalidece, a sombra e a mancha verde estão quasedesvanecidas: dentro em pouco será dia.

 — Toma, segura o menino! — ordena a patroa, abotoando a camisa no peito. — Elechora sempre. Tu com certeza o maltrataste!

Varka torna a deitar o menino e recomeça a embalá-lo. Que sono terrível! Os olhos sefecham, a cabeça pesa-lhe como chumbo.

 — Varka, é tempo de acender o fogão — brada a voz do patrão.

É preciso levantar-se e trabalhar. Varka larga o berço e vai buscar a lenha. Está contentede poder mover-se, andar, espantar aquele sono tremendo. Está pronto o fogo. Suas idéiasaclaram-se, seu rosto distende-se.

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 — Varka! o samovar! depressa! — grita a patroa.

Varka apronta o samovar e recebe nova ordem.

 — Varka, vai limpar as botas do patrão!

E ela acocora-se para limpar as botas. Ah! como seria bom meter a cabeça dentro de umadaquelas botas e dormir! Varka escancara os olhos e sacode-se vigorosamente.

 — Varka, vai lavar a sala! Está que é uma vergonha! E os fregueses não tardam!

Varka lava rapidamente o chão, varre tudo, limpa tudo, acende o outro fogão! O tempourge: não há um momento a perder.

O dia passa. Varka vê com alegria a noite que chega. O ar fresco da noite promete-lhe umlongo e profundo sono. Mas, quando a noite chega, chegam visitas.

 — Varka! — grita a patroa — depressa, o samovar!

O samovar é pouco, e Varka deve ferver mais água, enquanto os patrões e os visitantesabancam-se em torno da mesa.

 — Varka corre a buscar três garrafas de cerveja! Varka, os copos! Varka!

Vão-se finalmente os visitantes. Apaga-se a luz; os patrões vão deitar-se.

 — Varka! vai embalar o menino! — dizem eles.

O grilo canta, a mancha verde e a sombra negra agitam-se novamente ante os olhossonolentos e entorpecem-lhe o cérebro.

 — Bain bainscki bain...

O menino grita... Varka revê a estrada lamacenta, os viajantes, a sua mãe Pelágia, seu paiEfim... Reconhece-os perfeitamente, mas não pode ver o monstro que a tortura, que a temamarrada de pés e mãos, que a sufoca, que a impede de viver.

Volve a cabeça de todos os lados e procura aquele inimigo infernal, para libertar-se. Em

um esforço supremo, abre os olhos, vê a mancha verde, a sombra negra que se agita,quando, de súbito, um grito do menino fere-lhe os ouvidos.

Finalmente! Varka encontrou o inimigo que a impede de viver. É aquele menino o seuinimigo impiedoso! E ela ri, espantada de o não haver descoberto antes. Que estúpida! Amancha, a sombra, o grilo, tudo ri com ela, tão estúpidos como ela. Uma idéia luminosa passa-lhe no cérebro pesado. Levanta-se vagarosamente do escabelo em que está sentada,com um claro sorriso no rosto embrutecido, e dá alguns passos. A idéia de libertar-se do

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menino aparece-lhe mais viva. Libertar-se daquele que a impede de viver! Precisa matá-lo, e depois dormir, dormir, dormir...

Sorrindo, rindo e piscando os olhos para a mancha verde, Varka avizinha-se do berço,curva-se sobre o menino: e sufoca-o. Depois estende-se rapidamente no chão, sorrindo de

alegria ao pensamento de que finalmente poderá dormir. E adormece logo.

Varka dorme um sono profundo e pesado como a morte.

 — Fim — 

Fonte: TCHECOV. Contos. Coleção Clássicos Jackson, Volume XXXVII. São Paulo:WM Jackson Inc. Editores, 1965.

O vingador 

Tchekhov

Logo depois de haver surpreendido sua mulher em flagrante, encontrava-se Fedor Fedorovich Sigaev na loja de armas de Schmuks e Cia, a escolher o revólver que melhor lhe pudesse servir. Seu rosto expressava ira, dor e decisão irrevogável.

“Bem sei o que devo fazer!”, pensava. “Quando os fundamentos de uma família são profanados, e a honra é arrastada pela lama e triunfa o vício... eu, como cidadão e comohomem honrado, devo ser o vingador. Matarei primeiro a ela, depois ao amante efinalmente suicidar-me-ei”.

 Não havia ainda escolhido o revólver e nem sequer assassinara alguém, mas naimaginação já se lhe apresentavam três cadáveres ensangüentados, de crânios triturados,os miolos a flutuarem... Barulho, ruído de curiosos e autópsia.

Possuído pela insensata alegria do homem ofendido, calculava o horror dos parentes e do público, a agonia da traidora e até lhe parecia poder ler em pensamento os artigos da primeira página, a comentarem a decomposição dos fundamentos da família.

O empregado da loja, tipo inquieto, afrancesado, de ventre pequeno e colete branco,apresentava-lhe os revólveres e juntando os calcanhares dizia, sorrindo respeitosamente:

 — Eu aconselharia a Mousieur que levasse este magnífico modelo do sistema Smith &Wesson. É a última palavra na ciência das armas. Possui três propulsores e pode-sedispará-lo a uma distância de seiscentos passos. Chamo também a atenção de Mousieur  para a limpeza do acabamento. Seu sistema é que está mais em moda. Vendemosdiariamente dezenas deles, que são utilizados contra os bandidos, os lobos e os amantes.Seu tiro é preciso e forte, alcança distâncias enormes e mata, atravessando-os, a mulher eo amante. Quanto aos suicidas, Mousieur, não conheço, para eles, melhor sistema.

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E o empregado, apertando e soltando o gatinho, soprando o cano e fingindo mirar, parecia próximo a afogar-se de puro entusiasmo. A julgar-se pela expressão extasiada de seurosto, poder-se-ia pensar que ele mesmo, de boa vontade, pregaria um tiro na testa, se possuísse uma arma tão maravilhosa quanto aquela.

 — E qual o preço? — perguntou Sigaev.

 — Quarenta e cinco rublos, Mousieur.

 — Hum! É muito caro, para mim.

 — Neste caso, Mousieur, posso oferecer-lhe algo mais em conta. Aqui está. Tenha a bondade de examinar. Temos estoque variado e de todos os preços... Este, por exemplo,do sistema Lefrauché, que custa somente 18 rublos. Porém... — o empregado fez ummuxoxo de pouco caso — é um sistema, Mousieur, demasiadamente antiquado. Quem ocompra são os pobres de espírito e os psicopatas. Suicidar-se ou matar a própria mulher 

com um Lefauché é considerado atualmente de mau gosto. O bom-tom admite somenteuma Smith & Wesson.

 — Não necessito matar-me ou a alguém — mentiu, com acento sombrio, Sigaev. — Compro-o simplesmente para a minha casa de campo... Para assustar os ladrões.

 — Não nos interessa o seu motivo —sorriu o empregado, baixando modestamente osolhos — Se, em cada caso, buscássemos as razões, já deveríamos ter fechado a loja. Paraespantar os corvos, Mousieur, o Lefauché não serve, pois produz ruído um tanto surdo.Eu lhe proponho uma pistola Mortimer, das chamadas para duelos.

“E se eu o provocasse para um duelo?”, passou pela cabeça de Sigaev. “Porém... não...Seria honra demasiada. A essas bestas, devemos matá-las, como cachorros...”

O empregado, revoluteando graciosamente e em pequenos passos, sem deixar de sorrir ede conversar, apresentou-lhe todo o monte de revólveres. O Smith & Wesson era o deaspecto mais sólido e justiceiro. Sigaev tomou um destes nas mãos, fixou-o e quedouensimesmado. A imaginação desenhava-o destroçando um crânio, o sangue a escorrer como um rio sobre o tapete e o assoalho, a traidora, moribunda, agitando um péconvulso... Para a alma indignada, aquilo era pouco. O quadro de sangue, os soluços e oestupor não o satisfaziam. Deveria pensar em algo mais terrível.

“Isto é o que farei”, pensou. “Matarei a ele e a mim em seguida, porém ela... deixariaviver. Que morra do arrependimento e do desprezo dos que a cercam! Para natureza tãonervosa quanto a sua, será martírio maior que a morte!”

Começou a imaginar o próprio funeral: ele, o ofendido, estendido no ataúde, com umsorriso bondoso nos lábios... Ela, pálida, torturada pelos remorsos, caminhando atrás doféretro, como uma Níobe, sem poder escapa aos olhares depreciativos e aniquiladores,lançados pela multidão indignada...

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 — Vejo, Mousieur, que lhe agrada o Smith & Wesson — comentou o empregado,interrompendo o devaneio — Se o acha muito caro, posso fazer uma redução de cincorublos, embora tenhamos outros mais baratos.

A figurinha afrancesada girou graciosamente sobre os próprios tacões e alcançou na

 prateleira outra dúzia de estojos com revólveres.

 — Aqui está outro, Mousieur. O preço, trinta rublos. Não é caro, se lembrarmos que ocâmbio está baixo e que os direitos alfandegários sobem cada dia mais... Juro-lhe,Mousieur, que sou conservador, porém já começo a protestar! Imagine que o câmbio e atarifa da alfândega são o motivo de que somente os ricos possam adquirir armas! Para os pobres nada mais resta que as armas de Tula, e os fósforos. E as armas de Tula são umadesgraça! Se alguém pretender disparar uma arma de Tula sobre a própria mulher, apenasconsegue atingir a própria omoplata...

Repentinamente Sigaev entristeceu-se com a idéia de morrer e não contemplar os

sofrimentos da traidora. A vingança unicamente é doce quando existe a possibilidade dever e tocar seus frutos. Pois, que sentido encontraria em estar deitado no ataúde, se nada poderia perceber?!

“E se eu fizesse isto?... matá-lo, ir a seu enterro, ver tudo e depois me suicidar?... Sim.Porém... antes do enterro eu seria preso e me tirariam a arma... Bem... O que farei serámatá-lo e deixar que ela viva. Eu... enquanto não decorra um certo tempo, não mematarei. Serei preso. Para suicidar-me, sempre terei ocasião. Estar preso será melhor, poisque ao prestar declarações, terei possibilidade de demonstrar, ante o poder e a sociedade,toda a baixeza do seu comportamento. Se eu morresse, ela, com seu caráter desavergonhado e embusteiro, jogaria a culpa sobre mim, e a sociedade acabaria por 

absolvê-la.... de outro lado, talvez caçoe de mim, se continuo a viver... Então....”Um minuto depois, pensava:

“Se... Talvez me acusem de sentimentos mesquinhos se eu me matar... E, depois, para quesuicidar-me? Isso em primeiro lugar. Em segundo... o suicídio é covardia. Então, o quefarei será matá-lo, deixá-la viver e eu irei para o cárcere. Serei julgado e ela figurarácomo testemunha... Veremos seu sobressalto e vergonha, quando precisar enfrentar meuadvogado! Por certo que as simpatias do tribunal, do público e da imprensa estarão aomeu lado!...”

Enquanto assim devaneava, o empregado continuava a expor a mercadoria e consideravade seu dever, entreter o comprador.

 — Veja aqui, outros, ingleses, de sistema novo, que recebemos há pouco. Porém, previno-o, Mousieur, de que todos os sistemas empalidecem diante do Smith & Wesson.Por certo, terá lido, há poucos dias, acerca de um militar que comprara um Smith &Wesson em nossa casa, e que o usou contra o amante... E que imagina tenha acontecido?A bala atravessou primeiro o amante, alcançou, depois o abajur de bronze, em seguida o

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 piano de cauda e deste, como uma carambola, matou um cachorro pequinês e roçou aesposa... As conseqüências foram brilhantes e honraram nossa firma. O militar está presoagora... Por certo o condenarão a trabalhos forçados!... Em primeiro lugar, porque temosleis muito antiquadas , em segundo, porque já se sabe que o tribunal sempre toma o partido do amante. Por quê? Muito simples, Mousieur. Porque também o jurado, os

 juízes, o procurador e o advogado de defesa se entendem com esposas alheias e maistranqüilos estão quando sabem de que um marido há na Rússia. A sociedade seencantaria, caso o Governo desterrasse todos os maridos para a ilha de Sajalin. Ah!Mousieur! Não pode o senhor imaginar a indignação que me desperta este desmoronar dos costumes morais contemporâneos!... Nestes tempos, cortejar mulheres alheias causatanto prazer quanto filar cigarros os outros ou pedir livros emprestados! Cada ano que passa, o nosso comércio declina, porém não significa que haja menos amantes... Significaque os maridos reconciliam-se com a situação e temem os trabalhos forçados — e oempregado, olhando em torno de si, sussurrou: - E quem é o responsável, Mousieur? OGoverno!

“Acabar em Sajalin, por causa de um porco... não, não é razoável”, refletiu Sigaev. “Seme condenam aos trabalhos forçados, somente conseguirei dar à minha mulher a possibilidade de casar-se outra vez e de enganar também ao segundo marido. O lucro serátodo dela! O que farei então será isto: deixá-la viver, não me matar e nem matar a ele...Devo imaginar algo mais prudente e sentimental. Castigá-los-ei com meu desprezo eencetarei escandaloso processo de divórcio...”

 — Aqui está, Mousieur, um sistema novo — comentou o empregado, recolhendo de outra prateleira mais uma dúzia de revólveres. — Chamou-lhe a atenção para o mecanismooriginal do cão...

Porém, uma vez tomada aquela decisão, Sigaev não mais necessitava de revólver. Emcompensação, o empregado, cada vez mais inspirado, não cessava de mostrar-lhe osartigos que tanto elogiava. O marido ofendido envergonhou-se de que, por sua causa, osujeito estava trabalhando em vão, a entusiasmar-se e a perder tempo.

 —Bem — balbuciou. — Será melhor que eu volte mais tarde ou mande alguém...

Conquanto não visse a expressão do rosto do empregado, compreendeu que, parasuavizar a violência da situação, não havia outra saída que comprar algo. Porém, o que?Seus olhos percorreram as paredes da loja, em busca de uma coisa barata, e se detiveramnuma rede de cor verde, pendurada junto à porta.

 — E isso? Que é isso? — perguntou.

 — É uma rede para caçar codornas.

 — Qual o preço?

 — Oito rublos.

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 — Pois pode mandar embrulhar.

O marido ofendido pagou os oito rublos, passou a mão na rede para levá-la e, cada vezmais ofendido, saiu da loja.

 — Fim — 

Um caso médico

Tchekhov

Um telegrama enviado da fábrica dos Lialikov pedia ao professor que viesse o maisdepressa possível.

A filha da Senhora Lialikov, que devia ser a proprietária da fábrica, estava doente; era

tudo o que se podia perceber num longo telegrama mal redigido. Por isso o professor nãoesteve para se incomodar; contentou-se em enviar, para o substituir, o seu ajudanteKoroliov. Tinha que se descer na terceira estação para lá de Moscovo e andar em seguida,de carro, quatro «verstas». Na estação, esperava o ajudante um carro de três cavalos. Ococheiro tinha um chapéu de penas de pavão e, com voz vibrante, como um soldado,respondia sempre a todas as perguntas: «De modo algum!» ou «Exactamente!».

Era num sábado de tarde. Punha-se o Sol. Da fábrica para a estação vinham grupos deoperários que cumprimentavam para o carro onde seguia o médico. Aquele fim de dia, os palacetes senhoriais e as casas de verão, dos dois lados da estrada, os amieiros, a calmaimpressão que de tudo se exalava, na hora em que, já quase a repousarem, os campos, os

 bosques e o Sol pareciam preparar-se para descansar e talvez até para rezar ao mesmotempo que os operários — tudo isto encantava Koroliov.

 Nascido e educado em Moscovo, o médico não conhecia o campo e nunca se tinhainteressado pelas fábricas; nunca tinha visitado nenhuma; mas, depois do que tinha lidosobre este assunto, tinha-lhe acontecido estar em casa de proprietários e falar com eles. E,quando via de longe ou de perto uma fábrica, pensava que por fora tudo parecia calmo e pacífico, mas que lá dentro deviam reinar a impenetrável ignorância e o egoísmo obtusodos proprietários, o trabalho aborrecido e insalubre dos operários, e as intrigas, e o«vodka» e a bicharia...

E agora, à medida que se afastavam do carro com respeito e medo, lia no rosto dooperário, nos bonés, no andar, a porcaria, o alcoolismo, o enervamento, o atordoamentoem que viviam.

Entrou pelo portão grande da fábrica. Apareceram de ambos os lados as pequenas casasdos operários, figuras de mulher, e, às cancelas da entrada, roupa branca e mantas. Ococheiro, sem segurar os cavalos, gritava: «Cuidado!».

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 Num pátio grande, sem o mínimo sinal de erva, levantavam-se cinco grandes corpos deedifícios com altas chaminés, afastados uns dos outros, com armazéns e alpendres, tudomergulhado numa espécie de neblina cinzenta, como uma flor de poeira. Aqui e além,como os oásis no deserto, havia uns jardinzitos enfezados e os telhados verdes evermelhos das casas da Administração. O cocheiro, sofreando de repente os cavalos,

 parou diante duma casa que fora há pouco pintada de cinzento. Os lilases do jardimestavam cobertos de poeira, e o pórtico, pintado de amarelo, cheirava fortemente a tinta.

 — Faça favor de entrar, Senhor Doutor — disseram vozes de mulher à porta da entrada eno limiar da antecâmara.

Ouviram-se depois suspiros e murmúrios.

 — Faça favor de entrar... Estamos à sua espera já há tanto tempo... Foi mesmo umadesgraça. Por aqui, faça favor...

A Senhora Lialikov, já de idade e corpulenta, vestida de seda negra e com mangas àmoda, mas, pelo que parecia, simples e pouco instruída, olhava para o doutor com receio,sem se atrever a estender-lhe a mão; não ousava fazê-lo.

Perto dela, encontrava-se uma criatura de cabelos curtos, magra e já nada nova, que traziauma blusa colorida e usava luneta. Os criados chamavam-lhe Cristina Dmitrievna eKoroliov adivinhou ser a governante. Como era a única pessoa instruída da casa, tinham-na sem dúvida encarregado de receber o médico, porque logo se apressou a expor, com pormenores de todo inúteis, as causas da doença, mas sem dizer quem estava doente nemde que se tratava. Koroliov e a governante falavam sentados, enquanto a dona da casaesperava, Imóvel, junto da porta. No decurso da conversação, veio Koroliov a saber que a

doente era uma rapariga de vinte anos, Lisa, filha única da Senhora Lialikov. Estavaenferma há muito tempo e já a tinham tratado vários médicos. Na noite anterior, sentira,desde a tarde, tais palpitações que ninguém em casa tinha dormido; chegara-se a recear que morresse.

 — Ela, na verdade, tem sido doentinha desde criança — contava Cristina Dmitrievnacom uma voz cantada e limpando ininterruptamente os lábios com a mão. — Os médicosdizem que são nervos, mas ainda em pequena meteram-lhe para dentro os humores frios,e daí é que vem todo o mal, acho eu.

Passaram ao quarto da doente. Já mulher, alta, bem feita, mas feia, parecida com a mãe,

com os mesmos olhitos e a parte inferior do rosto larga e exageradamente desenvolvida,despenteada, os cobertores puxados até ao queixo, a rapariga deu de princípio a Koroliova impressão de uma pobre criatura, enferma, recolhida por piedade. Ninguém acreditariaque fosse a herdeira dos cinco enormes edifícios da fábrica.

 — Venho tratar de si — disse Koroliov. — Bom dia, Menina. Disse o nome e apertou-lhea mão, mão grande, feia e fria. Ela soergueu-se e, já muito acostumada aos médicos,indiferente à nudez das espáduas e dos braços, deixou-se auscultar.

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 — Sinto umas palpitações — disse ela. — Toda a noite... foi uma coisa terrível... julgueique morria de medo. Dê-me qualquer coisa, a ver se isto acaba.

 — Não tenha receio, vou já receitar.

Koroliov examinou-a e encolheu os ombros.

 — O coração está bom — disse ele; — tudo vai bem, está tudo em ordem. Os nervostalvez um pouco abalados... mas é também coisa vulgar. A crise já passou, parece. Deite-se e veja se dorme...

 Neste momento trouxeram um candeeiro. A doente piscou os olhos e, de repente, pousando a cabeça nas mãos, pôs-se a chorar.

E a impressão dum ser infeliz e feio desapareceu. Koroliov já não dava pelos olhos pequeninos nem pela parte do rosto anormalmente desenvolvida. Via uma suave

expressão de sofrimento, muito comovedora e espiritual, e a rapariga, no conjunto,apareceu-lhe elegante, feminina e simples. E já a queria acalmar, não por medicamentosou conselhos, mas por uma simples palavra graciosa. A mãe puxou a si a filha e beijou-lhe a testa. E na expressão da face, quanta tristeza, quanto desgosto!

Tinha criado e educado a filha sem se poupar a nada; tinha posto todo o cuidado em lhemandar ensinar francês, música e dança. Tinha-lhe dado uma dúzia de mestres, tinhachamado os melhores médicos, tomado uma governante — e não compreendia dondevinham aquelas lágrimas e tantos sofrimentos! Não compreendia, atrapalhava-se e tinhauma expressão de culpabilidade; e andava desolada, inquieta, como se tivesse esquecidoalguma coisa de muito urgente, como se tivesse tido alguma negligência, como se não

tivesse chamado alguém. Quem? Não sabia... — Lisaunka — disse ela, apertando a filha ao peito -, minha querida, minha pomba,minha filhinha, que tens tu? Diz à mãezinha... Tem pena de mim... Diz...

Ambas choravam amargamente. Koroliov, sentando-se na borda da cama, pegou na mãode Lisa.

 — Vamos, não chore mais — disse-lhe ele com um tom de carícia -. Há lá razão paraisso... Não há nada no mundo que seja digno dessas lágrimas. Vá, não chore mais. Assimnão pode ser...

E pensou:

 — Já era tempo de a casar...

 — O médico da fábrica dava-lhe brometos — disse a governante — mas notei que só lhefaziam mal. Eu acho que para o coração o bom são umas gotas... ai, esquece-me o nome...Junquilho, hem?

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E recomeçou com os seus pormenores. Interrompia Koroliov, impedia-o de falar e lia-se-lhe no rosto o tormento que lhe causava pensar que, sendo a mulher mais instruída dacasa, devia falar sem interrupção com o médico — e falar de medicina, claro.

Koroliov estava embaraçado.

 — Não acho nada de especial — disse ele à mãe ao sair do quarto. — Como o médico dafábrica tratou sua filha, pode continuar. O tratamento que lhe deu até aqui foi bom; nãovejo que seja preciso mudar. Para quê? É uma doença vulgar; não tem nada de grave...

Falava sem pressa e ia calçando as luvas; a Senhora Lialikov olhava-o de lágrimas nosolhos, imóvel.

 — Ainda tenho meia hora até o comboio das dez; terei tempo de apanhá-lo, não...?

 — O Senhor Doutor não desejaria ficar? — perguntou a mãe, e de novo as lágrimas lhe

correram pela cara.

Custa-me tanto incomodá-lo; mas, pelo amor de Deus — continuou, a meia voz evoltando-se para a porta -, faça-me esse favor. Só tenho esta filha... Assustou-nos tanto anoite passada... Nem estou ainda em mim... Pelo amor de Deus, não se vá embora!

Koroliov ainda quis dizer que tinha muito que fazer em Moscovo, que a família estava àespera, que lhe era muito difícil passar uma tarde e uma noite fora da clínica; olhou paraela: suspirou e pôs-se a descalçar as luvas, silencioso.

Acenderam todas as velas e todos os candeeiros da sala e da saleta; sentado junto do

 piano de cauda, Koroliov folheou a música, depois foi contemplar os quadros e osretratos. Os quadros, com suas molduras douradas, eram vistas da Crimeia, um mar encapelado com um barquito, um monge católico com um cálice de licor — tudo pobre,lambido, sem talento... Nos retratos, nenhuma figura bela, interessante: faces largas,olhos espantados. Lialikov, o pai de Lisa, tinha a testa baixa e um ar satisfeito; ouniforme ficava-lhe como uma espécie de saco sobre o corpo grande e vulgar; no peitouma medalha e a insígnia da Cruz Vermelha. Cultura estreita, luxo de ocasião, um luxoque não tinha motivos nem vinha a propósito — como aquele uniforme. O brilho dossoalhos irrita, o lustre também; e pensa-se, nem se sabe porquê, na história docomerciante que ia tomar banho de medalha de honra ao pescoço... Na antecâmara haviamurmúrios e alguém ressonava suavemente. De súbito, no pátio, ressoaram uns sons

agudos, sacudidos, metálicos, que Koroliov nunca tinha ouvido e não soube explicar.Ecoaram na sua alma dum modo bem desagradável e estranho.

 — Acho que não ficava aqui por nada deste mundo — pensou ele.

E tornou a folhear a música.

A governante entrou e chamou a meia voz:

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 — Senhor Doutor, pode vir jantar...?

Koroliov seguiu-a.

A mesa, grande, estava coberta de aperitivos e de vinhos; mas só havia duas pessoas: ele

e Cristina Dmitrievna. Ela bebia madeira, comia depressa e falava contemplando-o pelaluneta.

 — Os operários estão muito satisfeitos connosco. Todos os invernos dão nesta fábricaespectáculos em que eles próprios representam. Há também, naturalmente, conferênciascom projecções, uma sala de chá magnífica; e tudo o mais... Têm muita dedicação por nós; quando souberam que a Lisaunka estava pior, mandaram fazer umas rezas. São pouco instruídos mas têm muito bons sentimentos.

 — Parece que não há nenhum homem em casa, não?

 — Nenhum. Piotre Nikanorytch morreu há ano e meio e ficámos sozinhas. Vivemos astrês, no Verão aqui, no Inverno em Moscovo. Já estou nesta casa há onze anos. É como seestivesse em minha casa.

Serviram esturjão, croquetes de frango e uma compota. Os vinhos eram caros, vinhos deFrança.

 — Faça favor, Senhor Doutor... Não faça cerimónias... Coma — dizia CristinaDmitrievna comendo e limpando a boca à mão (via-se que estava realmente à vontade).Faça favor de comer.

Depois do jantar, levou o médico a um quarto onde lhe tinham preparado uma cama. Masnão tinha sono; o quarto era quentíssimo e cheirava a tintas; vestiu o sobretudo e saiu.

Fora, havia fresco. Já havia um prenúncio de alvorada e, no ar húmido, desenhavam-se oscinco edifícios, com as chaminés, os barracões e os armazéns. Como era domingo, não setrabalhava; as janelas estavam escuras e só duas, num dos edifícios onde ainda estavaaceso um forno, pareciam incendiadas; de quando em quando, saía lume pela chaminé, demistura com o fumo. Ao longe, para lá do pátio, coaxavam rãs e um rouxinol cantava.

Ao olhar os casarões da fábrica e as barracas dos operários, Koroliov voltou aos seus pensamentos do costume. Tinham-se instituído espectáculos para os operários,

 projecções, médicos privativos, toda a espécie de melhoramentos: mas os operários queele vira de tarde, na estrada, em nada diferiam dos que tinha visto na sua infância, quandonão havia para eles nem espectáculos, nem melhoramentos.

Era médico e tinha sido obrigado a fazer uma ideia exacta das doenças crónicas, cujacausa inicial é incompreensível e incurável; considerava do mesmo modo as fábricascomo um equívoco cujas causas são também obscuras e inelutáveis. Todos os

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melhoramentos da sorte dos operários não lhe apareciam, claro, como supérfluos, mascomparava-os ao tratamento das doenças incuráveis.

 — Há certamente um engano nesta coisa toda... — pensou olhando as janelas purpúreas.Mil e quinhentos ou dois mil operários trabalham sem descanso, num ambiente insalubre,

 para fabricarem péssima chita. Vivem na fome e só de tempos a tempos a taberna osliberta do pesadelo. Uma centena de pessoas vigia-lhes o trabalho e a vida destescontramestres passa-se a aplicar multas, a proferir injúrias e a cometer injustiças. E sóduas ou três pessoas, chamadas patrões, aproveitam com os lucros, apesar de nãotrabalharem e de terem desprezo pela chita ordinária. Mas que lucros! E de que maneiraos aproveitam! A Lialikov e a filha são umas infelizes e mete pena vê-las. Só a solteirona,a estúpida Cristina Dmitrievna vive à vontade! E trabalha-se numa fábrica destas, comcinco oficinas, e vende-se má chita nos mercados do Oriente, para que uma CristinaDmitrievna possa comer esturjão e beber madeira.

De repente, repetiram-se os sons estranhos que Koroliov tinha notado antes do jantar.

Perto de um dos edifícios, alguém batia numa placa metálica e logo amortecia aressonância, de modo que os sons eram breves, ásperos, mal definidos, qualquer coisacomo «dê... dê.. dê...». Depois, meio minuto de silêncio. E, perto do outro edifício, outrossons sacudidos, mas mais baixos, graves: «dran... dran... dran...».

Repetiram-nos onze vezes. Eram, evidentemente, os guardas a darem as onze horas. Juntodo terceiro edifício, ouviu-se: «jak... jak... jak...». A mesma coisa diante de cada um dosedifícios, depois por detrás das barracas e às portas.

Parecia que, na calma da noite, os sons eram produzidos por um monstro de olhos de púrpura: o próprio Diabo, que era aqui o senhor de patrões e de operários e que a uns e

outros enganava.Koroliov saiu para os campos.

 — Quem está aí? — gritaram-lhe, com voz grosseira.

 — Exactamente como numa prisão — pensou ele.

E não respondeu nada.

Fora, ouviam-se melhor os rouxinóis e as rãs. Sentia-se o cheiro da noite de Maio. Da

estação vinham ruídos de comboios; para outro lado, cantavam galos sonolentos;contudo, a noite estava calma: a natureza dormia pacificamente.

 No campo, não longe da fábrica, erguia-se o esqueleto duma casa de toros; ao lado,encontravam-se materiais de construção. Koroliov sentou-se numas tábuas e continuou a pensar.

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 — Só a governante vive aqui a seu gosto e a fábrica trabalha para a satisfazer. Mas éapenas uma aparência; é uma personagem imaginária: o patrão para quem tudo se fazaqui é o Diabo.

E pensava no Diabo em que não acreditava. E voltava-se para as duas janelas que o lume

iluminava.

Parecia-lhe que, por estes olhos de púrpura, o próprio Diabo o olhava: numa palavra, aforça desconhecida que estabeleceu as relações entre os fracos e os fortes, o errogrosseiro que nada agora pode emendar. É necessário que o forte impeça o fraco de viver:tal é a lei da natureza. Mas isto não é compreensível e não entra facilmente no espíritosenão à luz dum artigo de jornal ou dum manual. No tumultuar da vida quotidiana e noentrelaçar de todos os nadas de que se entretecem as relações humanas, não parece umalei; é um absurdo lógico, no qual o forte e o fraco são vítimas das suas relações mútuas ese submetem involuntariamente a uma força condutora desconhecida, que reside fora davida e é estranha ao homem.

Assim pensava Koroliov, sentado sobre as tábuas, invadido pouco a pouco pela impressãode que essa força desconhecida e misteriosa estava realmente perto dele e o contemplava.

Entretanto, o céu a leste empalidecia; os minutos precipitavam-se. Os cinco edifícios dafábrica e as chaminés tinham, sobre o fundo cinzento da madrugada, nessa hora em quenão se via alma viva, em que tudo parecia morto, — os edifícios e as chaminés tinhamum aspecto especial, diferente do de dia. Esquecia-se por completo que houvesse ládentro motores a vapor, electricidade e telefones; mais depressa se pensava nashabitações lacustres e na cidade de pedra; sentia-se a presença de uma força grosseira,inconsciente...

E de novo se ouviu:

 — Dê... dê... dê... dê...

Doze vezes.

Depois o silêncio — meio minuto de silêncio -, e, na outra extremidade do pátio:

 — Dran... dran... dran...

 — É bem desagradável, esta coisa... — pensou Koroliov.E logo ouviu, num terceiro lugar:

 — Jak... jak... jak...

O ruído era sacudido, áspero, exactamente como se estivesse aborrecido.

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 — Jak... jak...

Para dar a meia-noite foram precisos quatro minutos.

Depois, silêncio completo. E, de novo, a impressão de que tudo estava morto à volta.

Koroliov, depois de estar ainda algum tempo sentado, voltou para casa. Mas ficou aindamuito tempo sem se deitar.

 Nos quartos vizinhos conversava-se. Ouvia-se o perpassar de pantufas e de pés descalços.

 — Será uma crise? — pensou o médico.

Saiu para ir ver a doente. No quarto havia lá muita claridade; na parede da sala tremia umfraco raio de sol, através do nevoeiro da manhã. A porta estava aberta e Lisa sentara-senuma poltrona perto do leito, de roupão, envolta num xale e com os cabelos caídos. Os

estores das janelas estavam corridos.

 — Como se sente? — perguntou-lhe Koroliov.

 — Obrigada...

Tomou-lhe o pulso, depois arranjou-lhe os cabelos que tinha sobre a testa.

 — Não dorme? Está um tempo limpo, é a Primavera... Lá fora cantam os rouxinóis, e aMenina fica aí sentada, às escuras, a pensar não se sabe em quê...

Ela escutava-o e olhava-o. Tinha uns olhos tristes, inteligentes e via-se que queria dizer qualquer coisa.

 — Isto dá-lhe muitas vezes? — perguntou ele.

Ela mexeu os lábios e respondeu:

 — Muitas vezes... Quase todas as noites me sinto mal. Neste momento, os guardas, no pátio, começaram a dar as duas horas.

Ouviu-se: «Dê... dê...» Lisa teve um sobressalto.

 — Estes sons incomodam-na? — perguntou o médico.

 — Não sei... — respondeu ela, reflectindo — . . aqui tudo me incomoda, tudo meaborrece. Sinto compaixão na sua voz; pareceu-me desde o primeiro minuto, não sei porquê, que consigo podia falar de tudo...

 — Fale, faça favor.

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 — Vou dar-lhe a minha opinião. Parece-me que não estou doente, mas atormento-me etenho medo porque isto tem que ser assim e não pode ser de outra maneira. O ser maissaudável não pode deixar de inquietar-se quando um bandido lhe ronda a porta. Têmtodos os cuidados comigo — continuou baixando os olhos e sorrindo timidamente. Estoumuito reconhecida e não contesto a utilidade da medicina; mas desejaria falar, não com

um médico, mas com alguém que estivesse perto do meu espírito: um amigo que mecompreendesse e me demonstrasse que tenho ou não tenho razão.

 — Não tem amigos?

 — Sinto-me só... Tenho minha mãe e gosto dela. Mas sinto-me só. Calhou assim a minhavida... Quem está só lê muito, mas fala pouco e ouve pouco também; a vida é-lhemisteriosa. É-se místico e vê-se o Diabo onde ele não está; a Tamara de Lermontov era sóe via o Demónio.

 — Lê muito?

 — Muito. Tenho todo o tempo livre, de manhã à noite. De dia leio, à noite tenho a cabeçavazia; em lugar de ideias, passam-me vagas sombras...

 — Vê qualquer coisa de noite? — perguntou Koroliov.

 — Não... mas sinto.

Sorriu de novo e levantou os olhos para o médico. O seu olhar era cheio de melancolia echeio de inteligência. Pareceu a Koroliov que Lisa tinha confiança nele, lhe queria falar sinceramente e tinha pensamentos semelhantes aos seus. Mas ela calara-se e esperava

talvez que ele falasse.E sabia bem o que tinha a dizer-lhe. Era evidente que se tornava necessário que elaabandonasse o mais depressa possível os cinco edifícios da fábrica e o seu milhão, seacaso o tinha, e deixasse aquele Diabo que de noite a olhava. Era igualmente claro paraKoroliov que ela também o pensava e que esperava que lho dissesse alguém em quem elativesse confiança.

Mas o médico não sabia por onde começar... Como havia de ser?... É difícil perguntar aoscondenados por que razão os condenaram; e é também aborrecido perguntar aos ricos por que motivo têm necessidade de tanto dinheiro; por que fazem tão mau uso da sua riqueza,

 por que não a deixam, mesmo quando vêem que aí reside a sua infelicidade... E se secomeça a falar disto a conversação é geralmente embaraçada e longa.

 — Como hei-de dizê-lo? — pensava Koroliov. — E será preciso?

E disse o que queria, não directamente, mas com uns desvios:

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 — A Menina está descontente da sua situação de proprietária de fábrica e de herdeirarica; não acredita nos seus direitos e não dorme. É seguramente melhor do que seestivesse satisfeita e dormisse profundamente pensando que tudo vai bem. A sua insónia érespeitável e, seja o que for, é bom sinal. Com seus pais seria impossível uma conversasemelhante àquela que hoje temos aqui. De noite, não conversavam, dormiam

 profundamente; mas nós, os desta geração, dormimos mal. Preguiçamos, falamos muito,e consideramos continuamente se temos ou não temos razão. Para os nossos filhos e paraos nossos netos já essa questão estará resolvida. Verão mais claro do que nós. Dentro decinquenta anos, a vida será bela; é pena que não possamos viver até lá. Devia ser beminteressante...

 — Que farão então os nossos filhos e os nossos netos? — perguntou Lisa.

 — Não sei... Talvez deixem tudo e partam...

 — Para onde?

 — Para onde? Mas para onde quiserem — disse Koroliov a rir-se. — Há poucos lugares para onde possa ir um homem bom e inteligente?

Olhou para o relógio.

 — Já nasceu o Sol. É tempo que durma. Dispa-se e repouse à vontade. Tenho muito prazer em a ter conhecido — disse-lhe ele, apertando-lhe a mão. — É interessante esimpática. Boa noite!

Voltou para o quarto e deitou-se.

 No dia seguinte de manhã, quando trouxeram o carro, toda a gente veio acompanhar omédico à porta. Lisa, de vestido branco como num dia de festa, tinha uma flor noscabelos. Pálida, lânguida, contemplava Koroliov, como de noite, com ar triste einteligente. Sorria e falava sempre com a mesma expressão de lhe querer dizer algumacoisa de particular, de grave, alguma coisa que fosse só para ele. Ouviram-se as cotoviascantar, os sinos tocavam. As janelas da fábrica brilhavam alegremente. Ao atravessar o pátio e enquanto o conduziam à estação, Koroliov já não pensava nos operários nem nashabitações lacustres, nem no Diabo. Pensava no tempo, já talvez próximo, em que a vidaseria tão luminosa e alegre como essa manhã calma de Maio. E pensava em como eraagradável, em semelhante manhã de Primavera, viajar num bom carro, com os seus três

cavalos, e aquecer-se ao sol.

 — Fim — 

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Angústia

TchekhovTradução de Tatiana Belinky

“Com quem a dor partilharei?...”

Anoitece. A neve graúda e úmida gira preguiçosamente ao redor dos lampiões recémacesos e deita-se em placas macias e finas nos telhados, nos lombos dos cavalos, nosombros, nos gorros. O cocheiro Iona Ptápov está todo branco, como um fantasma. Estásentado na boléia, curvado, tão curvado quanto é possível curvar-se um corpo vivo, e nãose mexe. Se toda uma avalanche se despencasse sobre ele, nem assim, ao que parece, eleacharia necessário sacudir a neve... A sua eguazinha também está branca e imóvel. Pelasua imobilidade, suas formas angulosas e as pernas retas como paus, até de perto ela parece um cavalinho de pão-de-mel de um copeque. Ao que tudo indica, ela estámergulhada em meditações. Quem foi arrancado do arado, das costumeiras paisagens

cinzentas, e atirado aqui, neste atoleiro, cheio de luzes monstruosas, zoeira incessante egente apressada, este não pode deixar de meditar...

Iona e a sua eguazinha não se movem do lugar já faz muito tempo. Saíram do pátio aindaantes do almoço, porém não fizeram nem uma corrida. Mas eis que a sombra da noitedesce sobre a cidade. A luz pálida dos lampiões cede lugar à cor viva e o bulício das ruastorna-se mais ruidoso.

 — Cocheiro, para a Viborgskaia! — ouve Iona. — Cocheiro!

Iona estremece e, através dos cílios grudados pela neve, vê um militar de capote e capuz.

 — Para Viborgskaia! — repete o militar. — Mas tu estás dormindo, heim? ParaViborgskaia!

Em sinal de assentimento, Iona puxa as rédeas, em conseqüência do que, placas de nevecaem dos seus ombros e do lombo do cavalo. O militar toma assento no trenó. O cocheiroestala os lábios, estica o pescoço à maneira de um cisne, soergue-se e, mais por hábitoque por necessidade, brande o chicote. A eguazinha também estica o pescoço, arqueia as pernas magras e, insegura, põe-se em movimento.

 — Por onde te metes, lobisomem! — ouve Iona, assim que sai, gritar de dentro da massa

escura que balança para diante e para trás. — Aonde te carrega o diabo? Para a dirr-reita!

 — Não sabes dirigir! Agüenta a direita! — ralha o militar.

Um cocheiro de carruagem particular pragueja ao cruzar e um transeunte, que atravessaraa rua correndo e batera com o ombro no focinho da égua, olha furioso e sacode a neve damanga. Iona se contorce na boléia como se estivesse sentado em alfinetes, joga os

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cotovelos para os lados, e seus olhos correm como possessos, como se ele nãocompreendesse quem é e por que está aqui.

 — Como todos são canalhas! — zomba o militar. — Só procuram abalroar-te ou se jogar debaixo do teu cavalo! É que estão todos de conluio contra ti!

Iona olha para trás, para o passageiro, e move os lábios... Vê-se que quer dizer algumacoisa, mas da sua garganta não sai nada, a não ser um som gutural.

 — O que é? — pergunta o militar.

Iona torce a boca num sorriso, força a garganta e rouqueja:

 — É que... patrão... coisa... o ... meu filho... se finou esta semana.

 — Hum!... E de que foi que ele morreu?

Iona volta-se de corpo inteiro para o passageiro e fala:

 — E quem sabe lá! Vai ver, foi a febre... Ficou três dias no hospital e se finou... É avontade de Deus.

 — Vira, demônio! — soa na escuridão. — Estás tonto, ou o quê, cachorro velho? Toca para a frente!

O cocheiro torna a esticar o pescoço, a soerguer-se, brandindo o chicote com graça pesada. Depois, por várias vezes, ele se volta para o passageiro, mas este fechou os olhos

e, pelo visto, não está disposto a escutar. Deixando-o na Viborgskaia, Iona pára diante deum botequim, dobra-se na boléia e torna a ficar imóvel... De novo a neve úmida tinge de branco a ele e a sua égua. Passa uma hora, outra...

Pelo passeio, pisando ruidosamente com as galochas e altercando, passam três rapazes;dois deles são altos e magros, o terceiro é baixo e corcunda.

 — Cocheiro, para a ponte Policial! — grita o corcunda com voz de tremolo. — Nós três — por vinte copeques!

Iona puxa as rédeas e estala os lábios. Vinte copeques não é preço justo, mas ele não está

 para pensar em preço... um rublo ou cinco copeques, para ele dá na mesma agora — haja passageiros... Os moços, aos empurrões e palavrões, vêm para o trenó e sobem no assentotodos ao mesmo tempo! Começa a discussão do problema: quais os dois que irãosentados, e qual o terceiro que irá de pé? Após longos debates, bate-boca e acusações,eles chegam à decisão de que deve viajar de pé o corcunda, por ser o menor.

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 — Anda, toca! — range o corcunda, firmando-se e bafejando na nuca de Iona. — Descansa o cavalo! Mas que gorro o teu, heim, mano! Pior não se acha em todaPetersburgo!...

 — Hehe... hehe... — gargalha Iona. — É o que é...

 — Anda, tu aí, “é o que é”, toca pra frente! É assim que vais andar o caminho inteiro? Eque tal um pescoção?

 — A cabeça me estala... — diz um dos compridos. — Ontem na casa dos Dukmássov nósdois, o Vaska e eu, limpamos quatro garrafas de conhaque.

 — Não entendo por que mentir! — enfeza o outro comprido.

 — Mentes que nem um animal!

 — Que Deus me castigue se não é verdade...

 — É tão verdade quanto um piolho tossir.

 — He... he... — ri Iona. — Os senhores alegres...

 — Arre, que os diabos te carreguem!... — indigna-se o corcunda. — Vais andar, carcaçavelha, ou não? Isto é maneira de dirigir? Chicote nela! Upa, diabo! Upa! Dá-lhe rijo!

Iona sente atrás das costas o corpo irrequieto e a vibração da voz do corcunda. Ouve osinsultos que lhe são dirigidos, vê a gente, e o aperto da solidão pouco a pouco começa a

afrouxar no seu peito. O corcunda continua a imprecar até que engasga num palavrão deseis andares e desanda a tossir. Os dois compridos põem-se a conversar sobre uma certa Nadejda Petrovna. Iona olha para eles por cima do ombro. Escolhendo um momento propício, volta-se novamente e balbucia:

 — E eu nesta semana...coisa... finou-se meu filho!

 — Todos vamos nos finar... — suspira o corcunda, enxugando os lábios depois do acessode tosse. — Anda, toca, toca! Deus meu, palavra que não agüento mais viajar assim!Quando é que nós vamos chegar?

 — Você poderia animá-lo um pouquinho — na nuca! — Estás ouvindo, traste velho? Vou te encher de pescoções! Se a gente começa a fazer cerimônia com a tua laia, acaba andando a pé! Estás ouvindo, Dragão Gorinitch? Ou nãote importa o que dizemos?

E Iona ouve, mais do que sente, o ruído do pescoção.

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 — Heehe... — ri ele. — Que senhores alegres... benza-os Deus!

 — Cocheiro, és casado? — pergunta um dos compridos.

 — Eu, é? Hehe... alegres senhores! Eu agora só tenho uma mulher — a terra úmida...

Hehe... hoho... A sepultura, é o que é!... O filho, este morreu... e eu estou vivo... Coisaesquisita, a morte errou de porta... Em vez de vir me buscar, foi ao filho...

E Iona volta-se para contar como morreu seu filho, mas aí o corcunda suspira aliviado edeclara que, graças a Deus, eles já chegaram, finalmente. Tendo recebido os vintecopeques, Iona finca longamente o olhar no encalço dos farristas, que desaparecem num portão escuro. Outra vez ele está só, e outra vez o silêncio cai sobre ele... A angústia, queamainara um pouco, surge de novo e oprime o peito com força maior ainda. Os olhos deIona correm aflitos e martirizados pelas turbas que se agitam de ambos os lados da rua:não haverá no meio dessas milhares de pessoas ao menos uma que quisesse ouvi-lo? Masas turbas correm sem notá-lo, nem a ele, nem à sua angústia... Angústia enorme, que não

conhece limites. Se estourasse o peito de Iona e a angústia se derramasse, ela inundaria, parece, o mundo inteiro — e no entanto, ela é invisível. Ela conseguiu aninhar-se numacasca tão ínfima, que não se pode enxergá-la nem com lanterna à luz do sol...

Iona vê um zelador de prédio com um saco na mão e decide falar com ele.

 — Mano, que horas serão? — pergunta ele.

 — Passa das nove... E por que ficas parado aqui? Vai andando!

Iona afasta-se alguns passos, dobra o corpo e entrega-se à angústia... Dirigir-se aos

homens ele já considera inútil. Mas não passam nem cinco minutos e ele se endireita,sacode a cabeça como se sentisse uma dor aguda e puxa as rédeas... Ele não agüentamais.

“Para casa — pensa ele. — Para casa!”

E a eguazinha, como que adivinhando-lhe o pensamento, põe-se a correr a trote miúdo.Cerca de hora e meia depois, Iona já está sentado junto a uma estufa grande e suja. Emcima da estufa, nos bancos, no chão, homens estão roncando. O ar está denso e abafado...Iona olha para os dorminhocos, coça-se, e lamenta que voltou para casa tão cedo.

“Não ganhei nem para a aveia”, pensa ele. “É por isso que estou aflito. Um homem queentende do seu trabalho... que está de barriga cheia e o cavalo também, este está sempresossegado...

 Num dos cantos, acorda um cocheiro moço, pigarreia e estende a mão para o balde deágua.

 — Deu vontade de beber? — pergunta Iona.

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 — De beber, pelo visto!

 — Pois é... Bom proveito... Pois eu, mano... morreu meu filho... Soube? Esta semana, nohospital... Que história!

Iona olha para ver o efeito que produziram suas palavras, mas não vê nada. O moço puxou a coberta por cima da cabeça e já dorme. O velho suspira e se coça. Assim como omoço tinha vontade de beber, ele tem vontade de falar. Logo vai fazer uma semana que ofilho morreu, e ele ainda não conversou direito com ninguém... É preciso conversar comvagar, com calma... É preciso contar como o filho ficou doente, como sofreu, o que disseantes de morrer, como morreu. É preciso descrever o enterro e a viagem ao hospital para buscar a roupa do defunto. Na aldeia ficou uma filha, Aníssia... Também dela é precisofalar... Há tanta coisa de que poderia falar agora... O ouvinte deve gemer, suspirar,compadecer-se... Melhor ainda seria falar com mulheres. Elas podem ser burras, mas põem-se a chorar à segunda palavra.

“Vou ver o cavalo — pensa Iona. — “Sempre terei tempo para dormir... Dormirei até quechegue...”

Iona se veste e vai para a cavalariça, onde está a sua égua. Ele pensa na aveia, na palha,no tempo... No filho, quando está sozinho, ele não consegue pensar. Falar com alguém arespeito do filho, isso ele poderia, mas pensar sozinho e imaginá-lo é-lhe insuportável eassustador...

 — Mastigas? — pergunta Iona ao seu cavalo, vendo-lhe os olhos brilhantes. Mastiga,anda, mastiga... Se não ganhamos para a aveia, comeremos palha... Pois é... Já estouvelho para este trabalho... O filho é que devia trabalhar, e não eu... Aquele sim é que era

cocheiro de verdade... Se ao menos vivesse...Iona cala-se um pouco, depois continua:

 — Assim é, mana egüinha... Não temos mais Kusma Ionitch... Foi-se desta para melhor...Pegou e morreu, à toa... Agora, imagina tu, por exemplo — tu tens um potrinho, e tu és amãe desse potrinho... E de repente, imagina, esse mesmo potrinho se despacha desta paramelhor... Dá pena ou não dá?

A eguazinha mastiga, escuta e esquenta com seu bafo as mãos do dono...

Iona se deixa arrebatar e conta-lhe tudo...

 — Fim — 

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O bispo

TchekhovTradução de Maria Jacintha

I Na véspera do Domingo de Ramos celebraram-se os últimos ofícios divinos, no Mosteirode Staro-Petrovsky. Quando distribuíam os ramos, já eram quase dez horas, as luzes baixavam, os pavios queimavam — e tudo parecia envolto em bruma. Na penumbra daigreja, a multidão ondulava como um mar e Monsenhor Piotr, doente há três ou quatrodias, tinha a impressão de que todos os rostos — dos velhos, dos jovens, dos homens, dasmulheres — se assemelhavam; de que os olhos de todos quantos se aproximavam parareceber o ramo eram iguais, em sua expressão. A semi-escuridão impedia-o de distinguir a porta, a multidão continuava a desfilar, dir-se-ia que interminavelmente. Um coro demulheres cantava. Uma religiosa lia os cânones.

Sufocava-se. Que calor! E como fora longo o ofício! Monsenhor Piotr estava fatigado,respiração ofegante, curta, seca, ombros doendo de cansaço, as pernas trêmulas.Enervava-se com as exclamações dos homens simples. Subitamente, como em sonho, ouem delírio, pareceu-lhe ver sua mãe, que não via há nove anos, destacar-se da multidão eaproximar-se... sua mãe, ou uma mulher parecida com ela, que, depois de receber o ramode suas mãos, afastou-se, não sem olhá-lo alegremente, como seu bom e radioso sorriso...até perder-se no meio do povo. E, sem poder conter-se, lágrimas correram pelo seu rosto.

Sua alma estava em paz, tudo corria bem, ele olhava fixamente o coro da esquerda, ondelimam os cânones, sem poder reconhecer ninguém, na penumbra, e chorava — aslágrimas brilhando em sua barba e em todo o rosto. Alguém começou a chorar, não muitolonge, depois mais alguém; pouco a pouco a igreja encheu-se de soluços contidos... atéque, minutos depois o coro do convento entoou um hino, os prantos cessaram e tudovoltou ao normal.

O ofício terminou. Enquanto o bispo tomava assento em seu carro, para voltar à casa, emtodo o jardim iluminado pelo luar ressoaram o belo e sonoro carrilhão e os pesados e preciosos sinos. As paredes brancas, as cruzes brancas sobre os túmulos, as bétulas brancas projetando sombras negras, a lua longínqua, no céu, bem sobre o mosteiro, tudo parecia viver, no momento, uma vida singular¸ misteriosa — mais próxima, porém, dohomem.

Abril começava, o dia fora tépido e primaveril, começava a gelar, levemente, embora sesentisse, na atmosfera doce e fresca, o sopro da primavera. A estrada que levava à cidadeera arenosa, precisava-se andar lentamente os peregrinos ladeando a carruagem, sob aclaridade e a maciez do luar. Todos calados, recolhidos; tudo, em torno, acolhedor, jovem,fraterno — árvores, céu, a própria lua. E era bom sonhar que seria sempre assim.

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A carruagem chegou, enfim, à cidade e tomou a rua principal. As lojas já estavamfechadas, salvo a de Erakine, o milionário, onde se experimentava a iluminação elétrica,muito tremulante, ainda, em torno da qual as pessoas se agrupavam. Em seguida,atravessou ruas longas e sombrias, ruas desertas; depois, a estrada construída pelozemstvo — alcançando, enfim, o campo, de onde emanava o odor dos pinheiros.

Subitamente, erguida diante de seus olhos, uma muralha branca, ameada, fazendo fundo para um alto campanário inundado de luz, e para cinco cúpulas douradas,resplandecentes: o Mosteiro de São Pancrácio, morada de Monsenhor Piotr. Sobre a qual,também, muito alta e dominando o convento, pairava a lua, tranqüila e sonhadora. Acarruagem transpôs o portão, fazendo ranger a areia. Aqui e ali, ao luar, passavamfugitivas silhuetas negras de monges, os passos ressoando nas lajes de pedra.

 — Monsenhor, sua mãe chegou, em sua ausência — anunciou um irmão leigo, quando o bispo entrou.

 — Mamãe? Quando? Antes dos últimos ofícios. Perguntou logo onde estava o senhor.

Depois, foi para o convento das freiras. — Então, foi ela mesma que vi na igreja. Ah! Senhor!

E o bispo riu de alegria, enquanto o irmão leigo continuava:

 — Madame mandou dizer que voltará amanhã. Trouxe com ela uma menina... deve ser sua neta. Desceu no Albergue de Ovsiannikov.

 — Que horas são?

 — Mais de onze. — Que pena!

O bispo ficou um instante no salão, meditativo, como se duvidasse de que fosse tão tarde.Sentou-se, as pernas e os braços cansados, a nuca dolorida. Sentia calor, certo mal-estar.Após curto repouso, retirou-se para seu quarto, onde ainda ficou sentado um instante, pensando na mãe. Ouviu distanciarem-se os passos do irmão leigo e a tosse do padreSissol, atrás do tabique. O relógio soou meia hora.

O bispo mudou de roupa e pôs-se a dizer as velhas preces que conhecia há muito tempo,

 pensando em sua mãe. Nove filhos e quase quarenta netos. Em outros tempos moravacom o marido, diácono de seu distrito, uma pobre aldeia onde vivera durante muitotempo, dos dezessete aos sessenta anos. Lembrava-se dela desde a mais remota infância,desde os três anos. Amava-a muito. Doce, querida, inolvidável infância! Por que essetempo se fora para sempre? Assim distante, sem retorno, parecia mais radiosa, mais belae mais rica do que na realidade. Quando, menino ou adolescente, adoecia, como sua mãesabia ser terna, sensível! E, agora, suas preces misturavam-se às recordações que se

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reacendiam, como uma chama cada vez mais viva, que não o impedia de pensar em suamãe.

Terminada a oração, deitou-se: no escuro, reviu seu pai e sua mãe, Lessopolia e suacidade natal. Ao rangidos das rodas, os balidos dos carneiros, o carrilhão da igreja nas

claras manhãs de verão, os ciganos mendigando às janelas... ah! Como era doce recordar!Lembrou-se do padre de Lessopolia, padre Simeon, um homem terno, tranqüilo, benevolente. Era baixo, magro, mas seu filho seminarista era corpulento, voz forte de baixo. Um dia, o filho do pope irritou-se com a cozinheira e injuriou-a: “Jumenta deZegouldil!” O Padre Simeon nada disse, mas corou de confusão, porque não conseguiarecordar-se da passagem da Sagrada Escritura, que falava nessa jumenta. Seu sucessor,em Lessopolia, o Padre Demiani, bebia até ao delírio, quando via “a ser pente verde” — oque lhe valeu o apelido de Demiane da Serpente. O professor de Lessopolia era o antigoseminarista Matvei Nicolaitch, homem excelente, nada tolo, mas bêbado, também. Não batia nos alunos, mas pendurava, diariamente, na parede da sala de aula, um apanhado devaras de bétula, sobre o qual lia-se uma inscrição em latim, realmente assombrosa: Betula

kinderbalsamica secuta. Possuía um cão negro e crespo, chamado Sintaxe. E o bispo ria, àrecordação disso tudo.

A oito verstas de Lessopolia, situava-se a aldeia de Obnino, onde existia um íconemiraculoso. No verão, levavam-no, em procissão, pelos lugarejos vizinhos — e, à sua passagem, os sinos repicavam. Monsenhor tinha a impressão de que o ar palpitava dealegria e ele seguia o ícone de cabeça e pés nus, com ingênua fé, sorriso devoto,infinitamente feliz. Em Obnino, lembrava-se, havia sempre muita gente o padre do lugar, padre Aleixo, para ter tempo de chegar ao ofertório, fazia ler por seu sobrinho Hilarion,que era surdo, os papeizinhos e os nomes escritos nos pães de consagração... “pela saúdede...”, “pelo repouso de...” Para lê-los, Hilarion recebia de cinco a dez copeques por 

missa. Já era um homem grisalho e calvo, sua juventude já passara, quando descobriu um papel em que haviam escrito: “Como podes ser tão tolo, Hilarion?” Pelo menos até aosquinze anos, monsenhor, a quem, então, chamavam Popaul, era muito atrasado etrabalhava muito mal, em aula. Tão mal que haviam pensado em retirá-lo do seminário ecolocá-lo em uma loja. E havia, ainda, aquele dia em que, indo buscar as cartas nocorreio, observara longamente os empregados e lhes perguntara: “Permitam-me indagar como são pagos... Por mês, ou por dia?”

Monsenhor benzeu-se e, voltando-se para outro lado, fugindo a recordar, adormeceu.Ainda teve tempo de pensar e de sorrir: “Mãe chegou...”

A lua entrava pela janela, iluminando o assoalho e povoando-o de sombras. Um grilocantava. Atrás do tabique, no compartimento vizinho, o Padre Sissol roncava e seu roncar de velho tinha qualquer coisa de solitário, de repousado, talvez mesmo de vagabundo. Emoutros tempos, Sissol havia sido ecônomo da diocese — e era agora chamado de “ex- padre ecônomo”. Tinha setenta anos, morava em um convento a dezesseis verstas dacidade. Três dias antes, chegara ao Convento de São Pulcrácio, onde monsenhor oretivera para, nas horas possíveis, conversar com ele sobre seu tempo perdido, sobrenegócios e hábitos locais...

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A uma hora e meia soaram as matinas. Ouviu-se o padre Sissol tossir, resmungar, erguer-se e passear descalço de um quarto a outro. Monsenhor chamou:

 — Padre Sissol!

Sissol voltou ao seu quarto e apareceu, pouco depois, já de botas calçadas, com uma velana mão. Vestira a batina sobre a camisola e trazia, à cabeça, um velho solidéu desbotado.Sentando-se na cama, monsenhor disse:

 — Não consigo dormir. Devo estar doente... sei lá o que tenho. Estou com febre.

 — Deve Ter sido a friagem, monsenhor. Precisa fazer uma fricção com sebo...

Esperou ainda um instante. Bocejou...

 — Senhor, perdoai a este pobre pecador!

Acrescentou:

 — Instalaram eletricidade, hoje, em casa de Ekarine. É uma coisa que não me agrada.

O Padre Sissol já era idoso. Muito magro, curvado, sempre descontente, olhar colérico,olhos proeminentes como os dos caranguejos. Repetiu, retirando-se:

 — Não me agrada, mesmo. Não me agrada, absolutamente!

II

 No dia seguinte, Domingo de Ramos, monsenhor celebrou a missa, na catedral, dirigindo-se, depois, à casa do bispo da diocese e, em seguida à de uma velha generala, muitodoente. Voltou à casa e, a uma hora, estava sentado à mesa, em companhia de duasvisitantes, muito caras a seu coração: sua velha mãe e sua sobrinha Katia, menina de unsoito anos. Durante a refeição, um, sol primaveril iluminou a janela, resplandeceu sobre atoalha branca e sobre os cabelos ruivos de Katia. Através dos duplos caixilhos, ouvia-se ocrocitar dos corvos e o canto dos estorninhos, no jardim. A velha senhora dizia:

 — Há exatamente nove anos que não nos vemos. Ontem, no convento, o que sentiquando o vi, meu Deus! Não mudou em nada, apenas emagreceu um pouco e sua barba

está mais longa. Rainha do Céu, Mãe Nossa! Não pude deixar de chorar... ninguém pôdedeixar de chorar, quando oficiou as completas. Não sei por que, bruscamente, pus-me achorar... por quê? Nem eu mesma o sei... É a vontade divina!

A despeito do tom carinhoso com que falava, sentia-se que não estava à vontade, nãosabendo se deveria dizer-lhe tu, ou vós, rir, ou não — muito mais esposa de diácono, doque mãe de bispo. Sem pestanejar, Katia fixava monsenhor seu tio, como se procurasseadivinhar que homem era ele. Cabelos penteados em forma de auréola, presos por uma

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travessa e por uma fita de veludo, nariz arrebitado, olhos astuciosos — e tão inquieta que,antes de sentar-se à mesa, quebrara um copo. Agora, enquanto falava, sua avó iaafastando dela ora um copo de vinho, ora um pequeno cálice. Monsenhor ouvia sua mãe elembrava-se de que, outrora, há muitos anos, ela o levava e a seus irmãos à casa dos parentes que considerava ricos. Naquele tempo, preocupava-se por seus filhos... Hoje, por 

seus netos... E havia trazido Katia...

 — Sua irmã Varia tem quatro filhos. Katia é a mais velha. Ivan, meu genro, caiu doente,antes da Assunção, só Deus sabe de quê, e morreu, em três dias. Agora, minha Varia éobrigada a mendigar pelas ruas.

 — E Nicanor? — perguntou monsenhor, referindo-se a seu irmão mais velho.

 — Não vai mal, graças a Deus. Digo que não vai mal e agradeço a Deus, porque tem doque viver. Somente meu neto Nicolai não quis ser padre; está na faculdade, estudando para médico. Acha que será melhor... mas quem sabe? É a vontade de Deus.

 — Nicolai corta cadáveres — disse Katia, derramando água sobre os joelhos.

Calmamente, a avó disse, tirando-lhe o copo das mãos:

 — Fica quieta, pequena. Reza, enquanto comes.

Acariciando ternamente o ombro e o braço da mãe, monsenhor disse:

 — Há quanto tempo não nos vemos! Senti muitas saudades suas, no estrangeiro, mamãe.Muitas, mesmo.

 — Obrigada.

 — À noite, sentava-me junto à janela, sozinho, ouvindo a música lá fora. Então,subitamente, a nostalgia tomava-me de assalto... e eu creio que teria dado tudo para poder voltar a vê-la.

Ela sorriu, seu rosto iluminou-se. Mas logo retomou o seu ar sério e disse:

 — Obrigada.

Repentinamente, o humor do bispo transformou-se. Olhava sua mãe, sem poder compreender de onde vinha aquela expressão respeitosa, tímida em seu rosto e em suavoz. Não a reconhecia. Sentiu-se triste. Depois, como na véspera, sua cabeça tornou-se pesada, suas pernas começaram a doer... o peixe pareceu-lhe insípido... não conseguiaacalmar a sede...

Após o jantar, recebeu a visita de duas senhoras, ricas, proprietárias, que se demorarammais de uma hora, em silêncio, pesando no ambiente, com seus rostos alongados; do

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arquimandrita, homem taciturno e surdo, que fora tratar de negócios. As vésperas soaram,o sol escondeu-se atrás da floresta e o dia terminou. Regressando da igreja, monsenhor fez apressadamente suas orações e meteu-se na cama, agasalhando-se muito.

O peixe do almoço lhe deixara uma sensação desagradável. O luar o incomodava. Ouviu

vozes: em um outro compartimento, no salão, provavelmente o Padre Sissol conversavasobre política.

 — Os japoneses estão em guerra. Estão se batendo. Os japoneses, minha cara senhora,são a mesma coisa que os montenegrinos... são da mesma raça. Estiveram juntos sob o jugo turco...

Ouviu a voz da mãe:

 — Então, depois de termos feito nossas orações, depois de bebermos chá, fomos à casado Padre Iegor, em Novokhatnoia...

E, a cada cinco minutos, repetiu: “depois de tomarmos chá...” Dir-se-ia que, em toda asua vida, ela só aprendera a tomar chá. Lentamente, vagamente, voltavam à memória domonsenhor o pequeno e o grande seminário. Por mais de três anos, fora professor degrego... já não podia ler sem óculos... Quando recebeu a tonsura, foi nomeado inspetor.Em seguida, defendeu tese. Aos trinta e dois anos, era diretor do seminário. Já sagradoarquimandrita. A vida tornou-se, então, de tal maneira fácil e agradável, tão longa que parecia não Ter fim. Foi quando caiu doente. Emagreceu muito, ficou quase cego e, aconselho médico, abandonou tudo e partiu para o estrangeiro.

 Na sala vizinha, Sissol perguntou:

 — E depois?

 — Depois, bebemos chá — respondeu sua mãe.

 — Meu pai, sua barba é verde! — disse, subitamente,Katia.

Lembrando-se de que, realmente, a barba grisalha do Padre Sissol tinha reflexos verdes,monsenhor pôs-se a rir.

Ouviu a voz colérica do Padre Sissol:

 — Meu Deus, que maldição de criança! Como é mal-educada! Fica quieta!

Monsenhor reviu a igreja branca, novinha, onde oficiava no estrangeiro... Recordou oruído do mar tranqüilo. Seu apartamento constituía-se de cinco peças, altas e claras. Emseu gabinete de trabalho, havia uma escrivaninha nova e uma biblioteca; ele escrevia e liamuito. Lembrou-se de sua nostalgia de então; de um mendigo cego que, diariamente,cantava, sob suas janelas, canções de amor, acompanhadas de guitarra, e de que, cada vez

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que o ouvia, pensava no passado. Mas oito anos haviam decorrido, ele fora chamado àRússia e, agora, era bispo sufragâneo — todo seu passado desaparecido muito longe, na bruma, como um sonho...

Com uma vela na mão, Padre Sissol entrou no quarto. Espantou-se:

 — Já está dormindo, monsenhor?

 — Que tem isso?

 — É muito cedo, ainda... Comprei uma vela de sebo e gostaria de friccionar suas costas...

 — Estou com febre. E muita dor de cabeça. Evidentemente, é preciso fazer alguma coisa — disse monsenhor, sentando-se.

Sissol tirou-lhe a camisa e fez-lhe uma fricção no peito e nas costas, com sebo.

 — Assim... assim... Senhor Jesus! ... Assim... Hoje estive na cidade, em casa de... comose chama mesmo ele...? Em casa do Arquiprior Sidonski... Tomei chá com ele... Nãosimpatizo com ele... Senhor Jesus... Assim... Assim... Pois é, não simpatizo com ele...

III

O bispo da diocese, homem idoso e obeso, vencido pelo reumatismo, ou pela gota, não selevantava da cama há mais de um mês. Monsenhor Piotr visitava-o diariamente e davaaudiência, em seu lugar. Agora, que também sofria, pensava, chocado, no vazio e na pequenez de tudo quanto lhe pediam, de tudo por que se lamuriavam os que iam procurá-

lo. A timidez e o atraso dessas pessoas o irritavam. Todas as frivolidades, todas as coisasociosas o esmagavam: tinha a impressão de que, enfim, compreendia o bispo titular que,outrora, em sua juventude, escrevera um Tratado do Livre Arbítrio, e parecia-lhe que,agora, sua personalidade se constituía apenas de detalhes, que tudo esquecera, que não pensava mais em Deus. No estrangeiro, desacostumara-se da vida russa — e agora sentiamuito seu peso. Chocava-se com a grosseria do povo, com os pedidos tolos dos queapelavam a seu auxílio, com a incultura dos seminaristas e professores, autênticosselvagens, na maioria das vezes. O correio que enviava, ou recebia, existia na proporçãode dez para mil — e que correio! Os deãos de todas as dioceses davam notas à condutados padres, jovens e velhos, a suas mulheres, a suas crianças e era preciso comentar tudoisso, escrever cartas sérias a respeito, ler. Não lhe restava, positivamente, um só minuto

de liberdade, seu espírito sempre inquieto, só sentindo tranqüilidade na igreja.

Também não conseguia acostumar-se ao medo que inspirava, involuntariamente, apesar de sua doçura e de sua discrição. Todos os habitantes da paróquia ficavam intimidados,contritos em sua presença —humildes e assustados. Mesmo os velhos arquimandritasanulavam-se diante dele — e, bem recentemente, uma solicitante, a velha esposa de um pope de província, sentira tanto medo, ao defrontá-lo, que não pudera articular uma só palavra e partira sem nada lhe solicitar. E ele que, em seus sermões, jamais pudera ser 

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severo, que jamais dirigira, a quem quer que fosse, uma censura, pois sentia piedade, perdia a linha, encolerizava-se e atirava todos os pedidos no chão. Desde que chegara,ninguém lhe havia falado sinceramente, humanamente, com simplicidade. Sua própriamãe não era a mesma. Por que falava sem cessar e ria tanto com Sissol, enquanto comele, seu filho, era tão grave, tão taciturna, tolhida por um constrangimento que não

combinava com ela? A única pessoa que sentia à vontade, em sua presença, dizendo tudoo que queria dizer, era o velho Sissol, que durante toda a sua vida servira a bispos, dosquais já enterrara onze. E também ele, monsenhor, sentia-se à vontade com ele, emborafosse, incontestavelmente, um homem difícil e ardiloso.

 Na terça-feira, depois da missa, ao receber os solicitantes, no bispado, monsenhor agitou-se, exaltou-se. Ao entrar em casa, sempre indisposto, desejava deitar-se. Mal chegou, porém, anunciaram-lhe o jovem solicitante Erakine, generoso benfeitor das boas obras,que lhe pedia audiência, para tratar de um assunto muito importante. Não pôde recusar-se. Erakine demorou perto de uma hora; falava alto, quase aos gritos — e monsenhor custara a entender o que dizia.

Ao sair, disse:

 — Deus permita que assim seja! É absolutamente necessário! De acordo com ascircunstâncias, Reverendíssima Excelência! Desejo ardentemente que assim seja!

Após Erakine, recebeu a madre superiora de um longínquo convento. E quando ela seretirou, soaram as vésperas; teve que voltar à igreja.

À noite, os monges entoaram um canto harmonioso e inspirado. Um jovem monge, de barba negra, oficiava. E monsenhor, ouvindo os versos sobre o esposo que veio à meia-

noite e, encontrando a casa enfeitada, não sentia arrependimento de seus pecados, nemaflição, mas sim calma e paz interior, deixou seu pensamento voar para um distante passado — sua infância e sua juventude, quando se cantava também esse esposo quechega à meia-noite a essa casa adornada. Agora, esse passado parecia-lhe vivo,magnífico, radioso, como talvez nunca o tivesse sido. Quem sabe, em outro mundo, emoutra vida, também recordemos nosso longínquo passado e nossa vida terrena, sentindo-os, assim, vivos e próximos... quem sabe?

Estava escuro. Sentado perto do altar, monsenhor deixava correr suas lágrimas, sonhandoque atingira a tudo que era acessível a um homem de sua posição. Tinha fé. Mas nemtudo estava claro, faltava-lhe qualquer coisa, não queria morrer: essa qualquer coisa que

lhe faltava era, talvez, o essencial de sua vida, com o que confusamente sonhara, outrora. No presente, a mesma esperança em um futuro, acompanhando-o, desde o seminário,desde que estivera fora de seu país.

E pensava, ouvindo atentamente os cânticos:

 — Como estão cantando bem, hoje! Como cantam bem!

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IV

 Na quinta-feira, oficiou na catedral e também na cerimônia de lava-pés. Quando o serviçoterminou e os fiéis se retiraram, fazia sol, o tempo estava quente, alegre, a águamurmurava nos riachos — e nos arredores, vindo do campo, soava o canto ininterrupto

das andorinhas, um canto pleno de ternura, convidando ao repouso. As árvores, despertas, pareciam sorrir gentilmente e o céu insondável, ilimitado, perdia-se muito longe, só Deussaberia onde.

Em casa, Monsenhor Piotr tomou chá, mudou de roupa e deitou-se, pedindo ao irmãoleigo que fechasse as janelas. A escuridão invadiu o quarto. Mas que cansaço, que dor nas pernas e nas costas, que sensação de peso, de frio, que zoada nos ouvidos! Fazia muitotempo que não dormia longamente. Tinha a impressão de que o que o impedia deadormecer era um quase nada que se erguia em seu cérebro, logo que fechava os olhos.Como na véspera, chegavam-lhe, de compartimentos vizinhos, através dos tabiques,vozes, ruídos de copos, de colheres... Sua mãe contava, alegremente, uma estória

 pitoresca, semeada de provérbios. Padre Sissol respondia, com voz sombria edescontente:

 — Ah! Que gente! Que coisa! Ainda esta!

E monsenhor sentia-se novamente contrariado, mortificado, porque sua velha mãe semostrava natural e simples, com os estranhos, enquanto diante dele, seu filho, intimidava-se, pronunciando raras palavras, que não correspondiam a seus pensamentos. Atémesmo... pelo menos lhe parecera... até mesmo procurava pretextos para se levantar,quando ele estava presente, constrangida, evitando ficar sentada em sua presença. E seu pai? Sem dúvida, se fosse vivo, também não poderia falar, diante dele...

 No quarto vizinho, um objeto caiu ao chão e quebrou-se. Teria sido obra de Katia,deixando cair uma xícara, ou um pires, pois logo se ouviu a voz do Padre Sissol, irritado:

 — Maldita menina! Senhor, perdoa-me estas palavras de pecador! Que flagelo!

Depois, fez-se silêncio. Ouviam-se, apenas, os ruídos vindos de fora. Quando monsenhor reabriu os olhos, viu Katia, observando-o, imóvel. Com seus cabelos ruivos, levantados por uma travessa em forma de auréola — como sempre. Perguntou-lhe:

 — És tu, Katia? Quem está a todo instante abrindo e fechando lá em baixo?

 — Não ouço nada — respondeu Katia.

 — Alguém acaba de passar.

 — É em sua barriga, tio.

Ele riu e acariciou-lhe a cabeça.

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 — Então, teu primo Nicolai corta cadáveres? — perguntou, depois de um curto silêncio.

 — Sim... Está estudando.

 — Ele é gentil?

 — Muito. Só que tem que beber, É terrível.

 — E teu pai? De que morreu?

 — Papai era muito fraco... magro... magro... De repente, ficou atacado da garganta. Eu emeu irmão também adoecemos... meu irmão Fiodor, sabe? Todos ficaram doentes dagarganta. Pai morreu, tio, mas nós todos ficamos bons.

Seu queixo começou a tremer, lágrimas brotaram de seus olhos, rolaram pelo rosto.Disse, com voz fraca, chorando agora amargamente:

 — Monsenhor,, mamãe e eu somos tão desgraçadas... Dê-nos um pouco de dinheiro...Faça-nos esta caridade, querido tio!

Monsenhor sentiu, também, lágrimas brotando em seus olhos. A emoção o impediu, por um momento, de falar. Depois, acariciou, mais uma vez, a cabeça da menina, bateu-lhecarinhosamente nas costas e respondeu:

 — Bem... bem, minha querida. Está chegando o dia da Páscoa... Voltaremos a falar nesteassunto. Vou ajudá-las, sim... vou ajudá-las...

Viu a mãe entrar, timidamente, para uma oração diante do ícone. Notando que ele nãodormia, perguntou-lhe:

 — Quer tomar uma sopinha?

 — Não, obrigado. Estou sem fome.

 —Está muito abatido... mas também como não ficar doente? Os dias inteiros semrepousar... meu Deus, só de olhá-lo sinto pena! Felizmente, a Semana Santa está próximae, se Deus quiser, ;poderá descansar e poderemos conversar. Agora, não quero incomodá-lo com as minhas tagarelices. Vem, Katia... Deixa monsenhor dormir um pouco.

Lembrou-se de que, quando era pequeno, há muitos anos, sua mãe falava ao deão nomesmo tom, ao mesmo tempo brincalhão e respeitoso... Somente seus olhos,extraordinariamente bondosos, o olhar tímido, preocupado, que ela lhe lançara, ao sair,deixavam transparecer que era sua mãe. Fechou os olhos. Mas não adormeceu. Ouviu, por suas vezes, o relógio soar — e a tosse do Padre Sissol, atrás do tabique. Uma carroça,ou uma caleça, a se julgar pelo ruído, aproximou-se da escadaria. Uma pancada súbita,uma porta batendo... O irmão leigo entrou:

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 — Monsenhor!

 — Sim?

 — Os cavalos estão prontos: já é hora do ofício da Paixão.

 — Que horas são?

 — Sete e quinze.

 — Vestiu-se e dirigiu-se à catedral. Durante a leitura dos evangelhos, era obrigado a ficade pé, imóvel, no meio da igreja. O primeiro evangelho, o mais belo e o mais longo, ele próprio o dizia. Sentiu-se novamente forte e bem disposto.

Esse primeiro evangelho — “Glória a Ti, ó Filho do Homem” — ele sabia de cor. Àsvezes, enquanto o recitava, olhava em torno e via um mar de olhos. E ouvia o crepitar dos

círios. Mas não lhe pareciam os mesmos fiéis dos anos precedentes, nem mesmo osreconhecia... Eram as mesmas gentes dos tempos de sua infância e de sua juventude, queseriam sempre as mesmas a cada ano que passasse... Até quando? Só Deus o sabia.

Seu pai era diácono, seu avô padre, seu bisavô diácono... toda a sua ascendência, talvez,depois da evangelização da Rússia, pertencera ao clero — e o amor de seu ministério, dosacerdócio, do carrilhão, era, nele, inato, profundo, desenraizável. Era na igreja,sobretudo quando oficiava, que se sentia mais ativo, disposto, feliz. E era o que lheacontecia, naquele instante.

Somente depois da leitura do oitavo evangelho, sentiu que sua voz enfraquecera, nem

mesmo sua tosse se ouvia, a cabeça doendo-lhe terrivelmente: teve medo de cair. Comefeito, suas pernas estavam completamente entorpecidas, a ponto de, pouco a pouco, nãomais as sentir. Não compreendia como e sobre que se sustentava, por que não caía...

Terminado o ofício, faltavam quinze para meia-noite. Voltando à casa, trocou de roupa edeitou-se imediatamente, sem mesmo dizer suas orações. Não podia falar, sentia-seincapaz de manter-se em pé. E foi exatamente enquanto se cobria que um súbito desejode partir o dominou... partir para o estrangeiro, uma irresistível vontade... Parecia-lhe queteria dado sua vida para não mais ver aqueles horríveis postigos, aqueles tetos baixos — enão mais sentir o pesado cheiro do convento. Se ao menos existisse um homem a quem pudesse falar, abrir sua alma!

Ouviu por muito tempo passos no quarto vizinho, sem conseguir lembrar-se de quemeram. Por fim, a porta abriu-se e o Padre Sissol entrou com uma vela e trazendo-lhe umaxícara de chá.

 — Já está deitado, monsenhor? Vim fazer-lhe uma fricção, com vodca e vinagre. Uma boa fricção sempre faz bem. Senhor Jesus! Estou acabando de chegar de nosso

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convento... Ele não me agrada, não me agrada! Vou-me embora amanhã, Excelência... Não desejo ficar nem mais um dia. Senhor Jesus... Pronto!

O Padre Sissol não gostava de permanecer por muito tempo em um lugar e já estava coma impressão de que passara o ano inteiro em São Pancrácio. Além disso, ouvindo-o, era

difícil saber onde ficava sua casa, se ele amava alguém, ou qualquer coisa, se acreditavaem Deus... Ele próprio não compreendia por que era monge... Aliás, ele não pensava maisnisso, há muito tempo se apagara, em sua memória, qualquer recordação da época em querecebera a tonsura... parecia-lhe que já nascera monge.

 — Parto amanhã. Estou me despedindo de tudo isso.

 — Gostaria de conversar com o senhor... Mas nunca houve ocasião — disse monsenhor,em voz baixa, penosamente. — Não conheço ninguém aqui... não estou a par de nada...

 — Pois ficarei até Domingo, se quiser. Mas não além de Domingo... Ah! Não!

Monsenhor prosseguiu, em voz baixa:

 — Que espécie de bispo sou eu? Deveria Ter sido pope, de aldeia, diácono... ou simplesmonge... Tudo isso me acabrunha... me acabrunha...

 — Como? Senhor Jesus, que idéia! Vamos, durma, monsenhor... Que estranha idéia! Boanoite!

 — Fim — 

A noiva

TchekhovTradução de Andrei Melnikov,colaboração de José Augusto

I

Eram dez da noite, e a lua cheia iluminava o jardim. Em casa dos Chumin acabara, há pouco, o serviço litúrgico encomendado pela avó, Marfa Mikhailovna, e agora Nadia, que

saíra um momento para o jardim, via lá dentro, porem a mesa na sala e a avó, no seu pomposo vestido de seda, andar aí preocupada. O arcipreste Andrei, da Catedral, diziaqualquer coisa a Nina Ivanovna, mãe de Nadia, que vista através da janela, à luz artificial, parecia estranhamente jovem. Junto a eles, encontrava-se Andrei Andreitch, filho do padre Andrei, ouvindo com atenção o que os outros diziam.

O jardim, silencioso, respirava frescura; sombras estendiam-se, quietas, pelo chão. Aolonge, talvez fora da cidade, ouvia-se o coaxar das rãs. A brisa de Maio — delicioso

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Maio! — fazia-se sentir em tudo. Respirava-se a plenos pulmões, e parecia que algures,sob o céu, por sobre as árvores, muito além da cidade, nos campos e bosques, brotava avida primaveril, misteriosa, bela, efervescente e sagrada, inacessível à compreensão doshomens, seres fracos e pecaminosos. Dava vontade de chorar, não se sabia porquê.

 Nadia tinha já vinte e três anos. Desde os dezesseis anos que desejava ansiosamentecasar, e agora era finalmente noiva de Andrei Andreitch, aquele que se via na sala. Ohomem agradava-lhe, o casamento já estava marcado para sete de Julho. No entanto, Nadia não se sentia alegre, dormia mal, andava desalentada... Do pavimento inferior,onde ficava a cozinha, chegavam pela janela aberta sinais dos preparativos do jantar: barulho dos talheres, o bater da porta, o cheiro a peru assado e compota de cerejas. E parecia que toda a vida seria assim, sem alterações nem fim!

Alguém saiu de casa e deteve-se à entrada. Era Aleksandr Timofeitch ou, simplesmente,Sacha, de Moscovo, que ali se hospedara há dez dias. Houve uma altura em que uma parente afastada de Marfa Mikhailovna — uma viúva fidalga, mas arruinada, baixinha,

franzina e doentia — vinha pedir ajuda. A viúva tinha um filho chamado Sacha. Dizia-seque ele prometia vir a ser um bom pintor, e quando a mãe morreu, Marfa Mikhailovnaenviou-o, por caridade, para um colégio técnico em Moscovo. Dois anos depois, entrou para a Escola de Belas Artes, que freqüentou quase quinze anos, tendo-se licenciado, amuito custo, em arquitetura, e trabalhava numa litografia de Moscovo. Quase todos osanos, no Verão, passava uns tempos na casa dos Chumin, para descansar e restabelecer-se.

Estava de casaca abotoada, calças de cotim, puídas e pisadas em baixo, e camisaamarrotada. Aliás, todo o aspecto dele era o de um amarrotado. Escanzelado, olhosgrandes, dedos compridos e magros, barba e cabelos negros, era, apesar de tudo, bastante

 belo. Habituara-se aos Chumin, que se lhe tornaram próximos, e sentia-se ali como emsua casa. O quarto que ocupava era, desde há muito, o “quarto de Sacha”.

Viu Nadia e aproximou-se dela.

 — Está-se bem aqui.

 — Claro que está. Deveria ficar connosco até ao Outono.

 — Sim, parece que é isso que vou fazer. É possível que fique até setembro.

Ele riu-se, sem qualquer razão aparente, e sentou-se ao pé dela. — Estou a observar a mamã — disse Nadia. — Vista daqui, parece tão jovem! — E, apósuma pausa, acrescentou:— Claro que tem as suas fraquezas, mas é realmente uma mulher extraordinária.

 — Sim, uma boa mulher — concordou Sacha. — É certo que a sua mãe é uma mulher  bondosa e simpática, à sua maneira, mas... como hei-de dizer-lhe? Hoje, de manhã cedo,

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 passei pela cozinha e encontrei lá quatro criadas a dormir na chão. Não têm camas, sótrapos fedorentos com percevejos e baratas... Precisamente como há vinte anos atrás,nada mudou. Quanto à avó, ainda se compreende, pois é uma pessoa idosa, mas a mamã,que fala francês, representa em espetáculos de amadores, deveria ser mais compreensiva.

Quando falava, Sacha erguia diante do interlocutor dois dedos magros e compridos.

 — Por falta de hábito, tudo aqui me parece bárbaro — prosseguiu ele. — Diabos! Ninguém faz absolutamente nada. A mamã passa o dia a passear, como se fosse umaduqueza; a avó não faz coisa nenhuma, e a Nadia também não. Andrei Andreitch, o seunoivo, também nada faz.

 Nadia ouvira já tudo isto no ano anterior e mesmo antes, e sabia que Sacha não podiaraciocinar doutra forma. Outrora, em ocasiões daquelas, apetecia-lhe rir, mas agorasentiu-se enfadada.

 — Não são coisas novas o que diz, estou farta de ouvi-las — disse ela, levantando-se. — Arranje algo mais original.

Ele riu-se, pondo-se também de pé, e ambos se dirigiram para casa. Alta, airosa e esbelta, Nadia parecia ao lado dele vistosa e plena de saúde. Ela sabia isso, tinha pena de Sacha e, por uma razão qualquer, sentia-se embaraçada.

 — Tem o mau hábito de falar a despropósito — disse ela. — Por exemplo, referiu-se há bocado ao meu Andrei, se bem que não o conheça.

 — “Ao meu Andrei!” Pouco me importo com o seu Andrei. Tenho pena é da sua

 juventude.Quando entraram na sala, estavam já todos sentados à mesa de jantar. A avó — ou aavozinha, como era tratada em casa — , muito redonda, feia, de sobrancelhas espessas e buço, falava alto, e pela sua voz e maneira de falar via-se que era ela quem mandava emcasa. Possuía tendas na feira e uma casa antiga com colunas e jardim; porém, todas asmanhãs rezava para que Deus a salvasse da ruína e chorava. A nora, Nina Ivanovna, mãede Nadia, uma mulher loura, de cintura muito estreita, com pince-nez e anéis de brilhantes em cada dedo da mão; o padre Andrei, um velho magro, desdentado, com ar dequem quer contar qualquer coisa muito engraçada, e o filho dele, Andrei Andreitch, onoivo de Nadia, um janota gorducho, de cabelo encaracolado, de aparência própria de um

actor ou pintor — , todos os três falavam de hipnotismo. — Aqui, numa semana pões-te bom — disse a avozinha, dirigindo-se a Sacha — , mastens que comer mais. Vê a tua figura! — Ela suspirou. — Mete dó ver-te! Um filho pródigo, é o que és.

 — Esbanjou os bens do progenitor — disse o padre Andrei com voz pausada e olhosrisonhos — , e foi pastar bolotas com um rebanho de porcos insensatos...

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 — Gosto do meu pai — disse Andrei Andreitch, passando a mão pelo ombro do pai. — Um velho bizarro, uma jóia de velho.

Todos se calaram. De repente, Sacha soltou uma risada e tapou a boca com o guardanapo.

 — Então, a senhora acredita em hipnotismo? — perguntou o padre Andrei a NinaIvanovna.

 — Não posso afirmar, evidentemente, que acredito — respondeu esta, tomando um ar muito sério, quase severo. — Mas reconheça que, na Natureza, há muitas coisasmisteriosas e incompreensíveis.

 — Plenamente de acordo, mas sou de opinião que a fé reduz, em grande medida, odomínio do misterioso.

Serviram um peru, grande e muito gordo. O padre Andrei e Nina Ivanovna continuavam a

conversar Os anéis brilhavam nos dedos de Nina Ivanovna, e nos seus olhos brilhavamlágrimas de emoção.

 — Não me atrevo a contestá-lo — disse ela — , mas convenhamos que, na vida, hámuitos enigmas indecifráveis.

 — Nem um só, asseguro-lhe.

Depois do jantar, Andrei Andreitch tocou violino, acompanhado ao piano por NinaIvanovna. Há cerca de dez anos formara-se na faculdade de Letras, mas não seempregara, não tinha nenhuma ocupação definida e só, de vez em quando, participava em

espetáculos de beneficência. Na cidade, chamavam-lhe artista.Andrei Andreitch tocava e todos escutavam em silêncio. Na mesa fervia, surdo, osamovar. Só Sacha tomava chá. Já depois da meia-noite, uma corda do violino partiu,todos riram, alvoroçaram-se e começaram a despedir-se.

Depois de acompanhar o noivo à porta, Nadia foi para o andar de cima, que habitava coma mãe (o andar de baixo era ocupado pela avó). Em baixo, na sala, apagavam as luzes,mas Sacha deixou-se ainda ficar aí a tomar chá. Bebia sempre demoradamente, umas setechávenas, à maneira dos moscovitas.

Depois de se ter despido e deitado, Nadia ouviu ainda durante muito tempo a criadagemarrumar a sala e a avó ralhar com alguém. Por fim, tudo ficou silencioso. Só de vez emquando, em baixo, no quarto de Sacha se ouviam tossidelas roucas.

II

 Nadia despertou aproximadamente às duas da manhã. Começava a alvorecer. Algures, aolonge, o guarda batia com a matraca. Nadia não tinha sono, a cama era demasiado fofa,

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incômoda. Como em todas as anteriores noites de Maio, sentou-se na cama e pôs-se a pensar. Os pensamentos eram os mesmos da noite passada, monótonos, inúteis,obsessivos. Recordava como Andrei Andreitch começara a cortejá-la e lhe fizera a proposta de casamento, como ela tinha aceite e como, com o tempo, passara a estimar esse homem bondoso e inteligente. Mas agora, quando faltava só um mês para o

casamento, começou a sentir medo e ansiedade, como se a esperasse algo incerto e penoso.

“Tic-toc, tic-toc”, batia preguiçosamente o guarda. “Tic- toc!”

Pela janela grande vê-se o jardim, arbustos de lilases em flor, modorrentos e murchos defrio. A névoa, branca e espessa, aproxima-se de mansinho dos lilases, para envolvê-los.Ao longe, nas árvores, crocitam gralhas ensonadas.

 — Ó meu Deus, porque estou eu tão aflita?

Experimentarão todas as noivas o mesmo nas vésperas do casamento? Quem sabe! Ouserá resultado da influência de Sacha? Mas já há anos seguidos que Sacha repete amesma coisa, palavra por palavra, e enquanto fala parece tão ingênuo e estranho. Mas porque Sacha não me sai da cabeça? Porque?

O guarda deixou há muito tempo de matracar. Os pássaros armaram uma grande algazarrasob a janela e, no jardim, a névoa dissipou-se e um sol de primavera iluminou tudo emvolta como um sorriso. Pouco depois, todo o jardim, acalentado e acariciado pelo sol,acordou e as gotas de orvalho cintilaram nas folhas como diamantes. O velho jardim,abandonado há muito, parecia aquela manhã muito jovem e lindo.

A avó despertou já. Ouviu-se a tosse áspera de Sacha. Ouvia-se, na andar de baixo,servirem chá e mexerem cadeiras.

As horas arrastavam-se. Há muito que Nadia se levantara e passeava pelo jardim, masainda era manhã.

Apareceu Nina Ivanovna com os olhos vermelhos de chorar, com um copo de águamineral na mão. Ela dedicava-se ao espiritismo, à homeopatia, lia muito, gostava de falar das suas dúvidas e tudo isso parecia, aos olhos de Nadia, encerrar um sentido profundo emisterioso. Nadia beijou a mãe e pôs-se a caminhar ao seu lado.

 — Porque choraste, mamã? — Ontem à noite li uma novela em que se falava de um velho e da filha. Aconteceu que ochefe da instituição onde o velho trabalhava se enamorou da filha. Ainda não cheguei aofim, mas há uma passagem que não é possível ler sem chorar — respondeu NinaIvanovna, bebendo um gole de água mineral.

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 — Ando deprimida desde há algum tempo — disse Nadia, após um momento de silêncio. — Porque será que não consigo dormir de noite?

 — Não sei, querida. Quando não tenho sono, fecho bem os olhos, assim, e imagino AnnaKarenina*, o seu modo de andar, de falar, ou então qualquer episódio da história, da

antigüidade...

 Nadia sentiu que a mãe não a compreendia, nem seria capaz de a compreender. Percebeu-o pela primeira vez na vida, e teve medo. Quis esconder-se e foi para o quarto.

Ás duas da tarde, todos se reuniram para o almoço. Era quarta-feira, dia magro, por isso aavó comia uma sopa de couve e peixe com papas.

Para arreliá-la, Sacha comeu tanto a sopa de carne como a sopa magra. Motejou durantetoda a refeição, mas os seus ditos saíam-lhe pesados, com o cheiro a ensinamentosmorais, e não tinha graça nenhuma quando erguia os dedos compridos e descarnados

como os dum morto. Isto fazia lembrar que ele estava gravemente doente, que talvez nãodurasse muito, e dava muita pena.

Depois do almoço, a avó foi descansar para o seu quarto. Nina Ivanovna demorou-semais um bocado, a tocar piano, e depois também saiu.

 — Oh, querida Nadia — começou Sacha a sua habitual história de tarde — , quem medera convencê-la, quem me dera!

De olhos cerrados, ela escutava, aconchegada numa poltrona antiga, enquanto Sacha passeava vagarosamente pela sala dum canto para outro.

 — Oh, se fosse estudar! — dizia ele. — Só as pessoas cultas e puras são interessantes, sóelas são necessárias. Quanto mais gente dessa houver, mais cedo chegará à Terra o reinode Deus. Com o tempo, da sua cidade não restará uma só pedra, tudo será virado deavesso, tudo se transformará como por encanto. Aparecerão enormes e magníficosedifícios, maravilhosos jardins, admiráveis fontes, excelentes pessoas... Mas não é isso oessencial. O mais importante é que não haverá gentalha no sentido actual da palavra. Estemal deixará de existir, porque cada homem terá fé e consciência daquilo para que vive,vencerá o instinto gregário. Vá, minha boa Nadia, decida-se! Mostre a todos que estáfarta desta vida estagnada, vazia, abjecta. Ao menos, mostre-o a si própria.

 — Não posso, Sacha. Estou para casar. — Deixe-se disso! Casar para quê?

Saíram para o jardim e deram um passeio.

 — Seja lá como for, querida Nadia, mas tem o dever de tomar consciência e ver até que ponto é desonesta e imoral esta sua vida ociosa — prosseguiu Sacha. — Vejamos: se

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você, a sua mãe e a avozinha não fazem nada, isso quer dizer que alguém trabalha por vós, que estais a consumir vidas alheias. E não é isso sórdido, torpe?

 Nadia quis responder que isso era verdade, que ela compreendia, mas não pôde: aslágrimas inundaram-lhe de repente os olhos, murchou, retraiu-se e foi para o seu quarto.

À noite, chegou Andrei Andreitch e, como de costume, tocou violino durante muitotempo. Em geral, era pouco falador e, talvez gostasse de tocar violino precisamente paraque isso o libertasse da necessidade de falar. Por volta das onze, quando ia a sair, já como casaco vestido, abraçou Nadia pela cintura e começou a beijar-lhe avidamente o rosto,os ombros, as mãos.

 — Querida, minha jóia, minha bela!... — balbuciava ele. — Como estou feliz! Sinto-melouco de prazer.

 Nadia teve a impressão de ter já ouvido ou lido, há muito, aquelas palavras, talvez num

romance velho, gasto pelo uso, esquecido num canto qualquer. Na sala, sentado à mesa, Sacha tomava chá por um pires pousado nas pontas dos dedosabertos. A avozinha fazia uma paciência com as cartas. Nina Ivanovna lia. A chama dalamparina crepitava, e todo o ambiente era sereno e reconfortante. Nadia deu as boas-noites, subiu para o seu quarto, deitou-se e adormeceu logo. Porém, como na noiteanterior, despertou ao romper da manhã. Não tinha sono, sentia-se inquieta e oprimida.Sentada com a cabeça apoiada nos joelhos, pensava no noivo, no seu casamento...Lembrou-se de que a mãe não amara o falecido marido, e estava agora sem quaisquer meios, na mais completa dependência da sogra, a avozinha. Por mais que reflectissenisso, Nadia não conseguia explicar a si própria como podia ter visto, na sua mãe, algo de

especial, de extraordinário, sem notar que era uma mulher simples, banal e infeliz. No andar de baixo, Sacha também não dormia: ela ouvia-o tossir. Um homem estranho,ingênuo — pensava — , os seus devaneios sobre os maravilhosos jardins e as admiráveisfontes são um absurdo. Contudo, aquela sua ingenuidade e até os devaneios ridículos nãodeixam de ter o seu lado belo. Bastou que ela pensasse em estudar e logo experimentouum arrepio de êxtase, e o peito encheu-se-lhe de alegria e deleite.

 — É melhor não pensar nessas coisas, é melhor não pensar... — murmurava. — Não devo pensar nisso.

“Tic-toc...”, matracava o guarda ao longe. “Tic-toc...tic-toc...”

III

 Nos meados de Junho, sentindo-se enfadado, Sacha começou a preparar a partida paraMoscovo.

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 — Não posso viver nessa cidade — dizia com ar taciturno. — Nem água, nem esgotos! Éum nojo comer aqui: a cozinha está incrivelmente suja...

 — Espera ai, filho pródígo! — insistia a avó, cochichando. — No dia sete é a boda.

 — Não quero esperar.

 — Mas querias ficar até setembro!

 — Antes queria, agora não. Tenho que trabalhar!

Com efeito, o ambiente convidara ao trabalho: o tempo estava húmido e frio, o jardim,com as árvores molhadas, tinha um aspecto sombrio e triste. Por toda a casa ouviam-sevozes de mulheres e, no quarto da avó, matraqueava uma máquina de costura: o dote danoiva era preparado a toda a pressa. Só pelicas, eram seis, e a mais barata, a acreditar naavó, custava trezentos rublos! Esta azáfama irritava Sacha, que não saia do quarto e se

aborrecia. Contudo, convenceram-no a ficar e ele prometeu que não partiria antes de umde Julho.

O tempo corria veloz. No dia de São Pedro, à tarde, Andrei Andreitch foi com Nadia à ruaMoskovskaia para apreciar, uma vez mais, a casa alugada para o jovem casal e já hátempos preparada para o receber. Era uma moradia de dois pisos, mas, por enquanto, sóestava mobilado o de cima. O soalho do salão, com um desenho imitando tacos, reluzia:viam-se cadeiras, um piano de cauda e uma estante para pautas de música. Cheirava atinta. Pendurado numa parede havia um quarto grande a óleo, numa moldura dourada,representando uma dama nua junto a um vaso lilás de asa partida.

 — Um quarto excelente — disse Andrei Andreitch com um suspiro de veneração. — É deChichmatchevski.

Passaram, em seguida, para a sala de estar, onde havia uma mesa redonda, um sofá e poltronas forradas de pano azul-vivo. Em cima do sofá, via-se uma grande fotografia do padre Andrei com o chapéu de clérigo e ordens ao peito. Entraram na sala de jantar edepois no quarto de dormir, mergulhado na penumbra, onde estavam, uma ao pé da outra,duas camas. Pelos vistos, quem mobilara o quarto, pensara que ali se estaria sempremuito bem, e nem poderia ser de outra maneira. Andrei Andreitch mostrava a Nadia asdivisões, abraçando-a sempre pela cintura. Ela sentia-se fraca e culpada, odiava todosaqueles aposentos, camas, poltronas. A dama nua do quadro metia-lhe nojo. Estava certa

que deixara de amar Andrei Andreitch ou que, talvez, nunca o tivesse amado. Mas nãosabia como, a quem e para que dizê-lo, apesar de ter pensado nisso durante dias e noites...Ele continuava a abraçá-la pela cintura, falava-lhe com carinho e recato, tão felizandando por aquela casa que era sua, ao passo que ela via em tudo apenas vulgaridade,ingênua e insuportável vulgaridade. A mão que lhe cingia a cintura parecia-lhe dura e friacomo uma argola. Apetecia-lhe fugir, romper em soluços ou atirar-se da janela abaixo.Andrei Andreitch levou-a à casa de banho, abriu uma torneira fixa à parede e correu água.

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 — Que te parece? — indagou ele, rindo. — Mandei instalar um grande tanque no sótão, eassim temos água em casa.

Atravessaram o pátio, chegaram à rua e tomaram uma carruagem. A poeira volteava no ar em nuvens espessas, e parecia que de um momento para o outro começaria a chover.

 — Não tens frio? — perguntou Andrei Andreitch, fechando os olhos por causa da poeira.

Ela não respondeu.

 — Ontem Sacha — lembras-te? — censurou-me por eu não fazer nada — disse AndreiAndreitch, após uma pausa. — Bom, ele tem razão. Carradas da razão! Não faço nada,nem posso fazer nada. Porquê, querida? Porque repugna a idéia de, um dia, vestir umafarda e ir para o serviço? Porque me basta ver um advogado ou um professor de latim ouum membro da administração para sentir mal-estar? Ai Rússia minha, quantos homensinúteis e ociosos ainda suportas no teu seio! Quantos homens como eu aumentam os teus

sofrimentos!Apresentava a ociosidade dele como um fenômeno generalizado, um sinal dos tempos.

 — Depois do casamento vamos para a aldeia, trabalharemos lá! — prosseguiu AndreiAndreitch. — Compraremos uma nesga de terra com pomar e rio e vamos trabalhar,observar a vida. Será maravilhoso!

Tirou o chapéu e os cabelos ondularam-lhe ao vento. Ela escutava-o, dizendo para si:“Céus! Quando acabará isto? “ Já quase a chegar, ultrapassaram o padre Andrei.

 — Ai vem o meu pai! — alegrou-se Andrei Andreitch, acenando-lhe com o chapéu. — Quero-lhe — disse, enquanto pagava ao cocheiro. — Um velho às direitas.

 Nadia entrou em casa aborrecida, mal disposta, pensando que, toda a noite, teria quetolerar os convidados, entretê-los, sorrir, escutar o violino e toda a espécie de asneiras, eouvir falar apenas do casamento. A avó, imponente e majestosa no seu vestido de seda,com aquele ar altivo que assumia sempre que recebia visitas, estava sentada diante dosamovar. O padre Andrei entrou, com o sorriso astuto de sempre.

 — Tenho o prazer e a feliz consolação de a encontrar de boa saúde — disse à avó, numtom que não dava para entender se falava a sério ou estava a brincar.

IV

O vento assobiava, nas janelas e no telhado, e parecia que um duende rugia na chaminé,entoando uma plangente e melancólica canção. Passava da meia-noite. Já se haviamdeitado todos, mas ninguém dormia. Nadia tinha a impressão de que no andar de baixo,tocavam violino. Ouviu-se uma forte pancada — o vento devia ter arrancado uma

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 portada. Passado um minuto, entrou Nina Ivanovna em camisa de noite e uma vela namão.

 — Que foi aquilo, Nadia? — perguntou.

De cabelos entrançados e um sorriso tímido, a mãe parecia naquela noite de temporalmais velha, mais feia e pequena. Nadia lembrou-se que ainda há pouco considerava a mãeuma mulher invulgar, e escutava com orgulho o que ela dizia. Agora, porém, nãoconseguia recordar as palavras dela, e tudo o que lhe vinha à memória não passava defrases frouxas e inúteis.

 Na chaminé parecia cantar com vozes de baixo, e até se distinguia: “Ó-o, meu De-eus!” Nadia sentou-se na cama e, de súbito, agarrou com força os cabelos e desatou a chorar.

 — Mãe, querida, se soubesses o que se passa comigo! Peço-te, rogo-te, deixa-me partir!Rogo-te!

 — Para onde? — indagou Nina Ivanovna sem compreender, sentando-se na cama. — Partir para onde?

 Nadia chorou um bom bocado, incapaz de articular palavra.

 — Deixa-me partir daqui! — pronunciou por fim. — Não pode haver, não haverácasamento nenhum. Não gosto daquele homem...Detesto até o falar dele.

 — Não, minha filha, não — disse rapidamente Nina Ivanovna, muito assustada. — Acalma-te, é que tens andado mal-humorada. Isso há-de passar. São coisas que

acontecem. Deves ter tido qualquer desentendimento com Andrei Andreitch, mas isso sãoarrufos de namorados.

 — Deixa-me, deixa-me, mãe — voltou a soluçar Nadia.

 — Sim — disse Nina Ivanovna, após um silêncio.— Ainda há pouco eras uma criança,uma menina, e agora és noiva. Na natureza tudo se sucede, tudo se reproduz. Assim semdares por nada, também se tornarás mãe, vais ficar velha e terás uma filha voluntariosacomo a minha.

 — Mãe, querida, és boa, inteligente, mas infeliz — disse Nadia — , muito infeliz. Então,

 para que dizes trivialidades? Para quê? Nina Ivanovna queria dizer mais alguma coisa, mas não conseguiu, retirou-se soluçando.Saídas da chaminé ouviram-se outra vez assustadoras vozes de baixo. Assustada. Nadiasaltou da cama e correu para o quarto da mãe. Nina Ivanovna, com a cara molhada delágrimas, estava deitada, com um livro nas mãos e coberta com uma manta azul.

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 — Tenho uma coisa a dizer-te, mãe — pronunciou Nadia. — Suplico-te que reflictas bemnisso e me tentes compreender. Quero que percebas até que ponto é mesquinha evexatória a nossa vida. Sabes, abriram-se-me os olhos, agora vejo tudo. Como é esseAndrei Andreitch? Um homem falho de inteligência! Oh, meu Deus! Sim, mãe, ele é tãoestúpido!

 Nina Ivanovna sentou-se bruscamente na cama.

 — Tu e a tua avó atormentam-me! — disse com um soluço. — Quero viver! Viver! — exclamou dando murros no peito. — Quero ser livre. Ainda sou jovem, quero viver, e vósfazeis de mim uma velha!

Chorando amargamente, deitou-se e enrolou-se sob o cobertor. Parecia agora tão pequena, tolinha, digna de lástima. Nadia voltou para o quarto dela, vestiu-se e, sentada à janela, pôs-se a esperar o amanhecer. Passou assim toda a noite a pensar, enquanto lá foraalguém batia na portada e silvava, sem parar.

 Na manhã seguinte, a avó queixou-se de que o vento tinha atirado ao chão todas as maçase quebrado uma velha ameixeira. O dia estava cinzento, desolador e tão sombrio que eracaso para acender as luzes. Toda a gente se queixava do frio, a chuva tamborilava nas janelas. Depois do chá, Nadia foi ter com Sacha. Sem dizer nada, ajoelho-se no canto ao pé da poltrona e tapou o rosto com as mãos.

 — O que tem? — perguntou Sacha.

 — É insuportável... — respondeu ela. — Como pude eu viver aqui até hoje? Não percebo. Detesto o meu noivo, detesto-me a mim própria, detesto toda esta vida ociosa e

fútil. — Ora, ora... — pronunciou Sacha, ainda sem compreender o que se passava. — Isso nãoé nada. É até bom.

 — Estou farta desta vida — prosseguiu Nadia. — Não agüento aqui nem mais um dia.Parto amanhã mesmo. Leve-me daqui por amor de Deus!

Durante um minuto Sacha contemplou-a com assombro: por fim, compreendeu e deulargas ao seu regozijo infantil. Levantou os braços e pôs-se a sapatear, dançando dealegria.

 — Óptimo! — exclamava ele, esfregando as mãos. — Magnifico!

Ela fitava-o sem pestanejar com os seus olhos grandes, apaixonados, como enfeitiçada,esperando que ele lhe dissesse, naquele preciso instante, algo de significativo, algo deextrema importância. Ele não disse nada, mas a Nadia parecia que se abriam perante elanovos e vastos horizontes que antes desconhecera. Olhava para Sacha cheia deesperanças e disposta a tudo, mesmo a morrer se fosse preciso.

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 — Amanhã parto — disse ele, depois de reflectir um momento — , a Nadia acompanha-me à estação. Levo as suas coisas na minha mala, pago-lhe a passagem e, ao terceirosinal, entra no vagão e pronto, vamos embora. Acompanha-me até Moscovo e, depois, vaisozinha para Petersburgo. Tem os documentos em ordem?

 — Tenho, sim.

 — Juro que não vai lamentar nem se arrependerá — disse Sacha, entusiasmado. — Sairádaqui, irá estudar; o resto, é com o destino. Logo que der um novo rumo à vida, tudomudará. O essencial é uma pessoa dar um novo rumo à vida, o resto não importa. Então, partimos amanhã, não é assim?

 — Sim! Leve-me, por amor de Deus!

 Nadia tinha a impressão de estar perturbada e deprimida como nunca, julgava que, até aomomento da partida, teria que suportar o tormento de penosas hesitações, mas quando

subiu para o quarto e se deitou, adormeceu logo e dormiu a sono solto até à tarde, com acara molhada de lágrimas e um sorriso nos lábios.

V

Mandaram buscar uma carruagem. Nadia já de chapéu e sobretudo, foi ao andar de cimadar a última olhadela àquilo que lhe era tão familiar. Deixou-se ficar algum tempo no seuquarto ao lado da cama ainda quente, olhando demoradamente á volta; depois,devagarinho, passou ao quarto da mãe. Ali tudo estava silencioso, Nina Ivanovna dormia. Nadia beijou-a, ajeitou-lhe o cabelo e ficou a olhá-la uns dois minutos... Depois desceusem pressa.

Lá fora chovia a cântaros. A carruagem, com a capota levantada, aguardava diante do portão.

 — Não cabem os dois, Nadia — disse a avó, quando os criados começaram a arrumar asmalas. — Que te deu para acompanhá-lo com um tempo destes! É melhor que fiques emcasa. Olha como chove!

 Nadia quis dizer qualquer coisa, mas não pôde. Sacha ajudou-a a subir para a carruageme cobriu-lhe os pés com uma manta. Feito isso, sentou-se ao lado dela.

 — Boa viagem! Deus te acompanhe! — gritou a avó da porta. — Escreve de Moscovo,Sacha!

 — Está bem. Adeus, avozinha!

 — Que a Virgem Santíssima te guarde!

 — Raio de tempo! — disse Sacha.

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Só agora Nadia começou a chorar. Estava agora certa de que partiria, se bem que, aindahá pouco, ao despedir-se da avó e ao dar um beijo à mãe, não acreditasse nisso. Adeuscidade! Num instante recordou tudo: Andrei Andreitch, o pai deste, a casa alugada, adama nua junto ao vaso. Tudo aquilo já não a assustava nem a oprimia, e até se lheafigurava ingênuo, mesquinho e cada vez mais remoto. Quando ela e Sacha ocuparam os

seus lugares no vagão e o comboio se pôs em movimento, o passado, tão longo e tãograve, contraiu-se para ficar reduzido a uma bagatela, enquanto o futuro, até então poucovisível, se abria, enorme e vasto. A chuva batia nas janelas dos vagões: lá fora, via-seapenas o descampado verde, postes telegráficos ficando rapidamente para trás e pássaros pousados nos fios. De súbito, Nadia sentiu que a alegria lhe cortava a respiração:lembrou-se de que ia ao encontro da liberdade, ia estudar, o que era o mesmo que receber carta de alforria. Ria, chorava e rezava ao mesmo tempo.

 — Isto vai bem! — dizia Sacha, a sorrir.

VI

Passou o Outono, depois o Inverno. Nadia tinha já muitas saudades da família e todos osdias pensava na mãe, na avó, e também em Sacha. As cartas que recebia de casa erammeigas e benévolas; parecia que tudo estava já perdoado e esquecido. Em Maio, depoisdos exames, bem disposta e alegre, partiu para casa. Na passagem, deteve-se emMoscovo, para ver Sacha. Encontrou-o de aspecto como no verão passado: barbudo,cabelos soltos, o mesmo casaco e calças de cotim e os mesmos olhos grandes e belos.Mas tinha um ar doentio, cansado; parecia mais velho, mais magro e tossia amiúde. Por uma razão qualquer, Nadia achou-o insípido e provinciano.

 — Céus, Nadia aqui! Minha querida Nadia! — exclamou ele, rindo de alegria.

Durante algum tempo, conversaram na litografia onde pairava um cheiro forte, sufocante,a tabaco e a tintas; depois, foram para o quarto dele, sujo e impregnado de fumo decigarros. Na mesa, ao lado do samovar frio, estava um prato partido com um pedaço de papel. Na mesa e no soalho, viam-se muitas moscas mortas. Tudo indicava que Sacha nãocuidava da habitação, vivia ao Deus-dará, desprezando por completo as comodidades e selhe falassem da sua felicidade pessoal, da sua vida privada, do amor, não compreendianada e punha-se a rir.

 — Sabe, tudo correu bem — contava Nadia apressadamente. — No Outono, a mãe foiver-me a Petersburgo. Disse que a avó não estava zangada, mas que entra no meu quarto

e faz o sinal da cruz virada para a paredes.

Sacha estava com ar jovial, porém, tossia e falava com voz rouca. Nadia observava-ocom atenção, sem perceber se ele estava de facto gravemente doente ou era apenasimaginação sua.

 — Sacha, querido, vejo que esta doente, muito doente!

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 — Não é nada. Só um pouco achacado...

 — Oh, meu Deus — alvoroçou-se Nadia. — Porque não se trata, porque não cuida da suasaúde? Meu caro, querido Sacha — disse ela, e as lágrimas vieram-lhe aos olhos. Semsaber porquê, viu mentalmente Andrei Andreitch, a dama nua junto ao vaso, todo o seu

 passado, agora tão longínquo como a infância. Chorava porque Sacha não se lheafigurava tão original, inteligente e interessante como o ano passado. — Querido Sacha,está muito, muito doente. Como gostava que estivesse menos pálido e menos magro.Devo-lhe tanto! Não imagina quanto fez por mim, meu caro Sacha. No fundo, agora é a pessoa mais próxima de mim.

Conversaram algum tempo. Depois do Inverno passado em Petersburgo, Sacha, as suas palavras, o seu sorriso e toda a sua figura evocavam a Nadia algo fora de moda,antiquado, arcáico, talvez até morto.

 — Depois de amanhã vou para o Volga e dali para o sul — disse Sacha. — Penso curar-

me com kumis**. Vou com um amigo que leva a mulher. Ela é uma pessoa admirável.Ando a convencê-la para que estude. Quero que ela dê um novo rumo à vida.

Foram ambas à estação e, no bufete, Sacha pediu chá e maçãs. Quando o comboio se pôsem movimento, ele agitou o lenço em sinal de despedida, e mesmo pelos seus pés senotava que estava gravemente doente e não duraria muito.

 Nadia chegou à sua cidade ao meio-dia. O caminho da estação para casa deixou-lhe aimpressão de que as ruas eram muito largas e as casas pequenas e achatadas. Não haviagente nas ruas; cruzaram-se apenas com um afinador de pianos, um alemão de sobretudocor de cenoura. Dir-se-ia que todas as casas estavam cobertas de poeira. A avó, velha de

todo, gorda e feia como antes, abraçou Nadia e chorou muito, incapaz de afastar o rostoencostado ao ombro dela. Nina Ivanovna também estava visivelmente mais velha e maisfeia, como que encolhida, mas continuava com a cintura fina e anéis com brilhantes nosdedos.

 — Minha querida! — exclamava ela, tremendo toda. — Minha querida!

As três ficaram algum tempo chorando em silêncio. Notava-se que tanto a avó como amãe sentiam que o passado estava perdido para sempre, irremediavelmente; já nãogozavam a consideração de antes, não tinham a mesma posição social nem o direito areceber visitas. O mesmo se sente quando uma casa, em que se levava uma vida fácil e

despreocupada, é invadida de noite por policiais que revistam tudo, descobrindo-se entãoque o dono havia desviado fundos ou falsificado dinheiro, e pronto — adeus vida fácil edespreocupada!

 Nadia subiu ao andar de cima e viu a mesma cama, as mesmas janelas com simplescortinas brancas, lá fora o mesmo jardim inundado de luz, alegre e sussurrante. Passou amão pelo tampo da sua mesa, sentou-se e ficou pensativa. Havia almoçado bem e tomadochá com natas, gordas e saborosas, mas sentia falta de qualquer coisa; os quartos

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 pareciam-lhe vazios e os tectos muito baixos. Quando, à noite, se deitou, metendo-se por  baixo do cobertor, pareceu-lhe estranhamente engraçado estar naquela cama quente emuito fofa.

 Nina Ivanovna entrou e sentou-se com timidez e cautela, como se se sentisse culpada de

alguma coisa.

 — Então, Nadia, estás satisfeita? — perguntou, após um silêncio. — Muito satisfeita?

 — Sim, mãe.

 Nina Ivanovna levantou-se e benzeu Nadia.

 — Tornei-me religiosa, como vês — disse ela. — Sabes, dedico-me à filosofia, passo otempo a pensar. Agora vejo claro muitas coisas. Creio que o essencial é que toda a vida passe como através de um prisma.

 — Como vai a saúde da avó?

 — Menos mal. Quando leu o telegrama que enviaste depois de partires com Sacha,desmaiou e ficou três dias de cama sem se mexer. Passou muito tempo a chorar e a dizer orações, mas já se restabeleceu.

 Nina Ivanovna deu alguns passos pelo quarto.

“Tic-toc...”, matracava o guarda. “Tic-toc, tic-toc...”

 — O essencial é que a vida passe como que por um prisma — repetiu Nina Ivanovna. — Por outras palavras, a consciência deve decompor a vida em elementos básicos, assimcomo um prisma decompõe a luz em sete cores, e cada elemento deve ser estudadoseparadamente.

 Nadia não soube que disse mais Nina Ivanovna, nem quando saiu, pois adormeceu logo.

Passou Maio, entrou Junho. Nadia habituara-se novamente à casa. A avó lidava com osamovar, suspirando fundo. Nina Ivanovna expunha, à noite, a sua filosofia. Vivia alicomo uma comensal, e sempre que precisava de dinheiro, pouco que fosse, via-seobrigada a pedir à avó. A casa estava cheia de moscas, e os tectos pareciam cada vez mais

 baixos. A avó e Nina Ivanovna quase nunca saíam, temendo cruzar-se com o padreAndrei ou Andrei Andreitch. Nadia passeava pelo jardim, pelas ruas, observava as casas,os tapumes cinzentos, com a impressão de que tudo na cidade envelhecera, caducara,esperando apenas o fim ou, pelo contrário, o principio de algo novo, diferente. Comoansiava por essa vida nova, pura, uma vida que permitisse olhar aberta e diretamente orosto do destino, ter a certeza de estar no seu direito, mostrar-se alegre e gozar aliberdade! E essa vida havia de chegar, tarde ou cedo! Chegaria o tempo em que a casa daavó, onde quatro criadas viviam comprimidas num quartinho imundo da cave,

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desapareceria sem deixar rasto, e ninguém mais se lembraria dela. Nadia distraía-seapenas com os miúdos da vizinhança: enquanto ela passeava pelo jardim, eles batiam nacerca e troçavam entre gargalhadas: “A noiva! A noiva”

Sacha escreveu-lhe de Saratov. Com a sua letra ligeira e saltitante, dizia-lhes que a

viagem pelo Volga correra bem, mas que em Saratov se sentira um pouco mal, perdera avoz e há duas semanas que estava no hospital. Nadia, dominada por um pressentimentoou, antes, por uma triste certeza, compreendeu o que aquilo significava. Desagradava-lheo facto desse pressentimento e a imagem de Sacha não a comoverem como antes.Desejava apenas e ardentemente viver, regressar a Petersburgo, e a amizade com Sacha parecia-lhe já pertencer ao enternecedor mas longínquo passado. Não dormiu toda a noitee, de manhã, sentou-se à janela, esperando. Em baixo ouviu rumores, a avó interrogoualguém à pressa com voz perturbada , depois um choro... Quando Nadia desceu, a avórezava num canto, com a cara molhada de lágrimas. Sobre a mesa estava um telegrama.

 Nadia andou muito tempo pela sala dum canto para outro, ouvindo a avó chorar. Depois

 pegou no telegrama e leu-o. Dizia que, na manhã do dia anterior, falecera em Saratov,tuberculoso, Aleksandr Timofeitch ou simplesmente, Sacha.

A avó e Nina Ivanovna foram à igreja tratar da missa. Pensativa, Nadia continuou a andar  pela casa. Tinha plena consciência de que a sua vida tomara um novo rumo, como Sachaqueria, que em casa estava só, estava a mais, como uma estranha, e que nada a prendia ai.Rompera já com o passado, que ardeu, e as cinzas levou-as o vento. Entrou no quarto deSacha e deixou-se ficar ai algum tempo.

“Adeus, querido Sacha!”— pensou. Entretanto, mentalmente via abrir-se diante de si umavida nova, ampla extensa, e essa vida, ainda indistinta, cheia de mistérios, atraia-a e

chamava por ela.Subiu ao andar de cima e começou a arrumar as suas coisas. Na manhã seguinte, depoisde se despedir dos familiares, bem disposta e alegre, partiu da cidade. Supunha que parasempre.

1903

 — Fim — 

* Personagem do romance do mesmo nome de Lev Tolstói.** Leite de égua fermentado.

O caçador 

TchekhovTradução de Andrei Melnikov,colaboração de José Augusto

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Um meio-dia quente e sufocante. No céu, nem uma única nuvem... As ervas, queimadas pelo sol, apresentam um aspecto triste e desolado: já não recuperarão mais o seu viço,mesmo que chova... A floresta queda-se muda, imóvel, parecendo que as copas dasárvores observam qualquer coisa ao longe e esperam.

Pela orla do bosque caminha, preguiçoso e gingão, um homem de uns quarenta anos, alto,de ombros estreitos, camisa vermelha, botas altas e calças herdadas do patrão, já cobertasde remendos. Arrasta-se ao longo da estrada. À direita, verdeja a moita; à esquerda,ocupando todo o espaço até ao horizonte, estende-se um mar dourado de centeiomaduro... O homem está vermelho e transpira. Na sua cabeça bonita, de cabelos louros,leva um boné posto à banda, branco e de pala direita, de jóquei, provavelmente oferecido por algum jovem ricaço num arroubo de generosidade. Ao ombro leva um bornal, comum tetraz aí metido às três pancadas. Nas mãos, uma espingarda de dois canos,engatilhada, e não desprende o olhar do velho e escanzelado cão que corre às frente,farejando arbustos. Em volta, apenas o silêncio... Todos os seres vivos fugiram do calor  para os esconderijos.

 — Egor Vlassitch — ouve subitamente pronunciar, em voz baixa.

Sobressaltado, olha à roda e fica de cenho carregado. Tem diante de si, como que caídado céu, uma camponesa dos seus trinta anos, de tez pálida e com uma foice na mão, quelhe procura ver o rosto e sorri timidamente.

 — Ah, es tu, Pelagueia! — diz o caçador, detendo-se e desengatilhando a arma. — Hum!... O que andas a fazer por aqui?

 — Estou aqui a ceifar com as da nossa aldeia... Andamos à jorna.

 — Pois é... — resmunga Egor, e põe-se de novo a andar com lentidão.

Pelagueia segue-o. Dão, em silêncio, uns vinte passos.

 — Há já muito que não o vejo, Egor Vlassitch... — diz Pelagueia, acompanhando comum olhar afetuoso os movimentos dos ombros e das costas do homem. — Desde aqueledia, na Semana Santa, que foi à nossa casa pedir um copo de água, nunca mais lhe pusemos os olhos em cima Entrou só e saiu, e ainda assim... muito borracho... Armouuma bulha, deu-me uma sova e foi-se embora... E eu que o esperei tanto, a olhar a todo oinstante para a janela, a ver se aparecia... Ai, Egor Vlassitch, Egor Vlassitch! Por que não

quer dar um salto a casa? —Para fazer o quê?

 — Nada, é claro, mas aquilo sempre é propriedade sua... Podia dar uma olhadela, ver como é que andam as coisas. O dono é você... Ena! Matou um tetraz! Por que não sesenta e descansa um bocado?

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Ao dizer isto, Pelagueia ri, feita uma parva, erguendo os olhos para o rosto de Egor Vlassitch. A sua cara respira felicidade.

 — Pois bem, descansemos... — anuiu o caçador em tom indiferente e escolhendo umlugar entre dois abetos. — Por que estás aí de pé? Senta-te também.

Pelagueia senta-se um pouco afastada ao sol, e, envergonhada da sua alegria, tapa com amão a boca sorridente.

 — Se ao menos passasse um dia pela casa — diz em voz baixa.

 —Para quê? — Egor suspira, descobrindo-se e limpando a testa vermelha a uma manga. — Não há necessidade. Se fico uma hora ou duas, .é perder tempo e desarranjar-te, equanto a fixar-me para sempre na aldeia, isso é-me insuportável. Sabes que sou umhomem mimado. Quero ter cama, bom chá, trato delicado e tudo o mais, e lá na tua aldeiasó há miséria, imundície... Não agüento ali nem um só dia. Se me obrigassem, pela força,

a viver contigo, ou pegava fogo à casa ou suicidava-me. Sou assim de pequeno, buliçoso. Não tem cura.

 — E onde é que mora agora?

 — Em casa do patrão, Dmitri Ivanitch, como caçador. Levo caça para a cozinha dele...Mas é antes por prazer que me mantém.

 — Não é séria a sua ocupação, Egor Vlassitch... Para os outros, é um divertimento, parati, é como um ofício... um verdadeiro emprego...

 — Não compreendes nada, pateta — diz Egor, fixando no céu um olhar sonhador. —  Nunca compreendeste e nunca compreenderás que espécie de homem sou eu... Na tuaopinião, sou um estroina, um desatinado, mas, para quem sabe, sou o maior atirador detodo o concelho. Os senhores que me conhecem sentem-no, e até referiram o meu nomenuma revista. Não há quem se compare comigo na arte da caça... Se não aceito a vossalabuta de campo, não é por leviandade, nem por orgulho. Sabes, desde criança que nãoconheço outra coisa além da espingarda e dos cães. Se me tiravam a espingarda, pegavana cana de pesca, se me tiravam a cana, servia-me das mãos. Quando tinha “massa”,também me metia em negócios de cavalos, corria as feiras. Sabes, o camponês que sededicar ao ofício de caçador ou se ocupar de cavalos já não pega mais no arado. Se umhomem ganhou o gosto pela liberdade, já ninguém lho tira. Assim como o senhor que

envereda pela carreira de ator ou artista, sei lá, nunca mais será funcionário ou rendeiro.E tu, que és uma pacóvia, não tens cabeça para compreender estas coisas.

 — Eu compreendo, Egor Vlassitch.

 — Se compreendesses, não estavas agora quase a chorar.

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 — Não, não choro — retorquiu Pelagueia, voltando a cabeça. — Mas assim não dá, Egor Vlassitch. Se ficasses comigo pelo menos um dia... Há já doze anos que nos casamos eainda nem uma só vez fizemos amor... Não, não, estou a chorar.

 — Qual amor! — resmunga Egor, coçando uma mão. — Não pode haver amor nenhum

entre nós. Somos um casal só no papel, mas corresponde isso à realidade? Tu achas-meum selvagem, e eu acho-te uma simplória sem entendimentos. Como podemos dar-nos?Sou um homem livre, mimado, folgazão, e tu és uma jornaleira, uma campônia, vives nalama, trabalhas de sol a sol. Considero-me um caçador sem igual, e tu lastima-me... Diz-me, que raio de casal é o nosso?

 — Mas sempre estamos unidos pelo casamento!... — contrapõe Pelagueia num soluço.

 — Não por nossa vontade... Ou já te esqueceste? A culpa foi tua e do conde SergueiPavlovitch. O conde, que tinha inveja de não saber atirar tão bem como eu, andou ummês a encher-me de vinho, e a um bêbado é fácil casá-lo, ou até convertê-lo a outra fé.

Pois então desforrou-se, casando-me contigo... Um caçador com uma ordenhadora! Ora,se vias perfeitamente que eu estava bêbado, por que não te opuseste? Não és servanenhuma, ninguém te podia forçar! É claro que, para uma ordenhadora, casar com umcaçador é a sorte grande, mas também, é preciso pôr a cabeça a trabalhar. Agora estásaqui a sofrer as conseqüências, a verter lágrimas. O conde ri-se e tu choras, martirizas-te...

Silêncio. Três patos bravos aparecem e sobrevoam a moita. Egor segue-os com o olhar até que eles se transformam em três pontos quase invisíveis e pousam muito para além dafloresta.

 — De que vives?—pergunta ele, passando os olhos dos patos para Pelagueia. — Agora, ando à jorna, no inverno costumo ir ao orfanato buscar um bebê e criá-lo emcasa a biberão. Pagam um rublo e meio por mês.

 —Pois...

Outra pausa. Do campo de centeio chegam sons duma canção, que logo se interrompe. Ocalor não deixa cantar.

 — Ouvi dizer que construiu para Akulina uma casa nova —diz Pelagueia.

Egor não responde.

 — Sendo assim, gosta dela...

 — Bom, é assim a tua sina! Paciência, órfã — diz o caçador, espreguiçando-se.. — Pronto, já me demoraste muito na cavaqueira. Antes que anoiteça, tenho que estar emBoltovo...

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Egor ergue-se, espreguiça-se e põe a arma ao ombro. Pelagueia levanta-se também.

 — Quando passa então pela aldeia? — pergunta baixinho.

 — Para quê? Se não estiver com pinga, nunca lá vou, e bêbado em nada te serei útil. A

 bebida torna-me raivoso. Adeus!

 — Adeus, Egor Vlassitch...

Egor enfia o boné na cabeça e, assobiando ao cão, põe-se novamente a caminho.Pelagueia fica no mesmo sítio, a observá-lo pelas costas. Enquanto contempla os ombrose o pescoço forte de Egor, que se afasta num passo preguiçoso e lasso, os seus olhosirradiam tristeza e carinho. O seu olhar acaricia, afaga toda a figura do marido, alto emagro. Ele parece sentir esse olhar, pois detém-se e volta a cabeça... Embora continuecalado, vê-se pela sua cara e ombros alteados que quer dizer alguma coisa. Pelagueiaaproxima-se timidamente e fita-o com um olhar implorador.

 — Toma! — diz Egor, sem olhar para ela e estendendo uma nota de um rublo, muitousada. E, afasta-se a passo rápido.

 — Adeus, Egor Vlassitch! —diz ela, aceitando maquinalmente a nota. Ele vaicaminhando pela estrada comprida e reta como um cinturão. Pálida e imóvel como ummonumento, Pelagueia acompanha com o olhar os passos dele. Por fim, o vermelho dacamisa de Egor acaba por fundir-se com o cinzento das calças, os passos tornam-seimperceptíveis e é já impossível distinguir o cão das botas. Vê-se apenas o boné. Derepente, Egor volta à direita, mete pela moita dentro e o boné desaparece entre a verdura.

 — Adeus, Egor Vlassitch! — murmura Pelagueia, pondo-se nos bicos dos pés e procurando avistar, ainda uma vez mais, o boné branco.

 — Fim — 

O caçador 

TchekhovTradução de Andrei Melnikov,colaboração de José Augusto

Um meio-dia quente e sufocante. No céu, nem uma única nuvem... As ervas, queimadas pelo sol, apresentam um aspecto triste e desolado: já não recuperarão mais o seu viço,mesmo que chova... A floresta queda-se muda, imóvel, parecendo que as copas dasárvores observam qualquer coisa ao longe e esperam.

Pela orla do bosque caminha, preguiçoso e gingão, um homem de uns quarenta anos, alto,de ombros estreitos, camisa vermelha, botas altas e calças herdadas do patrão, já cobertas

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de remendos. Arrasta-se ao longo da estrada. À direita, verdeja a moita; à esquerda,ocupando todo o espaço até ao horizonte, estende-se um mar dourado de centeiomaduro... O homem está vermelho e transpira. Na sua cabeça bonita, de cabelos louros,leva um boné posto à banda, branco e de pala direita, de jóquei, provavelmente oferecido por algum jovem ricaço num arroubo de generosidade. Ao ombro leva um bornal, com

um tetraz aí metido às três pancadas. Nas mãos, uma espingarda de dois canos,engatilhada, e não desprende o olhar do velho e escanzelado cão que corre às frente,farejando arbustos. Em volta, apenas o silêncio... Todos os seres vivos fugiram do calor  para os esconderijos.

 — Egor Vlassitch — ouve subitamente pronunciar, em voz baixa.

Sobressaltado, olha à roda e fica de cenho carregado. Tem diante de si, como que caídado céu, uma camponesa dos seus trinta anos, de tez pálida e com uma foice na mão, quelhe procura ver o rosto e sorri timidamente.

 — Ah, es tu, Pelagueia! — diz o caçador, detendo-se e desengatilhando a arma. — Hum!... O que andas a fazer por aqui?

 — Estou aqui a ceifar com as da nossa aldeia... Andamos à jorna.

 — Pois é... — resmunga Egor, e põe-se de novo a andar com lentidão.

Pelagueia segue-o. Dão, em silêncio, uns vinte passos.

 — Há já muito que não o vejo, Egor Vlassitch... — diz Pelagueia, acompanhando comum olhar afetuoso os movimentos dos ombros e das costas do homem. — Desde aquele

dia, na Semana Santa, que foi à nossa casa pedir um copo de água, nunca mais lhe pusemos os olhos em cima Entrou só e saiu, e ainda assim... muito borracho... Armouuma bulha, deu-me uma sova e foi-se embora... E eu que o esperei tanto, a olhar a todo oinstante para a janela, a ver se aparecia... Ai, Egor Vlassitch, Egor Vlassitch! Por que nãoquer dar um salto a casa?

 —Para fazer o quê?

 — Nada, é claro, mas aquilo sempre é propriedade sua... Podia dar uma olhadela, ver como é que andam as coisas. O dono é você... Ena! Matou um tetraz! Por que não sesenta e descansa um bocado?

Ao dizer isto, Pelagueia ri, feita uma parva, erguendo os olhos para o rosto de Egor Vlassitch. A sua cara respira felicidade.

 — Pois bem, descansemos... — anuiu o caçador em tom indiferente e escolhendo umlugar entre dois abetos. — Por que estás aí de pé? Senta-te também.

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Pelagueia senta-se um pouco afastada ao sol, e, envergonhada da sua alegria, tapa com amão a boca sorridente.

 — Se ao menos passasse um dia pela casa — diz em voz baixa.

 —Para quê? — Egor suspira, descobrindo-se e limpando a testa vermelha a uma manga. — Não há necessidade. Se fico uma hora ou duas, .é perder tempo e desarranjar-te, equanto a fixar-me para sempre na aldeia, isso é-me insuportável. Sabes que sou umhomem mimado. Quero ter cama, bom chá, trato delicado e tudo o mais, e lá na tua aldeiasó há miséria, imundície... Não agüento ali nem um só dia. Se me obrigassem, pela força,a viver contigo, ou pegava fogo à casa ou suicidava-me. Sou assim de pequeno, buliçoso. Não tem cura.

 — E onde é que mora agora?

 — Em casa do patrão, Dmitri Ivanitch, como caçador. Levo caça para a cozinha dele...

Mas é antes por prazer que me mantém. — Não é séria a sua ocupação, Egor Vlassitch... Para os outros, é um divertimento, parati, é como um ofício... um verdadeiro emprego...

 — Não compreendes nada, pateta — diz Egor, fixando no céu um olhar sonhador. —  Nunca compreendeste e nunca compreenderás que espécie de homem sou eu... Na tuaopinião, sou um estroina, um desatinado, mas, para quem sabe, sou o maior atirador detodo o concelho. Os senhores que me conhecem sentem-no, e até referiram o meu nomenuma revista. Não há quem se compare comigo na arte da caça... Se não aceito a vossalabuta de campo, não é por leviandade, nem por orgulho. Sabes, desde criança que não

conheço outra coisa além da espingarda e dos cães. Se me tiravam a espingarda, pegavana cana de pesca, se me tiravam a cana, servia-me das mãos. Quando tinha “massa”,também me metia em negócios de cavalos, corria as feiras. Sabes, o camponês que sededicar ao ofício de caçador ou se ocupar de cavalos já não pega mais no arado. Se umhomem ganhou o gosto pela liberdade, já ninguém lho tira. Assim como o senhor queenvereda pela carreira de ator ou artista, sei lá, nunca mais será funcionário ou rendeiro.E tu, que és uma pacóvia, não tens cabeça para compreender estas coisas.

 — Eu compreendo, Egor Vlassitch.

 — Se compreendesses, não estavas agora quase a chorar.

 — Não, não choro — retorquiu Pelagueia, voltando a cabeça. — Mas assim não dá, Egor Vlassitch. Se ficasses comigo pelo menos um dia... Há já doze anos que nos casamos eainda nem uma só vez fizemos amor... Não, não, estou a chorar.

 — Qual amor! — resmunga Egor, coçando uma mão. — Não pode haver amor nenhumentre nós. Somos um casal só no papel, mas corresponde isso à realidade? Tu achas-meum selvagem, e eu acho-te uma simplória sem entendimentos. Como podemos dar-nos?

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Sou um homem livre, mimado, folgazão, e tu és uma jornaleira, uma campônia, vives nalama, trabalhas de sol a sol. Considero-me um caçador sem igual, e tu lastima-me... Diz-me, que raio de casal é o nosso?

 — Mas sempre estamos unidos pelo casamento!... — contrapõe Pelagueia num soluço.

 — Não por nossa vontade... Ou já te esqueceste? A culpa foi tua e do conde SergueiPavlovitch. O conde, que tinha inveja de não saber atirar tão bem como eu, andou ummês a encher-me de vinho, e a um bêbado é fácil casá-lo, ou até convertê-lo a outra fé.Pois então desforrou-se, casando-me contigo... Um caçador com uma ordenhadora! Ora,se vias perfeitamente que eu estava bêbado, por que não te opuseste? Não és servanenhuma, ninguém te podia forçar! É claro que, para uma ordenhadora, casar com umcaçador é a sorte grande, mas também, é preciso pôr a cabeça a trabalhar. Agora estásaqui a sofrer as conseqüências, a verter lágrimas. O conde ri-se e tu choras, martirizas-te...

Silêncio. Três patos bravos aparecem e sobrevoam a moita. Egor segue-os com o olhar até que eles se transformam em três pontos quase invisíveis e pousam muito para além dafloresta.

 — De que vives?—pergunta ele, passando os olhos dos patos para Pelagueia.

 — Agora, ando à jorna, no inverno costumo ir ao orfanato buscar um bebê e criá-lo emcasa a biberão. Pagam um rublo e meio por mês.

 —Pois...

Outra pausa. Do campo de centeio chegam sons duma canção, que logo se interrompe. Ocalor não deixa cantar.

 — Ouvi dizer que construiu para Akulina uma casa nova —diz Pelagueia.

Egor não responde.

 — Sendo assim, gosta dela...

 — Bom, é assim a tua sina! Paciência, órfã — diz o caçador, espreguiçando-se.. — Pronto, já me demoraste muito na cavaqueira. Antes que anoiteça, tenho que estar em

Boltovo...Egor ergue-se, espreguiça-se e põe a arma ao ombro. Pelagueia levanta-se também.

 — Quando passa então pela aldeia? — pergunta baixinho.

 — Para quê? Se não estiver com pinga, nunca lá vou, e bêbado em nada te serei útil. A bebida torna-me raivoso. Adeus!

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 — Adeus, Egor Vlassitch...

Egor enfia o boné na cabeça e, assobiando ao cão, põe-se novamente a caminho.Pelagueia fica no mesmo sítio, a observá-lo pelas costas. Enquanto contempla os ombrose o pescoço forte de Egor, que se afasta num passo preguiçoso e lasso, os seus olhos

irradiam tristeza e carinho. O seu olhar acaricia, afaga toda a figura do marido, alto emagro. Ele parece sentir esse olhar, pois detém-se e volta a cabeça... Embora continuecalado, vê-se pela sua cara e ombros alteados que quer dizer alguma coisa. Pelagueiaaproxima-se timidamente e fita-o com um olhar implorador.

 — Toma! — diz Egor, sem olhar para ela e estendendo uma nota de um rublo, muitousada. E, afasta-se a passo rápido.

 — Adeus, Egor Vlassitch! —diz ela, aceitando maquinalmente a nota. Ele vaicaminhando pela estrada comprida e reta como um cinturão. Pálida e imóvel como ummonumento, Pelagueia acompanha com o olhar os passos dele. Por fim, o vermelho da

camisa de Egor acaba por fundir-se com o cinzento das calças, os passos tornam-seimperceptíveis e é já impossível distinguir o cão das botas. Vê-se apenas o boné. Derepente, Egor volta à direita, mete pela moita dentro e o boné desaparece entre a verdura.

 — Adeus, Egor Vlassitch! — murmura Pelagueia, pondo-se nos bicos dos pés e procurando avistar, ainda uma vez mais, o boné branco.

 — Fim — 

O monge negro

Tchekhov

I

Andrey Vasilievich Kovrin, Magister, esgotara-se a trabalhar e tinha os nervosdesarranjados. Não fizera qualquer esforço para se tratar com regularidade; só uma vez, por acaso, enquanto bebia uma garrafa de vinho, conversara com um amigo médico que oaconselhara a ir para o campo durante a Primavera e o Verão. Entretanto, recebeu umacarta de Tania Pesotzky, convidando-o a passar uma temporada em casa do pai dela, em

Borisovka. E resolveu partir.Mas, primeiro (estava-se em Abril), dirigiu-se às suas propriedades, em Kovrinka, ondenascera, e ali ficou três semanas sozinho; só quando veio o bom tempo é que encetou aviagem para casa do seu antigo tutor e segundo primo, Pesotzky, célebre horticultor russo. De Kovrinka a Borisovka, a distância era de umas setenta verstas e, na confortávelcaleche, por aquele tempo primaveril, a jornada prometia ser agradável.

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A casa de Borisovka era grande, tendo na frontaria uma fila de colunas adornadas comestátuas de leões, cujo gesso estava a cair aos pedaços. À porta encontrava-se um criadode libré. O parque antigo, tristonho e severo, desenhado à inglesa, com uma versta decomprido, estendia-se da casa até ao rio, e terminava ali numa margem argilosa ealcantilada, coberta de pinheiros, cujas raízes descarnadas lembravam garras aduncas. Lá

em baixo cintilava o rio deserto; no céu, as narcejas voavam em círculos, soltando piosmelancólicos. Numa palavra, tudo convidava o visitante a sentar-se e a escrever uma balada. Porém os jardins e os pomares que, juntamente com a horta, ocupavam umaextensão de oitenta hectares, inspiravam sentimentos totalmente diversos. Mesmo sob omau tempo eram risonhos e inspiravam alegria. Kovrin nunca vira tão belas rosas, tantoslírios e camélias, túlipas tão raras, uma infinidade de flores de toda a espécie e dos maisvariados tons, desde o branco puro ao negro da fuligem. Uma riqueza floral queconstituía uma novidade para Kovrin. Estava-se apenas no início da Primavera e asmaiores raridades encontravam-se ainda abrigadas por vidros. No entanto muitas floriam já nas alamedas e nos canteiros, a ponto de constituírem um reino de delicados coloridos.E tudo isto era ainda mais belo às primeiras horas da manhã, quando as gotas de orvalho

cintilavam sobre as folhas e corolas. Na infância, a parte decorativa do jardim, classificada com desprezo por Pesotzky como«inútil», produzira em Kovrin uma impressão fabulosa. Que milagres da arte, quemonstruosidades estudadas, que escárnios da natureza! Espaldares feitos com árvores defruto, uma pereira em pirâmide, do feitio dum choupo, carvalhos e tílias arredondados,casas formadas por macieiras, arcos, monogramas, candelabros, até mesmo a data de1862 feita em ameixieiras, para comemorar o ano em que Pesotzky começara a dedicar-seà jardinagem. Havia ali árvores imponentes e simétricas, de troncos erectos como os das palmeiras, mas que eram, afinal, groselhas. Porém o que mais animava o jardim,emprestando-lhe um tom festivo, era o movimento constante dos jardineiros de Pesotzky.

Desde a madrugada até altas horas, junto das árvores, dos arbustos, nas alamedas, sobreos canteiros, afadigavam-se os homens, quais abelhas diligentes, com os carrinhos demão, as enxadas e os regadores.

Kovrin chegou a Borisovka às nove da noite, indo encontrar Tania e o pai num grandesusto. A noite clara e cheia de estrelas fazia prever geada, e o chefe dos jardineiros, YvanKarlich, fora à cidade, não havendo portanto ninguém em quem se pudesse confiar. Àceia só se falou na ameaça da geada e ficou decidido que Tania não iria deitar-se a fim deinspeccionar os jardins à uma hora, para ver se estava tudo em ordem, ao passo que Yegor Semionovich se levantaria às três horas, ou antes ainda.

Kovrin ficou junto de Tania todo o serão e depois da meia-noite acompanhou-a ao jardim.Pairava já no ar um forte cheiro a queimado. No pomar grande, chamado o «pomar comercial», que todos os anos rendia a Yegor Semionovich milhares de rublos, adejava, junto ao chão uma espessa nuvem de fumo acre que iria envolver as folhas novas e salvar as plantas. As árvores estavam dispostas em linha recta como filas de soldados; e estaregularidade estudada, bem como a altura uniforme das casas, tornava o jardim monótonoe até enfadonho. Kovrin e Tania caminhavam ao longo das alamedas, observando asfogueiras de esterco, palha e lixo; mas era raro avistarem os trabalhadores, que andavam

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 pelo meio do fumo como sombras. Só as ameixieiras e algumas raras macieiras estavam já em flor, mas todo o jardim se encontrava envolvido pelo fumo e só quando chegaramaos alfobres é que Kovrin conseguiu respirar.

 — Lembro-me de que, em pequeno, o fumo fazia-me espirrar — declarou ele,

encolhendo os ombros. — Mas até hoje ainda não consegui descobrir como é que elesalva as plantas da geada.

 — O fumo é um bom substituto quando não há nuvens — respondeu Tania.

 — Mas para que querem vocês as nuvens?

 — Com o tempo enevoado não há geada pela manhã.

 — Ah, sim? — exclamou Kovrin.

Riu-se e pegou na mão de Tania. A cara da rapariga, muito séria e apreensiva; as suassobrancelhas negras e espessas; a gola direita do casaco que a impedia de mover livremente o pescoço; a saia arregaçada por causa do gelo; toda a sua figura esbelta eaprumada lhe agradava.

«Santo Deus! Como ela cresceu!» — disse consigo.

E declarou em voz alta:

 — A última vez que aqui estive eras ainda uma criança. Magra, de pernas compridas,descuidada, de saias curtas, e eu costumava arreliar-te. Que mudança nestes cinco anos!

 — Sim, cinco anos! — suspirou Tania. — Muitas coisas mudaram desde então. Diz-mesinceramente, Andrey — pediu ela, fitando-o, prazenteira -, achas que perdeste o à-vontade connosco? Mas para que pergunto eu isto? És um homem, tens uma vida cheiade interesses, possuis... É natural que te sintas estranho. Mas, seja ou não assim,Andriusha, quero que nos consideres como tua família. Temos esse direito.

 — Mas é assim que vos considero, Tania!

 — Palavra de honra?

 — Palavra de honra! — Admiras-te de termos cá tantos retratos teus. Mas bem sabes como o meu pai te adora,como te quer. És um sábio e não um homem vulgar; tens feito uma carreira brilhante eestá firmemente convencido de que isso se deve ao facto de haveres sido educado por ele.Cá por mim não lhe tiro as ilusões. Deixemo-lo acreditar!

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Era já madrugada. O céu clareava. A folhagem e as nuvens de fumo começavam a ver-semais distintamente. O rouxinol cantava e, nos campos, ouvia-se o grito dos esquilos.

 — São horas de irmos para a cama; e está a ficar frio! — exclamou Tania. Pegou na mãode Kovrin: — Obrigada por teres vindo, Andriusha. Nós temos uma praga de amigos

enfadonhos e, mesmo esses, não são muitos. Aqui reina a jardinagem, jardinagem e nadamais. Troncos, madeiras — ria ao dizer isto -, pêros, maçãs reinetas, florescimento, poda,limpeza. enxertos... Toda a nossa vida gira em volta dos pomares, não sonhamos comoutra coisa que não sejam maçãs e pêras. Claro que tudo isto é muito bom e muito útil,mas às vezes não posso impedir-me de suspirar por uma mudança. Lembro-me de quandovinhas visitar-nos ou passar aqui as férias; toda a casa se me afigurava mais alegre eanimada, como se alguém houvesse retirado as coberturas à mobília. Era então umarapariguita, mas já compreendia...

Tania falou durante algum tempo animadamente. Nesta altura veio à ideia de Kovrin que,durante o Verão, podia suceder-lhe ficar preso a esta criaturinha frágil, miúda e faladora,

que podia deixar-se atrair, apaixonar-se... naquelas condições que havia de mais natural?Esse pensamento agradou-lhe, divertiu-o e, enquanto se curvava para o rostozinhoamável e perturbado, cantarolou o verso de Pushkine:

Onegin, não posso esconder 

Que amo Tania a valer...

Quando chegaram a casa, já Yegor Semionovich estava levantado. Kovrin não sentiavontade de dormir; pôs-se a conversar com o velhote e voltou com ele para o jardim.Yegor Semionovich era alto, largo de ombros e forte. Sofria de falta de ar, mas caminhava

tão apressadamente, que se tornava difícil acompanhá-lo. A sua expressão era sempre preocupada, irrequieta, e parecia imaginar que tudo se perderia se chegasse um segundoatrasado.

 — Olha, irmão, resolve lá tu este mistério! — começou ele, parando para tomar fôlego. — À superfície da terra, como vês, há geada, mas, se erguermos o termómetro uns metrosna ponta de um pau, o ar está morno... Porque será isto?

 — Confesso que não sei — retorquiu Kovrin, rindo.

 — Não!... Não podes saber tudo... O maior cérebro é incapaz de abranger todas as coisas.

Continuas interessado pela tua filosofia? — Sim... Estou a estudar psicologia e filosofia duma maneira geral.

 — E não te aborreces?

 — Pelo contrário, não poderia viver sem isso.

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 — Bem, queira Deus... — começou Yegor Semionovich alisando as enormes suíças comar pensativo. — Bem, queira Deus... Folgo muito com isso, irmão. Folgo muito...

De súbito, pôs-se de ouvido à escuta, fazendo uma carranca medonha, e desatou a correr  pela rua fora, desaparecendo entre as árvores no meio duma nuvem de fumo.

 — Quem prendeu aqui este cavalo? — clamou uma voz desesperada. — Qual de vocês,seus ladrões, assassinos, se atreveu a prender este cavalo a uma macieira? Meu Deus!Meu Deus! Tudo estragado, arruinado, destruído! O jardim está arruinado! O jardim estádestruído! Meu Deus!

Quando voltou para junto de Kovrin trazia estampada no rosto uma expressão deimpotência e indignação.

 — Que diabo podemos nós fazer com esta maldita gente? — inquiria em voz lamentosa atorcer as mãos. — Stepka trouxe para aqui um carro de estrume na noite passada e

 prendeu o cavalo a uma macieira... atou as rédeas tão curtas, o idiota, que a casca ficouarrancada em três sítios. Que podemos nós fazer com homens como este? Quando falocom ele, pisca os olhos com um ar estúpido. Merecia ser enforcado!

Finalmente calmo, abraçou Kovrin e beijou-o na face.

 — Bem! Queira Deus... Queira Deus... gaguejava. — Estou muito contente, muitocontente, por teres vindo. Nem sei dizer quanto me sinto feliz! Obrigado!

Em seguida, com o mesmo ar ansioso e o mesmo passo rápido, deu a volta ao jardimtodo, mostrando ao seu antigo pupilo o laranjal, as estufas, os abrigos e duas colmeias

que lhe descrevia como sendo uma das maravilhas daquele século.Enquanto passeavam, o sol rompeu, iluminando o jardim. O ar ficou mais quente. Ao pensar no dia longo e soalheiro que tinha na sua frente, Kovrin lembrou-se de que seestava apenas no princípio de Maio e que o esperava um Verão inteiro de dias compridos,alegres e felizes. Num repente, assaltou-o aquele mesmo sentimento de juvenil satisfaçãoque experimentara em criança, quando brincava naquele mesmo jardim. Então abraçou e beijou ternamente o velhote. Comovidos pelas respectivas recordações, penetraramambos em casa e tomaram chá pelas velhas chávenas chinesas, acompanhado com leite e biscoitos saborosos. Estes pormenores cada vez faziam lembrar mais a Kovrin a suainfância. O presente risonho e as recordações do passado, tudo se misturava, enchendo o

coração de Kovrin duma intensa felicidade.Esperou que Tania acordasse e, depois de tomar com ela o café da manhã e de dar umavolta pelo jardim, foi para o quarto e começou a trabalhar. Lia com atenção e tomavaapontamentos, só erguendo os olhos dos livros quando lhe apetecia olhar lá para foraatravés da janela aberta ou contemplar as rosas frescas que tinha numa jarra em cima dasecretária, ainda molhadas de orvalho. E parecia-lhe que todas as veias do seu corpoestremeciam e pulsavam de alegria.

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II

Kovrin, no entanto, continuava a viver a mesma vida nervosa e inquieta que levava nacidade. Lia, escrevia muito e estudava italiano. E, quando saía a passear, estava semprecom a ideia de voltar ao trabalho. Dormia tão pouco, que todos em casa se admiravam. Se

acaso passava pelo sono meia-hora durante o dia, nessa noite não conseguia pregar olho.Mas, apesar dessas noites de insónia, sentia-se satisfeito e activo.

Conversava muito, bebia vinho e fumava charutos caros. Quase todos os dias, raparigasda vizinhança vinham a Borisovka tocar piano e cantar na companhia de Tania. Por vezesaparecia também um rapaz amigo que tocava bem violino. Kovrin escutava, embevecido,a música e o canto, mas ficava depois exausto, a ponto de cerrar os olhos sem querer edeixar descair a cabeça sobre o ombro.

 Numa dessas tardes, encontrava-se ele sentado na varanda a ler, enquanto, na sala, Tania,que era soprano, uma das amigas, com uma voz de contralto, e o jovem violinista

executavam uma conhecida serenata de Braga. Kovrin prestava atenção aos versos, mas,embora fossem russos, não conseguia perceber-lhes o sentido. Por fim, poisando o livro,escutou atentamente e compreendeu. Uma rapariga, de imaginação exaltada, ouvia ànoite, no jardim, uns sons tão harmoniosos e estranhos, tão mágicos e encantadores, que para os simples mortais se tornavam incompreensíveis. Então, arrebatada por eles, voou para o céu. As pálpebras de Kovrin descaíram. Ergueu-se, dominado pela música, ecomeçou a passear na sala, dum lado para o outro, e depois pelo corredor. Quando amelodia terminou, pegou na mão de Tania e saiu com ela para a varanda.

 — Hoje, desde manhã cedo — começou ele -, não me sai da ideia uma lenda estranha. Não sei onde a li, ou se a ouvi contar a alguém, mas é uma lenda notável e não muito

coerente. Devo mesmo dizer que a não acho assaz clara. Aqui há mil anos, um monge, dehábito negro, andava a vaguear pelo deserto, algures na Síria ou na Arábia... A algumasmilhas de distância os pescadores avistaram um monge idêntico a avançar devagarinhosobre a superfície do lago. O segundo monge era uma miragem. Pensa agora em todas asleis da óptica que a lenda, claro, não menciona, e escuta: a primeira miragem deu lugar aoutra, esta a uma terceira, e assim, sucessivamente, a imagem do monge negro é semprereflectida duma camada da atmosfera para a outra. Duma vez foi vista na África, doutrana Espanha, depois na Índia, mais tarde no Pólo Norte. Finalmente ultrapassou os limitesda atmosfera terrena, sem nunca encontrar condições que a fizessem desaparecer. Talvezhoje esteja visível no planeta Marte, ou na constelação do Cruzeiro do Sul. Mas o ponto principal, o que constituí a verdadeira essência da lenda, consiste na profecia de que,

 precisamente mil anos depois de o monge ter ido para o deserto, a miragem será de novo projectada na atmosfera da Terra e apresentar-se-á no mundo dos homens. Parece que o prazo dos mil anos está agora a expirar... Segundo a lenda, é provável que o mongeapareça hoje ou amanhã...

 — Que história estranha! — murmurou Tania, a quem a lenda não agradara.

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 — Mas o mais espantoso — prosseguiu Kovrin, rindo — é que não consigo recordar-mede que maneira isto agora me veio à ideia. Tê-la-ia lido? Ou ouvido contar? Ou fui eu quesonhei com o monge negro? Não me lembro. Mas a história interessa-me. Durante todo odia não tenho pensado noutra coisa.

Soltando a mão de Tania, que voltou para junto dos convidados, saiu de casa e pôs-se a passear, absorto nos seus pensamentos, em volta dos canteiros. O sol estava a pôr-se. Asflores, acabadas de regar, exalavam um cheiro húmido e irritante. Dentro de casa, amúsica recomeçara e, à distância, o violino assemelhava-se a uma voz humana. Sempre a puxar pela memória, numa tentativa de se recordar onde ouvira a lenda, Kovrinatravessou lentamente o parque e, sem saber para onde ia, dirigiu-se à margem do rio.

Começou a descer pelo atalho que serpenteava no meio das raízes descarnadas,assustando as narcejas e perturbando os patos. Os últimos raios do sol brilhavam sobre os pinheiros negros, porém a superfície das águas estava já totalmente coberta de escuridão.Kovrin atravessou o rio. Na sua frente estendia-se um prado em que ondulava centeio

novo. Naquela enorme extensão não se avistava vivalma ou qualquer habitação humana.Parecia que aquele atalho conduzia directamente à região misteriosa e inexplorada onde osol acabava de se pôr: onde brilhava ainda, imóvel e majestosa, a refracção dos seusraios.

«Que vastidão! Que paz! Que liberdade! — pensava Kovrin avançando pelo atalho. — Parece que o mundo inteiro me observa de qualquer lugar oculto, à espera que eu lhecompreenda o sentido.»

Um sopro de ar agitou o centeio e a brisa leve da noite afagou-lhe a cabeça descoberta.Dali a um minuto, o vento soprou de novo, desta vez com mais força. O centeio ondulou

e lá atrás, ouviu-se o sussurrar monótono dos pinheiros. Kovrin deteve-se, surpreendido. No horizonte, lembrando um ciclone ou uma tromba de água, ergueu-se uma colunanegra que subia da terra para o céu. Os seus contornos permaneciam indefinidos; noentanto, via-se logo que não estava imóvel, antes avançava com incrível rapidez nadirecção de Kovrin; e, à medida que se aproximava, ia-se tornando cada vez mais pequena. Sem se aperceber disso, Kovrin deu um passo para o lado, a fim de lhe abrir caminho. Um monge de hábito negro, com os cabelos e as sobrancelhas brancas, de mãoscruzadas no peito, passou na sua frente, a uns vinte metros de distância. Os seus pésdescalços não poisavam no chão. Olhou, olhou para trás, fez um aceno de cabeça aKovrin e sorriu-lhe amavelmente, mas ao mesmo tempo com uma certa astúcia. O rostodo velho era magro e pálido. Depois de haver passado, começou de novo a crescer,transpôs o rio, foi bater sem ruído na margem de argila e nos pinheiros, e sumiu-se nomeio deles, desaparecendo como o fumo.

 — Ora vêem? — gaguejou Kovrin. — Afinal de contas a lenda era verídica!

Sem tentar sequer explicar este estranho fenómeno, satisfeito com o facto de haver contemplado tão de perto e com tanta clareza, não só a veste negra, mas ainda o rosto e osolhos do monge, Kovrin regressou a casa, agradavelmente agitado.

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Os visitantes passeavam agora calmamente no jardim. Dentro da sala, a música prosseguia. Sendo assim, só ele é que divisara o Monge Negro. Experimentava um fortedesejo de contar o que acabava de ver a Tania e a Yegor Semionovich. Receava, porém,que estes considerassem aquilo uma alucinação da sua parte, e decidiu calar-se. Pôs-se arir, cantou, dançou a mazurca, sentindo-se muito bem disposto. Os convidados de Tania

notaram-lhe no rosto uma curiosa máscara de êxtase, de inspiração, e acharam-no deverasinteressante.

III

 No fim do jantar, depois de os visitantes se terem ido embora, Kovrin retirou-se para oquarto e deitou-se no sofá. Queria pensar no monge. Mas dali a momentos entrou Tania.

 — Olha, Andriusha, se quiseres podes ler os artigos do pai. São esplêndidos — declarouela. — Ele escreve muito bem.

 — Não haja dúvida! — exclamou Yegor Semionovich com um sorriso contrafeito. —  Não lhe dês ouvidos, pelo amor de Deus!... Ou então lê-os, se queres dormir depressa.São um óptimo soporífero.

 — Cá por mim acho-os magníficos — exclamou Tania, muito convencida. — Lê-os,Andriusha, e convence o pai a escrever mais vezes. Julgo-o capaz de produzir um tratadocompleto de jardinagem.

Yegor Semionovich riu-se, corou e murmurou as frases convencionais usadas pelosautores envergonhados. Por fim concedeu:

 — Se estás realmente disposto a lê-los, começa por estes do Gauché e pelos artigosrussos — gaguejou, segurando nos jornais com as mãos trémulas. — De contrário, não perceberás nada. Antes de leres as minhas respostas, tens de saber a quem as dirijo. Masisto não te deve interessar... Que estupidez! São horas de ir para a cama.

Tania saiu. Yegor Semionovich sentou-se na ponta do sofá e soltou um fundo suspiro.

 — Ah, meu irmão!... — começou depois de um prolongado silêncio. — Como vês, meucaro Magister, escrevo artigos, tomo parte em exposições, às vezes ganho medalhas... OPesotzky, diz-se por aí, produz maçãs do tamanho de cabeças... O Pesotzky faz umafortuna com os pomares... Numa palavra: «o Kochubey é rico e glorioso». Mas qual será

o fim de tudo isto, pergunto eu! Os meu jardins, disso não pode haver dúvida, sãomaravilhosos, modelares... Não são propriamente jardins, mas antes uma instituição degrande importância política, um passo em frente na nova era da agricultura e da indústriana Rússia... Mas qual o seu fim? Qual o seu objectivo?

 — A resposta é fácil.

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 — Não falo nesse sentido. O que eu queria saber é o que acontecerá a tudo isto depois daminha morte? Tal como as coisas estão, nada disto pode manter-se sem mim, nem sequer durante um mês. O segredo não reside no facto de o jardim ser grande, no número detrabalhadores, mas antes no amor que eu lhe dedico, compreendes? Amo isto, talvez maisdo que a mim próprio. Vê bem! Trabalho de manhã até à noite. Faço tudo com as minhas

 próprias mãos. Os enxertos, as podas, as plantações, eu é que faço tudo. Quando alguémme ajuda, sinto ciúmes e acabo por me irritar a ponto de ser grosseiro. O segredo de tudoestá no amor, nos olhos atentos do dono, nas mãos do dono, na sensação queexperimento, quando vou dar um passeio ou visito alguém durante meia-hora, de quedeixei o coração para trás e não estou em mim... Receio constantemente que alguma coisatenha acontecido aos pomares. Imagina agora que eu morro amanhã: quem tomará contade tudo isto? Quem fará o trabalho? O chefe dos jardineiros? Os trabalhadores? Ora aminha maior preocupação, actualmente, não é a lebre, nem o escaravelho, nem a geada.São as mãos estranhas.

 — E a Tania? — inquiriu, rindo, Kovrin. — Será ela mais perigosa do que uma lebre? A

Tania ama e compreende o seu trabalho. — Sim. A Tania ama-o e compreende. Se, depois da minha morte, ela ficasse com isto,nada mais eu poderia desejar. Mas suponha-mos... Deus nos defenda!... que ela se casa? — Yegor Semionovich falava em voz baixa e fitava Kovrin com olhares assustados. — Aíé que está o busílis! Pode casar-se, ter filhos e então não lhe restará tempo para cuidar do jardim. Isto só por si já seria mau. Mas o meu maior receio é que venha a casar-se comum perdulário, esganado por dinheiro, que arrende o jardim a mercenários, e lá se vaitudo por água abaixo logo no primeiro ano! Num negócio desta espécie, uma mulher éuma praga!

Yegor Semionovich suspirou e ficou calado uns momentos. — Podes chamar a isto egoísmo. Mas eu não desejaria que a Tania se casasse. Tenhoreceio! Tu já viste esse peralvilho que aí vem com o violino fazer uma barulheiramedonha. Bem sei que a Tania nunca consentiria em casar com ele. Mas não possoenxergar o sujeito... Enfim, meu amigo. Sou um velho casmurro... sei isso muito bem!

Yegor Semionovich ergueu-se e pôs-se a passear muito excitado dum lado para o outro.Via-se claramente que tinha algo de muito importante para dizer, mas não conseguiaresolver-se.

 — Estimo-te de mais para não te falar com toda a franqueza — declarou por fim,enterrando as mãos nos bolsos. — Em todas as questões delicadas só digo o que penso eodeio as mistificações. Confesso, portanto, com toda a sinceridade, que és tu o únicohomem que não me importaria de ver casado com a Tania. És esperto, tens bom coração enão serias capaz de arruinar o meu trabalho. Mais ainda, amo-te como a um filho... tenhoorgulho em ti. Por isso, se tu e a Tania acabarem por... arranjar uma espécie de romance...eu sentir-me-ei muito satisfeito, muito feliz. Digo-te isto cara a cara, sem vergonha, comoé próprio de todo o ser honesto.

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Kovrin sorriu. Yegor Semionovich abriu a porta e ia a sair, mas parou ainda na soleira, para acrescentar:

 — Se tu e a Tania tivessem um filho, eu poderia fazer dele um horticultor. Mas isto é uma pura fantasia. Boas noites!

Uma vez só, Kovrin instalou-se confortavelmente e pegou nos artigos do velhote. O primeiro intitulava-se: «Cultura intermediária», o segundo, «Algumas palavras emresposta às observações do senhor Z. acerca do tratamento do solo num jardim recente»,o terceiro «Ainda acerca dos enxertos». Os restantes eram do mesmo teor. Mas tudoaquilo respirava inquietação e irritabilidade doentia. Até mesmo um escrito com o pacífico título de «Macieiras russas» exalava mau génio. Yegor Semionovich começavacom estas palavras: «Audi alteram partem» e terminava: «Sapienti sat»; no meio destaseruditas citações, irrompia uma torrente de palavras azedas dirigidas contra «a sábiaignorância dos nossos horticultores encartados que observam a natureza do alto das suascátedras académicas» e contra M. Gauché «cuja fama se baseia na admiração dos

 profanos e dos dilettanti». Deparou-se-lhe finalmente uma tirada despropositada e poucosincera em que o autor lamentava o facto de já não ser legal usar-se o chicote para com oscamponeses que são apanhados a roubar fruta e a maltratar as árvores.

«O trabalho dele é útil, salutar e empolgante — pensou Kovrin -, no entanto, nestes panfletos nada encontramos senão mau génio e guerra aberta. Calculo que o mesmo se passa em toda a parte; os especialistas, seja qual for o seu campo, mostram-se nervosos esão vítimas desta mesma sensibilidade exacerbada. Provavelmente não pode ser doutramaneira.»

Pensou em Tania, tão encantada com os artigos do pai e depois em Yegor Semionovich.

Tania, pequenina, pálida e frágil, com as clavículas salientes, os olhos negros e espertos,sempre muito abertos, que pareciam estar à procura de qualquer coisa. E em Yegor Semionovich com os seus passinhos apressados. Voltou a recordar-se de Tania, do prazer que mostrava em conversar e discutir, acompanhando as frases mais insignificantes commímica e gestos. Nervosa. Também ela devia ser nervosa no mais alto grau.

Kovrin tentou ler de novo, mas não percebia nada do que vinha nos livros e desistiu. Aagradável emoção com que dançara a mazurca e escutara a música continuava a empolgá-lo, fazia surgir-lhe uma montanha de pensamentos. Passou-lhe pela cabeça que, se aqueleestranho e misterioso monge só tinha sido visto por ele, é porque devia estar doente, a ponto de sofrer de alucinações. Esta ideia assustou-o, mas em breve a pôs de parte.

Sentou-se no sofá, com a cabeça entre as mãos, tentando dominar a alegria que seapoderara de todo o seu ser; passeou depois para cá e para lá durante um minuto e voltouao trabalho. Porém os pensamentos que lia nos livros já o não conseguiam satisfazer.Aspirava a qualquer coisa de mais vasto, de infinito, de avassalador. Pela madrugadadespiu-se e meteu-se na cama, contrafeito. Reconhecia que era melhor descansar.Quando, finalmente, ouviu Yegor Semionovich que se dirigia para o trabalho no jardim,

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tocou a campainha e mandou ao criado que lhe trouxesse vinho. Bebeu uns poucos decopos, até começar a sentir a consciência entorpecida e adormeceu.

IV

Yegor Semionovich e Tania questionavam amiudadas vezes e diziam um ao outro coisasmuito desagradáveis. Nessa manhã estavam ambos irritados e Tania desatara a chorar efora para o quarto, não voltando a aparecer nem para o jantar, nem para o chá. A princípio, Yegor Semionovich começou a andar dum lado para o outro, solene eempertigado, como se quisesse dar a entender que, para ele, a ordem e a justiçaconstituíam o supremo interesse da vida. Mas não conseguiu manter por muito tempo estaatitude. Faltou-lhe a coragem e desatou a passear pelo parque, suspirando:

 — Ah, meu Deus!

Ao jantar não comeu nada e por fim, torturado pela consciência, foi bater de mansinho à

 porta da rapariga, murmurando timidamente:

 — Tania! Tania!

Do outro lado respondeu-lhe uma voz fraca, chorosa, mas decidida:

 — Deixe-me em paz! Suplico-lhe!

A tristeza do pai e da filha reflectiam-se em toda a casa e até nos trabalhadores do jardim.Kovrin, como de costume, achava-se mergulhado no seu interessante trabalho, mas atéele acabou por se sentir cansado e mal disposto. Resolveu interferir e dissipar aquela

nuvem, antes da noite. Foi bater à porta de Tania, e esta mandou-o entrar.

 — Vamos! Vamos! Que vergonha! — começou ele num tom brincalhão. Depois, olhando,surpreendido, aquele rosto lacrimejante e aflito, coberto de rosetas vermelhas, disse: — Então isso é a sério? Ora, ora!

 — Se soubesses a que ponto ele me torturou! — exclamou ela, enquanto uma onda delágrimas lhe rebentava dos olhos. — Atormentou-me! — prosseguiu a torcer as mãos. — E eu não tinha dito nada... Só alvitrei que não era necessário mantermos uma chusma detrabalhadores efectivos... uma vez que nos podíamos arranjar com jornaleiros... Bemsabes que os homens não têm feito nada durante toda esta semana... Eu... eu só disse isto

e ele pôs-se a berrar comigo e disse-me uma data de coisas... muito ofensivas...insultuosas. E tudo sem razão nenhuma.

 — Não faças caso! — declarou Kovrin, afagando-lhe os cabelos. — Tu já barafustaste etiveste o teu desabafo; agora pronto! Não deves prolongar isto indefinidamente... não estácerto... tanto mais que ele gosta de ti a valer, sabes isso muito bem.

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 — O pai estragou-me a vida — soluçava Tania. — Nunca ouvi outra coisa senão insultose afrontas. Considera-me a mais na sua própria casa! Deixá-lo. Faço-lhe a vontade! Vouestudar e arranjar emprego como telegrafista!... Ele verá.

 — Ora, ora! Acaba lá com isso, Tania. Só te faz mal!... Sois ambos muito exaltados,

impulsivos, e nenhum tem razão. Vamos, eu é que vou fazer as pazes!

Kovrin falava num tom suave e persuasivo, mas Tania continuava a chorar e sacudia osombros, a torcer as mãos como se na verdade estivesse esmagada por uma verdadeiradesgraça. Kovrin sentia-se ainda mais apoquentado por verificar a insignificância domotivo deste desgosto. Um simples nada bastava para tornar infeliz durante um diainteiro aquela criaturinha, ou, segundo ela afirmava, durante toda a vida! E, enquantotentava consolar Tania, ocorreu-lhe que, a não ser ela e o pai, mais ninguém no mundo oestimava assim como se fizesse parte da família. Se não fossem eles, ter-se-ia sentidoórfão em pequeno, passaria a vida inteira sem gozar uma carícia sincera e semexperimentar aquele amor simples e irreflectido que apenas dedicamos aos entes do nosso

sangue. E sentia que os seus nervos, esgotados e tensos como cordas de viola,correspondiam aos desta rapariguinha chorosa e trémula. Considerava também que nuncaseria capaz de amar uma mulher saudável, de faces rubicundas; sentia-se, porém, atraído pela pequena Tania, pálida, fraca e infeliz.

Dava-lhe prazer contemplar os seus ombros e os seus cabelos. Apertou-lhe a mão elimpou-lhe as lágrimas... Ela por fim deixou de chorar. Mas continuava ainda a queixar-sedo pai, da vida insuportável que levava em casa, suplicando a Kovrin que compreendesse bem a sua situação. Depois, pouco a pouco, começou a sorrir e a suspirar, afirmando queDeus a castigara com um génio impossível; por fim, ria alto, chamando tola a si própria, eacabou por sair a correr do quarto.

Passados uns momentos Kovrin dirigiu-se ao jardim. Como se nada se tivesse passado,Yegor Semionovich e Tania passeavam na alameda, ao lado um do outro, comendo pãode centeio com sal. Ambos estavam cheios de fome.

V

Satisfeito com o seu papel de medianeiro, Kovrin foi para o parque. Quando estavasentado num banco, ouviu o ruído duma carruagem e um riso de mulher. Mais visitas,sem dúvida! As sombras começaram a envolver o jardim. O som de um violino, a voz damulher, tudo ali chegava tão atenuado pela distância, que mal se ouvia. Recordou-se

então do Monge Negro. Em que regiões, em que planetas, pairaria agora aquela absurdailusão de óptica?

Mal lhe viera à mente a ideia da lenda, evocando a escura aparição no campo de centeio,logo viu surgir detrás das árvores, caminhando sem ruído, um homem de estaturamediana. Trazia a cabeça grisalha a descoberto, vestia de negro e vinha descalço comoum mendigo. No seu rosto pálido como o de um cadáver avultavam vários pontos negros.Depois de um cumprimento de cabeça, o desconhecido, talvez um mendigo, dirigiu-se

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silenciosamente para o banco e sentou-se. Kovrin reconheceu então o Monge Negro.Durante uns momentos olharam um para o outro, Kovrin com ar de espanto, porém omonge com amabilidade e, tal como da primeira vez, mostrando no rosto uma certaironia.

 — Mas tu és uma miragem! — disse Kovrin. — Porque estás aqui e porque vieste sentar-te neste lugar? Isso não está de acordo com a lenda.

 — É tudo a mesma coisa — replicou suavemente o monge, voltando-se para Kovrin. — A lenda, a miragem, eu mesmo, tudo são produtos da tua imaginação exaltada. Eu sou umfantasma.

 — Isso quer dizer que não existes? — inquiriu Kovrin.

 — Pensa o que quiseres — replicou o monge, com um leve sorriso. — Eu existo na tuaimaginação, e como a tua imaginação faz parte da Natureza, devo também existir na

 Natureza. — A tua fisionomia é distinta e inteligente. Tenho a impressão de que, na realidade,existes há mais de mil anos — observou Kovrin. — Nunca me julguei capaz de imaginar um fenómeno assim. Porque me olhas tão encantado? Simpatizas comigo?

 — Sim, és um daqueles entes raros que podem, com justiça, ser chamados eleitos deDeus. Tu serves a eterna verdade. Os teus pensamentos, as tuas intenções, a tua ciênciaespantosa, toda a tua vida traz o selo da divindade, a marca do céu. Dedicas tudo aoracional e ao belo, ou seja, ao Eterno.

 — A eterna verdade, disseste tu. Poderá então a eterna verdade ser acessível e necessáriaao homem se não houver vida eterna?

 — Há uma vida eterna — afirmou o monge

 — Tu acreditas na imortalidade do homem?

 — Pois claro. A vós, homens, espera-vos um futuro belo e grandioso. E, quanto maishomens como tu houver no mundo, mais perto se está de alcançar esse futuro. Sem vós,ministros dos altos princípios, que viveis conscientes e livres, a humanidade nada seria.Deixando-a desenvolver pela ordem natural das coisas, ela teria de esperar o fim da

história da terra. Mas vós conseguistes adiantá-la no caminho do reino da eterna verdadealguns milhares de anos. E é este o grande serviço que lhe prestais. Vós personificais a bênção que Deus derrama sobre o povo.

 — E qual é o objectivo da vida eterna? — inquiriu Kovrin.

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 — O mesmo de todas as vidas. O prazer. O verdadeiro prazer reside no conhecimento e avida eterna oferece inúmeras e inexauríveis fontes de conhecimento; foi neste sentido quese disse: «Na casa de meu pai existem várias mansões...»

 — Não calculas o prazer que sinto em ouvir-te — declarou Kovrin esfregando as mãos,

deliciado.

 — Ainda bem.

 — Sei, no entanto, que, mal te fores embora, ficarei atormentado por dúvidas acerca datua realidade. Tu és um fantasma, uma alucinação. Mas significará isso que estoufisicamente doente, que não me encontro no meu estado normal?

 — E se assim for? Não te deves preocupar com isso. Estás doente em virtude de haverestrabalhado para além das tuas forças, porque sacrificaste a saúde a uma ideia, e não vemlonge o dia em que sacrificarás não só a saúde mas também a vida. Que mais poderás

desejar? É a isso que aspiram todas as naturezas nobres e bem dotadas. — Mas se me encontro de verdade enfermo, como posso acreditar em mim próprio?

 — E quem te diz que todos aqueles homens de génio que o mundo admira não tiveramvisões? Hoje afirma-se que o génio está muito perto da loucura. As pessoas saudáveis enormais não passam de simples homens, constituem o rebanho. Receios, esgotamentos,estados de degenerescência, tudo isso só pode preocupar aqueles cujos objectivos na vidase resumem ao presente. Esses é que formam o rebanho.

 — Os romanos consideravam como seu ideal: mens sana in corpore sano.

 — Nem tudo o que afirmavam os gregos e os romanos é verdade. A exaltação, asaspirações, os estados de excitamento, o êxtase, todas estas coisas que são o apanágio dos poetas, dos profetas, dos mártires de ideias fora do comum, são incompatíveis com a vidaanimal, quero dizer, com a saúde física. Repito: se desejas ser saudável e normal, segue orebanho.

 — Como é estranho que estejas a repetir aquilo mesmo que tenho pensado muitas vezes! — exclamou Kovrin. — Dá a impressão de teres lido os meus mais secretos pensamentos. Mas não falemos de mim. O que entendes tu por estas palavras: verdadeeterna?

O monge não respondeu. Kovrin olhou para ele mas não conseguiu distinguir-lhe a cara.As feições haviam-se-lhe desvanecido, a cabeça e os braços tinham desaparecido. Ocorpo dissolvera-se no banco e no crepúsculo, sumindo-se por completo.

 — Lá se foi a alucinação! — exclamou Kovrin, rindo. — Que pena!

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Voltou para casa alegre e feliz. O que ouvira ao Monge Negro lisonjeara-lhe, não só oamor-próprio, mas também a alma e todo o seu ser. Considerar-se um eleito, um ministroda eterna verdade, fazer parte do grupo daqueles que apressam em milhares de anos omomento em que a humanidade se tornará digna do reino de Cristo, poupar a essa mesmahumanidade milhares de anos de luta, de pecado, de sofrimento, pôr tudo ao serviço

duma ideia — juventude, força, saúde -, ser capaz de morrer pelo bem-estar colectivo,que glorioso ideal! E quando a memória lhe fez reviver o passado, uma vida pura e casta,cheia de trabalho, quando pensou no que aprendera e no que ensinara aos outros, concluiuque não havia exagero nas palavras do Monge.

Lá vinha Tania ao seu encontro, no parque. Trazia um vestido diferente do que lhe vira daúltima vez.

 — Estás aí? — gritou ela. — Andávamos à tua procura há que tempos... Mas queaconteceu? — inquiriu a rapariga, surpreendida, vendo a expressão radiosa e exaltada deKovrin, e reparando-lhe nos olhos cheios de lágrimas. — Que esquisito tu estás,

Andriusha! — Estou contente. Tania — explicou ele, poisando-lhe a mão no ombro. — Estou maisdo que contente, estou feliz! Tania, querida Tania! Não sabes quanto te quero! Sinto-memuito satisfeito.

Beijou-lhe com fervor as mãos e prosseguiu:

 — Acabo de viver os momentos mais maravilhosos, mais belos, mais estranhos da minhavida... Mas não posso contar-te tudo, de contrário chamar-me-ias louco ou recusar-te-ias aacreditar em mim... Falemos antes de ti! Tania, amo-te desde há muito! Ver-te

constantemente, encontrar-te a toda a hora, é-me absolutamente necessário. Não sei comohei-de passar sem ti quando me for embora!

 — Ora! — retorquiu Tania rindo. — Vais esquecer-nos dentro de dois dias! Nós somos pessoas insignificantes e tu és um grande homem!

 — Vamos falar a sério — disse Kovrin. — Quero levar-te comigo, Tania. Sim? Venscomigo? Queres ser minha?

Tania exclamou:

 — O quê! — e tentou rir outra vez. Mas não conseguiu e apareceram-lhe no rosto duasrosetas vermelhas. Respirava com força e pôs-se a andar muito depressa. — Não sabia... Nunca pensei nisto... nunca pensei — declarava apertando as mãos uma na outra, comose estivesse desesperada.

Kovrin, porém, correu atrás dela e, com a mesma expressão deslumbrada e entusiasta,continuou a falar:

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 — Aspiro a um amor que possa tomar conta de todo o meu ser, e este amor, Tania, só tumo podes dar. Sou feliz! Tão feliz!

A rapariga sentia-se desorientada, confundida, exausta, e parecia ter envelhecido dez anosde repente. Mas Kovrin achava-a encantadora e exprimiu em voz alta o seu êxtase:

 — Como é linda!

VI

Quando ouviu da boca de Kovrin que, além de um romance, iria haver um casamento,Yegor Semionovich pôs-se a andar pelos cantos a fim de esconder a sua agitação.Tremiam-lhe as mãos, tinha o pescoço inchado e vermelho. Deu ordem para atrelarem oscavalos à sua charrete de corrida e saiu. Tania, ao ver a maneira como chicoteava oscavalos e enterrava o boné até às orelhas, percebeu o que ele estava sentindo e fechou-seno quarto a chorar todo o dia.

 No pomar, os pêssegos e as ameixas estavam já maduros. O empacotamento e odespacho, para Moscovo, de tão delicada mercadoria exigia muitos cuidados, atenção eactividade. Por causa do calor, todas as árvores tinham de ser regadas; o processo ficavadispendioso em tempo e trabalho. Começaram a aparecer muitas lagartas que Yegor Semionovich e Tania, bem como os trabalhadores, esmagavam com o dedo, com grandeescândalo de Kovrin. Tornava-se necessário satisfazer as encomendas do Outono relativasa frutos e a árvores, e por isso mantinha-se uma correspondência muito activa. No augedo trabalho, quando parecia que ninguém poderia dispor dum momento, começou a fainados campos, deixando o jardim desfalcado em mais de metade dos trabalhadores. Yegor Semionovich, bastante queimado pelo sol, muito irritado e cheio de preocupações, corria

dum lado para o outro, ora no jardim, ora nos campos. E gritava a toda a hora que istodava cabo dele e que iria meter uma baia nos miolos.

Além de tudo, havia a preocupação com o enxoval de Tania, a que os Pesotzky ligavamgrande importância. A casa inteira vibrava com o ruído das tesouras, o matraquear dasmáquinas de costura, o cheiro dos ferros de engomar, as exigências da modista muitonervosa e susceptível. E, para cúmulo, todos os dias chegavam visitas que era precisodivertir, alimentar, alojar durante a noite. No entanto, os trabalhos e as preocupaçõesdesvaneciam-se numa névoa de alegria. Tania tinha a impressão de que o amor e afelicidade se haviam apoderado dela, como se desde os catorze anos alimentasse a certezade que Kovrin não casaria com nenhuma outra mulher. Mantinha-se num permanente

estado de espanto, de dúvida, de incerteza para consigo própria. Em determinadosmomentos, a sua alegria era tamanha, que se julgava capaz de subir aos céus para orar aDeus; noutros, então, recordava-se de que, em Agosto, teria de deixar a casa da suainfância e abandonar o pai. E assustava-a a ideia que lhe vinha, não sabia donde, de ser uma rapariguinha vulgar e insignificante, indigna dum grande homem como Kovrin.Quando a assaltavam tais pensamentos, corria a fechar-se no quarto e ali chorava comamargura durante horas. Quando, porém, estavam presentes as visitas, reparava de súbitoque Kovrin era um belo homem e que todas as mulheres o amavam e a invejavam a ela. E

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em tais momentos o seu coração inflamava-se de orgulho, como se tivesse conquistado omundo inteiro. Quando ele ousava sorrir para qualquer outra mulher, tremia de ciúmes efugia para o quarto, novamente em lágrimas. Estes sentimentos haviam-se apossado por completo de Tania. Ajudava maquinalmente o pai, não dava atenção aos jornais, nem àslagartas, nem aos trabalhadores, nem à rapidez com que passava o tempo.

Yegor Semionovich encontrava-se num estado de espírito mais ou menos semelhante.Continuava a trabalhar de manhã à noite, corria pelo jardim e irritava-se a todo omomento, mas sempre mergulhado nas suas mágicas divagações. Dentro daquele corporobusto digladiavam-se dois homens: um, o verdadeiro Yegor Semionovich, que, ao ouvir o jardineiro, Yvan Karlovich, relatar-lhe qualquer engano ou percalço, perdia a cabeça earrepelava os cabelos; o outro, o novo Yegor Semionovich, um velho obcecado, queinterrompia uma conversa importante para agarrar no ombro do jardineiro, gaguejando:

 — Podes dizer o que quiseres, mas quem sai aos seus não degenera. A mãe dele era umasenhora das mais finas e inteligentes. Dava prazer fitar aquela cara, boa, pura, franca

como a de um anjo. E também pintava muito bem, escrevia versos, falava cinco línguas ecantava... Coitadinha! Deus a tenha em descanso. Morreu tísica!

O novo Yegor Semionovich suspirava e, após um momento de silêncio, prosseguia:

 — Quando ele era um rapazinho que se fazia homem em minha casa, tinha também umacara assim, boa, franca e pura. A sua aparência, os seus gestos e palavras eram tão suavese graciosos como os da mãe. E que inteligência! Não é sem razão que alcançou o grau deMagister. Mas vais ver, Ivan Karlovich, vais ver o que ele será dentro de dez anos! Vamos perdê-lo de vista!

 Nesta altura, porém, o verdadeiro Yegor Semionovich caía em si, voltava à terra etrovejava:

 — Malandros! Tudo queimado, arruinado, destruído! O jardim está arruinado! O jardimestá destruído!

Kovrin trabalhava com o antigo entusiasmo e raramente dava pelo rebuliço à sua volta. Oamor não fazia mais do que deitar azeite na lume. Depois de cada encontro com Tania,regressava ao quarto, encantado e feliz, e atirava-se aos livros e manuscritos com amesma paixão com que a beijara e lhe jurara o seu amor. Aquilo que lhe dissera o Monge Negro acerca de ele ser um dos eleitos de Deus, ministro da eterna verdade e do glorioso

futuro da humanidade, conferia ao trabalho de Kovrin um significado especial edesusado. Uma ou duas vezes por semana, quer no parque, quer dentro de casa,encontrava-se com o frade, e ambos conversavam durante horas; isto porém nãoassustava Kovrin, antes o encantava, pois adquirira já a certeza de que tais aparições sóvisitam os eleitos e os raros que se dedicam ao ministério das ideias.

O dia da Assunção passou despercebido. Seguiu-se a boda realizada com grande pompasegundo o desejo expresso por Yegor Semionovich, quer dizer, com aqueles festejos sem

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significado algum, mas que duram dois dias. Gastaram-se três mil rublos em comidas e bebidas; porém, no meio da música de baixa categoria, dos brindes ruidosos, dos criadosatarefados, dos clamores e da atmosfera pesada das salas, ninguém apreciou os vinhoscaros nem os extraordinários hors-d'oeuvre encomendados expressamente em Moscovo.

VII Numa das longas noites de Inverno, Kovrin encontrava-se na cama a ler um romancefrancês. A pobre Tania, que todas as noites sofria de dores de cabeça por não estar habituada à vida na cidade, adormecera havia muito e, em sonhos, ia murmurando palavras incoerentes.

O relógio bateu três horas. Kovrin apagou a vela e deitou-se para baixo, ficando contudomuito tempo sem poder dormir em virtude do calor do aposento e do murmurar contínuode Tania. Às quatro e meia acendeu de novo a vela. O Monge Negro estava sentado numacadeira, ao lado da cama.

 — Boa-noite! — disse o monge. E, depois de um momento de silêncio, inquiriu: — Emque estás agora a pensar?

 — Na glória — respondeu Kovrin. — No romance francês que acabo de ler, o herói é um jovem que comete toda a casta de loucuras e morre de paixão pela glória. Quanto a mim,esta paixão afigura-se-me inconcebível.

 — És demasiado inteligente. Olhas com indiferença para a fama como para um brinquedoque te não pode interessar.

 — Isso é verdade.

 — A celebridade não te atrai. Que prazer, que alegria ou conhecimento pode um homemtirar do facto de saber que o seu nome será gravado num monumento, do qual o tempocedo ou tarde virá a apagar as letras? Sim, felizmente vocês são tantos, que a fracamemória humana vos não pode recordar a todos o nome.

 — Claro — retorquiu Kovrin. — Mas para quê recordá-los... Falemos antes de outracoisa. Da felicidade, por exemplo. O que é a felicidade?

Quando o relógio bateu cinco horas estava Kovrin sentado na cama, com os pés poisados

no tapete e a cabeça voltada para o monge; dizia:

 — Nos tempos antigos houve um homem que teve tanto medo da sua felicidade que, afim de aplacar os deuses, lhes ofereceu um anel que muito estimava. Já ouviste contar isto? Também eu agora, tal como Polícrates, me sinto um pouco assustado com a minha própria felicidade. De manhã à noite só sinto alegria, que me absorve e abafa todos osoutros sentimentos. Não sei o que é a dor, o cansaço ou a aflição. Falo a sério. Começo adesconfiar.

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 — Porquê? — inquiriu o monge num tom admirado. — Consideras então a alegria umsentimento sobrenatural. Achas que não é o estado normal das coisas? Não! Quanto maior é o grau moral e mental que o homem atinge, mais livre se sente, maior é a satisfação queele tira da vida. Sócrates, Diógenes, Marco Aurélio conheciam a alegria e não a tristeza.E o apóstolo disse: «Alegra-te extraordinariamente». Alegra-te e sê feliz!

 — E se de repente os deuses se encolerizam? — inquiriu Kovrin. — Cá por mim, não meagradava nada que me tirassem a felicidade e me obrigassem a tremer e a morrer defome.

Tania acordou e olhou para o marido com espanto e terror. Este falava, voltado para acadeira, a gesticular e a rir. Brilhavam-lhe os olhos e o seu riso tinha um som estranho.

 — Andriusha, com quem estás tu a falar? — inquiriu ela agarrando na mão que eleestendia para o monge. — Andriusha, quem está aí?

 — Quem? — respondeu Kovrin. — Mas é o monge!... Está ali sentado. — E apontava para o Monge Negro.

 — Ali não está ninguém... ninguém, Andriusha! Estás doente!

Tania abraçava o marido, apertava-o contra si, como a querer defendê-lo da aparição, etapava-lhe os olhos com as mãos.

 — Tu estás doente — soluçava ela, toda a tremer. — Desculpa, querido, mas desconfiohá muito de que andas um pouco nervoso... Não estás bem... fisicamente, Andriusha!

A tremura dela comunicou-se a Kovrin. Olhou mais uma vez para a cadeira, agora vazia,e sentiu as pernas e os braços subitamente tomados de fraqueza. Começou a vestir-se.

 — Não é nada. Tania. Não é nada... — gaguejava ele ainda a tremer. — Não estou lámuito bem... Já é tempo de o confessar.

 — Há muito que andava desconfiada... e o meu pai também — confessou ela, tentandodominar os soluços. — Andas constantemente a falar sozinho, a sorrir dum modo tãoestranho... e não dormes. Oh, meu Deus, meu Deus, tem pena de nós! — exclamava comterror. — Mas não te assustes, Andriusha, não te assustes... pelo amor de Deus, não teassustes...!

Tania vestiu-se também... Só então, ao olhar para a mulher, Kovrin compreendeu o perigoda sua situação e atingiu o que quisera dizer o Monge Negro nas suas conversas.Convenceu-se absolutamente de que estava doido.

Sem saberem porquê, um e outro vestiram-se e saíram para o vestíbulo, ondeencontraram Yegor Semionovich de roupão. Vinha ter com eles, pois acordara com ossoluços de Tania.

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 — Não tenhas medo, Andriusha — dizia Tania, tremendo como se estivesse com febre. — Não se assuste, pai... Isto passa... isto passa.

Kovrin ficara tão agitado, que mal podia falar. Mas tentava levar as coisas a rir. Voltou-se para o sogro e começou:

 — Dêem-me os parabéns... parece que estou a ficar maluco. — Mas apenas conseguiumover os lábios e sorrir amargamente.

Às nove horas vestiram-lhe um casaco, um sobretudo de peles, embrulharam-no num xalee levaram-no ao médico. Começou então a tratar-se.

VIII

Chegara de novo o Verão. Por ordem do médico, Kovrin fora para o campo. Recuperara asaúde e não voltara a ver o Monge Negro. Só dependia dele próprio adquirir as forças

físicas. Habitava em casa do sogro, bebia muito leite, trabalhava apenas duas horas por dia, não provava vinho e deixara de fumar.

 Na tarde do dia 29 de Junho, véspera de Santo Elias, realizou-se lá em casa umacerimónia religiosa. Quando o padre tomou o turíbulo do incenso das mãos do sacristão etodo o vestíbulo ficou a cheirar a igreja, Kovrin começou a sentir-se fatigado. Saiu para o jardim. Sem reparar nas flores que o rodeavam, começou a andar dum lado para o outro,sentou-se durante um bocado num banco, e depois dirigiu-se ao parque. Desceu a rampaaté à margem do rio e quedou-se a olhar interrogativamente a água. Os enormes pinheiroscom as suas raízes descarnadas que um ano atrás o tinham visto tão jovem, tão alegre, tãoactivo, já não murmuravam desta vez. Mantinham-se calados e imóveis, como se o não

reconhecessem... Na verdade, com os cabelos cortados curtos, o andar vacilante, o rostomudado, pálido e de expressão carregada, tão diferente do que era um ano antes, ninguémo reconheceria.

Atravessou o rio. No campo da outra margem, outrora coberto de centeio, viam-se agoraregos de aveia seca. O sol escondera-se já e, no horizonte, flamejava uma larga fachavermelha, a anunciar trovoada. Tudo estava calmo. Ao dirigir os olhos para o ponto ondeum ano antes vira o Monge Negro, Kovrin quedou-se vinte minutos a observar o clarãodo céu. Quando regressou a casa, cansado e insatisfeito, Yegor Semionovich e Taniaestavam sentados nos degraus do terraço, a tomar chá. Conversavam um com o outro e,ao verem aproximar-se Kovrin, calaram-se. Mas este percebeu-lhes no rosto que haviam

estado a falar a seu respeito.

 — São horas de tomares o teu leite — disse Tania para o marido.

 — Não, por ora não — retorquiu este, sentando-se no último degrau. — Bebe tu. A mimnão me apetece.

Tania trocou um olhar tímido com o pai e tornou, a medo:

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 — Sabes perfeitamente que o leite te faz bem.

 — Oh, muitíssimo bem! — troçou Kovrin. — Dou-te os meu parabéns! Já engordei umalibra desde sexta-feira passada. — Apertou a cabeça nas mãos e lamentou-se, numa vozdolorosa: — Oh, porque é que me curaram? Brometos... descanso, banhos tépidos, uma

vigilância aturada sobre tudo o que eu metia à boca, sobre todos os passos que dava...tudo isto ainda acaba por dar comigo em doido! Andava maluco... tinha a mania dagrandeza... Mas fora isso sentia-me lúcido, activo e sempre satisfeito... Era um homeminteressante e original. Agora tornei-me racional e sólido, como toda a gente. Sou ummedíocre e a vida não passa de uma coisa enfadonha. Oh, que cruéis... que cruéis vocêsforam para mim! Tinha alucinações... que mal fazia isso aos outros? Que mal, perguntoeu?...

 — Só Deus sabe o que ele quer dizer na sua! — suspirou Yegor Semionovich. — Atéchega a ser estupidez estar para aqui a ouvir-te!

 — Então não oiçam!A presença de estranhos, sobretudo de Yegor Semionovich, passara a irritar Kovrin;respondia ao sogro num tom seco, frio, mesmo mal-educado e, quando o olhava, nãoconseguia disfarçar o ódio e o desprezo. Yegor Semionovich sentia-se atrapalhado, etossia, culposo, não compreendendo que mal poderia ter feito ao genro. Incapaz de perceber o motivo de tamanha reviravolta nas relações de ambos, outrora tão cordiais,Tania abraçava-se ao pai e fitava-o nos olhos, assustada. Via claramente que as relaçõesentre os dois homens pioravam dia a dia, que o pai envelhecera extraordinariamente e queo marido se tornara irritável, caprichoso, excitado e enfadonho. A rapariga deixara de rir,de cantar, não comia nada, passava as noites sem dormir, vivendo sob a ameaça dum

terror permanente. Torturava-se a tal ponto, que chegava a ficar inconsciente desde o jantar até à noite. Durante a cerimónia religiosa teve a impressão de que o pai estava achorar. Agora, ali sentada no terraço, fazia um esforço para não pensar nisso.

 — Que felizes foram Buda, Maomet e Shakespeare por não terem tido parentes emédicos solícitos que os curassem do seu êxtase e inspiração! — exclamou Kovrin. — SeMaomet houvesse ingerido brometo de potássio para os nervos, trabalhado apenas duashoras por dia e bebido leite, esse homem extraordinário nada mais teria deixado atrás desi do que o seu cão. Os parentes solícitos e os médicos não fazem outra coisa senão tornar a humanidade estúpida. Tempos virão em que a mediocridade será considerada génio eem que a humanidade acabará por perecer. Se vocês soubessem — prosseguiu Kovrincom petulância -, se vocês soubessem como vos estou grato!...

Sentia uma forte irritação e, para não falar de mais, ergueu-se e entrou em casa. Não faziavento e lá dentro pairava o cheiro à planta do tabaco e a jalapa. Através da janela doenorme átrio, os raios de luar vinham poisar no chão e sobre o piano. Kovrin recordou-sedos encantos do Verão passado, em que o ar também cheirava a jalapa e a luz da luaentrava pela janela... A fim de reviver a atmosfera de então, entrou no quarto, acendeu umcharuto forte e mandou que o criado lhe trouxesse vinho. A verdade, porém, é que o

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charuto amargava, sabia mal, e o vinho perdera todo o paladar do ano anterior. O que faza falta de hábito! Depois de um único charuto e de dois goles de vinho sentiu a cabeçaandar à roda e teve de tomar brometo de potássio.

Antes de se meterem na cama, Tania disse-lhe:

 — Ouve lá! O meu pai adora-te, mas tu estás aborrecido com ele por qualquer motivo eisso mata-o. Repara como envelhece de dia para dia, de hora para hora! Suplico-te,Andriusha, pelo amor de Deus, por alma do teu pai, para meu descanso, vê se te mostrasmais amável com ele!

 — Não posso, nem quero!

 — Mas porquê? — Tania tremia toda. — Explica-me porquê?

 — Porque não gosto dele, pronto! — respondeu Kovrin com indiferença, encolhendo os

ombros. — Mas o melhor é não falarmos nisso, é teu pai.

 — Não posso, não posso perceber — tornou Tania. Apertava a testa com as mãos e fitavaum ponto vago. — Nesta casa passa-se qualquer coisa de terrível, de incompreensível. Tumudaste, Andriusha. Já não és o mesmo... Tu, um homem inteligente e excepcional..., airritares-te com ninharias. Aborreces-te com pequenas coisas em que noutros tempos nemreparavas. Não... não te zangues — prosseguia ela, beijando-lhe as mãos, assustada comas suas próprias palavras. — És inteligente, bom, honesto. Hás-de ser justo para com o pai. Ele é tão bondoso!

 — Ele não é bondoso, mas apenas bem-humorado. Estes tios de opereta, no género do teu

 pai, bem alimentados, de rosto bonacheirão, são figuras típicas à sua maneira e outroraconseguiam divertir-me, tanto nos romances, nas comédias, como na vida real. Hoje, porém, odeio-os. São egoístas até à medula... O que mais me enoja é a sua auto-suficiência, o seu optimismo estomacal, puramente bovino... ou antes, suíno.

Tania sentou-se na cama e poisou a cabeça no travesseiro.

 — Isto é uma tortura! — murmurou. E pelo tom da sua voz notava-se claramente que sesentia extremamente cansada e lhe custava falar. — Desde o Inverno, nem um momentosó de sossego... É horrível, meu Deus! Sofro tanto...

 — Pois claro! Eu sou um Herodes e tu e o teu paizinho os inocentes massacrados. Claro!A cara dele afigurava-se a Tania uma máscara feia e desagradável. Aquela expressão deódio e desprezo não lhe ficava bem. A rapariga observou até que faltava qualquer coisa nacara do marido: desde que cortara o cabelo parecia mudado. Sentiu um estranho desejo delhe dizer qualquer coisa insultante, mas dominou-se a tempo e, aterrada, retirou-se para oseu quarto.

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IX

Kovrin foi nomeado para uma cátedra independente. O seu discurso inaugural estavamarcado para o dia 2 de Dezembro e nesse sentido foi colocado um aviso nos corredoresda Universidade. Mas, quando chegou a data marcada recebeu-se ali um telegrama a

comunicar às autoridades universitárias que o professor não poderia comparecer por motivo de doença.

Subira-lhe sangue à garganta. Vomitou-o e, duas vezes naquele mês, teve forteshemoptises. Sentia-se terrivelmente fraco e caiu numa modorra contínua. A doença, porém, não o assustava, pois sabia que sua mãe, atacada da mesma moléstia, vivera aindadez anos. Os médicos declararam também que o doente não se encontrava em perigo eaconselharam-no a não se preocupar, a fazer uma vida regular e a falar menos.

Em Janeiro, a conferência foi adiada pelo mesmo motivo e em Fevereiro era jádemasiado tarde para começar o curso. Ficou, portanto, resolvido dar-lhe início no

 próximo ano.

Kovrin, nesta altura, não vivia já com Tania, mas sim com outra mulher mais velha doque ele, que o tratava como uma criança. Tornara-se calmo e obediente; submeteu-se de bom grado quando Varvara Nikolayevna, assim se chamava ela, tomou a iniciativa de olevar para a Crimeia, embora soubesse que a mudança de ares nenhum bem lhe faria.

Chegaram a Sebastopol ao fim de tarde e pararam para descansar, tencionando seguir  para Yalta no dia seguinte. Ambos se sentiam fatigados da viagem. Varvara Nikolayevnatomou chá e foi deitar-se. Kovrin, porém, ficou a pé. Antes de sair de casa para a estação,recebera uma carta de Tania que ainda não abrira. A lembrança desta carta causava-lhe

uma estranha agitação. No mais íntimo do ser sentia que o seu casamento com Tania foraum erro. Achava-se satisfeito por se ter finalmente separado dela; porém a recordaçãodaquela mulher que nos últimos tempos parecia haver-se tornado apenas um manequimambulante no qual tudo morrera, excepto os olhos enormes e inteligentes, só despertavanele um sentimento de piedade e de remorso. A letra, no envelope, vinha lembrar-lhe que,dois anos atrás, havia sido culpado de crueldade e de injustiça e que exercera vingançasobre pessoas que nenhuma culpa tinham da vacuidade do seu espírito, da sua solidão, dodesencanto que experimentava perante a vida... Recordou-se de ter feito em pedaços a suadissertação e todos os artigos que escrevera desde que estivera doente, atirando-os pela janela fora e de como os fragmentos de papel haviam sido levados pelo vento, indo poisar nas árvores e nas flores; em cada uma daquelas páginas via apenas uma pretensão

estranha e infundada, uma irritação frívola, a mania da grandeza. E tudo isto produziraem si uma tal impressão, que acabara por escrever um relatório das suas próprias culpas.E contudo, no momento em que 95 últimos pedaços do derradeiro caderno eramarrastados pelo vento, sentiu tamanha amargura e desilusão, que se dirigira à mulher,falando-lhe cruelmente. Céus, como lhe arruinara então a vida! Recordava-se de uma vezem que, querendo martirizá-la, declarara que o pai dela desempenhara no seu casamentoum papel fora do vulgar, chegando mesmo a pedir-lhe para casar com a filha; e Yegor Semionovich, que por acaso ouvira estas palavras, rompera pelo quarto dentro, tão

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consternado que emudecera e não fora capaz de pronunciar qualquer frase, limitando-se a bater com os pés no chão e a soltar uns grunhidos estranhos, como se lhe tivessemcortado a língua. Ao ver o pai naquele estado, Tania pusera-se a gritar que cortava ocoração e caíra por terra sem sentidos. Fora horrível.

A lembrança de todas estas coisas voltava-lhe agora à memória, ao ver aquela letra tãosua conhecida. Dirigiu-se à varanda. O ar estava tépido, calmo, vinha do mar um cheirosalgado, e tanto o luar como as luzes em volta reflectiam-se na superfície da baíamaravilhosa, duma tonalidade impossível de classificar. Era uma suave combinação deazul e verde. Em certos pontos, a água assemelhava-se a sulfato, noutras em vez de águaera luar líquido que enchia o mar. E toda esta harmoniosa combinação de tons exalavatranquilidade e exaltação.

 No andar inferior da hospedaria, por baixo da varanda, as janelas estavam sem dúvidaabertas, pois ouviam-se claramente vozes e risos de mulher. Devia tratar-se duma festa.

Kovrin fez um esforço sobre si mesmo, abriu a carta, entrou no quarto e começou a ler:«O meu pai acaba de morrer. Isto te devo, pois foste tu que o mataste. O nosso pomar estáarruinado, tem sido entregue a mãos estranhas. Acontece aquilo que o meu pobre paitanto receava. Também isto se deve a ti. Odeio-te com toda a minha alma e desejaria quemorresses em breve! Ah, como sofro! O meu coração estala com uma dor intolerável!...Maldito sejas! Julguei-te um ente excepcional, um homem de génio; amava-te e afinalrevelaste ser um louco...»

Kovrin não conseguiu ler mais; rasgou a carta e atirou fora os pedaços... Sentia-setomado de inquietação, quase duma espécie de terror... Do outro lado do biombo dormia

Varvara Nikolayevna. Ouvia-lhe a respiração. No andar de baixo chegavam-lhe as vozese os risos de outras mulheres. Afigurava-se-lhe, porém, que em todo o hotel o único ser humano era ele. O facto de essa pobre e abandonada Tania o haver amaldiçoado na cartacausava-lhe desgosto; e olhava, receoso, para a porta, temendo ver surgir de novo essaforça desconhecida que no espaço de dois anos trouxera tamanha ruína para a sua vida e para a daqueles que lhe eram mais queridos.

Sabia por experiência que, quando os nervos fraquejam, o melhor remédio é o trabalho.Costumava então sentar-se à mesa e concentrar-se num pensamento definido. Retirou da pasta vermelha um caderno que continha o resumo dum pequeno trabalho que tencionavarealizar durante aquela estadia na Crimeia, se acaso se fartasse da inactividade... Sentou-

se à mesa e pôs-se a trabalhar nesse resumo. Afigurou-se-lhe estar a assumir de novo asua antiga personalidade calma, resignada, objectiva. Aquele sumário levou-o a especular sobre a vaidade do mundo. Pensou no alto preço que ela exige em troca dos benefíciosmais mesquinhos e vulgares concedidos ao homem. Para reger uma cadeira de filosofiaantes dos quarenta anos; para ser um vulgar professor; para expor pensamentos comuns, pensamentos estes que lá não eram seus, numa linguagem fraca, pesada e cansativa;numa palavra, para atingir a posição de um medíocre letrado, estudara durante quinzeanos, trabalhara noite e dia, sofrera uma doença grave, fizera um casamento desastrado,

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tornara-se culpado de muitas loucuras e injustiças cuja recordação se tornava para eleuma tortura. Kovrin convencia-se agora completamente de que não passava de ummedíocre e não conseguia conformar-se com esse facto, sabendo perfeitamente que todoo homem se deve dar por satisfeito com aquilo que é.

O sumário que tinha na frente acalmara-o; porém, os restos da carta espalhados pelosobrado desviavam-lhe a atenção. Ergueu-se, apanhou-os e atirou com eles pela janelafora. Mas uma leve brisa que soprava do mar, fê-los voar para o peitoril. Kovrin sentiu-seoutra vez inquieto, quase aterrorizado, e afigurou-se-lhe de novo que, em todo o hotel, oúnico ser vivo era ele... Voltou para a varanda. A baía parecia uma coisa viva e fitava-ocom uma infinidade de olhos brilhantes, azuis escuros, cor de turquesa e de fogo, achamá-lo. Estava um calor sufocante; seria delicioso ir tomar banho, pensou!

De súbito, lá em baixo, ouviu-se um violino a tocar e duas vozes de mulher a cantarem.Era uma melodia muito sua conhecida. Falava duma jovem de imaginação doente queouvira de noite, no jardim, uns sons misteriosos, achando neles uma harmonia e um

encanto incompreensíveis para o resto dos mortais... Kovrin susteve a respiração, ocoração deixou de bater e aquele mágico e estático enlevo, há muito esquecido, vibrou-lhe de novo no peito.

Uma coluna negra e alta, semelhante a um ciclone ou a uma tromba de água, surgiu nacosta, em frente. Corria com incrível rapidez na direcção do hotel; ia-se tornando cadavez mais pequena e Kovrin afastou-se para a deixar passar... O monge, de cabeça grisalhaa descoberto, as sobrancelhas negras, pés descalços e mãos cruzadas no peito, passou nasua frente e deteve-se no meio do quarto.

 — Porque não acreditaste em mim? — inquiriu num tom de censura, olhando com

meiguice para Kovrin. — Se me tivesses dado crédito quando te disse que eras um génio,estes dois últimos anos não teriam sido para ti tão dolorosos e tão inúteis.

Kovrin começava a convencer-se de novo que era um eleito de Deus e um génio;recordou-se nitidamente da sua conversa anterior com o monge e quis replicar. Porém, osangue jorrava-lhe da boca para o peito, e ele, sem saber o que fazia, esfregou nele asmãos até ficar com os punhos vermelhos. Quis gritar por Varvara Nikolayevna quedormia atrás do biombo e, ao fazer um esforço, só conseguiu chamar: «Tania!»

Caiu no chão, agitando as mãos, e de novo gritou:

 — Tania!Chamava por Tania, chamava pelo enorme jardim com as suas flores maravilhosas,chamava pelo parque, pelos pinheiros com as suas raízes nodosas, pelos campos decenteio, chamava pela sua ciência espantosa, pela sua mocidade, pela sua coragem, pelasua alegria, gritava pela vida que fora tão bela. Via no chão, à sua frente, uma grande poça de sangue e sentia-se tão fraco, que não conseguia pronunciar uma só palavra. Noentanto, todo o seu ser se sentia tomado duma alegria infinita. Por baixo da varanda a

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serenata prosseguia e o Monge Negro murmurava-lhe ao ouvido que ele era um génio e,se estava a morrer, era porque o seu corpo frágil e mortal perdera o equilíbrio e já nãoservia para abrigar um génio.

Quando Varvara Nikolayevna acordou e saiu de detrás do biombo, Kovrin estava morto.

Mas no seu rosto estampava-se um sorriso indelével de felicidade.

- Fim -

O bilhete premiado

TchekhovTradução de Aurora Bernardini

Ivan Dmítritch, homem remediado que vivia com a família na base de uns 1200 rublos

 por ano, muito satisfeito com seu destino, certa noite, depois do jantar, sentou-se no sofáe começou a ler o jornal.

 — Esqueci de dar uma olhada no jornal de hoje — disse sua mulher tirando a mesa. — Dê uma espiada para ver se saiu o resultado do sorteio.

 — Saiu — respondeu Ivan Dmítritch —, mas você não penhorou seu bilhete?

 — Não. Paguei os juros na terça.

 — Qual é o número?

 — A série é 9499, bilhete 26.

 — Então... Vejamos... 9499 e 26.

Ivan Dmítritch não acreditava na sorte da loteria e em outra ocasião jamais se daria aotrabalho de verificar a lista. Agora, porém, que não tinha nada para fazer e o jornal estava bem debaixo de seu nariz, percorreu com o dedo de cima para baixo Os números da série.E não é que logo de cara, corno que para zombar de sua descrença, já no alto da segundacoluna apareceu de repente, diante de seus olhos, o numero 9499! Sem conferir o númerodo bilhete nem verificar se tinha lido certo, deixou cair rapidamente o jornal no colo e

corno se alguém lhe tivesse derramado água na barriga, sentiu um friozinho agradável nofundo do estômago. Era urna sensação de coceira terrível e deliciosa ao mesmo tempo.

 — Macha — disse com voz surda -, o 9499 está aqui. A mulher olhou para seu rostosurpreso, assustado, e compreendeu que o marido não estava brincando.

 — 9499? — perguntou ela, empalidecendo e deixando cair na mesa a toalha dobrada.

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 — Sim, sim... Está, de verdade!

 — E o número do bilhete?

 — E mesmo! Ainda falta o número do bilhete. Mas tenha paciência... espere. Então, que

tal? De qualquer modo o número de nossa série está, hem? De qualquer modo,entendeu?...

Ivan Dmítritch olhou para a mulher e sorriu num sorriso largo e apalermado como umacriança a qual tivessem mostrado alguma coisa brilhante. A mulher também sorria. Sentiao mesmo prazer que o marido por ele ter lido somente a série e não ter tido pressa emsaber do número do feliz bilhete. E tão delicioso, tão angustiante consumir-se e espicaçar-se na esperança de uma felicidade possível!

 — A nossa série está — disse Ivan Dmítritch depois de um longo silêncio. — Significaque existe uma possibilidade de termos ganho. Apenas uma possibilidade, mas, apesar de

tudo, ela existe! — Está bem, mas agora, olhe.

 — Espere. Ainda teremos tempo a vontade para nos desiludir. Se esta na segunda colunade cima, quer dizer que o prêmio é de 75 mil. Isso não é dinheiro, é uma força, umcapital! E se de repente eu olhar para a lista e lá estiver o numero 26? Hem? Escute, e setivermos ganho de verdade?

Os cônjuges começaram a dar risada e a olhar demoradamente um para o outro, sem falar nada. A possibilidade da ventura deixara-os obnubilados, e eles não conseguiam sequer 

sonhar, dizer para que precisavam daqueles 75 mil, o que comprariam, para onde iriam.Imaginavam apenas Os números 9499 e 75 mil, desenhavam-nos em sua imaginação, masa idéia da felicidade, que estava tão próxima, parecia não lhes passar pela cabeça.

Ivan Dmítritch andou algumas vezes de um lado para outro com o jornal nas mãos e sóquando a primeira impressão se acalmou é que, aos poucos, começou a sonhar.

 — E se tivermos ganho? — disse. — Seria uma vida nova, uma catástrofe! O bilhete éseu, claro, mas se fosse meu, antes de mais nada, naturalmente eu compraria algumimóvel, algo como uma propriedade, no valor de, digamos, 25 mil; deixaria uns 10 mil para despesas extras: mobília nova... uma viagem... pagamento de dívidas e assim por 

diante. Os 40 mil restantes colocaria no banco, para render juros... — Realmente, uma propriedade seria ótimo — disse a mulher sentando-se e deixandocair os braços no colo. — Nalgum canto, na região de Tula ou de Orlóv... Em primeirolugar, não seria preciso alugar nenhuma casa de campo e, em segundo, não deixa de ser uma renda.

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E na imaginação dele começaram a se aglomerar imagens, uma mais poética e aprazívelque a outra. E em cada uma delas ele se via satisfeito, tranqüilo, saudável e chegou asentir um calorzinho agradável, um calorzão, mesmo! Lá está ele, depois de ter comidouma sopa de legumes fria como o gelo, de barriga para cima na areia quente, na beira dorio ou no jardim mesmo, embaixo de uma tília... Faz calor... O filho e a filha rastejam

 perto dele, rolam na areia ou caçam algum bichinho na relva. Cochila docemente sem pensar em nada e sente com todo o corpo o que significa não ter de ir ao serviço nemhoje, nem amanhã, nem depois. E quando cansar de ficar deitado, pode ir ver cortar ofeno, ou ao bosque, colher cogumelos, ou então ficar observando como os camponeses pescam os peixes com o arrastão. Ao pôr-do-sol, pega um pano, um sabonete e esgueira-se na casa de banho, onde se despe devagarzinho, passa um tempão alisando o peito nucom as palmas das mãos e finalmente cai n'água. Na água, Os peixinhos se agitam emvolta das bolhas turvas de sabão e as plantas aquáticas balançam na corrente. Depois do banho, um chá com creme e rosquinhas doces... À noite, um passeio ou uma partida deuíste com os vizinhos.

 — Sim, seria bom comprar uma propriedade — diz a mulher, também sonhando. Lê-seem seu rosto que está encantada com os próprios pensamentos.

Ivan Dmítritch imagina o outono chuvoso, as noites frias, o veranico. Nessa época é preciso andar um tempão pelo jardim, pela horta, pela margem do rio até sentir bem o frioe depois beber um copo cheinho de vodka junto com cogumelos salgados ou um pepinoem salmoura e pronto — tomar outro trago. As crianças vêm correndo da horta, trazendocenoura e nabo. Sente-se o cheiro fresco da terra... Depois, estirar-se no sofá e folhear uma revista qualquer, sem pressa, até que o sono chegue. Cobrir o rosto com a revista,desabotoar o colete e entregar-se...

Após o veranico o tempo é fechado, ruim. Chove dia e noite. As árvores despidaschoram, o vento é úmido e frio. Os cachorros, os cavalos, as galinhas — não há quem nãoesteja molhado, melancólico, encolhido. Não se tem por onde passear; sair de casa, nemfalar! Passa-se o dia inteiro andando de um canto para outro e olhando tristemente pelas janelas embaçadas. Que coisa enfadonha!

Ivan Dmítritch parou e olhou para a mulher.

 — Sabe de uma coisa, Macha, eu iria é para o estrangeiro.

E ficou pensando como seria bom viajar para o estrangeiro, cruzar o oceano profundo e ir 

 para algum lugar no sul da França, para a Itália... Para a Índia! — Eu também iria para o estrangeiro correndo — disse a mulher. — Mas olhe o númerodo bilhete!

 — Espere! Daqui a pouco...

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Andou pelo quarto e continuou a pensar. E se a mulher fosse realmente para oestrangeiro? Viajar é bom sozinho, ou em companhia de mulheres despreocupadas, semcompromisso, que vivem o momento presente, e não com aquelas que ficam o tempotodo pensando e falando em crianças, suspirando, tremendo com medo de gastar umcopeque que seja. Ivan Dmítritch imaginou sua mulher no vagão, cheia de embrulhos,

cestas, pacotes: suspira e queixa-se que a viagem lhe deu dor de cabeça, que gastou muitodinheiro. É preciso correr na estação atrás de água quente, sanduíches, água potável.Almoçar ela não pode, custa caro...

“Tenho certeza que ela iria controlar cada copeque”, pensou ele, olhando para a mulher.“O bilhete é dela, não é meu! E pra que ela precisa ir para o estrangeiro! O que é que lhefalta ver lá de importante? Já sei. Ficará fechada o tempo todo no hotel e não me deixarádesgrudar dela um só momento.”

E pela primeira vez em sua vida reparou que a mulher tinha envelhecido, ficara feia echeirava a cozinha, enquanto ele ainda era moço, saudável, viçoso, bom para se casar 

uma segunda vez.“Claro, tudo isso é bobagem, é besteira”, pensou. “Mas... para que iria ela ao estrangeiro?O que ela aproveitaria lá? Mas iria mesmo... Imagino. Para ela Nápoles ou Klin iriam ser a mesma coisa. Ficaria me atormentando e eu dependeria dela. Tenho certeza de que nahora em que recebesse o dinheiro, iria trancá-lo a sete chaves, como faz o mulherio... Iriaescondê-lo de mim... Aos parentes dela tudo, mas para mim, contaria cada copeque.”

Ivan Dmítritch ficou pensando na parentela. Logo que todos esses irmãozinhos,irmãzinhas, titias, titios soubessem do ganho, viriam se arrastando, bancando Osmendigos, sorrindo untuosamente, bajulando. Eta gentinha sórdida! Se lhe oferecem a

mão, pegam o braço. Se não lhe oferecem, amaldiçoam, rogam pragas, desejam todo tipode desgraça.

Ivan Dmítritch lembrou-se de seus parentes e seus rostos, que ele sempre olhara comindiferença, pareciam-lhe agora odiosos, repulsivos.

“São uns canalhas”, ele pensou.

E o rosto da mulher começou também a parecer-lhe odioso, repulsivo. Em seu íntimocomeçou a ferver um ressentimento contra ela e ele pensou com alegria perversa: “Nãoentende nada de dinheiro, por isso é avarenta. Se ganhasse, mal me daria cem rublos, e o

resto iria direto para o cofre”.Já olhava agora para a mulher com ódio e não mais com um sorriso. Ela também olhava para ele com maldade e com ódio. Ela tinha seus próprios sonhos dourados, seus pianos,suas idéias e sabia perfeitamente no que estava pensando o marido. Sabia que seria o primeiro a avançar no que ela teria ganho.

“É bom sonhar por conta dos outros!”, dizia o olhar dela. “Não, você não conseguirá!”.

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O marido compreendeu seu olhar: o ódio ferveu-lhe no peito e para decepcionar suamulher e fazer-lhe mal olhou rápido na quarta página do jornal e anunciou solene:

 — Série 9499, bilhete 46! Não 26!

A esperança e o ódio desapareceram ambos de repente e, no mesmo instante, IvanDmítritch e sua mulher acharam os aposentos escuros, pequenos e abafados, e o jantar que tinham acabado de comer pesado e insosso, e as noites longas e enfadonhas.

 — Só o diabo sabe — disse Ivan Dmítritch, começando a implicar. — Por todo lado queeu pise, só há papéis, migalhas, casquinhas, sei lá. Será que nunca varreram essesquartos? Terei de ir embora de casa, o diabo que me carregue. Vou sair e me enforcar na primeira árvore.

 — Fim — 

A feiticeira

Tchekhov

Era quase meia-noite. Deitado em um imenso leito, na casa do sacristão, o chantre SaveliGuikine não dormia, se bem que tivesse o hábito de dormir cedo, como as galinhas. Sob acoberta imunda, feita de restos de chita de todas as cores, apareciam seus ásperos cabelosruivos. Do outro lado da coberta, saíam dois pés enormes, que havia muito não eramlavados. Escutava...

A casa do sacristão era cercada pelo muro curial e sua única janela dava para o campo,onde se travava uma verdadeira guerra. Era difícil perceber o que fazia a imensaalgazarra; ou notar pela perda de quem a natureza punha tudo de pernas para o ar; mas, a julgar pelo seu esbravejar incessante e sinistro, que repercutia violentamente, alguémestava em perigo... Uma força vitoriosa corria pelos campos; danificava a floresta e ostelhados da igreja; batia furiosamente nas janelas; varria; rasgava — e qualquer coisavencida urrava e chorava.

O gemido lamuriento ouvia-se, ora além da janela, ora no telhado, ora descendo pelachaminé — e não era um apelo de socorro que se sentia nele, mas angustiada consciênciade que não havia mais salvação, de que era tarde demais...

Os montículos de neve estavam cobertos de uma fina casca de gelo e lágrimas congeladastremiam sobre eles e sobre as árvores. Pelos caminhos, os atalhos desafogavam um sucode lama e de neve fundida. Era o degelo. Mas, através da noite opaca, o céu não o percebia e enviava, com toda a sua força, novos flocos de neve. O vento rodopiava comoum homem ébrio e sem permitir à neve tocar a terra fazia-a voar, nas trevas, à sua mercê.

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Guikine ouvia o atordoante concerto e franzia o rosto. Sabia, ou pelo menos julgavaadivinhar, a que levava toda essa algazarra e de quem ela era obra...

 — Eu sei — dizia em um rosnar, ameaçando alguém com o dedo, sob a coberta. — Seitudo!

Perto da janela, sentada em um escabelo, estava sua mulher Raissa Nilovna. Sobre outroescabelo, uma lâmpada de lata, que, como se estivesse intimidada e incerta de suasforças, derramava uma tênue luz vacilante sobre seus largos ombros, sobre os belos eapetitosos relevos de seu corpo, sobre suas tranças espessas, que tocavam o solo.

Costurava sacos de grossa estopa. Suas mãos corriam ligeiras, mas todo seu corpo, seusolhos, suas sobrancelhas, seus lábios carnudos, seu longo pescoço, imobilizados pelotrabalho monótono e mecânico, pareciam dormir. De quando em quando, erguia a cabeça para relaxar o corpo fatigado e olhar furtivamente a janela, além da qual se desencadeavaa tempestade. Mas, logo voltava a debruçar-se sobre o grosso tecido. Nem desejos, nem

tristeza, nem alegria — nada transparecia em seu rosto de nariz arrebitado e facesmarcadas de covinhas. Assim como nada expressa uma bela fonte, quando não está jorrando.

Ao terminar um saco, atirou-o ao chão e, após espreguiçar-se, com visível prazer, detevesobre a janela seu olhar fixo e terno: pelos vidros, deslizavam lágrimas e a brancura dosefêmeros flocos de neve que, tombando, se fundiam.

 — Vem deitar-te — resmungou o chantre.

 — A mulher não respondeu. Mas, subitamente, seus cílios começaram a mover-se a

atenção brilhou em seus olhos. Saveli que, sob as cobertas, vigiava sem cessar asexpressões de seu rosto, ergueu a cabeça e perguntou:

 — Que há?

Raissa respondeu, docemente:

 — Nada. Parece que está chegando alguém...

Com as mãos e com os pés, Guikine atirou longe as cobertas, ajoelhou-se na cama e fitoua mulher, com expressão aparvalhada. A luz tímida de pequena lâmpada iluminou a face

 peluda e crestada do chantre e deslizou por sua áspera cabeça. — Estás ouvindo? — perguntou à mulher.

Através do ulular contínuo da tormenta, ele apreendeu um som de campainha muito fino,apenas perceptível, semelhante ao zumbido de um mosquito, que se zanga quando éimpedido de pousar em um rosto.

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 — É o correio — resmungou Saveli, sentando-se sobre as pernas.

A três verstas da igreja passava a mala postal. Quando o vento procedia do lado daestrada, os habitantes da casa ouviam as campainhas. A mulher do chantre suspirou:

 — Senhor! Como se pode viajar, com um tempo desses...

 — Questão de dever... Queiram ou não, é preciso trabalhar...

O som pairou no ar e extinguiu-se.

 — Já se foi — disse Saveli, voltando a deitar-se.

Mas mal teve tempo de puxar as cobertas: logo o som nítido da campainha novamente aseus ouvidos. O chantre, inquieto, olhou para a mulher, saltou da cama, sacudindo-setodo, pôs-se a andar em torno da lareira. A campainha ainda ressoou um pouco, depois

silenciou, como se tivesse sido arrancada.

O chantre murmurou, detendo-se, olhando a mulher, os olhos meio fechados:

 — Não se ouve mais nada...

Exatamente nesse momento o vento chicoteou a janela e chegou com o som fino eagudo... Saveli empalideceu, tossiu e arrastou, pelo chão, seus pés nus.

 — O correio perdeu sua rota — disse, com voz rouca, olhando colericamente a mulher — estás ouvindo? A mala postal extraviou-se. Eu sei... Eu sei... Penas que não

compreendendo? Sei tudo! Que o diabo te carregue!

A mulher perguntou, suavemente, sem desviar os olhos da janela:

 — Que sabes?

 — Sei que és tu que fazes tudo isso, mulher diabólica. É obra tua... Esta tormenta, ocorreio extraviado... és tu a culpada... és tu!

 — Estás louco, ou és imbecil — replicou tranqüilamente a mulher.

 — Há muito tempo venho notando... Desde o dia de nosso casamento, senti que há, emtuas veias, sangue de cadela...

 — Ora! — exclamou Raissa, surpresa, erguendo os ombros e benzendo-se. — É melhor que faças o sinal da Cruz, idiota!

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 — És uma feiticeira, sem remédio — disse em continuação Saveli, voz surda e dolente,assoando-se rapidamente em sua própria camisa. — Embora sejas minha mulher e decondição eclesiástica, direi em confissão o que és...

 — É meu dever. Senhor, protege-me e salva-me! O ano passado, no dia do profeta Daniel

e dos três adolescentes, houve também uma tempestade de neve... e que aconteceu? Umoperário veio ter aqui, para aquecer-se. Depois, no dia de Santo Aleixo, o Homem-de-Deus, o rio degelou. O chefe de polícia veio... conversou a noite toda contigo, o maldito;e, pela manhã, quando saiu, tinha olheiras e as faces cavadas. Hein? Que dizes disso?Também por duas vezes, na festa do Salvador, houve tempestades e, nessas ocasiões, umcaçador veio passar a noite. Vi tudo! Que o diabo te carregue! Vi tudo! Ah! Agora ficastemais vermelha do que uma lagosta, vês?

 — Não viste nada disso...

 — Tenho certeza! Vi, sim. E, neste inverno, antes do Natal, no dia dos Dez Mártires de

Creta, lembra-te? O escrivão do marechal perdeu-se, não achou o caminho e veio cair aqui, o cão... E logo por quem, te enfeitiçaste? Por um reles escrivão! Gastar tempo comuma coisa dessas! Um aborto do diabo, um, ranhoso que não enxerga um palmo acima dochão, com a boca cheia de borbulhas e o pescoço torto... Se, ao menos, fosse belo... Mas énojento, o cachorro!

O chantre tomou fôlego, enxugou os lábios e ficou atento. Não mais se ouvia acampainha, mas o vento bateu no telhado e a janela vibrou, novamente. Saveli continuou:

 — E, agora, a coisa repete-se. Não é por acaso que o correio se extravia! Podes cuspir-mena cara, se não é a ti que ele procura! Ah! O diabo conhece bem suas tarefas... vai

extraviá-lo e o trará até aqui. Eu seei! Eu vejo! Não podes mais ocultar-te de mim, guizodo diabo, monstro de luxúria! Adivinhei teus pensamentos, desde que a tormentacomeçou.

 — És um imbecil! Então achas que sou eu quem fabrica o mau tempo?

 — Sim, tenho certeza. Podes rir! Penas que não tomo nota? Sempre que teu sangue ferve,faz logo mau tempo e, a cada tormenta, surge-nos um cretino qualquer... Isso acontecetodas as vezes... Logo, és tu a culpada!

Para ser mais persuasivo, o chantre levou o dedo à testa, fechou o olho esquerdo e

 prosseguiu, arrastando a voz: — Ah! Loucura e danação de Judas! Se fosses realmente uma mulher e não umafeiticeira, devias indagar se esses homens são um operário, ou um caçador, ou umescrivão e não o próprio demônio, disfarçado em suas figuras. Hein? Devias indagar, nãodevias?

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 — Como és cretino, Saveli — disse a mulher, suspirando e olhando o marido com piedade. — Quando meu pai morava aqui, muitas pessoas vinham procurá-lo, para curar as febres... Das aldeias, dos lugarejos, das fazendas dos armênios... Quase todos os dias,sem que fossem tomados por diabos. E agora, se aparece alguém, uma vez por ano queseja, para abrigar-se do mau tempo, ficas logo pensando em feitiçarias, imbecil que és. E

imediatamente tua cabeça se enche de toda espécie de maus pensamentos...

A lógica da mulher abalou um pouco Saveli. Afastou os pés nus, baixou a cabeça erefletiu. Não estava ainda firmemente convencido quanto a suas suspeitas; e o tomsincero e tranqüilo da mulher o desarmou completamente. No entanto, depois de pensar um pouco, sacudiu a cabeça e disse:

 — É que nunca vêm velhos, ou aleijados: são sempre homens jovens, os que pedem para passar a noite... Por quê? Se ao menos buscassem apenas aquecer-se... mas não! Fazem o jogo do diabo... Não, mulher, não existem criaturas mais ardilosas no mundo do que as daespécie feminina... Do verdadeiro espírito, meu Deus, têm menos do que um estorninho,

mas de sua malícia diabólica que a Rainha dos Céus nos salve! Escuta a campainha docorreio! Aconteceu logo que a borrasca começou... Adivinhei teus pensamentos... Fizesteas tuas feitiçarias, teceste as tuas teias, aranha!

 — Mas que razões trens para me maltratares assim, desgraçado? — disse Raissa, perdendo a paciência. — Por que te colas a mim, resina?

 — Maltrato-te porque, se suceder alguma coisa esta noite... Deus nos preserve disso! ...irei amanhã mesmo, de madrugada, a Diadkovo, procurar o padre Nicodime, para lhecontar tudo. Direi o que se está passando. Assim: perdoe-me generosamente, padre, nãotenho culpa, mas minha mulher é feiticeira. Por que digo? Por quê? O senhor quer saber 

 por quê? Por isso, por aquilo... Então, pobre de ti, mulher! Serás punida, não só no JuízoFinal, mas aqui mesmo, neste mundo, também! Para isso existem os rituais...

Subitamente, bateram à janela. Tão violentamente e de forma tão inusitada, que Saveliempalideceu e encolheu-se de medo. A mulher sobressaltou-se, empalidecendo, também.Procedente de fora, soou uma voz grossa, profunda e trêmula:

 — Em nome de Deus, deixem-nos entrar, para nos aquecermos um pouco! Não ouvem?Por piedade, abram! Estamos perdidos...

 — Quem sois? — perguntou a mulher do chantre, receosa de abrir a janela.

 — Somos da mala postal — respondeu uma outra voz.

 — Nunca fazes tuas feitiçarias em vão — disse Saveli, num gesto desanimado. — Jáchegaram... Eu tenho razão, vês? Mas cuidado contigo!

O chantre deu dois saltos, diante da cama, atirou-se sobre o colchão e, fungandoraivosamente, virou o rosto para a parede. Logo, uma rajada fria bateu-lhe nas costas: a

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 porta rangeu e, no umbral, apareceu um vulto alto, coberto de neve. Atrás dele, um outrovulto, também todo branco...

 — Devo trazer os sacos? — perguntou o segundo vulto, o da voz rouca.

 — Não. Podem ficar lá.

Dito isso, o primeiro homem começou a desabotoar sua capa de montanha e, antesmesmo de terminar, arrancou-a, juntamente como gorro, atirando-a, irritado, para pertoda lareira. Depois, despiu, com dificuldade, o casaco e atirou-o no mesmo lugar do mantoe pôs-se a andar pela sala, sem lembrar-se de dizer “boa noite”.

Era um jovem empregado postal, metido em uma horrível túnica de uniforme, bastantegasta, e em botas surradas e sujas. Reaquecido pelo movimento, sentou-se diante damesa, estendeu os pés enlameados sobre os sacos e apoiou a cabeça nas mãos. Seu rosto branco, com manchas vermelhas, guardava ainda a marca dos sofrimentos e das

dificuldades que enfrentara. Crispado, expressão angustiada, a neve liqüefazendo-se emsuas sobrancelhas, em seu bigode, em sua barba bem aparada e arredondada, era, apesar de tudo, um belo rosto.

 — Que vida de cão! — falou numa rosnadela, olhando as paredes, talvez sem acreditar,ainda, que estivesse em abrigo aquecido. — Quase passamos sem ver... não fosse esta luzna janela, nem sei o que nos teria acontecido. E só o Diabo sabe quando tudo isto passará... Não há sentido nesta vida cachorra qu4 levamos!

 — Onde estamos? — perguntou, olhando em torno.

 — Procurava informar-se, baixando a voz, fixando interrogativamente a mulher dochantre.

 — Próximo a Gouliaevo, na propriedade do General Kalinovski... — respondeu Raissa,tocada e corando.

 — Ouviste, Stepane? — disse ao companheiro, retido na porta pela largura do saco decouro que trazia aos ombros. — Estamos em Gouliaevo.

 — Sim? Tão longe, ainda?

Deixando escorregar as palavras, com um suspiro rouco e entrecortado, o cocheiro saiu e, pouco depois, reapareceu com um segundo saco, bem menor do que o primeiro. Saiumais uma vez e trouxe o sabre do correio, pendente de uma larga correia, muito parecidocomo longo gládio achatado que os artistas populares colocam nas mãos da imagem deJudite, perto do leito de Holofernes. Depois de enfileirar os sacos ao longo da parede,sentou-se e acendeu o cachimbo.

 — Talvez queiram tomar um pouco de chá — disse a mulher do chantre.

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 — Não se trata de tomar chá — respondeu o homem, de cara fechada. — Trata-se de nosaquecermos um pouco e partir o mais depressa possível: não podemos chegar atrasados para o trem da mala postal. Descansaremos uns dez minutos e seguiremos viagem. Sóqueremos que tenha a bondade de nos indicar o caminho.

A mulher suspirou:

 — Parece castigo de Deus, um tempo assim...

 — Sim...Talvez seja... Quem é a senhora?

 — Nós? Somos daqui mesmo... adidos à igreja... Pertencemos ao clero... Vejam: meumarido já está deitado. Levante-se, Saveli! Vem dizer boa noite... Antes, existia aqui uma paróquia. Mas foi suprimida há um ano e meio. Quando os chefes viviam aqui, vinhamuita gente... é natural. Bem que valia a pena termos um padre... Mas agora, faça idéia...como poderia viver aqui um clérigo, coma aldeia mais próxima, Markovka, a cinco

verstas? Saveli, no momento, não tem cargo. Está substituindo o zelador... foi incumbidode tomar conta da igreja.

Então, o homem ficou sabendo que, se Saveli tivesse ido falar à mulher do general eescrito uma carta ao arcebispo, certamente lhe teriam dado um bom lugar. Mas não ofizera porque era um sujeito preguiçoso e selvagem.

 — Se bem que, servindo ele de zelador, continuamos a fazer parte do clero — esclareceu,ainda, a mulher do chantre.

 — E de que vivem?

 — Há o prado e o jardim da igreja. Mas isso não rende grande coisa — disse, suspirando,a mulher. — O Padre Nicodime, de Diadkovo, que tem olho grande, acha que, só porquediz missa aqui nos dias de São Nicolau do Verão e de São Nicolau do Inverno, tem odireito de pegar quase tudo para ele. E não há ninguém que nos sustente...

 — Mentes — gritou Saveli. — O Padre Nicodime é uma santa alma, uma flâmula daigreja. O que ele pega é regulamentar.

O hóspede sorriu:

 — Como teu homem é zangado! Estás casada há muito tempo? — Há quatro anos... contando do Domingo do Perdão. Papai era chantre, aqui;... quandosua hora se aproximou, dirigiu-se ao consistório, pedindo que seu lugar ficasse para mim,até que nomeassem um chantre solteiro e eu me casasse com ele. Foi assim que mecasei...

O correio brincou:

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 — Então de uma só cajadada mataste dois coelhos, hein? Pegaste o lugar e pegaste amulher — disse a Saveli, que se conservava silencioso e de costas.

Saveli agitou nervosamente o pé e reaproximou-se da parede. O hóspede levantou-se,espreguiçou-se e sentou-se sobre um dos sacos. Ficou um instante pensativo. Depois,

apalpou o saco em que se sentara, examinando-o, mudou o sabre de lugar e espichou-se,com uma das pernas pendentes.

 — Vida de cão! — resmungou, levando as mãos à cabeça e fechando os olhos. — Nãodesejo uma vida dessas ao mais feroz dos tártaros.

Logo, veio o silêncio. Ouvia-se Saveli fungar, enquanto o correio, adormecido, respiravalenta e tranqüilamente, deixando escapar, a cada exalação, um ruído cheio e prolongado.Dir-s4e-ia, em certos momentos, que uma pequena roda, mal lubrificada, rangia em suagarganta. Sua perna, trêmula, arranhava o saco.

Saveli voltou-se, sob as cobertas, e olhou lentamente em derredor. Sua mulher, sentada noescabelo, o rosto entre as mãos, contemplava o hóspede; e seus olhos tinham a fixidezdos seres dominados pelo espanto e pelo medo.

Irritado, grunhiu:

 — Vamos! Que estás olhando?

 — Que te importa? Continua deitado e deixa-me em paz — respondeu a mulher, semdesviar o olhar da cabeça loura do jovem.

Saveli, furioso, suspirou profundamente e, de novo, virou-se para a parede. Instantesdepois, inquieto, ajoelhou-se na cama e, apoiado no travesseiro, observou a mulher, deesguelha. Raissa, imóvel, continuava a contemplar o viajante: suas faces estavam mais pálidas e em seu olhar brilhava uma estranha luz. O chantre gemeu, deixou-se escorregar da cama e, aproximando-se do homem adormecido, colocou-lhe um lenço no rosto.

 — Por que estás fazendo isto? — perguntou a mulher.

 — Para que a luz não lhe bata nos olhos.

 — Então, o melhor é apagar tudo.

Saveli fixou-a, cheio de suspeitas, esticou os lábios em direção à lâmpada... Deteve-se, porém, e cruzou os braços, exclamando:

 — É uma astúcia diabólica! Não existem criaturas mais ardilosas do que as da espéciefeminina!...

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 — Ah! Basta, demônio de batina — sibilou a mulher, crispada de raiva. — Não perdes por esperar 

E, acomodando-se melhor, recomeçou sua contemplação ao jovem hóspede.

 Não importava que seu rosto estivesse coberto: isso a interessava muito menos do que avisão geral, o conjunto, a novidade e a juventude do homem adormecido. Um peito largoe forte; belas mãos, finas e musculosas; pernas rígidas e muito mais atraentes do que asgâmbias de Saveli: não havia comparação...

 — Posso ser o diabo de batina — disse Saveli, ao cabo de alguns instantes. — Mas elesnão têm o direito de vir dormir aqui. Sim... Não têm o direito! O serviço deles e dever deEstado... e nós seremos responsáveis, também, se permitirmos que percam o horário.Quando se transporta a mala postal, deve-se levá-la a seu destino, Não se tem o direito dedormir. Ei! Tu, aí! — gritou. — Tu, aí, cocheiro! Como te chamas? Queres que eu teconduza? Levanta-te. Não está certo dormir, quando se tem a responsabilidade da mala

 postal...!Perdeu a paciência, precipitou-se para o correio e puxou-o pela manga:

 — Ei! Doutores! Enquanto se pode andar, o dever é caminhar. Se não se pode, tanto pior!O que não é certo é ficar dormindo...

O jovem abriu os olhos, esticou o corpo, sentou-se sobre o leito9 improvisado, correu oolhar ainda perturbado pelo quarto e deitou-se, novamente. Saveli puxou-o mais ima vez pela manga, martelando as palavras:

 — Afinal, quando pretendes partir? A mala postal existe para chegar a tempo, nãocompreendes? Vou mostrar-te o caminho.

O jovem entreabriu os olhos. Aquecido, prostrado, amolecido pela doçura do primeirosono, não totalmente desperto ainda, via, como através de um véu, o colo branco, o olhar fixo e úmido de Raissa: fechou os olhos e sorriu, como se tudo aquilo não passasse de umsonho. Ouviu uma doce voz de mulher:

 — Como será possível viajar, com um tempo desses? Fariam melhor dormindo o quantoquiserem...

 — E a mala? Quem levará a mala? Tu a levarás?Saveli falava, alarmado. O hóspede abriu os olhos, contemplou as vivas covinhas damulher: lembrou-se do local em que se encontrava e compreendeu. A idéia de sair, pelasgélidas trevas, arrepiou-o da cabeça aos pés. Franziu a testa. Bocejou:

 — Bem que ainda podíamos ficar, por uns cinco minutos. De qualquer maneira, jáchegaremos atrasados...

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Ouviu-se a voz do cocheiro, à porta:

 — Talvez ainda a gente chegue a tempo. Com um tempo mau assim o trem deve estar atrasado.

O jovem ergueu-se, espreguiçou-se e, sem pressa, vestiu o casaco. Saveli, vendo que oshomens do correio se preparavam para partir, relinchou de satisfação.

 — Ajuda-me aqui! — gritou-lhe o cocheiro, procurando levantar um grande saco.

O chantre correu em seu auxílio e arrastou os sacos para o pátio. O outro empregado público começou a desdobrar seu grosso manto. Raissa olhava seus olhos, como se procurasse sondar-lhe a alma...

 — Pelo menos, deviam tomar um pouco de chá...

 — Bem que eu gostaria — respondeu o jovem. — Mas já está tudo preparado... Éverdade que, de qualquer maneira, já estamos atrasados...

 — Então fique — sussurrou a mulher, olhos baixos, tocando-lhe a manga...

 — O jovem conseguiu, enfim, desatar o nó do manto e, indeciso, colocou-o, dobrado, no braço. Sentia-se arder, perto da jovem mulher.

 — Que lindo pescoço!

Acariciou-lhe levemente o pescoço, com a ponta dos dedos. Sentindo falta de resistência,

tocou suas mãos, seu colo, seus ombros.

 — Como és bela!

 — Fique mais um pouco, para tomar chá...

Ouviu-se, de fora, a voz do cocheiro:

 — Que está fazendo com este saco, seu cara de arroz cozido com melaço? Ponhaatravessado!

 — Fique — dizia a mulher. — Veja como a tempestade está rugindo.

Ainda não totalmente desperto, não podendo resistir ao apelo amolecedor de um sonosadio, o jovem foi subitamente tomada do desejo da mulher próxima, esquecendo ossacos de cartas, os trens-correios, todas as coisas do mundo...Assustado, como se quisessefugir, ou ocultar-se, voltou as costas à porta, abraçou a mulher pela cintura e já sedebruçava sobre a pequena lâmpada, par4a extingui-la, quando ouviu ruído de botas no

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corredor e o cocheiro apareceu. Atrás dele, Saveli olhava-o Deixou cair rapidamente os braços, hesitante.

 — Tudo pronto — disse o cocheiro.

Por um segundo, ficou imóvel. Depois, sacudiu a cabeça e, completamente desperto,seguiu o cocheiro. Raissa ficou só.

 — Vamos! Sobe! Mostra-nos o caminho! — ouviu ela.

Uma campainha começou a tocar, preguiçosamente. Depois, outra... e mais outra... e ossons, encadeando-se, suavemente, distanciaram-se.

Quando, pouco a pouco, extinguiram-se, a mulher do chantre ergueu-se e pôs-se a andar nervosamente. Muito pálida, de início, enrubesceu logo. Seu rosto convulsionou-se deódio. A respiração ofegava. Os olhos brilharam, num lampejo de irritação selvagem e

cruel. Andando como se estivesse presa em uma gaiola, lembrava um tigre espicaçadocom ferro em brasa. Deteve-se um instante, lançando um rápido olhar sobre o alojamento.O leito ocupava quase a metade do compartimento: alongava-se, na extensão da parede,com seu colchão sujo, seus travesseiros duros e cinzentos, suas cobertas feitas de trapos.Formava um amontoado informe, muito semelhante à cara do chantre, quando ele cediaao desejo de se empomadar. Do leito até a porta que dava para o corredor frio, avultava alareira, com os seus esfregões e suas panelas suspensas. Tudo, sem excluir Saveli,apresentava-se no superlativo da imundície, dentro do ambiente enfumaçado, no qual parecia estranho ver-se o pescoço alvo e a pele macia e fina da mulher.

Raissa correu à cama, estendeu a mão, como se quisesse dispersar, pisar aos pés, reduzir a

 pó tudo aquilo. Mas, apavorada ao contato de toda aquela imundície, recuou e recomeçoua andar.

Quando, duas horas depois, Saveli voltou, coberto de neve e extenuado, já a encontroudeitada. Seus olhos permaneciam fechados, mas, pela leve palpitação do rosto, o chantreadivinhou que não dormia. Não pôde privar-se de feri-la, de ofendê-la, embora em todo otrajeto de volta tivesse prometido a si próprio nada dizer-lhe, até o dia seguinte, e nãotocá-la:

 — De nada serviram tuas feitiçarias... Ele se foi!

Falava com uma ironia malévola. Raissa, no entanto, calava-se. Somente o queixo tremia.Saveli despiu-se lentamente, passou por cima do corpo da mulher e deitou-se bem junto à parede. Encolheu-se, murmurando:

 — Explicarei tudo amanhã ao Padre Nicodime... Contarei a mulher que tu és!

Ela se voltou bruscamente. Seus olhos faiscavam.

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 — Podes ficar com a casa. Mas vais procurar outra mulher na floresta. Não sou a mulher que mereces. Ah! Como seria bom que estourasses de uma vez! Que grosseiro, quevagabundo caiu-me em cima! Deus me perdoe... é o que sinto...

 — Vamos, vamos... Dorme!

 — Sou muito desgraçada — disse, soluçando, a mulher. — Se não tivesses aparecido,talvez eu casasse com um negociante, ou com um nobre. Se meu marido fosse outro, eu oamaria agora. Por que a neve não te sepultou de uma vez? Por que não ficaste congeladona estrada, Herodes?

Chorou longamente. Por fim, suspirou bem fundo e acalmou-se. A tormenta crescia cadavez mais, além da janela. Na lareira, na chaminé, do outro lado das paredes, alguma coisachorava; e a Saveli parecia que esse choro era dentro dele próprio e perto de seusouvidos. Naquela noite, ficou definitivamente convencido da verdade de suas suspeitasem relação à mulher. Não duvidava mais de que, com a ajuda do maligno, ela dispusesse

das tempestades e das tróicas do correio. Não duvidava. E, como para aumentar seusofrimento, esse poder sobrenatural, esse mistério e essa força selvagem davam à mulher,deitada a seu lado, um fascínio especial, incompreensível mesmo, que nunca perceberaantes. Sem que se desse conta, ele a poetizara e parecia-lhe que se tornava agora aindamais branca, mais suave, mais distante.

 — Feiticeira! — exclamou, com raiva. — Fora, sua nojenta!

 No entanto, na suposição de que, já acalmada, ela começasse a respirar regularmente,tocou-lhe a nunca com os dedos. E tomou nas mãos sua pesada trança. Ela não o sentiu.Mais audacioso, acariciou-lhe o pescoço.

 — Deixa-me! — gritou a mulher. E, com os cotovelos, bateu-lhe tão fortemente no nariz,que centelhas cegaram seus olhos, por instantes.

A dor do chantre acalmou-se logo. Mas seu suplício continuou...

 — Fim — 

 Nota: Cara de arroz cozido com melaço. O nome pitoresco que o cocheiro dá, pejorativamente, a Saveli, vem de os sacerdotes comerem com freqüência o arroz, na

antiga Rússia. O costume era preparar um prato de arroz, temperado com mel ou passas,durante os enterros e os serviços fúnebres, e destiná-lo aos presentes, deixando-se o querestasse para o clero.

A mulher do farmacêutico

Tchekhov

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A cidadezinha de B., composta de duas ou três ruas tortas, dorme um sono profundo. Noar parado tudo é silêncio. Ouve-se apenas, ao longe, decerto além da cidade próxima, otenorzinho ralo e rouco dos latidos de um cão. Aproxima-se a madrugada.

Há muito tempo que tudo dorme. Só não dorme a jovem esposa do farmacêutico.

Tchornomordik, dono da farmácia de B. Por três vezes ela já se deitou — mas o sonoteima em não vir — e não se sabe porquê. Ela sentou-se junto à janela aberta, decamisola, e olha para a rua. Está com calor, aborrecida, entediada — tão entediada quetem até vontade de chorar, mas por que — também não se sabe. Sente um bolo esquisitono peito, querendo subir para a garganta a toda hora... Atrás, a alguns passos da mulher,aconchegado junto à parede, ronca pacificamente o próprio Tchornomordik. Uma pulgavoraz grudou-se-lhe ao nariz, mas ele não a sente, e até sorri, porque sonha que na cidadetodos estão tossindo e compram-lhe incessantemente “Gotas do Rei da Dinamarca”.Agora não é possível acordá-lo nem com picadas, nem com canhões, nem com carinhos.

A farmácia fica quase na beira da cidade, de modo que a mulher do farmacêutico pode

ver campina, bem longe. Ela vê como pouco a pouco clareia a borda oriental do céu, edepois fica rubra, como que do clarão de um grande incêndio. De repente, de trás de umatouceira distante, aparece uma grande lua de cara larga. Está vermelha (em geral a lua,quando sai de trás dos arbustos, costuma estar, não se sabe porque, horrivelmenteencabulada).

Súbito, no silêncio noturno, ressoam passos e o tinir de esporas. Ouvem-se vozes.

“Devem ser oficiais voltando do distrito policial, para o acampamento” — pensa amulher do farmacêutico.

Pouco depois, aparecem dois vultos vestidos com as túnicas brancas de oficiais; umgrande e gordo, o outro menor e mais esguio... Preguiçosamente arrastando os pés, elesvêm andando ao longo da cerca, a conversar em voz alta. Chegando até a farmácia, osdois vultos começam a andar ainda mais devagar e olham para as janelas.

 — Cheira à farmácia... — diz o magro. — E é uma farmácia mesmo! Ah, já me lembro...estive aqui na semana passada, comprei óleo de rícino. De um farmacêutico de cara azedae queixada de burro. E que queixada, homem! Foi com uma dessas que Sansão matava osfilisteus.

 — Hum... — diz o gordo com voz de baixo. — Dorme a botica. E o boticário também

dorme. Aqui, Obtiossov, existe uma boticária bonitinha. — Eu a vi. Ela me agradou muito... Diga-me, doutor, será possível ela amar essaqueixada de burro? Será possível?

 — Não, decerto ela não o ama — suspira o doutor com expressão de quem tem pena dofarmacêutico. — E agora, dorme a belezinha atrás da janelinha! Hein, Obtiossov?Descobriu-se com o calor... a boquinha entreaberta... e a perninha pende para fora da

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cama... Vai ver, o burro do farmacêutico nem entende nada desta riqueza... Para ele,quiçá, uma mulher ou uma garrafa de ácido carbólico, é a mesma coisa!

 — Sabe duma coisa, doutor? — diz o oficial, parando. — Vamos entrar na farmácia ecomprar qualquer coisa. Quem sabe, vai dar pra ver a “farmacêutica”.

 — Que idéia! No meio da noite!

 — E daí? Então eles não têm obrigação de atender também à noite? Vamos, amigão!

 — Vá lá...

A mulher do farmacêutico, escondida atrás da cortina, ouve a campainha esganiçada.Com um rápido olhar para o marido, que ronca como dantes e sorri beatificamente, elaenfia o vestido, põe os sapatos nos pés descalços e corre para a farmácia.

Atrás da porta de vidro percebem-se duas sombras. A mulher do farmacêutico aviva ofogo da lâmpada e corre para abrir a porta, e já não está tão aborrecida, nem entediada,nem tem vontade de chorar, só o coração bate com muita força. Entram o gordo doutor eo esguio Obtiossov. Agora já dá para examiná-los. O barrigudo doutor é moreno, barbudoe desajeitado. Ao menor movimento, a túnica lhe estala no corpo e o suor lhe umedece orosto. Já o oficial é rosado, glabro, efeminado e flexível como um relho inglês.

 — O que desejam os senhores? — pergunta a mulher do farmacêutico, aconchegando ovestido sobre o seio.

 — Dê-nos... eeehh... quinze copeques de pastilhas de hortelã.

A mulher do farmacêutico alcança sem pressa o pote na prateleira e põe-se a pesar. Oscompradores, sem piscar, fitam-lhe as costas; o doutor franze o rosto como um gatosatisfeito, mas o tenente está muito sério.

 — É a primeira vez que vejo uma senhora trabalhando numa farmácia — diz o doutor.

 — Isso não tem nada de extraordinário... — responde a mulher do farmacêutico, olhandode esguelha para o rosto rosado de Obtiossov. — Meu marido não tem auxiliares, e eusempre o ajudo.

 — Ah, é assim... pois a senhora tem aqui uma farmácia muito simpática... Quequantidade destes... diversos potes! E a senhora não tem medo de mexer com estesvenenos! Brrr!

A mulher do farmacêutico fecha o pacotinho e entrega-o ao doutor. Obtiossov dá-lhequinze copeques. Meio minuto passa em silêncio. Os homens se entreolham, dão um passo em direção à porta, entreolham-se novamente.

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 — Dê-nos dez copeques de bicarbonato! — diz o doutor. A mulher do farmacêutico,movendo-se preguiçosa e lentamente, torna a estender a mão para a prateleira.

 — Será que não existe aqui na farmácia alguma coisa assim... — balbucia Obtiossov,mexendo os dedos — alguma coisa assim, sabe, alegórica, um fluido vitalizante

qualquer... água de Seltzer, talvez? A senhora tem água de Seltzer?

 — Tenho — responde a mulher do farmacêutico.

 — Bravo! A senhora não é mulher, e sim uma fada. Arranje-nos três garrafinhas!

 — A mulher do farmacêutico embrulha apressada o bicarbonato e desaparece naescuridão atrás da porta.

 — Que fruto! — diz o doutor, piscando um olho. — Uma romã dessas, Obtiossov, nemna ilha da Madeira você encontra. Hein? Que acha? Entretanto... está ouvindo o ronco? É

o próprio senhor farmacêutico que se digna repousar.

Um minuto depois, volta a mulher do farmacêutico e põe sobre o balcão cinco garrafas.Ela acaba de voltar do porão e por isso está corada e um pouco excitada.

 — Pssst... mais baixo — diz Obtiossov, quando ela, abrindo as garrafas, deixa cair osaca-rolhas. — Não faça tanto barulho, senão vai acordar o marido.

 — E que é que tem, se o acordar?

 — Ela está dormindo tão gostoso... sonhando... com a senhora... À sua saúde!

 — E depois — diz o doutor com sua voz de baixo, arrotando devido à gasosa — osmaridos são uma historia tão cacete, que fariam bem se dormissem o tempo todo. É, comesta agüinha seria bom um vinhozinho tinto.

 — Essa agora, que idéia! — ri a mulher do farmacêutico.

 — Seria excelente! Pena que nas farmácias não vendam bebidas espirituosas!Entretanto... a senhora deve vender vinho como remédio. A senhora tem “vinum gallicumrubrum”?

 — Tenho. — Então! Traga-o aqui! Com os diabos, carregue-o para cá.

 — Quantos desejam?

 — “Quantum satis!” Primeiro a senhora nos dá uma onça para cada copo, e depois,veremos... Hein, Obtiossov? Primeiro, com água, e depois, per se...

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O doutor e Obtiossov sentam-se junto ao balcão, tiram os quépis e põem-se a beber ovinho tinto.

 — Mas este vinho, força é confessar, é o que há de péssimo! “Vinum ruinzissimum”.Porém, na presença de... eeeh... ele parece um néctar! A senhora é encantadora, madame!

Beijo-lhe em pensamentos a mãozinha.

 — Eu pagaria caro para poder fazê-lo sem ser em pensamentos! — diz Obtiossov. —  palavra de honra! Eu daria a vida!

 — O senhor, por favor, deixe disso... — diz a senhora Tchornomordik, enrubescendo efazendo uma cara séria.

 — Mas como a senhora é coquete! — ri o médico em voz baixa, fitando-a de esguelha,com ar malandro. — Os olhinhos soltam chispas, dão tiros: pif! Paf! Meus parabéns! Asenhora venceu! Fomos derrotados!

A mulher do farmacêutico observa os seus rostos corados, ouve a sua tagarelice e logotambém fica animada. Oh, ela já está tão alegre! Ela entra na conversa, ri, coquete,dengosa, e até, após longas súplicas dos compradores, bebe umas duas onças de vinhotinto.

 — Os senhores oficiais deveriam vir mais vezes para a cidade, lá do acampamento — dizela — porque senão aqui é um horror de cacete! Eu quase morro.

 — E não é para menos! — horroriza-se o doutor — uma romã assim... maravilha danatureza... neste deserto! Como tão bem o disse Griboiedov: “Para o deserto! Para

Saratov!” Mas já é tempo de irmos. Muito prazer em conhecê-la... imenso! Quantodevemos?

A mulher do farmacêutico ergue os olhos para o teto e fica muito tempo movendo oslábios.

 — Doze rublos, quarenta e oito copeques! — diz ela.

Obtiossov tira do bolso uma carteira recheada, remexe longamente no maço de notas e paga.

 — Seu marido dorme deliciosamente... tem sonhos... — murmura ele, apertando a mãoda mulher do farmacêutico em despedida.

 — Não gosto de ouvir tolices...

 — Que tolices são essas? Pelo contrário... não são tolices... Até Shakespeare já disse:“Feliz quem jovem foi na juventude!”

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 — Solte a minha mão!

Finalmente, os compradores, após prolongadas despedidas, beijam a mão da mulher dofarmacêutico e, hesitantes, como que ponderando se não esqueceram alguma coisa, saemda farmácia.

E ela corre depressa para o quarto e senta-se junto da mesma janela. Ela vê como odoutor e o tenente, saindo da farmácia, preguiçosamente se afastam uns vinte passos,depois param e começam a cochichar entre si. Sobre o que será? Seu coração palpita, asfontes latejam, e por que — ela mesma não sabe... O coração bate com força, como seaqueles dois, cochichando lá fora, estivessem decidindo seu destino.

Uns cinco minutos depois, o doutor separa-se de Obtiossov e se afasta, ao passo queObtiossov volta. Ele passa pela farmácia uma vez, outra... Ora se detém perto da porta,ora recomeça a caminhar... Finalmente, cautelosa, tilinta a campainha.

 — O que foi? Quem está aí? — Ouve ela de repente a voz do marido. — Estão tocando láfora, e você não escuta! — diz o farmacêutico, severo. — Que desordem!

Ele se levanta, veste o roupão, e, cambaleando meio adormecido, arrastando os chinelos,vai para a farmácia.

 — O que... deseja? Pergunta ele a Obtiossiov.

 — Dê-me... dê-me quinze copeques de pastilhas de hortelã.

Com infinito resfolegar, bocejando, adormecendo em pé e batendo com os joelhos no

 balcão, o farmacêutico escala a prateleira e alcança o pote.Dois minutos depois, a mulher do farmacêutico vê Obtiossov sair da farmácia e, depoisde alguns passos, jogar as pastilhas de hortelã na estrada poeirenta. Detrás da esquina, aoseu encontro, vem o doutor... Os dois se juntam e, gesticulando, desaparecem na névoamatinal.

 — Como sou desgraçada! — diz a mulher do farmacêutico, olhando com raiva para omarido, que se despe apressado para voltar a dormir. Oh! Como sou desgraçada! — repete ela, debulhando-se, de repente, em lágrimas. — E ninguém, ninguémcompreende...

 — Esqueci quinze copeques sobre o balcão — balbucia o farmacêutico, puxando ocobertor. — Guarde, por favor, na gaveta.

E adormece imediatamente.

 — Fim — 

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Anton Pavlovitch Tchekhov

Biografia

 Anton Pavlovitch Tchekhov (1860-1904) Dramaturgo e romancista russo, nascido em

Taganrog.

Ao findar o século XIX, a Rússia debatia-se nas garras de terrível reacionarismo. A vidado povo era triste, pesada, sem esperanças. Profunda apatia pesava sobre as classesintelectuais, cansadas e desiludidas das lutas políticas. Uns se lamentavam sem cessar;outros se entregavam a uma existência de completa indiferença...

Foi nessa Rússia que surgiu um escritor cujas obras ganharam enorme repercussão.Chamava-se Anton Pavlovitch Tchekhov, era médico e, apesar de sofrer do peito, levavauma vida agitadíssima. Nascera de pais pobres em 1860 e a custo de esforços lograraconcluir o curso com distinção, sendo nomeado professor da Faculdade de Medicina da

Universidade de Moscou.

Começou a escrever para os jornais da capital e de São Petersburgo, mas, a princípio,seus trabalhos foram mal recebidos. Ao contrário do que sucedia com os outros grandesautores eslavos, as personagens de Tchekhov não eram tragicamente profundas; nãogritavam, não urravam, não amaldiçoavam céus e terras; levavam uma vida calada,monótona, melancólica. Quando se reuniam, falavam de coisas vagas — de um barco pintado de azul; de pobres soldados discorrendo sobre vários temas; de uma velhagovernanta que passa seus dias a pensar na cor dos olhos do filhinho, do menino que estáajudando a criar; de um jovem médico que se levanta de manhã bem cedo, enquanto oresto da cidade está dormindo sob a neve, para meditar em paz na hora que precede o

amanhecer... Tudo muito melancólico, muito melancólico.

Essa aparente dispersão de assunto, esse estilo nebuloso e vago, provocou estranheza. ARússia não estava habituada a tanta sutileza. De repente, porém, o império inteiroreconheceu-se, de corpo e alma, na obra do novo escritor. A glória logo lhe sorriu.Concederam-lhe o prêmio Pushkin, elegeram-no para a Sociedade dos Amigos daLiteratura Russa, e, suprema honra, construíram um teatro especialmente para arepresentação de suas peças.

Raros autores foram tão amados pela sua gente como Tchekhov. Ele conheciaintimamente todas as fraquezas, todas as pequenas misérias do seu povo, mas em lugar de

fustigá-lo, como Dostoiévski, ou de exaltá-lo, como Tolstoi, compadecia-o e, às vezes,chorava com ele.

É no conto que o gênio de Tchekhov se expande em toda a sua extensão. Na narrativacurta a sua arte finíssima encontrou o clima propício para o florescimento dos seus dotesde observador “enamorado da humanidade”, como escreveu Virginia Wolf. Poucosleitores deixarão de se comover com os sonhos que povoam a alma do pobre OlenkaPlemyanniakov, com os pueris terrores do pequeno Yegorushka. E quem não se

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enternecerá com a história do pobre Vanka, escrevendo a incrível carta para a família, oucom esse humilde Gusief recordando a aldeia natal? Pela técnica, pela maneira de tratar oassunto, Tchekhov pode ser colocado entre os grandes inovadores do conto.